[INTER]SECÇÕES arquitectura e novo cinema português
Dissertação de Mestrado Integrado em Arquitectura Ana Isabel Baldaia de Resende Docente orientador: Luís Filipe Dordio Martinho de Almeida Urbano Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto 2011/2012
Aos meus pais e à minha irmã, por serem incansáveis, aos amigos, por terem entrado no jogo, ao Luís pela ruptura, ao Tiago, por tudo, obrigada.
resumo O carácter interdisciplinar da arquitectura permite uma abertura a outros domínios que influenciam e complementam as suas teorias e metodologias. A presente dissertação analisa possíveis relações entre a arquitectura e o cinema, a partir das imagens do Novo Cinema Português. Surgido no início dos anos sessenta, este movimento de renovação do cinema nacional caracteriza-se fundamentalmente pela procura de novas formas de expressão, que se traduziram num novo entendimento do espaço cinematográfico. Da observação de um conjunto de filmes deste período, criaram-se três grupos temáticos pertinentes do ponto de vista arquitectónico: espaço público, espaço privado e espaço psicológico. Cada um destes temas divide-se em três pontos, não necessariamente distintos entre si. O Espaço Público desdobra-se em Aproximação, Deambulação e Deslocamento; o Espaço Privado em Porta, Janela, Corredor; e finalmente, o Espaço Psicológico em Reflexos, Projeções e Símbolos. Através de análises parciais, pretende-se criar um todo inteligível capaz de compreender uma parte significativa das relações entre a arquitectura e o cinema. Aspirou-se assim a um resultado final que consista num compêndio de observações e experiências, ou se quisermos, um manual de instruções para práticas futuras.
abstract The interdisciplinary nature of architecture allows an opening to other areas that influence and complement its theories and methods. This dissertation examines possible relationships between architecture and cinema, from the images of the “Cinema Novo Português”. Emerging in the early sixties, this renewal movement of national cinema was mainly characterized by the search for new forms of expression, which resulted in a new understanding of cinematic space. From the observation of a set of films of this period, three relevant thematic groups were created from an architectural point of view: public space, private space and psychological space. Each of these subjects is divided into three points, not necessarily distinct from each other. The Public Space unfolds in Approach, Wandering and Displacement; the Private Space in Door, Window, Corridor; and finally, the Psychological Space in Reflections, Projections and Symbols. This analysis of parts was intended to create an intelligible whole, allowing a better understanding of a significant part of the relationship between architecture and cinema. Thus it aspired to create an outcome which could be interpreted as a compendium of observations and experiments or just a manual for future practices.
índice INTRODUÇÃO a procura de intersecções
9
a experiência pessoal
12
o novo cinema português
13
sinopse
16
I. ESPAÇO PÚBLICO
19
aproximação
21
deambulação
35
deslocamento
47
II. ESPAÇO PRIVADO
55
a porta
57
a janela
67
o corredor
77
III. ESPAÇO PSICOLÓGICO
85
reflexos
87
projecções
99
símbolos
109
CONCLUSÃO
119
Bibliografia Referenciada
123
Créditos Imagens
129
Anexos: os filmes
135
introdução
A PROCURA DE INTERSECÇÕES Interrogo-me como arquitecto: A magia do real – café na residência de estudantes, uma fotografia de Hans Baumgartner tirada na década de 1930. Estes homens gostam de estar ali sentados. Pergunto-me: posso eu, como arquitecto, projectar atmosferas, esta densidade, este ambiente? E em caso afirmativo, como? E penso que sim, e depois que não. Penso que
fig. 1. Hans Baumgartner, residência de estudantes na Clausiusstrasse. Zurique, Suiça. 1936.
sim porque há coisas boas e menos boas.1
1. Zumthor, 2006: 19
A definição do papel do arquitecto é uma tarefa cada vez mais ambígua. A crescente facilidade de acesso à informação e à comunicação motivam um espírito de experimentação que torna difícil indicar onde começa e termina a sua intervenção. A desmaterialização dos limites da arquitectura abre novos caminhos, por vezes imprevisíveis, permitindo a contaminação e o cruzamento com outras disciplinas. O presente trabalho partiu desse cruzamento numa tentativa de reflectir sobre as possibilidades de interacção da arquitectura com outros domínios, particularmente com o campo do cinema. Apesar das diferenças óbvias entre estas duas disciplinas, o arquitecto e o cineasta parecem perseguir um objectivo comum, o de construir mundos que podem descrever-se e habitar-se, mundos que podem ser objecto de análise e configuração, independentemente de serem reais ou imaginados.2 Neste sentido, o objectivo deste exercício
2. Arís & Roig, 2008: 9
é tentar identificar onde e como esses mundos se intersectam. Poderemos nós, como arquitectos, projectar as mesmas atmosferas, a mesma densidade e os mesmos ambientes que habitam o imaginário cinematográfico? Poderá o cinema ajudar numa reflexão mais profunda sobre a disciplina da arquitectura, sobre os seus fundamentos, as suas ferramentas e os seus métodos? Procurou-se então uma metodologia que proporcionasse um levantamento de hipóteses, privilegiando a abrangência de um maior número de conceitos em detrimento do seu aprofundamento individual, na tentativa de criar um todo inteligível capaz de compreender uma parte significativa das relações entre a arquitectura e o cinema. Descubro agora que tudo se passa como uma brincadeira, uma boa e velha brincadeira: um jogo de montar com resoluções infinitas. Menos que um método há uma atitude. Trata-se aqui de um jogo mesmo, não apenas de um artifício de linguagem. Por isso, a ideia é ver, além de onde se conseguiu chegar, ou do que se conseguiu produzir, como isso se fez, com quais peças, produzindo 3
quais movimentos, seguindo quais regras.
3. Brandão, 2002: 148 9
Adoptando uma lógica de jogo de associações visuais e conceptuais, próxima da ingenuidade presente numa brincadeira, partiu-se para a criação de uma matriz capaz de abranger diferentes e coincidentes secções do cinema e da arquitectura. Utilizando um conjunto de filmes do Novo Cinema português, colocaram-se lado a lado os diferentes fotogramas e, num exercício de confrontação e conjugação dessas imagens, criaram-se grupos com base em pressupostos arquitectónicos. Montou-se assim uma estrutura, um puzzle de várias peças que, apesar da forma aparentemente rígida, se pretende flexível, capaz de se montar de diferentes maneiras e de, a qualquer momento, deixar entrar novos elementos. Esta estrutura é constituída por três grupos, cada um composto por três partes, não necessariamente distintas. A ideia de versatilidade e desdobramento associada ao número ‘três’ parece ir de encontro ao objectivo deste exercício, ao mesmo tempo que abrange três importantes níveis para o entendimento do espaço: público, privado e psicológico. Com este método, pretendeu-se valorizar a intuição como ponto 4. Ábalos, 2001: 9
de partida, numa espécie de desprofissionalização do olhar4 necessária a uma investigação mais livre e espontânea. Para desfrutar da arquitectura há que viajar com a imaginação, que voar com a
5. Alejandrio de la Sota cit. Idem: 11
5
fantasia.
