Para além do espelho - a intervenção de proximidade nas toxicodependências

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TÍTULO: Para além do espelho - a intervenção de proximidade nas toxicodependências RESUMO: Os autores avaliaram uma população de utilizadores de drogas acompanhados por Equipas de Rua protocoladas com o IDT ao longo de 1 ano de intervenção, no âmbito do modelo de acompanhamento e avaliação de Equipas de Rua. No final de 1 ano, verificaram ganhos para a saúde dos utentes, ao nível de alterações no seu padrão de consumo de substâncias, de práticas de risco associadas a este consumo e a nível sexual e na inserção em projectos terapêuticos. Constataram a necessidade de intervir de uma forma mais eficaz ao nível da alteração do poli-consumo, da partilha de utensílios para o consumo pela via fumada e no desenvolvimento de respostas de proximidade facilitadoras da realização de rastreios e do tratamento de doenças infecciosas. Salientam a importância das respostas de proximidade com uma orientação de investigação-acção como forma de incrementar a qualidade da intervenção. PALAVRAS-CHAVE: proximidade, equipas de rua, redução de riscos e minimização de danos, avaliação AGRADECIMENTOS: a realização deste estudo é apenas possível no quadro da intervenção das equipas de rua que nele participaram, com o acompanhamento prestado pelo IDT. Agradecemos também o apoio prestado pelo Núcleo de Investigação do ODT. AUTORES: Andrade, Paula Vale Carapinha, Ludmila Sampaio, Miguel Shirley, Susana Rodrigues, Isabel Silva, Marta

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Seduzido com a projecção de si próprio, Narciso desconhecia o seu verdadeiro Eu, sendo consequentemente impermeável e absolutamente desconhecedor do Outro. Também as instituições que funcionam em espelho, alimentando uma imagem de eficácia e 1

qualidade, qual Narciso , viciadas em si próprias, sem serem capazes de se olhar criticamente e simultaneamente apreender a realidade a que se destinam, estão condenadas a permanecerem encerradas na sua própria toxicidade. Face a estas circunstâncias, perdem os cidadãos reais, com necessidades reais. Olhando para além do espelho, constatou-se também em Portugal que uma parte importante da população dependente de drogas, com consumos muito problemáticos, não se deslocava aos serviços de tratamento e/ou quando o fazia não prosseguia o percurso de tratamento, mantendo-se, em muitos casos, numa situação de marginalidade. A exclusão é um fenómeno que configura um défice de recursos (económicos, sociais, culturais) que dificultam a participação social dos indivíduos (Capucha, 1998). É reprodutora de si mesma, em que a cisão social proporciona por sua vez uma maior marginalização, não só materialmente mas também simbolicamente, conduzindo a um sentimento de auto-exclusão. Independentemente de o consumo de drogas ser causa ou consequência da exclusão social, o consumo problemático é mais um factor potenciador da manutenção desta realidade. A existência de cenas abertas de consumo de drogas, nas cidades metropolitanas de Lisboa e Porto, locais emblemáticos como o Casal Ventoso ou o Bº do Lagarteiro, denunciavam, à vista desarmada esta realidade. O caminho para um serviço de tratamento apresentava-se como uma via de múltiplos sentidos, o qual nem todos estavam dispostos ou conseguiam percorrer. De facto, as estruturas existentes a nível estatal encontravam-se sobretudo vocacionadas para uma população com um determinado nível de organização e de suporte familiar, prestando sobretudo um atendimento clínico em contexto de gabinete, condições dificilmente compatíveis com esta realidade em termos de exclusão (Marques e Fugas, 1996). O fenómeno da toxicodependência tem-se revestido ao longo dos séculos na civilização ocidental de uma (des)valorização moral muito marcada, caindo o consumo de drogas na esfera do não aceite, variando a sua conotação com o vício, o crime ou a doença, consoante as épocas e o desenvolvimento específico de cada sociedade. Independentemente da conotação específica atribuída, o consumo de drogas tem sido entendido como algo a expurgar pela sociedade, algo a punir ou algo a tratar. Contudo, a constatação da existência de uma realidade onde se situam pessoas que não beneficiam dos serviços sociais e/ou de saúde existentes, quer pela sua situação de exclusão quer por não quererem ou não conseguirem deixar de consumir substâncias (nos casos dos serviços de tratamento de dependências), aliada à noção fundamental do direito à saúde para 1

Etimologicamente, Narciso provém de narké, donde deriva também narcose e narcótico 2


todos, revelaram a necessidade de criar respostas na área da toxicodependência caracterizadas por uma abordagem de proximidade, de uma maior flexibilidade, e pelo respeito pela autonomia da pessoa nas suas escolhas relativamente à sua saúde (nomeadamente a escolha de não abandonar o consumo de substâncias ilícitas) e nas suas opções de vida em geral. Perante este quadro, e tendo sido estabelecido o enquadramento legal para a implementação de respostas de redução de riscos e minimização de danos através do decreto-lei 183/2001 de 21 de Junho, iniciou-se de uma forma sustentada em 2001 a implementação de uma rede nacional de estruturas de redução de riscos e minimização de danos. Reconhecendo que as organizações da sociedade civil de base territorial (IPSS) apreendem melhor as expressões específicas do fenómeno da toxicodependência nos locais onde se manifestam, entendeu-se constituírem estas as organizações mais adequadas para o desenvolvimento de intervenções de proximidade, pelo que é através do estabelecimento de parcerias com as IPSS que começaram a ser implementadas em 2001 as equipas de rua no domínio da intervenção em RRMD.

