MULHERES NO JORNALISMO ESPORTIVO os desafios da profissão
Marina Vieira Petinelli
DedicatĂłria Com amor, para a minha famĂlia, pelo apoio, carinho e todo incentivo.
Agradecimentos Para meus pais, Dalvio e Patrícia, por estarem sempre presentes, me incentivando e acreditando em mim, desde sempre e para sempre. Com destaque para minha mãe, que sempre me deu os empurrãozinhos certos quando eu não conseguia sair do lugar. Para meu companheiro, Luan, por toda paciência durante os momentos truculentos, de sono, cansaço e ranço, e por toda a parceria, fazendo com que eu acreditasse em mim e desse o meu melhor sempre. Para meu orientador, Luciano, por todo incentivo e dedicação durante todo o processo de descobertas e desafios. À todos os professores do curso de Jornalismo da Unisul e da PUCRS que participaram da minha formação e contribuíram para que eu me tornasse a profissional que eu sou hoje, apaixonada por ouvir histórias e contá-las. E para todas as pessoas, que direta ou indiretamente, contribuíram com suas palavras de positivismo e confiança durante esse processo.
PREFÁCIO Quando entrei na faculdade de jornalismo, há quase 4 anos atrás, nunca imaginei que experimentaria os desafios de produzir um livro-reportagem. Durante minha trajetória acadêmica conheci e pude prestigiar grandes obras, escritas por nomes incríveis como Eliane Brum, Truman Capote, Daniela Arbex, John Hershey... E, se puder, você também deveria conhecêlos e devorar suas obras - não tem como ser diferente. No decorrer do curso, no entanto, descobri que gostava de desafios. Mas ainda não sabia que ele resultaria no presente livro-reportagem... Há uns dois anos atrás, na metade do curso e ainda despreocupada quando ao temido Trabalho de Conclusão, veio como um estalo “a desigualdade e o preconceito da mulher no jornalismo esportivo”, é isso que está escrito até hoje no bloco de notas do meu telefone, desde aquele dia. E hoje se tornou esse projeto. Com algumas mudanças de trajeto, especificando mais o assunto, resolvi falar da atuação da mulher no meio futebolístico, nas dificuldades diárias que são enfrentadas, como preconceito, discriminação, assédio e tudo que você vai encontrar nas próximas páginas. Sempre me senti atraída por projetos que falem sobre a mulher, desde o ensino médio onde participava de feiras científicas com trabalhos como “A inserção da mulher no mercado de trabalho”. Não sei da onde vem esse desejo, penso que pode estar ligado à minha família, onde a figura feminina é predominante e ativa, protagonista de várias histórias, sempre buscando lutar pelos seus direitos e pelo seu espaço na sociedade, ocupando cargos representativos na área da educação e da política, sempre lutando pela igualdade de todos. Mas nunca teve uma jornalista. Eis que surjo. E eis que surge também o desejo de trazer o debate para a minha área, ou seja, a figura da mulher no jornalismo. E, embora tendo optado pelo jornalismo esportivo, acredito ser fundamental o debate e a busca por espaço sobre o papel da mulher em todo o ambiente social e profissional. Isso, inclusive, foi uma das coisas que me motivou durante o processo de apuração e escrita: poder ouvir e contar histórias, dando espaço para assuntos que precisam ser debatidos na sociedade, em casa, no jornalismo, nas faculdades, enfim, em todo e qualquer lugar. Quando eu estava quase terminando, na fase final do projeto, meu orientador me perguntou ‘quero saber se tu está feliz com o que está fazendo, se tá feliz com o resultado’, algo mais ou menos assim. E eu digo, para quem importar, que estou muito feliz com o resultado desse trabalho e que espero que, de alguma forma, ele sirva para ajudar a tornar esse debate mais frequente, tendo a importância que ele merece. Portanto, esteja preparado para ouvir um pouco da história do machismo, dos movimentos feministas e muito sobre a mulher e sua inserção e atuação no jornalismo esportivo, especificamente na área do futebol. Espero que a sua leitura e experiência com este livro-reportagem seja tão boa e positiva quanto foi para mim conhecer cada história, adquirir cada conhecimento e viver cada experiência para conseguir escrevê-lo.
- “Cadela”, “puta”, “sai daqui, vadia...” Com a curiosidade típica da profissão, a jornalista virou-se para avaliar o que estava acontecendo, o que pensou ser o início de uma briga. Para sua surpresa, os xingamentos se dirigiam à ela. - No que eu me viro para ver onde ia começar essa briga e relatar no ar (na rádio), eu vejo um homem apontando para mim. Muito perto e falando tudo aquilo. A primeira coisa que pensei foi: ‘meu deus, será? Não tem como isso ser pra mim, né?’. Mas era. Os xingamentos eram para Renata Medeiros, jornalista esportiva da Rádio Gaúcha, e deram início a um caso de forte repercussão na luta pelo respeito às mulheres que atuam no jornalismo esportivo, especialmente nos estádios de futebol. ⚽⚽⚽ Era um domingo quente o de 11 de março de 2018. Fazia mais de 30ºC em Porto Alegre. Para Renata, também era um domingo diferente, empolgante. Seria sua primeira cobertura do GreNal (nome dado ao clássico do futebol gaúcho entre Inter e Grêmio), no Beira-Rio, estádio do Internacional. O dia tinha começado cheio de euforia para a jornalista, que havia realizado o sonho de se mudar para a Capital gaúcha. Antes precisava viajar todos os dias de Gravataí, cidade a 30 quilômetros de Porto Alegre, para trabalhar e estudar. Realizada e cansada com a mudança, Renata dormiu a primeira noite no novo apartamento. - Lembro que acordei por volta das 10 horas (no domingo) e a primeira coisa que fiz foi abrir o aplicativo da Gaúcha e começar a escutar o Domingo Esporte Show, programa que eu pré-produzo durante a semana. Depois fui ver a projeção para o GreNal. A ansiedade e o nervosismo eram tão grandes que sequer a deixaram comer.
- Eu estava tão, mas tão ansiosa... Sabe quando tu não consegue comer de tanta coisa que tu tá sentindo? Era eu naquele domingo. Restou à Renata fazer a única coisa na qual pensava desde que acordou: se arrumar e partir rumo ao Beira-Rio. O jogo entre Internacional e Grêmio, pela primeira rodada do Gauchão (como é conhecido o campeonato estadual do Rio Grande do Sul), estava marcado para às cinco da tarde. Renata tinha ficado responsável por cobrir a chegada dos torcedores, dos jogadores e a torcida mista, que reúne torcedores dos dois times. - Era um pouquinho antes da uma hora da tarde, eu já havia apurado algumas informações e comecei a anotar tudo. Eu tinha que estar muito pronta, muito preparada para o meu primeiro GreNal. Eu estava com muita, muita expectativa e acabei fazendo quase um livro de tantas anotações. Lembro da felicidade por estar participando daquilo. Como o maior clássico do Rio Grande do Sul, o GreNal é marcado pelos ânimos à flor da pele, mesmo antes da bola rolar, como conta Renata. Ela dividia a sensação de felicidade e euforia com a tensão que é trabalhar num jogo de futebol com essas características. - A transmissão já é muito tensa em si. Eu fiz a chegada dos dois times e tem torcedor jogando pedra em ônibus, torcedor provocando torcedor do time adversário e eu precisei relatar tudo isso. E sendo meu primeiro GreNal, eu particularmente estava muito tensa com a transmissão. Faltando poucos minutos para o jogo começar, Renata entrou na área destinada à torcida mista. - Eu estava relaxando, como quem pensa que o pior já tinha passado. Mal sabia o que ainda a aguardava naquele domingo. ⚽⚽⚽ Um torcedor colorado resolveu agredi-la verbalmente sem evocar qualquer motivo, só justificando mais tarde que seria por ela ser gremista, como se isso bastasse. No entanto, Renata nunca disse torcer para o time tricolor gaúcho. Como publicou a Rádio Gaúcha em seu site, dois dias após o ocorrido, “além do machismo, o que agrediu a Renata no Gre-Nal foi a
cegueira que toma conta de alguns torcedores”. O fanatismo das torcidas e a tensão do jogo acabam sendo usados para justificar atitudes machistas em agressões que ocorrem nos estádios durante e após a partida. Mas Renata não deixou passar em branco. - Peguei meu celular na intenção de intimidá-lo e falei para que repetisse o que tinha dito. Foi então que ele veio para cima de mim, querendo me dar um soco. O soco não aconteceu, mas o torcedor pegou Renata pelo braço. Nesse momento, a segurança do Internacional interveio. - A minha reação no momento foi sair daquela confusão e correr para o mais longe possível. Só depois que eu percebi o hematoma no meu braço. Esse foi o fato mais explícito de agressão e assédio que eu vivi... Nunca achei que fosse passar por isso trabalhando. Renata vivia uma mistura de sentimentos pela realização do sonho de se mudar para a Capital, de morar perto do trabalho e da faculdade. A cobertura do primeiro GreNal para o qual acordou ansiosa e eufórica. O ânimo e a felicidade em estar fazendo parte de tudo aquilo. Toda a expectativa de sua primeira cobertura e o nervosismo a acompanhavam desde que acordou. No fim, a agressão antes mesmo do jogo começar. - Aquela sensação toda não fazia sentido algum para mim, aquele fato me pegou completamente desprevenida. Eu fiquei consternada, nunca tinha passado por algo parecido. Mas ainda tinha 90 minutos de jogo pela frente e Renata não podia permitir que o acontecido a impedisse de seguir realizando seu trabalho. Alguns minutos depois, ao vivo na rádio, relatou o episódio. - Olha, acabei de ser agredida física e verbalmente por um torcedor do Inter. Em momentos que a gente pede muita paz nos clássicos, resta lamentar esse tipo de fato e esperar que seja o único registro negativo deste GreNal. Para sua surpresa, a compreensão e o consolo dos colegas nunca aconteceram. - A transmissão não tratou mais desse assunto, nem repudiando, nem
lamentando. Aí percebi que meus colegas não tinham sido solidários com o que eu passei. Foi bem difícil. Saí da arquibancada, chorei uns 10 minutos para descarregar todo aquele peso sobre mim e pensei: ‘eu vou ter que fazer esse jogo’. Ela tomou um refrigerante bem gelado e seguiu a cobertura da partida. Renata também utilizou o perfi l no Twitter para publicar o vídeo que havia feito na tentativa de intimidar o agressor colorado. Nas redes sociais, a repercussão foi grande. - Tive que colocar fi ltros para não me perturbar tanto, porque tinha muitas pessoas me cobrando muitas coisas e eu não tinha estrutura emocional para aguentar tudo aquilo.
Leia o QR no seu celular e veja o vídeo gravado pela jornalista
Renata precisou bloquear e denunciar contas que diziam que ela merecia ser agredida novamente, incitando a violência de diferentes formas.
Veículos de imprensa e profissionais do jornalismo, principalmente colegas de profissão, também deram destaque ao caso de Renata, que em poucas horas viralizou nas redes sociais, desencadeando uma série de debates e reflexões sobre a violência contra a mulher nos estádios. O Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul (Sindjors) e a Associação Riograndense de Imprensa (ARI) emitiram nota de repúdio, dizendo que “é inaceitável que uma profissional seja constrangida ao exercer seu trabalho”. Também dizem esperar providências do clube para reprimir atitudes de violência, ainda mais em um clássico onde são muitos os pedidos por paz.