10
11
A EXPERIÊNCIA PESSOAL
Em Janeiro de 2011, tive a oportunidade de integrar o projecto de investigação Ruptura Silenciosa. Intersecções entre a Arquitectura e o Cinema. Portugal 1960-74. Se o cinema era já um interesse de longa data, talvez até mais antigo que o próprio interesse pela arquitectura, esta experiência reforçou a vontade de estabelecer afinidades e pontos de contacto entre as duas disciplinas. Desta forma, não só foi determinante para a escolha do tema, como foi complementar do processo de desenvolvimento deste trabalho, já que ambos decorreram em simultâneo. A investigação desenvolvida nos últimos anos, despertou um especial interesse pelo Novo Cinema português que, naturalmente, se tornou o objecto de estudo desta dissertação. Através deste projecto, tive um acesso privilegiado à recolha de informação e ao visionamento dos filmes, bem como a oportunidade de apresentar comunicações em congressos nacionais e internacionais. Permitiu-me ainda participar em entrevistas a figuras centrais da arquitectura e do cinema portugueses, tais como Fernando Lopes, Nuno Portas, Sergio Fernandez e Manuel Vicente. Por outro lado, a participação na realização das curtas-metragens Sizígia e A Casa do Lado, acompanhando o processo desde a pré-produção à montagem final, moldou a abordagem deste trabalho. O contacto directo com a prática cinematográfica fez surgir uma vontade de identificar e enumerar diferentes possibilidades de manipulação quer do espaço arquitectónico, quer do espaço cinematográfico, de forma a enriquecer ambas as partes. Pretende-se assim que o resultado final consista num compêndio de observações e experiências, ou se quisermos, um manual de instruções para práticas futuras.
12
O NOVO CINEMA PORTUGUÊS
6 O Novo Cinema português foi, depois da chegada do sonoro a Portugal, o 7
acontecimento mais importante da história recente do nosso cinema . Numa época marcada por acontecimentos que viriam a transformar profundamente o panorama político-social – guerra colonial, emigração em massa, agitações políticas contra o regime ditatorial, medidas de urbanização dos grandes centros – surgiu uma conjuntura artística que deu novos contornos à paisagem cultural. Nas artes plásticas, na literatura, na música,
6. Embora seja comum ouvirmos a expressão Cinema Novo, esta diz respeito ao Cinema Novo brasileiro. A expressão mais correcta para o caso português será Novo Cinema, mais próxima da nova vaga francesa. 7. Fernando Matos Silva in Melo (coord.), 1996: 35
na arquitectura e no cinema, uma nova geração de artistas que conhecera de perto as vanguardas internacionais (por razões políticas ou de carreira) procurou afirmar novas tendências. O cinema nacional atravessava então uma profunda crise: depois do período dourado das comédias à portuguesa – que se traduziu num enorme sucesso de bilheteira e na construção de uma verdadeira indústria cinematográfica – a produção portuguesa entrara em forte declínio, atingindo o momento mais crítico em 1955, o chamado ano zero, em que não se produziu uma única longa metragem em Portugal. Foi neste contexto que surgiu uma nova geração de cineastas formada nos cineclubes que, sob a 8
influência das nova vagas internacionais , reclamava a criação de um novo cinema que restituísse a identidade nacional e que possuísse uma verdade contagiante que os levasse [aos espectadores] a pensar e a viver.9 É então um período de grande experimentação em que o fio condutor parece ser uma vontade de reagir contra um cinema moralista e apoiado nas ideologias do estado. Tal como afirma Fernando Matos Silva, era este interesse comum que unia os diferentes cineastas, e a cidade de Lisboa tornou-se palco
8. Através da atribuição de bolsas pelo Estado ou pela Fundação Calouste Gulbenkian, muitos destes jovens – entre eles Fernando Lopes, Paulo Rocha, António-Pedro Vasconcelos e João César Monteiro – tiveram a oportunidade de estudar no estrangeiro, nomeadamente em Paris e Londres, onde entraram em contacto com as novas tendências como a Nouvelle Vague, o Cinéma Vérité e o Free Cinema. 9. Fernando Matos Silva in Melo (coord.), 1996: 35
das suas acções e personagem central dos seus filmes: 10. Idem: Ibidem
Lisboa era (é) a nossa cidade-refúgio. Perseguidos diariamente, vivíamos a cidade em grupo; uma espécie de ‘Band à Part’ que questionava e reinventava o cinema. Éramos personagens reais num mundo de cinema e personagens de cinema num mundo irreal, controlado pelo mau gosto, pela estupidez e pela censura.10 Em 1963, estreou aquele que a crítica considerou o primeiro filme verdadeiramente novo: Os Verdes Anos de Paulo Rocha11. Produzido de forma independente por António da Cunha Telles – figura central do Novo Cinema, também ele cineasta, que viria a financiar e produzir os primeiros filmes deste movimento – este filme ia de encontro à realidade portuguesa, documentando o provincianismo da Lisboa dos anos sessenta e o sufoco de uma geração jovem em crise de identidade e de valores. Por outro lado, por razões ideológicas e financeiras, abandonava os estúdios e filmava a cidade real, um traço que se tornaria comum nos filmes desta época. No ano seguinte, estreou Belarmino de Fernando Lopes e o Novo Cinema assumiu definitivamente a sua posição. Através da história de um personagem real, o boxeur Belarmino Fragoso, confirmou-se um novo olhar sobre a sociedade portuguesa e sobre a cidade de Lisboa. Os filmes que se seguiram, continuaram esta tendência que Paulo Filipe Monteiro afirma traduzir-se numa invenção da tradição que, inevitavelmente, significa a exclusão das 13
11. Outras obras haviam dado os primeiros passos no sentido de romper com os cânones do cinema “antigo”, porém a crítica, sedenta que estava de uma obra que servisse de estandarte a um cinema verdadeiramente português remeteu-os para segundo plano, mais ou menos injustamente. É o caso de, por exemplo, Dom Roberto (Ernesto de Sousa, 1962), que apesar de retomar o bairro e o pátio tão típicos das comédias à portuguesa, transforma-o num lugar triste, sombrio, onde a esperança esmorece lentamente. Ou ainda Pássaros de Asas Cortadas (Artur Ramos, 1963), um filme que afirma o tom de descrença e desencantamento que irá ser uma constante nos filmes “novos”, através da análise de uma burguesia em decadência, também ela muitas vezes neles retratada. Há ainda quem, como Henrique Alves Costa, considere que a verdadeira ruptura aconteceu com Acto de Primavera (Manoel de Oliveira, 1962), um filme entre o documentário e a ficção, onde os movimentos de câmara ganham uma autonomia expressiva quase independente das palavras (Areal, 2011: 397)
tradições que a nova geração considera não corresponderem à essência do cinema (moderno) 12. Paulo Filipe Monteiro, “O fardo de uma nação” in Areal, 2011: 368
português.12 Apesar do esforço colectivo, as permanentes dificuldades levaram, em 1967, à necessidade de fazer uma síntese e reflectir sobre o futuro do cinema português: (...) todo o jovem cinema Português, com gente mais velha considerada jovem de ideias, se desloca à Cidade Invicta para tomar parte na Semana do Novo Cinema Português, organizada pelo Cineclube do Porto. O fracasso das Produções Cunha Telles, a ausência de possibilidades financeiras, o desinteresse do público pelo novo cinema, o evidente reforço da Censura [...], a frágil situação do cinema português no mercado, o declínio do movimento cineclubista, tudo isso faz
13. Pina ,1987: 163
parte da agenda dos trabalhos, que inclui o visionamento dos filmes do novo cinema português.13 Na sequência desta discussão, foi criado o Centro Português de Cinema, uma cooperativa de cineastas que, através da Fundação Gulbenkian, conseguiu financiamento para uma nova vaga de filmes, lançando (ou relançando, no caso de Manoel de Oliveira) autores que até então não haviam tido oportunidade de concretizar projectos próprios. Os chamados Anos Gulbenkian são assim um novo fôlego na produção nacional e deles resultaram filmes como Uma Abelha na Chuva (Fernando Lopes, 1972), O Recado (José Fonseca e Costa, 1972), Perdido Por Cem (António-Pedro Vasconcelos, 1973) ou O Mal Amado (Fernando Matos Silva, 1974). A esta iniciativa colectiva, juntouse um esforço individual de Cunha Telles que, em 1970, arriscou a realização de um filme com poucos meios, filmado na película que sobrara dos primeiros filmes que
14. Tradução do termo inglês product placement, significa a inserção subtil de mensagens publicitárias no conteúdo de filmes, programas de televisão, rádio e outros meios de comunicação.