Redução de Riscos e Minimização de Danos – uma abordagem de proximidade – A Redução de Riscos e Minimização de Danos é uma abordagem eminentemente pragmática e humanista. Segundo este tipo de intervenção, o olhar dos técnicos centra-se de forma não valorativa nos comportamentos de consumo dos utentes, bem como no estilo de vida entretanto desenvolvido por estes como forma de sustentar o seu hábito. Esta abordagem preconiza uma hierarquia de metas realistas intermédias, desde o ponto em que o indivíduo está, em termos de riscos e potenciais danos associados ao consumo, até ao ponto final, que seria idealmente a abstinência. Cada uma destas metas intermédias corresponde por sua vez a níveis maiores de protecção e menores níveis de risco para o indivíduo e para a saúde pública. (Marlatt e col., 1998). Esta abordagem concebe a existência de uma escala contínua em termos das consequências associadas ao consumo de substâncias psico-activas, que vai desde o ponto de mais numerosas e graves consequências, até ao ponto em que não existem consequências porque não existe consumo. De facto, nesta abordagem mais moderada e gradual, sucede mesmo que uma parte dos indivíduos acaba por escolher a abstinência apesar de inicialmente se ter proposto a um objectivo intermédio (Marlatt, Blume e Parks, 2001). Numa perspectiva humanista, importa identificar as necessidades do indivíduo consumidor como um todo, procurando-se corresponder às necessidades mais básicas, frequentemente insatisfeitas, e, a partir daí subir na hierarquia da satisfação das necessidades existentes. (Marlatt e col.,1998). Segundo este modelo, os técnicos vão ao encontro do nível de motivação para a mudança em que se encontra o indivíduo, em alternativa ao nível de motivação que consideram que este deveria ter. Neste processo gradual, é essencial o estabelecimento de uma relação de confiança e a adopção de uma atitude empática relativamente aos comportamentos que a 3


pessoa tem na altura e suas motivações para a mudança, em alternativa a um modelo de “tudo ou nada” em que o utente é directamente confrontado com o seu consumo e impelido a procurar a abstinência. Kellogg (2003) propõe a designação de “Gradualismo” para a abordagem de passos que ligam a Redução de Riscos e Minimização de Danos sem objectivos de abstinência ao tratamento com este tipo de objectivos. Este autor propõe mesmo neste âmbito uma tipologia evolutiva segundo três categorias: diagnóstico da população, objectivos genéricos da intervenção e motivação dos utentes. Do ponto de vista do diagnóstico da população, considera uma escala que iria desde a situação de extrema dependência de substâncias, passando pela dependência, abuso até à situação de utilização esporádica. Relativamente aos objectivos genéricos da intervenção, considera um ponto extremo em que o objectivo consiste em manter a pessoa viva, passando por objectivos de manutenção da saúde até ao objectivo de a pessoa ficar saudável. Finalmente, relativamente à dimensão motivacional, propõe uma categorização considerando as pessoas que não conseguem parar de consumir no momento em causa, as pessoas que não pretendem deixar de consumir e as que conscientemente escolhem utilizar substâncias. A categorização proposta por Kellogg, tal como qualquer tipo de categorização, tem as suas limitações, sobretudo na medida em que pretendem espelhar uma realidade que na verdade é mais complexa. Naturalmente que existem situações intermédias das descritas e que mesmo entre as categorias propostas não existe necessariamente uma situação de completa exclusividade. Contudo, trata-se de uma categorização que facilita a compreensão da gradualidade da intervenção nesta área, seja em termos das características da população alvo, e, consequentemente, dos objectivos de intervenção delineados. Existe alguma discussão se a abstinência deve ser considerada ou não dentro do âmbito da Redução de Riscos e Minimização de Danos, ainda que se considere a situação limite em que se anulam os riscos associados ao consumo de substâncias (Kellogg, 2003). Neste trabalho importa sobretudo clarificar que cada passo no sentido de uma maior qualidade de vida do indivíduo é reconhecido como um sucesso, pelo que, como poderá ser apreciado na apresentação dos resultados, estes são analisados a vários níveis. Por exemplo, são analisados resultados relativamente ao abandono do consumo de substâncias mas, de igual forma, são analisados resultados relativamente à diminuição das práticas de risco. No âmbito do modelo de Redução de Riscos e Minimização de Danos, são possíveis diversas modalidades de intervenção, pretendendo-se descrever em maior detalhe neste artigo a intervenção das equipas de rua. O trabalho de rua é caracterizado por uma inserção na comunidade, constituindo-se como factor de mudança desta. É também caracterizado por uma teia de relações entre técnicos, consumidores de substâncias e seus pares, que, embora assumindo papéis diferenciados na relação, interagem de forma democrática nos processos de tomada de decisão relativamente ao percurso do utente (EMCDDA, 2001).

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Esta abordagem de proximidade utilizada pelas equipas de rua, tem sido implementada de forma diferenciada ao longo dos anos, segundo modelos mais centrados na mudança de comportamentos de indivíduos ou centrados na rede de relações dos consumidores de uma determinada comunidade, recorrendo ou não a pares, líderes comunitários, voluntários, com componentes diversificadas (inclusão ou não de troca de seringas, fornecimento de outro tipo de material, realização de rastreios, encaminhamentos, entre outros) (Needle e col., 2005). O modelo mais vulgarmente utilizado pelas equipas de rua em Portugal é bastante diversificado e abrangente em termos de serviços prestados. Inclui genericamente actividades como: (a) informação/sensibilização relativamente a comportamentos de risco; (b) troca de seringas; (c) oferta de outro tipo de material como água destilada, filtro, preservativos, toalhete; (d) encaminhamento para respostas sociais e de saúde,

nomeadamente

estruturas

de

tratamento

para

a

toxicodependência;

(e)

acompanhamento em termos de apoio social, psicológico, cuidados de enfermagem, entre outros; (f) programa de metadona de baixo limiar de exigência (apenas em algumas equipas). Estas respostas desenvolvem-se sempre com a orientação primária do respeito pelas opções do utente relativamente ao consumo de substâncias. Um olhar para além do espelho – modelo de avaliação das equipas de rua A parceria estabelecida com as IPSS para a implementação das equipas de rua, tem-se concretizado segundo um modelo de acompanhamento e avaliação específico, com características semelhantes ao modelo proposto por Ogborne e Birchmore-Timney (Ogborne e Birchmore-Timney, 1999). Este modelo concretiza-se a nível local, através do acompanhamento realizado pelos interlocutores dos CAT para a área da redução de riscos e minimização de danos, a nível regional pela monitorização efectuada pelas Delegações Regionais e ao nível dos Serviços Centrais, no Núcleo de Redução de Danos, que propõe as linhas de orientação técniconormativas para a prossecução e uniformização deste acompanhamento a nível nacional. Esta sede de coordenação garante, de uma forma participada, a unidade intrínseca de todo o processo de acompanhamento e avaliação realizado a nível local e regional. O modelo de avaliação da intervenção das equipas de rua consiste na análise da implementação da intervenção em relação aos resultados alcançados, tendo em conta o contexto onde esta é desenvolvida e os factores pessoais, comunitários, profissionais e institucionais inerentes ao trabalho de rua. Este processo permite obter informação objectiva acerca da evolução das necessidades da população-alvo e da comunidade envolvente, sobretudo em termos de disponibilidade de serviços, bem como da evolução das especificidades da intervenção das equipas de rua a nível nacional. Neste sentido, foram desenvolvidos instrumentos que possibilitam a avaliação da execução técnica e financeira dos projectos implementados pelas entidades parceiras, nomeadamente: 5