Nota de Repúdio emitida pela ARI A Associação Riograndense de Imprensa – ARI repudia a agressão sofrida pela repórter Renata de Medeiros, da Rádio Gaúcha, durante a cobertura do Grenal no último domingo. É inaceitável que uma profissional seja constrangida ao exercer seu trabalho. A ARI espera que os clubes de futebol tomem as providencias cabíveis para reprimir atitudes como essa de todos os estádios. E que as autoridades competentes façam o agressor responder por seus atos evitando a impunidade e, consequentemente, a repetição de atitudes de violência como a ocorrida contra a repórter. Luiz Adolfo Lino d Souza Presidente da ARI Batista Filho Presidente do Conselho Deliberativo da ARI
Fonte: Facebook ARI
Nota de Repúdio emitida pela Sindjors Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul (SINDJORS) repudia com veemência as agressões preconceituosas e machistas sofridas na tarde deste domingo, dia 11, no estádio Beira-Rio, durante o clássico Gre-Nal, pela repórter Renata de Medeiros, da Rádio Gaúcha. A jornalista foi xingada e levou um soco de um torcedor colorado. Ação foi registrada em vídeo. Para o SINDJORS, a atitude não se justifica, pois fere liberdade de imprensa e a imagem do futebol gaúcho. A entidade se solidariza com a repórter e exige a apuração, identificação do agressor e, consequentemente, sua devida punição. Fonte: Imprensa/SINDJORS
Nota de Repúdio emitida pelo Grupo RBS O Grupo RBS manifesta sua solidariedade à repórter da Gaúcha, Renata Medeiros. A empresa está tomando as providências cabíveis, assim como o Sport Club Internacional. Logo após o episódio de agressão do torcedor à repórter, durante o clássico Gre-Nal, domingo (11), foi registrado um boletim de ocorrência relatando o fato e solicitando sua devida apuração. A RBS repudia toda e qualquer forma de violência dirigida a jornalistas em atividade profissional e reitera sua inconformidade com acontecimentos desse gênero. Fonte: Grupo RBS
⚽⚽⚽ Em casos como este, que envolvem qualquer tipo de agressão ou infração dentro dos estádios, o procedimento padrão é encaminhar o infrator para o Juizado Especial Criminal, que existe há mais de 10 anos nos estádios do Rio Grande do Sul e desde abril de 2008 no Beira-Rio. O JECRIM é um setor dentro dos estádios, responsável por atender e julgar os crimes e infrações que ocorrem antes, durante e após a partida. No caso de Renata, isso nunca aconteceu. O torcedor foi apenas retirado do estádio pela segurança. No entanto, em nota divulgada pela comunicação do Internacional, lamentando a violência contra a jornalista, a informação era de que o torcedor havia sido encaminhado ao juizado, como deveria ter sido feito. Segue abaixo a nota.
Para Renata, um equívoco. - O inter agiu de forma errada, porque deveria ter encaminhado o torcedor ao JECRIM, mas apenas o retirou do estádio. Um dia depois, o próprio titular do JECRIM confirmou o erro. O juiz Marco Aurélio Xavier retificou a informação, confirmando que o agressor não havia sido apresentado pelo Internacional ao Juizado e que sequer tinham conhecimento acerca de sua identificação. Ainda reiterou que estavam analisando os vídeos feitos pela jornalista e demais filmagens que pudessem ajudar na investigação. O único fato confirmado era que o torcedor colorado havia sido retirado do estádio pela segurança, mas não se sabe ao certo para onde havia sido levado. Como o torcedor não foi encaminhado a julgamento pelo Internacional, Renata precisou ir atrás de justiça. - Depois de ter passado por tudo que eu passei ainda tive que ir na delegacia registrar um Boletim de Ocorrência, repetir tudo o que eu tinha ouvido, reviver toda aquela cena e encaminhar um processo criminal, que para mim foi a parte mais dolorida, porque é um desgaste emocional muito forte, muito forte mesmo. E embora não desejasse se desgastar mais, o que a motivou a dar seguimento neste processo foi a sensação de precisar fazer a sua parte para mudar, de alguma forma, esse cenário simbólico sobre a realidade das mulheres nos estádios e a violência que ainda é muito forte em razão da cultura do machismo, principalmente no que tange o meio futebolístico - Não é humano que qualquer mulher trabalhe se sentindo ameaçada, como eu trabalhei. Renata ainda disse que tirou forças do apoio que recebia e da responsabilidade que sentia em tentar buscar um mundo profissional melhor para a atuação feminina. - Parece que só nós mulheres carregamos essa ‘carga’... No momento que precisei relatar tudo aquilo que eu tinha passado para o delegado, tudo que eu senti com aquilo e ver que ele, por ser homem, que provavelmente já foi um emissor, digamos assim, de machismo e que não entende um décimo do que tu está sentindo, tu está se expondo de novo, está ali vivendo de novo a situação e a relatando para um cara que está pouco entendendo o drama que tem por trás disso, sabe?
Essa situação fez com que Renata se impactasse ainda mais pela dor de mulheres vítimas de violência, gerando grande comoção e afinidade pelas lutas feministas, muito mais que antes. - Agora eu tinha sido vítima e conseguia entender o quão difícil é tentar punir um caso de violência. Difícil para mulher, né? Porque para os homens... Difícil para mulher. E foi a partir disso que Renata percebeu a responsabilidade de lutar contra o que tinha acontecido, para que o fato não se repetisse com outras mulheres. - Tudo isso foi pensando ‘olha, eu vou sofrer o quanto for necessário, mas a minha parte para tentar mudar um pouco esse cenário eu vou fazer’. O que ela não imaginava, no entanto, é o quanto essa importante iniciativa contribuiria para que ainda mais mulheres se sentissem motivadas e representadas, incentivando o empoderamento feminino e dando visibilidade para casos de agressão, violência e assédio que ocorrem diariamente com jornalistas esportivas no desempenhar de suas funções. Mais casos passaram a ser repudiados pela mídia, contribuindo para aumentar o debate sobre este tema. Depois de passar por todo esse desgaste emocional, Renata chegou em seu novo apartamento destruída. - Eu cheguei aos prantos, chorando muito. O fiapo do aipim, como a gente diz aqui... Mas Renata ainda não fazia ideia do quanto todo esse acontecimento a havia abalado emocionalmente. O que só descobriria, de fato, após retornar pela primeira vez onde tudo aconteceu. ⚽⚽⚽ O próximo Gre-Nal estava marcado. Dia 18, às quatro da tarde, desta vez na Arena do Grêmio. Uma semana após a agressão. O medo de que tudo acontecesse novamente poderia ter deixado Renata de fora, mas ao invés disso ela queria participar.
- No domingo seguinte tinha outro GreNal, agora na Arena, aí eu falei pro meu chefe: ‘olha só, se tu está cogitando me tirar desse GreNal por tudo que aconteceu, tira essa ideia da tua cabeça porque eu preciso fazer, eu quero fazer e eu preciso disso para virar a página’. Em momento algum Renata sentiu vontade de desistir. Na hora do ocorrido o único sentimento foi de não fazer parte daquilo tudo. - Foi um sentimento horrível, me senti humilhada, violentada, mas em nenhum momento pensei assim: ‘eu vou largar isso’. Nem passou pela minha cabeça. E por isso eu pedi para trabalhar no jogo seguinte, porque considerava importante para mim. A ansiedade não foi diferente do primeiro jogo. Mas, ao contrário do medo, Renata se deparou com muito carinho, consolo e incentivo da torcida. - Era gente me abraçando. Gente dizendo ‘Renatinha, esse cara não nos representa’. Desse tipo de torcedor eu só ouvi apoio. Tudo isso fez com que a jornalista acreditasse que estava pronta para voltar a trabalhar normalmente. Mas a verdade se mostrou diferente. Foi quando retornou pela primeira vez ao Beira-Rio, local onde a agressão havia ocorrido, que Renata teve que lidar com as consequências mais sérias e até então desconhecidas daquele 11 de março: as crises de pânico. - Quando passava pelo setor onde tudo aconteceu, eu enxergava todos os torcedores com a cara do meu agressor. Me deu taquicardia, eu me assustava com qualquer movimento, me sentia ameaçada por qualquer pessoa que passasse perto de mim. Foi horrível... Trabalhar com a sensação de estar sendo ameaçada a todo instante foi uma das coisas mais aterrorizantes pelas quais já passei e a pior sensação que eu já tive trabalhando. Parecia que tudo de mal ia acontecer perto de mim. Foi nesse dia que, também pela primeira vez, Renata teve medo de que tudo pudesse acontecer novamente. - A partir daí começaram as crises de pânico e de ansiedade, causadas pela agressão e, óbvio, por um cenário que meu cérebro criou involuntariamente pelo trauma que eu já tinha passado.
E desde então percebeu o quanto tudo a havia abalado psicologicamente. - Eu lembro de pensar ‘meu deus, não é possível que isso está mexendo tanto comigo’. E realmente estava! Precisei iniciar um tratamento psiquiátrico para conseguir trabalhar normalmente e isso é a parte que mais me entristece. Foi através da terapia que Renata conseguiu aceitar que esse assunto precisava ser trabalhado de alguma maneira. - Já que eu sofri tudo isso, já que isso me trouxe muitos prejuízos emocionais e psicológicos, me faz bem tirar a parte positiva, sabe? Falar sobre isso, tentar explorar ao máximo esse assunto para que não aconteça mais, incentivando que outras mulheres também denunciem e levem seus casos a público para a partir daí tentar modificar um pouco o cenário que é tão recorrente em todos os estados do Brasil. Renata continua falando sobre o caso em suas redes sociais e atualizando seus seguidores e amigos sobre o andamento do processo. Em um dos últimos posicionamentos no Instagram e Twitter, em agosto de 2018, ela deu detalhes do caso, falou sobre a sua luta e agradeceu todo o apoio recebido.
- O meu desejo é que as próximas gerações sofram menos que a minha.= Se sofrer menos eu vou achar que valeu a pena passar por tudo isso, sabe? A única coisa que não pode acontecer é tudo isso ter sido em vão. ⚽⚽⚽ O caso de Renata foi emblemático para a criação de uma campanha onde as mulheres jornalistas começaram a se manifestar sobre casos de assédio e preconceito que viviam no desempenhar de suas funções, aumentando a visibilidade e lutando contra o machismo no meio futebolístico. Também cabe destacar que esse caso não foi o único que ocorreu no beira-rio no Grenal do dia 11 de março. Aquele domingo foi marcado por outras situações que envolvem desrespeito, machismo e assédio, principalmente contra mulheres torcedoras. E, assim como não foi o único no clássico em questão, também está longe de ser o único no esporte, onde situações como essa ainda são recorrentes no dia a dia das jornalistas. Mas isso é assunto para um novo capítulo.
O caso de agressão contra a jornalista Renata Medeiros não pode ser tratado como fato isolado. O jornalismo é tido como uma das profissões campeãs em assédio, como mostram várias pesquisas feitas no Brasil e no mundo. Um exemplo em nível mundial foi a pesquisa feita pela The International News Safety Institute (INSI) e pelo International Women’s Media Foundation (IWMF) em 2014, dando conta de que dois terços das jornalistas sofreram algum tipo de intimidação, abuso ou ameaça, a maioria no próprio ambiente de trabalho. Já aqui no Brasil, esses números também ficaram evidentes após a divulgação do relatório Mulheres no Jornalismo Brasileiro (2017), da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), realizado em parceria com a agência Gênero e Número, onde o assédio é citado por mais da metade das mulheres entrevistadas. Ainda nessa pesquisa, 73% das mulheres afirmaram já ter escutado comentários ou piadas de natureza sexual no ambiente de trabalho e 83,6% já ter sofrido algum tipo de violência psicológica. Na pesquisa em questão, foram citados oito tipos de violência psicológicas, sendo elas: insultos verbais 44,2%, humilhação pública 40,5%, abuso de poder/autoridade 63,9%, intimidação verbal, escrita ou física 59,7%, tentativa de danos à sua reputação 31%, ameaça de perda de emprego em caso de gravidez 2,3%, ameaça pela internet 13,4% e insultos pela internet 24,7%. Segundo o relato de jornalistas que atuam na área esportiva, muitos desses casos de assédio são cometidos por seus próprios colegas de profissão, chefes e fontes entrevistadas, como aconteceu com a jornalista Manoela Nogueira Soares. Formada pela Universidade Católica de Pelotas (UCPel) e atualmente parte do time de comunicação da Arena do Grêmio, em Porto Alegre, Manoela vivenciou desde cedo, quando ainda estava na faculdade, as experiências negativas que ilustram a dura realidade das mulheres que atuam na área do futebol. - Era minha primeira entrevista como estudante de jornalismo e eu estava empolgadíssima. Logo no início, ele (o entrevistado) disse ‘nossa, que honra uma jornalista linda vir me entrevistar’. Lembro que na hora não levei como algo maldoso, só fui perceber no decorrer da entrevista, com base nas investidas que foram acontecendo. Durante a entrevista, a jornalista seguiu ouvindo elogios relacionados à sua beleza e sobre o jornalismo ser uma área repleta de mulheres bonitas. As cantadas surgiam entre uma pergunta e outra.
