Futebol ĂŠ mais que um jogo
Amanda Bogo e Pedro Centeno
Futebol ĂŠ mais que um jogo
Copyright © 2016 Amanda Bogo e Pedro Centeno. Todos os direitos reservados. amandabogo.rodrigues@gmail.com e pcojor@gmail.com
Autores Amanda Bogo e Pedro Centeno Fotos Amanda Bogo e arquivo de entrevistados Orientador Edson Silva Projeto Gráfico e diagramação Pedro Centeno
Projeto Experimental do Curso de Comunicação Social Jornalismo 2016 Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
Este livro Ê dedicado a nossos pais e familiares pelo apoio, pelo carinho e por nos deixar como herança o amor pelo futebol.
Sumário Apresentação.................................................................13 Capítulo I: Torcida que canta e vibra por nosso alviverde inteiro..............................................................16 Caio sob a visão de uma palmeirense.....................21 Na família santista surgiu um palmeirense..............22 As decisões e o Palmeiras............................................24 A distância entre o torcedor e o time..........................28 O apoio ao time durante a Série B..............................29 Os ídolos.........................................................................30 Os mantras.....................................................................34 A turma do amendoim.................................................35 O amor na pele..............................................................37 Trechos da Entrevista...................................................39 Capítulo II: Os celeiros de fanáticos sob um céu colorado e alvinegro............................................................46 André e sua conexão com o Operário......................50 Amor, cultura e futebol................................................53 Sentimento e territorialidade......................................55 Trechos da entrevista....................................................57 Alex e o sangue Colorado............................................62 Distância e simpatia......................................................63 Time vermelho, cabelo vermelho...............................66 Trechos da Entrevista...................................................68 Capítulo III: O teu presente diz tudo, trazendo à torcida alegres emoções..............................................72 Influência do futebol na vida profissional.............78 América Mineiro x Internacional................................79 Para ser ídolo é preciso garra......................................82 Segue a senda de vitórias.............................................84
O choro colorado...........................................................86 O lado comportamental...............................................88 A mulher no futebol.....................................................89 O amor como herança..................................................91 Trechos da Entrevista...................................................93 Capítulo IV: Teu passado é uma bandeira, Teu presente é uma lição..........................................................98 Organizando a Paixão................................................103 Pintando o amor.........................................................107 Trechos da Entrevista.................................................112
Apresentação Este livro é resultado do projeto “Futebol é mais que um jogo” desenvolvido no âmbito da disciplina Projeto Experimental do curso de Comunicação Social, habilitação em Jornalismo pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, sob a orientação do professor Doutor Edson Silva. O trabalho foi dividido em quatro capítulos que apresentam reportagens ancoradas nos conceitos de tipologia da reportagem impressa, de Oswaldo Coimbra expressos no livro “O texto da reportagem impressa”, e enfatizamos os recursos da reportagem narrativa e descritiva. Entendemos que as ferramentas textuais apresentadas por Coimbra atendem nosso foco de estudos: contar histórias de forma humanizada e que aproximam cada vez mais o leitor dos personagens. A escolha do tema central de nosso trabalho se deu por alguns fatores. O Brasil é considerado popularmente como o país do futebol. Segundo pesquisa publicada pelo Diário Lance! em 2010, 44% dos brasileiros acima dos 16 anos se envolveram diariamente com o esporte, seja na prática ou acompanhando por alguma mídia. Ainda de acordo com dados publicados pelo IBGE que foram apresentados na mesma pesquisa, 41 milhões de pessoas são praticantes assíduas de esporte e 121 milhões acompanham atividades esportivas pela mídia, em especial o futebol. É esse esporte que move a paixão de milhões de torcedores que vestem a camisa de seu clube e que acompanham os jogos dos times, seja nos es-
tádios, pela TV, rádio ou internet. Esse amor também movimenta o setor econômico com a venda de uniformes, ingressos, direitos de transmissão de jogos, livros, entre outros. A escolha do tema também foi influenciada por nosso interesse pelo jornalismo esportivo e pelo futebol brasileiro, além da possibilidade de poder contar histórias que comprovam que a relação entre o torcedor e o esporte vai além das quatro linhas do campo. Escolhemos cinco personagens centrais e usamos como critério de seleção fontes que acompanham clubes da Série A do Campeonato Brasileiro e times de Campo Grande que possuem relevância no cenário esportivo de Mato Grosso do Sul. Apesar das diferenças entre as histórias de cada torcedor, a começar pelo time que torce, todos têm em comum o amor incondicional pelo esporte e pelo clube. O livro reúne histórias de torcedores que viajam milhares de quilômetros para acompanhar um jogo ou para conhecer o seu ídolo, fazendo o possível para driblar a distância física. Torcedores que eternizam o amor que sentem na pele. Que comemoram as conquistas, mas que apoiam e permanecem ao lado do clube nas derrotas, seja em uma partida, na final de um campeonato ou no declínio do cenário esportivo dentro de seu estado. Apresentamos nesse trabalho diversos fatores como amor, fanatismo, persistência e até mesmo fé para que você leitor possa chegar à conclusão que apresentamos logo de início em nosso título: futebol é mais que um jogo. Amanda Bogo
Capítulo I
Torcida que canta e vibra por nosso alviverde inteiro
Por Amanda Bogo e Pedro Centeno
Caio Possari é jornalista, tem 27 anos e é torcedor da Sociedade Esportiva Palmeiras. Esse capítulo tem como objetivo contar as diversas histórias que comprovam que o amor que ele sente pelo time ultrapassa as quatro linhas do campo e influenciam diretamente em sua vida. 16
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Foto: Amanda Bogo
Futebol é mais que um jogo
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m um fim de tarde quente, normal para o verão campo-grandense, fomos à área central da cidade para conhecer o quarto de Caio Possari, jornalista e palmeirense que estávamos entrevistando para nosso livro. Havia conhecido ele apenas alguns dias antes em uma sessão de nossas entrevistas. Cara engraçado e bom de prosa, mas principalmente palmeirense. Pensei comigo durante nossa primeira conversa: esse cara é maluco. Ainda não sabia o que me esperava. Bom, sua personalidade trabalharemos mais adiante no livro, agora vamos falar sobre seu quarto. Me encontro com ele e Amanda na frente do prédio em que mora. Bonito edifício em uma região boa da cidade. Assim que entramos, reparo no tênis verde dele. Verde mesmo. Quem usa tênis verde? Enfim. Chegamos perto do elevador e Caio já é abordado por outros moradores – E a final? – perguntou um morador. – Vai ver o jogo onde? – indaga o outro. Após desviar da pergunta dos rapazes, ele nos revela. – Claro que vou ver o jogo em casa, não pode vacilar agora. O Palmeiras iria enfrentar o Santos pela final da Copa do Brasil 2015 em 10 dias. Ao chegarmos no apartamento, ele pede para assim que entrarmos, a primeira coisa que devemos fazer é sentar no sofá. – Meu cachorro é doido, enquanto vocês não sentarem no sofá, ele não para de latir. Logo que entramos, o animal começa a latir, 18
Futebol é mais que um jogo o nome dele é Link e é da raça Lhasa Apso de pequeno porte, reparo que é preto e branco. Corintiano! Esse é dos meus. O canino agitado seria meu refúgio naquela casa palmeirense. Após acalmarmos o cão, vamos para o quarto. Chego lá e começo a perceber que tudo dentro do cômodo é do Palmeiras. São seis molduras do time na parede, uma camisa com autógrafos de Zinho, César Sampaio, Paulo Nunes, Evair e vários outros campeões da Libertadores de 99. Além da camisa, outras cinco molduras têm pôsteres de times campeões: Três são da época em que o time era patrocinado pela Parmalat1, com os Paulistas de 93 e 96, e a Libertadores de 99; um da época da “Academia” com Brasileiro de 72/73; e o time que conquistou o Paulista de 2008. Além das molduras, tem uma faixa “Dá-lhe Porco! Nasci para vencer” e um disco com o símbolo do Palmeiras. Apesar de ser corintiano, não me sinto incomodado dentro do quarto, me sinto impressionado. A cama tem colcha e fronha do time. Tapete, puf, almofada, garrafa térmica, chinelo. De tudo. O quarto parece uma loja oficial do clube. Começo a procurar algo que não seja relacionado ao Palestra. Achei! Um abajur, calendário, video game, um objeto com o seu nome e da namorada, uma foto dele com a namorada... opa! Espere um pouco, o porta retrato é do Palmeiras. – Ela me disse que comprou esse porta re1 Palmeiras foi patrocinado pela empresa italiana de produtos alimentícios de 1992 até 2000, conquistando 11 títulos neste período. Uma das fases de maior sucesso do clube.. 19
trato porque seria o único jeito de eu colocar na minha mesa. Caio explica aos risos. Na mesa não são tantos objetos do time, apenas a miniatura do estádio Allianz Parque e o porta retrato já citado. Porém acima da televisão, duas estantes com mais de 100 itens palmeirenses. Copos, garrafas, bonecos, ursos de pelúcia, almofadas e etc. Incrível! – Cuidado, hein? Quem fica nesse quarto vira palmeirense... Brinca a mãe de Caio enquanto passa pelo corredor. Será? Eu não quero abandonar meu Corinthians, seria uma decepção muito grande para o meu pai, eu sou a terceira geração de corintianos na minha família. Eu tenho que sair daqui. Quando a preocupação começa a me apertar, Link anda ao lado do quarto e dá uns latidos, me sinto seguro de novo. Se ele mora aqui e resiste, continua preto e branco, eu vou ficar bem. Com o susto momentâneo superado, passamos ao armário. 85 camisas. Oitenta e Cinco. Oi-ten-ta e Cin-co. Inacreditável! Caio pede para não falarmos o número de camisas que ele tem, sua mãe e sua namorada não sabem. Desculpa cara, mas o mundo precisa saber disso. São 85 camisas do Palmeiras que ele possui. Isso porque prometeu que não compraria mais camisas por causa de... bom, isso fica mais para frente também. Estou chocado com o número de camisas, mas dá para dizer que ele é colecionador, afinal 20
Futebol é mais que um jogo ele tem várias camisas de outros times. Times da Europa e do Brasil. Alguma do Corinthians? Não, nenhuma. Caio começa a mostrar para gente algumas revistas que ele coleciona. Para conseguir essas revistas ele teve de entrar em contato com a editora Abril. Algumas edições que ele possui não vieram para Campo Grande. Esses exemplares contêm alguns momentos históricos do time. Foi uma visita interessante, nunca havia conhecido alguém “maluco” desse jeito. Saio do prédio e confiro se continuo corintiano. Sim, está tudo bem. Três dias depois meu time conquista o Hexa do Campeonato Brasileiro. Definitivamente continuo corintiano. Eu e Link conseguimos resistir ao poder do quarto-loja oficial do Palmeiras de Caio.
Caio sob a visão de uma palmeirense O Caio foi o nosso primeiro contato para ser fonte do livro. Apesar da dificuldade em encontrar personagens que atendessem nosso foco. Indicado por alguns amigos que temos em comum, demorei semanas para iniciar as conversas. Logo depois ele me adicionou no Facebook e falou comigo, dizendo que estava interessado em poder contar sua história de amor e paixão pelo Palmeiras. – Vai ser uma honra falar do meu verdão. 21
Conseguimos agendar nossa entrevista para o final da tarde de uma quarta-feira na universidade, onde o encontrei na escadaria do corredor central para conduzi-lo até a sala onde seria feita a nossa conversa. Cabelos pretos, 27 anos, estatura mediana, feição gentil e calma. Ao primeiro contato não consegui imaginar que aquela pessoa tão tranquila tivesse uma paixão tão grande dentro de si e fosse capaz de tantas loucuras pelo Palmeiras. Sempre simpático, Caio demonstrava sua timidez enquanto conversávamos, mantendo o olhar baixo, mexendo nas mãos como um gesto nervoso, mas sempre sorridente nas respostas. Por eu também ser palmeirense, tive facilidade em puxar alguns assuntos para que ele pudesse se sentir mais à vontade. Após decorrer dez minutos de conversa parecia que o conhecia há anos. Assim que o Pedro chegou, fiz a apresentação entre ambos e nos sentamos. Para deixar o clima mais ameno comentei: – O Pedro é corintiano, mas é tranquilo. E rindo, ele respondeu que não havia problema. Pela reação a brincadeira, vi que ele já estava a vontade conosco e calmo para começarmos o bate-papo.
Na família santista surgiu um palmeirense Com pai santista, Caio tornou-se palmeirense. 22
Futebol é mais que um jogo Sempre tive uma ideia de que o amor pelo time do coração vem como uma tradição de família, algo que já está no seu DNA, mas o Caio mostrou que é bem diferente disso. Ele não conseguia criar laços com o clube do pai, e na convivência com alguns amigos palmeirenses se identificou com o time e com a história do clube. – O Palmeiras surgiu no contato com dois amigos que eu tinha, mas muito por não enxergar no Santos, que é o time que eu tinha em minha família, o perfil que eu queria para mim. Eu vejo que a cor do Palmeiras é diferente da cor do São Paulo, do Corinthians, do Santos... o verde é diferente, mas muito pelo o que significa a nossa história. – Você acredita que o bom momento que o clube vivia na época em que você escolheu ser torcedor influenciou nessa decisão? – Isso pode ser considerado também, mas quando você é criança, você não tem essa percepção. Com apenas dez anos, o jornalista esteve presente na final da Taça Libertadores da América de 2000 no Morumbi, onde seu time perdeu o título para o Boca Juniors. Apesar dessa derrota, ele acompanhou uma das melhores equipes do Palmeiras, período em que era patrocinado pela Parmalat. A resistência é algo sempre citado por Caio para ressaltar o quanto a torcida palmeirense é apaixonada pelo clube, e que os palestrinos – termo que usado para designar os torcedores do 23
Verdão e que tem relação com o nome do antigo estádio do clube, o Palestra Itália – enfrentam diversas adversidades desde a sua fundação. – Essa questão de família, do italiano que chegou e lutou pelo espaço dele e da questão da tradição são valores que a minha família me passou e eu peguei pelo lado palmeirense... graças a Deus. Para compreender a importância que o time tem na vida do Caio é preciso entender que a relação dele com o clube é maior do que alguns jogos durante o meio e os fins de semana. – Eu associo o Palmeiras a um estilo de vida. Não tem um dia que eu não fale do time. Seja de manhã com os colegas de trabalho, na hora do almoço com meu irmão, a noite na academia. É assim todos os dias Orgulhoso em falar de sua relação com o time, ele completa: – Eu enxergo o Palmeiras nas coisas. Se eu estou mal eu já penso: pô, a equipe não vai jogar tão bem assim hoje.