produziu e, pela primeira vez em Portugal, servindo-se da publicidade indirecta14. Ao contrário das expectativas, O Cerco tornou-se um sucesso além fronteiras: fez parte da selecção oficial da Semana dos Realizadores do Festival de Cannes desse mesmo ano, foi escolhido por Henri Langlois, um influente director da Cinemateca Francesa, para integrar uma retrospectiva das obras mais importantes da história do cinema no MoMA de Nova Iorque, e Maria Cabral, actriz principal, foi capa da revista francesa Le Monde. O Novo Cinema parecia, finalmente, afirmar uma identidade sólida e ganhar expressão tanto ao nível nacional como internacional. Mas um acontecimento político viria a mudar o rumo da sua história: com a Revolução de Abril, o esforço colectivo e o inimigo comum que unificava este grupo despareceu. Uns seguiram carreiras independentes, outros abandonaram a prática. E o Novo Cinema tornou-se velho. Mas os amigos onde estão? Belarmino e os seus companheiros? Muitos deles já não
15. Excerto de um poema de Friedrich Hölderlin citado por Paulo Rocha. Andrade (coord.), 1996: 25
ousam subir até à fonte, pois toda a riqueza vem do mar.
15
No entanto, do ponto de vista da linguagem, os filmes do Novo Cinema introduziram algumas inovações que viriam a influenciar a produção cinematográfica nacional posterior. Paulo Rocha chega mesmo a afirmar que esteticamente continuamos prisioneiros do que de bom e de mau se produziu nos anos 60. As pessoas e os tempos mudaram, 16. bidem: 24
mas os dilemas e os conceitos não.16 Mas apesar de surgirem de um contexto político muito específico, estas inovações não constituíram, como muitas vezes é sugerido, uma resistência política, mas um movimento essencialmente artístico.
14
(...) os realizadores do novo cinema, tendo incorporado a táctica da alusão, conseguiram fazer passar uma mensagem subliminar de oposição através da recusa em falar da organização social e política; falavam sobretudo em termos existenciais, de uma opressão latente, de impossibilidades narrativas, de revezes inexprimíveis. (...) Não podendo exprimir-se contra o sistema político-social – sem ser por ele aniquilado – os cineastas encontram uma fuga para as ideias latentes através da forma. (...) É isso que distingue a nova geração: conseguir falar da repressão sem a designar, mas mostrando-a no alheamento das personagens, nas escolhas de miseen-scène e em formas de expressão que fogem às codificações classicistas do cinema para procurar outras formas e combinatórias a nível de expressão.17
17. Areal, 2011: 375
Ao nível da narrativa, há uma tendência para a subjectividade, por um lado motivada pela necessidade de contornar o poder da censura, por outro fruto de uma criatividade estimulada pela falta de meios. As histórias não seguem uma estrutura clássica de intenções claras, e revestem-se de simbolismos, mensagens subtis e significados ocultos. Formalmente, esta subjectividade traduz-se numa liberdade na montagem, pontuada por saltos, hiatos, elipses e flashbacks. Há igualmente uma subjectividade do olhar, isto é, o ponto de vista cinematográfico deixa de ser exterior aos personagens e passa a acompanhar ou a coincidir com o seu ponto de vista. Assiste-se também a um novo tratamento dos personagens, num sentido mais existencialista. Os protagonistas são alheados da sua função social, por oposição aos heróis das comédias dos anos quarenta. O indivíduo torna-se o centro da história e abandona-se a noção de colectivo – este, no limite, existe apenas para confirmar o isolamento do personagem. O seu conflito interior e os seus sentimentos reprimidos, apesar de constituírem a base da narrativa, são representados de forma minimal, numa atitude anti-melodramática que afasta os filmes da corrente neo-realista. Este processo passa por uma especial atenção à mise-en-scène, onde o espaço cinematográfico não é apenas um pano de fundo e conquista significados próprios. Como corrente cinematográfica, o Novo Cinema sofre de uma ausência de unidade. Cada filme, até quando realizado pelo mesmo cineasta, era uma nova experiência e uma nova conquista. O que unia este grupo de jovens era uma vontade de registar um tempo e um espaço específicos, através de um cinema de autor, individualista, porque se pretendia um espelho das inquietações pessoais. E foi precisamente essa individualidade que motivou a ruptura após a Revolução de 25 de Abril.
15
SINOPSE
PÚBLICO
ESPAÇO
PRIVADO
aproximação
porta
deambulação
janela
deslocamento
corredor
PSICOLÓGICO reflexos projecções símbolos
(...) o espaço [no Novo Cinema português] é um elemento estruturante da encenação – e a colocação do personagem dentro desse espaço, ou a definição do espaço em função do 18. Areal, 2011: 394
18
personagem, têm importância central e um significado não gratuito.