- Na época eu tinha 18 anos e a impressão era de ser um objeto que ele nunca tinha visto antes. No final da entrevista, lembro que ele pegou minhas mãos e perguntou se eu já tinha programação para mais tarde. Eu tirei o sorriso do rosto, agradeci a entrevista e saí chorando. Embora a família de Manoela quisesse ter denunciado o agressor, a ideia não foi levada adiante em razão da grande influência do entrevistado. - Essa certamente não foi a única vez que sofri assédio na profissão, mas foi a primeira e tenho certeza que foi a partir dali que minha postura mudou completamente. Hoje me dou conta do quanto não gosto de ser elogiada, eu não gosto e não quero que me digam ‘ah, como tu está bonita hoje’. Um elogio vindo de um homem assim não me serve, é uma coisa que já me constrange de largada. Às vezes é até um colega, sem intenção nenhuma, só que a gente está tão rodeada disso, tendo que se proteger o tempo todo, que acaba sendo afetada de alguma forma. A mim, afeta. E, assim como Manoela, 70,4% das jornalistas entrevistadas na pesquisa que resultou no relatório Mulheres no Jornalismo Esportivo também admitiram já ter recebido cantadas que as deixaram desconfortáveis no exercício da profissão, demonstrando que este caso está longe de ser visto como algo incomum. ⚽⚽⚽ E vários são os tipos de violência vivida pelas mulheres na área esportiva. No caso da Renata, agredida no Grenal, é possível citar a violência física, a violência verbal e a violência simbólica, que caracterizam diferentes maneiras pelas quais a mulher ainda é atacada, humilhada e inferiorizada na sociedade. Mesmo que o agressor não tenha conseguido atingir Renata ao tentar proferir um soco, ele deixou um hematoma em seu braço. Uma das formas de manifestação da violência física. Já a violência psicológica, que afeta tanto a autoestima quanto o psicológico da mulher, pareceu ainda mais grave nesse caso. Renata precisou procurar um acompanhamento profissional para conseguir amenizar os efeitos pós-trauma, que dificultava a realização do seu trabalho, principalmente ao voltar ao local do ocorrido. Evidenciada em grande parte através de humilhações, insultos, ofensas e demais atitudes desrespeitosas, na maioria das vezes expressas verbalmente, a violência psicológica também está muito presente nas
redes sociais, que acaba sendo uma extensão da atividade profissional, onde a mulher também é atacada, caracterizando um outro tipo de violência psicológica: a perseguição. E isso também aconteceu com Renata: - No twitter eu bloqueei e denunciei várias contas que ficavam incitando o ódio, dizendo que eu deveria ser agredida novamente pelo simples fato de não querer expor o nome do meu agressor. Assim como a jornalista da Rádio Gaúcha, outras profissionais qu atuam na área esportiva também relatam ataques através das redes sociais e discriminação quanto a presença feminina em coberturas esportivas. Por vezes, no entanto, essa violência simbólica acaba sendo vista com um olhar de brincadeira, sem o objetivo de humilhar, desrespeitar ou assediar as mulheres. Um exemplo de brincadeiras de cunho machista é o que a jornalista Larissa Balieiro, cujo caso será explicitado mais adiante, destaca em sua fala, onde também fica claro um olhar diferenciado da ocupação da mulher e do preconceito que ainda existe pela sua inserção na área esportiva, como é o caso do futebol. - Uma vez estávamos ao vivo e um colega duvidou do que eu havia dito e soltou um ‘ah, você deve ter se enganado, estava muito ocupada no salão’. Este tipo de violência que estereotipa a mulher também reforça a objetificação feminina, que muitas vezes também é reforçada pela própria mídia, como é possível notar em propagandas envolvendo futebol e cerveja, por exemplo. Desta forma, essa violência simbólica que inferioriza a mulher acaba contribuindo para estabelecer certos padrões, como é o caso da distribuição de funções, distinguindo erroneamente ‘o que é coisa de mulher e o que é coisa de homem’. Para Renata, isso é muito visível no meio futebolístico. - Mulher é adorno no futebol, ela é acessório, ela não faz parte daquele ambiente. A jornalista esportiva da TV só pode ocupar aquele espaço se for muito bonita. Mariana Capra, cujos casos vivenciados na profissão logo serão tratados, também reforça essa ideia. - Olha quantas mulheres vêm fazendo cobertura de torcida. Agora, quantas tem na reportagem? Poucas. E nos comentários? Mal consigo me lembrar de alguma. A mulher é tida como enfeite, como se ela não tivesse
capacidade de ocupar a mesma posição dos homens. A jornalista Olga Bagatini, em As barreiras das mulheres no jornalismo esportivo, aborda outro comportamento muito comum, que é o das brincadeiras, onde enfatiza comportamentos que submetem “mulheres a constrangimentos sob a justificativa do senso de humor e acaba naturalizando uma violência sofrida por elas todos os dias”. Para Olga, é preciso combater a violência e não aceitar o machismo como ‘brincadeira’. A jornalista ainda conta um caso em que o humor tornou aceitável a humilhação e o constrangimento de torcedoras, por conta de piadas machistas no programa Os Donos da Bola, da TV Goiânia, onde o apresentador Beto Brasil fazia o quadro “Desafio das Musas” com perguntas de duplo sentido, do tipo: “Se o nutricionista mandar você chupar uma laranja porque faz bem para a saúde, você chuparia um saco por dia?” e “Em um clássico contra o Vila Nova, se o juiz põe para fora, você mete a boca?”. Houve quem defendesse o apresentador com o argumento de que se tratava apenas de uma brincadeira, como ocorre em muitos casos onde há comportamentos de cunho machista. No entanto, atitudes como esta podem ser ainda mais invasivas e desrespeitosas. Mesmo em casos corriqueiros, há momentos em que o homem acredita ter domínio sobre o corpo da mulher, o que ocorre em diversas esferas da sociedade, assim como na área esportiva, conforme vivenciado pela jornalista Fernanda Varela. - Um colega profissional parou do meu lado no estádio, colocou a mão na minha cintura e falou ‘hum, tá linda ein? Emagreceu?’. Eu tinha perdido uns 20kg na época, realmente emagreci muito, mas ele era uma pessoa com quem eu não tinha amizade. E isso é tão invasivo, uma pessoa não tem o direito de chegar e segurar minha cintura. Esses casos mostram que a luta diária é uma realidade na vida de mulheres que optam pelo segmento esportivo, área que ainda é muito masculinizada. ⚽⚽⚽ Para Mariana Capra, formada pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), hoje repórter da TV Inter, da Rádio Colorada e Social Media do Internacional, as primeiras experiências envolvendo
casos de inferiorização e assédio também aconteceram já no início da carreira, quando ainda era estagiária da TV Inter. Prestes a se formar e trabalhando no segmento que gostava, Mariana sempre ficava animada em suas coberturas, principalmente pela oportunidade de aprender e se aperfeiçoar na área em que desejava seguir. Em uma das primeiras coletivas de imprensa das quais participou, lembra da câmera ter escorregado enquanto tentava posicioná-la corretamente no tripé. Antes que pudesse sequer pensar em arrumá-la, chegou um colega de outra emissora, colocou a mão na câmera, arrumou e disse “toma cuidado, meu amor. Numa dessas vai quebrar a câmera”. - Falando assim, não parece nada demais. Mas eu me senti péssima. Na hora não sabia o que responder, congelei. Mas fiquei me sentindo impotente. Mariana também relata a sensação de impotência em casos envolvendo a torcida, já que trabalha fazendo a cobertura dos jogos do Internacional, principalmente em meio a torcedores, realizando entrevistas e tirando fotos para divulgação nas páginas e sites do clube. - Já passei e passo por episódios na torcida também. É homem gritando ‘linda’, ‘que repórter, ein’, ‘por essa aí eu queria ser entrevistado’, entre outras coisas. Acho que eu sempre penso em responder, mas na hora congelo. É uma sensação horrível, mas tento não me abalar e ignoro, pois sei que mereço estar ali pelo meu trabalho. Apesar de ser algo muito ‘comum’ e presente no jornalismo esportivo, o aumento dos debates relacionados ao tema estão servindo para conscientizar os homens e dar voz às mulheres, que precisam ser respeitadas. ⚽⚽⚽ Larissa Balieiro Pinheiro, formada em jornalismo pela UniNorte Laureate e atuante no jornalismo esportivo há mais de 6 anos, também passou por uma situação embaraçosa logo que iniciou na profissão. Apesar de já ter passado por outros casos, este foi um dos que mais a marcou, em razão de ter ocorrido no início da carreira, quando ela ainda era nova e não tão experiente, como afirma.
Era 2012, seu primeiro ano como repórter de esporte. Na época, trabalhando como radialista, Larissa precisava entrevistar o técnico de um dos times do jogo que estava cobrindo. A sonora era essencial para a matéria que seria feita. Logo após o final da partida, Larissa saiu correndo para falar com o respectivo entrevistado, que já estava perto do vestiário quando ela o alcançou. - Estava tudo bem até que um jogador saiu completamente nu do vestiário e ficou dançando, isso durante a entrevista. O técnico notou a minha cara e olhou para trás, achei que fosse me defender mas ao invés disso ele riu. No final da entrevista ainda disse: “até parece que você nunca viu um homem nu”. Larissa considerou a situação desrespeitosa e desnecessária. - Na época eu era nova e respondi que o que eu via ou deixava de ver era problema meu e que eu queria ser respeitada. Saí de lá odiando o técnico. Hoje, o técnico em questão me respeita muito, debate comigo sobre futebol e entende que eu entendo sobre o assunto, mas não sei se existe receita para lidar com isso. E situações como esta, que expõem e ridicularizam as mulheres, propagando estereótipos, são citadas por 92% das mulheres que participaram da pesquisa Mulheres no Jornalismo Brasileiro. E, para Larissa, elas estão sempre presentes. No entanto, a jornalista acredita que a repercussão de casos envolvendo a mulher no esporte está contribuindo para mudar esse cenário machista que ainda predomina no futebol. - Já estivemos em uma situação onde nós mulheres aceitávamos isso. Hoje não é mais assim. ⚽⚽⚽ Estes preconceitos e diferenciações também partem, muitas vezes, de dentro da própria equipe, como também evidenciam os dados do relatório Mulheres no Jornalismo Brasileiro, onde 65,7% das entrevistadas afirmaram que já tiveram sua competência questionada. A própria distribuição do trabalho também segue, em alguns veículos, uma espécie de divisão sexual, como evidencia um dos relatos das jornalistas presentes no relatório: “Já me tiraram de uma pauta justamente por ser mulher e deram para o homem fazer”; em outro relato, outra jornalista comenta que
deixa “de fazer determinados jogos e coberturas pelo fato de ser mulher”. Para Alanna Kern, jornalista formada pela Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul) e hoje colaboradora da Cria Estratégia Digital, sua experiência no esporte também teve como marca a diferenciação e o preconceito que partia, principalmente, dos próprios colegas de profissão. - Lembro de jogos que o colega da rádio estava fazendo transmissão para a televisão e não tinha quem lesse a escalação. Eu me ofereci, pura e simplesmente para ler, nada além disso. Eles não quiseram e falaram algo dando a entender que eu não tinha capacidade para aquilo. Era só ler um pedaço de papel, sabe? Nem precisava entender do assunto para isso. Em entrevista para UOL, do Grupo Folha, a jornalista Clara Albuquerque, do Esporte Interativo, também comentou sobre esse preconceito que muitas vezes parte dos próprios colegas de profissão: - Escutei não só de torcedores, mas de colegas de trabalho também, que estava ali como ‘enfeite’, porque era bonitinha, porque tinha me relacionado com algum chefe, que deveria comentar sobre culinária... E outras ofensas que não preciso nem repetir. Mesmo tendo sua competência questionada por colegas, assim como as 65,7% das mulheres que participaram da pesquisa sobre a realidade da mulher no jornalismo, Alanna, que hoje não atua mais no esporte, seguiu dando tudo de si e buscando conquistar o seu espaço, até conseguir demonstrar a sua capacidade e ganhar o respeito dos colegas, conseguindo finalmente se inserir na área como esperava. Ela também enfatiza que o questionamento quanto a competência feminina não parte unicamente da equipe, mas também dos próprios torcedores. - Teve uma situação em que eu estava na torcida e fui conversar com o torcedor. Na hora em que fui falar, ele me interrompeu e perguntou se eu ia fazer uma pergunta de verdade, como se fosse uma pessoa sem conteúdo, pelo simples fato de ser mulher. ⚽⚽⚽ Fernanda Varela é repórter de esporte no Jornal Correio, de Salvador, e se formou em publicidade e propaganda pela UNIFACS Universidade Salvador e em jornalismo pela Faculdade Social da Bahia. Para ela, os