As decisões e o Palmeiras Caio é jornalista e conta que escolheu a profissão por gostar de futebol e encontrar na vertente do jornalismo esportivo uma maneira de ligar o amor pelo esporte a sua profissão. Ele tentou ser 24
Futebol é mais que um jogo jogador de futebol, mas a carreira não deu certo. – Eu realmente queria jogar bola quando era criança, mas não em qualquer time, eu queria jogar no Palmeiras. Apesar de hoje atuar na área da comunicação prestando serviços na empresa da família, ele tem um blog e um canal no YouTube onde aborda informações sobre o esporte. Questionei como esse amor influenciava sua vida pessoal e surgiram diversas histórias que me surpreenderam. Sempre com bom humor, ele contou que deixou de ir ao casamento do primo para que pudesse acompanhar um jogo do Campeonato Paulista e ir pela primeira vez ao Allianz Parque. Em 2012, faltou a sua missa de formatura para acompanhar pela televisão o jogo contra o Coruripe, time de Alagoas, válido pela primeira fase da Copa do Brasil. – Minha mãe ficou brava. Ela falava: “Caio, é sua missa de formatura!”. E eu explicava: mãe, é o Palmeiras! Fiquei encantada e me diverti com todas as histórias que ele contava durante a entrevista. Conheça algumas dessas histórias: O curso de rádio em São Paulo – Eu estava fazendo um curso de rádio em São Paulo e saí da aula mais cedo dando o maior migué, dizendo que eu não tinha dinheiro para a passagem de volta e o pessoal que tinha comprado para mim, tinha marcado para determinado horário, e por isso eu precisaria sair mais cedo. A verdade é que eu estava 25
indo para o Canindé ver Palmeiras e Bragantino. Cheguei lá e não tinha ingresso, tive que comprar de um cambista da Mancha Verde2. Bom Jovi em São Paulo – Em 2013 ia ter um show do Bon Jovi em São Paulo e eu, meu irmão e as nossas namoradas compramos os ingressos. Houve um contratempo com um integrante da banda, não me lembro se foi caso de morte ou de doença, mas transferiram a data do show. Como remarcar passagem é muito caro, nós tivemos o valor do ingresso reembolsado e fomos assistir Palmeiras e Sport no Pacaembu pela Série B. Pensei: que pena vocês vão ter que me ressarcir e eu vou ao jogo. E eu levei todo mundo na lábia. Meu irmão, que é super palmeirense, já topou e as meninas foram. Minha namorada ficou muito brava porque o Pacaembu não é coberto, foi um sol forte na gente. O jogo de despedida e o quase encontro com o goleiro Marcos – Eu tinha uma amiga que já tinha levado uma camiseta minha ao Centro de Treinamento do Palmeiras para conseguir autógrafos, e ela foi no dia do aniversário do Marcos, um ano antes do jogo de despedida dele, e conseguiu que ele autografasse a camisa. Eu fiquei todo feliz, na moldura só tinha o autógrafo dele! E nesse dia, essa moça pegou o telefone do assessor do Mar2 O Grêmio Recreativo e Cultural Torcida Mancha Alviverde, também conecida como Mancha Verde, é a maior torcida organizada do Palmeiras. 26
Futebol é mais que um jogo cos. Depois de um ano quando foi acontecer o jogo de despedida, ela usou o contato e conseguiu saber o hotel onde os jogadores que participariam ficariam hospedados. Eu fui para São Paulo com meu irmão para acompanhar a partida e aproveitei para ir até o hotel para pegar autógrafos e conhecer os jogadores. E aí, imagina! Lá estavam Paulo Nunes, Alex, Antônio Carlos, Dudu, Ademir da Guia, Leivinha, César Maluco... a nata do Palmeiras! A história do clube estava ali! Conheci até o Mauro Beting, mas nada do Marcos chegar. Como o meu irmão tinha pego uma recuperação na faculdade, ele disse que não poderia demorar lá porque precisava estudar antes de irmos ao jogo a noite, por isso tivemos que ir embora antes do Marcos chegar. Liguei para um amigo que foi nos buscar. Eu sei que tinha uns cinco minutos que nós estávamos dentro do carro, um outro amigo me mandou uma mensagem contando que estava no CT e que ia tentar ir até o hotel para ver o Marcos. Logo depois esse amigo começou a me mandar mensagens e a publicar no Facebook dele fotos com o Marcos! Eu fiquei incrédulo! Cheguei em São Paulo de manhã, peguei o táxi, fui ao hotel, fiquei sem almoçar e não tirei nenhuma foto com o Marcos! Eu fiquei um tempo de cara com meu irmão.
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A distância entre o torcedor e o time Para o torcedor uma das maiores emoções é estar no estádio acompanhando um jogo, cantando e vibrando com a sua torcida. Quando você torce por um time de outro estado, fato comum que pode ser relacionado também ao enfraquecimento do futebol que está fora do eixo São Paulo-Rio de Janeiro, o torcedor tem que encontrar outras maneiras para estar próximo ao clube. Com o Caio não foi diferente. – Quando a gente nasce longe do time do coração a gente se acostuma. Pela televisão não é a mesma coisa. Eu me lembro do meu primeiro jogo lá no antigo Palestra Itália e é muito diferente, mas você aprende a conviver com isso e o seu amor não é menor. Sempre levei a distância numa boa e sempre tentei encurtar isso. Pelo Palmeiras eu parcelo viagem em 12 vezes, eu dou meus pulos para estar perto. – Você já pensou em morar em São Paulo para estar mais perto do Palmeiras? – Eu já pensei nessa ideia várias vezes, mas o mercado de trabalho lá é complicado. Não é uma coisa que hoje seja plausível para a minha situação.
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O apoio ao time durante a Série B Uma das situações mais difíceis que um time pode enfrentar, senão a pior de todas, é o rebaixamento. Para um clube como o Palmeiras a queda em 2002 foi inacreditável. Não mais que a segunda queda em um período de dez anos, em 2012. O time que foi o maior campeão do século XX, que já havia representado por completo a seleção brasileira, do roupeiro ao goleiro, e que é octa campeão nacional sucumbia. Nenhum torcedor compreendia o que acontecia para que um time com aquela grandeza fosse tão inconsistente. Isso poderia abalar o torcedor e fazer com que ele desistisse do clube, e isso poderia ter acontecido com Caio, mas ele explicou que a força que teve para continuar apoiando o time veio da mesma força que os imigrantes italianos tiveram para lutar pela fundação e permanência da Sociedade Esportiva. – A força está na história do torcedor palmeirense. Começa com a resistência do povo que vem para conquistar espaço na fundação do clube. Na questão da Segunda Guerra Mundial: você muda o nome, mas não muda a sua essência. Você não muda o que você quer como clube. Com certeza é um teste de fogo. Posso dizer que eu admiro muito as crianças que hoje são palmeirenses. E eu vejo o Palmeiras nas coisas da vida. Quantas vezes você passou por dificuldade, se sentiu para baixo ou precisou cair para levantar? Eu acho que a vida não é feita só de alegria. 29
Os ídolos Todo torcedor tem uma relação de carinho e admiração pelo jogador que veste a camisa do seu time e que demonstra uma relação de identificação com o clube maior do que o vínculo empregatício. Alguns jogadores conseguem conquistar a torcida de maneira geral, outros causam comoção em uma parte dela, mas não agradam a todos. O ídolo consegue criar essa ligação de respeito e ser um representante da torcida dentro de campo, seja por meio do seu futebol ou pelas suas atitudes. Caio afirma que para ser ídolo, o jogador tem que demonstrar vontade nos jogos. – O cara para ser ídolo precisa correr mais do que os outros. Não adianta ele fazer só uma jogada bonita e fazer um gol, dele eu quero vontade. São dois jogadores que ele considera ser seus grandes ídolos: o goleiro Marcos, que atuou pelo clube entre os anos de 1992 a 2012 e que considera o maior ídolo de todos. E o atacante Edmundo, que vestiu a camisa do Palmeiras em duas oportunidades: De 1993 a 1995 e de 2006 a 2007. – Eles são os dois ídolos que eu tive no Palmeiras, e isso vai muito da questão de identificação do jogador com o time. Como falar que o Edmundo e o Marcos não eram identificados com o Palmeiras? A história do Marcos no clube fala por si só. Na medida em que eu fui amadurecendo, fui vendo a importância do Marcos. Eu gostava 30
Futebol é mais que um jogo e admirava o cara até quando ele errava, porque o Marcos era muito sincero. Quando eu descobri que faço aniversário no mesmo dia que ele, eu tirava onda com todo mundo. Eu tenho livro, DVD, camiseta dele, bonequinho... infelizmente não tenho luva, ainda. Sobre o Edmundo, Caio afirma que: – Ele sempre foi um cara decisivo em clássico. Era demais o que ele jogava e isso para mim, que acompanhava o Palmeiras que não conseguia conquistar títulos, fazia uma diferença absurda. Eu podia não ser campeão, mas do meu rival eu não perdia! Mais uma vez tomo a liberdade de deixar que o próprio Caio conte como foi a experiência de conhecer pessoalmente esses dois jogadores: De Campo Grande a Londrina: conhecendo o Edmundo – Eu sigo a loja que é a franquada do Palmeiras nas redes sociais, e ela promoveu um evento em Londrina, no Paraná, onde os torcedores poderiam conhecer o Edmundo. O evento também seria realizado em Campinas e eu estava me programando para ir, porque é mais perto e por eu ter um amigo que mora na cidade a viagem seria mais econômica. Mas acabava ficando mais caro ir para Campinas do que para Londrina, então optei pela segunda cidade. Cheguei cedo, passei na filial da empresa da minha família – mais como um pretexto – e fui direto para o shopping. O evento começava às sete horas da noite e eu fiquei o dia todo esperando. Eu era o primeiro da fila, mas 31
resolvi sair para lanchar antes que começasse e quando retornei tinham umas três, quatro pessoas na minha frente. Minha preocupação era que o evento atrasasse, já que o início era previsto para sete horas da noite e o ônibus que eu ia pegar para voltar para Campo Grande saía às nove horas da noite da rodoviária. Era sete e meia e nada de começar. Iniciei uma conversa com o pessoal que já estava na fila e eles perguntaram em qual bairro de Londrina eu morava, respondi que era de Mato Grosso do Sul e que estava preocupado com o horário. Aí eles disseram: “Você é louco, veio para cá só para isso? Você é o primeiro da fila, sério! Olha o que você fez para vir conhecer o cara”. E todos concordaram e me deixaram ser o primeiro. E eu passei na frente de todo mundo! E ai na hora que eu cheguei para falar com o Edmundo, ele foi o Edmundo calmo, totalmente diferente do que ele era em campo, ele foi o que ele é nas reportagens. Conversou comigo, me cumprimentou, e eu valorizo essas coisas! E nesse momento a menina da franquia, que eu troquei quinze e-mails para não ter dúvida sobre o evento, gritou: “Cara, ele vai pegar nove horas de busão para voltar pra cidade dele!”. O Edmundo olhou surpreso e me disse: “Você ta brincando, cara? Eu que te agradeço por você estar aqui, não você que me agradece!”. E ouvir isso dele valeu demais! Finalmente o encontro com São Marcos! – Surgiu o evento da Copa do Mundo de 2014, o Tour Oficial da Copa, onde cada capital do País recebia 32
Futebol é mais que um jogo um campeão do mundo pela seleção brasileira. Eu fiquei sabendo na noite anterior ao evento, pelo Campo Grande News que era o Marcos que viria. Aí eu fiquei louco, né cara? Falei: pô, tenho que ir nisso, vai ser essa vez ou nunca mais. E eu tinha como trabalho de conclusão de curso um programa de rádio na faculdade que chama “Pantaneiros da Bola”, que eu fiz com um amigo. A página ainda existe no Facebook, embora não cuide mais tanto. E nós fomos com uma credencial mó furadona, e eu cheguei atrasado, porque eu não sou pontual. Eu entrei no estande onde estava acontecendo o evento e o meu amigo veio contar: “Eu fui do outro lado ali e já peguei uma foto com o Marcos!”. Eu falei: filho da mãe, você já conhecia o cara. Você não precisa disso. Eu que preciso! Bem egoísta assim! Depois que o Marcos concedeu a entrevista coletiva à imprensa, ele ficou atendendo individualmente o pessoal. E eu consegui nessa hora fazer uma entrevista com ele para o meu programa e depois consegui conversar brevemente com ele, agradecendo-o por tudo que havia feito pelo time. Falei que ele era meu ídolo no futebol, no Palmeiras, e pedi pra dar um abraço nele, cumprimentei e tirei a foto. E depois que eu falei isso, o Marcos daquele jeito dele respondeu: “Que isso cara”. Aí bateu no meu ombro e disse: “Não precisa agradecer não”. Daquele jeito bem caipirão dele, sabe? Foi muito legal. A forma como ele me tratou é o espelho do que ele sempre fez por todo mundo. Foi uma felicidade geral naquele dia por parte da minha mãe, minha família e meus amigos. Foi um 33
dos sonhos que eu realizei com o Palmeiras.
Os mantras Você dificilmente conseguirá encontrar o Caio vendo um jogo decisivo entre amigos ou em um lugar público, já que ele acredita que isso dá azar. Uma série de superstições são seguidas em dias de jogo para que nada dê errado e o Palmeiras consiga conquistar a vitória. É importante, por exemplo, que o chinelo que tem a estampa do clube esteja virado para a televisão. Em 2014, para livrar o time do terceiro rebaixamento, que seria o segundo consecutivo, ele fez uma lista de 14 promessas que deveriam ser cumpridas até o final de 2015. Na lista estavam itens como ajudar instituições de caridade, ficar um ano sem comprar camisas do time, fazer uma tatuagem, entre outros. Eu tive a oportunidade de acompanhar a execução desse último item que será retratado mais à frente. Bem humorado e rindo, Caio comentou sobre algumas superstições que tem durante os jogos. – Quando o Palmeiras sofre o escanteio, eu tenho que bater três vezes na madeira e eu fico mentalizando assim algumas frases, para orientar os jogadores. Se alguém fala gol antes de sair o gol, eu fico bravo porque sei que não vai sair mais. Quando o Palmeiras tem um pênalti a favor eu não bato na madeira, mas eu não olho até a 34
Futebol é mais que um jogo última hora. Eu tenho uma série de manias que eu respeito para não dar zica, mas eu não vou liberar todos os mantras porque eu preciso ter algum de retaguarda.
A turma do amendoim Em sua primeira passagem como técnico do Palmeiras, Luiz Felipe Scollari, o Felipão, teve uma série de desentendimentos com a imprensa, com o então Ministro da Saúde José Serra – que sempre se declarou torcedor fanático do time – e com a própria torcida do clube. Os torcedores que ficavam alocados durante os jogos nas cadeiras sociais do antigo Palestra Itália tinham uma visão privilegiada do campo e ficavam muito próximos ao banco de reservas. Durante os jogos era possível ouvir as reclamações desses torcedores vindo direto das arquibancadas, o que irritava o técnico, que então os apelidou de “Turma do Amendoim”, aproveitando o fato de que muitos desses “críticos” compravam os petiscos de vendedores ambulantes dentro do estádio para comer enquanto assistiam à partida. O apelido pegou e até hoje é utilizado para denominar aquele torcedor mais chato, o que cobra o time até quando está ganhando. – Você se considera um membro da Turma 35
do Amendoim? Aos risos ele respondeu. – Eu acho que todo palmeirense é da Turma do Amendoim, uns mais, outros menos. Eu apoio muito, mas está na nossa essência reclamar, falar, resmungar. Acho que pelo o que o Palmeiras já foi, pela nossa história, o torcedor reclama baseado nas nossas vitórias. Caio confessa que usa o Twitter para exercer o seu lado de torcedor “corneteiro” – expressão, que assim como Turma do Amendoim, é utilizada para denominar aquele torcedor que cobra em excesso o bom desempenho do time. – O Twitter me fez mal, eu tenho sido uma metralhadora, não tenho mais filtro. Eu não falava, não mexia no celular antes do jogo. Hoje, se eu não mexer, se eu não mandar uma mensagem no Twitter, dá azar. Então, acho que todo palmeirense é um pouco Turma do Amendoim. Encerramos nossa conversa e tive a certeza de que o Caio era o torcedor que tanto procuramos para dar vida ao nosso trabalho. Utilizando a expressão popular e “deixando o clubismo de lado”, fiquei encantada com o modo que ele torce e leva o Palmeiras como uma filosofia de vida, me fazendo questionar se eu realmente era torcedora perto dele. Quando comentei isso, ele muito simpático e educado me disse: – Somos torcedores da mesma maneira, o nosso amor é igual.