Nas novas vagas cinematográficas, surgidas por volta da década de sessenta, e em particular no Novo Cinema português, há um desejo generalizado de sair para a rua e tomar consciência da realidade urbana. O espaço público torna-se palco das aspirações sociais, das agitações políticas e de renovações culturais, numa época em que também a disciplina de urbanismo se volta para a pequena escala e para a complexidade das relações urbanas. Dá-se assim uma aproximação à cidade, que deixa de ser apenas um cenário e ganha vida própria, moldando e condicionando as acções dos personagens. Deixa de ser representada como um espaço genérico, tem nome, localização e um tempo específico. No Novo Cinema português a cidade é Lisboa, para a qual se voltam novos olhares e novas interpretações, baseados num descontentamento e frustração generalizados. Essa inquietação e desconforto interiores empurram os personagens para a rua, que aí deambulam na tentativa de descobrir a cidade e o lugar que nela ocupam. Os espaço urbano é assim apresentado através dos seus trajectos, numa descontinuidade e fragmentação que reproduzem a geografia real do espaço. Mas a cidade não contém as respostas que os personagens procuram, intensificando o sentimento de deriva e de desorientação. A reacção a esse deslocamento físico e psicológico traduz-se numa fuga: para fora (da cidade ou do país) ou para dentro (de si mesmo). Este desassossego que caracteriza os personagens do Novo Cinema traduz-se num movimento constante do quarto para a rua e da rua para o quarto. Desta forma, o espaço privado torna-se igualmente relevante nestas narrativas, uma vez que é também responsável por delimitar o seu território íntimo. A porta, a janela e o corredor são os elementos mais expressivos do espaço interior pela sua condição ambígua: são simultaneamente elementos de ligação e de separação, quer na relação interior/exterior, quer na interação entre os diferentes espaços interiores. São elementos mediadores cuja importância supera as suas características físicas, adoptando significados e interpretações mais subjectivas. 16
As narrativas do Novo Cinema assentam em histórias onde o importante não é uma lógica de princípio, meio e fim, mas os relatos de situações e estados de alma, consequência de um cinema de características biográficas. Questões de identidade, auto-reflexão e aspirações pessoais são as grandes motivações destas obras. Por sua vez, esta condição psicológica é mais sentida do que explicada, é mais subtil do que melodramática. É sugerida através da interacção do indivíduo com aquilo que o rodeia, do seu reflexo no espaço, das memórias e frustrações que nele projecta, da presença símbolos que intensificam determinadas imagens ou pensamentos. A dimensão psicológica é por isso indissociável de qualquer acção, de qualquer espaço, de qualquer filme.
17
I. ESPAÇO PÚBLICO
aproximação A retórica espontaneísta do «contra» deixou marcas profundas e a actual paisagem humana e social seria bem diferente sem ela: contra o Estado e os seus mecanismos de enquadramento; contra a família convencional e o recalcamento sexual; contra o racismo e a subordinação das mulheres e crianças; contra a escola disciplinadora e reprodutora das desigualdades; contra o trabalho penoso e o consumo alienante, etc... Tudo isto é irreversível, tendo sido absorvido e massificado até ao limite do relativismo ante a falência das crenças autoritárias.1
1. Manuel Villaverde Cabral “Maio de 1968, uma revolução cultural” cit. Leite, 2010: 15
Durante os anos sessenta, a energia política e cultural que se fazia sentir um pouco por todo o mundo ocidental, agitou o imaginário popular. Motivada por movimentos libertários e anticapitalistas, que encontram o seu expoente na Revolução de Maio de 1968, em Paris, esta é uma década de profundas renovações, de abertura ideológica, de vontade de intervenção e representação cívica. As ciências sociais ganham uma nova expressão e invadem particularmente o campo artístico, numa tentativa de promover a interacção entre o homem e a obra. As artes plásticas, a arquitectura e o cinema voltam-se para o quotidiano, alterando de forma profunda a percepção e a leitura da paisagem urbana. Em 1957, forma-se o Internationale Situationniste (Situacionista Internacional) um grupo de artistas e intelectuais que, baseado nos ideais Marxistas, pretendia revolucionar a vida quotidiana de forma a combater a passividade e a alienação. Dos vários membros, destaca-se o ensaísta e realizador Guy Debord2 que, em 1957, escreveu o relatório sobre a construção de situações e sobre as condições de organização e de acção da tendência situacionista internacional, onde reunia os princípios do movimento: A nossa ideia central é a construção de situações, isto é, a construção concreta de ambiências momentâneas da vida e a sua transformação numa qualidade passional superior. Temos que desenvolver uma intervenção sistemática sobre os factores complexos das duas
2. Guy Debord (1931-1994) é o autor de Sociedade do Espectáculo, um ensaio publicado em 1967, que se opunha à perversão da vida moderna, marcada pelo capitalismo e pela alienação, e cujo carácter contestatário foi uma importante motivação para os acontecimentos de Maio de 1968. Com base nestes pressupostos, Debord realizou, em 1973, um anti-filme com o mesmo título.
componentes em interacção perpétua: o ambiente material da vida e os comportamentos que esse ambiente dá origem e que o transformam radicalmente.3
3. Debord, 1957
A vontade de tornar a vida quotidiana numa constante experiência criativa, levou a que a arquitectura e o urbanismo se transformassem nos pontos de maior interesse para os situacionistas. Baseados numa ideia de arte integral, defendiam o Urbanismo Unitário que incluísse a criação de novas formas e o ‘détournement’4 de formas 5
anteriores de arquitectura, urbanismo, poesia e cinema. Contra a passividade moderna, a arquitectura e o urbanismo eram vistos como ferramentas para a revolução social, cultural e política. O pensamento urbano situacionista, mais do que uma vertente,
4. Conceito desenvolvido pelos movimentos situacionistas que consiste na reutilização ou imitação de expressões do sistema capitalista e da sua cultura media de forma a subverter o seu significado e criar um efeito satírico.
era uma forma de observação, apreensão e experiência da cidade, baseada na ideia de construção de situações. Elegiam a psicogeografia como método e a deriva como técnica.