casos rotineiros de machismo, diferenciação e inferiorização estão nas coisas simples e, segundo ela, nada pontuais, já que sempre acontecem. - Lembro de estar sentada na mesa da editoria de esporte, sozinha e um dos chefes perguntou se não tinha ido ninguém de esporte trabalhar. Eu levantei, estendi a mão e falei “Fernanda, prazer, repórter de esporte”. Ele ficou super constrangido porque a gente se conhece há anos. No jornal onde trabalha, Fernanda é setorista do Vitória, o que significa que a cobertura dos jogos do time baiano é de sua responsabilidade. Mas, por ser mulher, ela sente que há um tratamento diferente. - Quando estou cobrindo um jogo é muito comum chegar alguém da chefia, ir até a mesa e perguntar algo relacionado a partida para algum outro colega homem, que sequer está vendo o jogo. Mas os meninos sempre falam ‘ó, pergunta para a Fernanda, ela que tá fazendo o jogo’. De qualquer forma, eu acho que eles nem percebem, sabe? É algo muito enraizado. Mas essas são as coisas que mais me marcam no dia a dia. A jornalista também fala sobre o machismo presente em coberturas externas, que envolvem muitos casos de desrespeito pelo espaço e pela figura feminina como profissional. - Uma vez eu estava cobrindo um treino e tinha um colega de profissão dando em cima de mim. Ficava falando ‘ah, eu vou me casar com você’, ‘larga tudo e vem ficar comigo’, ‘você é linda’. Eu não gostei e pedi licença, mas ele continuou insistindo nessa “brincadeirinha”. E isso é muito chato, parece que eles se acham no direito de falar o que querem e não é assim, sabe? Isso é uma coisa que me incomoda muito nesse processo de trabalho. ⚽⚽⚽ Estudante de jornalismo da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e estagiária da Rádio Inconfidência, também de Minas, Isabelly Morais considera que atos mais explícitos de machismo não estão inseridos no seu cotidiano. Para ela, o ambiente da rádio ainda é diferente do da TV, tanto do ponto de vista de oportunidades quando da diferenciação feminina. - É mais complicado pensar no machismo do ponto de vista do rádio e da TV. No rádio não tem o recurso da imagem, então é simplesmente
jogada a voz, e mesmo assim às vezes criticam se a voz não é boa, como se não desse certo e mulher não tivesse que estar inserida no esporte. Mas na TV tem um apelo mais estético, então é uma outra análise. Mas ainda assim eu acho que o machismo está presente em tudo, nas redações de jornais e tudo, ele está presente em todos os lugares. E é isso que a gente tem que combater. Na luta da inserção da mulher no jornalismo esportivo, Isabelly começou fazendo história desde muito cedo, como a primeira mulher a narrar um jogo de futebol em Minas Gerais. - No dia 7 de novembro de 2017 eu fui a primeira mulher a narrar um jogo de futebol no rádio de Minas Gerais. E foi uma sensação incrível. E tudo aconteceu muito de repente, lembro do meu chefe falando “Isabelly, vai lá, erra e faz” e isso me deu uma tranquilidade muito grande para ir e errar, porque eu sabia que eu erraria e sei que ainda vou errar muito... Mas eu fiz. Acho que se tivesse parado para pensar que mulher não narra aqui, que não é algo comum, acho que eu não teria ido. Apesar da felicidade pela conquista e pelo espaço que estava ocupando, a estudante de jornalismo afirma que os impactos foram tanto positivos quanto negativos, e que é importante saber lidar com ambos. - Tivemos rádios parceiras que ligaram xingando, que era loucura, que era suicídio colocar uma narradora mulher. Mas, da mesma forma que teve muita gente que não gostou, teve muita gente que gostou e ganhamos muitos ouvintes por isso. Muitas pessoas passaram a ouvir a rádio porque tem uma voz feminina, porque é diferente, muito mais inclusivo. As conquistas de Isabelly não pararam por aí. Narra quem sabe foi um programa da Fox Sports, composto por um time de narradoras que acompanharam e fizeram a cobertura dos jogos da Copa do Mundo de 2018. E Isabelly, escolhida para compor esse time, se tornou também a primeira mulher a narrar um jogo mundial em uma emissora de TV. - Quando eu soube que iria narrar Rússia e Arábia Saudita, a abertura da Copa do Mundo, no primeiro momento nem me toquei que seria a primeira mulher a narrar copa na TV brasileira. E isso foi realmente importante para mim. Depois, isso me encheu de orgulho. Porque isso fica para a história e, por mais que a gente trabalhe e lute muito pela nossa carreira, a gente quer deixar marcas nossas por onde a gente passa. Eu estou deixando a minha na narração esportiva e isso me enche de felicidade.
Em entrevista para o El País, Isabelly falou sobre as críticas que recebeu por estar atuando em uma área que antes era composta apenas por homens e afirmou acreditar em um futuro melhor para a inserção da mulher na profissão: - Teve um cara que disse: ‘tira essa puta daí’. Enquanto a narração dos homens é avaliada pela qualidade, muita gente me critica simplesmente por ser mulher. Óbvio que é diferente uma voz feminina nos jogos. Tudo que é novo causa estranheza. Ao longo de 20 Copas do Mundo, por exemplo, só os homens narraram aqui no Brasil. Não deveria ser estranho uma mulher narrando futebol no rádio ou na televisão. Mas acredito que essa cultura está mudando. Um dia vai ser natural ouvir um jogo com a narração de mulheres. Isabelly ainda comenta não admitir qualquer comentário que desmereçam o seu trabalho pelo fato de ser mulher. - Quando alguém vem falar que eu não devia narrar porque eu sou mulher, ou seja, quando a justificativa é porque eu sou mulher, daí não dá, aí nós mulheres não podemos aceitar. E eu ouvi muito disso, que a narração combinava com voz de homem. E isso é porque a gente cresceu ouvindo narração masculina. Mas aí entra um movimento para que as pessoas se acostumem com a voz da mulher, porque ela tá aí e ela não vai sair não. Orgulhosa da sua conquista, a estudante de jornalismo espera que seu pioneirismo fortaleça ainda mais a luta das mulheres, ajudando a conquistar cada vez mais oportunidades dentro do esporte. - Espero que isso ajude a abrir mais portas, e realmente acredito que tende a ser cada vez mais comuns ouvirmos narrações femininas. Acho que a partir do momento que uma empresa dá a oportunidade para a mulher, ela mostra que isso é possível e funciona. E assim a gente consegue mostrar que é possível que uma mulher narre e que narre com qualidade, conteúdo, informação, emoção e com tudo que um torcedor e uma torcedora merecem para uma transmissão do seu time. ⚽⚽⚽ É possível notar que casos como estes estão sendo cada vez mais repudiados pelas mulheres e vêm ganhando visibilidade na mídia, o que contribui para evidenciar e tornar pública uma luta que, por vezes, é
vista como individual. Esse posicionamento, tanto da mídia quanto das mulheres, pode ser avaliado através de casos que ocorreram durante o maior evento mundial de futebol, a Copa do Mundo de 2018, cujo espaço nos veículos de comunicação rendeu grande repercussão nas redes sociais. Realizadas na Rússia, as transmissões do Campeonato Mundial de Futebol evidenciaram o machismo, o assédio e a inferiorização da mulher, pautando o constrangimento registrado pelas profissionais e por torcedoras, a intolerância e o machismo escancarado e simbólico. Os casos deram visibilidade não somente à realidade que a mulher que atua na área, mas também evidenciam que essa realidade não se restringe a um país, clube ou localidade específica. O problema tem abrangência mundial. Sabe-se que casos como os ocorridos durante o evento, como o da repórter brasileira Júlia Guimarães e da jornalista colombiana Julieth González Théran, além de muitos outros envolvendo jornalistas e torcedoras, não são fatos isolados. Isso evidencia que as próprias mulheres estão mais críticas e se posicionando contra esse assédio, assim como os veículos de comunicação também estão abrindo mais espaços para debate, demonstrando a importância da conscientização do tema. As coisas já estão mudando e não falar sobre o assunto ou ‘colocar para debaixo do tapete’ não é mais uma realidade para as mulheres. A estudante de jornalismo e jornalista esportiva Isabelly Moraes observa que há indícios de que os casos tratados pela mídia e de repercussão internacional evidenciam um posicionamento mais crítico tanto da mídia como das mulheres. - Eu acompanhei a cobertura de muitos casos aqui e eu acho que isso sempre existiu, não só na copa, mas em qualquer outro tipo de campeonato com a cobertura feminina. Só que com as discussões que a gente tem colocado hoje, o pensar como a mulher é vista dentro do esporte está sendo mais debatido e se passa a ter uma dimensão diferente. E esse momento faz com que a gente tenha um olhar mais crítico das situações que acontecem e não deixe passar casos como já passaram na copa do mundo.
Juntamente com a sua colega Amanda Kestelman, Júlia escreveu um conteúdo no Globo Esporte, intitulada ‘Como a Copa, o machismo é do mundo’, onde falam sobre casos de assédio que passaram durante a cobertura desse grande evento mundial do futebol.
Fonte: Globo Esporte
Júlia Guimarães, repórter do SPORT TV, se preparava para entrar ao vivo de Ecaterimburgo, quando foi surpreendida por um torcedor que tentou beijá-la quando a câmera já estava fi lmando. Foi a segunda vez que a jornalista havia sofrido assédio na Rússia, onde fazia a cobertura da Copa do Mundo. Na ocasião, Júlia não fi cou calada e repreendeu o torcedor, em inglês: - Não faça isso. Nunca mais faça isso, ok? Não faça isso. Eu não te dei permissão para fazer isso. Nunca. Ok? Isso não é educado, não é certo. Nunca faça isso. Nunca faça isso com uma mulher, ok? Respeite! Para Renata Medeiros, que também registrou e expôs a agressão que vivenciou no clássico GreNal, esse posicionamento da categoria é muito importante e se faz necessário para que casos como este venham a se tornar cada vez mais raros. - A maioria dos homens se sente no direito de atacar nós mulheres, de passar a mão na bunda, no corpo e não só isso, se sente no direito de chegar perto, de tentar roubar um beijo. Enfi m, a Júlia não se calou e mostrou que ele não tem esse direito. E a lição de moral não foi só para aquele cara, foi para todos os homens machistas. A jornalista Mariana Capra, que acompanhou o caso de Júlia, lamenta o fato de isso ainda ser tão comum no dia a dia da mulher: - Acho um absurdo que a gente ainda tenha que lidar com casos tão gritantes como estes e que existam pessoas que assediam uma mulher ao vivo, na frente de uma câmera ou em qualquer lugar. Eles sabem que não vão ser punidos com aquela atitude. E isso só reforça que não é uma
cultura do brasileiro, mas acontece em todos os países do mundo e em grandes eventos, como a Copa e os Jogos Olímpicos. Mariana também elogiou a forma como a jornalista do Sport TV se portou, destacando a grande dificuldade de saber como reagir frente ao assédio que ocorre diariamente na profissão. - É uma linha muito tênue para saber como reagir, porque ao mesmo tempo em que aquela situação é um absurdo, tu também não pode xingar ou empurrar alguém no ar. E ela (a Júlia) se portou muito bem, conseguiu controlar a situação. Mas é muito difícil, a gente nunca sabe como reagir em uma situação dessas, porque tudo o que a gente quer é fazer o nosso trabalho. A gente não espera que vá chegar alguém achando que pode passar a mão na gente ou falar absurdos só por sermos mulheres. A jornalista Fernanda Varela estava no Brasil fazendo a cobertura dos jogos do campeonato mundial, mas foi impactada pelos inúmeros casos que ocorreram e percebeu a importância do posicionamento feminino contra o assédio. - Eu vi muita matéria sobre assédio durante a Copa. Parece que as pessoas, principalmente torcedores, acham que tudo é bebida, farra, brincadeira e que não precisam respeitar. Mas existem leis de convivência que precisam ser respeitadas, como o espaço do outro. E hoje eu acho que a consciência das pessoas tem mudado, antigamente ninguém ligava quando aparecia torcedor dando beijo em repórter no ar, todo mundo achava engraçado. Mas as mulheres estão reclamando. E por mais lamentáveis que esses casos sejam, talvez infelizmente sejam importantes porque fazem muita gente refletir, inclusive homens. São episódios que expuseram pessoas que certamente vão pensar duas vezes antes de tentarem atos assim novamente. Alanna Kern, que já atuou no meio futebolístico, acredita que o primeiro passo é se posicionar contra e mostrar que não se trata de algo legal, mas sim de algo que não deve se tornar comum. - Eu vejo que a principal forma de lidar com isso, e que tem acontecido muito, é a mulher não achar que se trata de algo normal e responder a isso. A partir do momento que a mulher se posiciona e mostra o seu lugar, o homem tende a respeitar mais isso. Então se posiciona e expõe que é algo que não é brincadeira, que não é para ser feito, que não pode se repetir. Repudiar faz com que essas situações não se tornem exemplo e contribui para que outras pessoas também não façam aquilo.