Relatório de Avaliação (Técnico e Financeiro), Relatório Mensal de Indicadores, Ficha do Utente (Caracterização e Avaliação), Relatório de Acompanhamento do CAT e Parecer da Delegação Regional (Técnico Financeiro). O estudo que se apresenta neste artigo constitui uma abordagem relativamente à apreciação da evolução de uma amostra de consumidores de substâncias que são utentes de Equipas de Rua com as quais o IDT estabeleceu um protocolo de Autorização para Criação, Funcionamento e concessão de Financiamento. Não sendo do âmbito deste estudo identificar todas as variáveis que influenciam a mudança dos utentes, nem tão pouco a medida e a forma como se processa esta influência numa população tão alargada, pressupõe-se que a intervenção das Equipas de Rua tem um contributo muito importante na alteração de comportamentos de consumo, de comportamentos de risco, de adopção de projectos terapêuticos, de cuidado com a saúde e que portanto as alterações observadas são também resultado da intervenção destas, em interacção, naturalmente, com outras variáveis. A análise das modificações observadas no percurso dos utentes alvo do estudo permitirá identificar quais as áreas em que a intervenção tem tido um maior sucesso, bem como levantar questões relativamente a outras áreas em que a intervenção tem tido um sucesso inferior e que portanto deverão ser melhor discutidas e trabalhadas. Somente com um olhar crítico face ao trabalho desenvolvido é possível identificar lacunas e transformá-las em desafios para melhorar a intervenção.

Metodologia A investigação que se apresenta é resultado do trabalho das Equipas de Rua protocoladas com o IDT, que acompanharam, numa lógica de proximidade a amostra de indivíduos estudada. Estudou-se uma amostra de 331 utentes acompanhados ao longo de 1 ano pelas Equipas de Rua participantes (15 em 24 equipas) no estudo (Tabela 1). A composição desta amostra não obedeceu a nenhum critério específico de selecção.

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Tabela 1. Distribuição de utentes que compõem a amostra pelas equipas de rua participantes Utentes (nº) In Loco S.M.A.C.T.E. Aproximar E.R. Barlavento FOCUS PORTO + SEGURO

Equipa de Rua

Encontros de Rua Cidade Segura E.R. Espaço Pessoa GIRU - GAIA FILOS METAS Encontros de Rua (Setúbal) Estrada com Horizontes E.R. Pioneira do Casal Ventoso – Bv TOTAL

46 52 49 1 3 44 11 5 7 19 1 18 13 61 1 331

Este estudo baseia-se numa comparação de dados recolhidos numa fase inicial da intervenção destas Equipas de Rua com estes utentes (através da Ficha de Caracterização do Utente) com dados recolhidos após 1 ano de intervenção com estes (através da Ficha de Avaliação do Utente). Isto significa que foram considerados utentes caracterizados em 2004 e avaliados após 1 ano até ao final de 2005. A Ficha de Caracterização do Utente compreende como áreas de informação: dados sóciodemográficos, dados familiares, história dos consumos anteriores, bem como de tratamentos anteriormente realizados, situação actual dos consumos, comportamentos de risco, dados clínicos, dados judiciais, acompanhamento e encaminhamento a realizar ao utente. Por sua vez, a Ficha de Avaliação do Utente compreende um conjunto de áreas idênticas (situação actual dos consumos, comportamentos de risco, dados clínicos, história do último ano em termos de projectos terapêuticos desenvolvidos e acompanhamento e encaminhamento efectuados ao utente), permitindo desta forma efectuar uma comparação de dados. O preenchimento de ambos os instrumentos é realizado por um técnico da Equipa de Rua que intervém junto do utente, a partir do momento em que existe uma relação de proximidade que proporcione a colocação de questões. A recolha de informação é realizada informalmente, em contexto de rua, no âmbito dos contactos que vão sendo estabelecidos entre o técnico e o utente. Uma das orientações fundamentais na recolha desta informação consiste no compromisso de confidencialidade com o utente relativamente à informação recolhida. Os dados recolhidos foram analisados estatisticamente com o apoio do software SPSS 14.0 para Windows.

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Resultados I. Caracterização da população Na fase inicial da intervenção verificou-se que, em termos de caracterização sóciodemográfica, a generalidade dos utentes era do género masculino (84,8%), solteira (63,0%), de nacionalidade portuguesa (94,2%) e com idade compreendida entre 27 e 46 anos (85,8%). A maioria dos utentes tinha habilitações literárias ao nível do ensino básico (71,2%), encontrava-se desempregada (88,5%) e, em termos habitacionais, vivia em casa de familiares (42,7%). A generalidade dos utentes não beneficiava de qualquer apoio pecuniário (75,9%).

A maior fatia da população vivia com os pais (32,1%), seguida dos utentes que viviam sozinhos (26,8%).

Verifica-se ainda que praticamente metade dos utentes avaliava a sua relação com a família como satisfatória (41,8%). Uma parte importante destes tinha familiares que consumiam substâncias psico-activas (41,3%), sendo que, de entre estes, a grande maioria consumia substâncias ilícitas (82,2%), sendo estas consumidas sobretudo por membros da família directa do utente (83,6%). No que diz respeito à sua situação judicial, constata-se que cerca de 36,5% dos utentes já tinham sido detidos pelo menos uma vez na vida e 28,1% já tinham estado efectivamente presos. À data da caracterização, 39,4% dos utentes tinham situações para resolver com a 2

justiça . No que diz respeito à história clínica dos utentes, verifica-se que 11,6% haviam sofrido situações de sobredosagem aguda ao longo da vida. A grande maioria já tinha realizado algum tipo de desabituação do consumo (85,7%)3 e mais de metade já tinha efectuado algum tipo de tratamento relativamente ao consumo de substâncias (69,4%). Trata-se portanto de uma população que conhecia o sistema de tratamento, que já havia iniciado projectos terapêuticos com vista a melhorar a sua qualidade de vida, projectos e percursos sem sucesso. Relativamente ao perfil de consumo de substâncias, praticamente todos os utentes (85,2%) consumiam heroína e mais de metade consumia cocaína (64,5%), ou seja, uma boa parte dos utentes consumia heroína e cocaína. Destaca-se em terceiro lugar a percentagem de utentes que consumia cannabis (32,6%). Menos frequentes, mas também com percentagens relevantes, são os utentes que consumiam benzodiazepinas (13,0%) e aqueles que consumiam álcool (14,8%). De facto, praticamente todos os utentes faziam poli-consumo de substâncias (83,0%). Regra geral, a substância eleita como principal era a heroína (para 59,0% dos utentes), seguida da

