Guimarães Alfa e Ómega - Histórias de Cidades

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GUIMARÃES

HISTÓRIASDE CIDADES oda a nação é um nó cJue reúne milhões de Ivontades, de esforços, de acções isoladas. Em qualquer praia se pode dizer cfue ali nasceu Portugal, porque a nação teve raízes no mar. Posso dizê-lo também no fundo de cada vale ou na encosta das serras: a nação foi feita pelos homens cçue rasgiaram os solos e meteram as sementeiras. Ou nas salinas, porque o sal foi a nossa primeira exportação, e Portugal foi sempre país de mercadores. Mas se eu não pensar neste processo de gestação lenta e silenciosa mas num facto político bem determinado, então a torre diz a verdade: Aqui nasceu Portugal.

r UMA DATA: 24 DE JUNHO DE 1128

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E nasceu precisamente a 24 de Junho de 1128. O que se passou nesse dia foi que o jovem Afonso Henriques (jovem, porque andava pelos 18 anos) combateu as tropas galaico-portuguesas chefiadas pela mãe, condessa D. Teresa, e pelo marido dela, o conde galego Fernando Peres de Trava. Saiu vencedor do combate, e com isso ficou ele, Afonso Henriques, senhor do governo do condado portucalense. E que importância tinha que o condado fosse giovernado por uma condessa chamada Teresa, ou pelo fÍlho dela, um conde chamado Afonso? A explicação é esta: D. Teresa estava interessada na constituição le um reino próprio, o reino da Galiza, do qual Portugal seria uma parcela. Ora Afonso Henriques representava a força própria dessa parcela, que não queria depender dos barões da Galiza. O combate de S. Mamede representa precisamente isso: o aparecimento de um condado que se separa do conjunto galego e que passa a ser governado por um príncipe português.

r AHISTóRIADOSALEGRES JOGRAIS O combate de S. Mamede era assim contado: D. Afonso Henriques veio à batalha mas ficou vencido. Retirava-se. cabisbaixo e maltratado, quando encontrou Soeiro Mendes gue vinha com seus homens a ajudá-lo. Soeiro Mendes disse-lhe: Como vindes, Senhor, assim? D. Afonso resnondeu: Venho

muito maltratado. Meu padrasto e minha mãe estavam na batalha e arrancaram-me do campo. Soeüo repreendeu-o: Pois fizestes mal que fostes à batalha sem mim. Mas voltemos lá, e com a ajuda de Deus havemos de ganhar. E assim foi: voltaram e ganharam. Não é uma lenda popular que nos conta isto, mas um texto do século XIV, que reduz a escrito um de do tempo cantar jogralesco É a história Afonso Henriques. como um jogral a contava.

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OUEM ERA MENDES?

SOEIRO

Os eruditos perguntam: era estê Soeiro Mendes?

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Porque havia vários Soeiros Mende des: Soeiro Mendes, Mãos Águia, SoeiroMendes, OEom(queria dizer bravo), Soeiro Mendes, O Grosso. Mas talvez o próprio jogral não soubesse ao certo (apesar de um texto se referir ao Mãos ae Á.gur'a). Sabia que um forte fidaÌgo, e que era Mendes, portanto da famíIia que durante algumas gerações grovernara o condado {e Portugal. O último conde Mendes morrera, muito perto de Bragra, a combater o rei Garcia da Galiza. E se me não rlng4no é gsse o sentido do panto'do jogral: o moço Afonso Herfteues, sozinho, foi vencido, rhas SúdÈdo veio apoiadopela força dos barões da terra ficou v-goç[uem i cedor. Ouem triunfou em $u Mart'iê' junto dÔs muros do Câstelo de i de,

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HISTÓRIASDE CIDADES Guimarães, não foi portanto um homem: foi a força da terra.

r ALENDADEEGASMONIZ O mesmo sentido tem a lenda de Egas Moniz, provavelmente tão Iendária como as outras, mas muito mais célebre porque Alexandre Herculano a adoptou. O que ela diz é que Afonso Henriques estava cercado neste castelo de Guimarães pelo rei de Leão e já não tinha salvação possível. Aparece então Egas Moniz - outro grande fidalgo do Ribadouro - e deu a sua palavra de que o principe rebelde prestaria vassalagem. Contente com a promessa, o rei de Leão foi-se embora e D. Afonso Henriques conseguiu salvar-se. Mais uma vez, o apoio dos barões locais é o factor decisivo da vitória portuguesa. O resto da história é bem conhecida: Afonso Henriques não tinha prometido nada, e portanto nada teve que cumprir. O seu aio é que tinha de responder pela palavra dada; de baraço ao pescoço, em trajo de penitente, foi apresentar-se perante o rei de Leão, que, com um perdão generoso, pôs o remate feliz na história.

