Babel - Revista de Poesia, Tradução e Crítica

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Revista de Poesia, Tradução e Crítica - n.º5 - janeiro a dezembro de 2002


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Revista de Poesia, Tradução e Crítica

Ano III - Número 5 Janeiro a Dezembro de 2002

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Revista de poesia, tradução e crítica Ano III, n.º 5 janeiro a dezembro de 2002 Santos/SP Florianópolis/SC Campinas/SP Copyright © dos editores e dos autores Editor Ademir Demarchi, revistababel@uol.com.br - Santos - SP Co-editores Marco Aurélio Cremasco, cremasco@feq.unicamp.br - Campinas - SP Mauro Faccioni Filho, mauro@creare.com.br - Florianópolis - SC Susana Scramim, susana@cfh.ufsc.br - Florianópolis - SC Editor gráfico Amir Brito Cadôr, amir@iar.unicamp.br - Campinas - SP Colaborações Todas as colaborações são bem-vindas e serão respondidas, estando, porém, sujeitas a seleção para publicação pelos editores. A opinião dos autores é de sua responsabilidade e não expressa, necessariamente, a dos editores.

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Endereço para correspondência por e-mail para os editores ou para Babel a/c Ademir Demarchi Rua Almirante Barroso, 54 Apto. 33 11075-440 Campo Grande SANTOS SP Agradecimentos

Expressamos nosso reconhecimento a todos os autores que nos enviaram textos e, em particular, o Jorge Wolff. Esta publicação contou com o apoio da FAPESP, dos professores Lygia Eluf e Celso D´Angelo, e a inestimável colaboração de Daniela Maura. Capa: gravura de Marcelo Moschetta, editada por Amir e Daniela Maura Folha de rosto, páginas 35, 44: Sergio Monteiro de Almeida Página 04: A leitura , linogravura de Amir Brito Página 30: gravura em madeira, ampliada, de Anton Neudörffer - a inicial W de um alfabeto, Nuremberg, 1601. Páginas 56, 125: desenhos de André Masson

ISSN N.º 1518-4005 ASSINATURAS: Cada exemplar custa R$ 15,00 (já incluídas as despesas postais). Pedidos para Ademir Demarchi, no e-mail ou endereço mencionados acima. Janeiro a Dezembro de 2002


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SUMÁRIO EDITORIAL 5 Murilo Mendes, traduzido por Denise Durante e Paulo de Toledo 6 POESIA HOJE BRASIL Frederico Barbosa 11 Donizete Galvão 13 Elson Fróes 14 Fernando Fábio Fiorese Furtado 18 Cristiano Moreira 23 Sérgio Nazar David 26 Contador Borges 29 Amir Brito Cadôr 31 João Filho 36 Marco Aurélio Cremasco 37 Prisca Agustoni 43 Paulo de Toledo 64 Elaine Pauvolid 80 Marcelo Ariel 81 Maria Esther Maciel 85 Ricardo Schmitt Carvalho 87 André Luiz Pinto 88 Mário Bortolotto 89 Luiz Roberto Guedes 90 Renato Rezende 108 RESENHA - Milton Hatoum 19 POESIA BRASIL Sérgio Rubens Sossélla 7 Aricy Curvello 32 ENSAIO Joca Wolff 45 Susana Scramin 109 Ana Porrúa 116 ENTREVISTA Raúl Antelo por Ademir Demarchi 65 Daniel Muxica por Mauro Faccioni Filho 99 POESIA TRADUÇÃO Leonyd Martinov, por Marco Aurelio Cremasco 50 Carl Sandburg, por Marco Aurelio Cremasco 53 Peter Greenaway, Os Fantásticos Livros de Próspero, tradução e apresentação de Maria Esther Maciel 57 Raymond Carver, por Rodrigo Lacerda 73 Jeffrey Mc Daniel, por Mauro Faccioni Filho 91 Hans Magnus Enzensberger, por amir brito 115 COLABORADORES 130 BABEL 5


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EDITORIAL Um dos aspectos mais relevantes desta edição é a atenção dada à poesia, cultura e história argentinas recentes, através da publicação do ensaio de Ana Porrúa sobre as mostras e monstros poéticos daquele país, que interage com as entrevistas que fizemos com Daniel Muxica, poeta e editor da revista Los Rollos del Mal Muerto (do qual se traduz também um poema), e Raúl Antelo, crítico radicado no Brasil com importantes reflexões sobre a literatura dos dois países. Trata-se do desdobramento de afinidades e proximidades, mas também de um diálogo já expresso nas edições anteriores, quando, ao lado de outros latino-americanos, publicamos poetas argentinos como Marina Mariasch, Martín García, Romina Freschi e Reynaldo Jimenez (peruano radicado na Argentina, editor de Tsé~Tsé). Porém, mais que a indagação sobre as poéticas em jogo e o registro sobre a situação cultural e política daquele país, destacam-se desses textos várias questões relevantes para a reflexão das práticas editoriais e de escrita poética imperantes no Brasil, remarcando o trabalho que temos feito em Babel, de arriscar publicando o quanto julgamos seja relevante mas sobretudo de intervir na cena com outro ponto de vista. Sendo assim, destaca-se também nesta edição a resenha de Milton Hatoum ao novo livro de Davi Arrigucci Jr que tem como tema a poesia reflexiva de Drummond a resenha, elogiosa, encontra seu contraponto numa outra leitura do mesmo livro, presente na entrevista de Raúl Antelo, que critica o ponto de vista adotado por Arrigucci. Como destaque apresentamos também Os Fantásticos Livros de Próspero, de Peter Greenaway, traduzidos por Maria Esther Maciel, da qual também publicamos poemas. A Greenaway soma-se o conjunto de poemas de Raymond Carver traduzidos por Rodrigo Lacerda, de Jeffrey McDaniel traduzidos por Mauro Faccioni Filho e de Carl Sandburg, traduzidos por Marco Aurélio Cremasco, reforçando o trabalho de também aprofundarmos o conhecimento das poéticas norte-americanas, conforme já tivemos oportunidade de fazer em edições anteriores destacando o próprio McDaniel, Langston Hughes, Nicholas Cristopher e Robert Lowell. Um poema de Murilo Mendes, A catástrofe , abre esta edição, ecoando a anterior, que fez referência à tragédia do World Trade Center, sinalizando que a catástrofe perdura, como sempre manipulável segundo os interesses em jogo. Ao mesmo tempo, publicamos poemas de 23 poetas brasileiros contemporâneos, num esforço significativo de leitura e seleção, no qual se destacam a irreverência de Sossélla, a de Frederico Barbosa ou a de Ricardo Schmitt, entre outros, assim como a voz de Marcelo Ariel, poeta humilde de Cubatão que vivenciou o incêndio na favela de Vila Socó, provocado por vazamento na rede da Petrobrás, há vários anos, que ainda ecoa na memória da população local e que ele retrata num poema. Somando-se a esses, oferecemos traduções de Leonid Martynov, Blaise Cendrars, Forrest Gander e Hans Magnus Enzensberger, bem como imagens de Marcelo Moschetta, Amir Brito Cadôr e Sérgio Monteiro Martins. BABEL 5


POESIA BRASIL Murilo Mendes, traduzido por Denise Durante e Paulo de Toledo LA CATASTROFE / A CATÁSTROFE A catástrofe sabe travestir-se em formas admiráveis A catástrofe pode ser pacífica / persuasiva astuta / sinuosa

A catástrofe cultiva ótimas relações com Wall Street com muitas personalidades do set internacional vive por vezes num castelo onde os lobos se nutrem de neve e notáveis atrizes fazem strip-tease para fantasmas eleitos. A catástrofe é também culta discorre sobre Heidegger / Husserl / Foucault adere ao grupo estruturalista mas o que mais ela ama é a física nuclear. A catástrofe insinua-se em nossas artérias mas antes dama educadíssima bate na porta para que haja tempo de forjar a arma que há muito ela espera. A catástrofe enfim é quase sempre reversível. Janeiro a Dezembro de 2002

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a catástrofe tem garras de veludo asas de alcedinídeo um toucado inspirado na rainha Nefertite às vezes se apresenta de meia-calça conhece bem as regras do galanteio bélico sabe usar dispositivos sutis ou violentos.


POESIA BRASIL Sérgio Rubens Sossélla

água

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os meus amigos no telhado de casa: · suba aqui, sossélla, venha ver que água mais diferente. fui pela escada móvel de madeira, lateral. · dá medo - , acrescentaram. eles haviam colhido um estranho líquido, passe a expressão num enorme plástico claro, mais ou menos espesso, compacto. o que cobre a minha máquina de escrever em tipos graúdos. água crespa, selvagem, viva, amálgama, parada, folhuda. peguei nela com a mão direita, de leve um mínimo punhado devolvido na hora. me lembrei de piotr kapitsa, da água pesada. ¿de onde caíra? emocionado, eu a batizei de newtônia. antes de voltar ao chão o transe terminara. (6.10.1999 - 4.1.2000)

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labaredas no firmamento. incrível que eu haja demorado tanto, de novo. as imagens do meu filme de cowboy incharam travando o aparelho de projeção. o anjo do senhor me dissera, na esquina: · você retorna depois, sossélla, nem olhe para lá enquanto fomos subindo pela rua almirante tamandaré. era compreensível, pois ele só falava em céu sujo. anos a fio. aí eu fui entender o significado de joão l. andar numa bicicleta com rodas quadradas num bairro obscuro e a carne moída em cima e ao lado da sepultura dela completamente louca e morta. o que chorei e briguei com deus... as cenas familiares arderam antes no fogão de lenha. foram enterrados no inferno, aqueles dois. · com um milhão de diabos navajos, ward bond não sobrou nada. 7.6.1999

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o longo caminho de volta


cuidado com os assemelhados

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eu acompanhava nossa senhora da vida. intermináveis grades de ferro e seus portões. espaçosos desertos, pátios de colégios, de igrejas de casas, de universidades, de clubes. chão encerado. um campo de futebol argentino (¿ou brasileiro?). pessoas mortas, e os restos pendurados, queimados. cemitério. tudo igual. umas inscrições em bronze, que não consegui ler. após o comentário o locutor ouviu my name is sossélla. a iná martins, a grande iná martins preocupada com o curso de arte culinária. no fim do corredor o sujeito treina a voz cantando i m sorry em cima de uma gravação dos the platters . o tio antoninho, tão bondoso, incorrupto, quase não se sente bem: foi parar no inferno por jamais me contar da minha adoção. no versículo de borges, felizes os felizes. (8.8.1999 - 28.12.1999)

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as sepulturas não mostram os dentes

se deus parar o tempo na eternidade poucos irão reparar

a maçã do amor. mais um cacófato.

teda bara usava rebites nos seios

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seios. meus carrinhos tampas de latas de leite ninho.

luar do sertão em nova iorque

[de olhos proibidos e papel de holanda, edições meio-dia, 2001)

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POESIA HOJE BRASIL Frederico Barbosa Rua da Moeda tapa na cara dos reaças

enquanto o poeta reaça na lagoa (maranhense) carioca realça a garça e condena o rock lá em recife a turma dança de negro (fear of the dark) e canta contra

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(quanto mofo gullar/tinhorão surdo ao novo patrono do pagode banal) tapa na cara dos reaças: rua da moeda dos punks do heavy do soco socorro metal pernambuco contra a paralisia mental

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enquanto um passadista síntese da direita do preconceito da retro seita brada armorial na rua da moeda camisetas negras mimetizam os arrecifes contra a onda do fácil fascio o burro coro coreto nacional-popular

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(quanto mofo intolerância tola implicância ditadura na voz do velho ariano feito dogma preconceito feito god) tapa na cara dos reaças: rua da moeda onde rock faz mais sentido ácido pesado e divertido contra a nação mesmice um louco pernambuco dadá Recife - São Paulo, fevereiro-abril de 2002

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POESIA HOJE BRASIL Donizete Galvรฃo Via Mala

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Entra na fenda, vai entre as brenhas, tateia a pedra fria, vagueia entre frestas, limos e arestas. Reverberam as รกguas que despencam das penhas. Segue pela Via Mala, vento e chuva na face, zonzo pela fala que os abismos lhe sopram. Repete aquele menino que saltava nas tรกbuas podres da cisterna: caiu no fundo do poรงo. Salvo com muito custo quer repetir o susto que lhe minara o osso.

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POESIA HOJE BRASIL Elson Fróes

DESLEITURA Uma traça rancorosa roeu-me capas e miolos saborosos de vários volumes poéticos inscreveu-se arejando e dando à luz a sua passagem entre páginas qual uma leitura selvagem

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incerta escolha a contra gosto do bom senso deletando o branco e preto da página ateatória e precisa revisando e cortando letras delícias de tinta escreveu sua crítica desentranhou paráfrases vorazes

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no escuro silêncio anônima como uma saudade traçando lentamente o instante que passa

COLCHA

a Vasko Popa

Brilha porque puxa Uma cor memorável Banha de dobras E curvas assenta

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Ausente a noite que Ricocheteia em farpas Olho aberto plurifica Na pupila de pano O corpo em concha Submerge na onda Sonhos em ronda Sombras inundam Sobre uma nuvem Somem nuncas

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RETRATA O POETA A IMPERÍCIA ATREVIDA DE UM FILÓLOGO ALIENÍGENA NO CAMPUS DA PUC QUE SE QUEIXAVA REFRATÁRIO AOS MAUS MODOS DA POESIA SOUSANDRADINA, POIS QUE ESTA NÃO LHE SERVIRA DE ESPELHO, SENÃO DEFORMANTE.

A um filólogo cuja língua áspera se enrosca corusca nos dentes de entrechoque com siderações e que chove nas línguodentais - eis o detalhe de suas palavras que aspiram vingança na amarela janela de seu sorriso Declina sem aura translitera e não exaure expectora indeciso o sol das sibilantes

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Vexame de infâmias sem força inane se arca ao peso dos pés Não examina atrás das orelhas onde exânime minguam as últimas cócegas das fricativas Ao filho do logro agora mordendo os lóbulos ensurdecido grite o errante guesa na língua estranha portuguesa As cifras que não ancoram no seu manual nem trincam a língua no salobre de sua saliva

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Impossível senso uma lira de harpas selvagens como farpas pois te falta o ar das eólias infante arfando órfão Te falta Orfeu e te embala Morfeu na baba viscosa dos teus morfemas açucarados dos teus temores se desdobra o demônio abantesma da inércia dos teus suores teus rancores pudicos teu repudio ao diverso teus tremores sísmicos em torno a ti mesmo

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No ciclo artificioso do teu pensar vive incrustado sanguessuga o falanjo da falácia sem asas e sem casa camisa de força para tua lógica fácil Nem mesmo a edição crítica revista e ampliada dos teus protopedantismos te salvariam do fogo que te afaga em dúvidas A um filólogo cuja língua não cabe na boca lingit! lingit! lingit! O sol, de todo desaparecera.

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POESIA HOJE BRASIL Fernando Fábio Fiorese Furtado

DICIONÁRIO MÍNIMO

hospital Há modos de estar doente de horizonte. Os mesmos de aprender a página pelas margens, de operar o abismo como se fora ponte, de apurar o trapézio para a primeira dor. ¦ Qual se eleva a voz num número de malabares, há o touro e o diestro, o branco e o quase. Nada que possa adiar a mão com que traças um outro.

rumor Houve tempo em que era adorado como deus das pequenas coisas. Então encolheu até um verso de Emily Dickinson, sob pseudônimo.

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flamboyant Nem palavra nem árvore. Flamboyant é bote, boiando acima da tarde. ¦ No período de floração, flamboyant é flama. Convém manter as crianças à distância. Os amantes nem tanto. ¦ Flamboyant cresce à margem do dicionário. Parce que il ne parle pas, il flambe.


RESENHA Milton Hatoum

Um grande ensaio sobre Drummond

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Coração Partido Davi Arrigucci Jr - Cosac & Naify, 2002

Se a grande poesia leva certamente a uma forma superior de crítica, a atividade do crítico, em condições raras, deveria levar a uma espécie de poesia. Essa afirmação de Jean Starobinski refere-se à obra poética de Baudelaire, e, talvez, à do próprio crítico suíço, autor de Montaigne em movimento. A meu ver, se ajusta muito bem ao ensaio de Davi Arrigucci Jr. sobre a poesia reflexiva de Carlos Drummond de Andrade. Coração Partido é uma dessas raras análises que acaba criando uma verdadeira poética sobre a obra drummondiana. O livro começa detectando o xis do problema: como, na poesia de Drummond, a reflexão se une ao sentimento e à sua expressão poética, determinando a configuração formal do poema. O amor, o humor e o trabalho são temas enredados na teia de problemas de cada poema, mas a matriz da leitura crítica reside na forma reflexiva presente na lírica de Carlos Drummond de Andrade. Para Davi Arrigucci Jr., na poética drummondiana talvez se possa dizer que o sentimento é a marca que o mundo lavra na alma. A poesia, espécie de mineração, é uma arte de lavrar palavras: inscreve a marca do sentimento numa forma de linguagem . (p. 17) O ensaio busca algo do sentido do mundo, escondido na forma poética; e a revelação desse sentido é como um enigma que, de repente, se desfaz. Decifrar o segredo da forma lavrada o poema é um percurso crítico dos mais difíceis, mas é sobretudo uma maneira prazerosa e inteligente de descoberta e conhecimento do mundo (e de nós mesmos), revelados na poesia do poeta mineiro. Assim, a crítica ilumina o mistério que envolve o enigma, espécie de pedra deslocada no caminho tortuoso da linguagem poética. Há, de fato, grandes achados nesse Coração partido. O primeiro desfaz um equívoco que se tornou lugar comum na crítica a Drummond: o contraste de expressão entre o humor inicial e a ingaia ciência posterior. O ensaio mostra que esse contraste é falso, ou apenas aparente. O que prevalece é antes uma continuidade entre o Drummond modernista, coloquial-irônico e o outro, reflexivo, de tom elevado e classicizante. Há diferenças de estilo e de modos de representar a realidade, marcadas sobretudo pelo momento histórico e as mudanças que este imprimiu na vida do poeta. Mas essas diferenças de gêneros, tons e estilo não constituem uma oposição radical, nem ocorrem em termos dilemáticos, como se lê na análise do Poema de sete faces, que junta em viés paródico, três modalidades de poesia: a cômico-satírica, a elegíaca e a idílica , sem abandonar a gravidade reflexiva. BABEL 5


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O mais importante é o modo orgânico de plasmar a matéria múltipla na unidade , um fazer poético que está no âmago da prática do trabalho de Drummond. Daí a necessidade de analisar a articulação interna de cada poema, pois nela reside a capacidade artística de integrar a multiciplicidade na unidade . (p. 32) Compreender como funciona essa articulação complexa a lógica entranhada no poema , é o principal objetivo da leitura cerrada de quatro poemas notáveis: Poema de sete faces, No meio do caminho, Áporo e Mineração do outro. Antes de analisar as contradições e o movimento interno da lírica meditativa, Davi retoma traços históricos e estéticos fundamentais da obra de Drummond. História fundada nas confissões, memórias e outros diabos melancólicos de Itabira, raízes de uma mineração fecunda, da qual emerge parte da palavra poética de Drummond. Essa lavra, que vem do passado mineiro, se enlaça com o espírito romântico, cuja herança temática e estética influiu na poesia meditativa de Drummond e, antes dele, na obra de Gonçalves Dias e sobretudo na de Mário de Andrade. Davi examina o percurso desse legado romântico, acentuando a especifidade de cada obra em sua época, e atribuindo à palavra romântico o verdadeiro significado de sua concepção poética e filosófica. A questão central é como alguns traços do pensamento romântico sobretudo de Schiller, Novalis e Schlegel repercutiu na obra de um grande poeta do nosso tempo. Como o poeta sentimental de Schiller, Drummond faz da impossibilidade de ser espontâneo o caminho dificultoso da procura da poesia por via da reflexão . (p. 58) A reflexão é uma via de acesso à decifração da pessoa amada e, paradoxalmente, o empecilho diante do caminho tortuoso e difícil para o coração, como aparece no poema Mineração do outro. Mas há ainda uma veia cômica na lírica meditativa de Drummond, que marca uma atitude ambivalente entre o retraimento e a expansão, estados de alma conflitantes, entranhados nas sombras da infância da família, de Minas e sua paisagem, mas porosas à vida da metrópole e do mundo moderno. Itabira de Mato Dentro, Belo Horizonte e Rio são mundos contrastantes, mas a memória da província sempre reaparece como fantasmas do passado. Com essa atitude ambivalente, salienta Davi, Drummond descobriu um método para aparar o choque de surpresa, ou a eventual carga cômica, em dobras reflexivas, de modo que tudo nele tende a adquirir a densidade de um mundo interior sério e problemático, provocando o desconcerto, em contratste com a face álacre da comicidade . (p.30) Para entender como se dá essa ambivalência de tom, o ensaio mostra como o chiste relâmpago exterior da fantasia, segundo Schlegel é capaz de juntar elementos divergentes e contrastantes, como nos poemas No meio do caminho, Poema de sete faces, entre outros. O poder de iluminação do chiste que Davi já analisara na poesia de José Paulo Paes (ver Agora é tudo história . In: Outros achados e perdidos, Cia. das Letras), vai muito além de uma mera brincadeira verbal. O chiste não é gratuito nem se esgota em si mesmo, pois atua como um procedimento de articulação no poema entre as muitas faces que constituem a pluralidade do mundo . (p. 33) No poema No


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meio do caminho, o chiste se combina a um núcleo grave e reflexivo, que é o ângulo mais difícil de ser compreendido e analisado. A repetição da pedra no meio do caminho, escrita de várias maneiras, pode ser lida como um jogo algo cômico ou uma brincadeira; mas é uma repetição que incomoda o leitor, pois conota algo de terrível, cujo efeito corrói a alma, ensimesmada e abatida diante da pedra inflexível . Além disso, a ausência da pedra em certo momento e lugar do poema, dificulta tudo: Nunca me esquecerei desse acontecimento/na vida de minhas retinas tão fatigadas. O contraste desses versos imprevisíveis e dissonantes com a repetição da pedra irremovível no caminho acentua o esforço da reflexão, imprimindo no sujeito lírico um sentimento de perplexidade, exaustão e impotência do Eu diante da vida e seus impasses. É na compreensão dessa aporia que reside a dificuldade da leitura, por onde a análise se envereda e tenta esclarecer. Dificuldade também na compreensão do Áporo, um poema encapsulado, que irradia enigmas e tem sido um grande desafio à crítica. O poema se abre para o impasse: a situação sem saída do inseto, que logo causa perplexidade ao leitor. Para entender o poema, deve-se entrar no objeto verbal, pequeno e complicado como um labirinto em miniatura, até chegar à compreensão da metamorfose do inseto em orquídea: ambos se distanciam pela própria natureza de cada um, mas se referem ao mesmo significante na origem, fazendo parte de uma mesma históra desenvolvida no texto . (p.81) O drama do trabalho na figura do inseto que cava sem alarme aponta para o drama do poeta, revelando pela reflexão, a perplexidade do que fazer num país bloqueado . (p.96) O ensaio arma as relações do poema com a história (o momento do Estado Novo), mas não se esgota no fato exterior: vai muito além, pois o que está em jogo no movimento da construção do inseto é um horizonte histórico mais abrangente, que inclui a dimensão social do trabalho, a dificuldade do fazer artístico e o rebaixamento do trabalho poético que, desde o século 19, é considerado inútil ou marginalizado no mundo moderno, voltado para o mercado e a produção. É o conteúdo da verdade histórica que se lê nas entrelinhas dessa historieta lavrada em forma poética, cuja saída possível (e política) se encontra na flor-poema que se configura nos três últimos versos: em verde, sozinha,/antieuclidiana,/uma orquídea forma-se. Assim, escape e esperança fazem do impasse a mudança num horizonte político em que há lugar, ainda que mínimo, para a utopia. O alcance crítico dos quatro ensaios vai muito além dos poemas analisados. No último Amor: teia de problemas sobre Mineração do outro, o leitor se depara com a beleza da prosa do crítico num movimento inquiridor e vertiginoso na busca amorosa e sempre fugidia, latente no interior do poema. É como se nas aporias de Drummond a leitura desvendasse a essência de um problema que reside de fato na experiência sofrida dos dramas concretos da existência para os quais não se tem resposta (p. 142). Experiência que pulsa na linguagem, na arquitetura do poema, cuja articulação complexa os ensaios estudam em profundidade. Na teia de problemas em que se BABEL 5


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enreda a poesia reflexiva de Drummond, a experiência do amor talvez seja o mais complicado, pois envolve não apenas o desejo do conhecimento do outro, como também o de quem ama. Esse espelhamento, de que o leitor participa, só se desfaz no fim de Mineração do outro, onde o movimento do pensamento renuncia ao trabalho analítico de querer comprender (o amor e o ser amado), e se embebe definitivamente na imagem, fechando-se com a noite e o enigma da salamandra . Logo nos vem à mente outros grandes poemas drummondianos sobre o mesmo tema e problema: o soneto A falta que ama e o belíssimo Destruição, ambos movidos por perguntas e giros do pensamento sobre a dificuldade de amar. Davi Arrigucci Jr. escolheu alguns dos poemas mais difíceis da poesia brasileira contemporânea. Desafiou o mais enigmático de Drummond, mas só o difícil é estimulante , como disse o poeta e prosador cubano José Lezama Lima. Mostrou, nas análises cerradas, como a poesia de Drummond vai além da meditação sobre o ato poético e sobre a dificuldade que surge no percurso da própria meditação como condição da difícil passagem para a sua compreensão. No fim do ensaio, o leitor entende como o poeta mineiro encontra uma saída no interior de si mesmo, no modo de ser da própria poesia, criando uma verdadeira teoria poética: poesia contemplada. O mesmo se pode dizer desse Coração partido, cuja bela edição é enriquecida por desenhos de Paulo Pasta. Os giros do pensamento e das idéias inovadoras da leitura crítica aprofundam e esclarecem os da poesia de Drummond. E é nesse sentido que a crítica se aproxima a uma espécie de poética, pois esse ensaio magnífico pode ser lido também como uma poesia pensada.

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POESIA HOJE BRASIL Cristiano Moreira

insumo vital do corpo para o corpo na alegoria de Vico

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cresce a carne ramos de hera vermelha adornando ossos de gigantes

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Saltam faíscas do bate-bigorna imperial Wally Salomão a

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o arrebol rouba o olhar na orla de Arzão despertam epoméias nuvens navegantes

tem bagre morto na areia vem vindo vigário sua unção é a ceia e

o olho de ouro corre águas e sargaços acorda no arrasto o camarão c bênçãos de netuno banham o sapiens sapiens lava anágua leva rede corrico siri sarico

boto é gente ligeiro feito pluma e vento galante navegador salva vidas costeiro

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f simboliza o líquido retorno passado voltando ao sempre venha ter o ser uma navilouca sobre o tronco broto de mente

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tenho anzóis brotando em minha língua um grão de areia ricocheteia entre os dentes estranha sensação no vazio que acolhe o eco a língua percorre um rolo de arame farpado nos cotovelos do rio vejo dor é óleo a margem

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cactos caminham de um lado a outro da inércia no vapor oriundo destas terras tão secas apenas uma flor de estranheza e encanto cresce no assoalho empoeirado sob cama de molas cansadas onde a voz reitera-se a cada rebojo de imagens

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POESIA HOJE BRASIL Sérgio Nazar David

Ela vive de mim 1. Veja este braço que em volta do corpo dela. Mal pode avançar nas conchas do banco. Se outro homem esteve aqui, arrancou areia, seixos e o lodo colorido que pomos rente às pedras pra divertir os videntes. O último foi um forasteiro que prometeu mundos e fundos e fugiu com outro na noite de Ano Bom. Agora queremos aprender. Ela me disse primeiro pelas mãos. Então fiquei ali dentro da palma esperando a hora de me mover sem luta. (Pare um pouco de pensar para não se perder com o que é banal.) 27

A gente sempre pensa não é preciso mais nada, pode parar tudo. Mas é assim que é, não pára de acontecer, e mal podemos acompanhar a boca, as coxas, avançando sempre sem fé. Pensávamos que era aquele lábio, aquele dente, ou ainda os rios descompostos que elegêramos para o pálido janeiro. Depois fomos descobrindo não era isso, não era eu, nem ela, nem nenhuma parte dos beijos, por mais que voltemos. Antes do mundo já sonhávamos. Era um mundo estranho que queríamos. Estivemos lá. Mas esquecemos o que ele era. Queremos lembrar. E o que lembramos é mar.

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2. Homem nenhum pode amar assim nem entrar na vida com sanha de touros, cada parte de nós querendo uma vida diferente. Só se desce um abismo com os olhos no chão. Ontem bebemos no português da rua detrás da primeiro de março. É preciso deixar que caiam e se rasguem os versos do passado, morra uma hora o reme-reme pra que haja o homem. Menos que isso é podridão, vida limpa sem nada dentro.

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Não é assim. Pode ir fechando o zíper. Vamos comer um cachorro quente? Você entendeu muito bem a parada, e com olhos de fera foi com os dentes ao que arde. Não sei mais me deixar cortar tão facilmente. Talvez a coisa peça agora um tempo pra pensar direito. Ou nervos de aço pra agüentar o que não quer de minha parte ficar de novo pra depois. Não dá pra entrar direto, por isso hoje ficamos aqui, com o segredo na pele de fora em que aperto os ossos: sou clandestino, mas gosto de pegar com duas mãos. Liga o carro! É a polícia! Pássaros selvagens encharcam a boca.

