de como as ostras produzem suas pérolas

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de como as ostras produzem suas pĂŠrolas


de como as ostras produzem suas pÊrolas, 1992 -94 tecido, pÊrolas, alfinetes, agulas, gravuras, olhois de boneca, bordado, estruturas em ferro alturas entre / heights between 153 e 192 cm how oysters do produce their pearls fabric, pearls, pins, needles, etchings, doll’s eyes, embroidery, iron structures



god bless the child, 1992 ponta seca impressa sobre papel de arroz, tecido, bordado, alfinetes com pĂŠrolas 64,5 x 21,5 cm god bless the child engraving stamped on rice paper, fabric, embroidery, pearl pins


Full fathom five thy father lies, Of his bones are coral made ; Those are pearls that were his eyes ; Nothing of him that doth fade, But doth suffer a sea-change Into something rich and strange. Sea-nymphs hourly ring his knell : Ding-dong. Hark ! Now I hear them – Ding-dong bell. W. Shakespeare, The Tempest


le jardin de ma mère, 1992 vista da exposição na sala Fortuny, com a imagem do passo ao fundo estrutura em metal, tecidos, alfinetes com pérolas, pérolas e pequenas gravuras. 52 x 47 x 192 cm le jardin de mère, 1992 installation view at Fortuny hall, with the step image, metallic structure, fabric, pearl pins, pearls and small engravings



É o rosa a cor dos doces sonhos? “Quando finalmente o trem se pusera em movimento, Angela Pralini acendera o cigarro em aleluia: receava que, enquanto o trem não partisse, não tivesse coragem de ir e terminasse por descer do vagão”1 A sucessão de imagens através da janela do trem costuma identificar-se com um olhar entre o abstrato e o atemporal, embalado por uma espécie de calma melancólica e interior. O ritmo metafórico das peças de Ana Miguel também evoca a idéia de percurso, impregnado de presenças nômades. Os sutis cortes que se repetem em suas pequenas gravuras (“A imagem do passo”), a maneira de rastro ou ferida física, de escritura não legível, sugerem esse passeio múltiplo através de suas fendas, quase sempre paralelas, como aquela via do trem que nos transporta, física e mentalmente, a outro lugar. Seu poder de evocação permite ao espectador atento viajar a um poético labirinto, no qual se reconhece o mundo da privacidade da artista, como continente dos desejos, sensações e impressões representados. Em outras peças (“Le jardin des jeunes filles en fleur” ou “Le jardin de ma mère”), como sujeito que produz seu objeto amoroso, consciente do sacrifício parcial de seu imaginário, repete uma e outra vez a gravura de um coração2, possível símbolo de suas incertitudes e inquietações. Se poderia pensar que diante do vazio criado por sua meditação, pelo desalojo de parte de seu ser, pretende tecer uma interrelaçäo com o espectador e com o mundo, recitada à maneira de verso monossilábico multilíngue: Yo- Tu - Él - Me - It - Eu - Flor - Dolor... ou inclusive, com datas e iniciais. Ou quem sabe desenvolva uma tentativa de unificar-nos em um tempo comum, o tempo ocupado pela impossibilidade compartida de um desejo : “D’alló que es llegeix on no es llegeix “. Não obstante, pese a esta (ao menos pensável) intenção de fazer-nos partícipes da andadura de suas percepções, eu diria que Ana Miguel (como Port ao repetir sozinho a escalada às rochas altas do Boussif sem comunicá-lo a Kit )3, não ignora que seus “objetos amorosos”, -reflexo de si mesma no outro-, são lidos (ao enfatizar a autenticidade além da eficácia da representação) antes de mais nada como um ato íntimo, de unidade, mas também de solidão.


vista da exposição na sala Fortuny, Reus, Tarragona, 1994 installation view at Fortuny hall, Reus, Tarragona


vista do atelier no carrer de sant erasme,Barcelona, 1992 son nom oublié e ici j’embrasse tous mes amours studio’s view at carrer de sant erasme, Barcelona son nom oublié e ici j’embrasse tous mes amours