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Desconhece-se este dado para 10,3% dos utentes Desconhece-se este dado para 11,5% dos utentes

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cocaína (para 7,9% dos utentes). 11,4% dos utentes consideravam por sua vez a conjugação destas duas substâncias como prioritário. Estes utentes consumiam heroína sobretudo pela via endovenosa (62,2%) mas também em larga medida pela via fumada (42,9%). O consumo era essencialmente diário (89,0%). Por outro lado, no grupo dos utentes que consumia cocaína, uma dimensão semelhante utilizava a via fumada (50,0%) e a via injectada (51,0%). Da mesma forma, uma percentagem semelhante de utentes referia um consumo esporádico (50,0%) e diário (49,1%) desta substância. De entre os utentes que consumiam benzodiazepinas, 90,5% utilizava a via oral mas 19% dos utentes injectavam estas substâncias. O seu consumo era essencialmente esporádico (61,9%), mas 35,7% dos utentes que consumiam benzodiazepinas faziam-no segundo um regime diário. Relativamente à adopção de práticas de risco, verifica-se que cerca de 28,5% partilhava material de consumo e 62,9% (de entre os utentes com parceiro) tinha práticas de risco a nível 4

sexual (não utilizavam preservativo) . No que diz respeito à situação clínica dos utentes, constatou-se que a condição infecciosa mais presente na população era a Hepatite C (identificada em 59,5% dos Utentes rastreados), seguida do VIH/SIDA (33,5%) e Hepatite B (22,5%)5. II. Intervenção realizada pelas equipas de rua junto desta população A intervenção que aqui se apresenta como tendo sido planeada e concretizada pelas Equipas de Rua, diz respeito a um conjunto de serviços sociais e de saúde que as Equipas executam directamente (acompanhamento) ou para os quais encaminham os utentes, seleccionados de entre os genericamente propostos na Ficha de Caracterização do Utente e Ficha de Avaliação do Utente, não delimitando todo o universo da intervenção realizada por estas estruturas. O Acompanhamento planificado no início da intervenção centra-se sobretudo no Apoio Social (85,2%), Apoio Psicológico (60,1%) e Alimentação (50,5%). Estas foram também as áreas de

intervenção mais implementadas a este nível, tanto no 1º semestre como no 2º semestre de intervenção (Figuras 1 e 2)6.

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Desconhece-se esta informação relativamente a 11,2% dos utentes 5 Estes dados são relativos aos utentes que foram rastreados. Note-se que cerca de metade dos utentes não foram rastreados 6 Desconhece-se a informação relativamente ao acompanhamento concretizado no 1º semestre para 11,5% dos utentes

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Figura 1. Acompanhamento concretizado no 1º semestre Outro acompanhamento Alimentação Terapêutica Medicamentosa

3,0%

8,5%

50,5%

56,5%

2,1%

5,4%

17,5%

Cuidados de Enfermagem

16,7%

Apoio Psicológico

61,2%

Apoio Jurídico

60,1% 6,6%

6,1%

24,2%

Cuidados de Higiene

21,8%

18,4%

PSO

15,0%

Consultas Médicas

16,0%

Apoio Social

83,3%

27,8% 85,2%

Concretizado no 1º semestre

Planeado

Figura 2. Acompanhamento concretizado no 2º semestre Outro acompanhamento Alimentação Terapêutica Medicamentosa

3,0%

3,1%

50,5%

45,5%

2,1%

5,3%

17,5%

Cuidados de Enfermagem

13,6%

Apoio Psicológico

61,6%

Apoio Jurídico

60,1% 6,6%

5,3%

24,2%

Cuidados de Higiene

13,9%

PSO

12,4%

Consultas Médicas

17,0%

Apoio Social

77,4%

18,4% 27,8% 85,2%

Concretizado no 2º semestre

Planeado

Considerando por outro lado os encaminhamentos planificados, as estruturas para onde foi planificado o encaminhamento de um maior número de indivíduos foram o CAT (Figuras 3,4: 70,6%) e a Segurança Social (Figuras 3,4: 34,5%).

Verifica-se portanto uma priorização no encaminhamento para tratamento no CAT. De facto, somando a percentagem de utentes para os quais se planificou o encaminhamento para o CAT (70,6%) com a percentagem de utentes para os quais se planificou o encaminhamento para Comunidade Terapêutica (10,9%), constata-se que para praticamente todos os utentes (cerca de 80%) se planificou uma abordagem de tratamento com vista ao abandono do consumo de substâncias. No caso do CAT, a percentagem de utentes para os quais foi planificado este encaminhamento (70,6%) é claramente superior à percentagem de utentes efectivamente encaminhados, quer no 1º semestre (56,5%), quer no 2º semestre (43,0%), ainda que estas percentagens sejam bastante elevadas, sobretudo se se considerar que se trata de consumidores de longa duração e com experiências de insucesso no tratamento.

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Por outro lado, os encaminhamentos planeados para a Segurança Social foram largamente ultrapassados no 1º semestre (em cerca de 10%), tendo coincidido com os que efectivamente se concretizaram no 2º semestre. Numa medida semelhante aos acompanhamentos planeados em termos de Consultas Médicas (27,8%) é planeado o encaminhamento de Utentes para o Centro de Saúde (23,6%) e um pouco menos para o Hospital (8,5%). De uma forma geral, comparando a intervenção planeada ao nível dos encaminhamentos com a concretizada, existe uma correspondência entre ambas (Figuras 3 e 4)7. Figura 3. Encaminhamentos concretizados no 1º semestre Outra estrutura Segurança Social Comunidade Terapêutica C. Abrigo C. Acolhimento CAD Centro de Saúde Centro de Dia Unidade de Desabituação CAT Gabinete de Apoio CDP Hospital

8,5% 10,2% 34,5% 44,6% 10,9% 8,5% 0,0% 0,7% 6,6% 5,4% 4,9% 6,1% 23,6% 24,5% 1,8% 1,4% 4,8% 10,6% 70,6% 56,5% 13,3% 8,5% 15,5% 10,2% 8,5% 12,6%