5. Debord, 1957
A psicogeografia seria o estudo das leis exactas e efeitos específicos de ambientes geográficos, quer conscientemente organizados ou não, nas emoções e no comportamento dos indivíduos.6 21
6. Idem
Esse estudo seria realizado através da deriva, ou seja, a apropriação do espaço urbano através do caminhar sem rumo. Daí resultariam cartografias subjectivas e afectivas dos diferentes ambientes psíquicos provocados pela deambulação. A mais emblemática dessas 7. Título inspirado no film noir americano, realizado em 1948 por Albert Matz e Malvin Wadd. O título do filme, por sua vez, foi retirado de um livro de fotografias de crimes publicado em 1945.
cartografias é The Naked City7, um mapa da cidade de Paris composto por fragmentos da cartografia real da cidade mas dispostos de forma aparentemente aleatória. Cada um desses fragmentos é um ambiente psíquico e encontram-se ligados por setas que representam as possibilidades de deriva, criando uma organização afectiva entre os espaços. Desta forma, mesmo não produzindo um modelo real de cidade, o movimento situacionista fez um convite à reflexão e ao debate da disciplina de arquitectura e urbanismo, que viria a ser muitas vezes relembrado, mesmo depois da sua extinção em 1972.
fig. 2. The Naked City, mapa psicogeográfico de Paris. Guy Debord, 1957
Por outro lado, autores como Jane Jacobs (1916-2006) e Christopher Alexander (n. 1936) tentaram demonstrar os erros inerentes aos princípios modernos, desenvolvendo novos entendimentos sobre a cidade. Ambos reconheciam a ordem urbana como um fenómeno emergente e espontâneo que nasce da interacção de várias pessoas e de vários usos, a diferentes níveis e a diferentes escalas. Desta forma, introduziram a importância da percepção da cidade à escala da rua e do indivíduo, e da sua importância na definição e no enriquecimento do ambiente urbano. Em 1961, Jacobs publicava Death and Life of Great American Cities, uma obra que viria a tornar-se um clássico da crítica ao Urbanismo Moderno. Defendia que os processos de interacção social eram fundamentais para um ambiente urbano de qualidade e que os planos centrais e abstractos tinham efeitos catastróficos, muitas vezes reduzindo a riqueza existente. Jacobs criticava a supressão da rua tradicional pelos planos modernos, já que esta seria o lugar primordial para a emergência de uma vida urbana rica e complexa. Os passeios, por exemplo, vigiados pelos habitantes e pelos transeuntes, transformar-se-iam em espaços para os jogos das crianças, mais seguros e mais ricos do que os grandes parques públicos. A vitalidade das ruas seria garantida pela mistura e combinação de usos, ao contrário da separação proposta pelo Urbanismo Moderno. A cidade deveria ser entendida em toda a sua complexidade, e a tradição como forma de transmissão de conhecimento e identidade não deveria ser ignorada. Por outro lado, e de certo modo em oposição ao movimento situacionista, Jacobs criticava o entendimento da cidade como uma obra de arte. 22
Abordar a cidade, ou mesmo um bairro da cidade, como se se tratasse de um problema de arquitectura de grande escala, tentando criar ordem a partir de uma disciplina de arte, é cometer o erro de tentar substituir a arte pela vida.8
8. Jane Jacobs “The Death and Life of Great American Cities” cit. Costa, 2011: 67
Quatro anos depois, Christopher Alexander escrevia um texto intitulado “The City is Not a Tree”, onde contrapunha cidade natural, de crescimento espontâneo e baseada na continuidade histórica, à cidade artificial, planeada segundo um conjunto de regras específicas. Analisando planos como o de Brasília, Alexander tentava demonstrar como a cidade artificial, dividida hierarquicamente em unidades distintas, diminui o número de acções e de ligações possíveis entre a população e o meio. As cidades naturais, pelo contrário, possuem uma rede complexa de ligações que permite à população criar múltiplas relações de proximidade com diferentes bairros. Tal como Jabocs, Alexander acusava o planeamento de simplificar os problemas urbanos e de criar sistemas demasiado rígidos e de grande escala, que não correspondem à verdadeira complexidade da cidade.
fig. 3. A diferença entre uma estrutura em forma de árvore, baseada em divisões e subdivisões, e uma semi-trama [semi lattice] de várias inter-ligações. fig. 4. Alison e Peter Smithson com Nigel Henderson e Eduardo Paolozzi em Londres, 1956
Ainda no âmbito da crítica ao Movimento Moderno e da valorização da participação social, factores que dominavam o panorama arquitectónico dos anos sessenta, é importante referir as experiências do grupo Team X e, em particular, de Alison (1928-1993) e Peter Smithson (1923-2003). Enquanto que Jacobs e Alexander tentaram perceber a génese do problema da cidade, os membros do Team X tentaram dar-lhe novas formas. Em 1956, no décimo CIAM, a partir do qual a metodologia e a hierarquia dos arquitectos do Estilo Internacional foi contestada, surge uma retórica contra a cidade funcionalista, assente em princípios como a participação social, a escala humana,
9. Leite, 2010: 39
o pensar lógico e racional e a valorização da decisão do habitante na criação do seu ambiente.9 Por oposição ao modelo de cidade funcionalista, dividido em habitação, trabalho, transporte e lazer, propuseram-se novas categorias como casa, rua, bairro e cidade. Em alternativa à rua histórica, ainda que o objectivo fosse manter as suas actividades sociais e a consciência comunitária, os Smithson desenvolvem o conceito de edifícios de habitação colectiva como ruas no céu (‘streets in the sky’). Um conceito que, na sua génese, visava um sentimento de pertença e de vizinhança semelhante aos princípios de Jacobs, mas que na prática falhou, talvez pelas mesmas razões por que falhara o Movimento Moderno.10 Em suma, na década de sessenta há uma mudança de escala na abordagem da cidade: os grandes ensembles modernos, baseados no funcionalismo e no formalismo, são substituídos pelo desejo de voltar a imergir na cidade, valorizando a rua como a 23
10. O complexo habitacional Robin Hood Gardens (Alison e Peter Smithson, 1972) foi projectado como exemplo do conceito de ruas no céu, com galerias exteriores que ligam as diferentes parcelas de habitação. Contudo, à semelhança do que aconteceu com o complexo modernista Pruitt-Igoe (Minoru Yamasaki, 1955), desenvolveu graves problemas sociais e aguarda demolição. Apesar dos esforços de arquitectos como Zaha Hadid e Richard Rogers para o incluir na lista de edifícios preservados, as autoridades decretaram, em Março de 2012, a demolição do complexo, com o apoio de 75% dos moradores. (informação recolhida em news.bbc. co.uk)
11. Smitshon, 2005: 24
arena da expressão social11, onde o homem, na sua complexidade e subjectividade, ganha uma nova importância. Este desejo encontra paralelo no cinema, onde a revolução das novas vagas corresponde a uma aproximação progressiva à cidade. Desde o momento da sua criação que o cinema estabeleceu uma relação
12. O filme que inicia oficialmente a história do cinema, La sortie de l’usine lumière à Lyon, realizado em 1895 pelos irmãos Lumière, demonstra um interesse em registar o quotidiano urbano. Dos cerca de 1500 filmes que se sabe terem sido feitos pelos Lumière, mais de 3/4 tinham como tema a cidade. (Urbano, 2008)