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3. Desceu os abismos de Creta com rifles ou sem rifles. Todo homem é uma fera e é sem disfarces mesmo que é. Algum babaca sentenciará não é preciso tudo isto, hoje foi demais , mas só a pimenta do cu da gente é pimenta. Gustavo telefonou perguntando porque ela não telefonou. Ela disse que não telefonou porque ficou esperando ele telefonar. Gustavo disse que até se aprontou (era mentira) e ficou esperando o chamado dela. Quer dizer, ninguém comeu ninguém. Ela mudou de assunto e esperou melhor sorte.

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Não se espantem, entretanto, os delicados, nem queiram que a vida seja o que não é. Ele dirá mais tarde que pra ter o que quer pode quebrar paredes, gritar entre as asas, arder os próprios músculos. De fato, chegará mesmo a improvisar um degrau com uma caixa para ficar na altura de comer. Ela sentirá seu cano de ferro dominando-a monstruosamente e por alguns instantes dirá é muito, é muito... E, venhamos, é demais mesmo. Ninguém deveria querer tanto. Adorei ser chamado de moleque, ele dirá depois. Nós talvez sorriremos agora com desdém deste drama vulgar. Pensamos que temos o corpo mais limpo e mais amor no coração.

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POESIA HOJE BRASIL Contador Borges

Olhos acesos no álcool. O incêndio ao mesmo tempo nos une e separa. Nada aprendi com o tempo, só com as cinzas na dissolução das coisas íntimas, dos gestos assolados pelo instante (seu brilho cego), onde a voz pequena (seu júbilo) socorre a alma em meio a escombros. Para que serve o poema? A dança das vogais rarefeitas? Tocar com fúria enovelada em ternura os ombros grandes dos eventos díspares? E como quem depõe os gestos no escuro ou desarma os olhos cobrindo o tumulto, sacrifica-se o tempo às palavras derramadas pela pálpebra. Melhor que isso é beber a esmo o leite negro do esquecimento. #

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Deserto em nuvem, a folha branca sabe que irá chover, mas tem de esperar. Enquanto espera concebe a chuva num sonho incandescente. Eis o momento em que o projeto se vinga deixando para trás a solidão caudalosa do rascunho em perene estado de guerra com as adjacências dos limites sempre renovados quando se aproxima nas patas de um cavalo efêmero sem tocar o solo: Pégaso em forma de incêndio. O móvel do desejo se dilui. E quando o braço extremo das circunstâncias é finalmente vencido (imobilizado a nosso favor) na luta de ferro com os demônios do acaso e as linhas sem ternura dos acontecimentos mais díspares, sua carne se desnuda até o dócil limite com os ossos. O espírito então adquire um rubor que acende a ocasião coroando a mesa do instante, mas nada mais sobrou para os olhos. O que interessa está além, no chão ligeiro da alegoria, na aderência sublime à sola dos pés de Aquiles, tais os incalculáveis subterfúgios da conquista. O tempo de atuação já passou. Nada resta a fazer. O ideal está de volta no outro lado do horizonte banhado e vestido com as cores de sua antiga nudez.

BABEL 5


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Considerar tudo a partir do que vibra. Doravante será esse o rumo a ser tomado na exuberância onde os sentidos se arrepiam ao tocar as coisas e encarná-las na aspereza de seus pêlos vivos. O mar de ressonâncias é o horizonte de onde derivaremos nosso fluxo mais nítido e toda correnteza o efeito da concha mais íntima de que se tem notícia. Nenhum ressaibo ou fragrância indevidos passarão rente aos elementos de ataque com que o poema costuma abrir ouvidos e pálpebras à efervescência. Suas falanges derrubarão a linha divisória com a estranheza, pois a essa altura todos comungarão da herança que congrega os ânimos adeptos dos atalhos e desvios altaneiros. Neste cenário, até a última pedra da miragem, tudo será concluído em questão de escombros e ruínas. E todo desamparo será sua própria bandeira desfraldada ao bater as pálpebras.

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POESIA HOJE BRASIL Amir Brito Cadôr

sem aspas, torquato um pintor, quando morre: yves klein blue naná dispensa instrumentos: o corpo é música um poeta não se faz

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com versos

um poema quase pronto a mão do escriba a ignorância dos tipógrafos os esforços dos autores para preservar uma inquietude:

BABEL 5


POESIA HOJE BRASIL Aricy Curvello O ACAMPAMENTO (Porto de Trombetas, Pará) 1. Barracões contra o rio, o ermo contra as tábuas. Nenhum sinal para fixar-te, nenhum, senão fluxo e passagem, o significado para as águas, a relva pisada em volta das casas. Nenhum céu, nenhum, tetos de alumínio e uma floresta de chagas. Do que deixaste atrás e do que ainda virá de mais longe sobre mais sombra, chão noturno, mais noite que a noite, mugem na Amazônia palavras sem poema absurda coleção de pragas. Onde a floresta começa, o Brasil acaba?

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2. o que é deus e o que é fera andavam somados num calafrio irradiação da manhã visível o ar a ferocidade do ar caem do céu antes da chuva esse inarticulado grito parece a voz da luz 3. Siquer um povoado de moscas. Um rasgão, no devastado, para se residir. Para os lados e por detrás, floresta ainda. Adiante, para a frente, na outra margem do rio. A pesar nos olhos e além do som. No princípio do mundo, a madeira atroz. Silêncio da manhã nascendo em árvores. Vinte casas interminadas, barracões de tábuas, um embarcadouro de nada, e os sonhos passam. Abriam-se cozinhas de gorduras, ossos, limites, instante veloz, irreparável. Janeiro a Dezembro de 2002


Sobre o rio a cor balançava ainda os caminhos da luz. E a luz em vento de clorofila e galhos derrubados, árvores porém verdes, vivas ainda, ainda, e só tens um instante. Só a rapidez no acampamento contra a floresta e o rio. 4. Os verbos ardem. Braços grimpam. Não nomes, não rostos. Não de nenhuma aparência, como cimento e tijolos, chegavam um povo de morenos e peixes de seda, a frutapupunha, o verniz de tartarugas como crianças. E a longa, longa exposição de coisas do suor, do calor e do apetite. Um instante para o ruído e o brilho. Verde arder e consumir-se. (Nós nos alimentamos do que morre.) Osso e envoltura, máscara e movimento, trabalhar entre fumos e clangores, mundo verdeal rangente na afombra, oficina de barulhos e marcenaria de pregos cantantes. (Evoco o dia trabalhar, não uma palavra cortada da vida.) 34

5. A terra verdesuja na luz limpíssima daqueles dias naqueles dias. A verdeluz, a luz que brilhava na luz, poder imponderável. O que vejo: não mais verei. Ilhas sem mim. E nada permanece muito, o fulgor nos rios da claridade, no arquipélago dos lagos, pássarostucanos brilhando nos cimos, nos cimos do dia, castanheiras, a jaquirana-bóia, mungubas, samaúmas. Roçar de asas, colorados estandartes em bandos de vôos se levantavam. Não, não assassinar a luz. Não me disseram a morte próxima da orquídea e do rato silvestre, aldeias de ninhos. Abrem, rasgam, arrebentam a terra para as florestas BABEL 5


6. Era verde e outras cores (queimadas) se acrescentaram. Transitamos na opinião ilusória. Acampados no provisório, sempre, sinais imprestáveis e um tempo sem respostas, um tempo em que se viaja sem bagagem. Para trás, apodrecer, cadáveres. Verde mover-se no grande ir-se de tudo, no fruto das casas de tábuas, nos galpões de sujos instrumentos, núcleos esparsos de povo, nos povoados perdidos. no vasto país que se descobre em barcos de grosso casco e marcha lenta. No tempo. No tempo o revelarás. No tempo em que quase tudo é tarde. No tempo, nessa paisagem além da paisagem, quando a imagem do tempo passar, significados para as águas, relva pisada em volta das casas.

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perecerem sob as primeiras, primeiras estradas. Os homens não buscam a luz do rio. Querem apenas bauxita bauxita bauxita e alumínio. O Governo quer alumínio ferro ouro cobre cassiterita chumbo níquel. Aqui, até aqui, o horror veio tecer diademas de injúrias, meu salário.


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Sergio Monteiro de Almeida

BABEL 5


POESIA HOJE BRASIL João Filho

sçáyber-sappo inexistinício, velhonovo se fode! ts... ts... Realmente, a poesia brasileira, ou extrasublira ou duca-decodi... ou pó-pisca-pisca ou pó-pedreira. tem berro grosso que dindinheira, se farejar cifras o rabo sacode, rabo-rombudo em caray cadeira senta e vegeta sua ínclita ode. a mesa é farta, vai lá, meta a fuça, com olho, unha, dente esmiúça, se lhe aprouver no reto retém. 37

bostiões babujam certo vintém, pr este só vale o que purga e pulsa; quem come prego sabe o cu que tem.

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POESIA HOJE BRASIL Marco Aurélio Cremasco SÃO SEBASTIÃO DE GUARACI Tempus edax rerum (Ovídio) I Cidade sem história não há glória nem idade

paulista na incursão pelas matas do Prata na ambição de conquista

São pedras sobre pedras

V No sertão, o bandeirante irrita-se com o jesuíta habitante da Missão

Constrói-se um templo o vento o destrói As pedras sobre pedras serão pedras sob pedras Das Capitanias às Reduções Jesuíticas (1590-1651)

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II Portugal! Navegue o vento O Tempo entregue às naus são mares violentados naufragados nos lares que vão sendo vislumbrados na fronte do monte avistado no Descobrimento III Vera Santa Cruz na luz de tanta espera aguarda enfim Martim, o guarda da riqueza prometida à vida portuguesa IV Portugal inicia tirania nos dias de Capitania no litoral brasileiro e busca o agouro d ouro que ofusca o aventureiro

BABEL 5

O peso vindo do índio preso mal paga a saga de Portugal VI Palácio de Santo Inácio Valioso filão ao capitão Raposo que impõe o fim às Reduções Corações carmins depõem a amerígena chacina nas ruínas indígenas VII Qual a cultura que Deus deu à altura de Portugal? Desbravar anos de oceanos ou dizimar vidas humanas em desumanas conquistas? VIII O pranto naufraga vitórias inglórias e apaga o canto imposto pela fúria Há lamúria O desgosto


doentio encena o passado cercado apenas dos rios

que encobriu o Norte no transporte vazio

IX Os rios correm vadios

ao Viamão pela Serra do Mar

separando terras e vestes A oeste o Paraná esperando

XIII O Norte vestiu-se de madeira Aroeira abriu-se à sorte

do leste que nasça o Piquiri e o Tibagi renasça no reste

dos passos na ânsia de romper

Os Séculos do Desconhecimento: O Paraná-Sul (1648-1771) X A rota do Prata trai atrai à catarata que brota no encontro da antiga Missão a expedição que obriga Afonso Botelho, o bravio, ir descobrir o rio vermelho XI O Ivaí assim descoberto entreaberto no fim do Tibagi conduz a expedição ao coração da luz

e vencer a distância, o fracasso do futuro exposto no rosto imaturo do primeiro pé-vermelho XIV Até o assédio ao médio Itararé aquela região não se revela Obra otimista à vista? O que sobra? A Descoberta do Paraná-Norte (1811-1908) XV O Norte se veda mas hospeda a sorte

flava de Guarapuava

de paulistas e mineiros: Primeiros sertanistas

XII O ardil para persuadir as autoridades da necessidade de unir o Brasil

nas caravanas de andarilhos pelos trilhos da Sorocabana

faz de ponte o Paraná Há quem aponte o audaz

XVI Sertão! Ter na mente a futura cafeicultura presente na visão

tropeiro responsável pelo repudiável nevoeiro

do sertanejo que tentou abraçou o desejo

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do Panema ao norte/ No sul o Iguaçu: suporte e algema


e o dilema de s arriscar em atravessar o Panema A Colonização: As Novas Bandeiras (1920-1941) XVII A intensa propaganda da comercialização daquela bela região comanda a crença de aventureiros, viajantes migrantes, estrangeiros em um progressivo polo de solo produtivo

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XVIII Abrir as portas a esmo mesmo tortas/ Repartir

XXI O súdito da rainha tinha o lúdico compromisso com a riqueza da realeza/ Para isso cerra confraria com uma companhia de terras do Paraná afim da plantação de algodão nos confins de Cambará XXII O latifundiário no prazer de ser depositário de infinitos bens além dos transcritos compra-abandona solos benditos

o chão do Estado tutelado na ação

XXIII A terra é o ventre O ente que encerra

de negociantes que visam lucros xucros e pisam no semelhante

a dourada existência da essência semeada

XIX A facilidade da oferta de glebas leva a certa viabilidade

no manuseio do arado cravado no seu seio

na aquisição, por um escocês burguês, de um quinhão de

XXIV Cortar picadas nas chapadas/ Ocupar

dezenas, milhares de hectares do Panema

demarcar a posse que endosse o lar

ao Tibagi avançando alcançando o Ivaí

de quem chega primeiro no terreiro que o aconchega sem desdém

XX A saudade acetina a realeza inglesa que imagina uma cidadeprima lembrando as fontes de Londres quando-em-quando em Londrina BABEL 5

XXV Escolhido o lote o dote oferecido do pioneiro seria o dia cafeeiro


mata faz a nata dos incontidos populares levantar povoados e trincheiras na beira dos roçados

da enxada de gente labrusca na busca da semente dourada

XXX A ocupação de glebas devolutas recruta quem erra pela região

XXVII O lavrador lavra a dor

co a falsidade na feitura da escritura de propriedade

na planta que planta

e o homem que pretende plantar para saciar a crescente fome

todo dia Todo dia

XXXI No abandonado colo do solo indomado

a labuta A luta

descansa a Morte consorte da Vingança

contra a ditadura da miséria

pronta para o maldito conflito que desponta

XXVIII O Homem arrasta correntes A semente, gasta, consome

aos grileiros em guerra pelas terras dos posseiros

a mão calejada na roçada do enxadão

XXXII Atrás deste cenário do Norte do Paraná está o forte proprietário que traz

que limpa o capricho dos carrapichos e garimpa jazidas santificadas recheadas de vida As terras devolutas (1942-1949) XXIX A diária revelação roxa na coxa ascenção fundiária

o atrito entre gente simplória A escória inerente ao conflito espalha-se em brasa acampada em cada casa de palha A Guerra dos Posseiros (1949-1951) XXXIII Na redondeza que abriga Jaguapitã o afã da Liga Camponesa

no desbravar dos hectares perdidos na

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XXVI A fé do sertanejo ilumina Ensina o manejo do café Lacera o que de bom há na terra Desenterra o dom que se espera


cria a urgência da consciência de um dia

ao enviar soldados crus à Porecatu motivados para matar

tomar a aragem da coragem para lutar

XXXVIII

XXXIV Na escuta latente do litígio o vestígio iminente da luta vaticina o surgimento de um povoado cercado do sofrimento que se dissemina no entendimento destinado ao desastre de um combate acalorado e violento XXXV O governador malfadado promete ao oeste do Estado ao agricultor

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coberto de aflição um chão perto do Ivaí e uma roça com palhoças em Paranavaí XXXVI Desmanchados os barracos os revoltados são ludibriados

Posseiro em fama de guerra desenferra a gana de brasileiros na hipótese eldorada do café A pé em uma cansada apoteose ia na fria madrugada alvejada de sombria profecia XIL A alvorada desperta alerta a jagunçada ao estalido do orvalho nos galhos e ao zumbido dos tiros que vão na direção dos grilos XL A calma ferida no alvoro do choro de luzidas almas quebrou-se ensangüentada na rajada a quem chegou atrasado na mira do desalmado

pelo Estado na promessa em vão da certidão da terra/ Violados

XLI O sangue derramado esparramado pelo mangue

na dignidade declarariam luta armada na invernada aos recrutas que viriam sem piedade

procria dores flores vazias

XXXVII Enfermo e aliado ao poderoso ocioso latifundiário, o governo partilha o tumulto insepulto da guerrilha

BABEL 5

XLII Que nome Deus deu ao Homem? senão o de barro no escarro da Criação XLIII A legalidade escrita em documentos


sangrentos de contradita veracidade contrapõe-se alheio ao libertário e primário anseio das nações:

XLVII Sonhar sem nem duvidar

Ter a terra e nela plantar o feito é o direito de tirar o que dela se enterra para viver

O futuro é o brilho de um tiro no escuro

XLIV Um decreto determina na neblina de ser correto o veredito à região da legião dos proscritos: não impedirão a vida na vila de São Sebastião XLV Os tropeços no decorrer da caminhada banhada no desprazer do preço

XLVIII Do sonhador resta a sina que ensina a festa na dor Tantos passos cansados no passado de pesados prantos deixam nos astros a certeza da nobreza dos rastros Enriqueçam, ainda que esquecida, Guaracy 3a. Versão (07/05/2002)

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da revolta de quem lutou pelo seu pão Não sofreu pesadelos ou apagou a volta aguerrida na trajetória maculada de jornadas inglórias e fratricidas

O Princípio e A Incógnita (1954-?) XLVI Não basta o verme inerme que se arrasta no coração Não basta o atrito do chão com a mão no rito da vasta criação Há o Tempo desvalido varrido pelo vento

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POESIA HOJE BRASIL Prisca Agustoni NA CADEIRA AZUL

Tudo o possível se inverte em silêncio. A mulher se entrega ao abraço de amanhã que não será precário. Entre o inverno e o esquecimento as mãos entelham um desejo.

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Na cadeira azul os monólogos não cumpridos. CÍRCULO

Estamos protegidas. Sabemos as coisas duplas, cada objeto sua amarra. O vaso ilumina gestações e ruídos, irmãos na frente do divino. Nós âncoras ao fogo, com as mãos já distantes.

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Sergio Monteiro de Almeida

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Uma poesia política pode ser abertamente política; ou, muito melhor do que isso, atravessar a matéria do socius sem necessitar de se abrir para nada; ou ainda, ao contrário, permitindo-se uma abertura ao fazer dela um ato de erotismo, e apenas então ser organicamente política. Uma poesia da política é cerradamente poética, e violentamente reprimida, na medida em que é objeto de permanente controle e censura. A marginalidade poética dos setenta no Brasil representa, através dos profundos limites de meios discursivos impostos por uma estrutura de poder militarizada ilimitadamente, uma política instalada nos corpos, com o detalhe de que em boa parte acabaria adotando a retórica da república tropicalista libertária da radiodifusão, da publicidade e da propaganda típicas do grupo (sempre) no poder. A órbita é aquela da violência institucional, e aquela da violência popular, confrontadas como nunca, paralelamente à descoberta das práticas alternativas radicais, que em Néstor Perlongher como em Glauber Rocha, como em Osvaldo Lamborghini, como em Torquato Neto, e tanta gente deságuam nas experiências com drogas escassamente genéricas. No caso do poetaantropólogo argentino, radicado e morto em São Paulo, sobretudo nos experimentos mais tardios com o amazônico Daime, Santo Daime. Mas, à diferença das já decantadas patrulhas repressivas a serviço do consenso ideológico geral, as substâncias ilegais são vistas e consumidas enquanto motores de processos intensamente políticos porque orgânicos, limítrofes e viscerais de transgressão da ordem política e social, e os poemas que são também prosas lidos e consumidos enquanto espessos ou, ao contrário, finos tecidos de signos, na contracorrente dos enunciados maiores e estabelecidos, públicos e oficiais. E, neste ponto, ao menos em seus melhores momentos, tanto no caso da lama, do lamê barroso do Prata, quanto da caatinga poética modorrenta e esquelética dos poetinhas marginais. Que modos de crônica política podemos ler em toda essa débil poesia quase finissecular? Sua vida e sua época podem ser belas? O traço característico deste cenário, mesmo que ainda embebido numa luta finalista, avança sob a forma das diferentes diferenças e das diversas mesclas: a busca da debilidade ou minoridade contra todo tipo de monolitos, sejam eles objetos ou sujeitos, textos ou autores, em nome de uma contaminação ativa e coletiva. Direto da boca de um de seus BABEL 5

Cronicamente inviável: a (anti)poesia setentona

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POESIA BRASIL / ENSAIO Joca Wolff


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lídimos e brasileiros representantes do Piauí à Bahia, e ao Rio , tratava-se, na melhor linhagem modernista escrachada, de afanar e afiar a GELETTE, fusão de geléia com gilette, conceitos reconhecidamente básicos para a compreensão profunda dos trópicos, conforme explicaria outro poeta baiano, Wally Salomão, em crônica bufa intitulada O suicídio enquanto paráfrase ou Torquato Neto esqueceu as aspas ou Torquato Marginália Neto . De todo modo, a heterogeneidade do conceito de texto em setenta, utilizando-se de discursos tidos como baixos e anti-estéticos, à maneira da crônica de finais do século XIX, segundo Julio Ramos,1 torna grandemente elásticas as fronteiras entre gêneros: prosa e poesia deixam-se recíproca e decididamente envenenar. Por outro lado, se seus conteúdos tornamse muitas vezes identificáveis, é porque seu discurso carrega algum tipo de mensagem sob as vestes, ou a camisa-de-força, dos discursos panfletários. E para quê? Para que senão combater, de modo voluntarioso, seja em castelhano, brasileiro ou portunhol, as formas codificadas de expressão cultural, representantes representativas , e absolutamente decadentes, do estado de coisas próprio do baixo capitalismo tardio, em cujos surtos intensivos de modernização técnica não há lugar, como se sabe, para nenhuma república das letras. Ou seja, aquilo que não fizer boom, aquilo que não seguir a bola dos mercados (o que Ramos chama de retórica do consumo ), seja em Latinoamérica, ou onde for, não bastaria para, digamos simplesmente mas com ênfase, resistir. A resistência ao modelo hegemônico dá-se, por conseguinte, na vertigem de uma economia do fragmento, que pode conter elementos típicos da crônica em formatos literários híbridos, os quais são levantados brevemente aqui, em suas diferenças e incompatibilidades. Generalize-se, portanto, o gênero crônica com a ressalva de que, obviamente, não se pode pretender transplantá-lo de modo mecânico de um fim de século a outro. No entanto, pode-se dizer que os desencontros da modernização da indústria cultural do Oitocentos não se acham tão distantes dos diferentes modos de pósmodernização conformes à verdadeira guerra que é a hierarquia estabelecida entre os mundos que se vive a partir, digamos, do advento da pop art. Por isso, talvez seja mais que nunca possível afirmar que a crônica poéticopolítica , em suas recentes formas dilaceradas e marginais, começa a responder a um processo correspondente de desagregação do tecido social, processo este sabidamente regido de maneira exclusiva pela indisciplina disciplinada própria ao jogo econômico. Por isso, seria possível afirmar também que a crítica do livro, ensaiada por José Martí há mais de cem anos, é retomada com


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violência por novos poetas-cronistas afro-latino-americanos, assim como uma reflexão, muito avançada, sobre os riscos da vontade autônomica da literatura ,2 em seus recentes e negativos avatares. Essas poéticas políticas dão testemunho do mais recente corte experimentado pelos meios urbanos ocidentais, onde a grande explosão técnica, a exemplo da própria necessidade de modernização de um século antes, causa tanto deslumbramento e entusiasmo quanto reserva e temor. Um caráter espontaneísta teria marcado os anos setenta nas manifestações poéticas da marginália nacional, porta-bandeira dos últimos dias de Paupéria , segundo a profecia do poeta-cronista que encarnava em si a brutalidade jardim do alegre suicida posto que arte era vida, e vida era arte; prosa, poesia, e poesia, prosa; e assim sucessivamente. Mas, talvez mais além do mero espontaneísmo, é preciso tornar a enfatizar o papel político da atuação de Torquato Neto nos meios de comunicação, sob a pior das ditaduras militares, a ditadura do Panopticon de Pindorama , nos termos de Salomão, que diria num Postscriptum : O defensor da tese-tanque de guerra da OCUPAÇÃO DO ESPAÇO objetivo e do espaço da mídia é o mesmíssimo homem casado com a morte que opera no seu paradoxal canto do mutismo. Mutismo: inalação do vero gás da implosão .3 A propósito da implosão ou explosão do momento, e a partir de uma morte precoce O sonho é explosivo ou implosivo? é o mesmo autor desta pergunta em seu Post-scriptum quem vai permitir a aproximação incondicional da política e da poesia agonista ou pós-agonista, conforme o caso, no seio da cultura popular veiculada agora de forma maciça pela televisão. O espontâneo se ligava então ao corpo (divino) e ao comportamento (maravilhoso) do artista, lutando na frente ou atrás das barricadas do desejo, pois, conforme Torquato, todo dia menos dia/mais dia é dia D : Não só as letras e músicas do período mas o desempenho, o jeito de intervir na televisão naquele programa Divino e Maravilhoso da TV Tupi, era parecidíssimo com a guerrilha urbana: o clima de criatividade da hora, aquela urgência agônica de guerrilheiros neste sentido de que não existia um exército convencional de produtores como os outros programas regularmente têm.4 Para verificá-lo, basta ler a guerrilha urbana da contracultura veiculada na mídia através dos poemas que são suas letras de canção: let s play that Let s play that é o exemplo celebrado, transformado em hino, já que exorta o leitorouvinte a desafinar o coro dos contentes na voz de Jards Macalé, marginal em estado permanente. O exemplo célebre, no entanto, é outro: Louvação . E todo mundo, afros, latinos ou americanos, lembra desse repente e da voz do repentista e violeiro Gilberto Gil a fazer a louvação, obra do inventor de Paupéria. Cabe notar também, e grifar ali, certas passagens, de tonalidades deliberadamente oscilantes entre os discursos da nova e da velha esquerda velha-de-guerra, ao pedir atenção a meu povo para louvar o bem maior que é a esperança , então ao mesmo tempo populista e guerrilheira, ou golpista e militar.

BABEL 5


Entre populista e libertária, entre o rock e o repente, de todo modo a pregação traduz uma manifestação, nesse momento meia-oito (isto é, quando de fato começam os setenta), de rebeldia e anticonformismo, porque, conforme o libelo Torquatália III , na geléia geral brasileira, a repressão é um fenômeno muito mais amplo do que geralmente se vê . E, daí, Torquato Neto partiria sem medo para pôr as cartas na mesa prestes a ser derrubada: na música popular brasileira, a repressão é absolutamente evidente , ele diz: ninguém, a bem da verdade, esconde o seu jogo. estamos todos ao redor da mesa, a mesma mesa, e somos vistos. pois: é preciso virar a mesa .5 E tem, não poderia deixar de ter, o porquê do antitropicalismo, enquanto ismo, em prol da marca registrada Tropicália, lavrada na primeira pessoa de um sujeito deveras singular: Escolho a tropicália porque não é liberal , diz Torquato Neto, mas porque é libertina. A anti-fórmula super-abrangente: o tropicalismo está morto, viva a tropicália. todas as propostas serão aceitas, menos as conformistas. (seja marginal). todos os papos, menos os repressivos (seja herói). e a voz de ouro do brasil canta para você ... Agora, esta novela, encarnada por seus últimos representantes os baianos na casa dos sessenta é libertina, mas ao mesmo tempo apática, sem verve. Quanto aos muitos e novos marginais, muitos e novos heróis, encontram-se todos muito dispostos, e bem encaminhados, no sentido de trocar em definitivo de voz. RAMOS, Julio. Desencuentros de la modernidad en América Latina. México: Fondo de Cultura Económica, 1989, p. 112. 2 RAMOS, Julio, p. 142. 3 SALOMÃO, Wally. Torquato Marginália Neto in Armarinho de miudezas. 2ª ed. Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado, 1993, p. 75. 4 Idem, ib., p. 45-6. 5 NETO, Torquato. Os últimos dias de Paupéria. 2 ª ed. São Paulo: Max Limonad, 1982, p. 291. A primeira edição, também preparada por Wally Salomão, foi feita no Rio pela Eldorado Tijuca em 1973. Acaba de ser lançado um cedê do selo Dubas com letras de Torquato Neto musicadas por vários artistas durante os anos setenta.