Concretizado no 1º semestre

Planeado

Figura 4. Encaminhamentos concretizados no 2º semestre Outra estrutura Segurança Social Comunidade Terapêutica C. Abrigo C. Acolhimento CAD Centro de Saúde Centro de Dia Unidade de Desabituação CAT Gabinete de Apoio CDP Hospital

8,5% 11,5% 34,5% 33,1% 10,9% 7,1% 0,0% 0,0% 6,6% 5,3% 4,9% 5,6% 23,6% 14,2% 1,8% 1,5% 4,8% 5,3% 70,6% 43,0% 13,3% 9,0% 15,5% 8,0% 8,5% 11,1%

Concretizado no 2ºsemestre

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Planeado

Desconhece-se os encaminhamentos concretizados para 11,5% dos utentes no 1º semestre

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III. Evoluções observadas na amostra em estudo Evolução observada no perfil de consumo da população De entre os 331 utentes em estudo, apenas 229 mantiveram o consumo de substâncias psicoactivas ilícitas ao longo do ano em análise. Em termos percentuais, verificou-se um decréscimo em cerca de 26,2% na percentagem de consumidores de substâncias psico-activas ilícitas. Por outro lado, tendo em conta os consumidores de substâncias psico-activas ilícitas (319 utentes no início da intervenção e 217 após 1 ano), constata-se que a percentagem que efectuava poli-consumo diminuiu de 83,0% para 77,9%. No entanto, os utentes que mantiveram o poli-consumo de substâncias (264 utentes efectuavam poli-consumo no início da intervenção, tendo mantido esta prática cerca de 169 utentes) não efectuaram grandes alterações no que diz respeito ao número de substâncias principais (sp) e ao número de substâncias secundárias (ss) consumidas. Como se pode observar nas Figuras 5 e 6, as percentagens apresentam poucas variações após 1 ano de intervenção. Figura 5. Evolução no número de substâncias principais (sp) consumidas

67,9%66,0%

30,9% 27,9%

3,4% 2,5%

1sp

2sp

0,4% 0,6%

3sp Início

4sp

0,4%

5sp

1 ano

Figura 6. Evolução no número de substâncias secundárias (ss) consumidas

51,5% 45,7%

25,9% 22,3%

18,6% 17,9%

4,5%

0ss

1ss

2ss Início

8,0%

3ss

2,3% 1,9% 0,8% 0,6%

4ss

> 4ss

1 ano

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Analisando a evolução no tipo de substâncias consumidas pelos utentes que mantiveram o consumo de substâncias psico-activas ilícitas (319 consumidores no início da intervenção, 217 após 1 ano), salienta-se com maior evidência o decréscimo em 16,8% na percentagem de utentes que consome heroína (de 88,1% para 71,3%). De forma oposta, a percentagem de utentes que consome cannabis aumentou cerca de 7,1%. É de registar também o aumento, embora que ligeiro, da percentagem de utentes que consome benzodiazepinas. Por outro lado, a percentagem de utentes que consome cocaína manteve-se inalterada. De facto, no final de 1 ano de intervenção, é muito semelhante entre si a percentagem de utentes que consome heroína e cocaína (Figura 7). Figura 7. Evolução no tipo de substâncias consumidas

Cannabis Ecstasy Benzodiazepinas

41,0% 33,9% 0,9% 1,3% 17,9% 13,5%

Anfetaminas

3,1% 3,1%

Alucinogéneos

0,5% 1,3%

Buprenorfina np

5,6% 5,6%

Metadona np

2,3% 5,6%

Cocaína

67,3% 67,0%

Heroína

71,3% 88,1%

Início

1 ano

Como é possível observar na Tabela 2, destaca-se sobretudo a tendência ao nível da diminuição da percentagem de utentes que consome heroína e/ou cocaína pela via endovenosa e, paralelamente, o aumento na percentagem de utentes que consome estas substâncias pela via fumada. Estes dados sugerem que uma parte dos utentes acompanhados terá substituído a via injectada pela via fumada no consumo destas substâncias. Tabela 2. Evolução na via de administração utilizada no consumo de substâncias Via Injectada Início Heroína Cocaína Benzodiazepinas Buprenorfina np

1 ano

Via Fumada Início

1 ano

Via Inalada Início

1 ano

Via Snifada Início

1 ano

Via Oral Início

1 ano

62,2%

55,2%

42,9%

47,9%

51,0%

47,5%

50,0%

52,6%

20,0%

16,2%

90,0%

86,5%

75,0%

90,0%

25,0%

20,0%

(1)

(2)

(1)

(2)

2,9%

0,7% 2,4%

3,6%

(1) Note-se que estes dados são relativos apenas a 4 utentes dado que dos 18 utentes que consumiam buprenorfina não prescrita no início da intervenção apenas se dispõe de dados sobre a via de administração utilizada relativamente a 4. (2) Note-se que estes dados são relativos a apenas 10 utentes (número de utentes que no final de 1 ano referiu consumir buprenorfina não prescrita). Desconhece-se a via de administração utilizada relativamente a 5 utentes.

Analisando a frequência do consumo de substâncias, será de destacar a tendência para a diminuição do consumo diário de heroína, cocaína e buprenorfina não prescrita. De forma

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oposta, observa-se um aumento no consumo diário de benzodiazepinas. Finalmente, a percentagem de utentes que consome cannabis diariamente mantém-se semelhante após 1 ano de intervenção (Tabela 3).

Tabela 3. Evolução no consumo diário de substâncias Início

1 ano

Heroína

89,3%

71,8%

Cocaína

49,5%

37,6%

Metadona np

12,5%

20,0%

Buprenorfina np

33,3%

20,0%

Benzodiazepinas

36,6%

43,2%

Cannabis

55,5%

51,1%

Evolução observada na adopção de práticas de risco A percentagem de utentes que partilhava material de consumo no início da intervenção diminuiu em 6,7% (28,5% no início e 21,8% passado 1 ano), apesar de o número absoluto de utentes que partilham este material ter diminuído drasticamente (de 89 para 46 utentes). Tal é explicado pelo facto de ter reduzido muito o universo de utentes que consome substâncias psico-activas ilícitas. Os utensílios relativamente aos quais se observa uma diminuição da partilha são aqueles fornecidos no kit de consumo asséptico: a seringa e o filtro. De facto, diminuiu em 37,7% a percentagem de utentes que partilha seringa e em 13,8% a percentagem de utentes que partilha o filtro. Por outro lado, a partilha de recipiente diminuiu ligeiramente (6,8%), tendo mesmo aumentado a percentagem de utentes que partilham o tubo de fumar, o tubo de inalar e o cachimbo/garrafa (Figura 8). Figura 8. Evolução nos utensílios partilhados 64,1%