Em cada uma das sete peças (nesse caso tridimensionais) que conformam “De como as ostras produzem as suas pérolas”, esse sentimento aparece contrastado, na minha opinião, em coordenadas duais: a firmeza da sua instabilidade com a fragilidade da sua estabilidade; a apresentação aberta de alguns dos seus interiores com a ocultação simulada ou real de outros; a sedução à aproximação, (dada a qualidade táctil de suas “caixas rosas”) com o obstáculo a tocá-las ( devido a seus fechamentos e agulhas pontiagudas sem cabeça nacarada). Contudo nelas seu verso explicita: “Ici j’embrasse tous mes amours”- “Son nom oublié”... A utilização de pérolas (geradas por uma autodefesa criativo-destrutiva), harmoniosamente descuidadas na maioria de suas peças, sugere a linha sutil que pode separar beleza de perversidade, poder de natureza, e inclusive criação de morte, assim como a marca ou ferida que a consciência de tais feitos pode nos deixar impressa, em função da nossa sensibilidade. Assinala Carlos Gurméndez que a imprevisão própria da impressão é o que propicia que esta penetre no interior do coração e acrescenta: “ a sensação se esquece e a impressão é a memória do esquecimento. A sensação é necessária para exteriorizar a interioridade da impressão.”4. Não cabe dúvida de que Ana Miguel soube formalizar suas sensações duais e assim transmitir-nos a interioridade de suas impressões. “Viver era uma ferida aberta.” “Estava com trinta e sete anos e pretendia a cada instante recomeçar sua vida”5 Amparo Lozano, Barcelona, 1994. LISPECTOR, Clarice : “A partida do trem” , in “Onde Estivestes de Noite”, Editora Nova Fronteira, 1974, pág.40. BARTHES, Roland : “Le coeur est l’organe du désir (le coeur se gonfle, défaille, etc., comme le sexe), tel qu’il est retenu, enchanté, dans le champ de l’Imaginaire. Qu’est-ce que le monde, qu’est-ce que l’autre va faire de mon désir? Voilà l’inquiétude où se rassemblent tous les mouvements du coeur, tous les “problèmes” du coeur”. Em “Fragments d’un discours amoureux”. Collection “Tel Quel”. Éditions du Seuil. Paris 1977, pág. 63. 3 Personagens centrais do romance de Paul Bowles “O céu que nos protege”. 4 GURMENDEZ, Carlos : “Crítica de la pasión pura (II.)”. Fondo de Cultura Económica. Madrid 1993, pág. 107. 5 LISPECTOR, Clarice: Op. cit., ps. 41e 42. 1 2


detalhes com interior da caixa details inside box


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Is pink the colour of sweet dreams? “When the train finally started to move, Angela Pralini lit her cigarette in celebration: she was afraid that when the train left, she would not have the courage to go and would end up stepping down from the carriage”1 The succession of images seen through the train window is usually registered by a gaze, which falls between absent-mindedness and timelessness, gently rocked by a kind of melancholy inner calm. The metaphorical rhythm of Ana Miguel’s pieces also evokes the idea of a journey, pervaded by nomadic presences. The subtle cuts which recur in her small engravings (“La imagen del paso”), like a physical imprint or wound, in writing which is not legible, suggests this multiple journey through their fissures, almost always in parallel, like that train track which transport us, in body and in mind, to another place. Their evocative power allows the observant viewer to travel towards a poetic labyrinth, in which the secret world of the artist can be recognised as a continent, home to the desires, sensations and impressions depicted. In other pieces (“Le jardin des jeunes filles en fleur” or “Le jardin de ma mère”), as the subject who produces her object of love, conscious of the partial sacrifice of the imaginary, the engraving of a heart is frequently repeated2, a possible symbol of her uncertainties and worries. It could be considered that, in response to the empty space created by her meditation and the abandonment of part of herself, she aims to weave a link with the viewer and with the world, recited (trough the engraving or the embroidery) in the form of monosyllabic and multilingual verse: Yo – Tu – El – Me – It – Eu – Flor – Dolor… or even with dates and initials. Or perhaps that she cultivates an attempt to unify us in a common time, one which is occupied by the shared impossibility of desire: “D’alló que es llegeix on no es llegeix”. Nevertheless, in spite of this (at least thinkable) intention of making us participants in the course of her perceptions, it would seem that Ana Miguel (just like Port when he climbs the high rocks of Boussif again by himself, without telling Kit)3, is fully aware that her “lover’s objects”, - a reflection of herself in the other – are interpreted (by placing more emphasis on the authenticity rather than the effectiveness of the representation) above all as an intimate act, of unicity, but also of solitude.


