"Merci beaucoup, blanco! Escrito experimento fotografia performance", Michelle Mattiuzzi

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merci beaucoup, blanco! escrito experimento fotografia performance

michelle mattiuzzi


merci beaucoup, blanco! escrito experimento fotografia performance michelle mattiuzzi

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Pode o homem branco calar? (Mombaça, 2016) A expressão “merci beaucoup, blanc!”, de origem latina, usada para designar agradecimento na França, neste caso é metáfora para nomear minha experiência em performance arte iniciada em 2010. Esta experiência estética pesquisa artística política poética pretende transitar no âmbito da fotografia ficcional e também na arte contemporânea e prosseguir nos processos de escrita performativa para tratar o ativismo político cotidiano negro. Se faz portanto de composições transformações deformações de ações cotidianas com desejo intenção palavra micropolítica migração. A negra presença como ato performático burocrático deformado na intuição instituição pública privilegiada burocratizada privada elitizada gourmetizada 2. Ao tratar do próprio corpo o porco, aproximo-me do sentimento desentendimento de não pertencimento abatimento esquecimento, e ainda como metralhadora revólver máquina tanque de guerra me coloco a provocação racial social escrita discursiva no intuito de desmascarar mascarar arrastar a falsa alva colonial interlocução entre quem são os sujeitos subjetivados defeitos senhores e sábios doutores que legitimam o pensamento fazer artístico na vida cotidiana de uma mulher negra numa metrópole fundamentalista católica escravocrata colonizada aterrorizada horrorizada. Penso que a (in) funcionalidade radicalidade ambiguidade necessária dessa escrita não está na definição individualização e essencialização da opressão, ou numa sistematização de casos provocados pela experiência de ser oprimida, mas na percepção sutil do corpo o porco acionada pelo experimento em performance arte e que, qualquer indivíduo, seja ele homem mulher branco alvo privilegiado, ou homem mulher escuro negro assimétrico, foi socializado a partir de regimes militares religiosos coloniais que subalternizam o corpo, principalmente de uma mulher negra, eu sinto. A questão principal inicial infinita é que temos uma árdua missão de

1. Essa saudação é nome da ação em performance criada no ano de 2010. Ao nomear minha ação com essa expressão, proponho uma reflexão direta sobre a linguagem escrita e crio uma inflexão na palavra blanc acrescentando a letra O. É um programa de ações que me levam a pintar meu corpo de branco.

2. Gourmet é uma palavra que tem ascendência francesa. O significado original designava “os bons apreciadores de vinho, os verdadeiros conhecedores da bebida”. Vejo essa palavra como higienização de práticas de origens precárias e de cunho popular.

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desmantelar essa ordem da “verdade”, e não trucidar os indivíduos euro centrados mas desestruturar as idéias eurocêntricas egocêntricas. Acredite, gosto de encarar o inimigo, por isso prefiro brigar junto com todas as pessoas brancas privilegiadas por projetos de lei e ações que incluam as diferenças de gênero, racial, manicomial e todas as minorias numa vida social sem violência extermínio morte, e também brigar com elas pelo “local de fala”, porque eu sei articular pensamentos. Afinal, sou uma mulher negra de classe média, cuja diferença é a de não estar no lugar pré-estabelecido que são os espaços de pobreza, marginalização e trabalhos servis, mas também não gozar do privilégio de se adequar aos espaços brancos — Eu mulher negra, fora dos padrões e das simetrias aceitas pela normatividade de uma sociedade colonial que afirma as representações da supremacia eurocêntrica, digo ao povo que fico. 4

Minha família não é financeiramente tradicional, não me possibilitou o acesso à “educação”, eu me endividei para pagar um curso universitário numa tradicional universidade católica de São Paulo, trabalhei em 3 empregos para ter um mínimo de mobilidade na metrópole e garantir os custos abusivos da universidade p(h) ilantrópica católica excludente racista. O trabalho na minha vida foi em prol de um consumo (in)consciente, um futuro que valorizasse minha (in)existência, uma dívida em prol do (des)conhecimento e por (in)consequência uma vida (ham)burguesa de longa duração. O sonho. A universidade como emancipação, esse era o meu pensamento sobre essa instituição intuição, mas na verdade o fundamentalismo burocrático deixou meu pensamento distante como uma utopia distópica. Uma grande revolta move meu corpo contra alguns colegas universitários brancos, principalmente aqueles de perfil formador de opinião, artista “branco”, com formação superior em alguma universidade pública brasileira, que aprendeu no mínimo 3 idiomas, desses que já têm seu lugar supremo garantido às custas da mobilização de outros, que tentam a qualquer custo me desqualificar moralmente, e consequentemente todas as pessoas negras que se levantam e pleiteiam os direitos que estes alunos que ali estão já possuem. Ou será que a minha presença historicamente marginalizada e segregada representa a ameaça que, devido aos resultados e aos benefícios da pacificação genocida, pode afirmar na experiência prática a eficiência do conceito de meritocracia, uma vez que a minha prova social nesses grupos foi de que aprender a pescar é fundamental, desde que se tenha a vara, a isca, o anzol e o pesqueiro (de preferência gratuito)?