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POESIA TRADUÇÃO Marco Aurelio Cremasco

Qual é a função da poesia? Para alguns, nenhuma. Para outros, basta debruçar em certos poetas e compartilhar a sensação de ter encontrado a essência de ser humano. Se a poesia nasceu da necessidade de repassar aprendizados pela oralidade, somos tentados a pensá-la by the web (or way?). A função da poesia, de posse de tanta diversidade, diluiu-se a ponto de deixar de sê-la. Tudo é poesia, a questão é justificála como tal. Repenso-a como algo inerente ao espírito da sobrevivência (ok! começaremos tudo de novo). No artigo A insuportável luminosidade do ser (Babel n.º 4, 2001), tivemos a oportunidade de refletir um pouco sobre a função ética da poesia, cujo valor básico é o de aproximar pessoas e culturas, visando algo superior, o qual se traduz em manter a vida, construindo-a, dinamizando-a. Ou seja, vislumbrar a função da poesia como um vetor direcionado para o bem e para o bom (eis uma proposição budista). Neste sentido, uno-me a Bergson, que vê a ética como um fim, um objetivo. Juntando o pensamento bergsoniano ao budista, resgata-se a concepção genésica da poesia, que é a da preservação, acrescentada, hoje, com a visão sistêmica de um mundo sem fronteira anímica. Esse blá-blá-blá todo (e aqui, a conotação de a poesia servir para porra alguma) apresentamos poemas do russo Leonid Martynov (1905-1980), nascido em Omsk, Sibéria, e do norte-americano Carl Sandburg (1878-1967), nascido em Galesburg, Illinois. Em algum período do século XX esses poetas, diametralmente opostos em se tratando de propostas políticas de seus países de origem, comeram no mesmo prato da natureza humana, e no que há de positivo nele: a ética universal, a qual está acima de qualquer fronteira, ideologias e tensores que provocam diferenças essenciais no espírito das coisas. Um ponto em comum? Os poemas são essencialmente líricos, de visão aguda e precisa, utilizando palavras simples e coloquiais, objetivando atingir de um mísero catador de minhocas até o reitor da Unicamp. Os poemas de Martynov foram traduzidos do inglês, a partir da antologia The New Russian Poets, by George Reavey, October House Inc. New York, 1966 e os de Sandburg, também do inglês, de Selected Poems , Gramercy Books, New York, 1992. [Marco Aurélio Cremasco] BABEL 5


POESIA TRADUÇÃO Leonyd Martinov, por Marco Aurelio Cremasco A DESTRUIÇÃO DO MUNDO Quando Resolvi Destruir o mundo Não comecei o despedaçando, triturando-o, Ou executando-o após sentença de morte. Não, Rejeitei esses artifícios ultrapassados Gritei para o Sol: Não se mova! Para a Terra: Suba!

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Em poucos segundos Finquei este mundo na imobilidade, Todas as coisas saíram de órbita e foram separadas dessa total inércia!

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ELES AINDA TEMEM Eles ainda Temem As alturas: É fácil cair, dizem, Melhor não subir tão alto... Eles ainda Temem A simplicidade: É Simples, dizem, não concorda?

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Eles ainda Temem O nu Através das folhas de figo Que o tapam comicamente. Eles ainda Temem A beleza, Temem o seu contato: É difícil reconhecer, dizem, Como as coisas radiantes do belo Parecem duplas aos olhos. Então mantêm-se vigilantes e firmes. Oh, gente simplória! Por favor, procurem entender: Nos trapos e farrapos da pobreza Vocês juntam às migalhas Preciosidades à sua volta, Seus tesouros, que permanecem [escondidos, Suas obras, Seus sonhos.

BABEL 5


AMOR Leonid Martynov Você está vivo, Você está vivo! A chama, a lava não podem queimá-lo; As cinzas não podem cobri-lo, sequer [ tocá-lo. Você está vivo Feito a relva Que não tem o direito de murchar; Ainda que sob a neve, você continuará Verde, mesmo depois do meu enterro.

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E permanecerá em pé Como a lápide no meu túmulo. Você continuará vivo Mesmo com a minha ida. Não diga nada, Apenas acene graciosamente em [resposta; Sorria e acene, silenciando qualquer mentira. Você está vivo, Você é o certo, Você é o meu prazer e o meu veneno. Cada hora na Terra É a hora do seu triunfo!

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POESIA TRADUÇÃO Carl Sandburg, por Marco Aurelio Cremasco STYLE Style - go ahead talking about style. You can tell where a man gets his style just as you can tell where Pavlowa got her legs or Ty Cobb his batting eye. Go on talking. Only don t take my style away. It s my face. Maybe no good but anyway, my face. I talk with it, I sing with it, I see, taste and feel with it, I know why I want to keep it. Kill my style

and you break Pavlowa s legs, and you blind Ty Cobb s batting eye. ESTILO

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Estilo pois bem falaremos sobre estilo. Você bem que vê o estilo de um homem como percebe as pernas da Pavlova1 ou os olhos certeiros de Ty Cobb. 2 Continue falando. Mas não despreze o meu estilo Ele é a minha cara. Não tão boa, mas assim mesmo É a minha cara. Falo, canto, vejo, provo e sinto por meio dele E sei como mantê-lo. Mate o meu estilo E você quebrará as pernas da Pavlova E cegará os olhos certeiros de Ty Cobb. 1 Dançarina russa do começo do séc, XX. 2 Jogador de basebol norte-americano da década de 1910. BABEL 5


NEBLINA

The fog comes on little cat feet.

A neblina chega Nos passos de um pequeno gato.

It sits looking over harbor and city on silent haunches and then moves on.

Senta, lançando olhar Do porto aos arcos Silenciosos da cidade E então se move.

CLARK STREET BRIDGE

A PONTE DA RUA CLARK

Dust of the feet And dust of the wheels, Wagons and people going, All day feet and wheels.

Poeira dos pés e das rodas, Carros e caras indo todos os dias em rodas e pés.

Now ... . . Only stars and mist A lonely policeman, Two cabaret dancers, Stars and mist again, No more feet or wheels, No more dust and wagons.

Neste momento ... ... Apenas as estrelas e a névoa e um policial solitário. Duas dançarinas de cabaré. Novamente estrelas e névoa. Não há rodas e pés Nem poeira e carros.

Voices of dollars And drops of blood ..... Voices of broken hearts, .. Voices singing, singing, .. Silver voices, singing, Softer than the stars, Softer than the mist.

Vozes de dólares e gotas de sangue ..... Vozes de corações dilacerados .... Vozes que cantam, cantam .... Vozes prateadas, que cantam, Mais leves do que as estrelas Mais leves do que a névoa.

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FOG


HAPPINESS I asked professors que teach the meaning of life to tell me what is happiness. And I went to famous executives who boss the work of thousend of men. They all shook their heads and gave a smile as though I was trying to fool with them. And then one Sunday afternoon I wandered out along the Desplained river And I saw a crowd of Hungarians under the trees with their women and children and a ked of beer and an accordion. FELICIDADE

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Perguntei aos doutores que ensinavam sobre o sentido da vida para dizerme o que é felicidade. Fui a executivos famosos que chefiavam milhares de trabalhadores. Todos balançaram suas cabeças rindo, pensando que eu estava de sacanagem. Vagabundeando numa tarde de domingo pelas margens do rio Desplained vi um bando de húngaros sob as árvores com suas esposas e filhos, um barril de chopp e um acordeon.

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POESIA TRADUÇÃO Maria Esther Maciel, tradução e apresentação

OS FANTÁSTICOS LIVROS DE P R Ó S P E R O de

Peter Greenaway

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s roteiros que o cineasta britânico Peter Greenaway escreve para seus filmes quase sempre incluem textos narrativos ou poéticos que desviam o leitor para um topos que escapa às demarcações do gênero e se abre para o campo da criação literária. Roteiros como, por exemplo, os de seus primeiros curtas ou o do longa-metragem The Falls , de 1980, chegam a ser inteiramente narrativos, configurando-se quase como novelas ou coleções de contos, que longe de apenas traçar textualmente as diretrizes para a realização dos filmes, assumem sua própria autonomia enquanto texto. O livro que se apresenta com roteiro do filme Prospero´s Books (A última tempestade) é um compósito de diferentes modalidades textuais. Além de um ensaio do cineasta sobre o processo de criação do filme, pequenas narrativas ficcionais construídas a partir de alguns motivos shakespeareanos presentes na peça A Tempestade, na qual o filme é baseado, vêm compor o conjunto, ao lado de reproduções do próprio texto de Shakespeare e da presença de várias imagens extraídas do repertório canônico da história da arte ocidental. Dentre os textos literários que integram o volume, destaca-se a poética descrição que o cineasta faz dos 24 livros fantásticos que Próspero, o desterrado Duque de Milão, teria levado para o exílio, ao ser forçado a deixar seu ducado e partir pelo mar com a filha Miranda. Tais livros, de inegável feição borgiana, teriam ajudado o personagem a enfrentar o naufrágio, encontrar e colonizar a ilha onde passa a viver, povoá-la com espíritos e espelhos, educar a filha Miranda e escrever a própria história da qual é personagem. É a descrição desses livros de Próspero/Greenaway que se segue, em tradução. BABEL 5


Estes são os vinte e quatro livros que Gonzalo apressadamente lançou dentro da nau de Próspero, quando este foi arrastado ao mar para começar seu exílio. Tais livros possibilitaram que Próspero encontrasse seu caminho através dos oceanos, combatesse a perversidade de Sycorax, colonizasse a ilha, libertasse Ariel, educasse e distraísse Miranda, convocasse tempestades e domasse seus inimigos.

2. Um Livro de Espelhos Encadernado em tecido de ouro e bastante pesado, este livro tem umas oitenta páginas espelhadas e brilhantes: algumas foscas, outras translúcidas, algumas manufaturadas com papéis prateados, outras revestidas de tinta ou cobertas por um filme de mercúrio que pode rolar para fora da página se não for tratado com cautela. Alguns espelhos simplesmente refletem o leitor, alguns refletem o leitor tal como ele era há três minutos, alguns refletem o leitor tal como ele será em um ano, como seria se fosse uma criança, uma mulher, um monstro, uma idéia, um texto ou um anjo. Um espelho mente constantemente; outro espelho vê o mundo de frente para trás; outro, de cima para baixo. Um espelho retém seus reflexos como se fossem momentos congelados in-

finitamente relembrados. Outro simplesmente reflete um outro espelho através da página. Há dez espelhos cujos propósitos Próspero ainda precisa definir. 3. Um Livro de Mitologias Este é um livro grande. Em algumas ocasiões, Próspero o descreveu como tendo quatro metros de largura e três metros de altura. É encadernado em um pano amarelo brilhante que, quando polido, reluz como latão. Trata-se de um compêndio, em texto e ilustração, de mitologias com todas suas variantes e versões alternativas; ciclo após ciclo de estórias entrecruzadas, que tratam de deuses e homens de todo o mundo conhecido do Norte gelado aos desertos da África , com leituras explicativas e interpretações simbólicas. De reconhecida autoridade, suas informações são as mais ricas que há no Leste Mediterrâneo, na Grécia e na Itália, em Israel, em Atenas e Roma, Belém e Jerusalém, onde são suplementadas com genealogias naturais e nãonaturais. Para o olhar moderno, o livro é uma combinação das Metamorfoses de Ovídio, O ramo de ouro de Frazer e O livro dos Janeiro a Dezembro de 2002

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1. O Livro da Água Este é um livro de capa impermeável, que perdeu sua cor pelo demasiado contato com a água. É repleto de desenhos investigativos e textos exploratórios escritos em diferentes espessuras de papel. Há desenhos de todas as associações aquáticas concebíveis: mares, tempestades, chuvas, neve, nuvens, lagos, cachoeiras, córregos, canais, moinhos d água, naufrágios, enchentes e lágrimas. À medida que as páginas são viradas, os elementos aquáticos se animam continuamente. Há ondas turbulentas e tempestades oblíquas. Rios e cataratas fluem e borbulham. Planos de maquinaria hidráulica e mapas meteorológicos tremulam com setas, símbolos e diagramas agitados. Os desenhos são todos feitos à mão. Talvez seja essa a coleção perdida de desenhos de Da Vinci, encadernada em livro pelo Rei da França em Amboise e comprada pelos duques milaneses para dar a Próspero como presente de casamento.


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mártires de Foxe. Cada estória ou anedota tem uma ilustração. Usando esse livro como um glossário, Próspero pode reunir, se assim desejar, todos os deuses e homens que alcançaram fama ou infâmia através da água ou através do fogo, através do engano, em associação com cavalos ou árvores ou porcos ou cisnes ou espelhos, orgulho, inveja ou gafanhotos. 4. Uma Cartilha das Pequenas Estrelas Este é um guia de navegação pequeno, escuro e com capa de couro. É um livro repleto de mapas dos céus da noite, os quais, ao se desdobrarem, caem para fora da página, desmentindo o tamanho modesto do livro. Por retratar a imagem do céu refletida nos mares do mundo quando estes repousam, está cheio de manchas que indicam onde as massas de terra do globo interromperam o espelho oceânico. Isso, para Próspero, foi de grande utilidade, pois dirigindo sua nau BABEL 5

avariada para uma dessas pequenas falhas no mar de estrelas, ele encontrou sua ilha. Quando abertas, as páginas da cartilha cintilam com planetas viajantes, meteoros lampejantes e cometas giratórios. Os céus negros pulsam com números vermelhos. Novas constelações se enfeixam repetidamente através de ágeis linhas pontilhadas.

dimensões saltam das páginas, como em um livro pop-up. As páginas piscam com figuras e números logarítmicos. Os ângulos são medidos por finíssimos pêndulos de metal que balançam livremente, ativados por ímãs ocultos no papel espesso.

5. Um Atlas Pertencente a Orfeu Revestido de uma capa de lata verde-laqueada, com superfície gasta e queimada, este atlas é dividido em duas seções. A primeira é repleta de grandes mapas de viagem e manuais de música do mundo clássico. A segunda, de mapas do inferno. O livro foi usado quando Orfeu viajou ao mundo subterrâneo em busca de Eurídice. Daí que os mapas se encontrem chamuscados e tostados pelo fogo do inferno e marcados pelas mordidas de Cérbero. Quando o atlas é aberto, os mapas borbulham em piche. Avalanches de cascalhos frouxos e de areia fundida caem de suas páginas e crestam o chão da biblioteca.

7. O Livro das Cores É um livro grande, encadernado em seda carmesim. É mais largo que alto e, quando aberto, as páginas duplas se estendem, formando um quadrado. Trezentas páginas cobrem o espectro de cores com matizadas sombras que se movem do negro de volta ao negro. Quando aberto em sua dupla extensão, a cor evoca tão fortemente um lugar, um objeto, uma posição ou uma situação, que a sensação sensorial correspondente é experimentada de forma direta. Assim, uma reluzente laranja amarela é a entrada para um vulcão e um verde-azul escuro é a lembrança de um mar profundo onde peixes e enguias nadam e espirram água na face do leitor.

6. Um Livro Duro de Geometria É um livro volumoso, de cor marrom, encapado em couro e gravado com números dourados. Quando aberto, complexos diagramas geométricos em três


9. Um Inventário Alfabético dos Mortos É um volume funéreo, longo e delgado, encadernado em lâminas de prata. Contém todos os nomes dos mortos que viveram na terra. O primeiro nome é de Adão e o último de Susana, mulher de Próspero. Os nomes são escritos em diversas tintas e caligrafias, estando dispostos em longas colunas que ora refletem o alfabeto, ora a cronologia histórica. No entanto, as taxonomias utilizadas são, freqüentemente, de decifração tão complicada, que você poderá pesquisar anos e anos à procura de um nome que, com certeza, estará lá. As páginas do livro são muito antigas e trazem, em marcas d´água, uma série de desenhos de tumbas e columbários, lápides elaboradas, sepulturas, sarcófagos e outras loucuras arquiteturais para os mortos, sugerindo que o livro servia a outros propósitos, mesmo antes da morte de Adão.

11. O Livro da Terra Um livro volumoso coberto por uma membrana de cor cáqui. Suas páginas são impregnadas de minerais, ácidos, alcalinos, substâncias, gomas, venenos, bálsamos e afrodisíacos da terra. Risque uma grossa página escarlate com a unha de seu polegar para incitar fogo. Passe a língua no cinza de uma outra página para trazer a morte por envenenamento. Ponha a página seguinte de molho na água para curar o antraz. Mergulhe uma outra em leite para fazer sabão. Esfregue duas páginas ilustradas uma na outra para fazer ácido. Encoste sua cabeça em outra página para mudar a cor de seu cabelo. Com este livro, Próspero saboreou a geologia da ilha. Com sua ajuda, dela extraiu sal e carvão, água e mercúrio, e também ouro, não para sua bolsa, mas para sua artrite.

10. O Livro dos Relatos de Viajantes Este é um livro que está muito danificado, como se usado em demasia por crianças que o estimaram. A capa de couro carmesim, arranhada e corroída, que um dia fora incrustada com um desenho figurativo de ouro, está agora tão surrada que suas configurações tornaram-se ambíguas, provocando muita especulação. O livro contém aqueles prodígios inacreditáveis que os viajantes contam. Homens cujas cabeças saem dos peitos , mulheres barbadas, chuvas de sapos, cidades de gelo roxo, camelos que cantam, gêmeos siameses , alpinistas gotejantes de orvalho, como touros . É cheio de ilustrações e tem pouco texto. Janeiro a Dezembro de 2002

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8.A Anatomia do Nascimento, de Versalius Versalius produziu o primeiro livro autorizado de anatomia, que é surpreendente em seus detalhes e macabro em sua singularidade. Este Anatomia do Nascimento um segundo volume, hoje desaparecido é ainda mais perturbador e herético. Concentra-se nos mistérios do nascimento. É cheio de desenhos descritivos dos trabalhos do corpo humano, os quais se movimentam, pulsam e sangram quando as páginas se abrem. É um livro proibido, que questiona os processos desnecessários de envelhecimento, deplora os desgastes associados à procriação, condena as dores e os desconfortos do parto, além de questionar, em termos gerais, a eficiência de Deus.


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12. Um Livro de Arquitetura e Outras Músicas Quando as páginas são abertas neste livro, planos e diagramas saltam completamente formados. Há modelos definitivos de prédios constantemente escurecidos por uma nuvem de sombras móveis. Praças de mercado se enchem e se esvaziam de multidões ruidosas, luzes piscam na paisagem noturna da cidade, ouve-se música nos salões e nas torres. Com este livro, Próspero reconstruiu a ilha, convertendo-a em um palácio cheio de bibliotecas que recapitulam todas as idéias arquitetônicas da Renascença. 13. As Noventa e Duas Concepções do Minotauro O livro reflete sobre a experiência do Minotauro, a mais célebre estirpe da bestialidade. Ele traz uma impecável mitologia clássica para explicar procedências e

pedigrees que incluem Leda, Europa, Dédadus, Teseu e Ariadne. Caliban, que assim como os centauros, as sereias, as harpias, a esfinge, os vampiros e os lobisomens, é um filho da bestialidade, teria grande interesse nesse livro. Zombando d As Metamorfoses de Ovídio, ele conta a estória de noventa e dois híbridos. Na verdade, deveriam ter sido contadas cem, mas o puritano Teseu, que já tinha ouvido o bastante, aniquilou o Minotauro antes que este tivesse terminado. Quando aberto, o livro exala um vapor amarelo e cobre os dedos do leitor com um óleo negro. 14. O Livro das Línguas Este é um livro grande e alentado, com uma capa verde azulada que se turva como um arco-íris sob a luz. Mais uma caixa que um livro, abre-se de maneira não-ortodoxa, por ter uma porta na capa. Dentro, encontra-se uma coleção de oito livros menores, dispostos como garrafas em uma maleta médica. Por trás desses oito livros há outros oito, e assim por diante. Abrir os livros menores é liberar muitas línguas. Palavras e sentenças, parágrafos e capítulos se juntam como girinos de um lago em abril ou pássaros nos céus noturnos de novembro.

15. Plantas Plenas Parecido com um tronco de madeira antiga e curada, este é um herbário que põe fim a todos os herbários, tratando das mais veneráveis plantas que governam a vida e a morte. É um tijolo de livro, com uma capa de madeira envernizada que já foi, e provavelmente ainda é, habitada por minúsculos insetos subterrâneos. As páginas são recheadas de plantas e flores prensadas, corais e algas marinhas, sendo que em torno do livro pairam borboletas exóticas, libélulas, mariposas esvoaçantes, besouros reluzentes e uma nuvem de pólen dourado. É, simultaneamente, um favo de mel, uma colméia, um jardim e uma arca de insetos. É uma enciclopédia de pólen, perfumes e feromônio.

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17. Um Bestiário de Animais do Passado, do Presente e do Futuro É um livro grande, um dicionário de animais reais, imaginários e apócrifos. Com esse livro, Próspero é capaz de reconhecer onças e sagüis, morcegosdas-frutas, manticoras e dromecélios, o cameleopardo, a quimera e o catoblepas.

18. O Livro das Utopias Este é um livro das sociedades ideais. Encadernado em capa de couro dourado e contracapa de ardósia negra, contém quinhentas páginas, seiscentos e sessenta e seis verbetes indexados e um prefácio de Sir Thomas Moore. O primeiro verbete é uma descrição convencional do Céu, e o último, uma descrição do Inferno. Haverá sempre alguém na Terra cuja utopia ideal será o Inferno. Nas páginas restantes do livro, toda comunidade política e social conhecida e imaginada é descrita e avaliada, e vinte e cinco páginas são dedicadas a tabelas nas quais as características de todas as sociedades podem ser discriminadas, permitindo ao leitor selecionar e combinar aquelas que formem sua utopia ideal.

20. Amor das Ruínas Um manual de antiquário, um inventário do mundo antigo para os humanistas da Renascença interessados em antigüidades. É repleto de mapas e planos dos lugares arqueológicos do mundo, como templos, cidades e portos, cemitérios e estradas antigas, contendo também as medidas de cem mil estátuas de Hermes, Vênus e Hércules, descrições de cada obelisco e pedestal do Mediterrâneo conhecido, planos das ruas de Tebas, Óstia e Atlântida, um diretório dos pertences de Sejanus, as lousas de Heráclito e as assinaturas de Pitágoras. É um volume essencial para o historiador melancólico que sabe que nada perdura. Suas proporções são como as de um bloco de pedra, quarenta por trinta e por vinte centímetros. A cor é de mármore azul estriado. Arenoso ao toque, tem páginas rijas e crespas, impressas em fontes clássicas que não possuem o W nem o J.

19. O Livro da Cosmografia Universal Repleto de diagramas impressos, de grande complexidade, este livro é uma tentativa de colocar todos os fenômenos universais em um mesmo sistema. Os diagramas são gravados nas páginas: figuras geométricas ordenadas, anéis concêntricos que rodam e contra-rodam, tabelas e listas organizadas em espirais, catálogos dispostos em um corpo humano simplificado que, ao se mover, coloca as listas em nova ordem, movimentando os diagramas do sistema solar. O livro oferece uma mistura do metafórico com o científico e é dominado por um grande diagrama que mostra a União do Homem e da Mulher Adão e Eva em um universo bem estruturado, no qual todas as coisas têm seu lugar demarcado e a obrigação de serem profícuas. Janeiro a Dezembro de 2002

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16. Um Livro do Amor Este é um volume pequeno, fino e aromático, encadernado em ouro e vermelho, com laços de fita escarlate para marcar as páginas. No livro vê-se a imagem de um homem e uma mulher nus, bem como a imagem de um par de mãos entrelaçadas. Essas coisas foram, certa vez, vislumbradas brevemente em um espelho, e esse espelho estava em um outro livro. O resto é conjetura.


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contra-se envolvido por duas tiras de couro, ata21. As Autobiografias das com força na espinha dorsal. À noite, o lide Pasífae e Semíramis vro se debate contra a estante e tem de ser conUma pornografia. É um volume tido por um peso de metal. Uma de suas seções enegrecido e manuseado, cujas se intitula A Dança da Natureza , na qual poilustrações são levemente ambí- dem ser encontradas todas as possibilidades de guas em relação ao conteúdo. O dança para o corpo humano, codificadas e livro é encadernado em couro cur- explicadas em desenhos animados. tido de cor negra e tem capas de chumbo danificadas. As páginas 23. O Livro dos Jogos são cinza-azuladas e salpicadas de Este é um livro de tabuleiros de jogos com infinitas um pó verde lodoso, fios de cabe- possibilidades de uso. O xadrez é um dentre os lo crespo, manchas de sangue e milhares de jogos do volume, ocupando apenas duas outras substâncias. Uma ligeira páginas, a 112 e a 113. O livro contém tabuleiros nesga de vapor ou fumaça levan- para serem jogados com fichas e dados, cartelas, ta-se das páginas quando o livro é bandeiras e pirâmides em miniatura, pequenas reproduções de deuses do Olimpo, ventos em vidros aberto, sendo que este se mantém coloridos, profetas do Antigo Testamento feitos de aquecido como se contivesse o osso, bustos romanos, os oceanos do mundo, exíguo calor que aparentemente animais exóticos, peças de coral, cupidos de ouro, envolve o gesso que seca ou as moedas de prata e pedaços de fígado. Os tabuleiros pedras lisas depois que o sol se de jogos representados no livro abarcam tantas põe. As páginas deixam manchas situações quantas experiências houver. Há jogos de ácidas nos dedos de quem as ma- morte, de ressurreição, amor, paz, fome, crueldade nuseia e é aconselhável usar luvas sexual, astronomia, da cabala, de estratégias, das estrelas, de destruição, do futuro, de fenomenologia, para ler o volume. 22. Um Livro do Movimento mágica, retribuição, semântica, evolução. Este é um livro que, em um nível mais ele- Há tabuleiros com triângulos vermelhos e negros, diamantes cinzas e azuis, págimentar, descreve como os pássaros voam, nas de texto, diagramas do cérebro, taas ondas encrespam, as nuvens se formam e petes persas, tabuleiros em forma de as maçãs caem das árvores. Descreve ainda constelações, animais, mapas, viagens ao como o olho muda de forma quando olha a Céu e viagens ao Inferno. longa distância, como os pêlos crescem em 24. Trinta e Seis Peças uma barba, como o riso transfigura um rosÉ um grosso volume impresso de peças to e por que o coração bate e os pulmões teatrais datadas de 1623. Todas as trinta inflam involuntariamente. Em um nível mais seis peças estão lá, menos uma: a pricomplexo, ele descreve como as idéias per- meira. Dezenove páginas foram deixaseguem umas as outras na memória e para das em branco para a sua inclusão. Ela é onde vai o pensamento depois que o pensa- chamada A Tempestade . O fólio é modestamente encadernado em linho vermos. O livro é coberto por um resistente de-escuro, com uma capa de papelão couro de cor azul e, por estar sempre se abrin- onde se destacam as iniciais do autor, do subitamente por sua própria vontade, en- gravadas em ouro: W.S. BABEL 5


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POESIA HOJE BRASIL Paulo de Toledo

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ENTREVISTA por Ademir Demarchi

Raúl Antelo

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A recente publicação do livro de ensaios Transgressão & Modernidade (Editora UEPG, 2001) e as idéias contidas nesse livro motivaram esta entrevista com Raúl Antelo, argentino nascido em 1950, radicado no Brasil desde 1976, que mora em Florianópolis, onde leciona literatura na Universidade Federal de Santa Catarina. É autor dos livros Algaravia Discursos de nação (Ed. UFSC, 1998); Parque de diversões Aníbal Machado (Ed. UFMG/Ed. UFSC, 1994); Objecto textual (Memorial da Am. Latina, 1997); A alma encantada das ruas de João do Rio (Cia. Das Letras, 1997) e Obra Completa de Oliverio Girondo para a Coleção Archives da Unesco (2000), entre outros. Foi professor visitante em universidades brasileiras e estrangeiras, tais como University of Texas et Austin, Yale e Duke, nos EUA e Leiden, na Holanda e teve ativa participação à frente da Associação Brasileira de Literatura Comparada.

BABEL - Você afirma em Transgressão e Modernidade que é a partir de uma atividade de inércia , que se traduz como energia diferencial ou transgressiva , que a nossa modernidade de pobres e dependentes redefine a modernidade enquanto universalidade. Ou seja, a periferia redimensiona o mundo. ANTELO - Por inércia deveríamos entender apatia que não é, necessariamente, ausência de sensibilidade mas experiência do anestético, estar tomado por uma sensação que não permite o registro de novas sensações. Essa é uma experiência muito forte em nossa sociedade. O espectador de cinema, herói da sociedade de massas, ainda tinha uma dimensão decidida do imaginário, podia se pensar nele como um sujeito em trajetória crítica através do subdesenvolvimento, como diria Paulo Emílio, aliás um pedagogo, na clássica definição do modernismo. Entretanto, na proliferação multitudinária da videosfera, as imagens já não remetem a objetos em relação aos quais se acumula experiência. Nem mesmo são imagens mas sinais. São processos, são tempo, são síntese. E o sujeito desmaterializa-se consequentemente. Então o que me interessa é justamente esse apagamento de fronteiras que dava estabilidade às definições modernistas e que hoje adquire peculiar labilidade. BABEL - Com o recrudescimento da pobreza e da dependência e o crescimento da periferia, que transgressão, que novidade estamos ou estaríamos fabricando em cima dos tapetes que ocultam o endividamento progressivo e as quebras de países e instituições?