Renata Medeiros reconhece que a repercussão de vários casos de assédio na copa do mundo ainda mostra que o problema é muito maior e que está presente em todo lugar. - Essas casos serviram para mostrar que é no mundo inteiro e não só com jornalistas, mas também com torcedoras, o que é bem desalentador, porque mostra que está generalizado, em qualquer esfera da sociedade. Como se a mulher fosse ser assediada em qualquer lugar do mundo. Renata também relembrou o caso da jornalista russa, Barbara Gerneza,correspondente do iG na Copa, que havia sido humilhada por torcedores brasileiros, e o da jornalista colombiana, Julieth González Therán, correspondente da agência de notícias alemã Deutsche Welle.
Fonte: Catraca Livre
Barbara, jornalista russa, tentava entrevistar um torcedor brasileiro quando foi assediada por cerca de 14 homens. No vídeo que repercutiu nas redes sociais é possível ver que um torcedor chama Barbara de ‘gracinha’ e logo depois se juntam para cantar uma música desrespeitosa, que fazia alusão ao órgão sexual feminino. Sem que soubesse, a jornalista repetia a cantoria em ritmo de festa, junto aos torcedores, como quem acreditava estar entrando na comemoração. Um dos torcedores também aproveitou a ocasião para tentar roubar um beijo da russa. Com a repercussão do vídeo nas redes sociais, muitos usuários se manifestaram justifi cando a situação como sendo apenas uma brincadeira e não algo de mal gosto, com comentários como “agora qualquer coisa é mimimi”, evidenciando que a sociedade muitas vezes compactua e enxerga como algo natural essa violência contra a fi gura da mulher. No próprio iG, onde é correspondente, Barbara relatou a experiência e repudiou o comportamento dos brasileiros: - Na hora eu não percebi, estava bem ansiosa porque tentava fazer a entrevista em português e eles estavam cantando para mim. Não
prestei atenção nas palavras, só percebi depois que vi o vídeo de novo. O sentimento não foi nada bom, foi triste. Eles pareciam ser divertidos, mas na verdade não foi nada legal. Você não espera algo assim, você espera coisa boa, e então acontece isso.
Fonte: Abril
Com a jornalista colombiana o caso foi diferente. Julieth estava ao vivo da Praça de Moscou para a Deutsche Welle, quando um homem se aproximou e beijou seu rosto, colocando uma das mãos sob o seu peito. No momento, a jornalista não teve reação e seguiu normalmente a transmissão. Segundo ela, ninguém havia se manifestado antes de começar a gravar, mas foi só a transmissão iniciar que o homem apareceu, como se essas situações e esse constrangimento só tivesse sentido quando exposto ao público, tendo a visibilidade ampliada. Ela aproveitou as redes sociais para divulgar uma nota, mais especificamente no seu perfi l do Instagram, onde pedia por respeito.
“Respeito! Não merecemos esse tratamento. Somos igualmente valiosas e profisionais. Compartilho a alegria do futebol, mas devemos identifi car os limites do afeto e do assédio”.
Divulgação: Redes Sociais.
Renata Medeiros faz questão de ressaltar que os casos em questão são muito tristes, principalmente o que envolveu brasileiros. - Me deixou com uma vergonha, constrangida de ser brasileira, porque parece que aqui é ainda pior. É um assédio que te ridiculariza, que te humilha, que te faz passar vergonha. E isso é o pior, se sentir humilhada. Manoela Soares, assessora de imprensa da Arena do Grêmio, que na= faculdade já experimentou essas experiências negativas de ser mulher e atuar no futebol, destacou a falta de limites do homem e da dificuldade conseguir se inserir nesse ambiente. - Como é difícil ser uma jornalista durante a copa em um país machista, cheio de homens em volta. Eles ultrapassam limites simplesmente porque se dão o direito de fazer determinadas coisas sem permissão, como o “simples fato” de roubar um beijo. A pessoa tá ali, trabalhando, e a gente jamais faria isso com um homem, então não entendo porque, não sei em que momento se deu ao homem o direito de fazer isso, mas eu acho que é uma questão que a gente tem que combater. É isso que precisamos mostrar cada vez mais e é isso que eles chamam de mimimi, mas que para a gente é algo bem sério. A própria mulher torcedora também sofre mais nesse ambiente do futebol, tendo maiores dificuldades para conquistar o direito de estar presente nos estádios e até mesmo mostrar que entende de futebol. Características e atribuições que são exclusivas do público masculino, como evidência Renata. - O que elas (as torcedoras) passam até conseguir ir ao estádio é algo desproporcional. O homem já nasce com esse direito, a mulher não. E tem toda a coisa da roupa, em que ela precisa estar vestida de um jeito que não justifique o assédio, porque no Brasil e em vários lugares do mundo é assim, quem sofre assédio é culpada em razão da roupa que usava. Então todos os casos da copa mostraram que isso é no mundo inteiro, tanto com jornalistas quanto com torcedoras. É com as mulheres. ⚽⚽⚽ Presente em diferentes esferas sociais, a dominação masculina é ainda mais forte e visivelmente presente na área esportiva, onde os homens são maioria e a presença da mulher ainda causa estranheza, já que uma grande
camada social ainda vê o esporte como sendo um ‘lugar para homens’ e também um ‘lugar de homens’. No âmbito do jornalismo é comum que a mulher seja mais exigida em relação à beleza proporcionalmente em razão do preparo profissional e do conhecimento acerca dos assuntos com os quais lida diariamente. Essa cobrança de que as jornalistas estejam sempre bem arrumadas, maquiadas e sigam certos padrões é muito visível para a jornalista Fernanda Varela, que reelembra um caso em que divulgou um vídeo falando sobre futebol e recebeu comentários apontando que ela era feia, pelo fato de não estar maquiada. - Isso é surreal. Eu não estou ali para dar curso de maquiagem, estou ali para falar de futebol e foi o que eu fiz. Acho que tem muito essa cobrança de que a mulher tem que estar magra, bonita, maquiada, enfim, no padrão. Isso é uma cobrança do torcedor, uma reação bizarra que vem dos colegas e pior é que eu vejo mulheres fazendo isso também. E para mim, o machismo que mais machuca é quando vem da mulher. Renata também fala do assunto, citando que o jornalismo esportivo é um “festival de objetificação da mulher”. - A jornalista esportiva da TV só pode ocupar aquele espaço se for muito bonita. E isso é muito cruel. Tenho colegas que trabalham na TV e sentem-se com prazo de validade, tipo ‘a gente sabe que vai estar ali reportando e apresentando enquanto a gente for bonita, jovem e tiver um corpo nos padrões que a sociedade considera bonito, agradável. Mas no momento que engordar um pouco e começar a envelhecer... Para Renata, essa objetificação pouco tem a ver com o jornalismo esportivo, mas sim com uma cultura machista. - Não é só no futebol que a mulher é objetificada. O futebol é só mais uma esfera das muitas em que a mulher aparece sendo valorizada apenas pela estética. Na sociedade toda é assim. E para mudar isso é preciso começar a colocar mulheres em posições de destaques, como a Ana Thaís Matos. Renata citou a repórter Ana Thaís Matos, do Sport TV, em razão da participação dela como comentarista durante a Copa do Mundo, juntamente com ex-jogadores de futebol e comentaristas de carreira já consolidada. Para Renata, essa inserção demonstra a capacidade da mulher em ocupar um espaço que até então era destinado apenas para os homens.
- A diferença para mim está em provar para o público que a mulher tem a mesma capacidade que um homem, de ocupar o mesmo espaço. Então, talvez se a gente começar a ver as mulheres narrando e comentando jogos, em jornadas que até então eram só masculinas, a gente vai começar a ver uma diferença. Para Mariana Capra, jornalista do Internacional, dar oportunidade para as mulheres ocuparem espaços até então masculinizados também é um primeiro passo para mudar essa objetificação e dominação masculina no futebol. - Acho que para desconstruir essa ideia é preciso primeiramente dar espaços iguais e não diminuir a mulher por ela ser mulher. Os homens estão muito acostumados em serem maioria nesse espaço, mas é aquilo do ‘vão ter que nos engolir’. As pessoas não vão mudar até que sejam obrigadas a isso e os homens precisam nos ver como profissionais qualificadas. Isabelly Morais, que deixou sua marca sendo a primeira mulher a narrar de um jogo da Copa na televisão, também considera que a empresa e os colegas têm papel fundamental para desconstruir a objetificação com a qual a mulher ainda é vista e tratada no ambiente esportivo. - Existe uma objetificação da mulher dentro do esporte que vai até além do jornalismo, está inserido em um contexto mais amplo. Mas dentro do esporte a mulher realmente é vista dessa forma, como objeto, como o corpo, como algo relacionado a beleza. E para mudar isso nossos chefes precisam colocar mulheres para trabalhar onde possam realmente falar de futebol do ponto de vista do conhecimento delas, como acontece com os homens. As pessoas objetificam as mulheres, mas as mulheres, muitas vezes, são objetificadas pelos seus próprios chefes. E é preciso mudar isso. Mesmo que as mulheres estejam, aos poucos, ganhando espaço, a presença feminina ainda é algo que causa estranheza dentro do ambiente esportivo. No entanto, cabe destacar e reconhecer o avanço das lutas feministas que desempenham papel importante na luta por espaço feminino em todos os âmbitos sociais e profissionais. O próprio crescimento na visibilidade dos casos, como os citados aqui, também evidencia que as coisas estão mudando. Na Copa do Mundo, por exemplo, eles sempre existiram, mas foi a partir de pouco tempo que foi possível vê-los tomar proporções maiores, sendo debatidos e repudiados. A diferença está em torná-los alvo de discussão, já que antes não eram abordados. O que significa que mesmo
sempre estando presentes, apenas agora é que se começou a ter maior conhecimento e espaço crítico para debater sobre eles, repudiando para que não ocorram novamente. Para mudar ainda mais esse cenário, é importante conhecer e entender a dominação masculina a partir da maneira como ela está inserida no nosso cotidiano e na nossa cultura, na forma como a mulher ainda é discriminada e inferiorizada, como em questões salariais e promocionais. A própria inserção da mulher no jornalismo esportivo começa a ganhar mais espaço a partir do momento que se conhece a causa do problema e mobiliza-se para combatê-lo, mostrando que o lugar da mulher é sim onde ela quiser e que a sua presença no esporte - e na sociedade - precisa ser valorizada.