A questão é: quero alardear esse mérito próprio branco escravocrata com pompa, já que a circunstância é o cinismo de que na realidade o pós colonial não existe. Não seria motivo o bastante para deixar a comunidade branca baiana paulistana carioca brasileira universitária artística sossegada e garantir uma atitude generosa por parte desses corpos (in)docentes dessas escolas públicas de arte em relação à minha experiência em performance, pois afinal, eles são doutores e supostamente têm o dom de manterem o “pensamento crítico” branco intacto e também seus brancos privilégios sozinhos. Nesse caso, fica no ar a dúvida: por que tanta oposição para garantir um direito básico às populações “naturalmente” inferiores (segundo informações forjadas pela população branca)? Ou será que o conceito da naturalidade da inferioridade da mulher negra é usado apenas quando convém à branquitude normativa acadêmica masculina feminina elitizada? No fundo, eles temem que as mulheres negras dotadas de ancestralidade, possam sistematizar em realidade fotográfica a capacidade da negligência da supremacia branca durante todos esses anos de colonização e genocídio. Definitivamente não sei onde me encaixo desencaixo reencaixo, pois tem mais de uma sociedade criada por homens negros e, ainda assim, as mulheres negras são subalternas a essa tal sociedade; meu sonho é que as próximas mulheres negras se sintam confortáveis por existir. Realmente queria crer que isso pode mudar, mas percebo que uma das saídas para pessoas negras que estão ocupando os espaços da branquitude, o mesmo lugar que eu, é não perder a sensibilidade. Ainda não consigo deixar de me identificar quando estou indo pra uma festinha normativa branca em qualquer lugar no mundo e uma mulher negra me pede dinheiro na rua ou então a mulher negra da festa está trabalhando na cozinha servindo a todos usando um turbante luxuoso (como em Salvador, Bahia) — definitivamente não acredito que o negro seja lindo por conseguir manter-se colonizado subalterno,realizando trabalhos de subserviência. Sinto agredida dolorida e ao mesmo tempo triste reprimida, quando só vejo gente que parece comigo fazendo os tais “serviços sujos”, e me recuso a isso. Nesse caso estabeleço diálogo na arte da performance e com o agenciamento de presença programo experiências na tentativa de reinscrever desorganizar o estigma de mulher negra e a monstruosidade da representação do corpo negro feminino numa metrópole colonial. Tenho o desejo de deixar claros os estigmas escravocratas e estas palavras são um manifesto acerca da minha experiência. Não estou de acordo com a representação medonha que foi imposta durante todos esses anos a todas as mulheres negras.

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“Nós, mulheres negras, fomos silenciadas, inviabilizadas, marginalizadas, estupradas por essa sociedade civil chamada Brasil. A representatividade num país onde 54% da população é negra não deveria nem ser discutida essa porca representação.”

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Então, afirmo esse escrito como manifestação do meu corpo em performatividade. Não se trata de censurar as representações, mas é necessário pautar o que me incomoda para aqueles que gozam do privilégio de não ter de lembrar a sua própria existência estereotipada pela polícia militar brasileira, criada por Dom João VI. Pergunte ao policial, ele sabe definir pessoas negras. Ao compartilhar com o mundo “merci beaucoup, blanco!” como experimento em arte e escritos lanço conjecturas sobre política, arte, ação e contemporaneidade, um modo de refletir sobre a erotização exotização racismo subalternidade do meu próprio corpo de mulher negra, numa lógica de intercâmbio de conhecimento, criação e experimentação prática a partir da linguagem artística e das experiências que evidenciam as características do meu corpo negro em ação. Meu corpo reinscreve a cartografia da violência pelo viés da estética, proponho refletir memórias de falas preconceituosas. Mas, vejam bem, a minha vontade de manifestar com violência vem ao longo do texto em fúria e nada se assemelha à tentativa de compreendê-la para exercer qualquer tipo de domínio; como um pesquisador circense que doma o seu conceito-fera. Tampouco significa o desejo de abandoná-lo após terminada a tarefa de reinscrição a qual aqui me proponho; como se uma vez “contextualizado” meu próprio corpo como objeto memória, passasse a ser inútil. Ao contrário, essas ações são micropolíticas de resistência, nesse caso escrever para livrar-me da rejeição do próprio corpo, o que significa ir em sua direção à toda velocidade na vontade de viver reexistir, encontrá-lo(me) e fazer desse encontro algo improdutivo que permita continuar a trajetória de vida. Encontrar-me “merci beaucoup, blanco!” experimento em performance arte - a minha presença negra nua - fazer com que meu corpo perpasse por todos e, assim, acabe por reconstituir-me: quero devir-corpo, independentemente daquilo em que isso possa resultar. Rejeição, exclusão, expurgação, trauma, inferioridade, opressão, horror, choque... O meu corpo de mulher negra, o meu corpo marginalizado cercado por estas ideias e elas, cada uma à sua forma,