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O amor na pele A sessão estava agendada para uma segunda-feira as nove e meia da manhã. O combinado era estar às nove e quinze no estúdio que fica localizado na Rua Padre João Crippa. Quando cheguei ao local, Caio ainda não estava lá. Fui atendida pelo tatuador, que muito simpático me recepcionou e pediu que eu aguardasse sentada em um balanço. Sim, havia um balanço feito de um material que se assemelhava muito ao de uma rede de descanso. Logo comecei a notar o ambiente, uma sala pequena onde alguns móveis estavam dispostos organizadamente para que coubesse tudo: o balanço de pano, um puf no chão, uma mesa de escritório com um computador e três cadeiras. Atrás do balanço de pano e do puf havia uma escada íngreme e sem corrimão, com degraus de madeira que levavam para a parte superior onde eram feitas as tatuagens Após aguardar cerca de dez minutos, o Caio chegou com a sua namorada. Cumprimentei ambos, me sentei de novo no balanço e aguardei que o tatuador mostrasse algumas fontes como sugestão para a tatuagem. Como vocês devem se recordar, um dos 14 itens da lista de promessas contra a queda do Palmeiras para a Série B do Campeonato Brasileiro em 2014 era fazer uma tatuagem. Ele estava em dúvida entre fazer uma frase ou a silhueta do goleiro Marcos ajoelhado apontando os dois dedos indicadores para cima, marca regis 37
trada do goleiro quando conseguia defender cobranças de pênalti. Ele acabou optando por tatuar a frase “...Pois seremos Palmeiras e nascemos para ser campeões”. Fiquei observando a conversa entre os três onde ficou decidido qual seria a fonte utilizada na tatuagem. Subiram pela escada de degraus de madeira e aguardei o momento que pudesse subir. Quando cheguei ao estúdio em si, percebi que ele dava a sensação de ser menor que a recepção. Havia uma maca, duas cadeiras e os materiais do tatuador dispostos de modo organizado em uma pequena mesa. O Caio já estava sentado em um banco encostado na maca, sem camisa e com a frase já riscada na parte superior direita das costas, próximo ao ombro. Acompanhei toda a sessão. Enquanto conversava com o tatuador e a namorada do Caio, percebia que a dor que ele sentia com a tatuagem era algo incômodo. Questionei se estava doendo e ele, simpático como sempre, disse: – Um pouco, mas aqui é Palmeiras. Confesso que sempre tive vontade de fazer uma tatuagem com o nome do clube, mas os receios da futura vida profissional me impediram várias vezes. Vendo o Caio tomar coragem e eternizar seu amor pelo Palmeiras na pele, me questionei de novo se era tão palmeirense quanto aquele rapaz. Aprendi muitas coisas sobre amor ao futebol e a um clube em específico. Ao sentimento puro que o futebol proporciona ao torcedor, apesar de depois ter aceito que realmente “somos torcedores da mesma maneira e o nosso amor é igual”. 38
Futebol é mais que um jogo
Trechos da Entrevista Vindo de uma família santista, como o Palmeiras surge na sua vida? O Mauro Beting escreveu uma vez que o Palmeiras acolhe mais do que a gente escolhe. Eu acho que é uma coisa que tinha que acontecer. Eu sou de agosto, mês do aniversário do clube, nasci no mesmo dia que o Marcos e pra mim é o um grande privilégio, maior ídolo do clube. Minha família é de Araçatuba e de São Paulo, tem palmeirense, eu não tinha contato direto com essas pessoas na época. Eu tinha dois grandes amigos que até hoje sou muito próximo de um. Ele e o pai foram influências. Eu via no Santos e nos meus pais algo que não tem nada a ver com o Palmeiras. Não tinha energia, essa coisa de cantar e vibrar, essa coisa da resistência. E acho que é muito essa questão de identidade, de resistência mesmo. Eu associo o Palmeiras à um estilo de vida. Não tem um dia que eu não fale do Palmeiras, de manhã com os colegas de trabalho, na hora do almoço com meu irmão, a noite na academia, é assim todos os dias. O Palmeiras surgiu no contato com dois amigos, mas muito também por não enxergar no Santos o perfil que eu queria para mim. Acho que a cor é diferente de São Paulo, Corinthians, Santos. O verde é diferente, mas muito pela história, pelo que 39
significa isso. Essa questão de família, do italiano que chegou e lutou pelo espaço dele, essa questão da tradição, são valores que a minha família me passou e eu peguei pelo lado palmeirense. Graças a Deus. A torcida tem a tendência de crescer em épocas que o time ganha campeonatos, a década de 90 foi boa para o Palmeiras. Isso te influenciou? Eu não sei. Provavelmente isso faça diferença. Hoje eu tenho essa percepção do que é o Palmeiras, mas na época escolhendo um time quando você é criança, você não percebe todas essas coisa. Eu posso falar que peguei essa época boa. O meu irmão era santista, o do meio (Daniel), e ele virou palmeirense em 2003 durante a Série B. Eu acho que muito pelo amor que eu tinha pelo Palmeiras. Eu tenho muito orgulho do Palmeiras ter jogado a segunda divisão em 2003 porque foi o primeiro clube a voltar dentro de campo. O Palmeiras é um guia pra mim, eu enxergo o Palmeiras nas coisas... Se eu não faço tudo que eu tenho que fazer no meu trabalho, eu já acho que o Palmeiras não vai ganhar, se eu não acordo bem. Então é muito intenso isso. Eu tenho uma ex-namorada que gostava muito de futebol e era gremista doente, ela virou palmeirense, a gente terminou em 2008 e ela é palmeirense até hoje. E pra mim, o dia que eu morrer, o cara pode falar lá no caixão que eu era um cara amigo, família, tranquilo, e um baita palmeirense. Pra mim vai valer. 40
Futebol é mais que um jogo O Palmeiras influencia nas decisões da sua vida? Um pouco. Eu deixei de ir ao casamento do meu primo pra ir conhecer o Allianz Parque, em um jogo do Campeonato Paulista. Eu não fui na minha missa de formatura porque ia ter Palmeiras, primeiro jogo da Copa do Brasil de 2012, contra um timeco que não tinha importância nenhuma. Acho que o Palmeiras é tão presente em todos os dias que ele é um imã que tenho. Realmente eu queria jogar futebol quando era criança, até morei fora, e eu queria jogar no Palmeiras. Influencia em muita coisa. Eu deixo de ir em baladas pra comprar camisa do Palmeiras. É por isso que eu criei essa questão de identidade, mas em relação às escolhas, eu acho muito natural, está no meu dia a dia. Você bateu o carro por causa do Palmeiras. Como é essa história? Fui levar uma ex-namorada, depois de um jogo que perdeu pro São Paulo e eu com aquilo: vamos reverter! Porque a gente não aguentava mais fila. Eu saí put*, mas com a camisa, comigo não tem essa, eu visto a camisa. Sempre. Fui levar minha namorada e quando eu estava voltando, um cara falou comigo e eu não entendi. Eu diminui e o cara falou: “Chupa sofredor, palmeirense filha da put*”. Do jeito que ele falou, ele começou a descer a rua, eu estava com o vidro 41
abaixado, eu falei: seu filho da put*, semana que vem é o troco, pode esperar que vai ter! E o carro andando. Eu vi o carro da menina subindo a rua e eu passei direto no Pare. Buum! A menina naquele desespero e eu tudo de verde. Saí do carro e ela tão novinha, falei: cara, você não tem CNH provisória? Faz assim, eu vou te dar meu cartão, meu pai tá vindo aqui, ele vai garantir que eu trabalho. Eu vou pagar isso pra você. Eu lembro que ela falou assim, chorando: “Eu não tenho provisória, a minha é definitiva. Do que você tá falando?”. Eu pensei que só eu tava com a provisória. Daí ela não chamou a polícia, foi gente boa, tenho até hoje no Facebook. Um dia encontrei ela e o namorado: “Ó esse ai é o menino que bateu no meu carro”. Mas nunca falei pra ela que foi por causa de jogo, mas foi por isso. Pô, bater no trânsito por causa de jogo. Cê é louco! Nunca mais. Posso xingar, mas olhando pra frente. E ela falou isso pra mim: “Por que você tava de costas, moço?”. E eu num vou falar pra menina que tava olhando pro outro lado pra xingar o cara. E eu não falei, né? Foi isso que aconteceu... passei cada coisa. Quando você descobriu o que tinha que fazer para o Palmeiras ganhar os jogos? Foi uma relação de erro e acerto? É, isso acontece. Mas por exemplo, se pega uma derrota e você está com um traje, não repito nunca mais. O dia que teve Palmeiras e Inter no estádio do Palmeiras, o primeiro jogo tinha sido um empate 42
Futebol é mais que um jogo no Beira-Rio. E a gente estava sem uma moça que ajudava em casa e a roupa suja estava acumulando. E eu uso roupa do Palmeiras todo jogo, jogo toda semana, a tendência era usar as que eu gosto. Chegou no dia e as da sorte não estavam no armário. E eu esqueci de ver isso. Eu falei: o que eu vou fazer agora?. Peguei uma nova. Cara, esse negócio de pegar camisa nova dá um rolo. E eu fui com ela e ganhou. Daí, pensei: ela é da sorte. Eu tenho que fazer as minhas coisas. Aí você vai falar que isso é coincidência. Mas eu acredito. Por exemplo contra o Vasco, perdeu por 2 a 0, eu não tinha feito algumas coisas. O que você não fez? Eu tenho uma coleção de copos, canecas, objetos acima da minha TV no meu quarto. Eu olhei e falei: bicho, tá sujo isso aqui, preciso limpar. Aí eu tirei um copo por vez, aí eu lavei a maioria assim e não terminei. Rá! Aí dá merd*. Se eu não arrumar minha cama então. Teve Palmeiras e Ponte Preta pelo Paulista, e a Ponte fez um gol com 3 minutos, assim, muito rápido. E eu estava na casa de um amigo meu. E a hora que eu entrei na sala dele, eu fui e posicionei meu chinelinho, igual eu sempre posiciono. Meu amigo pegou meu chinelo e jogou longe. Eu falei: eu to na sua casa, mas não pega meu chinelo. A Ponte abriu o placar. Daí os caras já falaram: “Tá vendo, esse chinelinho não vale nada, você 43
não vale nada”. Falei para minha namorada: vamos embora, quero ir embora. Cara, eu cheguei em casa, assisti ao jogo, posicionei meu chinelo, Palmeiras ganhou aquele dia de 3 a 2 da ponte e eu mandei a foto do chinelo pra eles: chupa! Filha da put*. Entendeu? Então, assim, cara, é muita coisa de maluco, sabe? Que maneira você pretende passar esse amor pelo Palmeiras quando você constituir a sua família? Sugeri para minha namorada e nós concordamos de dar o nome do nosso filho de Marcos. Mas acho que a coisa de passar para o filho é como você vive. Meu pai ama o Santos, mas meu pai não é um cara fanático, louco de passar. Então acho que é muito de como você transmite isso. Cara, eu acho que é dar camiseta, é cercar o menino. E se seu filho torcer para outro time? Não. Não vai. Isso aí não cogito. Eu até tenho um amigo, que é corintiano, fui padrinho de casamento dele, ele falou: “Não, os seus filhos...” já interrompi e falei: velho! Você não começa, não termina a frase, porque você vai ter os seus e eu não vou cagar neles, então não vem aqui destruir os meus. Eu quero que meus filhos sejam palmeirenses, lógico que eles vão ter o direito de escolha. Mas eu acho muito difícil, um cara que consegue passar para valer mesmo.
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Foto: Amanda Bogo
Futebol é mais que um jogo
Capítulo II
Os celeiros de fanáticos sob um céu colorado e alvinegro
Por Pedro Centeno
André Knonner Monteiro Cabral, 28 anos, licenciado em geografia e trabalha como produtor e consultor cultural. Operariano roxo. Alex Sandro de Castro Souza, 29 anos, formado em educação física e trabaha como personal trainer. Torcedor fanático do Comercial. 46
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Arquivo Pessoal: André Knonner
Futebol é mais que um jogo
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urante meus estudos na universidade vários professores e disciplinas me despertaram interesse sobre diversos assuntos. Uma disciplina em particular me chamou tanta atenção que decidi direcionar meu trabalho de conclusão de curso em seu rumo. Nascido e criado em Campo Grande sempre escutei meu pai contar histórias sobre a força do futebol sul-mato-grossense, mas sempre foram histórias, a realidade era muito diferente. Estádios lotados e times competitivos só acompanhei pela televisão e com agremiações de outros estados. No segundo semestre de 2014 estava sofrendo para passar na disciplina de Laboratório de Rádiojornalismo II. Rádio não era minha área. Um dos vários trabalhos que somariam a nota final era a produção de um documentário. Eu e mais três pessoas interessadas em futebol, entre elas Amanda Bogo, coautora deste livro, decidimos produzir um documentário sobre a melhor fase do esporte no estado, a década de 70. Após pesquisas iniciais, o trabalho contou a história do Operário Futebol Clube, time, ao lado do Esporte Clube Comercial, de maior sucesso em Mato Grosso do Sul. O documentário “Galo de Ouro” foi produzido com sucesso, ajudando em minha aprovação no fim do semestre. Está disponível no Sound Cloud. Entrevistamos torcedores e jornalistas da época, um funcionário do estádio Morenão, o atual presidente do clube e um torcedor que me chamou muito a atenção, André Knöner Monteiro. Despertou meu interesse o fato de ser um torcedor do Operá 48
Futebol é mais que um jogo rio que não havia testemunhado a grande fase do time, mas voltaremos ao André mais a frente no capítulo. Alguns trechos relatados pelas pessoas foram muito cativantes. O comercialino José Carlos da Silva contou como era o dia em Campo Grande nos clássicos do Comerário. – Eram bacanas porque tinham diversos jogos e no dia desses jogos, ambas as torcidas saíam nas ruas em carreatas na parte da manhã, chamando as pessoas para irem ao estádio. Era uma festa. De fato era uma festa quando tinha esses jogos entre Comercial e Operário. Estevão Petrállas, atual presidente do Operário, era torcedor à época e contou um pouco da experiência de ter grandes jogos na cidade. – Os clubes de fora vinham e a torcida se juntava, a do Comercial pra torcer contra o Operário e vice-versa. Então no momento que o Operário derrotou Flamengo, Fluminense, Vasco, Palmeiras e enfrentou o São Paulo naquela semifinal, você via o estado ali dentro do Morenão. André falou um pouco do Operário da década de 70. – O que eu posso falar é o que meu pai me dizia, meus amigos mais velhos, enfim. Pra mim, o significado dessa participação é algo relacionado mais com a esperança de acontecer de novo, porque não faz tanto tempo assim. O Operário teve sua fase de ouro nos anos 70 e 80. E eu consigo entender quem testemunhou essa fase, torcer apaixonadamente pelo time. Mas 49
sempre tive dificuldades de compreender os motivos que levam torcedores mais jovens a seguirem as agremiações do Mato Grosso do Sul. Os times do estado nunca mais disputaram as primeiras divisões nacionais de futebol. Hoje, o campeão do estadual disputa a Série D e mesmo assim não consegue competir pelo título. O Operário disputou a Série B da competição local em 2015. O campeonato de Mato Grosso do Sul não é forte. A vida desses torcedores não deve ser fácil. Quando ficou decidido o tema do livro, sabia que precisava entrar em contato com torcedores de Comercial e Operário. Tanto pela importância regional desses times, como para contar a experiência de torcer por times que estão longe do foco da imprensa esportiva. O trabalho de pesquisa começava. Duas missões, entrar em contato novamente com o André e encontrar um torcedor fanático do Comercial. Alex de Castro, comercialino e André Knöner Monteiro, operariano, são os dois personagens deste capítulo.