r ESTRANHAS HISTóNTES DE CÁROUERE Também a lenda de Santa Maria de Cárquere inclui o fiel aio Egas Moniz. D. Afonso Henriques nasceu tolhido das pernas, que estavam coladas por uma membrana. O simbolismo da situação é evidente: com as pernas coladas nunca podia ser cavaleiro. Isto é, não podia ser ninguém. Ouando o menino já tinha cinco anos, Egas Moniz teve um sonho: apareceu-lhe Santa Maria que lhe disse o que devia fazer: escavar num certo lugar, onde encontraria as ruÍnas de uma igreja soterrada, e restaurar essa igreja. O aio assim f.ez. Lá estava a igreja e o altar. E mal o menino se sentou no altar, sarou do aleijão e fez-se tão bom cavaleiro, como depois se viu. Uma outra versão de Cárquere simplifica muito as coisas: o príncipe era realgrente tolhido, e.Egas Moniz trocou-o pelo seq próprio fiIho, que, esse sim, eJË um belo rapagão. O primeiro rÊiFe Portugal nQq'bra portanto um fllho de franma1 vinha da forte cepa dos 9esi. bafões do Ribadouro. .

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GUIMARÃES r LENDAS SÃOVÉUSSOBRE

vÉus

As lendas deste género são vestígios, véus sobre véus, em que versões mais pÌóximas de nós ocultam realidades mais antigas, e essas são eco de coisas que impressionaram os contemporâneos. Este lugar é uma boa imagem disso: o claustro que se vê é do século XVI. Mas por detrás vêem-se colunas do século XII. Se recuarmos encontramos construções pré-românicas do século VIII ou talvez ainda da época visigótica. A realidade que está por detrás das lendas afonsinas pode ligar-se com a ideia de um defeito, uma fraqueza original. Essa fraqueza talvez fosse a de que ele não era completamente poÍtuguês. O pai era um cavaleiro da Borgonha, a mãe uma dama leonesa. Mas o apoio da terra deu{he força, tornou-o invencível. Foi a espada de Soeiro Mendes, a palavra de Egas Moniz, o milagre de Santa Maria, a troca das crianças? O essencial é que os portugueses assumiram o seu príncipe, fizeram dele o seu herói. E creio ser esse o sentido do ciclo lendário que envolve a figura do primeiro rei de Portugal.

r AFONSO HENRIOUES E GUIMARÃES Mas nem tudo são lendas. Há factos e documentos que provam grande ligação entre Afonso Henriques e Guimarães. Uma tradição diz que nasceu aqui; na igreja de S. Miguel está uma pia de água benta em que, diz-se, o baptizaram. Em 1128 confirmou o foral da vila, e aÍ agradece aos burgueses de Guimarães a ajuda que lhe prestaram em horas difíceis. Ora, na mesma data fez um acordo com o arcebispo de Braga em que promete recompensá{o quando a terra de Portugal já for sua. Conseguia ter consigo ao mesmo tempo Guimarães e Braga, o arcebispo e os burgueses. Não há dúvida de que era um bom político. Diz-se às vezes que foi no seu tempo que a capital mudou de Guimarães para Coimbra. Não é exacto. Nessa época não havia capital, havia rei. E é certo que D. Afonso Henriques passou muito tempo em Coimbra, e ali escolheu sepultura. A explicação é clara: a primeira "preocupação era a defesa da fron.teira, e Coimbra estava mais próxima da fronteira. Jí

r UMA CIDADE.SACRARIO O certo é que Guimarães ficou a ser para os portugueses uma cidade-sacrário, uma espécie de talismã de todos,, um lugar para as gfrandes horas nacionais. Não é de agora essa ideia. Aqui bem perto está Santa Maria da OLiveira. E vejam: à minha volta, quase ao alcance da minha mão, estão as lembranças dos momentos cruciais da história portuguesa. Primeiró o templo: a tradição diz que nasceu de um voto de Afonso Henriques por ter vencido a Batalha de Ourique. Não creio nisso, mas a tradição existe. Este templete do cruzeiro comemora a vitória de D. Afonso IV na Batalha do Salado, em que se jogou a sorte da cristandade da Espanha. E esta lápida com anjos e uma longa inscrição, é um agradecimento


HISTORIAS DE CIDADES Mas o povo diz qrJe gota a gota o mar se esgota. Hoje é um trapo de estamenha parda. Adivinham-se grandes manchas de suor, que talvez nos falem ainda da tarde de 14 de Agosto de 1385. Mas foi para recordar um sermão, não para falar de batalhas, que viemos aqui. Durante o perÍodo filipino o pelote esteve num altar e fazia-se-Ihe festa como a um santo. Ficou famoso um sermão em que um frade, dialongando com o pelote, falou só de Portugal: Pelote, tu que já foste glorioso e jovem, estás hoje de rastos, vexado, humilhado, prisioneiro... Camilo de Castelo Branco escreveu desse sermão que foi o meIhor que jamais se disse em língua portuguesa. A esse género literário, que fala do passado para criticar o presente e sugerir o futuro, chama-se sermão profético. Estas palestras não são sermões proféticos, mas para bom entendedor meia palavra basta: mais as entrelinhas que as linhas, e cada um leia como souber.