48,3%

46,3%

41,5%

33,3% 24,4%

23,0% 19,5% 12,2% 4,6%

Seringa

Recipiente/colher

Tubo de fumar

2,3%

Tubo de snifar

Início

Algodão/filtro

4,9%

Tubo de inalar

4,6%

Cachimbo/garrafa

1 ano

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No que diz respeito aos comportamentos de risco a nível sexual (não utilização de preservativo na relação sexual), os dados apontam para que, de entre os utentes com parceiro sexual (161 no início da intervenção e 125 passado 1 ano), a tendência é no sentido da adopção de práticas mais seguras: a percentagem de utentes que não utiliza protecção na relação sexual diminuiu de 62,9% para 47,9%, sendo também de salientar a diminuição de não respostas (no início da intervenção, a percentagem de Utentes dos quais se desconhece este comportamento é de 11,3%, anulando-se praticamente este valor no final de 1 ano de intervenção). Evolução observada na população relativamente à sua situação clínica A percentagem de utentes rastreados sofreu poucas alterações ao longo do ano de intervenção, sendo de concluir que a generalidade dos utentes foi rastreada logo no início da intervenção. De entre os utentes que fizeram rastreio, cerca de metade beneficiou de aconselhamento préanálise. Por outro lado, de entre os utentes que fizeram rastreio e apresentaram os resultados das análises, mais de 70% em todas as situações clínicas beneficiou de aconselhamento pósanálise (Tabela 4)8. Tabela 4. Realização de aconselhamento pré e pós análise Situação Clínica

VIH/SIDA Hepatite B Hepatite C Tuberculose IST

Aconselhamento pré-análise

Aconselhamento pós-análise

58,9% 58,6% 57,6% 58,8% 59,0%

86,3% 84,8% 71,1% 86,8% 86,1%

Considerando os utentes com diagnóstico positivo de cada uma das situações clínicas estudadas, constata-se que de uma forma geral a percentagem de utentes em tratamento diminuiu. Constitui excepção as IST, dado que neste caso a percentagem de utentes em tratamento 9

aumentou (Figura 9) .

8 Note-se que a percentagem de utentes relativamente aos quais se desconhece se fizeram o aconselhamento préanálise é bastante elevada, variando entre 30% e 45%. No caso do aconselhamento pós-análise situa-se entre 10% e 11% 9 Note-se que tanto no início do ano como no fim, a percentagem de utentes com diagnóstico positivo de cada uma das situações infecciosas relativamente aos quais se desconhece se estão em tratamento ou não, é muito elevada, variando entre 20% e 60%

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Figura 9. Evolução da percentagem de utentes em tratamento

100,0%

62,2% 56,5% 50,0% 50,0%

30,0%

33,3%

27,6% 15,0%

8,3% da percentagem de utentes em tratamento Figura 9. Evolução

HIV

Hepatite B

Hepatite C Tuberculose Início

DST

1 ano

Evolução observada relativamente à realização de alguma abordagem terapêutica relativamente ao consumo de substâncias (Programa de Substituição Opiácea, Unidade de Desabituação, CAT, Comunidade Terapêutica…) De entre os 331 utentes da população em estudo, ao longo do ano de intervenção, cerca de 132 fizeram desabituação do consumo, 127 iniciaram um programa de substituição opiácea (PSO.) e 68 iniciaram outro tipo de abordagem terapêutica, em CAT, Comunidade Terapêutica, Médico Particular... a. Projecto de desabituação do consumo de substancias psico-activas Em ambos os semestres, constata-se que a maior parte dos utentes que fez desabituações do consumo utilizou medicação como recurso, sendo no 2º semestre esta tendência menos acentuada (Figura 10). Figura 10. Utilização de medicação em processos de desabituação

74,3% 60,6% 39,4% 19,8% 5,9%

com medicação

sem medicação

1º semestre

paragens com e sem medicação

2º semestre

De forma semelhante em ambos os semestres, a maior fatia realizou a desabituação do consumo em casa, sendo no entanto também de salientar a percentagem de utentes que a 16


realizou numa Unidade de Desabituação (Figura 11)10. A grande maioria efectuou entre 1 e 2 paragens ao longo do ano em causa. Figura 11. Contexto de realização de processos de desabituação 56,3%56,1%

31,1% 31,8%

13,4% 13,6%

14,3% 3,0%

Ambulatório

Casa

1º semestre

Unidade de Outra Desabituação estrutura 2º semestre

Analisando a relação entre a realização de processo de desabituação e o consumo de substâncias psico-activas ilícitas constata-se que a maior percentagem de utentes que realizou processos de desabituação no 1º ou no 2º semestre manteve o consumo de substâncias psicoactivas ilícitas: 67,8% dos utentes que efectuaram desabituação do consumo no 1º semestre e 73,1% dos utentes que efectuaram este processo no 2º semestre (Tabela 5). É possível que,

para alguns destes utentes a desabituação do consumo seja utilizada de forma instrumental, com o propósito de diminuir o nível de tolerância à substância. Tabela 5. Relação entre a realização de desabituação do consumo e o consumo de substâncias Realizou desabituações no 1º semestre Sim

Consumo de substâncias psico-activas TOTAL

Não

Realizou desabituações no 2º semestre Sim

Não

Sim

67,8%

80,7%

73,1%

70,2%

Não

32,2%

19,3%

26,9%

29,8%

100,0%

100,0%

100,0%

100,0%

b. Projecto de programa de substituição opiácea (PSO) De entre os utentes que frequentaram PSO ao longo do ano de intervenção, a grande maioria integrou um programa terapêutico com metadona, em ambos os semestres (Figura 12).