pessoas singulares, 1993 gravuras impressas sobre papel de arroz, alfinetes com pĂŠrolas, tecido, bordado 64,5 x 21,5 cm singular persons engravings stamped on rice paper, pearl pins, fabric, embroidery


la poursuite, 1993 estrutura em metal, tecidos, alfinetes com pĂŠrolas, pĂŠrolas, pequenas gravuras 160 x 34 x 34 cm la poursuite metallic structure, fabric, pearl pins, pearls, small engravings


In each of the seven pieces (in this case three-dimensional) which constitute “How oysters produce their pearls”, this feeling appears contrasted, in my opinion, in dual coordinates: the solidity of their instability with the fragility of their stability; the open display of some of their interiors with the simulated or actual concealment of others; the enticement to draw closer, (given the suggestive tactile nature of the “pink boxes”) with the prevention of being touched (due to their being locked and to the sharp needles with nacreous heads). However, in these pieces her verse is explicit: “Ici j’embrasse tous mes amours”, “Son nom oublié”… The use of pearls (generated by a creative-destructive self-defence), harmoniously abandoned in the majority of her pieces, suggests the fine line which can separate beauty from perversity, power from nature and even creation from death, as the imprint or wound which the awareness of such facts may impress upon us, according to our sensitivity. Carlos Gurmendez points out that the unforeseen element of impression is that element which has the effect of making it sink deep into our hearts, and adds: “sensation is forgotten and impression is the memory of oblivion. Sensation is necessary, in order to outwardly express the inner essence of impression”.4 There is no doubt that Ana Miguel has successfully given form to her dual sensations and has thus conveyed to us the inner essence of her impressions. “Angela Pralini (knew that) living was painful. Living was an open wound”. She was 37 years old and at every single moment sought to begin her life”.5 Amparo Lozano, Barcelona, 1994. Lispector, Clarice : « Silencio ». « El Espejo de tinta » collection. Ed. Grijalbo S.A. Barcelona 1988, p. 59. Barthes, Roland : « Le cœur est l’organe du désir (le cœur se gonfle, défaille, etc. comme le sexe), tel qu’il est retenu, enchanté, dans le champ de l’imaginaire. Qu’est-ce que le monde, qu’est-ce que l’autre va faire de mon désir ? Voilà l’inquiétude où se rassemblent tous les mouvements du cœur, tous les « problèmes » du cœur ». From « Fragments d’un discours amoureux ». « Tel Quel » collection. Editions du Seuil. Paris 1977, p.63. 3 Central characters in Paul Bowles’ novel « The sheltering sky ». 4 Gurmendez, Carlos : « Crítica de la pasión pura (II) ». Fondo de Cultura Económica. Madrid 1993, p.107. 5 Lispector, Clarice : Op. cit., pp. 60 and 62 respectively. 1 2