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ANTELO - A problematicidade do nosso presente é que ele suspendeu a proibição sem, no entanto, suprimi-la. Nossa adolescência foi a da proibição sem transgressão, o processo autoritário do militarismo; nossa maturidade convive com a transgressão sem proibição, o neo-liberalismo consentido pela social-democracia. É claro que esta última alternativa é mais insidiosa do que aquela. Mas é também mais produtiva. No primeiro caso, não podia haver experiência ou ela simplesmente permanecia inconsciente. No caso atual, há fantasma de experiência ou, como diria Bataille, pode haver experiência interior, que é uma forma de solapar a diferença entre interior e exterior. Ou seja que entre sujeito e objeto não há, a rigor, dialética, mesmo que negativa (a posição adorniana) mas paradoxo. Eu diria que o esquivo presente já não pode ser captado a partir de rupturas transcendentes, como as que podia propor o modernismo (autonomia, socialismo, nacionalismo) mas a partir de rupturas imanentes. São rupturas que não manam a partir de alguma fonte originária de verdade. Ao contrário, nelas a verdade manet, permanece, reflui a si, quer dizer que a experiência interior rompe, porém, sem postulados metafísicos. É uma descarga que entretanto não acumula energia. É infraleve. Não define universalidade mas singularidade. BABEL - O nacionalismo intelectual tupiniquim atual, fundamentado na USP, na raiz de apoio às excrescências do PSDB no poder, de subserviência anêmica ao FMI não é tributário desse estado de coisas? Um dado modo de pensar, em reflexões como a de Bosi em Dialética da Colonização (nossa cultura é transplantada e está sempre em débito com o horto florestal central europeu, a matriz) ou as idéias (da hora) no lugar de Schwarz, não são todos frutos apreciáveis e duradouros que dão nessa subserviência ao Império de hoje? ANTELO - Não se trata de uma traição situada. Embora deva ser criticada a atual situação. Creio que há um fenômeno ocidental, que Paolo Virno estuda muito bem em seu livro A lembrança do presente: a dimensão historicista do presente, aquilo que Virno chama a história antiquária, configurou um modernariato que não só não contesta como é indissociável da cultura do espetáculo. A partir dessa idéia, Virno desenvolve o paradoxo de que a sociedade do espetáculo é o modernariato elevado à enésima potência, uma vez que nossa fúria colecionista acabou transformando a atualidade num produto muito mais do que num processo. Nesse sentido, se responsabilidade há na USP (para além do rótulo universalista que homogeneiza singularidades) ela pertence a uma lógica oblíqua que eu definiria como a hegemonia autonomista do literário, sustentada pela equação sintética modernismo=nacionalismo. É ela que alimenta uma série de conceitos insatisfatórios, não para mim, obviamente, mas até mesmo para o próprio modernismo. Como sustentar a noção de obra prima ou de registro canônico depois que a nouvelle critique nos abriu a passagem da obra ao texto? Como defender a primazia do autor (a partir da fenomenologia de um gênio criador ) depois da disseminada morte do autor? É falso, portanto, descaracterizar minha crítica como fundada em hegemonias culturalistas, americanas ou que nome tenha. Nem digo que haja, nesses discursos, eurocentrismo, excesso da influência francesa (aliás criticada já nos 30 por ninguém menos do que Mário de Andrade). O que eu digo


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é que há deficit dela. Há um Picard que fala pela boca de Barthes e, a partir desses limites conceituais, o que se estreita é a dimensão da própria modernidade, congelada e espetacularizada como modernariato. BABEL - Como sugeriu Agambem num ensaio, o mundo contemporâneo não precisa mais de uma catástrofe para liquidar com a experiência, pois a existência quotidiana numa grande cidade aliena com eficiência o homem em relação aos acontecimentos, daí a importância de revalorizar a transgressão como instrumento útil de mudança. Você sugere que a transgressão seja vista menos como alternativa utópica e idealizada e mais como ação política concreta. Comente sobre isso. Onde está a transgressão hoje? O que corrói o instituído instável? ANTELO - Se eu apontasse tarefas, missões, estaria transformando a política em ideologia, que é justamente o que critico. Posso entretanto dizer que não me identifico nem com o reino (as literaturas nacionais como espaço da autonomia letrada) nem com o regionalismo (alternativa populista de regere fines na crise do nacionalismo). Creio que são aspectos complementares de um mesmo processo de crise de legitimidade. Prefiro aprofundar entretanto o interregno, esse espaço comum de dois, marginal, produzido por uma história residual mas produtor, ao mesmo tempo, de uma diferença disseminante. Então, só para voltarmos à definição do modernismo, não me interesa o Armory Show, a Semana de 22 ou a polêmica sobre o meridiano intelectual latino-americano. Não me interessam per se. O que não quer dizer que ignore esses dados e muito menos que os proíba. Quer dizer que ajo com, a partir, sobre essas rupturas, experimento com elas. Tomo, por ex., o readymade mas o retiro do pedestal museográfico de um hipotético marco zero do moderno, de modo tal que ele passa a ser um procedimento de leitura, tal como queria, justamente um modernista como Murilo Mendes, quem dizia que o universo é um ready-made. Nesse sentido, a experiência interior do ready-made duchampiano adquire outro valor quando confrontada com as estratégias de leitura de alguém que convive e conhece Duchamp em suas peregrinações sulamericanas, o antropólogo Lehmann-Nitsche, quem toma , no melhor sentido ready-made da expressão, as leituras (o que é dizer as escrituras imateriais) de indígenas do Continente, suas leituras do céu, do brilho das estrelas, algo totalmente mallarmaico, e a partir desses pontos de intensidade, essas culturas ágrafas formam figuras e essas figuras, por sua vez, decantam relatos. Não está aí a matriz de Macunaíma? Então, não me interessa tomar uma teoria, por mais respeitável que ela possa ser, e aplicá-la ao contexto local para nobilitá-lo , dar-lhe entidade. Me interessa construir uma experiência interior, infraleve, em que fragmentos da disseminação significante podem ser articulados conforme uma sintaxe alternativa. Isso redefine um lugar para a vanguarda (Duchamp não se esgota na lógica Armory Show) e um lugar para a cultura autóctone que, sem renunciar à pedagogia BABEL 5


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modernista em que me eduquei, permita que essa linguagem, superior ao discurso institucionalizado (da nação, da Universidade etc etc), fale. BABEL - Certa vez você enfatizou uma leitura de Mário de Andrade, para o qual, fazendo um balanço da literatura brasileira para sua geração, Machado de Assis era o grande pai a se matar. E para você, hoje, qual é o pai a matar? ANTELO - Se dissesse que a questão passa por matar o pai só emprestaria energias adicionais ao projeto modernista, também chamado de angústia das influências. Creio que em relação aos mestres, a gente só pode ter uma relação ambivalente. O desafio é sair deles com eles e não contra eles. Fazer deles um uso contrário ao estabelecido, radicalizando, porém, aquilo que eles próprios não conseguiram fazer. Encarnar o espectro é uma forma de salvar o mestre de sua própria aura, de desmanchar os agenciamentos de poder que o emaranham e o congelam. BABEL - De modo geral, salvo raras exceções, a poesia contemporânea está muito normatizada, pacificada, ostentando orgulho da influência sem travos de angústia, em perfeita afinidade com a contemporaneidade, que esvaziou a noção de ruptura. Muito dessa poesia é inclusive tributária daquele pensamento transplantado. Você já fez algumas leituras críticas ou resenhas sobre Alejandra Pizarnik, Paulo Leminski, Valdo Motta, Régis Bonvicino, Josely Vianna Baptista, Néstor Perlongher haveriam saídas nessas (ou outras) vozes poéticas? Que poética é transgressiva, renovadora do pensamento? ANTELO - Creio que as saídas não estão tanto no quê mas no como. Como se sai de um regime de leitura? Saímos de Drummond lendo seu Áporo como a metamorfose sintética modernista que do baixo (inseto) passa para o alto (a flor, a orquídea)? Essa perspectiva, que é a de Davi Arrigucci, em seu recente Coração partido, conquanto seja irrepreensível do ponto de vista técnico é, a meu ver, problemática do ponto de vista teórico e mesmo ideológico. Prefiro ver o áporo como um apeiron constitutivo da escritura de Drummond. Não por acaso, o primeiríssimo Drummond, o de A Revista, toma de Oscar Wilde o paradoxo de Chuang Tzu que, poderíamos dizer, funciona como um ur-fenômeno do modernismo periférico, cujos manifestos seriam a própria pedra no meio do caminho ou a máquina do mundo ou os avatares borgianos da tartaruga. Há nesses textos toda uma reflexão sobre a não-síntese, a heterogeneidade, a ambivalência. De modo tal que se estou ciente disso, se estou ciente de que essa orquídea seria a rosa do povo , aliancista e modernista, do Drummond getuliano , se lembro das restrições, aliás contemporâneas, do próprio Mário ao conceito de povo, que figuram no Banquete, então só posso ler o Áporo no meio do caminho, um caminho que tem dois extremos. O superior é o sublime a reivindicação estatalista da orquídea como flor de Civilização (Guilherme de Almeida) e o inferior é o do baixo materialismo a Vitória Régia como flor nacional que atrai e repugna ao mesmo tempo (Mário de Andrade). Quando Bandeira censura esse poema de Mário, poema que aliás se perde, só nos restam dele duas reescrituras, uma delas para os modernistas de Minas, a outra para o povo , Bandeira está censurando uma exploração informe de Mário que, a meu ver, delata sua atração por aspectos proibidos e sórdidos da flor imperial/nacional.


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V. vai me dizer que estou fazendo uma leitura a la Mapplethorpe do poema em prosa de Mário de Andrade mas é que só podemos ler a partir do presente. Mas mesmo que, à maneira historicista, nos detivéssemos na lógica contemporânea ao poema de Drummond, ainda assim poderíamos evocar a sutilíssima discussão proposta por Bataille em 1930 em torno da linguagem das flores para dela extrair elementos de ultrapassamento do binarismo (ou antes: de sobrevivência do idealismo no interior do materialismo) que estão associados ao erotismo. Então o problema, para mim, não passa por quem ler ou que novo poeta descobrir mas sim como ler, que novos modos de produzir sentido somos ainda capazes de construir. A questão, em suma, não se decide no campo da interpretação mas no da intervenção. A interpretação ainda é fortemente imaginária. A intervenção prioriza a virtualidade da sintaxe, a pontuação, a ênfase. BABEL - Sua escrita, pode-se dizer, inspira-se naquelas reflexões de Blanchot, da linguagem em busca de seu próprio limite, busca que gera paradoxalmente a proliferação do corpo da linguagem com a consequente perda de alcance do limite, gerando uma expressão barroca, chegando ao paroxismo citacional e a um estilo que ostenta erudição e exuberância. O homem é o estilo? Você mesmo observa que há nessa crítica um aparato teórico-ficcional a positividade está definitivamente enterrada; sendo assim, a crítica, por fim, está em pé de igualdade com a ficçao? E a crítica no Brasil, com relação a isso? ANTELO - Reivindico completamente a matriz ficcional da crítica. Boa parte dos problemas da crítica no Brasil hoje derivam de sua institucionalização. Me incluo: raras vezes a crítica universitária consegue ultrapassar o horizonte de leitura imanente de uma obra ou de uma questão x num texto y. Às vezes a crítica age assim por estar muito pendente de um horizonte pragmático (a praticidade desse discurso no universo do ensino), às vezes por defender posições de grupos institucionais que objetivam visibilidade junto às agências. Os motivos podem variar mas as consequências são semelhantes: matriz fenomenológica, aparato historicista, discurso de constatação. No déficit, coloco uma especulação bastante tímida, uma erudição mobilizada tão somente a serviço da impostação dogmática da verdade e não de sua desestabilização. E, fundamentalmente, uma impossibilidade de intervir no debate cultural contemporâneo. Não cometo heresia se aponto que a presença do Brasil fica aquém do que deveria em contextos supra-nacionais. E a batalha é dúplice, trava-se cá e lá. Tenho trabalhado contra isso mas ainda há muito por fazer. BABEL - A cena brasileira não está muito acostumada a performances textuais como a sua, diante dos parcos leitores, da preguiça refratária ao estranho e à leitura. Você tem sido lido e compreendido? Há outros textos seus, além dessa escrita crítica barroca? Uma ficção, um poema? BABEL 5


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ANTELO - É curioso o processo de circulação dos discursos. Meus vinte anos em Santa Catarina têm, fundamentalmente, dois aspectos. De um lado, me retirar da cena central brasileira. Em grande parte porque eu mesmo pouco me interessei em forçar a lembrança ou a presença. Mas isso, contudo, não me fez aderir à endogenia periférica. Muito pelo contrário. Por outro lado, lecionar, sobretudo nos cursos de graduação, para estudantes nem sempre motivados de antemão, me obrigou a redobrar as estratégias de interpelação. O desafio não era, absolutamente, lamentar a cultura letrada que eles não possuíam mas sim recriar estratégias que não demonizassem a imagem, que é o elo com que esses jovens se vinculam ao mundo simbólico. Em uma palavra, pergunto-me, recorrentemente, como construir imagens pós-críticas com os restos de uma cultura letrada em frangalhos. Isso acaba tendo efeitos locais extremos mas também efeitos diferidos, exacerbados por certa extra-territorialidade contemporânea. Então a condição singular com que me deparo é que dialogo com um estudante que não tem uma biblioteca familiar mas meu discurso também produz efeitos em Cambridge ou Caracas. Aliás, deve ser por essa recepção cindida que, nos últimos tempos, e a pedido, quero ressaltá-lo porque não foi coisa que eu procurasse, comecei a escrever sistematicamente para suplementos culturais de Buenos Aires, o de Página 12 e o do Clarin, o que deu outra inusitada dimensão a meu discurso. Também nesse ponto se detecta a ruptura imanente de que falávamos no início. BABEL - Sua formação intelectual (se não estou enganado) se deu durante um período atribulado da vida argentina, em meio a ditaduras ferozes, desaparecimentos políticos, militância. Como foi isso para você? Isso pesou para vir a se tornar um brasileño? Você chegou a servir o exército na Argentina? ANTELO - De fato, a História nos atra-vessa sempre, apesar de não ter sido militante nem de haver servido o Exército. Fui, quando muito, no início de carreira, professor de português na Escola de Comando da Força Aérea. Anos depois vim descobrir, através do depoimento de sobreviventes, que no porão do edifício, em pleno centro da cidade, torturava-se gente. Mas a situação no setor civil não era mais amável. Lecionei também no Instituto do Professorado, onde uma colega gaúcha estava tão perturbada com o desaparecimento do filho que um dia me confessou que pretendia pedir a uma outra colega, professora de filosofia e heideggeriana devo admitir que muito espirituosa seu auxílio para tentar descobrir o desaparecido. Na época atribuí a reação ao desespero; anos depois, constatei que a professora de filosofia era a mulher do ministro de Agricultura da Junta Militar e, mesmo que pareça rocambolesco, mãe da futura rainha da Holanda. Por essas e outras situações senti em 1976 que um ciclo acabara para mim. E para minha geração, bastante abatida e mal-tratada. Poucos foram, proporcionalmente, os que tiveram chances de se destacar dentre meus companheiros de geração. O mais brilhante deles, César Aira. A morte, em suas mais variadas formas, marcou muito minha geração. Isso não é fortuito. BABEL - Na sua leitura dos discursos de nação você cita e incita ao sugerir sua própria condição ao abordar tal assunto, de ser intelectual globe-trotter, autóctone e estrangeiro aos países e às línguas (Argentina/Brasil à primeira visada), ou seja,


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um estranho íntimo ao assunto nacionalidade. Bom, vamos a mais uma citação, de Foucault, lançada por você mesmo, que diz que uma experiência é qualquer coisa que se faz inteiramente só, mas que não se pode fazer plenamente na medida em que escapará à pura subjetividade e em que outros poderão, não digo retomar exatamente, mas ao menos cruzá-la ou reatravessá-la . O que tem sido essa experiência de intelectual globe-trotter, aficcionado pelas frestas (pelo entrelugar)? ANTELO - Há alguns anos, preparando um dossier curricular, tentava encontrar a proto-cena que teria selado meu destino de devir outro, de me inventar brasileiro. O óbvio eram os cursos de português ainda na escola secundária; uma desmedida monografia (30 páginas espaço 1) sobre poetas românticos brasileiros aos 17 anos; uma não menos espectral evocação de Murilo transmitida pela rádio Mitre aos 21, por mediação de meu primeiro chefe, um cavalheiro adandinado, Christovam de Camargo, coondiscípulo de Mário de Andrade. Mas houve também uma imagem do Monumento às Bandeiras de Brecheret na capa de meu caderno escolar na primária. Mas nada disso me convencia . Até que compreendi subitamente que o detonante não foi material mas imaterial. Eu estava recusando a língua de meu pai, nascido em Buenos Aires, e resgatando a de meu avô, vizinho de Santiago de Compostela. Ou seja que não era um deslocamento territorial entre a Argentina ou o Brasil mas uma diferença temporal marcada pelos desastres. Meu avô emigra porque a nação (galega) estava prestes a desaparecer. Meu pai é o protótipo de liberal enciclopedista, muito discretamente nacionalista, que dá a primeira geração de imigrantes num país. E eu torno a emigrar porque a nação está, mais uma vez, condenada. Há porém uma diferença radical entre nós. Meu avô não conseguiu retornar à Espanha. Meu pai não quis ir. Eu vou e venho, estou não estando. É um pouco a relação que mantenho com Buenos Aires, onde sou alguém interno-externo. Não renego dessa condição. Muito pelo contrário, creio que aí está a autêntica experiência, a aventura de uma subjetividade que assume uma história sem virar dela refém. BABEL - À Godard: masculino/feminino ou masculino-feminino? ANTELO - Sem sombra de dúvida, masculino-feminino. Traços, traços de união. Um sinal quase kamasutriano: &. BABEL - Em sua atividade intelectual você tem enfatizado a experiência de descentramento, contra as categorias positivas, afirmando-se como uma disponibilidade ética transformada em discurso . Quais os pontos altos de sua carreira? Quais os projetos futuros? Quais livros vai publicar? ANTELO - Há uma experiência que recentemente contei em Políticas do arquivo que marca, a meu ver, um dos pontos altos de meu trabalho. Quando comecei a preparar a edição crítica de Oliverio Girondo para a coleção Arquivos, resgatei com a sobrinha do poeta, Susana Lange, uma porção de papéis aos que até então BABEL 5


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ninguém dera atenção. Manuscritos, esboços, dedicatórias, exemplares de trabalho do poeta. Fotocopiei furiosamente todos os materiais em uma livraria do bairro residencial e periférico. Tudo às pressas. Aquela noite se apresentava o primeiro volume de uma História da Literatura que não teria continuidade, entre outros motivos, pela crise econômica que forçou, pouco depois, como numa previsível peça de Brecht, a renúncia de Alfonsín. Enquanto retornava a Buenos Aires de táxi, passava em revista, na longa viagem, as cenas de um percurso: minha descoberta de Oliverio com as edições que o repõem à consideração dos jovens dos anos 60, numa editora universitária cujo trabalho se interrompe com o golpe de 66; o desinteresse de minha geração pelas questões filológicas, substituídas por outros referentes teóricos (Bakhtine, Foucault) e outras urgências; meu contato com Antonio Candido e sua obsessão genética pela estrutura estruturante, que o levava a reavivar autores que me eram familiares, embora em perspectiva diferente (Starobinski, Spitzer, Auerbach). Ia meditando nessas coisas quando de repente uma voz mais estridente no rádio do táxi me trouxe ao presente: Tem manuscritos, fotografias, lembranças de personalidades? Pagamos bem. Pagamos em dólares . Me senti penosamente ridículo, salvando de uma hipotética lata de lixo da História esses materiais que, por desdém ou por outras premências, provavelmente teriam continuado desconhecidos. Foi, como diria Clarice, a minha hora do lixo. Boa parte de meu trabalho lida, de fato, com esses materiais esquecidos, os romances de Carvalho Guimarães, o relato de viagens de Jorge Amado. Outros, mesmo conservados, requerem de nossa mediação para se tornarem legíveis. É o caso das cartas de Mário de Andrade a Newton Freitas que a Edusp deve publicar breve. E em outros casos, ainda, a dimensão unheimliche provém do próprio estatuto do problema. É minha pesquisa atual sobre Maria Martins, outro belo caso de artista desterritorializada. E é ainda o projeto de uma coleção como Vozes vizinhas que já dublou Ludmer e Link e aguarda entregar Molloy e Real de Azua em 2003. Tudo em nome de uma reivindicação da margem, feito pela editora Argos, à margem das grandes chan-celas, como uma forma de embaralhar os mapas ou, melhor dizendo, de desnaturalizar os territórios e apostar no dispêndio. BABEL - Sobre o que mais você gostaria de falar? ANTELO - Um copo d´água, como diria Francis Ponge.


POESIA HOJE TRADUÇÃO Raymond Carver, por Rodrigo Lacerda energia

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Noite passada na casa de minha filha, longe daqui, ela fez o que pôde para me dizer o que deu errado entre sua mãe e mim. Energia. A energia de vocês dois estava toda errada. Ela parece com a mãe Quando a mãe era jovem. Ri como ela. Afasta a mecha rebelde Da testa, como sua mãe. Pode fumar um cigarro até o filtro em poucas tragadas, exatamente como a mãe. Pensei que essa visita seria fácil. Errado. É duro, amigo. Aqueles anos invadindo meu sono quando tento Dormir. Para acordar e ver mil cigarros no cinzeiro e todas as luzes da casa ligadas. Não posso fingir que entendo alguma coisa: hoje serei levado três mil milhas além para os braços queridos de outra mulher, não sua mãe. Não. Esta foi sugada pela engrenagem de um novo amor. Apago a última luz E fecho a porta. Caminho em direção a qualquer coisa ancestral Que opera as correntes e sem piedade nos faz avançar. energy Last night at my daughter s, near Blaine, /she did her best to tell me/ what went wrong/ between her mother and me./ Energy. You two s energy was all wrong. /She looks like her mother /when her mother was young. /Laughs like her. /Moves the drift of hair /from her forehead, like her mother. /Can take a cigarette down /To the filter in three draws, /just like her mother. I thought / this visit would be easy. Wrong. /This is hard, brother. Those years /spilling over into my sleep when I try /to sleep. To wake to find a thousand /cigarettes in the ashtray and every light in the house burning. I can t /pretend to understand anything: /today I ll be carried /three thousand miles away into / the loving arms of another woman, not / her mother. No. She s caught /in the flywheel of a new love. / I turn off the last light /and close the door. /Moving toward whatever ancient thing /it is that works the chains /and pulls us so relentlessly on. BABEL 5


trancando-se do lado de fora, depois tentando entrar Você simplesmente sai e bate a porta sem pensar. E quando olha de novo para o que fez já é tarde. Isto soando como a história de uma vida, tudo bem.

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Chovia. Os vizinhos que guardavam uma chave, longe. Tentei e tentei as janelas de baixo. Contemplei lá dentro o sofá, plantas, a mesa e cadeiras, o jogo estéreo de som. Minha xícara de café e cinzeiro esperavam por mim na mesa com tampo de vidro, e meu coração se abriu até eles. Eu disse, Oi, turma, Ou algo assim. Afinal, isso não era tão grave. Coisas piores haviam acontecido. Essa era até meio cômica. Achei a escada. Peguei-a e firmei contra a casa. Então escalei na chuva até a sacada, girei o corpo sobre o gradil e tentei a porta. Que estava trancada, claro. Mas olhei lá dentro do mesmo jeito para minha mesa, alguns papéis, e minha cadeira. Esta era a janela do outro lado da mesa de onde eu ergueria o olhar e o lançaria para fora quando sentado. Isso não é como lá embaixo, pensei. Isso é outra coisa. E era estranho olhar o interior, sem ser visto, da sacada. Estar lá, dentro, e não estar. Nem me acho capaz de falar no assunto. Aproximei meu rosto do vidro e me imaginei lá dentro, sentado à mesa. Erguendo os olhos do trabalho volta e meia. Pensando em algum outro lugar e algum outro tempo. Nas pessoas que eu amei antes. Fiquei ali um minuto debaixo da chuva. Me achando o homem mais sortudo do mundo. Mesmo com a onda de tristeza que passou por mim. Mesmo com a vergonha agressiva que senti pelas mágoas que havia provocado antes. Eu arrebentei a linda janela. E entrei de novo. Janeiro a Dezembro de 2002


locking yourself out, then trying to get back in You simply go out and shut the door without thinking. And when you look back at what you have done it s too late. If this sounds like the story of a life, okay.

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It was raining. The neighbors who had a key were away. I tried and tried the lower windows. Stared inside at the sofa, plants, the table and chairs, the stereo set-up. My cofee cup and ashtray waited for me on the glass-topped table, and my heart went out to them. I said, Hello, friends, or something like that. After all, this wasn t so bad. Worse things had happened. This was even a little funny. I found the ladder. Took that and leaned it against the house. Then climbed in the rain to the deck, swung myself over the railing and tried the door. Which was locked, of course. But I looked in just the same at my desk, some papers, and my chair. This was the window on the other side of the desk where I d raise my eyes and stare out when I sat at the desk. This is not like downstairs, I thought. This is something else. And it was something to look in like that, unseen, from the deck. To be there, inside, and not be there. I don t even think I can talk about it. I brought my face close to the glass and imagined myself inside, sitting at the desk. Looking up from my work now and again. Thinking about some other place and some other time. The people I had loved then. I stood there for a minute in the rain. Considering myself to be the luckiest of men. Even though a wave of grief passed through me. Even though I felt violently ashamed of the injury I d done back then. I bashed that beautiful window. And stepped back in.

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Quando veio à minha casa meses atrás medir paredes para uma estante, Jim Sears não me pareceu um homem que perderia seu único filho para a correnteza forte do rio Elwha. Ele tinha os cabelos cheios, era confiante, estalando os dedos, vivo e com energia, enquanto nós discutíamos prateleiras, mãos-francesas, e esse tom de madeira, comparado àquele. Mas é uma cidade pequena, esta cidade, um mundo pequeno aqui. Seis meses depois, uma vez a estante construída, entregue e instalada, o pai de Jim, um sr. Howard Sears, dando uma força para o filho vem pintar nossa casa. Ele me conta quando eu pergunto, mais por cortesia interiorana que outra coisa, Como vai o Jim? que seu filho perdeu Jim Jr. no rio durante a última primavera. Jim se culpa demais. Não consegue superar, também, acrescenta o sr. Sears. Talvez tenha perdido ainda um pouco do juízo, ele completa, puxando a ponta do boné com o nome da oficina. Jim teve de ficar em pé e assistir enquanto o helicóptero agarrou e então ergueu, do rio, o corpo de seu filho, com garras. Usaram como que duas grandes garras para isso, imagine. Presas a um cabo. Deus sempre leva os mais doces, não é? diz o sr. Sears. Ele tem seus propósitos misteriosos. O que você pensa disso? Eu quero saber. Não quero pensar, ele diz. Nós não podemos perguntar ou questionar Seus atos. Não cabe a nós saber. Só sei que Ele agora o levou pra casa, o pequeno. Ele continua e me conta que a esposa de Jim pai o fez visitar treze diferentes países da Europa na esperança de que o ajudariam a se reerguer. Mas não ajudaram. Ele não superou. Missão não cumprida, diz Howard. Jim descobriu que está com o mal de Parkinson. O que falta acontecer? Agora voltou da Europa, mas ainda se culpa por ter mandado Jim Jr. até o carro aquela manhã procurar as garrafas térmicas com limonada. Não precisavam de limonada nenhuma aquele dia! Senhor, senhor, em que ele estava pensando, Jim pai dissera cem não, mil vezes já, e para qualquer um disposto a ouvir de novo. Se ele não tivesse feito limonada, para começar, aquela manhã! Em que podia estar pensando? E mais, se não tivessem feito compras na loja de conveniências uma noite antes, e se aquela gôndola de limões amarelos não ficasse junto de onde botavam as laranjas, maçãs, melões e bananas. Era o que Jim pai realmente desejava comprar, umas laranjas e maçãs, não limões para limonada, danem-se os limões, ele odiava limões pelo menos agora odiava mas Jim Jr., ele gostava de limonada, desde sempre. Ele quis limonada.

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limonada


Lemonade

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When he came to my house months ago to measure my walls for bookcases, Jim Sears didn t look like a man who d lose his only child to the high waters of the Elwha River. He was bushy-haired, confident, cracking his knuckles, alive with energy, as we discussed tiers, and brackets, and this oak stain compared to that. But it s a small town, this town, a small world here. Six months later, after the bookcases have been built, delivered and installed, Jim s father, a Mr. Howard Sears, who is covering for his son comes to paint our house. He tells me when I ask, more out of small town courtesy than anything, How s Jim? that his son lost Jim Jr. in the river last spring. Jim blames himself. He can t get over it, neither, Mr. Sears adds. Maybe he s gone on to lose his mind a little too, he adds, pulling on the bill Of his Sherwin-Williams cap. Jim had to stand and watch as the helicopter grappled with, then lifted, his son s body from the river with tongs. They used like a big pair of kitchen tongs for it, if you can imagine. Attached to a cable. But God always takes the sweetest ones, don t He? Mr. Sears says. He has His own mysterious purposes. What do you think about it? I want to know. I don t want to think, he says. We can t ask or question. His ways. It s not for us to know. I just know He taken him home now, the little one. He goes on to tell me Jim Sr. s wife took him to thirteen foreign countries in Europe in hopes it d help him get over it. But it didn t. He coudn t. Mission unaccomplished, Howard says. Jim s come down with Parkinson disease. What next? He s home from Europe now, but still blames himself for sending Jim Jr. to the car that morning to look for that thermos of lemonade. They didn t need any lemonade that day! Lord, lord, what was he thinking of, Jim Sr. Has said a hundred no, a thousand times now, and to anyone who will still listen. If only he hadn t made lemonade in the first place that morning! What could he have been thinking about? Further, if they hadn t shopped the night before at Safeway, and if that bin of yellowy lemons hadn t stood next to where they kept the oranges, apples, grapefruit and bananas. That s what Jim Sr. Had really wanted to buy, some oranges and apples, not lemons for lemonade, forget lemons, he hated lemons at least now he did but Jim Jr., he liked lemonade, always had. He wanted lemonade.