10

Note-se que se desconhece esta informação relativamente a 14,4% dos utentes

17


Figura 12. Tipo de PSO realizado

80,2%

84,3%

20,7%

Metadona 1º semestre

15,7%

Buprenorfina 2º semestre

Cerca de metade dos utentes que fizeram PSO utilizaram como contexto de administração o CAT. Os restantes utentes realizaram este programa em colaboração com as Equipas de Rua ou com outras entidades – sobretudo o Centro de Saúde e a administração pelo próprio utente (Figura 13). Figura 13. Contexto de administração do PSO 64,6% 57,9%

20,4%

CAT

Equipa de Rua 1º semestre

25,6%

23,1%

19,5%

Outra Entidade

2º semestre

De entre os utentes que começaram a frequentar o PSO, cerca de 20% deixou de consumir substâncias no 1º semestre e 21,8% no 2º (Tabela 6). Tabela 6. Relação entre a inserção em PSO e o consumo de substâncias Frequência de PSO no 1º semestre

Consumo de substâncias psico-activas

Frequência de PSO no 2º semestre

Sim

Não

Sim

Não

Sim

80,0%

100,0%

78,2%

63,5%

Não

20,0%

0,0%

21,8%

36,5%

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c. Outro projecto de tratamento (em Comunidade Terapêutica, CAT,…) De entre os utentes que realizaram tratamento, a generalidade efectuou este processo no CAT. Destaca-se em segundo lugar a percentagem de utentes que realizou tratamento em Comunidade Terapêutica (Figura 14). Figura 14. Contexto de realização de tratamento

Outro local

3,3%

Estabelecimento Prisional

6,7% 2,4%

Comunidade Terapêutica

36,7% 21,4%

Médico Particular

4,8%

Hospital

3,3% 7,1%

Centro de Saúde

3,3% 7,1%

CAT

60,0% 64,3%

1º semestre

2º semestre

Constata-se que a inserção em tratamento não foi determinante do abandono do consumo de substâncias psico-activas ilícitas. Como se pode observar na Tabela 7, 69,0% dos utentes que iniciaram tratamento no 1º semestre continuaram a consumir substâncias psico-activas ilícitas, o mesmo sucedendo a 60,0% dos utentes em tratamento no 2º semestre. Por outro lado, em ambos os semestres, a percentagem de utentes que consome substâncias psico-activas ilícitas é superior no grupo de utentes que não iniciou tratamento (88,0% no 1º semestre e 76,3% no 2º). Tabela 7. Relação entre a inserção em tratamento e o consumo de substâncias psico-activas ilícitas Inserção em tratamento no 1º semestre Sim Não Consumo de substâncias psico-activas TOTAL

Inserção em tratamento no 2º semestre Sim Não

Sim

69,0%

88,0%

60,0%

76,3%

Não

31,0%

12,0%

40,0%

23,7%

100,0%

100,0%

100,0%

100,0%

Discussão e Conclusões As Equipas de Rua efectuaram um extenso trabalho de acompanhamento e encaminhamento dos utentes estudados, sobretudo nos domínios Social, Psicológico, de Alimentação, de encaminhamento para a Segurança Social, Centro de Saúde e CAT, para além da restante intervenção no domínio da redução de riscos e minimização de danos. De facto, na caracterização da amostra, constatou-se que se tratava de uma população sem recursos financeiros estáveis e que uma percentagem importante não beneficiava de qualquer

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apoio pecuniário. Por outro lado, o próprio estilo de vida associado a um consumo problemático de substâncias de longa data são factores que indiciam a necessidade de um apoio psicológico genérico, constituído por vias de uma relação de confiança com o técnico da Equipa de Rua. Neste âmbito é de salientar a ênfase colocada pelas Equipas de Rua na vertente do encaminhamento para o tratamento (planeou-se o encaminhamento de praticamente todos os Utentes para tratamento). Será portanto de colocar a questão de se nesta fase inicial da intervenção, esta planificação centrada no tratamento reflecte as reais motivações dos utentes ou se, por outro lado, reflecte os desejos e motivações dos técnicos. Há contudo um conjunto de respostas menos accionadas, nomeadamente o Acompanhamento Jurídico ou Encaminhamento para serviços que efectuem este acompanhamento, reflectindo por um lado eventuais constrangimentos na rede comunitária de apoio, constrangimentos operacionais das próprias Equipas ou as atitudes/necessidades dos utentes. Após um ano de intervenção das equipas de rua, os resultados descritos descrevem ganhos importantes para os utentes, ganhos estes que se consubstanciam numa qualidade de vida superior à do início da intervenção (tendo em conta os parâmetros estudados), com comportamentos de um maior nível de protecção e de menor risco para a sua saúde e a nível social. De facto, tendo como referência a escala gradual desde a situação de maiores riscos e danos até à situação de ausência de riscos, é possível afirmar que estes 331 utentes genericamente deram importantes passos no sentido de uma vida com maior qualidade. O balanço realizado acerca destes resultados ganha uma conotação particularmente positiva quando se tem em consideração algumas características genéricas dos utentes alvo da intervenção: o número de anos de consumo de substâncias psico-activas ilícitas (15 a 25 anos), a situação de exclusão tendo em conta parâmetros como o emprego, o apoio social, a habitação ou a educação, as experiências de insucesso no que diz respeito a tentativas anteriores de realização de desabituação e tratamento. De facto, os dados identificados na fase de caracterização ao nível da prevalência de situações infecciosas, são coerentes com uma longa experiência de consumo de substâncias, um desenraizamento social, possivelmente associado a um estilo de vida mais desorganizado, um consumo problemático de substâncias e à prática de comportamentos de risco quer a nível sexual, quer no âmbito do consumo de substâncias. As áreas em que é possível identificar ganhos mais evidentes são marcadamente o abandono do consumo de substâncias psico-activas ilícitas, a diminuição do consumo de heroína, a diminuição da partilha de seringa e filtro, a utilização do preservativo e a inserção em diversos programas terapêuticos. O decréscimo expressivo na percentagem de consumidores de substâncias ilícitas é significativo sobretudo tendo em conta que se trata de uma população que consome substâncias ilícitas há muitos anos e que a abordagem de redução de riscos e minimização de danos não tem como objectivo central o abandono do consumo de substâncias pelos utentes.