André e sua conexão com o Operário Encontrar o contato do operariano não foi difícil, as redes sociais realmente facilitaram essa “perseguição”. Combinamos de conversar no Estádio Universitário Pedro Pedrossian, o Morenão. Assim que chegamos, percebi que ele era um cara 50
Futebol é mais que um jogo diferente e que essa seria uma conversa mais humanizada. Demos uma volta no estádio e debatemos alguns problemas estruturais que o Morenão vem enfrentando. Era claro que ele sentia uma conexão profunda com aquele lugar, além de ser um local que havia visitado inúmeras vezes como torcedor, seu Trabalho de Conclusão de Curso tinha discutido a territorialidade do Morenão. André havia se formado em geografia na UFMS e exerce a profissão de produtor e consultor cultural. A minha experiência como torcedor teve uma influência muito forte do meu pai e do destaque que o clube por qual sou apaixonado, o Corinthians, tem na televisão. Para mim era claro o como e o porquê de torcer por meu time, assim como de todos meus amigos de infância. Nenhum deles torcia por equipes locais. Tinha a certeza de que o geógrafo torcia pelo Operário por influência de sua família. Criado em Campo Grande, o Operário Futebol Clube surgiu muito cedo em sua vida. – Eu lembro quando tinha entre 8 e 9 anos, antes da gente mudar pro Rio Grande do Sul, a gente passava na Bandeirantes (Avenida) e meu pai sempre contava milhões de histórias do Operário e ainda existia a sede3. Então aquilo ficou no meu imaginário, acho que foi meu primeiro contato com a ideia, com o conceito de Operário Futebol Clube. Depois com o tempo, conforme a gente 3 Sede social do Operário era localizada na Av. Bandeirantes e foi liquidada em 2005 para pagamento de despesas do clube. 51
vai crescendo, a gente vai conhecendo o clube, o tamanho do time, dos torcedores, apesar desse aparente abandono da torcida. Aí a gente vai se envolvendo e vai conhecendo a história, é um sentimento que contagia, cara. É difícil explicar. André mudou-se várias vezes, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, muitas cidades do interior de Mato Grosso do Sul, mas o Operário e Campo Grande não saíram de seu coração. As raízes com a cidade e o clube foram se fortalecendo com o tempo. – Na verdade, mudei e morei em várias cidades. Mas sempre voltei. Aí meu pai e meus primos estavam frequentando o Morenão em uma época que ainda tinha três mil pessoas na arquibancada. Aí a gente vai ao estádio e vai se contagiando, vai conhecendo torcedores, vai fazendo amizade, vai viajando com a torcida para acompanhar o time e vai gritando gol, tá ligado? Vai sentindo que aquilo é parte da sua vida e já se passaram anos e você tá lá com uma galera e uma história. Com pai operariano, a influência familiar era evidente no sentimento de André, mas o alicerce de sua paixão pelo time também tinha muito a ver com seu amor por Campo Grande. – Acho que no meu caso foi algo familiar sim. De pai pra filho, de primos para primo. Mas o Operário é o time de Campo Grande, qualquer pessoa um pouco mais curiosa que investigue o futebol do estado, acaba por se deparar com o Operário ou Comercial. 52
Futebol é mais que um jogo
Amor, cultura e futebol A paixão de André por cultura e futebol o ajudou a se conectar com sua esposa. – Ela é operariana roxa. – Torcer para o Operário influenciou no relacionamento de vocês? – Então, meu sogro e sua esposa tinham um ponto de cultura, o Pontão de Cultura Guaicuru, e eles desenvolveram um projeto chamado Campo Grande Meu Amor, que era um curso de cinema que durava uns dois meses. Vieram cineastas, como a Marinete Pinheiro que fez faculdade em Cuba, e deram esse curso de cinema. Então as pessoas iam dando várias ideias de fazer esses curtas metragem. E na época eu sugeri fazer do Operário, e aí quando a gente começou essa produção do curta, a gente ficou amigo. Quando acabou a produção, eu fiquei lá no ponto e a gente se conheceu, se apaixonou e escolhemos caminhar juntos, com amor. Com o tempo ela ia no estádio comigo, a gente saía junto, enfim. Eu apresentei pra ela o Operário, fomos conhecendo juntos também, né? Porque conhecimento é assim. A gente vai no estádio junto, viaja junto, grita e chora junto, torce. Os laços profundos com o clube e seu conhecimento cultural deram a oportunidade de André trabalhar junto com a atual diretoria do Operário. – A gente produziu um projeto para o clube, para 2016. A relação diária está sendo intensa e profissional. Reuniões com diretores, presidente, 53
tentando amadurecer o sentimento de torcedor para um sentimento profissional. Apesar de toda história que o futebol aqui do estado tem, hoje o profissionalismo é embrionário. Fora o trabalho, existe o sentimento de torcedor. Usar uniforme, bate-papo com amigos sobre o clube e o consumo diário de notícias do Operário. A relação é tão forte que nem mesmo viajando, de férias, a mais de quatro mil quilômetros de distância, o pensamento se descolava de seu clube do coração. – Em dezembro de 2014, minha esposa e eu saímos pra fazer um mochilão pela América Latina. Sem grana, sem nada. De carona. E longe de Mato Grosso do Sul, longe de Campo Grande, com outra cultura, outras referências, outras ideias, outras crenças, outras espiritualidades. Mesmo distante, você sempre vê que sua cabeça tá lá. Vai começar o estadual, daí você já fica nervoso. Você tá lá na ponta do continente, em Punta Arenas no Chile e sua cabeça tá: pô, será que vai dar tempo de chegar para o começo do Estadual?. O Operário é um capítulo de forte influência nas decisões de André. – É uma história que você cria. Eu, meu pai, minha parceira, meu primo, alguns amigos, vamos ao estádio, se classifica, invade o gramado, entendeu? É história, com certeza influencia.
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Futebol é mais que um jogo
Sentimento e territorialidade – Qual a sua maior loucura como torcedor? Torcedor fanático sempre comete loucuras por seu time. Ele já havia me contado sobre desentendimentos com torcedores do Comercial, invasão de campo, encarar frio e chuva no Morenão. Mas aos olhos dele, a maior loucura de todas, não era uma loucura. – Eu tenho o privilégio de participar do período histórico da resistência. Talvez a loucura maior seja torcer por um clube na segunda divisão de um estadual extremamente enfraquecido e mal organizado. Talvez essa seja a maior loucura. Mas eu não vejo como loucura porque é um sentimento natural. Sou campo-grandense, meu pai é sul-mato-grossense. Então não é algo muito estranho, eu acho que não pode ser considerado algo muito louco torcer pra um time de sua cidade. Claro que levando em consideração a situação que o clube está, Série D do brasileiro. No meu caso, a cultura campo-grandense me contagia, é um sentimento permanente. André tem uma identificação muito forte com Campo Grande, imagino que deve incomodar ele o fato de tantas pessoas torcerem por times de outros estados, muitas vezes sem não ter nenhum tipo de ligação com essas agremiações. – Eles não são culpados, eles não têm culpa. É só uma questão de informação. Vamos supor: a gente tá na Série D, vamos supor que esse ano 55
a gente tenha uma Série D organizada e um time potencialmente competitivo. Você acha que a galera não vai voltar? Então acho que a questão não é do campo-grandense que torce pra fora, é uma questão de se identificar. Tem que ser atrativo também, né? Se não for atrativo, se o futebol continuar bost*, ninguém vai querer ficar apoiando e torcendo por um futebol sem de técnica e profissionalismo. É impossível Campo Grande se desenvolver ou dar sequência pra essa história sem que a identidade cultural daqui seja renascida. Não tem como se desenvolver um lugar sem que se tenha uma identidade cultural. Você pode criar identidades novas ou símbolos novos, mas pra você se desenvolver com cultura de outro lugar, você vai ter um lugar artificial, sem emoção e esses lugares não existem porque nada é tão regido assim se tratando de ser humano. O Operário brilhou na década de 70, alcançou uma semifinal de Campeonato Brasileiro e foi eliminado pelo São Paulo, praticamente todos os clubes considerados grandes jogaram no Morenão. Do final da década de 80 em diante, o time desceu de divisões e há anos não exerce influência no cenário nacional do esporte. Quando meu time foi rebaixado, torci como nunca, fervorosamente. Mas não acreditava que era possível torcer por um clube intensamente e por tanto tempo sem esse time te retribuir dentro de campo. André mostrou que eu estava errado, ele torce com todas suas forças por um clube que não tem dado o retorno esperado por seus torcedores. 56
Futebol é mais que um jogo – Qual sua maior alegria como torcedor? – Então, o clube pelo qual eu torço estava em crise, só quem esteve no dia-a-dia do clube sabe o que é lidar com o semiprofissionalismo, com amadorismo, sabe? Então eu me orgulho de fazer parte de poucas pessoas que mantiveram esse sentimento de resistência e não olhavam pra crise, nossos olhos estavam voltados pra outra coisa, lá na frente, que é o objetivo principal, a retomada do time. Minha maior alegria é de saber, de poder ter a certeza de saber que meu clube não morreu, não faliu como falaram que ia falir, não fechou, não sumiu do mapa, não acabou a história, não colocou um ponto final. Pelo contrário, continua escrevendo, e agora tá super emocionante. Títulos e vitórias são legais, cativantes e muitas vezes inesquecíveis, mas nunca devem ser o motivo para você torcer por um time.
Trechos da entrevista Como foi o inicio da sua história com o Operário? Quando eu era criança... meu pai é administrador escolar. Ele sempre foi transferido de cidade pra cidade, eu sou campo-grandense, nascido aqui, mas a gente sempre viajava. Eu lembro quando eu tinha entre oito e nove anos, mais ou menos, antes da gente mudar pro Rio Grande do Sul, a 57
gente passava na Bandeirantes e ele sempre contava milhões de histórias do Operário e ainda existia a sede. Então aquilo ficou no meu imaginário, acho que foi meu primeiro contato com a ideia, com o conceito de Operário Futebol Clube. Depois com o tempo, conforme a gente vai crescendo, a gente vai conhecendo a história, o tamanho do time, dos torcedores, apesar desse aparente marasmo, desse aparente abandono da torcida ou das pessoas que podem movimentar o futebol, né? Aí a gente vai se envolvendo e vai conhecendo a história, e é um sentimento que contagia. Você acredita que passou isso de pai para filho ou você torceria para o Operário de qualquer forma? Qualquer pessoa um pouco mais curiosa que vai investigar o futebol do estado, acaba por se deparar com o Operário ou Comercial, mas acho que no meu caso foi algo familiar sim. De pai pra filho, de primos para primo. Qual a sua relação diária com o time? Especificamente nesses últimos meses, a produtora em que minha esposa e eu trabalhamos está produzindo um projeto para o clube. Então a relação diária está sendo intensa e profissional. Reuniões com diretores, presidente, tentando amadurecer o sentimento de torcedor para um sentimento profissional que apesar de toda história que o futebol aqui do estado tem, hoje o profissionalismo é embrionário. Então a gente tá contribuindo pra isso 58
Futebol é mais que um jogo coletivamente, que é o mais importante. Quais foram os maiores sacrifícios que já fez pelo Operário? Tudo que eu faço pelo Operário, eu faço por amor, é com prazer. Desde a primeira vez. A gente foi rebaixado duas vezes, a primeira vez foi doído, a gente chorou, sofreu. Mas fomos pra Série B de cabeça erguida, com orgulho. Num tem sofrimento, quer dizer, tem sofrimento, mas é por amor, então a gente faz com prazer. É a historia que a gente tá escrevendo. Quando a gente se classificou, tinha umas 115 pessoas lá no estádio do Águia Negra, em Rio Brilhante. A gente estava perdendo o jogo e precisava empatar, e já era 45 do segundo tempo. Só eu, meu primo e mais umas quatro pessoas que cantavam. Uma chuva e a gente não tinha mais voz pra cantar, uma loucura mesmo. De repente o guri fez o gol, ninguém acreditou. Todo mundo que estava quieto saiu e foi automático, pessoal invadiu o campo. Então acho que é isso, num tem um sacrifício maior, é luta, normal. Não é só o Operário, por trás existe uma reflexão cultural com a identidade de Mato Grosso do Sul muito importante, sabe? Pra sociedade campo-grandense, mas sobre tudo pra nossa geração. Quem não tem identidade cultural, não tem história, não tem força, não consegue mudar a perspectiva do lugar, sempre vai viver em função da ideologia de outras pessoas, outros lugares. Faz parte da identidade do torcedor operariano se sacrificar. 59
Como você se sente torcendo para um time que não tem destaque nacional? Eu me sinto super bem. Super orgulhoso. Assim, num tem destaque nacional no presente. Vai começar o estadual, vamos ver como vai se desenvolver as notícias do Operário nesse estadual. Por exemplo Comercial ganha, CENE ganha, Naviraiense ganha e não sai em nenhum lugar. Operário perde e é rebaixado, sai em vários sites a nível nacional. Operário subiu agora e saiu em vários sites também. Eu acho que Operário Futebol Clube está psicologicamente preparado pra enfrentar qualquer time do Brasil e do mundo. Por um motivo muito simples, porque já enfrentou e já ganhou. Já é um registro histórico que tá marcado na memória do torcedor e das pessoas que se envolveram. Eu não tenho vergonha, tenho um orgulho imenso de ser campo-grandense, de comer mandioca, de tomar tereré, de comer sopa paraguaia, tá ligado? Ter o privilégio de acordar de manhã e sair pra correr e ver as araras nos parques, como se fosse um passarinho no quintal. Tenho super orgulho e me sinto confortável com a ideia. Para torcer de verdade tem que ir ao estádio? Com certeza. Num sei, né? Minha opinião particular. Se você vai no estádio lotado é muito melhor, né? Mas se você for em um estádio não lotado, é legal também. Você come espetinho, pra quem gosta de espetinho, você come pipoca, pra quem gosta de pipoca, toma cerveja pra quem gosta de cerveja, toma suco, água. Você conhece pessoas, 60
Futebol é mais que um jogo namora, se apaixona. Vixe cara! Tem tanta história dentro do Morenão. Eu acho que torcedor de verdade, torcedor de verdade... só o próprio torcedor pode falar se ele é ou não. Mas tem diferença por exemplo de torcedor de sofá que o pessoal fala, que vê pela TV ou internet e nunca foi no estádio de futebol. Precisa ir pra saber o que é você ficar naquela aflição aos 45 minutos e o cara fazer um gol, ficar no estádio e nos primeiros 20 minutos já tá 5 a 0 pro adversário e você estar chorando lá. Ou estar dentro do estádio e a torcida rival te fechar e tá você e mais 60 torcedores e a única saída é você se fortalecer e falar: bom, seja o que Deus quiser. Você xingar juiz, gritar gol. Gritar gol acho que é a parte mais massa. Qual a sua maior tristeza em relação ao Operário? A minha maior tristeza é ver a possibilidade de grandeza desse estado, e aí já não falo nem em futebol, falo em cultura geral, serem rapinadas, extraídas, minimizadas. Acho que essa é a minha maior tristeza, você ver como as pessoas que tem poder, no Brasil todo, conseguem dar tanta visibilidade e tanta voz pras pessoas que não constroem, destroem. Como que elas conseguem dar tanta visibilidade para o ódio. Pessoas que enxergam com muita clareza o problema e do problema pra solução, elas olham o estágio supremo da solução, elas não conseguem enxergar o processo. 61
Alex e o sangue Colorado Alex Sandro de Castro Souza, formado em Educação Física e atualmente trabalhando como personal trainer, é torcedor do Esporte Clube Comercial. Um torcedor do Comercial foi um pouco mais difícil de achar, mas de novo as redes sociais entraram em ação. Uma página dos torcedores comercialinos no Facebook, passar por alguns perfis e achei o personagem ideal para esse livro. Após os contatos iniciais, combino de encontrá-lo em um parque da cidade para conversarmos sobre o Comercial. – Beleza, vou estar te esperando com o manto do Colorado. As raízes de Alex com Comercial são muito profundas. Não somente sua família torce pelo time, como seu avô foi jogador do clube na década de 50. – Essa história vem antiga por causa do meu vô, toda a família tem afinidade com o time. Desde quando eu comecei a olhar o futebol, eu venho acompanhando o Comercial. Conforme fui crescendo, fui acompanhando ainda mais o time e hoje não perco um jogo. O avô de Alex, conhecido como Paulão, jogou como zagueiro na época. Participou de times como Bahia e Corinthians, mas por causa de uma relação amorosa com a futura esposa, dona Esther, escolhe atuar pelo Comercial para estar de volta a Campo Grande. Na década de 50, Paulão 62
Futebol é mais que um jogo joga em um time muito forte do Comercial antes mesmo do clube tornar-se profissional. – É um orgulho, né? Eu tenho um orgulho de falar que tenho um vô que jogou pelo time que gosto muito e a família inteira tem um apreço muito grande pelo Comercial devido a essa fase do meu vô. Ele me fala que na época em que jogava, o Comercial era praticamente imbatível, muitos adversários tinham receio de jogar contra o time.