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Vivemos um tempo de cansaços e vazios, que nos invadem quando visitamos muitas exposições. Obras se nos apresentam como novas, e resultam banais, ou soam a coisa já vista, sem maiores aportaçöes. Expressões que de tão exploradas deslizam pela nossa pele deixando-nos indiferentes, obras superficiais que não nos transmitem nada, por mais correta que seja a sintaxe sobre a qual se constróem. Não é o caso, muito pelo contrário, das duas exposições simultâneas que Ana Miguel realiza em Reus. Artista de origem brasileira, nômade há algum tempo, viveu e trabalhou em Barcelona nos três últimos anos. Na verdade, estas exposições são como um resumo do seu processo entre nós e uma despedida da etapa catalã. A sua obra surpreende, não porque seja de uma radical novidade técnica, formal ou estilística. Com linguagens e meios simples, elabora um trabalho que mobiliza o espectador sensível, o faz olhar, intuir e expressar. Consegue-o formalmente com grande silêncio e discrição, com armas da cultura feminina e da revolta interior: escrita, gravura, costuras, agulhas, redes, ironia e dor. Trabalha principalmente com materiais ancestrais: papel de linho, papel de arroz, pérolas, tecidos, linha; mas também introduz materiais modernos, resinas, espumas e fibras sintéticas. Em uma das exposições, “Allò que es llegeix on no es llegeix”, os protagonistas são a gravura e as suas relações com uma obra literária: “A pequena sereia”, de Andersen. Pequenas gravuras sobre diversos papéis, recobertas com verniz e resina, tornam-se rígidas e resistentes, aptas a serem manipuladas, aplicadas em redes ou unidas com fios tensores que se atam a alfinetes de cabeça de pérola cravados na parede. Com desenhos ou com fragmentos de texto, os trabalhos se aproximam da idéia de objeto, já que criam conjuntos e volumes com o papel, como na peça que forma a cauda cortada da sereia com uma pérola dentro; ou então recortam a imagem gravada para inseri-la em um espaço qualificável de pequeníssima instalação, ou poema-objeto. A relação tão estreita com um tema argumental e o conteúdo literário têm o perigo de tornar a obra excessivamente direta, pura ilustração ou, pelo outro extremo, de ser demasiado críptica e necessitar de excessivas explicações. Não dizer nada ou dizer demais. O difícil equilíbrio se consegue, nesse caso, pela força do trabalho que, com elementos mínimos, cria a atmosfera angustiante, violenta, trágica e silenciosa de uma história de amor e incomunicação.


Na segunda exposição estão dois trabalhos diferentes, distanciados da referência literária; são obras mais recentes e mais influenciadas pela escultura européia. Uma série de caixas feitas com tecido são como maquetes de espaços interiores, equilibradas sobre frágeis varetas de ferro. Talhos ou buracos nas paredes rosadas nos mostram os interiores que contém pérolas e pequenas gravuras. Lugares acolhedores mas também ameaçadores pelas pontiagudas agulhas que, algumas vezes, parecem impedir a aproximação ou a saída. Os títulos são esclarecedores, desde o genérico “De como as ostras produzem as suas pérolas”, que nos remete a uma ação de cura e defesa, criadora de beleza, até ao “Jardim da minha mãe”, que evoca um conflito de proteção, violência e domínio. O outro trabalho, que se mostra em paralelo, está composto por duas séries de parede, onde umas datas e umas iniciais, costuradas respectivamente sobre tecido, acompanham pequenas gravuras vermelhas - como signos que podem ser a memória de reiteradas feridas, sinais ou cicatrizes - obtidos com superposições, repetições e, no fim, obscuras impressões. Os dois conjuntos, embora separados, se relacionam e dialogam, ambos se situam naqueles momentos em que os fatos vividos e as pessoas aludidas se apagaram individualmente, restando-nos somente uma lembrança que integra todos os fatos, mesmo os mais contraditórios. Laborioso e temporal, este é um trabalho que se cozinha em seu caldo, que resgata toda sinceridade e nos transmite a lenta e implacável faina que o produziu. Pede, como dizíamos no princípio, um esforço de aproximação, de olhar, intuir e expressar. Faz de nós espectadores ativos. Não saímos da exposição iguais ao que havíamos entrado. Seguramente algumas imagens nos rodarão pela cabeça, inquietando-nos durante um bom tempo. Não é esse um sinal inequívoco que se repete sempre que nos deparamos com um bom trabalho artístico? Assumpta Rosés*, para o Jornal Avui, Barcelona, 21 de julho de1994.


fotografia/ photography: Mario Galindo: 1, 3, 4, 7, 10, 11, 13, 14, 16, 17 Tude Oswald: 7, 19, 20, 21

www.anamiguel.com


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