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Vamos olhar por este ângulo, Jim pai diria, aqueles limões tiveram que vir de algum lugar, não tiveram? Do Vale Imperial, provavelmente, ou das imediações de Sacramento; cultivam limões lá, certo? Eles precisaram ser plantados e irrigados e cuidados e então postos em sacos por trabalhadores rurais e pesados e então jogados em caixas e fretados por trem ou caminhão para este fim-de-mundo onde um homem não pode fazer nada que não seja perder o filho! Aquelas caixas teriam sido descarregadas do caminhão por meninos não muito mais velhos que o próprio Jim Jr. Então precisaram ser despregadas e tudo que nelas era amarelo e cheirava a cítrico foi despejado pelos tais meninos, e lavado e higienizado por algum pixote que ainda vivia naquele instante, andando pela cidade, vivendo e respirando, do tamanho que você quiser. Então os limões seguiram para a loja e foram depositados na gôndola sob a placa chamativa que dizia Você Bebeu Limonada Esta Semana? Do jeito que Jim pai armava o compto geral, este ia às causas mais longínquas e primárias, ia ao primeiro limão cultivado na terra. Se não houvesse limões na terra, se não houvesse nenhuma loja de conveniências, bem, Jim ainda teria seu filho, certo? E Howard Sears ainda teria o neto, sem dúvida. Veja, muita gente tomara parte nessa tragédia. Os fazendeiros e os catadores de limão, os motoristas de caminhão, a grande loja de conveniências... Jim pai, também ele, estava pronto a assumir sua responsabilidade, é claro. Era o maior culpado de todos. Mas ele ainda estava em queda livre, Howard Sears me contou. No entanto, precisava dar um jeito de sair dessa e tocar a vida. O coração de todos estava partido, de fato. Mesmo assim. Há pouco tempo, a esposa de Jim pai o colocou numa modesta aula de marcenaria aqui na cidade. Agora ele está aprendendo a desbastar pequenos ursos, e focas, corujas, águias, gaivotas, qualquer coisa, mas não consegue se ater o suficiente a nenhuma criatura para terminar o trabalho, avalia o sr. Sears. O problema é, Howard Sears prossegue, toda a vez que Jim pai levanta os olhos de seu torno, ou sua goiva, ele vê o filho aflorando das águas rio abaixo, e subindo no ar sendo rebobinado, por assim dizer começando a girar e girar em círculos até chegar no alto, bem acima dos pinheiros, garras espetadas em suas costas, e então o helicóptero fazendo a volta e gingando rio acima, acompanhado do urro e flap-flap das hélices cortantes. Jim Jr. passa alto sobre os rastreadores em fila na margem do rio. Seus braços estão abertos, e dele voam gotas de água. Sobrevoa outra vez, mais próximo, e então um minuto mais tarde volta para ser depositado, com incrível gentileza deitado, diretamente aos pés de seu pai. Um homem que, tendo visto tudo agora seu filho morto se erguer do rio preso a garras de metal e girar e girar em círculos voando acima das árvores não ia querer nada mais além de simplesmente morrer. Porém a morte é para os mais doces. E ele se lembra da doçura, quando a vida era doce, e com açúcar lhe foi dada aquela outra vida. Janeiro a Dezembro de 2002


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Let s look at it this way, Jim Sr. would say, those lemons had to come from someplace, didn t they? The Imperial Valley, probably, or else over near Sacramento, they raise lemons there, right? They had to be planted and irrigated and watched over and then pitched into sacks by field workers and weighed and then dumped into boxes and shipped by rail or truck to this god-forsaken place where a man can t do anything but lose his children! Those boxes would ve been off-loaded from the truck by boys not much older than Jim Jr. himself. Then they had to be uncrated and poured all yellow and lemony-smelling out of their crates by those boys, and washed and sprayed by some kid who was still living, walking around town, living and breathing, big as you please. Then they were carried into the store and placed in that bin under that eye-catching sign that said Have You Had Fresh Lemonade Lately? As Jim Sr. s reckoning went, it harks all way back to the first causes, back to the first lemon cultivated on earth. If there hadn t been any lemons on earth, and there hadn t been any Safeway store, well, Jim would still have his son, right? And Howard Sears would still have his grandson, sure. You see, there were a lot of people involved in this tragedy. There were the farmers and the pickers of lemons, the truck drivers, the big Safeway store... Jim Sr., too, he was ready to assume his share of responsability, of course. He was the most guilty of all. But he was still in his nosedive, Howard Sears told me. Still, he had to pull out of this somehow and go on. Everybody s heart was broken, right. Even so. Not long ago Jim Sr. s wife got him started in a little wood-carving class here in town. Now he s trying to whittle bears and seals, owls, eagles, seagulls, anything, but he can t stick to any one creature long enough to finish the job, is Mr. Sears assessment. The trouble is, Howard Sears goes on, every time Jim Sr. looks up from his lathe, or his carving knife, he sees his son breaking out of the water downriver, and rising up being reeled in, so to speak beginning to turn and turn in circles until he was up, way up above the fir trees, tongs sticking out of his back, and then the copter turning and swinging upriver, accompanied by the roar and whap-whap of the chopper blades. Jim Jr. passing now over the searchers who lined the bank of the river. His arms are stretched out from his sides, and drops of water fly out of him. He passes overhead once more, closer now, and then returns a minute later to be deposited, ever so gently laid down, directly at the feet of his father. A man who, having seen anything now his dead son rise from the river in the grip of metal pinchers and turn and turn in circles flying above the tree line would like nothing more now than to just die. But dying is for the sweetest ones. And he remembers sweetness, when life was sweet, and sweetly he was given that other lifetime. BABEL 5


POESIA HOJE BRASIL Elaine Pauvolid

TARDES Perto do mar. Vento-pipa desenrolando perfume de seus lábios vaginais - percebo longe, seu vestido inflado pela vertigens do sexo. Os muitos quadros amaldiçoados respirando sôfregos na sala escura de um museu distante de nossas tardes alvas.

Faça o meu almoço, por favor. Mas não ponha muito molho no macarrão. Porque o quero parecido àqueles bichinhos brancos andando pelo chão.

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CHÃO


POESIA HOJE BRASIL Marcelo Ariel

Sonho que sou João Antônio sonhando que é Fernando Pessoa

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Num subterrâneo Letes ou num Eufrates interno tocando ramos de invisível água ou fazendo círculos com pedrinhas atiradas num Tejo etéreo Não importa... A quimera esfinge me espera em todas as margens tendo à sua direita Pessoa, Sá-Carneiro e Antero que riem do riso de cérbero. Quando por eles passo sou acordado e como se sonhasse vou ao encontro de Adília Lopes que está dançando nua na fonte cercada por uma auréola de baratas brancas. Adília me aponta uma carreira de formigas subindo aos céus... Onde nuvens formam o rosto de Dante, sentado cá embaixo e desta vez desperto, vejo um anjo torto de oito asas lendo perto da casa de Adélia Prado... Sabendo da existência de uma igreja quase ali defronte, pergunto ao anjo: e aí, meu irmão, não vai pra missa? O anjo diz: não, eu vim pelas formigas. E Deus?, volto a perguntar... Está lá ouvindo Bach. Vou até a igreja, empurro a porta e entro num terreno baldio onde anjos sem asa jogam bola com moleques sem camisa, todos muito felizes como se realmente existissem

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Caranguejos aplaudem Nagasaki

Para Gilberto Mendes & Mano Brown

(Vila Socó) Corpos em chamas se atiram na lama mulheres e crianças primeiro caranguejos aplaudem nossa Nagasaki bebê de oito meses é defumado enquanto Beatriz agora entende o poema derradeiro Beatriz mãe solteira antes de morrer deu um inútil pontapé na porta

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No ar gritos mudos a noite branca da fumaça envolve tudo alguém no bar da esquina pensa em Hiroxima nas vozes horror e curiosidade acordaram a cidade se misturando dentro do inferno olhos clamam por telefone o ministro é informado -O fogo os consome... A sirene das fábricas não silencia Dois serafins passando pelo local sussurram no ouvido do Criador Vila Socó: meu amor Uma velha permaneceu deitada em volta da cabeça na auréola o último pensamento passa o coro das sirenes no meio do breu iluminado uma garça voa assustada com os humanos e seu inferno criado no mangue o vento move as folhas Um bombeiro grita: -KSL!... O fogo está contra o vento! Câmbio

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Foi Deus quem quis diz o mendigo que sobreviveu porque estava dormindo no bueiro da avenida. Um orgasmo é cortado ao meio quando o casal percebe o fogo queimando o espelho. Voltando no tempo lamentamos o movimento do gás levíssimo iceberg que converteu fogo em fogo, horror e horror

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Vila Socó estacionou na História ao lado de Pompéia, Joelma e Andrea Doria Pensando nisso ergo neste poema um memorial para nós mesmos vítimas vivas do tempo onde se movimenta a morte se espalhando na paisagem como o gás que também incendeia o sol (bomba de extensão infinita (Beatriz sentou perto da porta e ficou olhando o fogo. Até que invade a cena a luz suave de um outro sol frio Fim de jogo. (O que não queima) Beatriz agora é outra coisa e contempla: raios negros num céu negro depois brancos num céu branco suavemente penetrei num jardim onde uma única árvore existe. (O incêndio acaba e a garça pousa no mangue, onde os anjos sonham) Naquela noite um acordou andou no meio das chamas e as chamas o queimaram. BABEL 5


Ontologia e merda Entre o caos de Pirandello e o de Pasolini invade o poema um menininho fumando crack na esquina Dentro da vida cínica entre o caos de Afonso Henriques Neto e o caos convertido em teatro fatal pelo menino penso em dar um tiro de misericórdia nos poemas Poemas são a merda da alma e o tempo é uma lenta bala perdida, me diz o silêncio do menino.

Beckett para as crianças

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Aqui havia um espaço em branco e uma vontade estranha resolveu... ...escrever nele um poema inexplicável chamado tudo. Ali há um espaço em negro... ...chamado simplesmente de espaço... ...se eu flutuar bem rápido dentro dele logo dou de cara com um deus chamado buraco, que engole tudo tão rápido que não sobra nem você lendo.

Words Algumas palavras podem ser um incêncio da alma outras nada no fim uma escuridão dourada também voa quando o fogo do silêncio tudo apaga. Outras em febre se divorciam das coisas nomeadas e são as mais raras. Outras se tornam centelhas ocas mortas no dicionário outras centelhas vivas nas lápides.

A velocidade máxima Anulados eles entrarão nus nos carros os carros serão como nuvens Janeiro a Dezembro de 2002


POESIA HOJE BRASIL Maria Esther Maciel

MAPA O corpo em seus pontos obscuros: a cicatriz, a mancha na pele, o que raras vezes a roupa revela. O corpo em seus pontos absurdos: o que o desejo no fundo

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encerra.

SOBRE UM FILME DE WONG KAR-WAY O corpo e seus possíveis. O dentro que, na pele, vira flor. Os cheiros, a memória do que, de tão breve, não fica senão como sombra líquida quase cítrica desse amor. BABEL 5


BLACKHEATH

A poesia me chama entre as árvores de folhas incompletas. O vento é frio, apesar de terno. Corvos mancham o azul sem peso desta tarde que não começa. O trem também me chama. E não vou.

REGALIA Quando meu pai voltava da roça

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trazia, além da alegria garrafas de leite cru. Às vezes, cestas de ovos mangas maduras polvilho, açafrão em pó. Trazia o cheiro das coisas sem malícia. A memória dos pastos. O azul.

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POESIA HOJE BRASIL Ricardo Schmitt Carvalho

oedipus

cast-off innocent lucky brave bold restless skillful ruthless cold bloody mean fateful deadly pure fine wise bright gifted smart holy doomed earthly guilty horny cocky sultry hot sad mad blunt blind famous first big bad 88

mot h er f u cker

BABEL 5


POESIA HOJE BRASIL André Luiz Pinto

DENTRO estes vasos, canos de fundo e vértebra, flor em flauta, náusea e terror. estes vasos de lama e seda, estas veias estúpidas, estrumes de sangue. vazar por dentro e de fora vasa barris largos de favela percorrem canudos. estes laços de garganta promessas de língua sem pesos de luz negociar, negociar mundos e fundos de terra parida e ausência sob as tripas de mais um homem.

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Como se abrissem os olhos (flash contra retina), como se visses além de tua imagem e da minha, corpos em estágio de honra e putrefação vão-se em vão depois de tudo. Ainda te lembras deste pesado vulto a te deter no retrovisor? Repulsa ao pensamento? Apenas eximiu, releu o inútil livro magro e capenga, a última página, dois, três poemas e basta: engavetado na memória sobre vasos de terracota com sua miopia; ele, sonolento entre lençóis, servindo de testemunha a ser dicionário por ser perigoso.


POESIA HOJE BRASIL Mário Bortolotto

ELA VEIO DA PARAÍBA COM DUAS LIBRAS

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Eu espero pacientemente que ela apareça com suas tatuagens, seus selos canadenses, o último cd do Jeff Buckley sua aliança de noivado sua sede inextinguível sua amnésia mais que oportuna seus pecados mais que mortais Eu espero que ela permaneça por aqui com seu silêncio devastador sua frieza lendária sua dança da chuva sua fome de groupie eu espero que ela se movimente pra mim com seus anéis seu pescoço animal seus lábios de gasolina seus dreadlocks eu espero que ela gaste todo o seu dinheiro comigo que me apresente a suas amigas que me leve pra vê-la dançar que me transmita suas doenças Eu espero que ela venha cantando uma balada do Lenny Kravitz que venha confundindo o tráfego com seus truques de malabarismo com seu cinismo incompreendido ela vai pisar com suas sandálias de névoa em meu coração ela não vai aparecer eu a amo então chamo um táxi e volto pra casa

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POESIA HOJE BRASIL Luiz Roberto Guedes

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T®ANSGÊNESIS esc®eve teu nome em cada g®ão de milho & t®igo mon$anto

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sobre tua natu®a o sol ainda brilha grátis

LRG [21.07.2002]

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POESIA HOJE ESTADOS UNIDOS

Jeffrey Mc Daniel, por Mauro Faccioni Filho

LOGIC IN THE HOUSE OF SAWED-OFF TELESCOPES I want to sniff the glue that holds the families together. I was a good boy once. I listened with three ears. When I didn t get what I want, I never cried. I banged my head over and over the kitchen floor. I sat on a man s lap. I took his words that tasted like candy. I want to break something now. I am the purple lips of a child throwing snowballs at a taxi. There is an alligator in my closet. If you make me mad, it will eat you. I was a good boy once. I had the most stars in the classroom. My cheeks erupted with rubies. I want to break something now.

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My bedroom is so dark I feel like an astronaut. I wish someone would come in and kiss me. I was a good boy once. The sweet smelling woman used to say that she loved me and swing me in her arms like a chandelier. I want to break something now. My heart beats like the meanest kid on the school bus. My brain tightens like a fist. I was a good boy once. I didn t steal that kid s homework. I left a clump of spirits in its place. I want to break something now. I can multiply numbers faster than you can. I can beat men who smoke cigars at chess. I was a good boy once. I brushed my teeth and looked in the mirror. My mouth was a brilliant wound. Now it only feels good when it bleeds.

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LÓGICA NA CASA DOS TELESCÓPIOS DE CANO-SERRADO Eu quero cheirar a cola que mantém as famílias unidas. Já fui um bom garoto. Ouvia com três ouvidos. Quando não conseguia o que queria, nunca chorava. Batia a cabeça no chão da cozinha mais e mais. Sentei no colo de um homem. Ouvi suas palavras que pareciam como doces. Agora eu quero arrebentar alguma coisa.

Meu quarto é tão escuro que me sinto como um astronauta. Eu gostaria que alguém viesse e me beijasse. Já fui um bom garoto. A mulher doce e cheirosa dizia que me amava Rodando-me nos seus braços como um lustre. Agora eu quero arrebentar alguma coisa. Meu coração bate como o do moleque mais travesso do ônibus escolar. Meu cérebro fecha-se como um punho. Já fui um bom garoto. Eu não roubei a tarefa daquele menino. No seu lugar deixei um monte de fantasmas. Agora eu quero arrebentar alguma coisa. Posso multiplicar grandes números mais rápido que você. Posso vencer no xadrez os homens que fumam charutos. Eu já fui um bom garoto. Escovava os dentes e olhava no espelho. Minha boca era um rasgo brilhante. Agora ela só está bem quando sangra.

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Sou os lábios roxos da criança atirando bolas de neve no táxi. Há um jacaré no meu armário. Se você me fizer mal, ele comerá você. Eu já fui um bom garoto. Era o que mais ganhava estrelas na sala de aula. Minhas bochechas avermelhavam como rubis. Agora eu quero arrebentar alguma coisa.


THE WOUNDED CHANDELIER I went into a bar and ordered a childhood dream. A woman came in and sat down next to me. She was rather lanky for an amputee. A voice said she s too shallow to dive into. You ll break your nose on her concrete psyche. I didn t listen. As a way of shattering the ice, I told the story about the hemophiliac who went bungee jumping, how his body was this delicate sack of blood, bouncing up and down in the air. I found myself whispering things like I only have eyebrows for you. She asked me to take her home. I carried her promises up the stairs. They were as fragile as lightbulbs.

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I was gonna defy gravity in her celestial body, but I had performance anxiety so I wrote Baby Jupiter in black magic marker on her forehead and plummeted back into the bar.

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O LUSTRE ESTRAGADO Entrei num bar e pedi um sonho infantil. Um mulher veio e sentou-se junto a mim. Era até bem magrelinha pra uma mutilada. Uma voz disse ela é muito rasa para mergulhar. Você vai arrebentar o nariz na sua psique de concreto. Não dei ouvidos. Achando um jeito de quebrar o gelo contei a história sobre o hemofílico pulando do bungee jumping, como seu corpo era um delicado saco de sangue, vergando acima e abaixo no ar. Dei comigo sussurrando coisas como só tenho sobrancelhas para você. Ela pediu-me para levá-la pra casa.

Eu estava para desafiar a gravidade em seu corpo celestial mas fui invadido de ansiedade, então escrevi Baby Júpiter com um pincel mágico na sua testa e me atirei de cabeça de volta ao bar.

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Levei suas promessas escadas acima. Eram tão frágeis como o vidro das lâmpadas.


LEONARD The boy was bright, like the retarded girl he set on fire. No one predicted she d ever be so understood. Death has a way of making sense out of everything. Take that mother in New York City who dragged her daughter down Avenue B from a 78 Buick s back fender. Didn t the whole block agree this was no way to celebrate a birthday ? But who hasn t gotten mad and dreamed of shining a lit cigarette into someone s ear ? Who hasn t been lonely and fantasized about covering couples kissing in public with blankets of kerosene ? Like I said, the boy was bright perfect scores on thirty-seven consecutive math tests, a national chess champ at thirteen and Columbus Junior High bored him,

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so one Christmas Eve, he set a retarded girl named Rachel Cleaves on fire and watched Delancey Street fill with people, amazed at what they d done.

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LEONARD O garoto era brilhante, como a garota retardada que ele tocou fogo. Ninguém previu que ela seria tão bem compreendida. A Morte tem um jeito de fazer sentido acima de tudo. Pegue aquela mãe de Nova Iorque que arrastou sua filha pela Avenida B presa no paralama traseiro de um Buick 78. A massa de prédios não concorda que este não é o jeito de celebrar um aniversário? Mas quem já não endoidou e sonhou esfregar um cigarro aceso na orelha de alguém? Quem já não esteve só e fantasiou sobre cobrir casais beijando-se em público com banhos de querosene? Como eu disse o garoto era brilhante notas perfeitas em trinta e sete consecutivos testes de matemática, um campeão nacional de xadrez aos treze e o colégio Columbus Júnior o aborreceu

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então uma véspera de Natal, numa garota retardada chamada Rachel Cleaves ele tocou fogo e assistiu a Rua Delancey encher de pessoas pasmas com o que eles tinham feito.

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GREAT HUMANS When Hart Crane leaped from the Oriziba all the poems still in his head floated to the surface of the Gulf of Mexico where they sparkled like tropical fish. Sylvia Plath plucked her skull in the oven because her cranium was packed with images that were only half-baked. Houdini could make tattoos levitate. Sigmund FreudÂ’s middle name was Buck. J. Edgar Hoover only wore black bras. Hitler took the fun out of funerals. We donÂ’t have great humans anymore. We have great drugs. Proh-zak sounds like all your problems being electrocuted.

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Meth-am-fet-a-meen sounds like a school bus your mouth is always late for. Snort enough cocaine and just watching the sun rise will feel like a form of plastic surgery. Heroin is an extremely comfortable shirt, that hurts when you take it off, and a junkie is just a vampire, sucking the last pint of blood from his own neck.

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GRANDES HOMENS Quando Hart Crane saltou do Oriziba todos os poemas ainda em sua cabeça flutuaram para a superfície do Golfo do México onde cintilavam como peixes tropicais. Sylvia Plath enfiou a cabeça no forno porque seu crânio estava repleto de imagens que ainda estavam mal cozidas. Houdini podia fazer as tatuagens levitarem. O nome do meio de Sigmund Freud era Macho. J. Edgar Hoover só vestia sutiãs negros. Hitler tirou sarro dos funerais. Já não temos grandes homens mais. Temos grandes drogas. Pro-zak soa como todos nossos problemas sendo eletrocutados. 99

Met-am-fet-a-mina soa como um ônibus escolar para o qual sua boca está sempre atrasada. Cheirar um tanto de cocaína e apenas ver o sol raiar fará sentir como numa espécie de cirurgia plástica. Heroína é uma roupa extremamente confortável que dói quando você a tira, e um drogado é como um vampiro, sugando a última gota de sangue do próprio pescoço.

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ENTREVISTA por Mauro Faccioni Filho

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Daniel Muxica No ano 2000 iniciamos a publicação da Babel, mas isso não era o início de mais uma revista, e sim a documentação consistente de uma série de atividades, questionamentos e pesquisas, que extrapolavam (e extrapolam) em muito a simples atividade gráfica. Naquele momento imaginamos que não era o momento de simplesmente fazer revisões do passado, mas de investir num estudo do que está acontecendo no momento presente, com todos os riscos de erro que isso implica. E uma dessas atividades, voltadas ao agora, era (e é) a da tradução. Isto está presente desde a Babel 1, com novos autores que buscamos conhecer pelos mais diversos caminhos e meios de pesquisa. Assim, já com o primeiro número publicado, iniciamos alguns diálogos com poetas argentinos (para ficar apenas no assunto da entrevista que segue) e o intercâmbio entre nossas publicações. Como muitas outras vezes, o acaso foi quem trouxe as novidades. Numa livraria de Buenos Aires, ao vasculhar a prateleira de poesia, o vendedor veio perguntar sobre preferências. E tendo perguntado por revistas, ele comentou animado sobre uma exótica publicação que parecia um pergaminho enrolado e amarrado eram os rollos del mal muerto. Daquela publicação intrigante nasceu um ótimo relacionamento, que depois se confirmou num encontro, já no Brasil, com seu editor, Daniel Muxica. Poeta, ficcionista, editor da La Bohemia, Daniel começou a publicar em 1976, com Hermanecer (poemas, Editorial Schapire), depois mais nove livros até Bailarina privada, em 2001 (poemas, La Bohemia), de onde foi traduzido o poema que segue a entrevista abaixo. Na entrevista se pode perceber sua grande cultura e a reflexão incisiva sobre a Argentina atual, as lutas internas da poesia e as revistas que tentam estruturar os becos de cada grupo, exatamente igual ao que se faz aqui. [Mauro Faccioni Filho]

BABEL - Já no título sua revista traz uma série de conotações, como o Mal , e que esse mal já estaria Muerto . E ao mesmo tempo com ótimo humor, ao comparar o trabalho aos Rolos do Mar Morto . De onde surgiu a necessidade de uma revista como essa no cenário da poesia argentina? Ainda há alguma vida nadando nas águas desse mal muerto ? BABEL 5


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MUXICA - O azar sempre joga um papel preponderante nas decisões. O cenário da poesia argentina não necessitava de outra revista e muito menos ainda de tanta incomodação real (além de qualquer especulação intelectual) para predispor sua platéia à leitura. Tinha que ver com voltar a certas coisas situadas lá atrás... bem atrás, no tempo em que a escrita era uma forma de reserva, de memória, antes que de comunicação. Os rolos de Qum Ram, do Mar Morto... o jogo parononímico acabou por decidir o nome dado que nos permitia um corrimento do descritivo geográfico a certo grau ideológico. O Mal Morto (ainda que permita muitas especulações), como escrevemos no primeiro editorial, é um morto que morreu mal e para o qual ainda não há lugar no céu nem no inferno. Também escapa ao purgatório, o lugar dos laxantes, porque é contra pagar ingresso para entrar. Digamos assim, o nosso morto sente-se bem no No Lugar . Talvez por isso Los Rollos del Mal Muerto, contra tudo o que se espera, não é um projeto comunicacional ; os rolos nada têm a comunicar, mas, quem sabe, sim, algo que dizer. Não importa o que os autores querem comunicar, mas o que os textos dizem. No meu caso, se desejo comunicar-me, uso o telefone (ou o e-mail). O que vou dizer-lhes possivelmente seja um exagero, mas não uma ficção. Creio que não chegamos ainda ao anonimato nos textos porque é possível que ninguém nos daria seus trabalhos para publicar (a tangível contradição escritor/autor). Fracassaram os míseros e anônimos artesãos que propunha Beckett para um hipotético tecido escritural universal, logo da morte das religiões (que foi muitíssimo antes do decreto nietszchiano no final do século XIX sobre a morte de Deus). Digamos que o tecido, mal cuidado, foi roído. Se mantemos a autoria dos publicados (a quem em muitos casos não conhecemos), é porque também está em jogo o prestígio do conselho de redação e do diretor que, para isso como os empregados do mês no McDonald s , figuramos no quadrinho de honra intitulado Staff. Tem se visto publicações culturais que colocam as fotografias dos seus colaboradores e não a do autor do livro que comentam. Perdão pela digressão. Mas, em algum lugar da minha intimidade, a exposição que um escritor suporta socialmente como autor me provoca riso. Todo projeto comunicacional é um projeto de poder. Não se precisa ser simplório nem cínico com isso. Los Rollos del Mal Muerto não escapam disso. A maioria das revistas argentinas serviram e servem com órgão de difusão para apoiar um movimento poético-literário quando são boas, (por exemplo: Diario de Poesía, Xul, Tsé~Tsé, Ultimo Reino ou Hablar de Poesía, ainda que tenhamos com algumas profundos desacordos ideológicos e/ou estéticos), e quando são más simplesmente apóiam facções. Nos últimos vinte anos, o casamento entre as letras, a crítica e o periodismo marcou o dizer poético. Os resultados publicitários e de posicionamento têm sido tão bons, em alguns casos, que esse casamento nos tenta, sobretudo pela ménage-à-trois. Mas, no fundo, pessoalmente, continua me desanimando. Cá entre nós, não sei se poderemos gerar uma publicação que seja depositória, um tanto menos especulativa no mediático e mais aberta quanto ao devir da literatura. Digamos ainda que soe pretensioso, que poderia definir Los Rollos del Mal Muerto como uma pequeníssima hemeroteca panorâmica e eclética. A leitura nos rolos é trabalhosa, a poesia que pode haver nela se dobra sobre si mesma. Quando alguém neste caso como leitor trabalha, gera uma leitura menos especulativa.