Uma pesquisa realizada pela ActionAid em 2016 revelou que a violência contra a mulher é realmente assustadora. Os dados mostram que quase 90% das mulheres entrevistadas já haviam sofrido algum tipo de assédio em público. Os números de violência de gênero também fazem um alerta sobre esse grande problema, como pode ser visto na 1a e única edição do Mapa da Violência de 2015, realizado por Julio Jacobo Waiselfisz. O mapa mostra um crescimento numeroso de feminicídios no Brasil, onde a cada 100 mil mulheres, 4,8 são vítimas de homicídio, o que totaliza o assassinato de, em média, 13 mulheres por dia. Um estudo realizado pelo Senado Federal denominado Panorama da violência contra as mulheres no Brasil mostra que só em 2016, 427.377 mulheres brasileiras registraram ocorrência por ameaça de violência. E esse número é ainda maior, já que estados como Sergipe, Pernambuco, Paraná e São Paulo não divulgaram os dados na época da pesquisa. Outros dados levantados pelo veículo de comunicação G1, em 2017, também demonstram a ameaça que a mulher sofre no âmbito social, simplesmente pelo fato de ser mulher. Só naquele ano, 4.473 mulheres foram assassinadas no Brasil. Isso representa a morte de uma mulher a cada duas horas, sendo 12 por dia. Os dados mostram o quanto a mulher é submetida a uma condição de fraqueza, vulnerabilidade e inferioridade. O assédio sexual, por exemplo, é uma realidade muito presente na vida da mulher, tanto no meio social quanto profissional. E o jornalismo esportivo destaca-se nesse cenário. Das 7 jornalistas entrevistadas, que tiveram alguns de seus casos relatados no capítulo anterior, todas afirmaram já ter passado por algum caso de assédio e preconceito na profissão, incluindo violência física, como o da jornalista da Rádio Gaúcha Renata Medeiros, agredida enquanto fazia a cobertura do GreNal. Essa diferente realidade entre homens e mulheres que atuam na área esportiva é reforçada por comportamentos e posições distintas, impostas a homens e mulheres, e que acabam contribuindo para construir hierarquias sociais, onde a figura feminina tem um lugar inferior. Os estudos de gênero se dedicam a analisar a criação e a propagação destes papéis distintos atribuídos para homens e mulheres na sociedade que, de certa forma, acabam servindo como justificativa para que ocorra a violência e o assédio. A violência, longe de ser um fato isolado, é construída e inserida diariamente em nossa cultura, seja na família, na escola, no mercado de trabalho, em diversas esferas sociais nas quais a mulher, mesmo presente
e com direitos reconhecidos de igualdade, ainda é tida como inferior, ainda é humilhada e vítima de preconceito e assédio. E, por vezes, isso também acaba refletindo no meio esportivo. A psicóloga Ethel Cechinato Cagol é formada em psicologia no Centro Universitário da Serra Gaúcha (FSG) e já atuou no Juizado Especial de Violência Doméstica da comarca de Caxias do Sul. Com grande experiência em casos envolvendo mulheres vítimas de violência e também agressores, ela diz que são vários os sintomas que podem resultar dessas situações: - A mulher que sofre violência pode apresentar vários transtornos psicológicos. Para exemplificar posso citar alguns como ansiedade, pânico, depressão, sensação de culpa excessiva, tentativas de suicídio, Síndrome de Estocolmo, entre outros. É por isso que ela precisa de uma ajuda externa, “que a auxilie a criar mecanismo para mudar sua realidade e superar as sequelas deixadas pelo processo de submissão às situações de violência”, como a psiquiatra Maria France Hirigoyen aponta em seu livro A violência no casal: da coação psicológica à agressão física. Ethel, com base em sua experiência, considera essencial a participação do psicólogo neste processo de ajuda à mulheres vítimas de casos de violência e assédio. - É muito importante quando identificado algum caso contra a mulher que ela procure ajuda. E o psicólogo é essencial para prestar esse atendimento à vítima, em diferentes níveis de tratamento. Também é importante lembrar que toda mulher tem o direito de registrar um boletim de ocorrência contra qualquer homem, quer seja do seu convívio social ou profissional. ⚽⚽⚽ Os pensamentos e atitudes machistas, assim como toda essa dominação masculina que está presente no esporte, estão envoltos em uma questão cultural fortíssima, que atende ao senso comum de que ao homem cabe a figura do trabalho pesado e sustento familiar enquanto à mulher se restringe ao papel de dona de casa. Na história da civilização, a forma como a sociedade lida com essas questões de gênero nunca foi igualitária. E, com gênero, podemos nos referir às relações desiguais entre homens e mulheres, criadas a partir de diferenças resultantes de uma construção social de “papel feminino” e “papel masculino”, onde um é dominante (o homem) e o outro é dominado (a mulher).
Com o tempo, embora o contexto tenha mudado em função de conquistas sociais por parte das mulheres, a ideia se mantém viva: o homem tem uma vida pública, na qual trabalha fora de casa e é responsável pelo sustento da família, sendo visto como ser superior na hierarquia familiar, enquanto a mulher “deve” cuidar da casa, dos filhos e do marido. Em um artigo sobre violência contra a mulher, escrito por Julia Beck, a psicóloga Ana Carlota Pinto Teixeira destaca a forma como a figura feminina é vista culturalmente, em um contexto tanto social quanto histórico, “como ser fragilizado, limitado e subordinado, condição esta que, na construção psíquica da mulher, a torna sensível à falta de uma proteção interna atribuída, muitas vezes, à figura do homem”. Essa visão da mulher como subordinada também é defendida pelo patriarcado, que “pode ser entendida como uma instituição social que se caracteriza pela dominação masculina nas sociedades contemporâneas em várias instituições sejam elas políticas, econômicas, sociais ou familiar”, valorizando o “poder dos homens sobre as mulheres que repousa mais nas diferenças culturais presentes nas ideias e práticas que lhe conferem valor e significado que nas diferenças biológicas entre homens e mulheres”, como cita a escritora e ativista americana Kate Millet, no livro Sexual politics (Política Sexual em tradução livre). Essa concepção demonstra que essa diferenciação entre sexos não são fundamentadas em algo lógico, mas criadas e alimentadas pela sociedade a partir de um senso comum que vem de séculos. De maneira geral, esses conceitos ainda estão natural e fortemente enraizados em nossa cultura, desde a infância, tanto em casa quanto na escola, onde há a separação de tarefas com base no gênero. As meninas são instruídas a brincar com bonecas e panelas, reforçando a ideia de maternidade e cuidado com o lar, enquanto meninos brincam de carrinhos e ferramentas, reforçando a ideia de que cabe a eles a função de trabalhar e sustentar a família, entre outras questões que fazem essa separação. O sociólogo francês Pierre Bourdieu, que deixou sua contribuição com pesquisas relacionadas à sociedade, como é o caso da dominação masculina, a partir do ponto de vista mais simbólico, contribui para o debate de gênero e entendimento acerca dos comportamentos da sociedade e sua origem, fala em seu livro A Dominação Masculina sobre o papel (principal) da família na reprodução dessa dominação e visão masculinizada, sendo ela responsável por impor a experiência precoce da divisão sexual do trabalho. Essa divisão, que começa em casa e é reafirmada na educação
escolar, faz parte das experiências e comportamentos que por vezes levamos para o ambiente profissional e para a vida em geral, contribuindo para reforçar os papéis desiguais entre homens e mulheres na sociedade. Bourdieu ainda diz que vê essa transmissão de valores familiares como uma ‘herança cultural’, ‘um conjunto de valores e moral passados à prole’, evidenciando que é na família que se iniciam as primeiras diferenciações relacionadas a gênero, também reforçadas no momento de iniciação aos estudos, já que ‘é na escola que tais desigualdades são afirmadas e conservadas, evidenciando-se ainda mais as condições de dominados e dominantes’. Esse discurso que reforça a superioridade masculina muitas vezes acaba sendo inserido no nosso dia a dia e tomando grandes proporções, sem que sequer haja consciência de que estamos inferiorizando a mulher. Muitas vezes, esse discurso é apropriado pelas próprias mulheres, que nasceram em um ambiente onde foram ensinadas a ser submissas, duvidando de suas capacidades. Para a jornalista Fernanda Varela, fica evidente que a presença feminina em certas áreas consideradas masculinas ainda causa estranheza, mas não apenas aos homens. - Para mim, o machismo que mais machuca é quando ele vem da mulher. Eu lembro de estar em um jogo quando um homem me insultou e, para minha surpresa, uma mulher, professora, o ajudou dizendo que eu não deveria estar ali, que eu deveria estar estudando, como se ali não fosse lugar para a mulher. Alanna Kern, que também já trabalhou no meio esportivo, reforça que a conscientização é importante para ambos os sexos. - A mulher muitas vezes acaba também se portando com atitudes machistas. Então é preciso fazer coisas que conscientizem tanto a mulher quanto os homens da importância de trabalhar com a igualdade, salários iguais, direitos de terem as mesmas oportunidades... ⚽⚽⚽ A violência e a inferiorização da figura feminina não constitui um fato recente na história da sociedade, mas faz parte de um amplo contexto
sócio-histórico, onde a mulher sempre teve menos destaque na e para a sociedade. Isso fez com que fosse construído um estereótipo relacionado ao sexo feminino, que ainda se faz presente nos dias de hoje, pautado sobre uma série de preconceitos e discriminação. Conforme o artigo Preconceito e discriminação: as bases da violência contra a mulher, do psicólogo Sérgio Gomes da Silva, “alguns tipos de preconceito são tão rigidamente criados e difundidos nas sociedades de massa que começam a fazer parte da cultura de um povo através de estereótipos”. E, por isso, esse preconceito começa a fazer parte do imaginário social, tanto de homens como de mulheres, que passam a ver como algo ‘normal’ a inferiorização feminina na sociedade e o domínio do poder masculino, tornando difícil a inserção igualitária entre ambos os sexos em variadas áreas, como é o caso do jornalismo esportivo e mais especificamente do futebol. É possível dizer que a forma como a mulher ainda é vista ou tratada é, na verdade, consequência de toda essa construção histórica e cultural, que acaba moldando estereótipos que fortalecem o preconceito e a discriminação. Enraizados na sociedade, esses exemplos muitas vezes passam despercebidos, sendo consideradas brincadeiras veladas, como as piadas, ou explicitamente assumidas, como podemos ver em propagandas de futebol e cerveja que aparecem na mídia, onde a mulher é vista como objeto de atração para o público masculino. Isso faz parte da dominação masculina que, conforme Bourdieu transforma as mulheres em “objetos simbólicos”, colocando-as em “permanente estado de insegurança corporal” e “dependência simbólica”, no qual ela existe para atrair o olhar como “objetos receptivos, atraentes e disponíveis”. E este preconceito entronizado no cotidiano está presente nas mais diversas maneiras e também pode “estar vinculado à inclusão de um indivíduo em uma categoria”, conforme o psicólogo Sérgio Gomes, fazendo com que haja discriminação, como é o caso do meio esportivo. Conforme o jornalista esportivo londrino, Tim Vickey, formado em História e Política pela Universidade de Warwick, é notório que a mulher precisa seguir certos padrões para ter um lugar de destaque na área esportiva, conforme publicou em artigo na BBC Brasil, ondetrabalha como colunista. - Elas (as mulheres) têm um certo perfil. Todas são relativamente jovens e seriam consideradas bonitas. Ou seja, para conseguir o direito de trabalhar neste ramo, tiveram que passar por uma peneira de considerações estéticas - uma seleção construída por homens, e que funciona dentro