13. As teorias do sociólogo Georg Simmel (1858-1918) incidiram particularmente na experiência sensorial da metrópole que, com o seu ritmo e fragmentação, provoca no indivíduo uma constante mudança de impressões, noção que se aproxima no género City Symphony. O movimento através da cidade descrito por Simmel é explorado mais aprofundadamente por Walter Benjamin (1892-1940) e a sua teoria sobre o flanêur. Nos seus textos, onde reconhece a qualidade cinemática da cidade, e a forma como descreve a experiência da flanêrie, parece aproximar-se ao efeito da montagem em cinema. Siegfried Kracauer (1989-1966) voltou-se para a emergência das massas e consequente mudança do carácter da arte. Criticou profundamente o mimetismo da indústria do entretenimento, responsável pela criação de uma cultura de superfície. Os três autores focaram-se no contexto Marxista e analisaram o cinema e a cidade como parte da reorganização do trabalho e do mercado. 14. Bruno, 2002:26 15. Urbano, 2008 16. Mennel, 2008: 23
de proximidade com o espaço público e a vida urbana.12 O interesse em registar e documentar a vida e o espírito das cidades desenvolveu-se na década de vinte, tornando-se um dos temas favoritos dos teóricos mais citados desta época, como Georg Simmel, Walter Benjamin ou Siegfried Kracauer. Todos eles reservavam especial atenção às representações cinematográficas da cidade, sobretudo para entender o que estas nos diziam sobre a modernidade.13 ‘Venham à cidade! ouvimos nos filmes dos anos vinte.14 De facto, o nascimento do cinema concretizou o sonho moderno de vencer distâncias, proporcionando a experiência da viagem aos que na realidade não podiam viajar, numa verdadeira conquista de território. Como se fossem arqueólogos urbanos, os primeiros cineastas procuravam o real, retratando a existência quotidiana do espaço urbano virando-se deliberadamente para a rua, filmada na sua diversidade, mostrando ao espectador, a imagem do seu habitat, a cidade. Esses primeiros espectadores gostavam particularmente das cenas de rua, cativados pela visão “verdadeira” da animação urbana, onde se reconheciam.15 A forma de ver e filmar a cidade assumiu diferentes contornos ao longo do tempo. Cada período parece ter um olhar particular e uma cidade dominante. Nos anos vinte, Berlim tornou-se a metrópole preferida do grande ecrã, sempre numa tentativa de compreender os perigos e prazeres da vida urbana moderna: crime, anonimato, uma perda da moralidade, desemprego, e a luta de classes, por um lado, e movimento, velocidade, entretenimento e livre erotismo por outro.16 Destacam-se assim três géneros: as City Symphonies, que consistem numa montagem poética de cenas do dia-a-dia, que privilegiava o ritmo, a velocidade e o tom quase impressionista das imagens, e onde o importante não era pintar um retrato fiel do quotidiano, mas exprimir uma determinada ideia de cidade17; os Weimar Street Films, onde há um verdadeiro fascínio pela rua18, que aparece quase sempre na obscuridade, tornando-se local de encontros ocasionais, crimes, desejo, e onde a moral é questionada; e os filmes expressionistas, como Metropolis (Fritz Lang,
17. Em Portugal, temos o exemplo de Douro, Faina Fluvial, uma sinfonia da cidade do Porto, realizada por Manoel de Oliveira, em 1931.
1927), onde os cenários artificiais são uma metáfora que põe em causa os valores da cidade moderna e a sua relação com a industrialização.
18. Em parte atribuído a evoluções tecnológicas como a industrialização da luz, que tornou a vida nas ruas visível à noite, abrindo uma nova dimensão de interacção (Mennel, 2008: 32)
fig. 5. Cartaz publicitário de Berlin: Symphony of a Great City, 1927 fig. 6. Joyless Street (G. W. Pabst)
24
Nos anos quarenta e cinquenta, foi talvez Los Angeles que dominou o imaginário cinematográfico através do Film Noir. É um género cinematográfico com uma expressão visual muito particular, com um grande contraste entre o preto e o branco, entre a luz e a sombra, que imprime uma forte carga dramática às imagens. É assim criado o ambiente certo para histórias de personagens solitários que deambulam pela cidade vazia, encontrando acidentalmente outros personagens também eles solitários e alienados. O género noir, tipicamente urbano, faz da rua o seu reino19. Na viragem para a década de sessenta, surgiram um pouco por todo o mundo
19. PAQUOT, Thierry in Jousse & Paquot (ed.), 2005: 229
novos cinemas que, tal como na arquitectura e no urbanismo, contestavam os sistemas e os princípios vigentes, provocando uma revolução no cinema e na forma de filmar a cidade. A Nouvelle Vague francesa é a mais conhecida, documentada e discutida de todas estas novas vagas. Criada por um grupo de jovens cineastas formados nos cineclubes e fortemente ligados à crítica, caracterizava-se por uma reacção ao cinema tradicional, isto é, ao cinema de estúdio, de alta produção, que se baseava em adaptações literárias e era realizado quase sempre pelos mesmos autores. Numa linha análoga à do pensamento situacionista, pretendia-se que os filmes da Nouvelle Vague provocassem uma experiência de autenticidade, conseguida através de uma marca de autor, de filmagens na rua com som directo, do uso de actores não profissionais e de uma forte componente de improvisação. A relação dos filmes da Nouvelle Vague com a cidade, mais concretamente com Paris, é evidente logo pelos títulos: Paris Nous Appartient (Jacques Rivette, 1961), Nadja à Paris (Eric Rohmer, 1964), Paris vu par… (Claude Chabrol et al., 1965). A cidade deixa de ser um cenário vazio para personagens solitárias e histórias de detectives, e passa a ser representada tal como é na realidade: aqui o real passa em frente à câmara, gratuitamente, sem outra necessidade 20 que não seja a captação da agitação da cidade. Por outro lado, os novos equipamentos,
mais portáteis e capazes de obter melhores resultados em ambientes pouco iluminados,
20. CHAUVIN, Jean-Sébastien in Idem: 194
permitiam aos realizadores filmar livremente pelas ruas, sem que fosse necessário cortálas ao trânsito ou impedir a passagem dos peões. Assim, as pessoas que vemos em plano de fundo não são meros figurantes mas pessoas reais. Pessoas que olham por vezes para a câmara com um ar surpreendido, lembrando-nos que a história que estávamos a seguir é apenas ficção, mas que a cidade que vemos é genuína e autêntica. Jean-Luc Godard terá sido o mais ousado dos autores ao filmar, pela primeira vez, os Champs-Elysées em plena luz do dia em À Bout de Souffle (1960), com uma atitude próxima do manifesto.
fig. 7. Raoul Coutard na rodagem de À bout de Souffle fig. 8. Rodagem de Baisers Volés, 1968
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A maioria dos autores da Nouvelle Vague cresceu em Paris e, por isso, a forma como nos mostram a cidade baseia-se em experiências pessoais e assume contornos 21. Entre 1959 e 1968, François Truffaut realizou três longas metragens acompanhando três fases importantes da vida do mesmo personagem, Antoine Doinel, sempre interpretado por Jean-Piere Léaud, que se diz ser, em certa medida, o alter-ego do realizador. O primeiro, Les 400 Coups, corresponde à infância, L’Amour à Vingt Ans representa a adolescência e Baisers Volés equivale à idade adulta.