Distância e simpatia Alex encarou uma fase distante de Campo Grande e consequentemente do Comercial. No início da adolescência, ele teve que morar 2 anos no Rio Grande do Sul e 2 anos em Minas Gerais. Sem acesso as notícias do Comercial – lembrando que no fim da década de 90 e começo dos anos 2000, a internet não desempenhava o papel de hoje. – Foi ruim, eu não conseguia ter notícias do clube em outros estados, só se falava dos times da onde eu morava. Então, morei em Minas só se falava em Atlético e Cruzeiro. Morei no Rio Grande do Sul, só se falava em Grêmio e Internacional. Longe dos olhos, longe do coração. Sem notícias do Comercial, interessado em futebol, outros times começaram a aparecer no radar de Alex. Times que estão diariamente no noticiário nacional. O Flamengo foi o time que ele simpatizou. 63
– A relação com o Flamengo já é uma questão... Quando eu era criança, tinha pessoas que torciam pelo Flamengo e acabaram me influenciando. Com essa relação de torcer para dois times diferentes, pergunto como ele se sente pelas pessoas de Campo Grande torcerem por times de outros estados. – Na verdade é uma influência que já vem dos próprios pais. Às vezes um pai ou um tio que torce por um time de fora e isso acaba influenciando as crianças. Eu acho que a culpa é da própria população de não torcer pelos times da capital. Os pais não mostram essa cultura que já tinha do futebol e passam uma cultura que é de outro estado. Infelizmente. A relação entre torcedor do Flamengo e Comercial não é confusa para Alex e nem deveria ser. Os clubes vivem em dois mundos diferentes dentro do cenário nacional do futebol. Um com muito dinheiro, destaque, disputando títulos e campeonatos internacionais. O outro não. – Torcer pelo Comercial não vai atrapalhar torcer pelo Flamengo e vice-versa. Eu moro em Campo Grande e o Comercial é um time de Campo Grande, tenho um interesse maior por causa da proximidade. O futebol de Mato Grosso do Sul não tem dinheiro. Orçamentos mensais dos times no estado ficam em torno da centena de milhares de reais. Times que brigam por títulos nacionais e vagas em competições internacionais trabalham com folhas 64
Futebol é mais que um jogo salariais de milhões e milhões de reais. É uma competição injusta. Grande parte desse dinheiro vem das cotas de TV4. Para você ganhar cota de TV é necessário disputar as primeiras divisões dos campeonatos geridos pela Confederação Brasileira de Futebol e ter destaque na imprensa nacional. Esse não é o caso do futebol local. – É uma questão que todo sul-mato-grossense enfrenta, porque só temos a mídia local e mesmo essa mídia divulga pouco. Existem poucas pessoas querendo ajudar o futebol sul-mato-grossense. O caminho para a revitalização do futebol em Mato Grosso do Sul é árduo, talvez intransitável. Mas se existe alguma coisa que deve caminhar de mãos dadas com essa recuperação é o fortalecimento dos dois principais times daqui, Comercial e Operário. Revivendo um evento que em outrora parava Campo Grande. – Em Minas Gerais, tive uma experiência interessante de ver como a rivalidade entre Cruzeiro e Atlético-MG é grande. Quando tem clássico, a cidade de Belo Horizonte para. E ficava lembrando de Campo Grande: nossa, Campo Grande tem a rivalidade de Comercial e Operário. Tinha que ser um jogo que realmente parasse a cidade, como era no passado. Antigamente, tinha jogo do Comercial e Operário, a cidade parava. Lotava o estádio. 4 Flamengo vai receber da Rede Globo pelos seu direitos de transmissão em 2016, a quantia de R$ 170 milhões. Somente com clubes da Série A, serão gastos mais de R$ 700 milhões. 65
Time vermelho, cabelo vermelho Mesmo em épocas que o futebol no estado está de férias, os torcedores do Comercial debatem assuntos relacionados ao time. Aplicativos de celular e redes sociais facilitam essa interação. Nada de extraordinário, afinal é isso que torcedores fazem. Respiram o time. Porém, no Comercial existe um contato mais próximo. Alex troca mensagens com a diretoria do clube, criando uma relação ampla e aberta. – Acho fantástico a gente ter essa relação próxima e apesar do time não ter influenciado na escolha da minha profissão, eu não descarto trabalhar com o time no futuro. Em uma posição da administração ou até mesmo como auxiliar técnico. Alex conheceu sua esposa, Marília, durante a faculdade. Ele relatava a ela as experiências e emoções de torcer pelo Comercial, logo passaram a ver os jogos juntos. Casaram-se e hoje acompanham no estádio todos os jogos possíveis. – Ela torce muito mais do que eu, grita muito mais. É muito bom. É difícil você achar uma mulher que gosta de futebol e você achar uma que gosta de acompanhar o seu clube, que gosta do seu time. A relação fica muito mais fácil. Marília foi testemunha, até mesmo cúmplice, de uma loucura de Alex. O Comercial chegou à final do estadual em 2015, enfrentando o Invinhema. A apreensão pelo título tomou conta. – Poxa, queria fazer alguma coisa pra mostrar 66
Futebol é mais que um jogo que realmente estávamos indo lá com vontade de ganhar, de ser campeão. Indo ao mercado, Alex encontrou sprays de tinta vermelha disponíveis a venda. A loucura para o Comercial ser campeão estava decidida. – Minha esposa deu risada, mas concordou. Cabelo e barba pintados de vermelho. Jogo final, Comercial vence por 3 a 2 e é campeão. – Cheguei a aparecer na televisão por causa disso. Foi uma das loucuras que fiz pelo Comercial, o pessoal deu muita risada. Mas funcionou, graças a Deus. Fomos campeões. Apesar de tantas alegrias e histórias, o futebol do estado está longe do satisfatório para a maioria dos torcedores. A falta de força dos clubes, a má qualidade nas estruturas e a desorganização da Federação parecem os maiores problemas. Dificuldades que ficam na cabeça dos torcedores, mesmo quando se distraem ao gritar gol. – Minha maior tristeza é como está o nosso futebol, a gente não consegue trazer patrocinador, não consegue uma transparência melhor. Falta muita informação que deveria ser passado para o torcedor e falo de qualquer torcida daqui. Quando vejo um estádio grande, fechado5, que poderia muito bem ser aproveitado e não só pelo futebol. Isso me deixa triste. A federação devia ser reformulada. Trazer novas ideias para nosso estado em relação ao futebol. 5 Morenão passou o ano de 2015 fechado por recomendação do Ministério Público devido a falhas na estrutura. 67
Trechos da Entrevista Como e por que você começou a torcer pro Comercial? Essa história vem antiga por causa do meu vô, ele jogava na década de 50, então toda a família tem essa afinidade com o time, desde quando eu comecei a acompanhar o futebol, eu venho acompanhando o Comercial. Conforme fui crescendo, fui acompanhando ainda mais o time e hoje eu não perco nenhum jogo do time. Aqui em Campo Grande principalmente e eu sempre to tentando apoiar. Qual o sentimento de ter alguém na família que jogou pelo Comercial? É um orgulho, né? Eu tenho um orgulho de falar que tenho um vô que jogou pelo time que gosto muito e a família inteira tem um apreço muito grande pelo Comercial devido a essa fase do meu vô no Comercial. Inclusive, meu vô chegou a jogar no Bahia, mas na época ele estava começando uma relação amorosa com a minha vó, então acabou voltando para Campo Grande, não aguentou ficar jogando lá. Isso na década de 50. Ele me fala que na época em que jogava, o Comercial era praticamente imbatível, muitos times tinham receio de jogar contra o Comercial.
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Futebol é mais que um jogo Explica essa relação de ter morado longe daqui e se distanciado do Comercial? Foi ruim porque eu não conseguia ter notícias do clube em outros estados, só se falava dos times da onde eu morava. Então, morei em Minas Gerais só se falava em Atlético-MG e Cruzeiro. Quando você mora fora, é muito difícil você ficar sabendo de alguma coisa dos times do Mato Grosso do Sul. E como eu não tinha notícias dos times aqui do estado, eu criei uma afinidade com o Flamengo. Acabei acompanhando mais o rubro-negro carioca nessa época. O que você acha dos times daqui não terem destaque nacional? É uma questão que todo sul-mato-grossense tem. Porque só temos a mídia do estado e mesmo a mídia daqui não divulga muito. Existem poucas pessoas querendo ajudar o futebol sul-mato-grossense. Deixo bem claro que acredito que a Federação de Futebol do Mato Grosso do Sul teria que ser reformulada porque há muito tempo está do mesmo jeito, com o mesmo comando. Acredito que isso dificulta a expansão do nome do nosso campeonato a nível nacional. E a relação do torcedor com o estádio? Acompanhando os jogos aqui em Campo Grande, a cada ano sofremos uma queda de público. Mesmo levando em consideração o local dos jogos. Hoje os jogos não são mais feitos no nosso estádio, o Morenão. E a falta de incentivo também, se você 69
não incentivar a população de alguma forma a ir aos jogos, fazendo propaganda em televisão, promoções, enfim. Aí a população não vai. Fica difícil. Como o Comercial influenciou na relação com sua esposa? A gente se conheceu na faculdade e em algumas ocasiões eu comentei que via jogos do Comercial. Ela sempre relatou que gostava muito, achava legal o futebol de Campo Grande. Aí eu comecei a convidar ela pra ver os jogos do Comercial e até hoje nós vamos a todos os jogos. Difícil a gente faltar. Eu vou com ela no estádio e ela torce muito mais do que eu, grita muito mais. Qual foi a sua maior alegria torcendo pelo Comercial? Minha maior alegria, foi conseguir ver a final de 2010, onde o Comercial foi campeão, e em 2015 onde o Comercial também foi campeão. Em outras épocas não tive a oportunidade de estar acompanhando, porque morava fora. Mas dessa vez que eu estava no estádio, tive essa oportunidade de acompanhar e do Comercial ter ganho.
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Futebol é mais que um jogo
Arquivo Pessoal: Alex de Castro 71
Capítulo III
O teu presente diz tudo, trazendo à torcida alegres emoções
Por Amanda Bogo
Schimene Weber é jornalista, tem 21 anos e é torcedora do Sport Club Internacional. Além de saber como o amor pelo futebol e pelo clube influenciou na decisão de buscar oportunidades profissionais em Porto Alegre, grande parte dessa decisão para acompanhar os jogos, a história a seguir mostra que mulher entende de futebol e já passou da hora de acabarmos com esse preconceito. 72
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Arquivo Pessoal: Schimene Weber
Futebol é mais que um jogo
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luta pela igualdade de gênero vem sendo debatida amplamente e ganhando força em nossa sociedade nos dias atuais. Apesar das diversas dificuldades que nós mulheres encontramos diariamente em nosso cotidiano, nossa batalha por direitos iguais vem avançando aos poucos, mas apesar das conquistas ainda temos muito pelo o que lutar. A mulher que está lendo esse texto entende do que eu estou falando. Até mesmo o homem que está lendo vai concordar que desigualdade de gênero existe, é muito forte em nossa sociedade e precisa mudar logo. E se você não é mulher e não entende das dificuldades que encontramos diariamente, nem é um homem que concorda que é preciso buscar o fim dessa desigualdade, esse capítulo serve para mostrar a você que preconceito não leva a lugar algum, mulher pode e entende de futebol da mesma maneira que um homem e você precisa urgente rever os seus conceitos. Esse capítulo não tem o objetivo de ser extraordinário e ressaltar que uma mulher gosta de futebol, muito pelo contrário, até porque está mais do que na hora de fazer entender que isso é comum. Ele atende ao objetivo geral deste livro: contar a história de uma torcedora que sofre, ama e coloca seu time como influência e objetivo em sua vida. Conto agora a história da colorada Schimene Weber. A jornalista de 21 anos é natural de Campina das Missões, município que possui seis mil habitantes e fica localizado no interior do Rio Grande do Sul, a 529 km de distância de Porto Alegre. De 74
Futebol é mais que um jogo pai gaúcho e mãe sul-mato-grossense se mudou para Campo Grande ainda criança com os pais, que vieram buscar melhores oportunidades no mercado profissional. Ela herdou o amor pelo Internacional de seu pai, que a ensinou desde pequena a torcer pelo Colorado. Fui recebida por Schimene em sua casa, no bairro Nova Campo Grande. Era manhã de sábado e fazia um calor normal para o mês de fevereiro. A frente da casa era fechada, com muro alto, um pequeno portão cinza e outro portão grande de garagem. Logo de cara criei uma empatia com ela. Sorridente e simpática, vestia uma camisa polo listrada com as cores e o símbolo do Internacional. Cabelos pretos cacheados, estatura mediana, pele clara. Ela me conduziu até a sala da casa onde começamos a conversar. Assim como as cortinas, uma das paredes era vermelha, e perguntei se existia alguma ligação entre a decoração ser da cor do clube que ela torce. Ela rindo disse: – Sim, foi meu pai que escolheu a cor e as cortinas. Em casa, a “coloradagem” comanda. Haviam dois sofás dispostos pelo cômodo, uma estante onde estava a televisão e uma impressora branca, além de vários outros aparelhos eletrônicos. O que me chamou atenção foi um enfeite de vidro que aparentava ser um troféu com o símbolo do Internacional no centro. A colorada foi uma indicação de fonte do Pedro, coautor deste livro. Eles fizeram estágio juntos na assessoria do Ministério Público do Mato Grosso do Sul. Pedro havia dito que Schimene tinha 75
ótimas histórias para contar sobre seu amor pelo futebol e se encaixava perfeitamente no perfil que procurávamos para retratar uma torcedora fanática, e ele estava certo. Ela começou a conversa contando que o amor pelo time surgiu como influência de seu pai, que a colocava para assistir aos jogos com ele quando era pequena, mesmo quando ainda não compreendia bem o que era o futebol. O amor pelo esporte e pelo Internacional veio após o fim do Campeonato Brasileiro de 2005, quando o Colorado ficou em segundo lugar. O Brasileirão daquele ano foi marcado pelo escândalo da “Máfia do Apito”, onde o ex-árbitro de futebol, Edilson Pereira de Carvalho, foi indiciado e preso por manipular algumas partidas em benefício de empresários de sites de apostas. Com isso, o Superior Tribunal de Justiça Desportiva decidiu anular as onze partidas que o árbitro apitou, mudando a classificação do campeonato e fazendo com que ao final o Corinthians fosse o campeão e o Internacional, que até então liderava a competição, ficasse em segundo lugar. – Eu comecei a gostar e acompanhar mais depois daquele roubo de 2005, porque eu vi o sofrimento dos torcedores. Aquilo mexeu comigo. No ano seguinte, o Internacional conquistou o título da Libertadores da América e o Mundial Interclubes. – Tanto o segundo lugar no Brasileiro quanto os títulos da Libertadores e do Mundial acenderam o meu gosto pelo futebol. 76
Futebol é mais que um jogo De família gaúcha, Schimene conta que vários primos e tios são gremistas. – Por que você decidiu torcer para o Internacional? – Não foi só influência do meu pai. Quando eu comecei a ter discernimento sobre as duas equipes, várias coisas me chamaram a atenção. Desde o início procurei a história do clube, a identificação com os jogadores, e eu sempre achei a história do Inter muito mais bonita que a história do Grêmio. Com bom humor, ela completou rindo: – Eu via o Inter ganhando as coisas, sabe? Eu só escutava os gremistas falando que o Grêmio é um time grande, mas eu não via o Grêmio ganhando nada, até hoje eu não vi! Então foi mais uma questão de procurar e me identificar mais com o Inter do que com o Grêmio. O futebol sempre exerceu uma grande influência na vida e nas decisões de Schimene. Ela contou que fez vários amigos em Campo Grande e outros estados, quando usava o Orkut e participava de comunidades e fóruns sobre futebol e o time gaúcho. Schimene cursou jornalismo no período noturno, e suas aulas coincidiam com os horários de jogos do Internacional. Isso acabava fazendo com que ela “escapasse” para não perder as partidas. – Eu sempre faltava a aula, principalmente no primeiro semestre de 2015, para ver jogo. Ia para o bar assistir a Libertadores... Eu ficava nervosa, começava o jogo e falava: tenho que ir assistir. 77
Influência do futebol na vida profissional Muito da escolha profissional de Schimene se deu pelo amor que ela sente pelo futebol e pelo Internacional, e o gosto pelo jornalismo esportivo sempre existiu. Em 2015 ela participou de um estágio colaborativo em um portal esportivo de notícias, onde atuou como editora-chefe na editoria de futebol do Rio Grande do Sul. – Basicamente eu só falava do Inter, às vezes fazia matéria do Grêmio porque a gente não pode escolher só um lado, mas essa área de jornalismo esportivo sempre me chamou muito a atenção. O amor pelo futebol e pelo Internacional influenciaram muito na minha escolha. Schimene busca ser aprovada em um concurso para se tornar funcionária pública. Você pode achar que nessa questão o Internacional não tem influência alguma, não é? Pois ela afirma que existe influência sim. Em janeiro de 2016 ela foi para Porto Alegre fazer uma prova de concurso. – Eu poderia escolher ir para o Paraná ou para o Rio Grande do Sul porque tenho família nos dois lugares, e inicialmente eu precisaria ir para um lugar onde eu conhecesse alguém. Minha mãe perguntou o que eu queria e eu falei: quero Porto Alegre porque é mais perto do Beira-Rio. Lá eu posso assistir aos jogos. Morando no Paraná eu até poderia ir com alguma caravana, mas não é a mesma coisa que você morar em uma cidade onde você pode acompanhar tudo de perto. 78
Futebol é mais que um jogo Durante sua viagem, Schimene não conseguiu acompanhar nenhum jogo do Internacional, pois não havia nada agendado pela equipe. Com isso, acabou indo acompanhar um amistoso do Grêmio na Arena do clube. Enquanto aguarda o resultado da prova, a jornalista continua acompanhando o time a distância. Assim como outros personagens deste livro, torcer para um time de outro estado traz dificuldades, como por exemplo ir ao estádio acompanhar os jogos. − Como você faz para driblar a distância e ficar mais próxima do clube? – Como estava fazendo estágio e cursando a faculdade, não tinha como largar tudo aqui e ir embora para Porto Alegre para assistir jogo. Eu procuro sempre estar me inteirando da situação do clube, acessando o site... Aqui em casa nós assinamos Premiere6 para poder acompanhar tudo. Mas quando o Inter veio em 2011, eu acompanhei todos os jogadores, desde o aeroporto até o hotel, e depois ao jogo.