r o PAçO DAS SEGUNDAS NÚPcIAs O maior palácio de Guimarães é este paço ducal. E obra do primeiro duque de Bragança, mas já depois das segundas núpcias. Ele tinha casado com a fiiha única do condestável Nuno ÁIvares Pereira, e por isso herdara uma imensa fortuna. Talvez fosse essa a razão que levou o pai, que ^^- ^ivnTr^Ã^T s^-r a çr ^

de D. João I a Santa Maria, Por ter ganho a Batalha de Aljubarrota. Reparem: três épocas, três batathas: Ourique, Salado, Aljubarrota. Mas o altar onde se vêm agradecer, esse é sempre o mesmo: Guimarães.

r oPELOTE,OSERMÃOUnU Dentro do templo de Santa Maria da Oliveira está hoje instalado um belo museu: Museu Alberto Sampaio. Lá se podem ver algumas pierelacionadas dosas recordações com Aljubarrota. Só quero falar do pelote, a roupa que D. João I tinha vestida durante a batalha" Não era como hoje o vemos; era de seda verde, toda lavrada de finos bordados de ouro. Mas durante séculos esteve exposto como recordação. Cada um levava um fio, um fio só.

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eie casasse segunda vez, depois de enviuvar. Casou com uma moça muito jovem, D. Constança de Noronha, e era de esperar uma ninhada de filhos que obrigassem a dividir aquele imenso património. Se assim não fosse, os duques de Bragança ficariam mais poderosos que os infantes reais. Mas D. Constança não teve filhos, e foi realmente essa a situação que se veio a dar. Mas D. João I teve de estabelecer um dote a D. Constança, quando a casou, e esse dote foi fixado em 13 000 dobras. A dobra que então corria era moeda de ouro corru4,06 gramas; à cotação do ouro de agora, eram cerca de cem mil contos, Como o rei não dispunha dessa quantia, pagiou 4000 dobras e para garantia do restante entregou a vilâ de Guimarães. O marido já possuÍa um paço em Barcelos, outro em Chaves, oütro em Lisboa. Mas logo que recebeu 37


HISTÓRIASDE CIDADES Guimarães como parte do dote da mulher mandou fazer aqui um Pa1ácio muito maior que qualquer dos outros. Essa grandeza é uma afirmação: ele era bastardo, mas era o único dos irmãos a ter um Paço de dimensões régias na vila que era o berço da Monarquia.

r A ERVA DA CONDESSA SANTA Não sei se o duque de Bragança chegou a viver aqui. Ouem habitou o paço durante os longTos anos da sua viuvez foi Contança de Noronha, cuja memória quero hoje evocar, Nunca viu estas alas, que são de uma reconstrução moderna. No

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seu tempo, transformou o palácio em albergue. Sofrentes, mendigos, pedintes, todos aqui achavam tecto e agasalho. A duqueza andava de porta em porta, Ievando a esmola e a palavra afectuosa. No jardim do palácio mandou instalar um horto med$inalipara as mesinhas dos pobres. Durante muitos anos depois da sua 'morte ainda o povo revolvia a terra do horto, procurando sementes da erva da condessa santa, gue hoje não sabemos o que era, O,rgue hoje resta dessa mulher que. viveu um destino de solidão e eSquecimento é qpa lousa grosseira, trabalho,de cêlrteiro popular 3B} 1

em pedra rude da região. Está no Museu da Cidade, e nem nisso foi feita a sua úItima vontade, que era ter a última morada em S. Francisco. O povo canonizou:a, mas a memória apaga-se depressa.

r ALÍ'A E óMEGA Guimarães continua hoje a ser um lugar onde todos os portugueses se sentem mais irmãos. Está aqui a chave que desvenda vínculo profundo, enigmático, permanente, que se chama patriotismo. Foi aqui que começou essa grande aventura da existêncía nacional independen-

te. Por isso, foi aqui a alfa da nossa Pátria. Alfa, primeira letrã de um Iongo alfabeto. E ómega, termo da caminhada. Como no Regresso ao Lar, de Junqueiro: demos volta à vida, demos volta ao mundo, regressamos agora à casa em que nascemos. Parece um paradoxo mas é uma verdade: Guimarães volta a ser a primeira cidade portuguesa. Capital histórica, já eu sustentei que o devia ser. Uma timidez medrosa impede de reconhecer essa verdade, mas as acções ultrapassam as rotinas, e os factos recentes revelam a força dessa tendência para restituir a Guimarães a função r de alna materda nacionalidade.


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