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BABEL - No primeiro número o subtítulo Una revista incómoda define uma estratégia de trabalho e de crítica. A quem a revista pretende incomodar, e como ela está posicionada frente às outras revistas e periódicos do seu país? MUXICA - O subtítulo segue sendo o mesmo: Uma revista incômoda e tem a ver com o que expus anteriormente: gerar uma forma trabalhosa que nos tire de um certo aburguesamento. Sobretudo se se pensar desde o mercado poético de Buenos Aires, onde majoritariamente estamos, que não creio que supere a duas mil pessoas, quando há quase o dobro ou mais que escrevem poesia . Em Buenos Aires escreve-se poesia mais do que se lê. O discurso da mídia a respeito da poesia é de uma democratização supina, exagerada e sua conseqüência é que qualquer um pode escrever poesia; porém isso leva a uma ilusão e não é qualquer um que pode ler poesia. Estou convencido que a equação é exatamente o contrário. Não faz muito me incluíram numa reportagem, junto a outros escritores, publicada numa revista de grande circulação, e a jornalista, professora de letras, me perguntou em dois momentos distintos: 1) o que fazíamos os poetas para chegarmos nas pessoas, porque elas não nos entendiam; 2) se havia começado a escrever por uma frustração amorosa. As questões, para lá de cômicas que sejam, demonstram o desconhecimento sobre o assunto que se aborda. É o mesmo que dizer que a poesia é aquilo que as pessoas não entendem ou é aquilo que qualquer um escreve, por exemplo, aos quinze anos quando se é abandonado pela namorada. Sem dúvida, uma contradição perversa. Os Rollos são incômodos para esta época, porque está na sua natureza, como objeto da incomodação. Estou convencido que aquele que desfruta da leitura lê até uma bula de remédio; e aquele que não lê, por mais que possamos facilitar-lhe o acesso, gerando motivações extraliterárias, não lerá. É uma visão um tanto ortodoxa e elitista se se quiser, porém para meu gosto é mais uma visão campesina , simplória , que prefiro despojar de qualquer dupla interpretação ou de qualquer metáfora. Um velho refrão galego diz: prefiro perder as cartas... A incomodação se dá primeiro por uma dificuldade real que em segunda instância pode começar a traduzir-se como uma incomodação de ordem crítica. Acredito, todavia, que não a desenvolvemos em sua real dimensão. Isso obedeceu a uma certa estratégia. Antes da confrontação crítica necessitávamos posicionar no público (que majoritariamente são escritores) uma revista que, longe de atitudes controversas ou marginais, fizesse menção de nossa forma de conceber a poética como parte do dizer. Desculpe-me se insisto com essa palavra, porém creio que animou essa tomada de posição uma visão heideggeriana do poético. Isso fez pensar a revista antes como construção que como produto. Escritor e leitor, no caso da poesia é quase o mesmo. Há uma retroalimentação entre escritores/leitores e leitores/escritores que dá sustento a uma espécie de comércio depreciado. O desejo, a necessidade juvenil que é um dos hexagramas do I Ching, seria o de molestar a todos, incluindo os jovens escritores e leitores que têm uma visão muito mais imortal sobre sua obra e suas leituras. Em um mundo tão comunicado como o que vivemos, a falta de temporalidade, a desatualização quanto a modas literárias ou simples modismos incomoda. Outra discussão incômoda é se a poesia é unicamente literatura. Um texto pode estar bem escrito, porém isso não o valida como poético. Pode resultar BABEL 5


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incômodo chamar aos poetas de escritores que às vezes acedem à poesia e outras vezes, não. Em algum lugar a existência mesma da revista pode conceber-se como uma incomodação para um meio (como o argentino) em que um escritor é um desaparecido até que negocia as relações sociais necessárias ou um projeto de poder. O mal é que esse projeto se esgota (não como publicação, mas como projeto), em muitos casos, exatamente aí, quando se chega ao posicionamento pessoal ou de um grupo pertencente a um movimento. Um cinismo qualificado , porque o bom cínico é a prerrogativa intelectual no meio em que estamos imersos: o cinismo é uma homenagem que o vício faz à virtude. No melhor dos casos em muitas das revistas que conheço apenas se executa uma forma de centralismo democrático quanto aos escritores que expõem. Creio que Los Rollos del Mal Muerto nestes dois anos de continuidade ganhou um espaço na Argentina, contudo conseguiu mais espaço ainda fora. Sei que nos levará tempo gerar um discurso próprio e ampliar o registro político (isto é, de liberdade poética). A nenhum dos que estão no conselho de redação ocorreria a idéia de formar um grupo ou movimento . BABEL - Los Rollos, que já chegou ao número 4 em dois anos de existência, vem traçando um mapa das novas produções poéticas da Argentina e de outros países da América Latina, tanto na divulgação dos trabalhos como no estudo crítico. Para o leitor brasileiro, como você poderia apresentar um panorama da produção argentina das últimas décadas e as preocupações e tendências da situação atual? MUXICA - Há uma tendência na Argentina de se demonstrar que a sua última geração poética, os noventistas , é objetivista, uma espécie de fabel brechtiana porém sem ideologia política, que é o único traço que os aparenta geracionalmente com o resto das tendências dos escritores atuais, marcados majoritariamente (salvo exceções) por uma necessidade regressiva de permanecer na adolescência ou, pelo menos, de evocála. Teria começado essa tendência nos anos setenta com Alejandra Pizarnik? Vá alguém saber e ademais não se trata de inocências ou culpabilidades. O certo é que é todo um signo da época. A adolescência, em determinada idade, é uma forma de escapismo. Uma série de textos aparentados não já com os deuses do Olimpo, mas com superheróis norte-americanos ou japoneses transpõem a problemática da solidão (crianças em frente à televisão) discorrendo em uma cultura cyberecologista sobre os fatos mínimos de sua prisão. Digamos assim: antes do sofrimento de Leopoldo Panero é preferível a cápsula . A reflexão sobre o insignificante acaba por demolir o sentido trágico, o que não é desdenhável ante o destino, mas, por sua vez, golpeia e adormece a intuição. A intuição e não a academia é que pode quebrar a linha reta sobre a qual esses pontos insignificantes traçam uma tragédia ainda mais linear do que a tradicional. A vontade movimentista do objetivismo poético na Argentina os tem levado a ter que justificar seu destino como a forma adequadamente cínica e em alguns casos como receita da boa escrita, renegando do ponto incidental da escrita que é o histórico social e político. Concordo com o trabalho de Ariel Gombert sobre o objetivismo nos noventa no qual diz: carece essenciamente de densidade própria. O procedimento formal é não ter nada significativo para dizer ou ao menos assinalar. Creio que essa confusão (o fato mesmo como [foco de] sentido) é a confusão chave da ideologia objetivista... A presumida futilidade da matéria significante , reduz-se simplesmente à matéria entendida como


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significado... que mantém a base de um distanciamento formal que considera que ver telenovelas para ironizar sobre seus avatares é um exercício de lucidez . Para o bem ou para o mal, entre as seções literárias dos jornais de maior circulação e entre uma série de críticos que escrevem neles, bem como em revistas literárias, têm tratado de instalar o objetivismo como a uma reação ao neobarroco dos anos 80 e ao neoromantismo que vinha desde os nos 60 e 70, que realçou o eu poético desprendido de como era entendido tradicionalmente na poesia argentina (o realçamento do autor nos casos magros e o realçamento do artesão nos melhores) e do qual tanto haviam renegado as gerações anteriores. Desmantelamento do realismo e do populismo, o objetivismo é uma volta aos anos 60 sem o acompanhamento ideológico que sustentou aquela geração. Hoje unicamente os pacifistas light ou em suma os provocadores se erguem como modelo poético, deixando certo ar de insubstancialidade. Na poesia argentina os guerreiros desapareceram e isto, que parece um eufemismo, não o é tanto assim. O discutível de tudo isso é que à diferença do que se passa com o objetivismo na narrativa, ainda não sei se terão ventos para poder trabalhar com a argamassa poética como o fez Margueritte Duras ou por exemplo na Argentina Andrés Rivera em El amigo de Baudelaire (que gostei) ou El farmer (que não gostei), no qual desenvolve formalmente a técnica durasiana sem prejuízo da ideologiaa (seja qual for), ou seja, sem perder o ponto de inflexão com a época que descreve (históricopolítico) que segue sendo, para lá das técnicas (ou seja, o invisível) o lugar da transferência cultural. Somo-me a Gombert para o qual a excelente experiência sessentista de Gianuzzi (em geral rejeitada nos anos 80), que responderia aos cânones objetivistas, é possivelmente única e se esgota em si mesma. Haveria que falar de latinos e saxões (em linhas gerais), sem que se entenda isso como racismo e saber ou poder determinar cada um sua prioridade aceitando as influências estéticas, afetivas e sociais que nos unem e separam culturalmente. A idéia do pós-modernismo surgida da globalização demonstrou seu fracasso e a Grande Aldeia global se sustenta na publicidade comunicacional e nas armas. A lista poderia ser mais longa, o nível da escrita, para além de qualquer ponto de vista é animador. São muitos os bons poetas. Para lá das décadas e tendências a construção poética tem, para meu gosto, escritores inevitáveis tais como como Susana Villalba, Irene Gruss, Mirtha Rosemberg, Luis Tedesco, Jorge Perednik, Jorge Smerling, Eduardo Mileo, Susana Cella (geração 70, 80) e Ariel Gombert, Andi Nachon, Guillermo Piro, Horacio Fibelkorn, Adriana Fernández, Diego Muzzio, Daniel Duran, Gabriela País, Reynaldo Jimenez, Silvio Mattoni, Maximiliano Abbengot e Verónica Viola Fisher (geração 80/90), que, em sua maioria, seguem pondo o corpo ao corpo da letra, ainda que alguns deles se aproximem das tendências da época e outros especulem com a formação de cânone, ainda que hajam os distraídos. BABEL - O fantasma de Kant , colaborador da sua revista, insiste em ironizar os outros periódicos. Além disso há a venda de espaço em fotos e mesmo a venda de textos elogiosos para trabalhos de pessoas ligadas a outros periódicos. Como se dão as relações subterrâneas pelo controle do poder poético ? MUXICA - Sim, mas não só as ironias estão dirigidas a outras revistas ou periódicos, porém também a alguns escritores do meio. Temos casos pitorescos e muito reais de BABEL 5


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pessoas que pagaram aos seus pares para produzirem trabalhos críticos sobre sua obra para publicá-los, e mais, até deixou nesse livro uma mensagem à juventude. Dizse o pecado e não o pecador. Antes, como seria de imaginar, publicaremos seu nome na Argentina. O meio, a sociedade poética serve pra tudo e nos rimos dela. Além disso, creio que muito das coisas expostas em minhas respostas anteriores estão dadas, em parte, por nosso exímio colaborador. O fantasma de Kant é quem se encarrega de desnudar as roupas e descaminhos desse sistema social de poder e os cortinados que sempre nos têm separado da intelligentzia , temos nossa própria tsé tsé e a convertemos (travestimos) em um moscão latinizado. Parafraseando Hamlet, o Fantasma deixa entrever, sarcástico, a podridão que reina na Dinamarca onde nem tudo está podre. Não haveria jamais gerado uma revista dessa natureza, tão a contrapêlo da história e à circunstancialidade do atual se não pudesse me divertir com ela. BABEL - Você mencionou há pouco que os guerreiros têm desaparecido da poesia argentina e que os escritores atuais estão marcados por uma necessidade regressiva de permanecer na adolescência . Em entrevista recente ao Jornal do Brasil (RJ, 15/12/ 2001) a professora da Universidade de Buenos Aires, Beatriz Sarlo, diz que a identidade argentina se quebrou com a crise financeira e política dos últimos anos. Que tipo de relação pode ser estabelecida entre tais crises e como isso pode refletir esteticamente? MUXICA - Evidentemente que é assim. A poesia não é um espaço puro e está aparentada diretamente com a história, a psicologia, a sociologia, a política e quantos discursos hajam por aí. Não li a entrevista, mas a crise financeira é sempre e em todos os casos (a menos que se acredite no livre mercado) uma crise política. A Argentina até agora mostrou dois projetos de país: um a geração de 80 (1880) e outro em meados do século passado (1946), este último arrasado pelo incipiente neoliberalismo que a partir da ditadura cívico-militar de 1976 tornou tão tristemente célebre nosso país no exterior como dramático e sangrento fronteiras adentro. Essa forma política teve seu correlato e seus cultores (conscientes ou inconscientes), mas é um debate que se espera seja possível dentro de alguns anos. Uma vez quebrada a cadeia geracional, creio que, ainda que não majoritariamente, porém sim desde os postos chaves de difusão e formação de cânone, encarregarão-se de delinear e materializar um discurso de rompimento e suposta originalidade que, no fundo, não seria outra coisa que uma troca de tradições (a Argentina não teria em seu Estado e nem nas instituições do momento uma forte cultura liberal) e uma escola de liberdades saxãs propôs um estilo de abreviação , em outros de acanhamento e a ruptura conceitual que a tradição latina mantinha quase intacta. Foi um ar em alguns casos saudável, mas como todo ar, corre o risco de tornar-se insubstancial. A poesia não é apenas um ato ofuscante de lucidez intelectual como crêem os mais conspícuos objetivistas e alguns ressaibos do minimalismo, nem unicamente a concepção lúdica de alguém em busca de uma nova linguagem que em certos jovens se dá como a estamparia da língua própria à sua contemporaneidade, ainda que compartilhe com eles a estrangeirice ou a estranheza da linguagem poética que tem para o leitor sempre algo de novidade . Quem sabe o problema esteja no fato de que o poeta tende a enamorar-se da novidade que suscitou e toda paixão leva consigo um perigoso sistema de apropriação. Por sorte vamos liberando-nos de uma endemia, que


eram os poetas poetizando sobre a poesia. Saiba perdoar minha dispersão temática, porém creio que já faz parte de meu método expositivo. Se Los Rollos cumprirem o seu rol de pequena hemeroteca, creio que tudo isso estará resolvido. [Tradução de Ademir Demarchi e Marco Aurélio Cremasco]

Poema de Daniel Muxica, do livro Bailarina privada, Buenos Aires, Editorial La Bohemia, 2001. Tradução de Mauro Faccioni Filho

Dançarina de tango Porque não sabe nada dela diria que ela não sabe nada de você. Empenharia-se nisso . Marguerite Duras

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Se tivesse me dito de dançar isto em Paris à beira do Sena ancorando-lhe a cintura chek to chek apertada desta maneira as pernas enredadas no salão de parquê girando ante rutilantes espelhos só os dois esta vez com a delicadíssima agulha de seu salto em meu coração tão bêbados de álcool como de lábios teria exagerado ainda mais meus gestos e a provocação aceleraria a tristeza

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um punhal é um lembrete refletindo sem fadiga a cantiga que me dá a bebedeira dança-me como antes dança-me como antes devagarinho devagarinho puta perturba putinha de luxo espiralada escarpa sua estola de armínio a câimbra canais de algaraviada o desamor escapara-te de boêmios escapulários e animais no mosaico do banho a cinza é um incenso amassado um coração atraiçoado no piso puas de garoa o amortecido do tormento e ali te bebo linda e fatal linda e letal milonguinha que sonhava tua almazinha na metade do salão cabaré que dizem os que tomam cabernet os que clamam pela champanhe

esta porta se abriu para seu passo porta para esse quarto quatro por dois vasos babados, beijos de ginebra, gengibre, ajenjo, livre perna no pernod, na pensão passando fome, corre a morfina, fina, alucinante lucidez que dá tal nostalgia para continuar sem intimidade Janeiro a Dezembro de 2002

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lá fora é noite e chove e tanta chuva bonequinha doce ruiva lá fora é absoluto amor de luto consagrado a entranhas de sacrário acre é o cortejo dos felinos ranço e excita mijar o álcool que conversamos


como perguntaria seu nome? talvez no confessional dos corpos me responderia com uma alcunha de ofício uma dessas que se tomam dos gatos como se esses fossem os animais do amor insatisfeito

anos dançando anos dançando para mim

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anos e isto quer dizer nunca.

Bailarina de tango / Porque no sabe nada de ella diría que ella / no sabe nada de usted. Se empeñaría en ello . / Marguerite Duras Si me hubiera dicho/de bailar esto en París/ de espaldas al Sena/ anclándole la cintura /chek to chek apretada /de esta manera /las piernas /enredadas /en el salón de parqué /girando ante rutilantes espejos/ los dos solos esta vez /con la delicadísima aguja /de su taco en mi corazón /tan embriagados de alcohol / como de labios /hubiera exagerado /aún más mis gestos /y la provocación acelerara la tristeza //afuera es noche y llueve y tanta lluvia muñequita / dulce rubia /afuera es absoluto /amor de luto consagrado a entrañas de sagrario agrio /es el cortejo de los felinos /rancio/ y excita a mear el alcohol que conversamos // un puñal es un recuerdo reflejando sin fatiga la cantiga /que me da la borrachera /bailame como antes /bailame como antes /despacito /despacito / turra aturdida turrita de lujo /espiralado escarpe su estola de arminio /el calambre zinguería de greguería /el desamor /escaparate de bohemios escapularios y animales /en el mosaico del baño /la ceniza es un incienso abollado /un corazón traicionado en el piso //púas de garúa la mortecina del tormento /y allí te bebo linda y fatal linda y letal /milonguita que soñaba tu almita en la mitad del salón /cabaret que le dicen los que toman cabernet /los que añoran el champán // esta puerta /se abrió para su paso / puerta a ese cuarto cuatro por dos vasos babeados, besos de ginebra, jengibre, ajenjo, libre pierna en el pernod, en la pensión corre la liebre, corre la morfina, fina, alucinante lucidez que da tal la nostalgia para continuar sin intimidad //¿cómo le preguntara su nombre? / quizás en lo confesional /de los cuerpos /me respondería con un apodo de oficio /uno de esos que se sacan a los gatos /como si éstos fueran los animales /del amor insatisfecho //años bailando /años bailando para mí /años /y esto quiere decir nunca. BABEL 5


POESIA HOJE BRASIL Renato Rezende

DECONSTRUÇÃO DA AMADA

O corpo da amada não parece ser carne como os outros; e mesmo o que ela come e caga está impregnado por uma aura sagrada como se fosse tudo olhos amorosos, e alma. Mas passa.

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Uma vez morta e enterrada a amada é esse punhado de ossos e dentes na minha palma. Não adianta nada comer com calma as medulas que restam. No entanto, todos os dias chupo os dentes e suas cáries. Já não têm o gosto ácido da boca e sua saliva, sua língua angústias e histórias; cada um deles é uma coisa como qualquer outra coisa.

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ENSAIO Susana Scramim

Entre desastres, linguagens e outros hiatos. Uma leitura em contraste: Josely Vianna Baptista e Haroldo de Campos

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I. Da tradição e da criação Na articulação de uma leitura sobre a poesia contemporânea brasileira é sempre bem-vindo um esboço de mapa que sirva de rascunho do território geopoético pelo qual se vai excursionar. A preocupação que orienta a seleção de poéticas aqui analisadas reflete uma opção por um modo de pensar a produção poética no Brasil no século XX a partir do diálogo que determinado conjunto de poemas estabelece com a tradição. Sendo assim, o território que se configura neste ensaio é o de um conjunto de poemas que deseja estar em processo de derivação infinita com outro conjunto de poemas a que se convencionou chamar de a poesia brasileira. Gostaria de salientar que essa noção de conjunto esteve marcada até o nosso alto-modernismo por uma prática de aglomeração de individualidades. E o que eu gostaria de ler, com base nessa experiência fiel, sem ter outra melhor para propor em seu lugar, a uma síntese final unificadora em torno de uma idéia de poesia nacional, é justamente aquilo que escapa ao aglomerado puro e simples. Gostaria de pensar como e se ainda é possível trabalharmos com categorias de análise que não abdiquem de uma noção, mesmo que idealista, de literatura ou de poesia brasileira. Pretendo refletir sobre a possibilidade da categoria poesia brasileira tornar-se inclusiva e produtora de singularidades coletivas. Sendo assim, busco entre resíduos do alto modernismo algum aporte para propor uma reconfiguração daquilo que se chama poesia brasileira do século XX, compreendendo esta produção como uma escritura coletiva que produz efeitos que podem ser compartilhados entre os poemas e que instaura diálogos internos. Meu esboço de carta do território tem como bordas a produção poética de Haroldo de Campos, e não a do concretismo como tal, mas os poemas de Haroldo de Campos e as inflexões criadas por alguns de seus poemas e que podem ser percebidas também em poemas de Josely Vianna Baptista. II. As disciplinas: o percurso Desde seu primeiro poema publicado, ciropédia ou a educação de um príncipe , em 1951, Haroldo de Campos assume posição limítrofe entre ele e o BABEL 5


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alto-modernismo. A gramática do poema produz inflexões que vão desde a paidéia do príncipe grego Ciro, passam pela Lição de coisas de Drummond, a Lección de Cosas, de Octávio Paz, contemplando igualmente a paidéia de João Cabral. As disciplinas desse tipo de educação se preocupam em orientar o ato de criar com a finalidade de reprodução, porque isso é inerente a todo ato de educar, porém, o mesmo ato educativo que orienta para reproduzir também encena o desvio. Por isso, quando refletimos sobre a lição estética do conjunto de poemas sobre os quais me concentro agora, prefiro pensar nos termos de uma inflexão, no lugar de pensá-los como desdobramentos, porque a inflexão é sempre desviante, é sempre uma curva. Entre esses poemas cujo desenho é o de uma pedagogia estética há um percurso elíptico, o mesmo de uma elipse paraláctica que desvia e desenha um outro percurso para esses astros cadentes que são os poemas afeitos a uma certa concepção de palavra poética como matéria relacional. Neles há uma concepção de poesia que, fundada na experiência radical de Mallarmé da palavra poética como acidente, como desastre, a estrela que cai, insiste em tratar o poema enquanto pedra, enquanto matéria. A educação ou a reprodução que toda inserção na tradição exige está compreendida como lição propedêutica que precisa ser estendida, amplificada e potencializada para que o percurso da elipse se realize. As lições enunciadas nessa propedêutica do poema partem de uma constatação fenomenológica da palavra poética, o que quer dizer, a poesia encarada como matéria relacional, desembaraçada de qualquer perspectiva transcendental e logocêntrica, bem como livre da imposição de um significado para o poema que dessa forma prescinde de qualquer interpretante final. A desejada educação estética, desse modo, adquire contornos políticos uma vez que abre mão do significado único e aposta numa leitura da forma como possibilidade de criação de significâncias. A proposta dessa formação exige uma atividade, essa poemática requer um participante e não um espectador. Não há necessidade do conhecimento prévio da obra de Mallarmé, no entanto, há que se estar disponível para o encontro, uma vez que é da experiência com o desastre de Mallarmé que deriva esse percurso poético, essa elipse paraláctica de um certo modo de fazer poema no século XX. Com isso esboçamos um mapa estelar, uma carta sideral cujos pontos brilhantes são sinais da passagem de um astro, de um desastre ocorrido no percurso do tempo. Numa das constelações dessa galáxia poética encontra-se Galáxias, projeto de dez anos de Haroldo de Campos, 19631973, um livro situado entre os gêneros textuais do ensaio, do poema e da narração. Com Galáxias, o fazer poético de Haroldo de Campos reencontra aquela inflexão de ciropédia , ou seja, o socius barroco, espetacular, selvagem, furioso, encantase com a geometria legível e despojada até à transparência do projeto, configurandose novamente a opção pela paidéia estética no poema. É um modo quase neoclássico de ensinar: o do mestre, apreendido em Un coup de dés, de Mallarmé: LE MAÎTRE , que podemos reencontrar em ciropédia com o refrão Meisterludi: Rigor! , bem como perceber sua presença no livro Galáxias, cujo projeto é explicitado com todas as letras, ou melhor, com todos os fonemas: ...por isso


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começo escrever mil páginas escrever milumapáginas para acabar com a escritura para começar com a escritura para acabarcomeçar com a escritura por isso recomeço ... Todavia, o que faz essa pedagogia neoclassicista de ensinar possuir um trejeito barroco? A sua exuberância confirma a sua origem sem ponto fixo. Essa exuberância o faz gastar a linguagem, Haroldo de Campos esgota a linguagem no seu uso, não faz poupança. Calcula, mas gasta, fica sem nada. E assim, precisa sempre recomeçar. A economia do gasto transforma a paidéia neo-clássica antevista em Haroldo de Campos numa educação barroca, na qual a exaltação e a inflexão de uma região da voz bárbara transforma essa mesma voz numa dicção, o poema de Haroldo de Campos torce a melodia clássica numa harmonia barroca. Nos versos de ciropédia e na aparente desmaterialização dos versos de Galáxias os moldes métricos ou estróficos podem aparentemente permanecer intocados, podem ser poupados na economia classicista, porém, estão prestes a operar exatamente a ruína da forma e do sentido clássico do verso, estão à beira do abismo prestes a se lançarem à torção e ao resíduo do sentido. Esse verso flexionado e, portanto, gasto, é signo de uma fala polifônica e bárbara como o mapa da América Latina: sopro e articulação, alento e pronunciação, percursos realizados pela língua em direção à organização de uma linguagem singular. O poema de Haroldo de Campos gasta-se e também se doa, no entanto, essa doação não é a de uma essência textual, uma herança a ser repassada ou uma lição a ser reproduzida, mesmo que a reprodução seja necessária, mas antes é a doação de uma experiência com o texto. Jacques Derrida assina um pequeno texto no qual se refere ao trabalho de Haroldo de Campos com a língua das línguas como sendo anterior ao seu próprio trabalho com a lei e com o desejo. Tudo o que possa significar a lei, o desejo também, a urgência mais aventurosa e mais audaciosa para mim, na ordem do pensamento, da escritura, da poesia, no horizonte da literatura e antes de tudo na intimidade da língua das línguas, cada vez tantas línguas em cada língua, sei que Haroldo a tudo isso terá tido acesso como eu antes de mim, melhor que eu. Ele estava a minha espera, já do outro lado, tendo chegado antes de mim, ele primeiro, à outra margem 1. Em Que cos é la poesia?2 Derrida fala de uma dádiva do poema. Para ele o poema possuiria uma espécie de um dom, e tal dom implicaria, por outras palavras, o seu gasto exuberante e seu gesto performático. Ainda no mesmo texto, propõe uma troca de função, propõe a troca de uma essência por uma experiência com o texto. Derrida fala de uma poemática, o saber poético vindo do de cor, o deixar-se atravessar o coração pelo ditado. Disso resulta de uma concepção de poesia que está ligada a uma poiesis: um nada a se fazer poien. Nem poesia pura; nem retórica pura; nem reine Sprache; nem realização-da-verdade, apenas contaminação, um tal e tal cruzamento. Temos então a poesia como acontecimento único na sua singularidade, por isso, impossível de se repetir. Todo acidente é singular, toda catástrofe envolve componentes do acaso, um desastre é sempre único. A etimologia do desastre, além de evidenciar o caráter singular do processo, uma vez que se trata da queda de um astro, exibe a estrutura do movimento que BABEL 5


III. Da constelação ao corpo

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implica a queda. O dom do poema é dado, ele sobrevém não do mundo ideal, mas do céu, da cucúrbita celeste, das estrelas. O movimento é o do deslocamento de um astro da órbita que o regia, ou seja, desvio da linguagem em relação a sua norma, em direção ao solo, em direção à terra, em direção a uma colisão que nada mais evidenciará do que o caráter concreto, duro e rígido da linguagem frente a um real igualmente concreto. O prefixo des em português deriva do prefixo dis do latim que além de negar a qualidade expressa pelo termo primitivo também indica a separação de alguma coisa de outra, bem como mudança de aspecto. Parece interessante ressaltar a confluência da leitura de Derrida com a de outros ensaístas. Maurice Blanchot, em L Écriture du Desastre (1980), fala do desacordo, da tensão como um dom da palavra precária da literatura. No entanto, a crítica ao excesso de interditos e tensões na poesia não significa a retomada de falsas unidades, nada basta ao desastre3, pois o desastre é a passividade, é estar separado da estrela, mas isso não implica estar fora da elipse paraláctica. Ao contrário, estar separado da estrela pode significar também a permanência na cauda do astro cadente, é um estar dentro e fora ao mesmo tempo do percurso. Giorgio Agamben, em O fim do poema (1996), aponta para um desmoronamento do fazer poético fundado na tensão entre a série semiótica e a série semântica, bem como assinala que a poesia estaria ameaçada por um excesso de tensão e pensamento 4. A sobrevivência ou a salvação do poema5 envolveria, assim, uma noção de deslocamento, de negatividade produtora, de singularidade diante do termo primitivo, de singularidade em relação à estrela, de originalidade diante da origem. Nesse sentido, o livro Galáxias, de Haroldo de Campos, publicado em sua versão final em 1984, ganha em 1992 um outro suporte: o do CD. Ali são selecionados 16 fragmentos de Galáxias para serem interpretados pela voz de seu autor. O livro ganha um outro título: isto não é um livro de viagem. Ao mesmo tempo em que se abandona a idéia da viagem, investe-se nela enquanto possibilidade de mudança, alternância de suporte, alternância do olhar, uma outrenância de um novo projeto de modernidade para a América Latina. Sendo assim, a escrita espacial de Galáxias continua a abrir-se num movimento ininterrupto na busca de novos registros, configurando um tipo de ensaio conceitual para uma cena concreta: a produção de cultura na periferia. Os poemas de Haroldo de Campos estão marcados por uma reflexão e por uma lição a ser apreendida de conceitos estético-culturais. Todavia, a lição não acontece sem riscos, está preocupada mais com o perigo iminente da catástrofe e a resposta a dar ao pós do que com a poesia de perito ou poesia prêt-à-porter. Vem daí sua singularidade em relação a outras poéticas praticadas no Brasil. No entanto, não é somente a poética de Haroldo de Campos a única a refletir sobre tais questões, há outros astros nessa elipse paraláctica.