América Mineiro x Internacional “Campo Grande fica a cerca de 1.500 km de Porto Alegre. Mas nem parecia. O Internacional jo6 Canal pago do Grupo Globosat onde são transmitidos todos os jogos dos principais times do Brasil. 79
gou como se estivesse em casa no Morenão. Nas arquibancadas, a nação vermelha, que dominou o estádio, abriu o bandeirão e comemorou. Ali, bem longe do Beira-Rio, o Colorado conquistou sua primeira vitória no Brasileirão: 4 a 2 sobre o América-MG. Mérito da dupla Oscar e D’Alessandro, que contrariou quem dizia que os dois não poderiam jogar juntos. O técnico Paulo Roberto Falcão respira aliviado por ter a primeira noite de tranquilidade depois de muitos dias de pressão”. Crônica da partida feita pelo site GloboEsporte. com Terceira rodada do primeiro turno da Série A do Campeonato Brasileiro. Com um projeto de levar o futebol para todo o país e não concentrar apenas os jogos nos eixos RJ/SP/MG/RS (estados das principais equipes da Série A), vários jogos estavam sendo realizados em diversas regiões. Assim, o Internacional mandou sua partida contra a equipe mineira no Estádio Universitário Pedro Pedrossian, o Morenão. Schimene contou, enquanto se divertia ao lembrar da história, que acompanhar a equipe em Campo Grande foi uma das maiores loucuras que fez para estar perto do Colorado. – Quando eles vieram para Campo Grande, eu passei o dia inteiro atrás desses jogadores. Eu não fiz mais nada. E 2011 era a época que eu tinha cursinho preparatório para o Enem e várias coisas para fazer, e eu simplesmente ignorei tudo e 80
Futebol é mais que um jogo fui acompanhar os jogadores. Hoje em dia a gente para e pensa: meu Deus, por que eu fiz isso?. Esse amor todo que você sente pelo time justifica essas coisas. Na oportunidade, ela conseguiu conhecer o então técnico Falcão, o meia que hoje joga no Chelsea, da Inglaterra, Oscar e D’alessandro, um dos jogadores argentinos que passaram pelo Internacional e que ela considera como um ídolo. Quando começou a contar a história de como conheceu D’Alessandro, a alegria e emoção em relembrar o momento ficou visível em seus gestos. Schimene deu um largo sorriso, enquanto gesticulava com frequência, demonstrando o ânimo por ter vivido aquele momento. – Eu fui para o aeroporto esperar os jogadores e lá não consegui a atenção de quase ninguém. O Falcão e o Oscar falaram comigo, o resto passou muito rápido. Quando eu fui para o hotel e eles estavam saindo, o D’Alessandro veio falar comigo. Meu olho encheu de lágrimas, eu fiquei alucinada! Parecia que eu estava vendo o amor da minha vida! Era ele ali naquele momento! Eu nem sabia o que falar, só perguntei: eu posso te dar um abraço? E ele começou a rir e respondeu que podia. A torcedora conta que após ter um problema com seu computador, perdeu a foto que tirou com seu ídolo. Nem nesse momento ela parou de sorrir, demonstrando que era o suficiente ter na memória aquele momento. – Infelizmente eu não tenho mais a foto 81
porque meu computador foi formatado e eu perdi ela. Mas na hora eu cheguei perto dele, eu fiquei sem reação. Meu olho encheu de lágrima e eu não sabia o que falar. Eu só queria olhar para ele!
Para ser ídolo é preciso garra É certo afirmar que todo torcedor fanático tem o seu ídolo, aquele jogador com o qual se identifica mais e cria um carinho especial. Aquele que é o representante da torcida em campo. Muitas vezes esse jogador não é o mais habilidoso ou o mais técnico, mas por mostrar garra e identificação com a camisa que veste, consegue conquistar o carinho da torcida. Schimene contou primeiro qual é a definição que ela tem de ídolo, e o que um jogador precisa ter para se tornar um. – Ídolo é aquele cara que além de jogador é torcedor. Uma pessoa que independente de rixa política dentro do clube, mal-estar no vestiário ou da situação do time no campeonato, ele dá o seu melhor sempre, justamente porque ele torce para o time e sabe como o torcedor se sente na arquibancada vendo a equipe sem um desempenho bom. Ele tenta dar algo a mais. Como já foi citado antes, um dos ídolos da jornalista é o meia D’Alessandro, que saiu recentemente do Internacional para defender o River Plate 82
Futebol é mais que um jogo da Argentina. – O D’Alessandro é um cara que sempre demonstrou ter garra. Ele é craque. Mesmo estando mais velho, ele fazia uma grande diferença quando estava em campo. Sinceramente, estou preocupada com o que vai ser do time esse ano. O outro ídolo é o ex-jogador Fernandão. O atleta, que teve uma história de identificação e apreço com o Internacional e com o Goiás, conquistou o carinho e admiração de ambas torcidas. Em 2014, após um acidente de helicóptero, o atacante faleceu aos 34 anos. Ele recebeu diversas homenagens póstumas, sendo realizada até uma missa dentro do Beira-Rio para os colorados. – O Fernandão era um cara acima da média. Ele pode não ter sido um craque do futebol, mas era esforçado e por isso conquistou muita coisa. A liderança dele dentro do campo e com a torcida, e o fato dele ter sido um dos responsáveis da campanha do Inter na Libertadores e no Mundial contribuiu para que ele se tornasse ídolo e conquistasse a torcida. A jornalista comentou sobre não ter tido a oportunidade de conhecer Fernandão pessoalmente e o que sentiu após o acidente que vitimou o jogador. – Infelizmente não pude conhecer o Fernandão, mas é um cara que eu admirava muito. Quando aconteceu o acidente parecia que um amigo meu tinha morrido de tanto que eu chorei, fiquei desolada, até hoje quando lembro disso fico meio triste... é inacreditável, sabe? 83
Mas, apesar da tristeza, o objetivo do futebol é trazer alegria aos torcedores. Por isso, questionei Schimene quais são as lembranças mais felizes que ela tem do Internacional.
Segue a senda de vitórias O torcedor vê o estádio do seu time de coração como uma segunda casa. Ter a oportunidade de conhecer essa casa, pisar em seu gramado e ver de perto toda a estrutura dela é um momento que todo torcedor quer viver. Infelizmente Schimene não pode realizar o sonho de conhecer o estádio em um dia de jogo. Ela visitou o Beira-Rio na mesma oportunidade que esteve em Porto Alegre para fazer a prova do concurso e não tinha jogos agendados para o Internacional. Mesmo assim, a emoção de estar no que ela denomina ser seu templo, foi inesquecível: – Foi lindo, eu cheguei lá e comecei a chorar, fiquei super emocionada. Aquilo era um sonho. Infelizmente eu não assisti a um jogo, só conheci o estádio, mas eu trato o Beira-Rio como as pessoas tratam a igreja, como um templo. Eu conheci todos os setores, o campo... quando cheguei lá, o coração estava acelerado. Conhecer o estádio foi uma dessas coisas que acontecem e servem para reafirmar o amor que você tem pelo clube. Se o Inter fosse uma pessoa, eu casaria com ele. 84
Futebol é mais que um jogo Toda conquista de título é importante e comemorada com festa pelos torcedores. Seja campeão estadual ou campeão nacional, a alegria do título é sempre a mesma. Mas conquistar dois títulos internacionais sendo um deles contra uma das principais equipes do mundo e que conta com os principais jogadores de alto nível do futebol, tem um sabor especial. Foi isso que o torcedor colorado sentiu em 2006 quando conquistou a Taça Libertadores da América contra o São Paulo – no primeiro jogo o Internacional venceu por dois a um, no jogo de volta as equipes empataram em dois a dois. Com a vantagem, o Inter conquistou o título. Vencer a Libertadores já era algo especial, mas era o passaporte para o momento mais feliz que Schimene considera ter vivido com o Colorado: a conquista do Mundial de Clubes. Não apenas um título internacional, mas um título conquistado contra uma das principais equipes de futebol do planeta, o Barcelona. Visivelmente orgulhosa em falar sobre a conquista, ela explicou: – Para mim aquilo como torcedora me fez ter a certeza de que eu estava torcendo para o time certo, porque era um jogo que ninguém acreditava no Inter. O Internacional vai jogar contra o Barcelona do Deco e do Ronaldinho, ai você pensa: que chance tinha um time com Fernandão, Iarley e Gabiru? Que chance que um time com esses jogadores tinha de ganhar do Barcelona? E até hoje quando eu assisto o jogo eu fico emocionada, eu choro. Parece que estou vivendo todo aquele mo 85
mento de novo. A jornalista ainda completou que não é apenas um título, não é apenas um time de futebol e um esporte que ela acompanha sempre. De modo sentimental, ela explicou que futebol e o clube que torce tem um papel muito maior em sua vida: – O Internacional é muita coisa na minha vida. Eu sou apaixonada pelo clube, pela história e pelos jogadores. Independente do time não estar na melhor fase eu continuo acompanhando e não vou deixar de acompanhar por nada. E é isso que um torcedor faz: acompanha o time nos melhores e piores momentos. E por mais que sempre espere o melhor, o torcedor tem que saber buscar forças para apoiar o time nos momentos mais difíceis.
O choro colorado Se conquistar um título mundial contra uma grande equipe é o momento mais feliz do torcedor e se seguirmos essa lógica, ser eliminado no mesmo campeonato por um time com pouca expressão deveria ser o momento mais triste. Para Schimene, perder um título nacional foi mais doloroso do que a surpreendente eliminação no torneio interclubes contra o Mazembe, da República Democrática do Congo. – Por incrível que pareça, a minha maior tris 86
Futebol é mais que um jogo teza não foi o jogo contra o Mazembe que o Internacional perdeu, aquilo lá eu fiquei brava, fiquei com raiva daquele jogo porque foi absurdo e ridículo. A minha lembrança mais triste é de 2009, quando o Inter estava com uma campanha muito boa no Campeonato Brasileiro e não conquistou o título. Para a colorada, o título não veio após um empate contra o Botafogo. Após esse jogo, para ser campeão, o Inter precisava de um resultado de seu maior rival para que o título fosse para a galeria do Beira-Rio. Não aconteceu. – No jogo contra o Botafogo nós estávamos ganhando de 3 a 0. No segundo tempo o Bota empatou o jogo. Foi nesse jogo que a gente perdeu o Campeonato Brasileiro, porque na última partida o Inter e o Flamengo estavam com a mesma quantidade de pontos e a diferença é que se o rubro negro ganhasse aquele jogo contra o Grêmio, ele seria campeão. Logo no começo do jogo, o Grêmio marcou o gol e eu pensava: esse time está ajudando mesmo o Inter? De verdade? E depois o Flamengo virou e ganhou aquele jogo. Schimene falou sobre qual era a importância do Internacional conquistar aquele título: – Isso me doeu porque o título do Campeonato Brasileiro e o da Copa do Brasil são os que eu mais espero ver o Inter ganhar. Aquele ano a gente chegou muito perto e eu fiquei muito triste, sabe?
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O lado comportamental Cada torcedor tem suas manias e seu modo de reagir aos resultados dos jogos do seu time do coração. Schimene conta que não tem muitas superstições em dias de jogos, mas que uma coisa não pode deixar de fazer: – Eu só assisto jogo com a camisa do Inter, independente da camisa. Tenho a sensação de que isso sempre interfere. Aquele jogo contra o Tigres, em que o Inter foi eliminado na Libertadores, eu estava com a camisa vermelha, não estava com nada do clube, e o time perdeu. E o outro que eu tinha assistido com a camiseta do Inter, a equipe ganhou. Eu não acho que isso vá realmente fazer alguma diferença no campo, entende? Mas eu tenho o costume de sempre assistir com a camiseta do clube. Os resultados positivos e negativos da equipe acabam interferindo diretamente no humor e nas relações pessoais de Schimene. – Se perde eu fico brava e não quero falar com ninguém, fico trancada no meu quarto. Se o Inter ganha eu fico a pessoa mais bem humorada do mundo. Eu fico dando risada à toa, eu trato as pessoas melhor. A minha mãe fica brava comigo, ela fala: “Mas os caras estão ricos e você não está ganhando nada, você se estressa à toa”. Mas eu acho que realmente influencia demais. Mesmo que o jogo não valha nada, eu acho que o time tem que jogar o máximo em tudo. 88
Futebol é mais que um jogo
A mulher no futebol O futebol surgiu como algo exclusivamente masculino, e foi aos poucos que as mulheres conseguiram conquistar seu espaço dentro do esporte. Mas foi preciso muito esforço, e a cada dia um novo combate surge para que esse espaço aumente e que o preconceito acabe. Seja dentro das quatro linhas, como jogadora, árbitra ou repórter de campo, ou do lado de fora, nas arquibancadas, as mulheres vêm provando que entendem de futebol. E que essa questão de que uma garota que assiste e entende da modalidade é algo raro ou incrível, não existe. Falo pelas minhas experiências em buscar espaço no futebol e no mercado de trabalho voltado para essa área. Em uma ocasião, logo quando cursava o terceiro ano de faculdade, surgiu uma vaga em um site de notícias esportivas de Campo Grande. Um veterano estava saindo e ofereceu a oportunidade em um grupo de Jornalismo no Facebook. Imediatamente o procurei e enviei meu currículo, ao que ele me respondeu que sentia muito pela postura do dono da empresa, mas que o mesmo afirmou não receber currículo de mulher porque não colocaria nenhuma para trabalhar com futebol em seu site. Minha reação foi de espanto e choque. Sofri por ter sido recusada, não por falta de capacidade minha em desenvolver as atividades da área, mas pela falta de capacidade do empresário em desen 89
volver seu pensamento e abandonar seu preconceito. Não só eu, nem só Schimene, mas esse tipo de situação é comum na vida das mulheres que buscam exercer o jornalismo esportivo pelo amor ao esporte – não exclusivamente o futebol, mas qualquer outra modalidade esportiva. A jornalista falou sobre como vê essa relação entre mulheres e o futebol. – Eu acho que esse preconceito é muito visível. Uma vez eu estava no bar com uma amiga, que também é colorada, e nós estávamos alucinadas, xingando a televisão. O garçom do bar falou: “Olha as meninas gostando de futebol”. Como se isso fosse uma coisa absurda. Nos grupos do Whatsapp, quando os meninos estão falando de futebol, eu tento falar alguma coisa e sempre tem um engraçadinho que fala: “O que uma mulher sabe e quer opinar de futebol?”. A minha avó acha um absurdo eu gostar de futebol, parar e assistir um jogo. Ela acha que eu deveria gostar de cozinhar, de outras coisas. Apesar disso, nunca fui repreendida pela minha mãe. Ela nunca falou: “Você é menina, não pode gostar disso”. Eu acho que a sociedade ainda tem um certo preconceito por ver a mulher discutir e gostar de futebol muito mais do que a própria profissão. Schimene citou algumas profissionais da área que ela admira e que estão abrindo espaço para que esse preconceito seja debatido e superado em nosso mercado de trabalho: – Nós temos algumas jornalistas esportivas 90
Futebol é mais que um jogo com renome, como a Renata Fan, a Fernanda Gentil e a Glenda Kozlowski, além de outras mulheres no ramo. Eu acho que dentro da profissão esse preconceito está um pouco mais leve de você levar do que se você estiver conversando com um homem falando sobre futebol e você discordar dele. Eu acho que no jornalismo isso é mais fácil de lidar do que na sociedade que a gente vive.