acabam por contribuir para a definição da minha precariedade existencial social, embora a indefinição, por vezes, seja uma das minhas principais características; exatamente aquela que me possibilite o uso subversivo dos sentidos de existir no capitalismo. Migração compulsória. Paradoxal, não? Não tenho objetivo neste trabalho escrito, apenas escrevo para pensar a ambivalência dos sentidos do meu corpo de mulher negra no experimento em performance e nas suas diversas acepções, que são distintas tanto no aspecto temporal, quanto em relação aos problemas os quais dizem respeito às minhas experiências sociais entre os anos de 2010 a 2015. O que significa lidar também com as divergências de pensamentos. Como representar o que deveria permanecer irrepresentável, na lógica do homem branco privilegiado? Quais as consequências da tentativa de enunciação do indizível, no consenso do opressor, visto que o sujeito experimento da performance é uma mulher negra? O que, afinal, é a “mulher negra” na arte contemporânea? A minha pretensão com essas questões é reinscrever meu programa de ações e localizar a indefinição imprecisão da minha ação escrita sem afirmar qualquer trajetória estético-filosófica que se dirige às experiências de ser mulher negra de modo essencialista. A escrita como um gesto ansioso por desenquadrar-me em alguma experiência (tradição). Descrevo o meu desejo de estabilizar-me como uma artista atriz bailarina, ainda que por instantes, me percebo potente nessa contranarrativa sistêmica escrota excludente o que já me anunciava em pensamento na afirmação da minha existência pelos estigmas: escrever é então deixar um rastro. E no caos da precariedade de uma enunciação de mensagem direta mergulho e me detenho por um tempo, observando o cenário político e seus contornos racistas, reescrevo minha percepção com o corpo na história da arte da performance brasileira para, quase sem ar diante de tamanha alvura e pureza, vislumbrar o surgimento de mim mesma negra. Faço desfaço refaço, escrevo memórias com o corpo pintado de branco. Como o programa de ações em merci beaucoup, blanco! foi desenvolvendose no fazer, e como os discursos contemporâneos de arte pelo viés das redes sociais (Facebook, Instagram) contribuíram para essa escrita deformativa performativa.

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Sinto no corpo os olhares da opressão, as marcas de uma representação histórica de violência exclusão heterossexualidade compulsória prostituição. Com as proposições fotográficas de Alex Oliveira, Mark Dayves e Hirosuke Kitamura, me vejo. Revejo. A minha imagem. A fotografia não é um espelho. Nua. Em pêlos. Apelo. Escovar a contrapelo. A minha ação em performance me reconecta com a realidade miserável das ruas históricas da cidade de Salvador e penetra nas artes visuais pela ótica da fotografia documental. É a figura masculina que me vê em ação nas ruas, o olhar da autorização da minha ação imagem. O olhar colonial extrativista. Percebo nas minhas imagens a atualização do olhar de um cis-tema patriarcal normativo sobre o meu corpo de mulher negra precária. Sinto que são as belas imagens desses fotógrafos, precisamente, que me impulsionam para uma série de movimentos de visibilidade, a ruptura entre lugares o fazer marginal e ações executada pela borda. E nesse momento percebo a sutileza da arte extrativista e declaro nessas linhas ser a narradora da minha própria experiência. Sim, essa escrita é um manifesto movimento político de reinvindicação para reconhecimento e amor próprio. Substituo a ideia de ser lida como um lindo objeto, e reinvento a minha própria história. Esse posicionamento é sobre o meu corpo experimento performance. Com essa escrita me recoloco como sujeito e redireciono uma crítica ao olhar para todas as imagens apresentadas nesse texto, a fim de tornar explícitos os caminhos que percorri para chegar nesse escrito. É a partir dessas imagens que posso me questionar e reposicionar as representações do meu corpo em ação, aos termos (in)definidores da representação do corpo negro desde a colonização e agora na arte da performance que por mim é nomeada. As fotografias são fios de condução para a investigação sobre meu corpo que, nesse último momento, me leva em direção aos trânsitos entre cidades e reflexões acerca de uma escrita pessoal feminista sobre as experiências sociais que tive em Salvador, São Paulo e Rio de Janeiro em performance. No fundo, não consigo deixar de pensar: Mas vale mesmo a pena fazer da minha imagem experiência de vida um conceito responsável por todas as questões que põe em jogo o corpo negro, como um conceito primordial de vida fundador e

