ANÁLISE DAS CARACTERISTICAS DA ARQUITETURA RACIONALISTA NA CONSTRUÇÃO DE CEASAS BRASILEIRAS

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ANÁLISE DAS CARACTERISTICAS DA ARQUITETURA RACIONALISTA NA CONSTRUÇÃO DE CENTRAIS DE ABASTECIMENTO BRASILEIRAS Ana Paula R. Ferreira – anaarquiteta@yahoo.com.br Rinaldo Zanatto – rinaldozanatto@yahoo.com.br

RESUMO No presente artigo buscou-se analisar alguns aspectos relacionados à arquitetura das Centrais de Abastecimento, de forma a retirá-la do campo da construção essencialmente utilitarista e inseri-la numa discussão arquitetônica mais consistente e aprofundada sobre sua identidade. PALAVRAS-CHAVES: Centrais de Abastecimento, Arquitetura e Racionalismo. INTRODUÇÃO O surgimento das primeiras atividades econômicas ainda na sociedade primitiva está relacionado, entre outras condicionantes, à percepção do homem da possibilidade de viver em agrupamento com seus iguais e poder fixar-se em um mesmo local, produzindo ali o necessário para o sustento de sua comunidade. Com a evolução da sociedade concomitante ao avanço das atividades econômicas, deram-se origem as primeiras feiras, as quais se apresentavam como a forma mais primitiva dos mercados que ao longo do tempo foram se aprimorando sofrendo alterações adquirindo formas diferentes de comercializações. Posteriormente surgem as Centrais de Abastecimento as quais foram criadas com o intuito de promover, desenvolver, regular, dinamizar e organizar a comercialização de produtos de hortifruticultura no atacado em uma região. SURGIMENTO DE CENTRAIS DE ABASTECIMENTO NO MUNDO E NO BRASIL Paris, segundo PINTAUDI (2006), como uma importante cidade Romana, não teve grandes mercados no seu início, porém constituía-se como respeitável entreposto de armazenagem. O primeiro mercado de que se tem registro é o “Marché Palu”, inserido na ilha da cidade, o qual mais tarde foi transferido para a


margem direita do rio Sena na “Place de Gréve” (atual Place de l’Hôtel de Ville), onde ficou mais protegido das inundações decorrentes do rio Sena e permanecendo próximo ao porto de Gréve, direção esta que se dava a expansão da cidade. No ano de 1943, presidido por Georges Bidault, o Comitê Nacional da Resistência, durante a ocupação da Alemanha na França, decide pela demolição dos mercados, idéia esta reservada e retomada em 1948, descrita como “Marchés gares”, tratando do deslocamento dos mercados para periferias imediatas. Segundo site Rungis (2009), dificuldades como circulação, más condições de higiene e de trabalho geraram declínio nos faturamentos e por não suportar as mudanças ocorridas em Paris, em 1959 se dá a escolha do local de transferência do “Marché Les Halles”

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para Rungis, com terreno que ocuparia 600 hectares, a 7 km

de Paris. Dia 3 de Março de 1969 se dá então a oficial abertura do “Marché Rungis”, porém por efeito dos anos 1950, produtos a base animal eram comercializados no matadouro La Villete, mas com o desenvolvimento de transportes com refrigeração, e conseqüente aumento da demanda as instalações deste tornaram-se insuficientes. Optou-se então em concentrar a comercialização de todos os tipos de produtos em Rungis e desde 1973 os pavilhões foram sedo modelados às necessidades emergentes, conferindo ao “Marché Rungis Alimentares”, Patrimônio Gastronômico Francês, o titulo de maior Central de Abastecimento Alimentício do mundo, até hoje. No Brasil, conforme afirma SANTOS (2008), em 1924 foi aprovada uma lei que possibilitaria a construção do que mais tarde seria conhecido como Mercado Municipal Paulistano ou Mercadão as margens do Rio Tamanduateí2, na Várzea do Carmo e este passa a exercer a função de abastecimento da cidade de São Paulo que até então era do Mercado Central. Segundo SEGAWA (2002), nos anos de 19603 houve uma crescente preocupação governamental em relação à regulamentação dos mecanismos de armazenamento, conservação, distribuição e comercialização de commodities4 com o intuito de regulamentar o fluxo, padrões de qualidade e controle de preços. Com 1