O amor como herança Schimene conta que formar uma família e ter filhos é algo que precisa ser planejado bem em sua vida antes que aconteça. Mas caso isso ocorra, ela pretende passar o amor que sente pelo futebol aos seus filhos: – Eu acho que vou fazer basicamente o que o meu pai fez comigo, já que o primeiro contato que eu tive com o Inter foi graças a ele. Quando é pequeno você dá roupinha do clube, você mostra e fala: olha, esse é bonito. Fazer essas brincadeiras com a criança, de certa forma você acaba influenciando. Eu acho que contar sobre os grandes ídolos que vi jogar, as grandes conquistas que eu vi o time conseguir, e passar isso de uma forma carinhosa é uma coisa que influencia muito. Você passar assim para a criança, faz com que ela acabe compartilhando o sentimento de admiração. E é esse fascínio que faz alguém torcer para um clube, 91
é o amor que ele tem pela história, pelos jogadores. Mas não vou obrigar a criança a torcer para o Inter... Senti que essa era a deixa. Assim como fiz quando entrevistei o palmeirense Caio, precisava questionar Schimene sobre até que ponto a criança teria uma liberdade de escolha. Não por maldade, mas por achar engraçada a reação do fanático ao ter que imaginar alguém que ama torcendo para o seu maior rival. Com Schimene não foi diferente. – Mas e se seu filho quiser ser gremista? Houve uma pausa e um silêncio. Ela pediu que eu repetisse a pergunta, meio que não entendendo ou não acreditando. – Se ele quiser ser gremista? Após alguns segundos, já dando risada, ela me respondeu bem humorada: – Gente, eu só lamento! Eu vou falar: você não vai ver seu time ganhar nada! Nunca! Após a brincadeira, agora já mais séria, ela explicou que não ficaria chateada ou teria problema caso a criança escolhesse outro time. Desde que não fosse o Grêmio, claro. – Eu não ia brigar ou ficar revoltada, é muito mais uma questão de escolha. Se eu quisesse torcer para o Grêmio, o meu pai iria ficar muito chateado, óbvio, do mesmo jeito que se o meu filho quisesse torcer para o Grêmio eu ia ficar muito chateada, mas eu ia fazer o quê? Não posso obrigar o menino a torcer para time nenhum. Eu ficaria muito chateada, muito mesmo, porque é o principal rival... se quiser torcer para o Fluminense 92
Futebol é mais que um jogo ou o Flamengo, beleza. Mas para o Grêmio é uma coisa mais pessoal. Eu não faria nada, mas ficaria bem triste.
Trechos da Entrevista Como surgiu seu interesse pelo futebol? O meu pai sempre gostou muito de assistir aos jogos e quando eu era pequena, ele me colocava para assistir com ele, mas eu não entendia muito bem. Eu achava que era só um passatempo. Em 2005 quando o Inter ficou em segundo lugar naquele Campeonato Brasileiro com aquele roubo com o Corinthians, eu comecei a gostar de acompanhar mais, porque eu vi o sofrimento das pessoas que torciam para o Inter. Logo em seguida, em 2006, o Inter ganhou a Libertadores e o Mundial, então isso acendeu esse gosto pelo futebol. Como o amor pelo futebol influenciou nas escolhas da sua vida? Graças a Deus eu fiz muitos amigos pelo futebol, tanto aqui em Campo Grande como no Rio Grande do Sul e no Paraná. Isso pela internet, conversando em fóruns e tal. A minha melhor amiga virou muito minha amiga graças ao Internacional. Na Libertadores nós fomos assistir aos jogos juntas. No primeiro semestre de 2015 eu sempre faltava a 93
aula para ver o jogo, ia para o bar assistir a Libertadores. Eu não conseguia ficar na aula para falar a verdade, ficava nervosa. Eu começava a ouvir o jogo e falava: tenho que ir assistir. Não conseguia não ir. Eu fiquei alguns meses do fim de 2015 para cá em um site esportivo desenvolvendo um estágio colaborativo, e eu estava na editoria chefe . Eu comecei na editoria do Rio Grande do Sul e basicamente só falava do Inter. As vezes escrevia matéria do Grêmio porque a gente não pode escolher só um lado. Mas essa área de jornalismo esportivo sempre me chamou muito a atenção. Principalmente esse amor pelo futebol e pelo Inter influenciou muito. Você escolheu prestar concurso em Porto Alegre por causa do Internacional? Sim, o Inter influenciou muito. Eu poderia escolher Paraná ou o Rio Grande do Sul porque tenho família nos dois lugares, e inicialmente eu precisaria ir para um lugar onde eu conhecesse alguém. Minha mãe perguntou o que eu queria e eu falei: quero Porto Alegre porque é mais perto do Beira-Rio. Lá eu posso assistir ao jogo e no Paraná não. Como foi conhecer o Beira-Rio? Foi lindo, eu cheguei lá e comecei a chorar, fiquei super emocionada. Aquilo era um sonho. Infelizmente eu não assisti a um jogo, só conheci o estádio, mas eu trato o Beira-Rio como as pessoas 94
Futebol é mais que um jogo tratam a igreja, como um templo. Quando cheguei lá, o coração estava acelerado. Conhecer o estádio foi uma dessas coisas que acontecem e servem para reafirmar o amor que você tem pelo clube. Se o Inter fosse uma pessoa, eu casaria com ele. Você já fez alguma loucura pelo Internacional? Algo que você fez e hoje pensa que foi algo muito fora do comum? Ano passado eu estava em época de prova e não sabia se a prova ia ser naquele dia ou na outra semana, nem o professor sabia direito. E no mesmo dia tinha jogo. Daí eu pensei: cara, eu vou para o jogo, vou assistir e se reprovar por causa disso, depois eu vejo o que eu posso fazer, eu pago a disciplina ou a prova extra. Pensamento absurdo. Hoje em dia eu não falto prova por causa de jogo, mas aquela vez eu estava alucinada, eu tinha quase certeza de que o Inter ia ser campeão da Libertadores de 2015. Graças a Deus não teve a prova no dia, eu pude fazer porque foi na outra semana, não tinha jogo e eu fiquei na aula. Também teve a vez que eles vieram para Campo Grande e eu passei o dia inteiro atrás dos jogadores. Eu não fiz mais nada e eu tinha coisa para fazer no dia. 2011 era a época que eu tinha cursinho preparatório do Enem e várias coisas para fazer. E eu ignorei tudo e fui acompanhar os jogadores. Hoje em dia a gente para e pensa: meu Deus, por que eu fiz isso? Mas sei lá, esse amor todo que você sente pelo time justifica essas coisas. 95
Você já sofreu preconceito por ser mulher e gostar de futebol? Sim, eu acho que esse preconceito é muito visível. Teve uma vez que eu estava no bar com uma amiga e nós estávamos alucinadas, xingando a televisão. Os garçons do bar falaram: “Olha as meninas gostando de futebol”. Como se isso fosse uma grande coisa. Nos grupos do Whatsapp, quando os meninos estão falando de futebol e eu tento falar alguma coisa, sempre tem um engraçadinho que fala: “O que que uma mulher sabe de futebol? O que mulher quer opinar de futebol?”. Eu acho que no lado do jornalismo isso tá mais fácil, nós já temos algumas jornalistas esportivas. Tem a Renata Fan, a Fernanda Gentil, a Glenda Kozlowski. Eu acho que dentro da profissão, esse preconceito está um pouco mais leve do que se você estiver conversando com um homem falando sobre futebol e você discordar dele. Eu acho que no jornalismo isso é mais fácil de lidar do que na sociedade que a gente vive. A minha avó acha um absurdo eu gostar de futebol, ela acha que eu deveria gostar de cozinhar, de outras coisas. E eu já vejo isso como uma coisa muito normal. Eu acho que a sociedade ainda tem um certo preconceito na questão da mulher discutir futebol e gostar de futebol muito mais do que a própria profissão.
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Futebol é mais que um jogo
Trechos da Entrevista
Como o amor pelo futebol influenciou nas escolhas da sua vida? Graças a Deus eu fiz muitos amigos pelo futebol, tanto aqui em Campo Grande como no Rio Grande do Sul e no Paraná. Isso pela internet, conversando em fóruns e tal. A minha melhor amiga virou muito minha amiga graças ao Internacional. Na Libertadores nós vamos assistir aos jogos juntas. No primeiro semestre de 2015 eu sempre faltava a aula para ver o jogo, ia para o bar assistir a Libertadores. Eu não conseguia ficar na aula para falar a verdade, ficava nervosa. Eu começava a ouvir o jogo e falava: “tenho que ir assistir”. Não conseguia não ir. Eu fiquei alguns meses do fim de 2015 para cá em 97
Arquivo Pessoal: Schimene Weber
Como surgiu seu interesse pelo futebol? O meu pai sempre gostou muito de assistir aos jogos e quando eu era pequena ele me colocava para assistir com ele, mas eu não entendia muito bem. Eu achava que era só um passatempo. Em 2005 quando o Inter ficou em segundo lugar naquele Campeonato Brasileiro com aquele roubo com o Corinthians, eu comecei a gostar de acompanhar mais, porque eu vi o sofrimento das pessoas que torciam para o Inter. Logo em seguida, em 2006, o Inter ganhou a Libertadores e o Mundial, então isso acendeu esse gosto pelo futebol.
Capítulo IV
Teu passado é uma bandeira, Teu presente é uma lição
Por Pedro Centeno
Renan Kanashiro, 28 anos, trabalha no comércio de sua família no Mercadão Municipal de Campo Grande. Corintiano fanático marcou com tatuagens a paixão pelo clube. 98
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Arquivo Pessoal: Renan Kanashiro
Futebol é mais que um jogo
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ntre as histórias que contaríamos sobre torcedores fanáticos, vários pontos foram debatidos. A importância dos torcedores serem de times diferentes, de encontrar torcedores dos times de Campo Grande, etc. Uma característica que eu queria abordar era a de pessoas que fazem tatuagens relacionadas ao seu time do coração. E um assunto que Amanda queria era em relação a torcidas organizadas. Encontramos um personagem que reunia esses dois atributos. Renan Kanashiro trabalha em um comércio familiar no Mercado Municipal Antonio Valente, o Mercadão. Um pequeno quadrado de 3x3 metros que vende pastéis, salgados, refrigerantes e sucos. Ele é torcedor do Corinthians, tem três tatuagens referentes ao time e integra a torcida organizada Pavilhão 9, que tem uma sub-sede em Campo Grande. Renan tem pedigree corintiano, sua família inteira torce pelo time. – Fui vivendo e aprendendo, virando corintiano. É aquela história, corintiano a gente não vira, nasce. Teve um aniversário meu que foi todo do Corinthians, essas coisas. Aí pegou, não tinha como. A distância para São Paulo atrapalha o torcedor de viver mais intensamente o time. Mesmo assim ele acompanha as notícias para sempre estar preparado para os debates com seus clientes e amigos. – Tento sempre estar ligado nas notícias do time. Quem chega, quem sai. Ficar sempre atento, 100
Futebol é mais que um jogo porque sempre que vou falar de futebol no serviço, essas coisas, pra estar antenado no assunto. Apesar que lá é proibido falar, mas não tem como. Os fregueses chegam e comentam, sabem que sou corintiano. Sendo um torcedor fanático, as tentativas para encurtar a distância do time são constantes. Sempre que possível viaja para acompanhar o time e não perde um jogo quando o Corinthians vem a Campo Grande. Além da participação na Pavilhão 9, onde acompanha todos os jogos do clube nos últimos dois anos, aproveitando aquele “clima de estádio”. – Eu sou um torcedor fanático, sempre que puder assistir um jogo, acompanhar, eu sempre vou estar lá. Mas é difícil, a distância não ajuda. Ele começa a me contar suas experiências com viagens e os jogos que acompanhou o Corinthians no estádio. Em agosto de 2014, ele fez um grande esforço para estar perto do time. Corinthians enfrentou o Bragantino na Arena Pantanal em Cuiabá pela Copa do Brasil. Para conseguir ir ao jogo, teve de trabalhar por todo seu horário de almoço, sair mais cedo, ir ao aeroporto para chegar a tempo do jogo. Depois de assistir o jogo, passou a noite em claro, voltou na manhã do dia seguinte e foi direto para o trabalho. Amigos de Renan me contam que ele tem pé-frio, as últimas vezes que foi ao estádio, o Corinthians perdeu. Além da viagem a Cuiabá, jogo que o Bragantino venceu por 1 a 0, presenciou no estádio Morenão a goleada de 4 a 0 da Portuguesa 101
em setembro de 2013 e a derrota para o Palmeiras por 2 a 0 na Arena Corinthians em maio de 2015. – Tem que continuar indo aos jogos, apoiar o time até quebrar essa zica. Se bem que eu num tenho nada a ver com isso, era má fase do time mesmo. Ano passado eu fui e o Corinthians foi campeão brasileiro. Em todos os anos que acompanho futebol, umas das maiores demonstrações de apoio a um clube que presenciei foi quando o Corinthians caiu de divisão em 2007. A torcida abraçou o time e a música “Nunca vou te abandonar” representou aquele sentimento. – O rebaixamento de 2007 para 2008 foi minha maior tristeza. Mas quando o time cai, aí que tem que apoiar. Não adianta o time cair e criticar, os jogadores não vão mais ter vontade pra jogar. Caiu, tem que apoiar e criticar menos. Desde a queda, cada ano ganha um título. Porque o torcedor ajuda, sempre tá lá, apoiando o time. – O corintiano é diferente? – Com certeza. A gente quer tá ali do lado, assistindo, não importa onde a gente estiver. Às vezes você num pode assistir, mas quer saber notícia, o placar, fica grudado no celular. O torcedor do Corinthians só quem é, sabe como é, num tem explicação. Não adianta explicar, tem que sentir essa emoção. – E se você não fosse corintiano? – Sei lá, acho que ia tá fudid*. Ia ser nada. Sou corintiano, graças a Deus! 102
Futebol é mais que um jogo
Organizando a Paixão Renan faz parte da torcida organizada Pavilhão 9, na sub-sede de Campo Grande há dois anos. A torcida foi fundada por corintianos que realizavam um trabalho social na Casa de Detenção na capital paulista, local onde aconteceu o Massacre do Carandiru. A organizada passou a existir oficialmente em 9 de setembro de 1990, em São Paulo. Hoje existem sub-sedes por todo Brasil reunindo torcedores que queiram assistir os jogos em clima de estádio. As reuniões acontecem principalmente em dia de jogos, onde a partida é transmitida em um telão, a bateria toca cânticos do Corinthians durante todo o confronto. – Eu me sinto mais um louco no bando, no meio da torcida. É como se você tivesse lá, na arquibancada. Todo mundo vibrando, cantando 90 minutos, apoiando o time. E mesmo com a distância, a gente cantando aqui, vibrando, com certeza faz diferença pro time. Os laços criados em volta do amor pelo Corinthians são fortalecidos a cada caravana organizada para acompanhar o time e em cada jogo em que eles se reúnem para criar uma arquibancada. – A relação com todos é ótima, todos se respeitam. Todo jogo do Corinthians eu tô presente. É como se fosse uma segunda família pra mim. O papel das torcidas organizadas no futebol nacional sempre foi muito questionado. Tratadas 103