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independente? Aguentaria a minha vida artística com todo este “peso”? Essas dúvidas me possibilitam aproximar de outras linguagens, e o que faço afinal nesse escrito é exibir meus pensamentos escritos a mão, organizando em narrativa no intuito de buscar memórias que me permitam compreender-me na minha própria existência experiência emergência escrita artística política performance foda-se.

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REFERÊNCIAS FANON, F. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. FANON, F. Pele negra, máscaras brancas.Salvador : EDUFBA, 2008. GUEDES, Cintia (04 de Julho de 2016). Texto E se Hélio fosse hoje, como a favela chega ao museu na Conferência Hélio Oiticica Para Além dos Mitos, Rio de Janeiro. HOOKS bell. Postmodern Blackness. Postmodern Culture, v. 1, n. 1, Setembro 1990. Disponível em: . HOOKS bell. Yearning: Race, Gender, and Cultural Politics. Boston, Massachusetts: South End Press, 1990. 12

HOOKS bell. Black Looks: Race and Representation. Boston, Massachusetts: South End Press, 1992. HOOKS bell. Representing Whiteness in the Black Imagination. In: GROSSBERG LAWRENCE; NELSON, C. T. P. (Ed.). Cultural Studies. Londres: Routledge, 1992. HOOKS bell. Teaching to transgress: education as the practice of freedom. Nova Iorque: Routledge, 1994. MOMBAÇA, Jota. Entrevista concedida para minha pesquisa sobre Estudos sobre a branquitude. (Mattiuzzi, Michelle Entrevistador). 04 de Julho de 2016. KILOMBA, Grada. “The Mask” In : Plantation Memories Episodes of everyday Racism. Münster: Unrast Verlag, 2. Edição, 2010.


FOTOS Página 1 Marcelo Paixão, Performance Experimentando o Vermelho em Dilúvio - São Paulo, Brasil 2016. Página 2 Hirosuke Kitamura, Performance “merci beaucoup, blanco” Salvador, Brasil 2013. Página 8 Alex Oliveira, Performance “merci beaucoup, blanco” Malmö, Suécia 2013. Página 11 Hirosuke Kitamura, Performance “merci beaucoup,blanco” Salvador, Brasil 2013.

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#Publicação comissionada pela Fundação Bienal de São Paulo em ocasião da 32a Bienal de São Paulo - Incerteza Viva.

#Publication commissioned by Fundação Bienal de São Paulo on the occasion of the 32a Bienal of São Paulo - Incerteza Viva.


oficina imaginação política

lugar de agência e afetos entre modos de fazer, aprender e cuidar intervenção nos sistemas de (re-)produção e invenção de mundos implicação ética nas contradições e paradoxos das coletividades OIP é uma iniciativa que se manifesta por meio de grupos de pesquisa, leituras públicas, apresentações, oficinas, intervenções, instalações, escrita, tradução e produção de publicações como esta. no contexto da 32a bienal de são paulo: incerteza viva, a oficina se constitui pela colaboração entre jota mombaça, rita natálio, thiago de paula, valentina desideri, diego ribeiro e amilcar packer.

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FONTES NEUZEIT S, GEORGIA E UNIVERS


Michelle Mattiuzzi ex-bancรกria, exrecepcionista, ex-operadora de telemarketing, ex-auxiliar de serviรงos gerais, excuidadora de crianรงas, ex-danรงarina, exmulher, ex-atendente de corretora de seguros, ex-esposa, ex- aluna. Fui jubilada pela Universidade Federal da Bahia, por racismo institucional. Sou negra, escritora, performer, movo-me com arte de modo indisciplinar.


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