Les Halles: Foi considerado por Emile Zola como “Le ventre de Paris” em 1969, durante o governo

de De Gaulle, o galpão na época de Napoleão III, foi demolido em 1971, para dar espaço a um moderno centro de compras. 2

O Rio Tamanduateí (hoje canalizado), era usado como meio de transferência de produtos para o

abastecimento da cidade, através de pequenas embarcações. 3

Neste período o governo adotou o slogan: “Brasil terá o tamanho de sua agricultura”.


isso, em âmbito estadual, em 1966 foram criadas as Centrais Estatuais de Abastecimento S.A. (CEASA). INDUSTRIALIZAÇÃO DA CONSTRUÇÃO Um conjunto de mudanças tecnológicas geraram profundo impacto no processo produtivo em ambito econômico e social protagonizado pela Revolução Industrial, que teve sua gênese na Inglaterra em meados do século XVIII, embora viera a se expandir pelo mundo apenas no século XIX. O início da industrialização teve premissas semelhantes a de algumas cidades do século XIX, coincidindo em seus antecedentes históricos, como o êxodo do homem do campo, resultando em um aumento demográfico das grandes cidades, tendo em seus núcleos inchados a verticalização de prédios. Portanto com o início da produção industrial, cria-se para a arquitetura uma nova realidade, que passa a contemplar construções voltadas a praticidade, rapidez e economia de tempo e dinheiro, estabelecendo novas formas na representação do espaço pela criação de novos materiais fomentando o surgimento de novos métodos construtivos, como sistemas em treliças leves e resistentes, que permitiu criar estruturas cada vez maiores e mais ousadas, junto a capacidade de rapidez no processo de montagem. Legados deste período são as Estações de trens parisienses5, a Torre Eiffel, o Palácio de Cristal em Londres e em Portugal, a ponte Dom Luis, no Porto, o elevador de S. Justa em Lisboa e o Mercado 24 de Julho ou Mercado da Ribeira em Lisboa situado na Avenida 24 de julho, grandes pontes, grandes vãos livres, grandes cúpulas e mercados além de outros materiais fruto do processo de industrialização como o vidro. Segundo BRUNA (1976) "a industrialização está essencialmente associada aos conceitos de organização e de produção em série, os quais deverão ser

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Commodities (mercadoria em inglês) produtos primários de importância econômica fundamental,

como minérios e gêneros agrícolas, que são produzidos em larga escala e comercializados em nível mundial. As commodities são negociadas em bolsas de mercadorias, portanto seus preços são definidos em nível global, pelo mercado internacional. 5

Retratadas por pintores impressionistas, sendo um de seus principais nomes, Monet.


entendidos, analisando-se de forma mais ampla, as relações de produção envolvidas e mecanização dos meios de produção". De acordo com BAPTISTA (2009), a industrialização da construção está ligada a produção em maior quantidade, com melhor qualidade, a um menor custo e em um tempo menor. CORRENTES ARQUITETÔNICAS NO SÉCULO XX A corrente preconizadora, porém de designação genérica para o conjunto de movimentos arquitetônicos que marcaram tal produção durante grande parte do século XX, é a Arquitetura Moderna, a qual teve seus ideários encontrados em origens diversas como a Bauhaus, na Alemanha, em Le Corbusier, na França e entre muitos outros. Dentro desta vertente e com a realidade fundada nos preceitos da industrialização, a corrente Racionalista veio marcar princípios legados do pósguerra. Segundo MONTANER (2002), tal estilo opta pelos seguintes critérios; a primazia das medidas, o elementarismo e a ênfase no detalhe técnico, a criação a partir de protótipos, o projeto à base de repetição modular, a subdivisão do global em volumes eficazes e a imaginação de megaestruturas complexas, tanto na arquitetura quanto na criação de bens de consumo, contudo sem jamais limitar-se apenas a esses objetivos, tendo como seu precursos Violet-Le-Duc e posteriormente nomes como: Walter Gropius (1883 – 1969), Mies van der Rohe (1886 – 1969) e Lê Corbusier (1887 – 1966). Seus principios melhores descritos são, perante a edificação: esqueleto estrutural do edifício no lugar de simetria axial, predileção pelas formas geométricas simples, com critérios ortogonais, emprego da cor e do detalhe construtivo no lugar da decoração sobreposta, concepção dinâmica do espaço arquitetônico, o uso de materiais como o aço, o concreto e/ou o vidro (novos materiais, na época). O racionalismo arquitetônico é a depuração do saturado, deixando somente o essencial, o prático e funcional para cada situação. De acordo com FRAMPTON (1997), o racionalismo foi raiz de movimentos arquitetônicos como o High-Tech, emergente nos anos de 1970, caracterizada pela orientação produtivista, a efemeridade em múltiplos sentidos e a realidade do ponto de vista estético, embora anos passados este movimento resgate apelos à maquina