como marginais pelos meios de comunicação e apontadas como principais propagadoras da violência nos estádios. Elas foram criadas como um meio dos torcedores fiscalizarem os diretores que tomavam as decisões pelos times. A violência foi usada para cobrar as diretorias, pressionar os jogadores contra más atuações e impor respeito sobre outras torcidas organizadas. – Eu acho importante sim, é um apoio para o time. Mas as brigas podem atrapalhar. Apesar de que aqui em Campo Grande eu nunca vi atrito entre torcidas organizadas rivais. Já no estado de São Paulo, o bicho pega, lá é diferente. Sigmund Freud7 em “O mal-estar na civilização” diz: “Os homens não são criaturas gentis que desejam ser amados; pelo contrário, são criaturas entre cujos dotes instintivos devem-se levar em conta uma poderosa quota de agressividade”. Maurício Murad8 debate em seu livro, “A Violência no Futebol”, que as torcidas organizadas não podem ser responsabilizadas exclusivamente pela selvajaria no futebol. Conforme a violência cresce na sociedade geral, aumenta também no esporte. Em sua pesquisa, feita em 2012, Murad mostra que uma parcela pequena das torcidas, de 5% a 7%, comete atos ilegais relacionados ao futebol. Desse pequeno grupo de torcedores que infringe a 7 FREUD, S. O mal-estar na civilização in Edição Standart brasileira das obras completas de Freud. Tradução de José Octávio de Aguiar Abreu. Rio de Janeiro: Imago. 1974. 8 MURAD, M. A Violência no Futebol. Rio de Janeiro, Ed. Benvirá. 2012. 104
Futebol é mais que um jogo lei, a maioria deles é jovem, de 13 a 24 anos, sem emprego e que já havia se envolvido em alguma atividade criminosa. Esses integrantes veem a violência como meio para obter respeito. Nos dois anos em que Renan é integrante da torcida organizada, ele nunca enfrentou situação de violência. – Em nenhum momento eu tive a oportunidade de encontrar com os caras das outras torcidas organizadas. Mas que eu saiba aqui num tem tanta rivalidade. Aqui é mais tranquilo na verdade, mais amenizado, mais pacifico. Nos grandes centros o clima não é tão ameno como em Campo Grande. Em um levantamento feito pelo jornal Lance!, publicado em abril de 2012, apontava que 155 pessoas morreram, entre 1988 e 2012, devido a brigas entre torcidas organizadas. O estado de São Paulo era o líder deste ranking com 32 mortes. Renan comenta a diferença daqui para o estado mais populoso do Brasil. – Lá até tem essa coisa de pacificação, mas entre os ‘cabeças’. Existem alguns torcedores de organizada que só querem brigar. Já em Campo Grande mesmo rola mais o pessoal pacifico, mais tranquilidade. Renan nasceu em 28 de maio e decidiu que comemoraria seu aniversário em 2015 torcendo pelo Corinthians. O clube iria enfrentar seu arquirrival, Palmeiras, no dia 31 de maio. Ele decidiu ir junto com outros integrantes da Pavilhão 9 de Campo Grande em uma caravana para São Paulo, acompanhar o jogo na Arena Corinthians. 105
Essa viagem tinha um ingrediente a mais em relação à violência. No clássico anterior entre os clubes, jogo válido pela semifinal do Campeonato Paulista de 2015, oito integrantes da Pavilhão 9 haviam sido assassinados na sede da torcida. – A chacina que aconteceu na torcida organizada foi um dia antes de um jogo com o Palmeiras. Daí tinha aquela hipótese de que a torcida do Palmeiras poderia ter feito isso. Depois levantaram outras hipóteses e viram que não tinha nada a ver. Mas o clima ainda tava tenso, principalmente para os torcedores da Pavilhão 9 que ainda estavam sentidos pelo acontecimento. O pessoal ficou unido, a família tem que continuar unida, independente de tudo. As investigações concluíram que essa chacina teria sido motivada por uma divida relacionada ao tráfico de drogas e que o crime teria sido cometido por policiais militares. O julgamento ainda está em andamento. Mesmo com todas as adversidades, passar o aniversário longe da família, ir a um lugar que muitos poderiam considerar território hostil e mesmo com a derrota para o rival dentro de casa, Renan não se arrependeu. – Clima no estádio depois da derrota é ruim, mas mesmo com a derrota, a torcida do Corinthians apoia o time 90 minutos e depois da derrota a torcida continua apoiando. Diferente de outras torcidas que só sabem criticar. Os corintianos que moram em Campo Grande estão localizados a mais de mil quilômetros da 106
Futebol é mais que um jogo onde o Corinthians joga. Mas para o amor não existe distância, se o time não vem até aqui, eles trazem o time para mais perto. – Você ouve a bateria, que lá é como se fosse na arquibancada, a bateria tocando 90 minutos, você cantando junto com a torcida, apoiando o time e o calor humano, todo mundo junto ali, é uma família unida. Por isso que eu gosto de ir pra Pavilhão 9, o negócio é ficar pulando, gritando, junto com o time. – O torcedor de organizada é mais apaixonado que o torcedor comum? – Com certeza. Organizada sempre tá ali do lado do time. Sempre que tem alguma coisa no clube, quem que tá sempre apoiando? Junto com o time? Lá no Centro de Treinamento as coisas sempre são da torcida organizada, sempre ali, pra apoiar ou criticar. Sempre junto, do lado.
Pintando o amor Existem muitas maneiras de transformar nossos corpos e moldarmos a imagem que queremos passar para a sociedade. Sacrifícios imensos que as pessoas fazem para conseguir um corpo na estética estipulada pela sociedade. Salões de beleza, academias, produtos, remédios, cirurgias, etc. Tudo para atingir um padrão e ser melhor aceito pela sociedade. 107
Entre essas várias maneiras de transformar seu corpo, a sociedade não tem a mesma visão sobre todas. Algumas são bem aceitas e recomendadas. Outras são repudiadas e tratadas como bizarro, diferente. A tatuagem se encontra em algum lugar entre essas duas categorias. Não é demonizada pela sociedade, mas também não é totalmente aceita. Renan tem seis tatuagens. Sendo três relacionadas ao Corinthians. A tatuagem transforma o corpo em uma tela, em arte, assim é possível a comunicação sem palavras, somente com o visual. O corpo dele mostra seu sobrenome, um dragão, uma frase e sua paixão pelo Timão. Três vezes. – Primeiro meu sobrenome escrito em japonês no braço direito. A segunda foi do Corinthians no braço esquerdo. Terceira foi um dragão na perna direita. A quarta foi uma escrita no antebraço direito. A quinta foi uma frase do time: “contra tudo e contra todos”. Essa frase saiu na época de 2012, na Libertadores que tava todo mundo criticando antes da gente vencer, e junto com a frase, o primeiro símbolo do clube. A sexta foram as iniciais do Sport Club Corinthians Paulista, SCCP na panturrilha. Em menos de quatro anos, foram feitas as seis tatuagens, mas ainda havia o temor de como seriam as reações em casa. – Quando fiz meu sobrenome, já tinha a mentalidade de fazer a do Corinthians. Aí, eu tinha feito e ninguém em casa falou nada. Resolvi meter uma do Corinthians na hora. 108
Futebol é mais que um jogo Em 2012, o Corinthians foi libertado de um estigma que sofria perante seus rivais. Último clube grande de São Paulo a conquistar o grande torneio sul-americano, a Libertadores. Para os torcedores, alvo das chacotas adversárias, o título foi como um grito de independência. – Tava só esperando uma ocasião. Ganhamos a Libertadores. Aí entre outubro e novembro, já comecei a fazer. Logo depois que fomos campeões do Mundial em 2012, acho que uma semana depois, eu terminei ela. Renan sorri enquanto mostra orgulhosamente sua tatuagem no braço esquerdo. A imagem é a representação de um machucado aberto e mostra o símbolo do Corinthians por baixo da pele. Na representação do corpo como uma tela, Renan pinta seu amor pelo clube. Ele se destaca como corintiano, mostra essa qualidade a qualquer pessoa de forma instantânea. A segunda tatuagem feita em homenagem ao seu time do coração veio em um momento de adversidade. – Uns dois anos depois da primeira tatuagem do Corinthians, eu já tinha em mente fazer outra. A escrita e o símbolo, mas resolvi esperar um pouco. O time começou a Libertadores em 2015 muito bem. Passou a primeira fase com a quarta melhor campanha do torneio. Enfrentaria nas oitavas de final o Guaraní, do Paraguai, clube com pouca expressão. Após um jogo complicado na casa do adversário e uma derrota de 2 a 0, o Alvinegro 109
Paulista tentou impor a força de sua nova arena em Itaquera, bairro paulista, sobre os paraguaios. O estádio não foi o suficiente e o clube sucumbiu, terminando uma sequência de 32 jogos invictos na Arena. O cenário de piada dos rivais estava montado novamente. O Terra Esportes publica matéria com título Itaquerazo! Corinthians desmorona em casa e é eliminado. As referências ao Maracanazo, quando o Brasil perde a Copa de 1950 para o Uruguai em um Maracanã lotado, eram mais que claras. A situação adversa era perfeita para Renan. – Fomos eliminados pelo Guaraní, precocemente. Eu tinha que por a frase “contra tudo e contra todos”. No começo seria só a frase, mas como eu já queria fazer o primeiro símbolo do Corinthians também. Já mandei pro tatuador a frase e o símbolo. Daí, fomos eliminados na quarta e na quinta-feira já tava fazendo. E foi campeão brasileiro depois. Contra tudo e contra todos foi um mantra que o time corintiano teve na caminhada pela conquista da Libertadores de 2012. Esta escrita no antebraço esquerdo de Renan, junto com o primeiro símbolo do time. Ao contrário das outras, essa imagem fica exposta. Ao marcar o corpo com uma tatuagem, a pessoa não espera ser excluída da sociedade, ou tratada de forma diferente. Muitas vezes só quer mostrar algo sobre sua personalidade. Por isso existe a busca de um equilíbrio entre ser diferente, porém não rejeitado, entre o preconceito e a liberdade individual. Existe uma imposição do mer 110
Futebol é mais que um jogo cado de trabalho para que as tatuagens sejam feitas em locais que possam ser escondidos pelas vestimentas adequadas ao emprego. O mercado de trabalho é um local que tenta exercer controle sobre a pessoa, a família muitas vezes executa o mesmo papel. – No começo minha família ficava olhando, mas depois acostumaram. Normal. Tem muita gente que fala pra eu remover, mas eu não vou tirar. A ultima tatuagem do time feita por Renan foram as iniciais do time na panturrilha esquerda, Sport Club Corinthians Paulista, SCCP. – Foi no meio do Brasileiro de 2015. Eu tinha o desenho no celular, a maioria das tatuagens que mandam no grupo do Corinthians, eu já deixo guardado. Daí eu vi essa daqui. Falei: put*! Vou meter uma aqui também. Conta enquanto aponta para a panturrilha. Mesmo com o estigma que tatuagens ainda enfrentam, nem todas foram feitas para ficarem escondidas. – Como você se sentiu fazendo a primeira tatuagem? – Vixe, tatuagem do Corinthians, pô! Lembro que quando foi campeão do Mundial, fui pra avenida Afonso Pena, saí na minha moto buzinando e mostrando. Foi louco fii! Renan levanta a manga da camiseta exibindo a tatuagem e mostra que por baixo de sua pele, existe o símbolo do seu time do coração. A tatuagem dá a oportunidade de o indivíduo 111
mostrar algo do seu interior para todos. Mostrar seu ser, seu pensar, seu sentir. Colocar tudo isso dentro de uma imagem ou palavras e comunica a todos que se interessam em olhar. – Por um lado essas tatuagens são uma relação minha e por outro lado é pra mostrar pro pessoal. Sou corintiano, fanático mesmo. Depois de seis tatuagens em um curto espaço de tempo é difícil acreditar que Renan não vai rabiscar um pouco mais o seu corpo. – Tem que ver certinho. Procurar. Pegar uma, gostar mesmo, e eu faço. Porque tatuagem num é fazer essa e pronto, depois num pode se arrepender. Não tem como. Tem que fazer alguma coisa que você gosta. Não me arrependi de nenhuma.
Trechos da Entrevista Como você virou corintiano? A maioria do pessoal da família torce pelo time, inclusive meu pai. Fui vivendo e aprendendo, virando corintiano graças a ele. Aí é aquela história, corintiano a gente não vira, nasce. Aí foi. Tanto que teve um aniversário meu que foi tudo do Corinthians, essas coisas. Pegou, não tinha como. Sua maior felicidade acompanhando o time? Pra todos, né? Acho que Libertadores e Mundial. Ainda mais pela zuação que os Antis faziam aí. 112
Futebol é mais que um jogo Depois nós ganhamos a Libertadores e o Mundial, acabou a zica dos Anti-corintianos. E sua maior tristeza? Quando o time caiu. Mas aí que tem que apoiar. Não adianta o time cair e criticar, os jogadores não vão mais ter vontade pra jogar e essas coisas. Caiu, tem que chegar e apoiar, criticar menos. Tanto que desde que caiu, 2008 pra cá, cada ano tá ganhando um título. Porque o torcedor ajuda, sempre tá lá apoiando o time inteiro e assim vai. Seu maior ídolo? Marcelinho Carioca, ele é fod*. Tem épocas também, o Ronaldo por três anos, ele fez gol. O Neto... mas o Marcelinho é fenomenal, batendo falta igual ele num tinha. Antes tinha o Neto tal, mas igual o Marcelinho não tem, o cara é fod*. O que você acha das torcidas organizadas em geral? Eu acho importante sim, é um apoio pro time. Mas as brigas, os diferentes conceitos que cada torcida tem, isso pode atrapalhar um pouco. A questão da briga, essas coisas. Apesar de que aqui em Campo Grande eu nunca vi essas coisas, negócio de atrito entre torcidas organizadas rivais. Agora já no estado de São Paulo, o bicho pega, lá é diferente.
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Por que você é sócio da Pavilhão 9 e não do Corinthians? Poderia ser dos dois, né? Mas sou da Pavilhão porque tem a sub-sede, dá pra eu acompanhar todos os jogos. Mas dá sim pra eu virar Fiel Torcedor, posso pegar um plano mais barato, vou tá ajudando o clube e tal. Tenho amigo que até tem, daqui de Campo Grande. Eu num faço porque pra mim num vai dar em nada, porque na verdade o Fiel Torcedor é bom pra quem vai ao estádio. No meu caso, é raro eu ir pra lá. Mas quem sabe eu posso cadastrar o Fiel Torcedor, só pra ajudar o time mesmo. O corintiano é diferente? Com certeza. A gente quer tá ali do lado querendo assistir e independente de estar em qualquer lugar que a gente estiver, você pode num tá assistindo, mas quer saber notícia, placar, grudado no celular. O torcedor do Corinthians só quem é, sabe como é, num tem explicação. Não adianta explicar, tem que sentir essa emoção.
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Futebol é mais que um jogo
Trechos da Entrevista Como você virou corintiano? A maioria do pessoal da família torce pelo time, inclusive meu pai. Fui vivendo e aprendendo, virando corintiano graças a ele. Aí é aquela história, corintiano a gente não vira, nasce. Aí foi. Tanto que teve um aniversário meu que foi tudo do Corinthians, essas coisas. Pegou, não tinha como. Sua maior felicidade acompanhando o time? Pra todos, né? Acho que Libertadores e Mundial. Ainda mais pela zuação que os Antis faziam aí. Depois nós ganhamos a Libertadores e o Mundial, acabou a zica dos Anti-corintianos. E sua maior tristeza? Ah, quando o time caiu. Mas aí que tem que apoiar. Não adianta o time cair e criticar, os jogadores não vão mais ter vontade pra jogar e essas coisas. Caiu, tem que chegar e apoiar, criticar menos. Tanto que desde que caiu, 2008 pra cá, cada ano tá ganhando um título. Porque o torcedor ajuda, sempre tá lá apoiando o time inteiro e assim vai. Seu maior ídolo? Marcelinho Carioca, ele é fod*. Tem épocas também, o Ronaldo por três anos, ele fez gol. O Neto... mas o Marcelinho é fenomenal, batendo falta igual ele num tinha. Antes tinha o Neto tal, mas igual o Marcelinho não tem, o cara é fod*. Arquivo Pessoal: Renan Kanashiro 115
Este livro reportagem foi composto nas seguintes fontes: Título: Book Antíqua. Corpo de texto: Arial. Entre título: Arial. Créditos: Book Antiqua.
Futebol ĂŠ mais que um jogo