auto-biográficos. Na trilogia de Truffaut21, a vida do personagem Antoine Doinel confunde-se com a do actor que lhe dá corpo, ao mesmo tempo que as situações a que está sujeito ao longo dos filmes parecem ser o reflexo das vivências do próprio Truffaut e da sua geração. A dimensão biográfica projecta subjectividade no espaço urbano criado nos filmes. Paris, no entanto, funciona também como a capital da França. A relação biográfica com Paris, portanto, também resulta de seu papel como centro educacional, político e cultural da nação. Os ‘auteurs’ imbuíam o cenário com a subjetividade, mas a relação entre os seus retratos subjetivos e a cidade sob investigação foi moldado também pelo papel de capital desempenhado para a nação
22. Mennel, 2008: 65.
naquela conjuntura histórica.22 Tal como na perspectiva dos Smithson, também nos filmes da Nouvelle Vague a rua é arena. Nas palavras de Jean-Sébastien Chauvin, é na rua que cada um (se) faz o
23. PAQUOT, Thierry in Jousse & Paquot (ed.), 2005: 270
23 seu cinema. O mesmo autor afirma que a matriz estética de grande parte dos filmes
franceses deste período é o movimento do quarto para a rua e da rua para o quarto, ou mais concretamente, do interior de si mesmo para a descoberta dos ruídos da cidade. A rua é assim uma extensão do lar, aparece como cenário para as relações afectivas substituindo
24.Mennel, 2008: 67
as estruturas familiares convencionais.24 Os protagonistas não têm uma morada fixa (À Bout de Souffle) ou rejeitam-na (Les 400 Coups), e a rua torna-se o principal palco das suas acções. Em 1965, o produtor Barbet Schroeder, numa tentativa de reavivar a Nouvelle Vague – que entretanto perdera a sua vitalidade – convidou seis realizadores a escolher seis bairros de Paris e, a partir deles, filmar uma curta-metragem onde expusessem a sua visão da cidade. Ao conjunto dos seis filmes deu o nome de Paris Vu Par. Douchet escolhe o bairro Saint-Germain-des-Prés, começando por descrever exaustivamente os lugares que o compõem enquanto a câmara percorre fluidamente as ruas. Rouch filma o quarteirão da Gare du Nord, acompanhando o personagem desde que sai do seu apartamento. Neste movimento quase não existem cortes, permitindo-nos ter a exacta noção das distâncias e do tempo que levamos a percorrê-las. Pollet, apesar de escolher a rua SaintDenis, opta por limitar a acção ao interior de um quarto. Rohmer, como Douchet, dá início à sua curta-metragem com uma descrição da Place de L’Étoile, quer do ponto de vista histórico, quer do ponto de vista dos fluxos viários e pedonais. Godard opta por Montparnasse e Levallois, dois lugares para contar a história de uma mulher com dois amantes. E finalmente Chabrol, em La Muette, contrapõe um sentimento de clausura e angústia do interior doméstico à sensação de liberdade e bem estar proporcionada pela rua. No seu conjunto, estes filmes não só são a síntese dos princípios e estilos adoptados pela Nouvelle Vague, como são o exemplo mais claro da importância da cidade para esta geração de cineastas.
26
Aproximação à cidade no Novo Cinema Em Portugal, apesar de ter sido no Porto que o cinema deu os primeiros passos quando, em 1896, Aurélio Paz dos Reis registou, tal como os Lumière, A Saída do Pessoal Operário da Fábrica Confiança, e apesar de ter sido também aí que, em 1912, surgiu a primeira tentativa séria de implantação de uma indústria portuguesa de cinema, com a Invicta Film, foi Lisboa que, desde logo, se tornou o lugar comum do cinema português. Lisboa, nas palavras de Luís de Pina, não é só a capital, mas ‘a’ cidade25. Nela se
25. Pina, [s.d.]
projectam e manifestam os desejos e as frustrações de várias gerações de cineastas e das suas respectivas épocas, transformando-a no espelho sociológico, político e cultural do país (ou, pelo menos, de uma parte dele). Mas a sua representação cinematográfica não é uniforme. E talvez, nunca totalmente verdadeira. Cada cineasta apropria-se da cidade da maneira que melhor serve as suas motivações e intenções para cada filme. A cena inicial de Casablanca (Michael Curtiz, 1942) é dedicada a Lisboa e à sua importância enquanto porto de embarque da Europa, como derradeira oportunidade de fugir para os Estados Unidos. Lisboa é o motivo pelo qual os protagonistas se encontram, e é também o motivo pelo qual se separam. No entanto, não há no filme uma única imagem da cidade. Dois anos mais tarde, a Warner Bros. recorre novamente a Lisboa no filme The Conspirators (Jean Negulesco, 1944), como palco para uma história de espionagem. No entanto, e mais uma vez, nenhuma cena foi rodada em Portugal. O que interessava ao realizador era apenas uma ideia de cidade nocturna, sombria, a que Lisboa parecia corresponder no imaginário de Hollywood, como confirmam outros filmes como Storm Over Lisbon (George Sherman, 1944) ou One Night in Lisbon (Edward H. Griffith, 1941). Será talvez com Les Amants du Tage (Henri Verneuil, 1959) que Lisboa deixa de ser invisível no cinema internacional e se lança definitivamente no imaginário cinematográfico francês. A Lisboa obscura das histórias de espiões dá lugar à Lisboa da Amália, dos engraxadores, dos eléctricos no Rossio, das bicas, da Praça do Comércio e do Terreiro do Paço. Não deixa, no entanto, de se servir dela como um belo mas mero cenário, alheio à situação real do país, que atravessava um período de ditadura. A partir de então, a Lisboa da luz que reflecte na calçada, das ruas pitorescas, da gente simples mas amável, das tascas e do Fado, tem povoado o cinema estrangeiro, contribuindo para uma imagem generalizada da cidade e, por extensão, do país. Mas este olhar estrangeiro não encontrava paralelo nas representações nacionais da mesma cidade. Na Lisboa portuguesa não se ouvia falar em bilhetes de avião para os Estados Unidos, nem de espiões, e muito menos de Guerras Mundiais. Até ao início dos anos 60, como defende Tiago Baptista no texto “Na minha cidade não acontece nada”, Lisboa quase não surgiu nos filmes portugueses e as suas escassas representações retrataram menos uma realidade arquitectónica e urbanística concreta e reconhecível do que 26 uma determinada ideia de cidade, dita ‘moderna’ mas não necessariamente ‘modernista’ . No
cinema mudo dos anos 20, a acção decorre principalmente em zonas rurais e é motivada quase sempre pela chegada de alguém vindo da cidade e a consequente dificuldade em se enquadrar naquela estrutura social. A cidade é entendida como um lugar de vícios e de crimes, de clubes nocturnos e espaços promíscuos.