e à produção industrial, declarando à arquitetura uma maior precisão nos detalhes construtivos e a repetição em modulo. Exemplo famoso deste tipo de arquitetura é o Centro Pompidou em Paris, projetado por Richard Rogers e Renzo Piano. APRESENTAÇÃO DAS CARACTERÍSTICAS ENCONTRADAS NAS CENTRAIS DE ABASTECIMENTO Ao longo do tempo se pode perceber, em nível arquitetônico, uma padronização construtiva que ocorre por meio da utilização de galpões préfabricados que vieram a assumir a imagem mais comum de grandes espaços de armazenagem, devido, entre outras razões, ao fato destes conferirem maior rapidez à execução, menor custo e ainda a aparente facilidade de adequação de espaços de vendas e posicionamento de maquinários nestes ambientes. No entanto, é importante ressaltar que a versatilidade de tais tipos de edificações aparentemente não gerou, no Brasil, uma preocupação em criar Centrais de Abastecimento com espaços planejados de qualidade, mas uma arquitetura, por vezes, de simples adaptação dos móveis, maquinários e espaços ao interior de um barracão. Neste sentido, enquanto em outros tipos de edificações é comum se perceber que, tanto a forma quanto a função acabam convergindo para uma mesma tipologia de

raciocínio

dentro

de

alguma

corrente

arquitetônica,

em

Centrais

de

Abastecimento este se torna o ponto culminante e conflitante, uma vez que as mesmas parecem carecer de uma identidade arquitetônica. Foram analisadas três Centrais de Abastecimento no Brasil sendo feito uma comparação dos elementos a elas pertencentes. Na Central de Abastecimento de São Paulo (CEAGESP), nota-se uma repetição de pavilhões, destinados a “BOX” que são voltados a empresas de distribuição de hortifrutigranjeiro, alguns com estruturas pré-moldadas em concreto e outros com estrutura metálica. Apresenta fechamentos laterais em alvenaria. A cobertura com telhas de fibrocimento fixadas na estrutura metálica. As aberturas com esquadrias metálicas e vidro. Outros sem fechamento lateral. Cobertura com telhas galvanizadas. Outra edificação presente é a “Pedra”, local de comercialização para o livre produtor, com estrutura e cobertura em pré-moldado de concreto, porém sem fechamento lateral. As demais edificações fazem parte do serviço como


bancos, parte administrativa, restaurantes entre outros, estes se apresentam como sistema construtivo tradicional de alvenaria, cobertura com telha cerâmica e aberturas com esquadrias metálicas.

Figura 1: Central São Paulo (CEAGESP). Fonte: www.ceagesp.gov.br

A Central de Abastecimento de Londrina é composta por repetições de pavilhões destinados a “BOX” com estruturas pré-moldadas em concreto. Fechamentos laterais em alvenaria. Cobertura com telhas de fibrocimento. Aberturas com esquadrias metálicas com vidro. Em todo o pavilhão entre a viga superior que apóia a cobertura e a alvenaria de fechamento existe uma faixa continua de tijolos vazados que permite a ventilação, o que se repete na edificação administrativa. A “Pedra” é constituída com estrutura pré-moldada metálica e cobertura metálica. Neste espaço não há vedação lateral.

Figura 2: CEASA Unidade Londrina. Fonte: ARUCEL.

No Brasil a única Central de Abastecimento que se tem notícias, constando em sua elaboração uma intenção arquitetônica formal clara, segundo SEGAWA (2002), é a de Porto Alegre, projetada a 37 anos por arquitetos uruguaios. Tal obra


apresenta estrutura pré-moldada em concreto. Fechamento lateral em alvenaria. Cobertura em “casca”, em todo o complexo tanto nos pavilhões destinados a “BOX”, quanto para a “PEDRA” junto aos demais edifícios.