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O livro Corpografia (1992) de Josely Vianna Baptista e Francisco Faria apreende a lição de Galáxias e a inflexiona. O projeto dos autores de criar um diálogo entre o signo verbal e a imagem relembra em algo aquela tensão sublinhada por Giorgio Agamben entre a série semiótica e a série semântica no poema. No entanto, o diálogo não vem à tona como um bloco dicotômico insolúvel, cria, em vez disso, uma coexistência de linguagens que, ao mesmo tempo em que se intersecionam mutuamente, mantêm uma singularidade vital. O que ocorre são relacionamentos, relações que somente são possíveis porque são operadas por cortes, por fragmentos, por estilhaços de corpos e de paisagens. Há um resgate da idéia de constelação praticada em Galáxias e uma expansão da estrutura espacial dos versos de Haroldo de Campos. Em Galáxias o fluxo da linguagem era conduzido pelo princípio de desestabilização da sintaxe do verso e da frase em fluxo de palavras. No lugar da sintaxe do verso se introduzia um princípio serial de afirmações substantivadas e de repetições daquelas afirmações, todavia, diferidas. Em Corpografia o princípio continuou sendo o serialismo, no entanto, a variação não acontece no nível sintático, mas no nível morfológico. Os versos se fragmentam em fonemas, impondo um ritmo, uma respiração diferente da respiração de Galáxias. Os versos de Corpografia compostos por palavras aeradas são sinais de uma fala polifônica e bárbara como a paisagem da América Latina: sopro e articulação, alento e pronunciação, assemelhando-se, dessa forma, ao projeto de Haroldo de Campos. O ritmo do poema, mesmo princípio articulador de Galáxias, é composto pela respiração e pela pronúncia dessa fala, marcando a singularidade dessa escrita. Estamos novamente passando de um suporte a outro na expansão e distensão da linguagem do poema: da escrita à fala, da escrita à imagem, procedimento esse sugerido pelo próprio desenho da escrita. Poderia ainda dizer que a escrita é o princípio orientador da lição encenada por Josely V. Baptista e Francisco Faria. Além de se apresentarem como polifônicas, as inflexões dessas vozes que foram tatuadas no corpo do texto, na página em branco, reúnem, no grande corpo que é o livro, variações autorais sobre o tema do corpo cultural, no qual se inclui a paisagem. Corpografia é um livro compósito, coletivo, mais do que no sonho de Gilles Deleuze e Felix Guattari quando escreveram o Anti-Édipo a dois. Dele fazem parte, com registros autorais bem assumidos, além de Josely e Francisco, Haroldo de Campos, Néstor Perlongher, Severo Sarduy e Rodrigo Garcia Lopes, cada um deles com sua variação sobre a escrita cortante. Corpografia é um corpo sem órgãos que não cessa de desfazer o organismo. Assemelha-se a uma carta náutica tanto por sua estrutura de mapeamento do corpo em simbiose com a paisagem imensa e que não consegue ser apreendida pelo desenho, como pela estrutura através da qual as palavras compõem os versos: por fonemas separados por lacunas, por espaços vazios pelos quais o ritmo da leitura em voz alta os preenche de ar. São hiatos plenos de ar, plenos do vazio, que o mapa não consegue apreender na sua totalidade. Entretanto, o vazio na carta náutica assinala a diferença de profundidade entre um ponto e outro da carta. O vazio é, dessa forma, indicador de diferenças entre os seres, diferenças entre paisagens e corBABEL 5


e d o b r a n d o e m l e q u e s , p r í m u l a s q u e r o l a m , s e e n r o l a m n a o r l a , v i r a m t e m p o r a l : o n e g r o - ó l e o d a s a g e m e o n d a s v a n d a l a s e m n ó s , à d e r i va

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pos. Trabalha-se nele, no livro, por incorporação de intensidades, linhas de força que se inscrevem no corpo/território/paisagem. As imagens e desenhos de Francisco Faria transpassam tanto os corpos dos modelos humanos fotografados quanto a escrita cartográfica e corpórea de Josely V. Baptista. As imagens que transpassam o corpo são recriações da paisagem americana. O imenso deserto e a hiléia deslumbrante, relatados e retratados pelos viajantes europeus no Novo Mundo, são desencadeadores de um novo tipo de sublimação: a sublimação do grotesco, a utopia selvagem. No entanto, não é somente a hiléia que é sublimada, no jogo de espelhos e atravessamentos, o corpo abjeto entra nesse processo. Em Moradas , a referência ao misticismo realista e prático de Las Moradas o el Castillo Interior, da santa do Barroco espanhol, Tereza de Ávila, sinaliza a opção pela busca da recomposição de uma razão iberoamericana, repartindo as divergências particularizantes em tantos outros mundos possíveis e fazendo das incompossibilidades outras tantas fronteiras entre mundos. A lição de Corpografia é o trabalho na fronteira, formar um corpo sem, no entanto, constituir um organismo, formar uma paisagem sem, no entanto, instituir algum tipo de naturalismo. A lição vem de mestres que entram e saem pela fronteira aberta, pela zona franca. Entre os mestres da lição poética de Corpografia está a pesquisa conceitual de Haroldo de Campos. Em Colosso Impenetrável , a homenagem ao poeta, assinala-se a passagem deste pela lição da palavra poética como matéria dura, como pedra que cai do céu, desastre, astro em queda, a palavracometa de Mallarmé:

p a i

Em Haroldo de Campos, O Arco-Íris Branco. Rio de Janeiro: Imago, 1997.

Jacques Derrida, Que cos é la poesia. Publicado primeiramente em Poesia, I, Paris: 11 de novembro de 1988. Foi traduzido para o português por Tatiana Rios e Marcos Siscar e publicado em Inimigo Rumor n.º 10, Rio de Janeiro: 7Letras, maio de 2001. 3 Maurice Blanchot, L Écriture du Desastre. Paris: Éditions Gallimard, 1980. 4 Giorgio Agamben, La fine del poema , em Categorie italiene. Studi di poetica. Venezia: Marsilio, 1996. Esse texto foi traduzido como O fim do poema por Sérgio Alcides, em Cacto: poesia e crítica n.º 1 (São Paulo: agosto de 2002). 5 Jean-Luc Nancy, em Poème de l adieu ao poème , citado por Raúl Antelo em Cânone e Salvação , publicado em Babel n.º 3 (Santos-SP, set-dez/2001), define o adeus como um gesto que, num único movimento, volta-se decididamente àquilo mesmo que abandona, ainda que dele também se desvie, sem retorno, num remorso, com passo firme. Janeiro a Dezembro de 2002 2


POESIA TRADUÇÃO Hans Magnus Enzensberger , por amir brito cadôr

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Defeitos Não, eu não sou atrativo como o ovo no café da manhã. Ele é perfeito. Às vezes eu lamento, que comparado ao poste de força Shortcomings eu vacilo. O musgo agradável No, I am not a patch me desarma on the breakfast egg. quando eu desejo vingança, It is perfect. Sometimes I regret e o pensamento do rinoceronte that compared to the power pylon sincero como é I vacillate. eu só posso admirar. The good-natured moss Creio que minha chave de fenda disarms me vai superar meu cérebro. when I lust for revenge, Eu fico impressionado com a formiga, and the rhino s thinking o modo como vai e vem straightforward as it is em uma fenda na parede, I can only admire. porque eu sou preguiçoso. Verily, my screwdriver É uma idéia atraente will outlast my brain. ser macio de coração I am impressed by the ant, como o figo, e abnegado the way it fumbles and fumbles como a lâmpada. Desculpe, for a crack in the wall, óleo e vinagre, pimenta e sal, since I am lazy. ao contrário de vocês An attractive idea eu sou dispensável. to be soft of heart like the fig, and selfless like the light-bulb. Sorry, oil and vinegar, pepper and salt, I m sorry that unlike you I am dispensable. Translated by the author

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and what they were after in doldrums, pack ice, rain forests: cowrie shells? gold mines? the Order of St. James of the Sword? Drinking brackish water and rum on shaky schooners they lost their teeth. Only their names are still rampant like the rushes by the seashore, haunting us for a century or two, until they too will vanish like all those who came before them and left no trace, not even their names in copperplate on old sea-charts, or their collarbones in the dunes. Translated by the author

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Descobridores Sverdrup, da Cunha, d Urville ninguém sabe quem foram estes loucos e o que eles buscaram em doldrums, geleiras, florestas tropicais: conchas de caurim? minas de ouro? a Ordem da Espada de St. James? Bebendo água salgada e rum em escunas trêmulas eles perderam os dentes. Só os nomes deles ainda estão espalhados como o junco à beira-mar, nos assombrando por um século ou dois, até que eles também desaparecerão como todos esses que vieram antes deles e não deixaram rastro, nem mesmo seus nomes em placas de cobre, Discoverers em velhos mapas, ou suas clavículas nas dunas. Sverdrup, da Cunha, d Urville nobody knows who these madmen were


O Enterro Eles chamam de nossa parte mortal. Mas o que ela tem? O psicólogo dirá: Sua psiquê. Sua alma, o padre. Sua personalidade, o gerente pessoal. Além do mais, tem o anima, o imago, o daemon, a identidade e o Ego, sem falar no Id e o Super-Ego.

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A borboleta que sai desta mistura pertence a espécies que nada sabemos a respeito.

The Entombment Our mortal frame, they call it. But what did it hold? The psychologist will say: Your psyche. Your soul, the priest. Your personality, the personal manager. Furthermore, there s the anima, the imago, the daemon, the identity and the Ego, not to mention the Id and the Super-Ego. The butterfly which is to rise from this very mixed lot belongs to a species about which nothing is known.

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ENSAIO Ana Porrúa

Notas sobre a recente poesia argentina I - A primeira antologia da nova poesia argentina foi Poesía en la fisura, de Daniel Freidemberg(1). O gesto, neste caso, era o do muestreo, reconhecido como parcial. No entanto, alguém poderia pensar que ali estavam quase todos os poetas que começaram a publicar seus textos a partir da década de 80, em jornais ou revistas como Diario de Poesía, a efêmera 18 whiskies, e outras mais artesanais como La hoja de Alicia, La trompa de falopo e La Mineta, poetas que no início dos anos 90 lançaram seu primeiro livro, como é o caso de Fabián Casas, Osvaldo Aguirre, Marilin Briante, Eduardo Aibinder ou Carlos Battilana. Também foram descobertos nomes que depois, em plenos 90, começaram a soar com força e, com o passar dos anos, publicaram seus livros. Este é o caso de Martín Gambarotta, Santiago Vega, Fernando Molle, Alejandro Rubio e Sergio Raimondi, entre outros. Lida hoje, a antologia também tem excessos, nomes que nunca mais apareceram talvez porque não entraram nos circuitos capitais, ou porque emigraram, ou simplesmente porque haviam deixado de escrever como o fazem muitos adolescentes depois da adolescência. O critério de seleção tinha um princípio objetivo, um folhetim da editora que se distribuiu por todo o país e uma cláusula que na realidade era uma forma aleatória de fechar o recorte: os escritores não deviam passar dos 30 anos. Logo, Freidemberg declarava haver optado pela diversidade e por sua qualidade de leitor que lhe permitiu deixar poetas (não se sabe quais) mais ou menos conhecidos fora do livro, e incorporar outros ignotos, tendo-se sempre em conta a qualidade e respeitando, quando existia, um tom pessoal e um mundo próprio interessante . De alguma maneira, Poesía en la fisura construiu uma totalidade, um friso daqueles que estavam escrevendo poesia, e, na maneira de destacar esse processo, apagou-se a figura de autor (a maioria deles eram, é possível dizer ou é possível ler nas entrelinhas do prólogo de Freidemberg, poetas que ainda estavam se fazendo). O certo é que por muito tempo essa foi a única antologia dos poetas jovens e foi gerada antes que a internet tivesse se convertido em um lugar forte de acesso às novas escrituras, através da proliferação de páginas dedicadas à poesia como InterNauta (que logo se transformou em poesia.com), ou muito tempo depois Zapatos rojos, ou a recente página de La voz del erizo, com todas as conexões (links, sites pessoais) até outros sites, como Los amigos de lo ajeno ou Vórtice argentino. Propôs uma mostra, antes que existissem as revistas que têm certa circulação como Belleza y Felicidad ou La novia de Tysson. Janeiro a Dezembro de 2002

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e s u a s a n t o l o g i a s


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II - No número 60 de Punto de vista (abril de 1998) publicou-se uma nota de Daniel García Helder e Martín Prieto que ampliou ainda mais o panorama, partindo de certos motivos temático-formais nas obras de uns quantos autores novos, em sua maioria residentes na Capital Federal, ao que chamamos por comodidade de poetas dos 90 ou poetas recentes e cujos anos de nascimento oscilam, com várias exceções, entre 1964 e 1972 . Aqui estavam todos, sem discriminação. García Helder e Prieto não selecionaram, apenas expuseram o que eles conheciam como leitores do presente. O gesto que antecede a apresentação de cada poeta é descritivo (quase o olhar de um entomólogo) e habilita a ausência de hierarquias. Então podem aparecer em um mesmo conjunto Charly Feiling, Silvio Mattoni, Osvaldo Aguirre, Marilyn Briante ou Fabián Casas (que têm uma série de livros publicados e, de mais a mais, armaram ou estão armando uma escritura com densidade e características próprias) e Fernanda Laguna que faz da banalidade um objeto precioso (sem que se saiba qual é sua relação com o banal) em seus versos que dizem: Xuxa é bonita./ Seu cabelo é bonito/ e sua boca diz coisas bonitas./ Eu creio em seu coração . III - Dizia que muito do que hoje se publica está na rede, em páginas como poesia.com ou zapatos rojos. Desde o começo de InterNauta é possível ler um projeto que está associado ao novo. Durante muito tempo são mantidas quatro seções: Adelanto , Inéditos , Notas e Rescate . Nas duas primeiras, lê-se o que está se passando neste momento na poesia e, sobretudo, os textos de poetas jovens. Assim, no número 0, estão Daniel García Helder, Santiago Llach, Alejandro Rubio e Laura Wittner. No número seguinte, Martín Rodríguez, Verónica Viola Fisher e Fernando Molle. A seção de Inéditos e a de Rescates armam, por sua vez, uma equiparação entre a tradição e o novo. Fogwill, Zelarayán, Raschella, Leónidas Lamborghini, Perlongher ou Viel Temperley mesclam-se com Oscar Taborda, Juan Desiderio ou Silvio Mattoni. Aqui é claro que se trata de poesia de autores: todos são considerados poetas. Neste sentido, poesia.com constrói-se sob a lógica de uma revista literária. Usa as possibilidades que lhe dá o suporte virtual, combinando palavra, imagem e som, mas consolida um espaço que tenta repelir a idéia de trânsito rápido porque publica poemas, notas e até livros completos. Contudo, o passo resta ser indefectível, pois poesia.com possui uma edição em CD de todos os textos poéticos publicados no site e zapatos rojos editou, no fim do ano passado, sua própria antologia em livro. Outro exemplo concreto é que Vox, a revista de Bahía Blanca, fez uma edição virtual, mas reserva para alguns números por questões econômicas seu interessante formato em papel, que inclui reproduções de pintores e xilogravuras, etc. Uma das perspectivas para pensar essa passagem é a da convivência de distintos suportes que apontam para distintos receptores; a outra que me parece mais plausível é que de algum modo sempre se busca a maneira de ir contra certas características que impõe a internet. Tudo ali tem o caráter do efêmero. BABEL 5


(a lógica do fórum ou a história de lisaymona) No número 14 de poesia.com apareceu um caso proveniente do fórum que o próprio site veicula. Diante de uma caótica quantidade de textos (800 postados em um mês) de uma integrante do fórum, lisaymona, e a quantidade e o tom das respostas que recebeu, a revista decide tirar proveito dessa estranha situação e faz migrar parte dos poemas e das opiniões dos leitores ao corpo central. O que primeiro se poderia sublinhar é que a revista e uma de suas seções, a do fórum, funcionam com um público diferente. No fórum desaparece a figura do editor, mas também estão ausentes os poetas que publicam nas outras seções. O fórum tem certa autonomia e se converte, neste caso, na zona da revista que não escapa às lógicas da internet, quando não melhor se deixa pautar por elas. A velocidade e a ausência de tempo entre uma e outra manifestação (ao menos esse é o efeito) são as marcas mais salientes de uma prática que se separa do resto das escrituras da revista. lisaymona é, evidentemente, um pseudônimo, e isto não é insólito na rede. É, além disso, um pseudônimo risível, porque há um ingrediente lúdico, às vezes transgressor, no anonimato. Dela sabe-se (sabe-se?) que é uma mulher, que nasceu em Cuba e estudou medicina, que deixou seu país e, agora, é dona-de-cas. Seus poemas estão infestados de erratas, de maus usos do castelhano, além disso apresentam-se como úteis, como transmissões de experiências que podem servir aos outros. O resto diria lisaymona, que não se reconhece como poeta é literatura: NÃO SOU IMPORTANTE EM NADA E NÃO ESTOU ME MENOSPRESANDO ESCREVO EM MAIÚSCULA PARA DIFERENCIAR UM ESCRITO DO OUTRO A MIM NÃO ME INTERESSA SER IMPORTANTE IDIOTAAAAAAAA NÃO HÁ QUE SE USAR MAIÚSCULA NEM FAZER ESCRITOS PROSAICOS PARA SÊ-LO SIMPLESMENTE ESCREVO MEUS PENSAMENTOS Janeiro a Dezembro de 2002

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Impõe-se a leitura veloz (a não ser que se baixe em disco ou, melhor, em papel, o livro inteiro). Quando se apaga a máquina desaparecem os textos: não se pode reler, ou a releitura converte-se em um exercício complexo que implica operações técnicas, aberturas, buscas de sites, ubiqüidade de um poema relembrado num continuum informe, pautado pela visualização parcial.


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QUE CREIO SÃO EDUCATIVOS E SIMPLESMENTE ME IMAGINO AJUDE A REFLETIR A PESSOAS COMO TU QUE ESTÃO BEM PERDIDOS . lisaymona escreve sobre Fidel, sobre a miséria, contra os testemunha de Jeová (texto que gera uma resposta na qual há, para dizer a verdade, um desígnio de catequese, com citações da Bíblia incluídas, ao que ela responde: melhor retirar-te do fórum/ não fazes falta aqui/ vá a tua igreja/ a rezar um pouco/ que é onde deves estar ). Além do mais, lisaymona escreve sobre sexo, em uma espécie de relato autobiográfico (não necessariamente real); a linguagem é direta ou previsível sob certas figurações excessivamente tropicais, e seus textos geram todo tipo de respostas de parte de outros participantes do fórum, em geral em tom erótico. Assim, desenha-se um terreno mais próximo do chat que dos fóruns de poesia e o anonimato adquire seu verdadeiro sentido: bom, diga-me/ que faço eu, a que me dedico?/ porque a verdade não me tem informado/ e diga-me/ sou rica???/ eu não sei/ tenho muito dinheiro?/que bom/ determina-te que estou dura . O jogo não é o da poesia, mas o do flerte moderno (mediado pela rede). O fenômeno lisaymona não merece um exame em termos estéticos, obviamente. Mas sim pode ajudar a pensar na flexibilidade da rede, ou na rede como um lugar sem nenhum tipo de hierarquias, de pautas, quando se transforma como neste caso na única zona possível do escárnio anônimo, ou no lugar para expressar, contar uma vida e fazê-la pública, ou sensivelmente no tecido perfeito para a boutade. IV - No ano de 2001, Arturo Carrera foi o encarregado de fazer o prólogo e selecionar, por solicitação de José Tono Martínez, as vozes que vêm para provar o novo século com seu olhar . O resultado foi Monstruos. Antología de la joven poesía argentina(2), livro que na realidade estava disponível na rede, na página do ICI, desde 1998. No momento de definir a poesia jovem Carrera incorpora algumas versões de Delfina Muschietti ou Daniel García Helder (que se têm ocupado do novo também como críticos) e retoma uma frase repetida mil e uma vezes por Leónidas Lamborghini, aquela de assimilar a distorção e devolvê-la multiplicada entre o riso e o grotesco e mediante uma aproximação do trivial das falas , ao sermo plebeius . No entanto, salta à vista que nem todos os poetas eleitos podem ser lidos sob esses enunciados: somente os mais jovens, Martín Gambarotta, Santiago Vega, Alejandro Rubio, Santiago Llach, Verónica Viola Fisher, Marina Mariasch e inclusive Fabián Casas ou Daniel García Helder; mas Teresa Arijón, Guillermo Piro, Silvio Mattoni ou Guillermo Saavedra respondem, evidentemente, a outros tratamentos do poético. Se Carrera reconhece no prólogo a dificuldade de toda seleção, creio que a BABEL 5


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chave nesse caso está em dois dos exemplos eleitos em nada casuais para dar conta da tarefa que leva a cabo: o ramo de flores perfeito que Antonin Artaud oferece a Paule Thevenin quando sai do hospício e as previsões de Borges no prólogo da Antología poética argentina sobre a vulnerabilidade que supõe constituir antologias de peças contemporâneas e locais . Elege-se dois escritores e também duas instâncias do ato de selecionar, uma que supõe recolher como o ramo de Artaud tudo aquilo que representa o outro (o leitor, seria possível dizer) e outra que duvida sobre a possibilidade de tal empresa. Entre ambas se situa o poeta Arturo Carrera e a elas refere-se quando fala de falsa cientificidade e de recolher acontecimentos fulgurantes . Sob esta última definição pode pensar-se melhor sobre a diversidade que vai dos poemas que apelam ao oriental de Arijón ou aqueles de Mattoni que anexam a língua às peculiares variações das éclogas clássicas de Sergio Raimondi ou à linguagem despojada e direta de Fernando Molle, para dar só alguns exemplos. Sobretudo quando se lê acontecimentos fulgurantes é inevitável pensar na poesia de Arturo Carrera, em El vespertillo de las parcas , ou em alguns versos anteriores de Splanch : Recorda que não há contornos/ (olvido de uma possessão que/ desapossa);/ só as transições oscilantes/ de um enxame/ de cores, sombras,/ vozezinhas// planos de inconsistência/ onde nossa palavra/ se isola. Monstruos à diferença de outras é a antologia de um poeta que se desentende com a exaustividade, que lê e seleciona a intensidade que escreve. Não se trata de que os selecionados na antologia estejam na estrela de Carrera. Não interessa a figura de Carrera como pai literário ou como crítico isso podia ser pensado na antologia de Freidemberg , mas no caso de Carrera o que interessa é a sua figura como um par da tribo poética, e aqui a premissa de Tono Martínez parece adquirir uma maior resolução. Na tribo, ele é o que escreve e lê poesia, e que seleciona certos textos da nova poesia como surpresas de um pequeno acaso e diz mas quem irá me dar o prazer de estar entre tantos jovens propondo a decisão de entrever um efeito óptico : o brilho esperançoso e único de um livro de luz que não espanta a alegria e que dança em uma improvável folga como o lezamesco anjo da jiribilla , não longe daqui, não próximo de todo modo? . O argumento não é o de um leitor crítico, é o de um poeta que pode reconhecer outros poetas. Não há nenhuma intenção de armar linhas, de pensar relações entre os escritores incluídos. Cada um é um ponto no mapa desenhado por Carrera. É sua antologia (de fato muitos leram esta autoria em Monstruos, como já o fez Raúl Antelo em sua resenha La Arturíada publicada em Página/ 12) e por isso não necessita justificar certas inclusões, que para alguns são estranhas, como as de Pablo Martín Betelu ou Vivian Lofiego, nem as exclusões, entre as quais se poderia mencionar, pelo menos, La zanjita, de Juan Desiderio, que é um dos primeiros livros em que se resgata uma oralidade com as marcas de uma geração, e a produção de Osvaldo Aguirre, que em sua percepção minimalista da natureza propõe uma poética ausente na antologia.


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(a versão) A apresentação e o prólogo de Monstruos se mantêm intactos na edição da FCE. A capa e a diagramção interior também. É quase o mesmo livro. Todavia, há algumas diferenças. A primeira está no título que na versão virtual incluía, como um desdobramento do primeiro termo, o sonho da poesia . Porém o conteúdo não muda (a não ser pela inexplicável ausência de Eduardo Aibinder na segunda versão), e muitas das variações têm a ver com a atualização (dados biográficos ou textos novos). Porém há um ponto ainda mais interessante quanto a isso, que tem a ver com a reescritura. Desde a variação de um verso em Guillermo Piro, até a incorporação que Guillermo Saavedra faz em El velador de outro texto em cursiva quase um estribilho que se expande a si mesmo e se repete, que arma uma relação com o poema em sua totalidade mas que também poderia ser lido de maneira autônoma. Também podem rastrear-se as metamorfoses de Seudo de Martín Gambarotta (que já foi pulicado como livro), as novas titulações de poemas de Walter Cassara, ou a eliminação dos títulos que faz García Helder, cujos textos inclusive se expõem como parte de outro livro em processo Tomas para un documental e não de www.cualquiera.com, que era o título outorgado na versão virtual. As artes poéticas, que foram solicitadas a todos os autores, seguem incompletas na versão da FCE (embora se agregue a de Pablo Pérez, por exemplo); porém algumas das já existentes variam. Gambarotta havia escolhido, já na antologia virtual, a citação de autores e não a definição de uma prática própria. A lista era extensa: Leónidas Lamborghini, Juan Manuel Inchauspe, Darío Cantón, Ricardo Zelarayán, Fogwill, Arturo Carrera, Jorge Aulicino, Oscar Taborda, Daniel Durand, Laura Wittner, Verónica Viola Fisher, Beatriz Vignoli, Santiago Llach, Santiago Vega, Martín Rodríguez, Roque Dalton, Denise Levertov, Ezra Pound, Daniel García Helder y Alejandro Rubio. Desse heteróclito conjunto no que abundam os poetas de uma mesma idade restaram na segunda edição somente os últimos cinco, aos quais se agregaram Carl Rakosi y Louis Zukofsky. Antes se podia pensar em uma biblioteca do passado e o presente; agora, em troca, pareceu que o exercício de síntese remete a descrever uma poética, certos gestos de alguns escritores que sua poesia ensaia. Sergio Raimondi também sintetiza sua arte poética que antes tinha o corte do relato e agora aparece resumida em duas frases, como se descobrir a própria escritura fosse um gesto impossível: Ah, bom, não sei. A tolice ou, quem sabe, a violência tonta que supõe a ilusão técnica da paixão . Fernando Molle é outro dos que transforma sua arte poética, a reduz, saca frases que são importantes, como a referência a que Escrever seria um ato completo e de verdade transcendente se se pudesse controlar e desenhar os sentimentos que provoca no leitor . Essa nova versão é menos assertiva, ainda que mantém o que disse na anterior. Santiago Pintabona, em troca, evolui em sua arte poética até um discurso mais crítico, mais teórico. Antes falava da ironia e de que os poemas não buscam transmitir um conhecimento mas tomar a forma do crível e agora do poema como a perpetuidade no vértice de um centro controlado . BABEL 5


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Em todos esses casos, pode-se ler na passagem da rede ao papel as novas escrituras dos poetas incluídos, os processos de correção de um texto, os ajustes na reflexão sobre o ofício. Monstruos permite, então, lançar uma mirada à cozinha da escritura dos que assim quiseram, o daqueles a quem se propôs fazer trocas. E este é um dos seus flancos mais interessantes. V - Monstruos, diferentemente da antologia de Freidemberg, não aposta no conjunto, mas no acontecimento isolado e por isso Carrera faz entrar autores de mais idade (até 40 anos) e poéticas muito dissímiles. Em ambas, contudo, a idéia da qual se parte para fazer a seleção está no título. Fissura, num caso; monstro, noutro. Monstro em sua dupla acepção, como disse Carrera, não só mostrar mas mostrar espetacularmente . Uma primeira entrada à espetacularidade poderia se dar nas fotos de estúdio de cada um dos poetas antologizados. Há ali algumas evidentes construções de imagem e, em outros casos, uma espécie de contraste entre o gesto e o vestuário habitual e a tela drapeada que serve como fundo. Quiseram ou não, os fotografados expõem seus corpos à câmara e o resultado é sempre atraente. De que trata a outra espetacularidade, o outro rosto do monstruoso? Seria a diversidade? (um monstro de mil, de trinta e seis cabeças?); Carrera elege aquelas escritas que dão conta da poesia jovem? Das portenhas, se poderia dizer, porque a antologia inclui em termos estritos um só poeta estrangeiro , Raimondi (e talvez haveria que meter nesse nicho a Lofiego, que vive e escreve em Paris). Ainda dentro desse território que não é questionável em si mesmo as editoras abrem o leque do diverso: estão os que publicaram em Bajo la luna nueva, Tierra Firme, Último reino, La Trompa de Falopo, Siesta, Vox, Belleza y Felicidad ou Tsé-tsé e os que o fizeram sob outros selos menos específicos como Sudamericana ou Norma. Creio, inclusive, ainda que não esteja colocado desse modo em Monstruos, que esse é um dos modos de ler as distintas escritas dos anos 80 e dos 90 porque se trata tanto de instalar-se no já estabelecido, na editoras específicas que têm sua história e são nos 80 muito poucas, como de fazer o salto até editoras prestigiosas que publicam pouca poesia, ou armar o circuito próprio de produção, como fazem a maior parte dos poetas dos 90. VI Talvez tenha algum sentido imaginar outra antologia da poesia recente, ou poesia jovem . Os limites de idade não seriam tão importantes, porém sim aquilo que desponta como novo na década de 80, ao redor de certas revistas como 18 whiskies, La trompa de falopo e inclusive em algumas zonas do Diario de poesía, e que logo se delineia e assume formas diferentes na década de 90. Mais que os nomes importariam as questões que fazem com que os textos sejam lidos como diferentes dentro da poesia argentina que foram, por outra parte, muito bem definidas por Carrera. Mais que o gosto pessoal por certas poéticas, seria interessante poder detectar similitudes ou, às vezes, escritas muito distintas ao redor do mesmo. Parto da convicção de que a poesia recente não pode apresentar-