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Na amostra estudada, é bastante evidente que a utilização de uma abordagem gradual, sem exigência de abstinência e indo ao encontro do ponto em que o indivíduo está (situação psicológica, social, geográfica…) pode ter mesmo resultados significativos em termos de abstinência e, consequentemente, de anulação de riscos associados ao consumo. A diminuição do consumo de heroína é também bastante significativa do ponto de vista estatístico e significativa também pelo que representa em redução de riscos para o utente, dada a sua elevada toxicidade. Terá contribuído também para esta redução, a inserção de uma parte importante de utentes em PSO. Por outro lado, o consumo de cocaína manteve-se, apesar de ter diminuído a sua frequência e a sua utilização pela via injectada. A diminuição observada no consumo endovenoso de substâncias representa uma mais valia em termos da prevenção do contágio de doenças infecciosas, mas também ao nível de patologias venosas e outros problemas de saúde, ou mesmo de probabilidade de ocorrência de sobredosagens agudas, mais facilmente decorrentes deste tipo de via de administração. Note-se que os dados relativos ao consumo, sua via de administração e frequência apontam para um maior sucesso na redução da frequência do consumo do que na mudança da via de administração utilizada. Por outro lado, a redução do poli-consumo é pouco expressiva, sendo de referir que quem manteve a prática de poli-consumo de substâncias não mudou o seu perfil de consumo em termos do número de substâncias consideradas prioritárias e do número de substâncias consideradas secundárias. Trata-se portanto de duas áreas de intervenção que devem ser merecedoras de uma maior atenção. A descida expressiva na prática de partilha da seringa e do filtro são por sua vez certamente reflexo do programa de troca de seringas, no âmbito do qual é fornecido este material, dado que a descida na partilha deste material é bastante mais evidente do que a evolução registada na partilha de outros materiais. Terá contribuído para esta também o facto de ter diminuído o consumo injectado de heroína e de cocaína. Por outro lado, terão tido um importante papel, a acção educativa e motivadora das Equipas e a aquisição de conhecimentos, motivação, desenvolvimento de recursos, dos utentes. Note-se que, pela análise apresentada, observa-se uma tendência para a substituição do consumo endovenoso pelo consumo fumado, ao qual, está associada a partilha de utensílios necessários (verificou-se o aumento da partilha de tubo de fumar, tubo de inalar e cachimbo/garrafa). Desta forma, resulta que é necessário fazer um maior investimento na informação, mudança de crenças e atitudes relativamente às práticas de risco associadas ao consumo fumado, sendo também uma resposta possível a oferta/troca de utensílios necessários para este consumo. Por outro lado, os resultados verificados relativamente à diminuição da partilha do recipiente, demonstram também que é necessário trabalhar na mensagem de que a partilha deste utensílio comporta riscos importantes para a saúde, sendo por outro lado a oferta deste material muito importante. O aumento de práticas de protecção a nível sexual é também um importante ganho. Terão contribuído para esta certamente a distribuição de preservativos pelas Equipas de Rua, mas 21


também a sua acção educativa, motivadora, afectiva, em relação com as crenças, atitudes, competências dos utentes. A inserção em programas terapêuticos foi também bastante elevada, sendo de referir que praticamente todos os utentes efectuaram algum tipo de abordagem terapêutica, seja esta a desabituação, inserção em PSO ou outros tipos de tratamento. Nestas três modalidades apresentadas, uma percentagem importante de utentes deixou de consumir. Uma nota importante deve contudo ser realizada relativamente a esta conclusão: pela análise dos resultados apresentados da inserção de utentes nestes programas, conclui-se que uma parte destes fez movimentos entre programas diferentes (desabituação, PSO, outro tratamento), o que em alguns casos resultou na abstinência, mas noutros não. Naturalmente que se um utente inicia um determinado percurso terapêutico que resulta não ser o mais adequado para si numa determinada fase da sua vida, devem ser realizadas adaptações. Contudo, estes resultados conferem-nos a responsabilidade de reflectir para assegurar o mais possível que quando o utente é encaminhado para um determinado percurso terapêutico esteja efectivamente preparado para este, bem como assegurar uma articulação próxima com o serviço para o qual o utente foi encaminhado (note-se que estão em causa pessoas com uma experiência alargada de insucessos relativamente a projectos terapêuticos). Relativamente à realização de rastreios de doenças infecciosas, refira-se que cerca de metade dos utentes fizeram rastreio logo no início deste ano de referência, o que é de facto um importante sucesso, mas também representa um importante desafio. De facto, tendo por referência a amostra estudada, nesta área de domínio clínico, enfrentam-se constrangimentos e há um trabalho muito importante a desenvolver, nomeadamente na facilitação do acesso à realização de rastreios, na motivação dos utentes para conhecerem a sua situação clínica, na preparação dos técnicos para efectuarem o aconselhamento necessário a este nível, na facilitação do acesso ao tratamento relativamente a situações clínicas diagnosticadas (o que passará por uma solução de proximidade), dado que a adesão ao tratamento é bastante reduzida, independentemente da situação clínica. Este trabalho demonstra a mais valia da intervenção das Equipas de Rua com os utentes estudados, permitindo reconhecer sucessos na abordagem adoptada mas sobretudo identificar um maior número de desafios para que a intervenção efectuada seja da maior qualidade e eficácia e com um real impacto na melhoria da qualidade de vida das pessoas a que se destina e, consequentemente, também da saúde pública. Se é verdade que todos nós corremos o risco de ficarmos presos a uma imagem, o mesmo acontece quando falamos de Instituições, já que estas não são mais do que o reflexo de várias vontades. Assim, importa olhar para além do espelho continuando a investir numa abordagem que permita a inquietude necessária a quem trabalha com esta população, potenciando desta forma uma mudança quer nas instituições quer na realidade a que estas se destinam.

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Referências Bibliográficas Capucha, L. (1998). Pobreza, exclusão social e marginalidade. In Viegas, J.M.L. e Costa, A. F. Portugal, que Modernidade?, Oeiras, Celta Editora. E.M.C.D.D.A.(2001). Guidelines for the evaluation of outreach work. A manual for outreach practitioners. Luxembourg: Office for Official Publications of the European Communities. Kellogg, S. H. (2003). On “Gradualism” and the building of the harm reduction-abstinence continuum. Journal of Substance Abuse Treatment, 25, 241-247. Marlatt, G. A. e col. (1998). Redução de Danos: estratégias práticas para lidar com comportamentos de alto risco. São Paulo: Editora Artes Médicas Sul, ltda. Marlatt, G.A., Blume, A.W. e Parks, G.A. (2001). Integrating Harm reduction Therapy and Traditional Substance Abuse Treatment. Journal of Psychoactive Drugs, vol. 33 (1) Marques, A. P. e Fugas, C. (1996). Da rua dificilmente se sai sozinho! Toxicodependências, 3 (2), 3-12.

Needle, R. H. e col (2005). Effectiveness of community-based outreach in preventing HIV/AIDS among injecting drug users. International Journal of Drug Policy, 16S, S45-S57. Ogborne, A.C., Birchmore-Timney, M.A. (1999). A framework for the evaluation of activities and programs with harm-reduction objectives. Substance Use & Misuse, 34 (1), 69-82.

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