de uma estrutura do comando masculino, mas que não se aplica aos homens. Isso acontece globalmente dentro do jornalismo esportivo, mas é especialmente forte no Brasil. E há muitas formas em que a figura feminina é discriminada na sociedade e no âmbito profissional, como a dificuldade de ser promovida e diferença na distribuição de tarefas. Também há as questões salariais. De acordo com um levantamento feito através do site “Salários”, que traz dados oficiais do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados do Ministério do Trabalho (CAGED), o salário médio de jornalistas mulheres em 2018 é de aproximadamente R$ 2.900,00, enquanto o de profissionais homens é de R$ 3.700,00. Ou seja, os homens ainda ganham 22% a mais, mesmo ocupando as mesmas posições na hierarquia profissional. Isso evidencia que a mulher é discriminada no mercado de trabalho, inclusive em sua remuneração, independente de suas funções e responsabilidades. Segundo a pesquisa Mulher no Jornalismo Brasileiro, que traz um panorama da realidade feminina dentro da profissão, “a discriminação de gênero ocorre em todos os momentos da vida profissional das mulheres: contratação, demissão, promoção, definição de salário, direitos, distribuição de tarefas e oportunidades de crescimento profissional”. Na pesquisa em questão, 53,4% das mulheres afirmaram ter oportunidades muito inferiores a dos homens para crescer na carreira. Outras 86,4% afirmaram ter passado por ao menos uma situação de discriminação de gênero no trabalho, sendo as mais comuns distribuição de tarefas (57,7%), promoção de emprego (39,4%), oportunidade de trabalho (36,9%) e aumento salarial (35,4%). E a dificuldade de mulheres atuarem no jornalismo é notada pela sua tardia inserção, que só se notabilizou a partir dos anos 70, principalmente em razão das lutas de movimentos feministas. No meio futebolístico, no entanto, essa inserção começou alguns anos antes, ao final de 1947, com Maria Helena Rangel, na redação do recém lançado jornal Gazeta Esportiva. Maria Helena foi a primeira mulher da qual se tem registro a cobrir a área esportiva. Em 1950, Mary Zilda Grássia Sereno foi uma das pioneiras do fotojornalismo e especialista na cobertura de partidas de futebol em São Paulo, segundo Monique de Andrade Dantas, em Mulheres no Jornalismo Esportivo. Mas foi na década de 1970, período que consolidou a presença feminina
no jornalismo esportivo, que surgiu o primeiro programa de esportes formado apenas por mulheres, a Rádio Mulher. Segundo Paulo Vinícius Coelho, em seu livro Jornalismo Esportivo, “era quase impossível ver mulheres no esporte até o início dos anos 70. A coisa mudou. Não que hoje as redações esportivas tenham o mesmo número de mulheres com relação ao contingente masculino”. Para a jornalista Isis Mendes Mota, em Jornalismo Esportivo de Saia: a participação feminina no Jornalismo Esportivo, “a mulher consegue desmistificar a ideia de que o mundo dos esportes só pertence aos homens e que elas não têm competência para discutir”, buscando “o poder de comunicação em massa” como contribuição para sua luta por credibilidade e protagonismo. E, mesmo hoje, com maior presença feminina no jornalismo esportivo, a opinião da mulher ainda é vista com diferença, preconceitos e dúvidas, como relata a setorista do Vitória, Fernanda Varela: - Eu já notei que se são os homens que erram ou têm uma opinião diferente, as reações são tipo ‘não é que ele errou, é que ele tem uma opinião diferente da minha’. Agora, se a mulher faz isso, é tipo ‘tô dizendo, ela não tem a menor condição de estar aí’. É sempre um pensamento de que a mulher vai falhar a qualquer momento, parece que eles ficam sentados esperando, sabe? Naquela expectativa da mulher errar para apontar o dedo. Fernanda comenta que essa diferenciação também é notada pelos seus colegas de imprensa. - Ao conversar com um amigo da área, ele disse que é comum ninguém prestar atenção quando um homem fala sobre futebol. Mas, se tratando de uma mulher, todo mundo fica em silêncio, prestando atenção, esperando ela errar, como se ela fosse escorregar. Alanna Kern também ressalta esse tratamento diferente entre a opinião feminina e a masculina: - Todo mundo dá uma gafe, repórter de campo, comentarista... E isso era sempre deixado para lá, passavam por cima e ninguém comentava. Agora, se eu desse um passo em falso, eu era super caçoada por todos eles, inclusive no ar. E isso também, com certeza, é um preconceito pelo fato de eu ser mulher. Para Mariana Capra, jornalista do Internacional de Porto Alegre, essa
diferenciação por vezes acaba afetando o psicológico, a autoestima e a confiança da mulher: - O machismo velado, de te diminuírem, de te mandarem para determinados lugares e para outros não, pelo fato de tu ser mulher... Enfim, essas pequenas coisas acabam mexendo com o nosso psicológico. E o que mais me incomoda é esse machismo velado, das pequenas coisas do dia a dia, de homens serem priorizados em determinadas pautas, de receberem as melhores oportunidades e também dos olhares de desconfiança, como se eu, por ser mulher, não merecesse estar ali [inserida no jornalismo esportivo]. Apesar da maior representatividade da mulher dentro do jornalismo, ela ainda está longe de ser maioria, principalmente dentro do jornalismo esportivo. O perfil do Jornalista Brasileiro em 2018, pesquisa realizada pela Apex Conteúdo Estratégico em parceria com a Comuniquese, traz dados de aproximadamente 26 mil profissionais, além de uma pesquisa exclusiva com 266 jornalistas que atuam em veículos de comunicação do país, onde demonstra que os homens ainda são maioria nas redações (58,2%), enquanto mulheres representam apenas 41,8% dos profissionais. Segundo a pesquisa, essa diferenciação não se restringe apenas ao jornalismo, mas também a tipos distintos de mídia, como a televisão, onde a presença feminina se aproxima da masculina (49,9% são mulheres e 50,1% são homens) e no rádio e redações, onde o número de profissionais do gênero masculino é três vezes maior. Nas editorias de esporte essa diferença é ainda mais gritante, sendo disparadamente dominada pela presença masculina, onde 84,7% são homens, enquanto as mulheres estão mais destinadas à editoria de variedades (52,5%). E, geralmente, quando as mulheres estão inseridas na área esportiva, elas tendem a ser destinadas para esportes mais amadores, como reconhece Paulo Vinícius Coelho, em Jornalismo Esportivo: “as mulheres, na maior parte, são encaminhadas para as editorias de esportes amadores. É mais fácil demonstrar conhecimento sobre vôlei, basquete e tênis, do que sobre o futebol [...] onde o machismo ainda impera”. Manoela Nogueira, assessora de comunicação do Grêmio, também fala sobre a grande diferença entre a presença masculina e a feminina no esporte, assim como o questionamento e a dúvida acerca da capacidade da mulher em lidar com temas tidos como masculinos, como o futebol. A jornalista lamenta que a mulher ainda precise se esforçar mais que os homens para conseguir conquistar um lugar de respeito na hierarquia profissional: - Especialmente na minha área, vejo que ainda somos minorias nas
rádios, durante as coletivas de imprensas, na zona mista... E ainda há, de certa forma, aquele medo de falar e mostrar que entendemos de futebol. Medo de fazer uma pergunta e ouvir: ‘pesquisou muito, hein?’, ‘tá colando de quem?’. E com a falta de mulheres em posição de destaque torna-se ainda mais difícil a busca por igualdade na profissão, como evidenciam as entrevistadas que já atuam neste meio, também citando o empoeiramento feminino como passo importante para mudar essa realidade. No artigo As barreiras das mulheres no jornalismo desportivo, a jornalista Olga Bagatini, que luta por uma maior participação feminina nas áreas esportivas, cita o caso da jornalista esportiva Gabriela Charatuba, que em 2011 quase desistiu da carreira enquanto fazia estágio em uma das maiores redações esportivas do Brasil, por conta das oportunidades desiguais evidenciadas a partir da divisão de tarefas. Gabriela percebeu que para ela eram destinadas tarefas “fáceis e burocráticas”, enquanto os homens “faziam o trabalho mais desafiador, como ir aos estádios e escrever as crônicas das partidas”. No início, Gabriela comentou que acreditava que essa diferenciação se dava pelo fato de ser mais nova, até que percebeu que se tratava de “questões de gênero, ligadas à herança patriarcal que estava na cabeça deles”. - Hoje vejo que existiu preconceito. Não me davam oportunidade de fazer o que os homens faziam. Era nítida essa diferença. No mesmo artigo, Olga comenta sobre o conhecimento feminino acerca do esporte, que é constantemente colocado à prova, onde “qualquer deslize é muito mais criticado do que uma falha cometida por um homem”. A jornalista e youtuber do canal “Segue o Baile”, Mariana Fontes também relatou experiências machistas na profissão, durante entrevista concedida à Christiana Lamoglia, em 2017, para o projeto Mulher no jornalismo esportivo: os desafios e dificuldades da profissão. - Diariamente a gente passa [por] esse tipo de preconceito. A opinião da mulher sempre vai permitir piada. A opinião da mulher sempre pode virar piada. A opinião do homem não. Por mais ridícula que seja, um homem sempre vai respeitar a opinião do outro homem e não faz chacota com o que ele diz [...]. Se o erro veio de uma mulher, ela é burra. Se o erro veio de um homem, é porque ele se distraiu. A mulher sempre vai dar brecha pra esse tipo de ‘ah, ela só tá ali porque é bonita’ ou ‘tá vendo, só fala besteira’, e
na verdade ela só falou a mesma coisa que outro homem, mas ele não tem essa margem pra piada. As pessoas tendem a respeitar mais uma opinião masculina. Fernanda Varela, do Jornal Correio, de Salvador, acha evidente esse tratamento diferenciado à mulher, ao falar da sua área, que é o jornalismo esportivo: - Acho que as pessoas às vezes acham que a mulher não tem capacidade para lidar com algumas coisas, sabe? No cenário do jornalismo, pelo menos aqui em Salvador, é bem desanimador quanto a remuneração e promoção, não tem essa perspectiva de crescer muito. Mas eu percebo que, principalmente na área do esporte, é difícil contratar uma mulher, porque as pessoas mesmo olham estranho, sabe? É comum você chegar em um treino ou cobertura e já te tratarem mal, e isso não acontece com o homem. Com o homem é tipo ‘e aí cara, beleza?’, algo super natural. Em uma tentativa de abrir portas para a mulher no meio esportivo, a Fox Sports lançou uma seleção em busca de mulheres para atuar na narração dos jogos da copa do mundo da Rússia, oportunidade que fez com que a estudante Isabelly Morais se tornasse a primeira mulher a narrar um jogo de futebol da Copa pela TV. O objetivo do programa Narra quem sabe foi constituir um time de narradoras do sexo feminino para os jogos do campeonato mundial e, com isso, a emissora se tornava a pioneira em dar espaço para mulheres em uma área considerada incomum no que diz respeito a atuação da feminina, já que nunca antes houve relatos de mulheres atuando como narradoras na televisão, principalmente em um evento de nível mundial como é o caso da Copa do Mundo. No entanto, essa iniciativa da emissora acabou gerando polêmica ao pedir fotos de corpo inteiro das candidatas para a seleção, dando margem para a interpretação que a mulher precisava seguir certo padrão para estar atuando naquela área, fortalecendo a objetificação feminina que já existe no âmbito esportivo. Quem fez o anúncio do processo seletivo, solicitando uma foto de corpo e uma de rosto, além de um portfólio em áudio, foi a agência BluemoonKN. No entanto, ao ser questionada sobre o ocorrido, a empresa justificou afirmando se tratar de um reality show. A Fox também se posicionou na época, dizendo não haver qualquer agência por trás da seleção das mulheres.
Comunicado da Fox: A Fox esclarece que nenhum projeto para narradoras no canal Fox Sports 2 para a Copa do Mundo FIFA 2018 encontra-se finalizado ou em andamento na presente data, razão pela qual, na hipótese de eventuais avanços, a FOX se compromete a divulgar em suas plataformas oficiais os detalhes tão logo estes sejam concluídos. Fonte: Uol Esporte
Comunicado da agência BluemoonKN: Lamentamos o ocorrido e pedimos desculpas a todas pessoas que se sentiram ofendidas. Vamos estar atentos para que nossa comunicação reflita o verdadeiro propósito do trabalho que vamos realizar: uma iniciativa pela igualdade de oportunidade entre homens e mulheres em todos os campos profissionais [...]. Fonte: Uol Esporte
Nas redes sociais, a repercussão quanto ao pedido das imagens das meninas foi grande. Muitos internautas se mostraram indignados com a situação.
Fonte: Twitter
As imagens evidenciam o quanto a sociedade está se tornando consciente e crítica em relação a objetificação que permeia a participação da mulher em diferentes esferas do meio profissional e social, como áreas onde a presença do homem ainda é predominante e dominante, que é o caso do jornalismo esportivo.
As próprias mulheres estão buscando fazer a sua parte para mudar essa realidade. No livro Cenas e queixas: um estudo sobre mulheres, relações violentas e a prática feminista, a professora de antropologia, Maria Filomena Gregori, considera que a mulher só conseguirá sua liberdade após se conscientizar como autônoma e independente do homem. Ela ainda comenta que isso será possível através de práticas de conscientização feminista. No meio esportivo, um exemplo dessas práticas é a Campanha Deixa Ela Trabalhar, onde jornalistas mulheres destacam aspectos de uma área muito dominada pelo machismo. O grupo Deixa Ela Trabalhar repudia casos que ocorrem diariamente com mulheres, buscando torná-los visíveis e alvo de debates, contribuindo para a desconstrução da ideia de que o futebol é um ambiente só para homens.