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se mais que como uma rede aberta, uma rede na qual seguramente haverá vazios. A figura do monstro recobre, sob distintas roupagens, a maior parte da poesia dos 90 e se recorta contra algo anterior. Desde o lugar da enunciação quase programática, aparece a defesa da incorreção literária: Nunca li o Quixote./ Em todo caso sonho com Alien/ esculpindo os ossos de Don Q. no lixaral ; (3) porém esses versos deveriam articular-se com o capricho de Goya, O sonho da razão produz monstros , que o escritor recorda em Punctum. Este poderia converterse em leitmotiv da poesia recente. Por quê?, porque se expõem deliberadamente as fissuras do sistema social e político: O monstro/ foi desalojado/ do supermercado/ por ter maus hábitos/ e ser improdutivo/ para a Sociedade/ para a Grande Empresa Nacional dos Mendes? (4) Creio que este é um dos eixos fortes da nova poesia, no qual se inscrevem Zelarayán de Cucurto, Punctum de Gambarotta, Música mala de Rubio, ou um poema como Los Mickey de Llach. Os quatro textos falam da sociedade em pleno pósmodernismo em termos de classe ou em termos raciais. Ali aparecem os negros , os cabezas , os bolitas (*v. nota ao fim) e a versão do outro não é piedosa (não se poderia pensar esses textos como continuidade da literatura de Boedo), muito pelo contrário. Certamente há matizes, que vão desde a apresentação exagerada e festiva da violência em Cucurto (quando o saltenho-boliviano viola uma filha de seu empregador coreano), ou a mais descarnada de Los Mickey , uma banda de filhos de ricos,/ novos ricos e católicos que sai a caçar negros/ próximo da vila do baixo , (5) a mirada inquietante (e estética, poderia dizer-se) de Gambarotta, ou a mais situada historicamente de Rubio que recupera, como uma espécie de fantasma cristalizado, certas figuras: Das cinzas resgatei/ magras figuras: um gaúcho,/ Perón sobre um cavalo pintado, uma negra varrendo a vereda? (6) Nessa percepção de classe não está ausente o peronismo, aludido em todos os livros (no caso de Cucurto haveria que mencionar outro texto, que é Cosa de negros ). Pareceria que a violência reinstala (em um momento histórico no qual a ordem já não tem, diria Carlos Altamirano, nenhuma repercussão) a famosa frase de John William Cooke sobre o peronismo como o fato maldito do país burguês . O maldito , o monstruoso é o menemismo, porém também é o registro em letra das denominações mais ocultas da classe trabalhadora. Porque aqui é importante destacar que a nova poesia se apodera da palavra do outro, diz o que está BABEL 5


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silenciado inclusive pela classe média, que também é nomeada estranhamente como burguesia. Esses textos só podem ser pensados como intervenção, e por que não, como provocação. Talvez, como declaração de princípios, haveria que anotar o capricho de Goya junto a algumas epígrafes ou versos de outros livros, como a citação bíblica que abre Zelarayán, Porque não podemos deixar de dizer o que temos visto e ouvido , um verso de Cancros anosos... de Rubio, aqui as coisas passam, o fato é este/ que a mitologia não registra , ou outro irônico de Llach, Não falo de sexo nem droga nem política . Algumas das escritoras que começam a publicar poesia nos 90 parecem definir seu imaginário como inversão do masculino. Se ali há negros , cabezas , dois bolivianos com roupa de bailanta*,/ sapatilhas New Balance ou adidas (Llach), ou uma velha com o tornozelo sangrando/ sob uma meia de nylon (Gambarotta), nos poemas de Marina Mariasch, Karina Macció o Anahí Mallol, aparecem mulheres quase sempre aninhadas envoltas em um vestidinho turquesa , em um vestido/ de xantungue negro , com cachos ondulados e vestidos apontilhados , ou com um tutu* de tule . (7) Se ali se encontram Lugares calientes,/ lares onde houve certo despojo (Llach) ou uma pocilga posmo* (Rubio), aqui aparecem um planeta miniatura cheio de baby cactos que nosotras cuidaríamos (Mariasch), a casa de botão ou carapaça de caracol de Karina Macció, interiores revestidos de rendas, sedas, almofadões com patchwork e tecidos de crochê. Neste caso a poesia fala desde um lugar de infância e se incumbe somente da miniatura, do pequeno. O gesto é o do excesso e, nesse sentido, poderia pensar-se em um modo de intervenção distinto, que consiste em assumir a própria figura tal como está no discurso masculino, ou, talvez, adulto. Certamente o efeito nesses casos se enrarece (para lá de certo tom irônico) porque o lugar desde onde se dizem as coisas é infantil (fechado), talvez aquele da ordem que se dá a uma criança: vá pro seu canto . Se enrarece, digo, porque o que permite ler a diferença na poesia recente é a construção de um lugar distinto para dizer as coisas que a racionalidade emudece (e este é seu costado ideológico vanguardista). Assim, certos poemas, como os de Martín Rodríguez, invertem as figuras paternas e maternas, põem a monstruosidade na origem: a cada animalzinho mamãe, dizia o menino,/ ao papagaio ao tigre ao lobo à tartaruga/ conhecemos a saliva a asma a carícia./ os que mais conhecemos, respondia a mãe,/ é a decomposição:/ quando os olhos se tornam amarelos/ e se devoram uns aos outros . (8) Desde um lugar similar se escreve a poesia de Verónica Viola Fisher que fala da sexualidade, encarregando-se do discurso moral do outro: Que minha filha é uma mulher/ de pêlo no peito/ ninguém pode negá-lo/ é forte/ como seu pai assim como/ guarda/ com ela todas as minhas lâminas/ de barbear ainda que não seja para/ barbear-se e sim/ enfeiar-se/ cheia de cortinhos. (9) Vanna Andreini também fala com a certeza de quem se sabe diferente, imagem incompleta ou oposta das versões longínquas, de seu próprio passado: Educada/ para entreter/ pequenas platéias/ suonatore ambulante/ sem


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prazer/ em um ato de/ extrema excentricidade/ resolvo/ a sereiazinha muda/ de forma ou morre/ amar em um/ anonimato tranquilizador/ líquida respiro/ impune/ planejo um monstro/ linear/ medieval e geométrico/ rápido e invisível/ algum dia cairás/ mortal e para sempre? (10) É um lugar geracional? Em parte sim, e se arma nas margens da cultura oficial ou do politicamente correto ; seus indícios, certamente, já estavam em alguns poetas anteriores como Daniel García Helder que observa o exterior e delineia o poema como lugar de descrição minuciosa dos objetos, ou em Carlos Battilana cuja interrogação sobre o que sucede tampouco parece nunca romper essa barreira, ou no preciosismo da mirada de alguns poemas de Villa (a morosidade sobre as coisas não desaparece nos poetas dos 90). (11) O que está aí, o que pode observar-se, porém também a sensação de estar fora, podem pensar-se como antecedente a esses poemas de onde o fora se põe em ação e de onde a imagem e a língua não podem deter-se. A poesia de Fabián Casas, autor de Tuca (1990) e El salmón (1996), articula de algum modo essas duas posições; o que escreve está fora e dentro dos acontecimentos como se lê nestes dois versos: Está culminando o verão que não nos contemplou e Parece uma lei: todo o que se apodrece forma uma família. (12) E em 40 watt (1993) de Oscar Taborda, já está clara a interpretação do presente como palimpsesto do passado, a partir de sua releitura da dupla referência a Sarmiento, civilização e barbárie, e mais ainda de uma excursão aos índios ranqueles de Lucio V. Mansilla. Outra das instâncias para pensar um recorte da nova poesia está caracterizada por Carrera como o trivial das falas , o sermo plebeius , ou seja, a conversação (ou a murmuração, inclusive as tagarelices) próprias do povo, da plebe e opostas à da aristocracia. Porém penso um pequeno deslizamento nesse enunciado porque, em muitas das escritas dos 90, e apesar das figurações marginais, há uma tensão entre o culto e o popular, ou entre o plebeu e o aristocrata. Assim, em Medio cumpleaños (Editorial Municipal de Rosario, 2000) de Gabriela Saccone pode verificar-se um exercício denodado de desmistificação da linguagem poética e em Mamushkas (Vox, 2000) de Roberta Iannamico, a linguagem da infância se transforma en objeto estético. Em Cuadernos de Lengua y Literatura (Vox, 2000 y 2001) de Mario Ortiz, a resolução é diferente e resulta num cruzamento de teorias filosóficas ou clássicos literários com um discurso cotidiano que supõe, no geral, uma descontextualização, como no poema que fala de Shakespeare, cujos versos finais são: quanto mais se levanta o mar/ as virgens polpas dos peixes/ mais sobem ao molhe de Guaite . E em Phylum vulgata (Siesta, 1999) de Carlos Martín Eguía, as denominações científicas das plantas são incrustações ou interrupções de um texto claramente narrativo. Essa inflexão se lê, ademais, em alguns textos que trabalham desde uma sintaxe barroca discursos que estão fora da literatura. O preciosismo lingüístico imprime um efeito de estranheza sobre o popular, como o faz goiva de Omar Chauvie sobre o tango: goiva/ se arranca a boca/ as unhas/ quando se odeia/ grucia/ não te espera/ outra sorte/ grunha (13), ou Diesel 6002, de Marcelo Díaz, BABEL 5


que retoma uma notícia policial do jornal Crónica e transforma um fato episódico em um longo poema de amor quase quevediano. Sergio Raimondi, em suas Eglogas , faz um exercício contrário, porque recria uma musicalidade e um ritmo clássicos e banaliza o lamento amoroso: Corydón

¿Amaryllis? Alexis Perdi uma fivela. Corydón Não tem outra?

A poesia de Osvaldo Aguirre é peculiar e se diferencia do resto. Com certeza se poderia ler seus textos de tema rural como pequenas jóias. Se o campo é o povo, conjeturo, nos livros de Aguirre, dado o tratamento de linguagem a colocação do detalhe e do fragmento discursivo se transforma no objeto aristocrático por excelência: Primeiro viu cair/ entre uma gritaria/ de urracas uma bola/ de plumas e folhas./ Depois, iluminado/ por um relâmpago,/ como manchinhas brancas/ nessa papinha de barro,/ pomelos e laranjas./ E quando quis acordar-se/ corria sob a pedra/ -mete-lhe?, Francisco,/ apura-te! -, que podava/ o rosal para ele que havia/ esperado os dias lindos/ da primavera,/ o limoeiro, os frutos/ e violetas . (14) Talvez essas duas variáveis não sejam suficientes, a do monstruoso e a do sermo plebeius. Certamente pode se considerar as questões em torno das quais se articula a poesia mais recente, não como um conjunto de individualidades e sim como escrita coletiva que produz efeitos similares e que estabelece diálogos internos (não só relações pessoais). O diferencial estaria, justamente, nessa aposta na intervenção, que não se lia há anos na poesia argentina. [Ensaio originalmente publicado na revista Punto de vista N.º 72, Buenos Aires, abril 2002; tradução de Ademir Demarchi e Susana Scramim]

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Alexis O que não tem é o vento como se gosta. O que não tem são os raios de sol do lado que convém.


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(1) Daniel Freidemberg (selección y prólogo), Poesía en la fisura, Bs.As., Ed. del Dock, 1995. (2) Arturo Carrera (selección y prólogo). Monstruos. Antología de la joven poesía argentina, Bs. As., F.C.E/ ICI, 2001. Presentación de José Tono Martínez. (3) Martín Gambarotta, Punctum, Bs. As., Libros de Tierra Firme, 1996. (4) Washington Cucurto, Una mañana terrible , Zelarayán, Bs. As., Ed. del Diego, 1998. (5) Santiago Llach, Los Mickey , La Raza, Bs. As., Siesta, 1998. (6) Alejandro Rubio, Crisol , Metal pesado, Bs. As., Siesta, 1999. (7) As duas primeiras citações são do poema 6 e o poema 11 de postdata de Anahí Mallol (Bs. As., Siesta, 1998); a terceira e a cuarta de Dejo mi figurita Sara Key para siempre de Karina Macció, en Pupilas estrelladas, Bs. As., Siesta, 1998; e a última de tres días sin Plurabelle de Marina Mariasch, em coming attractions, Bs. As., Siesta, 1997. (8) Martín Rodríguez, a cada animalito mamá,.... , agua negra, Bs. As., Siesta, 1998. (9) Verónica Viola Fisher, Que mi hija es una mujer , hacer sapito, Bs. As., Nusud, 1995. (10) Vanna Andreini, Concertini , poema tomado de zapatos rojos. Andreini tem um livro publicado em Siesta, bruciate/ quemadas, 1998. (11) Daniel García Helder ha publicado El faro de Guereño, Bs. As., Libros de Tierra Firme, 1990 y El guadal, Bs. As., Libros de Tierra Firme, 1994. Carlos Battilana publicó Unos días, Bs. As., Libros del Sicomoro, 1992 y El fin del verano, Bs. As., Siesta, 1999. José Villa publicó Cornucopia, Bs. As., Trompa de Falopo, 1996. (12) O primeiro verso é do poema El correr del agua e o segundo de Hace algún tiempo , ambos em Tuca, Bs. As., Libros de Tierra Firme, 1990. Fabián Casas também publicou El salmón, Bs. As., Libros de Tierra Firme, 1996 y Ocio, como separata do recital de poesia organizado pela revista Vox em 26 de octubre de 2000. (13) Omar Chauvie, Hinchada de metegol, Bs. As, Vox, s/f. (14) Osvaldo Aguirre, El General, Bs. As., Melusina, 2000. Aguirre havia publicado antes Las vueltas del camino, Bs. As., Libros de Tierra Firme, 1992; Al fuego, na mesma editora em 1994 e Narraciones extraordinarias, Bs. As., Vox, 1999.

(*) NOTAS da Tradução, com auxílio da autora, a quem agradecemos. Negros , tal como no poema citado, é uma alusão mais a um setor social, a classe trabalhadora em si, que a uma etnia ou raça (ainda que em algum momento tenham se confundido,

pois os negros eram os que vinham do interior, do norte) e tem sentido pejorativo. Nessa mesma acepção está cabezas , que é uma redução de cabecitas negras , denominação usada por Eva Perón, positivamente, para referir-se aos trabalhadores peronistas porque eram todos morenos, enquanto a oposição o usou em sentido negativo. Atualmente os jovens dizem cabeza para referir-se ao negro desclassificado, marginalizado. Bolitas , por sua vez, em sentido pejorativo, são os bolivianos, como paraguas são os paraguaios e brasucas os brasileiros. Bailanta é o baile que se faz com a cumbia, música típica, e também o lugar onde se dança a cumbia e o baile em si, estando associada na Argentina às classes baixas, ainda que já seja comum todos a dançarem atualmente. Tutu : pollera ou roda de tule usada pelas bailarinas clássicas ou de danças típicas. Posmo : pós-moderna.

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Ademir Demarchi nasceu em Maringá-PR em 1960. Reside em Santos-SP. Publicou em 2002 Passagens Antologia de poetas contemporâneos do Paraná, que selecionou e apresentou para a Imprensa Oficial do Paraná, com 26 poetas. revistababel@uol.com.br Amir Brito Cadôr nasceu em São Paulo em 1976 e mora em Campinas-SP, onde estuda Artes Plásticas na Unicamp. É artista gráfico e poeta. Publicou o homem e as coisas (poemas, 2000); Outros, poemas traduzidos de Antonio Machado, Bashô, Mario Benedetti, Alexander Blok, e.e. cummings, Oliverio Girondo, Hart Crane, Langston Hughes etc (1999) e Composição (poemas, 1997). amir@iar.unicamp.br Ana Porrúa nasceu em 1962, é poeta e professora na Universidad Nacional de Mar del Plata, na Argentina. Concluiu doutoramento com tese sobre a poesia dos anos 60 na Argentina, com enfoque em Leónidas Lamborghini e Juan Gelman. Colabora com Punto de Vista e www.bazaramericano.com amporrua@mdp.edu.ar André Luiz Pinto nasceu no Rio de Janeiro-RJ, em 1975. É formado em Enfermagem e Obstetrícia e cursa Filosofia na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Editou, com Edison Veoca, a revista .doc. Publicou Flor à margem, edição particular, em 1999. Prepara Solilóquio no estrangeiro, com Donizete Galvão. André Masson (1896-1987)pintor, gravador, escultor, cenógrafo e escritor francês, um dos principais personagens do movimento surrealista. Viveu na Espanha de 1934 a 1936 e de 1941 a 1945 refugiou-se nos Estados Unidos, onde seu trabalho converteu-se numa ligação entre o surrealismo e o expressionismo abstrato. Aricy Curvello nasceu em 1945 em Uberlândia-MG e mora em Jacareípe/Serra-ES. É formado em Direito. Publicou Os dias selvagens te ensinam (1979), Vida fu(n)dida (1982), Mais que os nomes do nada (1996). Organizou a antologia Poesía de Brasil, com 29 poetas traduzidos para o espanhol por Gabriel Solis para o Proyecto Cultural Sur/Brasil e uma antologia com 30 poetas brasileiros para Anto n.º 6 (outono/1999) publicada em Portugal. curvello.vix@terra.com.br Blaise Cendrars (1887-1961) suíço naturalizado francês, fugiu de casa aos 16 anos, viajando para Moscou e a seguir para a China. A convite de seus amigos modernistas, esteve no Brasil duas vezes. Contador Borges nasceu em São Paulo em 1954. Traduziu Nerval (Aurélia), Sade (A filosofia na Alcova) e René Char (O nu perdido e outros poemas). Publicou em 97 Angelolatria, poemas, todos pela editora Iluminuras. Prepara novo livro, ainda sem título (a que pertencem estes três poemas em prosa), a ser lançado no próximo ano. Cristiano Moreira nasceu em Itajaí-SC em 1973 e mora em Curitiba onde estuda Letras. Obteve premiações no Concurso de Poesia Lindolf Bell, tem poemas publicados na revista O Papa Siri da Fundação Cultural de Itajaí. rebojo@terra.com.br Denise Durante nasceu em Santos/SP, em 1975. Professora e tradutora de língua italiana, bacharel em Letras e mestranda da área de Língua e Literatura Italiana da Universidade de São Paulo USP. denisedurante@uol.com.br Donizete Galvão, mineiro de Borda da Mata, é autor dos livros Azul navalha (1988), As faces do rio (1991); Do silêncio da pedra (1996); A carne e o tempo (1997) e Ruminações (1999). dgalvao@abril.com.br Elaine Pauvolid nasceu em 1970 no Rio de Janeiro-RJ. Publicou Brindei com mão serenata o sonho que tive durante minha noite estrela... (7 Letras, 1998) e Trago, com pref. de Gerardo Mello Mourão (Ed. da autora, 2002). É colaboradora de A Tarde (SP) e O Globo, Jornal do Brasil e Jornal do Commercio (RJ). Edita a revista eletrônica Aliás - www.almadepoeta.com. pauvolid@olimpo.com.br Elson Fróes nasceu em São Paulo-SP. Formou-se em Letras pela PUC-SP. Publicou textos em 34 Letras, Suplemento Literário de Minas Gerais, Poiésis, Bric-A-Brac, Dimensão, Medusa, Monturo, A Cigarra e Tsé=Tsé. Além de textos criativos, em poesia e prosa, também se dedica à poesia visual, elaborada com toda sorte de recursos, do artesanal ao eletrônico. www.popbox.hpg.ig.com.br elsonfroes@ig.com.br Janeiro a Dezembro de 2002

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COLABORADORES


Fernando Fábio Fiorese Furtado nasceu em Pirapetinga, Zona da Mata-MG em 1963 e mora em Juiz de Fora onde é professor da Universidade Federal local. Publicou Corpo Portátil, sua poesia reunida (1986-2000) pela Escrituras em 2002. Publicou textos em diversos periódicos como Rascunho, Folha de S.Paulo, Supl.Lit. MG, Los Rollos de Mal Muerto (Argentina) e International Poetry (EUA) etc. fiorese@artnet.com.br Forrest Gander nasceu no deserto de Mojave Desert em Barstow, California, vive em Rhode Island com a poeta C.D. Wright e seu filho Brecht. Graduado em literatura inglesa e geologia, é professor de poéticas contemporâneas na Brown University. Autor de cinco livros de poemas, incluindoTorn Awake e Science & Steepleflower, ambos pela New Directions. (www.brown.edu/Departments/ English/Writing/people/gander/index.html) ForrestGan@aol.com Frederico Barbosa nasceu em Recife-PE, em 1961. Publicou os livros de poesia Rarefato (Iluminuras, 1990), Nada Feito Nada (Perspectiva, 1993 - Prêmio Jabuti), Contracorrente (Iluminuras, 2000) e Louco no Oco sem Beiras Anatomia da Depressão (Ateliê, 2001) e Na Virada do Século Poesia de Invenção no Brasil (Antologia, com Claudio Daniel, Landy, 2002. fredb@uol.com.br Hans Magnus Enzensberger nasceu em Kaufbeuren, Alemanha, em 1929. Zukunftsmusik (1991) e Kiosk (1995) estão entre os livros de poemas mais importantes da última década. Também é conhecido por ser um dos mais provocativos e influentes ensaístas em seu país. Vive em Munique. Jeffrey McDaniel nasceu na Filadélfia, Estados Unidos, em 1967 e reside na Califórnia. Publicou os livros de poemas Alibi School em 1995 e The Forgiveness Parade em 1998, pela Manic D Press, editora de San Francisco (http://www.sirius.com/~manicd/).alibischool@yahoo.com João Filho nasceu em Bom Jesus da Lapa, margem esquerda no Rio São Francisco, oeste, Bahia, onde mora e edita o zine-mail Hypperguethos com o fotógrafo Edmundo Brandão. Tem 2.º grau completo e livros disponíveis nos sites Jornal de Poesia, Blocos on Line e serpente.cjb.net. cabezzadi@bol.com.br Jorge Wolff nasceu em Porto Alegre em 1965 e reside em Florianópolis desde 1983. Doutor em Teoria Literária pela UFSC. Atuou no jornalismo cultural em Santa Catarina e é colaborador da revista Medusa e do Suplemento Literário de Minas Gerais. Publicou os livros Mário Avancini. Poeta da pedra (1996) e Julio Cortázar. A viagem como metáfora produtiva (1998), ambos pela Editora Letras Contemporâneas, de Florianópolis, e traduziu a coleção de ensaios Como se lê e outras intervenções críticas, do escritor argentino Daniel Link (contato: jorgewolff@hotmail.com). Luiz Roberto Guedes nasceu em São Paulo em 1955. É redator publicitário, jornalista, tradutor, letrista. Publicou Calendário Lunático - Erotografia de Ana K, em português/italiano, pela Edições Ciência do Acidente (2000). Em parceria com Claudio Daniel traduziu Geometria da água, do cubano José Kozer, parcialmente publicado na Coleção Memo do Memorial da América Latina, SP, 2000. l.r.guedes@bol.com.br Marcelo Ariel nasceu em Cubatão SP, onde vive do comércio de livros. Marcelo Moscheta nasceu em 1977 em São José do Rio Preto-SP. Artista plástico formado pela UNICAMP em 1999, faz pesquisas em desenho, colagem, fotografia e gravura. Ilustra livros, faz design de sites e trabalha com montagem de exposições no MASP e no Instituto Tomie Ohtake em São Paulo. É integrante do Centro de Pesquisa em Gravura da UNICAMP. Mora em Campinas. moscheta@hotmail.com Marco Aurélio Cremasco nasceu em Guaraci PR em 1962 e reside em Campinas. Publicou os livros de poemas: Vampisales, pela editora da Universidade Estadual de Maringá Paraná , 1984; Viola Caipira, edição do autor, 1995; A Criação, pela Editora Livro Aberto, 1997 (prêmio Xerox do Brasil & Revista Livro Aberto); From Indiana, pela Purdue University, Indiana, EUA, 2000. (cremasco@feq.unicamp.br). Maria Esther Maciel nasceu em Patos de Minas-MG em 1963 e mora em Belo Horizonte, onde é professora de Teoria da Literatura na UFMG. Publicou, entre outros: Vôo transverso Poesia, modernidade e fim do século XX (ensaios, Sette Letras/FALE/UFMG, 1999); Triz (poemas, Orobó, 1999); As vertigens da lucides: poesia e crítica em Octavio Paz (Experimento, 1995) e A palavra inquieta: homenagem a Octavio Paz (org. Autêntica, 1999). mesmaciel@globo.com Mário Bortolotto nasceu em Londrina-PR em 1962 e mora em São Paulo, onde atua como


dramaturgo, diretor e ator de teatro com o Grupo Cemitério de Automóveis, com várias peças encenadas e prêmios como APCA pelo conjunto da obra e Shell de Melhor Autor por Nossa Vida não Vale um Chevrolet. Em 2000 publicou o livro de poemas Para os inocentes que ficaram em casa e o CD Cachorros gostam de bourbon. mariobortolotto@ig.com.br Mauro Faccioni Filho nasceu em Maringá PR em 1962 e reside em Florianópolis desde 1980. Formado em Engenharia Elétrica, realizou vários curtas-metragens e vídeos. Publicou em 1998 o livro de poemas Helenos pela Editora Letras Contemporâneas (http:// www.portadig.com.br/letras/) (mauro@creare.com.br). Seu livro Helenos está disponível no site http://www.zapatosrojos.com.ar/Biblioteca/Mauro%20Faccioni.htm Milton Hatoum nasceu em Manaus-AM, em 1952. Entre suas principais publicações estão os romances Relato de um certo Oriente e Dois Irmãos (ambos pela Companhia das Letras), que foram publicados em diversos países. Paulo de Toledo nasceu em 1970, em Santos/SP, onde vive atualmente. Publicitário, cursou durante 3 anos a Faculdade de Letras da USP, onde venceu o V Projeto Nascente, na categoria poesia. Publicou poemas e ensaios nos seguintes sites: Esquina da Literatura, Tanto, Plural Web, Revista A e Pop Box. Apesar de santista, Paulo é corinthiano (jamallarmais@uol.com.br). Prisca Augustoni nasceu em Ticino, Suíça, 1975. Reside em Genebra. Poeta, tradutora e ensaísta, publicou Traduzioni Traduções. Belo Horizonte: Mazza Edições, 1999. bilbeli@hotmail.com Raymond Carver nasceu no Oregon, EUA, em 1938. Estreou na literatura em 1977, como ficcionista. Em 1988, ano de sua morte, foi eleito para a Academia Americana de Artes e Letras. Apesar de internacionalmente reconhecido por seus livros de contos, sempre escreveu poesia, publicando Near Klamath, Winter Insomnia, At Night The Salmon Move, When Water Comes Together with Other Water, Ultramarine e A New Path to the Waterfall, todos eles reunidos postumamente no volume All Of Us, organizado por sua viúva, a também poeta Tess Gallagher. A obra poética de Carver exibe as mesmas qualidades de sua prosa: uma aguda percepção do mundo material, a habilidade de comprimir vastas emoções em episódios cotidianos, a naturalidade no tom e irrestrita solidariedade com as fraquezas do homem. [Rodrigo Lacerda] Renato Rezende nasceu em São Paulo em 1964. É formado em literatura espanhola pela Universidade de Massachusetts, Boston. Publicou os livros de poemas Passagem (1990), Aura (1997), Asa (1999), Leaves of Paradise (2000) e Passeio (2001, Record). Como artista plástico, expôs individualmente e participou de coletivas em Boston, Nova York e México Rodrigo Lacerda nasceu em 1969, no Rio de Janeiro. É autor de O Mistério do Leão Rampante (1995), vencedor dos prêmios Certas Palavras e Jabuti de melhor romance, A Dinâmica das Larvas e Tripé. Seu próximo romance, Vista do Rio (Ateliê Editorial, SP), tem publicação prevista para o primeiro semestre de 2003. rlacerda@cosacnaify.com.br Sérgio Monteiro de Almeida nasceu em Curitiba-PR em 1964. É médico neurologista e professor de Medicina na UFPR. Publicou trabalhos de poesia visual em Nicolau, A Cigarra e Supl.Liter. Minas Gerais; Vortex, Tsé~Tsé e Perro Negro (estas da Argentina), entre outras. Fez várias exposições individuais. sergio@hc.ufpr.br Sérgio Nazar David nasceu em 1964. Mora no Rio de Janeiro, onde é porfessor no Instituto de Letras da UERJ. Publicou O romance do corpo (Sette Letras, 1997); Onze moedas de chumbo (7Letras, 2001); Paixão e revolução (org. co-autor, EdUERJ, 1996), entre outros. snazar@centroin.com.br Sérgio Rubens Sossélla Nasceu em Curitiba-PR em 1942. Juiz de Direito aposentado, vive em Paranavaí-PR, tendo publicado por conta própria mais de 300 livros, feitos em gráfica ou em casa, com tiragens médias de 30 exemplares. Susana Scramim nasceu em Maringá PR em 1965 e reside em Florianópolis. Fez doutorado em Teoria Literária na USP com tese sobre a utopia na obra de Darcy Ribeiro. É professora na Universidade Federal de Santa Catarina (susana@cfh.ufsc.br).


PETER GREENAWAY Osfantásticos livros de Próspero Mostras e Monstros: poesia argentina, por Ana Porrúa R

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Daniel Muxica e Los Rollos del Mal Muerto RAÚL Davi

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