Figura 3: CEASA Porto Alegre. Fonte: CEASA/RS.

A realidade nas Centrais é a repetição de pavilhões e edificações em geral que compõe seu programa de necessidades, como a maioria de Centrais pelo Brasil, com o mesmo tipo de sistema construtivo. CONSIDERAÇÕES FINAIS Segundo os princípios das correntes acima descritas, junto ao intuito inicial do presente artigo de buscar alguns aspectos que relacione a arquitetura das Centrais de Abastecimento, de forma a retirá-la do campo da construção essencialmente utilitarista e inseri-la numa discussão arquitetônica mais consistente e aprofundada sobre sua identidade, pode-se concluir que, embora não tenha ocorrido como intenção formal na sua elaboração, percebe-se a presença na utilização de materiais como: aço, ferro nas estruturas, o vidro em esquadrias, característicos das correntes acima propostas. Estes elementos encontrados nas Centrais de Abastecimento embora desprovidos de intenção estética são significativos, pois em sua concepção percebese uma proximidade com características como primazia das medidas, o elementarismo e a ênfase no detalhe técnico, a criação a partir de protótipos e o projeto à base de repetição modular, tal fato nos permite um enquadramento destas


edificações em correntes arquitetônicas como o racionalismo, pois subsistem ali características de uma época. Contudo, para a concepção que demonstre uma preocupação arquitetônica além das possibilidades de aplicação de técnicas construtivas, é necessário haver simbiose entre a aplicação de princípios de correntes arquitetônicas, técnicas construtivas e intenções superiores que confiram a obra ritmo, expressão, unidade e clareza, como descrevem Lucio Costa em Considerações sobre Arquitetura. “Enquanto satisfaz apenas às exigências técnicas e funcionais, não é ainda arquitetura; quando se perde em intenções meramente formais e decorativas, tudo não passa de cenografia; mas quando - popular ou erudita - aquele que a ideou, pára e hesita ante a simples escolha de um espaçamento de pilares ou da relação entre a altura e a largura de um vão, e se detém na obstinada procura da justa medida entre cheios e vazios, na fixação dos volumes e subordinação deles a uma lei, e se demora atento ao jogo dos materiais e seu valor expressivo, - quando tudo isso se vai pouco a pouco somando em obediência não só aos mais severos preceitos da técnica construtiva, mas, também àquela intenção superior que seleciona, coordena e orienta em determinado sentido toda essa massa confusa e contraditória de pormenores, transmitindo assim ao conjunto ritmo, expressão, unidade e clareza, - o que confere à obra o seu caráter de permanência: isto sim é arquitetura.” (LUCIO COSTA, 1952).

REFERÊNCIAS BAPTISTA, Sheyla Mara. Racionalização e industrialização da construção civil. Disponível em: <http://www.dptoce.ufba.br/construcao1_arquivos/06%20Racionaliza %E7%E3o%20e%20industrializa%E7%E3o%20CC.pdf> acessado em: 10/09/2009. BARSA,

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http://brasil.planetasaber.com> acessado em: 15/3/2009. CORDEIRO, Caio Nogueira H.. Movimentos, tendências e conceitos da arquitetura

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FRAMPTON, Kenneth. História crítica da arquitetura moderna. São Paulo: Martins Fontes, 1997. MONTANER, Josep Maria. Depois do movimento moderno: Arquitetura da segunda metade do século XX. Barcelona: Gustavo Gili, 2001. PINTAUDI, Silvana Maria. Os Mercados Públicos: Metamorfose de um espaço na historia urbana. Scripta Nova. Revista electronica de geografia y ciências sociales. Barcelona: Universidade de Barcelona, 2006. Vol. X, nº 218. Disponível em: <http://www.ub.es/geocrit/sn/sn-218-81.htm> acessado em 13/4/2009. RUNGIS

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INTERNACIOL.

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http://www.rungisinternational.com> acessado em: 25/5/2009. SANTOS, Carlos José Ferreira dos. Mercado Municipal Completa 75 anos. Folha Online,

25/01/2008.

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http://www1.folha.uol.com.br/folha/videocasts/ult10038u366780.shtml> acessado em 15/5/2009. SEGAWA, Hugo. Arquiteturas no Brasil: 1900-1990. 2 ed. São Paulo: Edusp Editora, 1999 – 2002. 224 p.


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