A violência de gênero tem traços culturais muito fortes. Desconstruí-la depende de um trabalho social em que essa questão seja debatida entre pessoas, grupos, instituições públicas e privadas, seja no mercado de trabalho ou nas faculdades, em casa, na mídia, em todo lugar possível. Marlene Strey, professora e psicóloga, reconhece essa necessidade em entrevista concedida à revista IHU On-Line: - Os direitos humanos deveriam ser servidos aos bebês junto com o leite que alimenta seu corpo. As escolas não podem escamotear esse debate. As famílias devem ser atingidas por esse debate. As instituições devem ser atingidas por esse debate. A academia, as teorias, as religiões e os meios de comunicação são centrais na disseminação do debate. Por mais que a realidade esteja longe de ter como fio condutor os direitos humanos e a igualdade, há muitas lutas em prol dessa mudança. A mais antiga, se tratando do direito da mulher, podemos dizer que é o feminismo, cuja primeira onda ocorreu entre o final do Século XIX e o início do Século XX no intuito de construir valores sociais, morais, democráticos e culturais para a inserção igualitária entre homens e mulheres na sociedade. Entretanto, a busca por esses valores sociais mais justos ainda não é reconhecida pela maioria dos homens e, muitas vezes, nem por mulheres. Isso acontece, em grande parte, por conta do desconhecimento acerca do contexto das lutas e do quanto já transformaram a vida da mulher, garantindo direitos que contribuem para uma convivência mais igualitária, sem discriminação sexual e social. Um dos motivos pelos quais as mulheres ainda não entendem ou não se sintam pertencentes ao movimento feminista pode estar ligado ao que a jornalista Fernanda Varela define como uma perigosa confusão: - A gente precisa entender primeiro o que as mulheres querem, muita gente confunde feminismo e femismo, o que é um risco altíssimo, é muito perigoso isso. É possível notar essa confusão nas redes sociais e também no dia a dia, onde muitas pessoas criam uma ideia errada acerca do feminismo, tratado muitas vezes como femismo. No caso do femismo, conceito criado por movimentos feministas, a mulher deseja ser vista e tratada como superior ao homem, tendo benefícios e tratamentos diferenciados, em muitos casos estimulando ‘ódio’ pelo ser masculino e contribuindo para um espaço mais violento. A expressão femismo classifica mulheres que desejam se
portar como superiores ao homem, o que pode, inclusive, contribuir para aumentar essa desigualdade. A concepção é diferente no feminismo, que luta por democracia e direitos iguais. Para exemplificar um pouco essa diferenciação, a jornalista Fernanda Varela explica brevemente pelo que ela, como feminista, luta: - Eu luto por igualdade. Eu quero ter os mesmos direitos que um colega meu e não quero tirar o espaço dele. Eu quero ter o direito de chegar, trabalhar e ser respeitada, como ele também é. Eu acho que falta inclusive as mulheres não terem medo desse rótulo de feminista, já que muita gente tem medo exatamente por causa dessa confusão com o femismo. Ser feminista virou sinônimo de ser chata, isso porque as pessoas não se interessam em aprender o que é o feminismo e têm medo de julgamentos, então acho que falta uma conscientização de homens e mulheres em relação ao tema, para que a gente evolua como um todo. O movimento feminista foi importante para consolidar várias conquistas das mulheres quanto aos direitos. Até os anos 60, por exemplo, elas precisavam de permissão do marido para trabalhar. Entre outras tantas conquistas ainda se pode destacar a criminalização do assédio no ambiente profissional a partir de 2011; a participação política com direito a voto autorizado, aqui no Brasil, a partir de 1932; o direito à educação escolar básica a partir de 1927 e universitária a partir de 1979; a licença maternidade a garantia de emprego durante esse período desde 1943. A partir de 1988, inclusive, o período da licença se estendeu para 120 dias, tempo mínimo adotado hoje, e que pode se estender por até 180 dias. E as lutas continuam. No âmbito do esporte, um exemplo relacionado ao jornalismo esportivo que já ganhou visibilidade mundial é a campanha Deixa Ela Trabalhar, que posiciona-se contra o assédio, a violência e o preconceito. ⚽⚽⚽ - O meu caso de agressão no Beira-rio, no domingo [03 de março de 2018], e o da repórter Bruna do Esporte Interativo, na terça seguinte, em que um torcedor do Vasco tentou beijá-la à força, ao vivo... esses dois casos em três dias foram o estopim para as jornalistas se unirem e realizarem a campanha.
A jornalista Renata Medeiros, agredida física e verbalmente por um torcedor enquanto trabalhava, destaca a importância de casos recorrentes para mobilizar as mulheres, em um grupo no WhatsApp composto por 52 jornalistas da área esportiva, dando início à campanha “Deixa Ela Trabalhar”, com o objetivo de combater o assédio vivenciado por elas no dia a dia da profissão. Nas redes sociais da campanha, elas dizem se tratar de “uma iniciativa das jornalistas que trabalham com esporte. Contra o machismo, desrespeito e assédio nos estádios, ambiente de trabalho, redações, rede social e onde quer que aconteçam.” Segundo Renata, a campanha tem três objetivos principais: o de “tornar pública uma luta que antes era muito individual e quase secreta”, unir jornalistas que passam por essas situações diariamente na profissão e passar um recado para todas as pessoas que atribuem capacidades diferentes para homens e mulheres, inferiorizando a figura feminina. A campanha, que inicialmente nasceu numa ferramenta já usada pelas jornalistas para conversar sobre casos rotineiros, não parou por aí. “Deixa Ela Trabalhar” invadiu as redes sociais, especialmente o Facebook e o Twitter, ganhando adeptos dentro e fora do país. Inúmeros foram os times de futebol que também deram apoio para as meninas, como o Internacional, Corinthians, Grêmio, Vasco, São Paulo, Palmeiras, Chapecoense, entre outros.
Fonte: Twitter
Desde o início da campanha, a visibilidade acerca do número de casos de machismo envolvendo mulheres no âmbito esportivo nunca foi tão alto, tanto pelas próprias vítimas quanto pela mídia, que notou a importância de dar espaço para os casos. As redes sociais também contribuíram para essa viralização da campanha, um marco para a figura feminina no jornalismo esportivo. As redes sociais, rapidamente, foram abrindo espaço para debates e criando uma grande rede de conexão entre as mulheres, onde elas podem conversar, discutir e encontrar formas de lutar contra a cultura machista que se reflete no jornalismo esportivo. - A campanha é importantíssima. Primeiro porque a gente consegue fazer um grande desabafo, acredito que todas as meninas que participam da campanha guardam alguma história, como eu guardo e a gente conse-
guiu desabafar. É muito importante a gente não se sentir sozinha. Essa campanha também encorajou mulheres a se posicionarem e fez com que homens se tocassem, um pouco pelo menos, e ficassem mais constrangidos de ter atos machistas. E eu enxergo isso como um avanço. Fernanda Varela, que é jornalista esportiva e também adepta ao movimento, diz que o objetivo acolhedor da campanha é importante e fundamental para que as mulheres ajudem umas às outras e sintam-se confiantes para não se calar frente aos casos diários de assédio que acontecem na profissão. A jornalista Lívia Laranjeira da SportTV explicou a campanha durante um programa da emissora, o “Redação SportTV”, e destacou a importância de mostrar casos de assédio, violência e inferiorização que acontecem todos os dias e aos quais qualquer profissional que atue na área esportiva está sujeita. - Durante muito tempo, as mulheres tiveram que aprender a lidar com o machismo, mas não queremos mais isso. Queremos que as pessoas aprendam a ter respeito. A campanha também foca a atenção para o assédio que ocorre dentro do ambiente de trabalho, por colegas e chefes. Conforme explicou a jornalista da ESPN, Bibiana Bolson W, ao El País, o objetivo é chamar a atenção não apenas para as agressões que ocorrem nos estádios. - A ideia é dar uma resposta aos assédios e às situações recentes da Bruna e da Renata, que é também um pouco a história de todas nós, que já fomos assediadas nas redações, nos estádios e sofremos violência nas redes sociais. A violência nas redes sociais é exposta pela também jornalista esportiva Gabriela Moreira, da ESPN Brasil, em entrevista para UOL, do Grupo Folha. - Eu costumo dizer que as redes sociais cansam as pessoas pelo excesso de posts de ‘bom dia’, ‘bom trabalho’ [...]. A mulher que trabalha com futebol tem outra realidade. Eu não recebo ‘bons dias’, recebo ‘vadias, ‘vagabundas’ e ‘piranhas’ diariamente na minha vida. Desde a hora que eu acordo até a hora em que estou fisicamente no estádio, esse é o tipo de tratamento que recebo. Outro ponto de luta é por mais segurança para a figura feminina no
meio esportivo. Segundo a jornalista Gabriela Moreira, da ESPN Brasil, em entrevista para a Folha de São Paulo, o meio esportivo é um ambiente onde ainda é preciso ter medo, mas as coisas já estão mudando. - Ninguém vai para o seu local de trabalho achando razoável trabalhar com medo. A imagem que eu tenho quando entro no estádio, e já tinha antes de trabalhar com esporte, é de que estava entrando em uma jaula com leões. Continuo tendo essa imagem, mas não tenho mais medo dos leões. É justamente por denunciar esse assédio vivenciado pelas mulheres em diferentes esferas do jornalismo esportivo que a campanha se torna cada vez mais importante e fundamental para mudar o cenário ainda tão desanimador. ⚽⚽⚽ A mobilização em torno da campanha “Deixa Ela Trabalhar” é um indício de que o jornalismo esportivo oferece novas perspectivas às mulheres. Repercute positivamente o fato de que as mensagens de empoderamento ganham espaço em diferentes meios e tornam-se referência para os atores envolvidos no mundo esportivo, especialmente o futebol. Para a jornalista esportiva Larissa Balieiro, já há indícios de que a campanha está transformando as pessoas. - Eu não só acredito nessa campanha, como sei que ela ajuda bastante. Nos estádios eu sempre ouço isso dos homens, vejo homens se corrigindo. Alguns conservadores discutem, mas pelo menos já entendem que existe um movimento que luta por nós. Uma jornalista até relatou nas redes sociais que tinha ido cobrir um campeonato de futsal e chegando lá foi super respeitada por outros homens. Alguns diziam para ‘deixar ela trabalhar’. E não existia tom de ironia, era de entendimento mesmo e respeito. Renata Medeiros, cujo caso foi estopim da campanha, acredita ainda que o movimento pode mudar a realidade e dirimir a dificuldade de a mulher se inserir no jornalismo esportivo. - Sim, eu acredito. Esse é o objetivo maior! Não é algo que vai mudar do dia para a noite, mas é algo que traz e vai trazer a tona discussões que antes a gente não via.
Mariana Capra, que trabalha na área de comunicação do Internacional de Porto Alegre, reforça a importância da campanha, mas acredita que é preciso mais. - Acho que é uma campanha importantíssima, já que são poucos os casos de machismo no esporte que ganham destaque na grande mídia. E campanhas como essa mostram como é comum sofrermos com esse tipo de atitude. Acho que sozinha ela não pode mudar nossa realidade, porque é uma mudança que precisa vir das pessoas, mas ela é um ótimo começo. Mariana também reforça que dar espaço à mulher é necessário para que ela seja vista como igualmente capaz, assim como acontece culturalmente com os homens. - Acho que as instituições precisam acreditar na capacidade das mulheres e dar o espaço que elas merecem como profissionais, pelo que demonstram com o seu trabalho. As pessoas precisam abrir a mente para aceitar que existem profissionais mulheres capacitadas, assim como os homens. Acho que a campanha também ajuda a conscientizar e alertar para a importância do assunto. E nós, como imprensa, também temos o dever de mostrar esses casos que sempre acontecem e passar a mensagem que somos tão capazes quanto os homens. Alanna Kern, que também atuava no jornalismo esportivo, ressalta o quão importante é debater o assunto para torná-lo cada vez mais visível. - Eu acredito que quanto mais a gente debater sobre esse assunto e não colocar para baixo do tapete, mais perto estaremos de solucionar essa questão. E isso fortalece as mulheres e também mostra aos homens que eles precisam agir de forma diferente. Então, os debates nas faculdades, nas próprias transmissões e campanhas, são alternativas que podem dar certo. E também o empoderamento feminino no sentido de ‘olha, vocês querem trabalhar com o esporte? Vocês podem trabalhar com o esporte, ser a mulher do esporte e ficar de igual para igual’. Renata conclui que o empoderamento feminino é um ponto importante para tornar ainda mais próximo o objetivo da campanha, que luta por uma profissão mais igualitária e respeitosa para as mulheres: - A diferença para mim está em provar para o público que a mulher tem a mesma capacidade que um homem, de ocupar o mesmo espaço que ele. Então talvez se começarmos a ver as mulheres narrando e comentando os jogos, em jornadas que até então eram só masculinas, a gente vai começar
a ver uma diferença. É preciso que a mulher esteja inserida no meio futebolístico naturalmente [como já acontece com o homem]. - Aconteceu comigo. - Recentemente também aconteceu comigo. - Já aconteceu com todas nós. - E não dá mais para acontecer. - Somos mulheres e profissionais. - Só queremos trabalhar em paz. - O esporte também é lugar nosso. - Chega! O apelo é contundente. Com a força e a resiliência característica da atividade jornalística, a campanha ganha espaços cada vez maiores. Não se sabe exatamente por quanto tempo ainda vai resistir com a mesma intensidade. Mas já não se trata mais de centrar a atenção apenas no meio esportivo. É pela igualdade. É pelo jornalismo. É pela mulher. Deixa Ela Trabalhar!