27
26. Tiago Baptista in Torgal (ed.), 2011
fig. 9. Cartaz publicitário de Storm Over Lisbon (George Sherman, 1944)
fig. 10. Cartaz publicitário de The Conspirators The Conspirators (Jean Negulesco, 1944)
Seguem-se as comédias portuguesas dos anos trinta e quarenta que, apesar de já se passarem na cidade de Lisboa, procuravam o que de mais rural nela existia. A acção decorria dentro dos bairros, nos pátios, nas lojas e nos interiores domésticos, em comunidades fechadas que sobreviviam seguindo os modelos rurais que traziam consigo dos lugares de origem e que continuavam a resistir à influência nefasta da metrópole. A rua, nas raras vezes em que era representada, surgia associada à insegurança e à instabilidade e era palco dos episódios mais negros das histórias. Mas os finais eram felizes e bem dispostos, com a imagem do herói humilde e conservador a triunfar. Citando Bénard da Costa no seu texto “Lisboa dos Clippers ao Cristo Rei”, onde ironicamente compara Casablanca a Costa do Castelo (Arthur Duarte, 1943), dois filmes contemporâneos, a Lisboa das comédias é uma Lisboa bairrista, vista do exterior, com muita luz e muito pouca luz preta. É uma Lisboa de boa e santa gente que vive em pensões ou casa de renda barata, a equilibrar com expedientes o orçamento do mês. Lisboa de remediados, que só 27. João Bénard da Costa in Costa (org.), 1994: 19
27 tem como remédio para essa situação um casamento rico ou um rico casamento . Apesar do
seu sucesso comercial – que contraria grande parte da crítica – nos mostrar que, mais do que se entreter, o público revia-se, de certa forma, nessas comédias, e apesar do facto de Lisboa dos anos trinta e quarenta ser efectivamente uma cidade de bairros, a realidade aí representada é produto das intenções de um governo ditatorial, e está longe da imagem global da Lisboa dessa época. À semelhança do fenómeno da Nouvelle Vague em Paris e de outras novas
28. Expressão da autoria de Glauber Rocha que acabou por se tornar um lema para o cinema novo brasileiro. Glauber Rocha foi um dos seus fundadores e um dos cineastas brasileiros de maior reconhecimento internacional. Chegou a conviver de perto com Paulo Rocha, chegando mesmo a “emprestar-lhe” um dos seus actores para o papel principal do seu segundo filme (Mudar de Vida, 1966)
vagas internacionais, a relação do cinema português com a cidade altera-se na década de sessenta, com a chegada do Novo Cinema. Em 1962, Ernesto de Sousa lança os primeiros sinais de mudança quando, em Dom Roberto, recupera o mesmo pátio de Pátio das Cantigas (Francisco Ribeiro, 1942), pobre mas alegre, para transformá-lo num pátio mais sombrio, palco de uma narrativa triste mas ainda esperançosa. Contudo, é Paulo Rocha que rompe definitivamente com os limites dos bairros e sai para a rua com a câmara na mão e uma ideia na cabeça.28 A partir daí, os cineastas do Cinema Novo abordarão a cidade na sua teia de ruas, de relações, de cumplicidades, de contrastes de luz, mergulhando
29. António Loja Neves “Lisboa, o Cinema e o Rio que passa” in Costa (org.), 1994: 52
nesse enredo e deixando o Tejo a marulhar à distância.29 A descoberta da Cidade Moderna Ao contrário do exemplo de alguns países onde, como vimos, despoletava uma crítica ao Movimento Moderno, em Lisboa começavam a crescer os primeiros conjuntos habitacionais de linguagem moderna, numa aproximação à regras de planeamento
30. Manifesto urbanístico redigido durante o IV Congresso Internacional de Arquitectura Moderna e publicado em 1941.
urbano da Carta de Atenas30. Tal desfasamento deve-se, em certa medida, ao longo domínio de um regime fascista e ao facto de Portugal não ter participado directamente na Segunda Guerra Mundial e, por isso, não ter sido alvo de uma reconstrução maciça 28
como a maioria dos países europeus. Em Lisboa, seguindo um plano dirigido por Duarte Pacheco31, rasgavam-se as avenidas novas e construíam-se novas urbanizações que formavam uma orla periférica na cidade. Lisboa tornava-se assim o grande centro de atracção das pessoas que vinham da província, na expectativa de melhorar o seu futuro.
31. Ministro das Obras Públicas e Comunicações do Governo e Presidente da Câmara Municipal de Lisboa de 1932 a 1943
Mas se ao nível da arquitectura e do urbanismo se verificava um atraso relativamente às vanguardas internacionais, no cinema o mesmo não parecia verificarse. Assim como À Bout de Souffle se havia tornado o emblema da Nouvelle Vague por ousar filmar os Champs-Elysées de forma directa e genuína, também Os Verdes Anos se tornou o emblema do Novo Cinema ao registar, pela primeira vez, a Lisboa das Avenidas Novas. Essa novidade transformava-se num acto de ruptura com o cinema produzido até então e dava a conhecer a Lisboa desta nova geração. Contornando as dificuldades de relacionar cinematograficamente o cinema novo português e a Nouvelle Vague francesa, por exemplo, é no entanto difícil deixar de comprovar uma vontade de “sair à rua” comum a ambos os movimentos, justificável, senão ideológica ou artisticamente, pelo menos pelas novas possibilidades logísticas trazidas por novos equipamentos portáteis (imagem, som e iluminação).32
32. Tiago Baptista in Torgal (ed.), 2011
fig. 11. Rodagem de Os Verdes Anos, 1963 fig. 12. Rodagem de La Peau Douce, 1964
A acção de Os Verdes Anos decorre no cruzamento da Avenida dos Estados Unidos com a Avenida de Roma, nesse bairro de Alvalade que vai empurrando os campos 33
para trás , lugar onde se situava o apartamento de Paulo Rocha que serviu de cenário
33. António-Pedro Vasconcelos, [1973] in Melo (coord.), 1996: 148
ao filme: um edifício moderno construído pelos arquitectos Filipe Figueiredo e José Segurado durante a década de cinquenta. Era também nesse cruzamento que se situava o café Vává, um lugar de reunião e discussão de muitos dos artistas e intelectuais daquela época. Num exercício próximo ao de Paris Vu Par, Paulo Rocha escolhe assim o seu quarteirão e introduz no cinema português uma nova visão da cidade e dos lisboetas. A câmara triste e melancólica serve-se dos espaços públicos e das relações sociais urbanas neles concretizadas para denunciar Lisboa como um espaço claustrofóbico, sem saídas, onde tudo se frustra e tudo agoniza (numa morte branda).34
34. Bénard da Costa, João cit. Tiago in Torgal (ed.), 2011
fig. 13 | 14. Os Verdes Anos, 1963 29
A sequência inicial do filme é exemplar da nova paisagem, das novas técnicas e da importância dada à cidade, que chega a assumir contornos de personagem. Ao volante de um motociclo, o tio de Júlio atravessa as avenidas acompanhado pela câmara num longo travelling. Em off, faz a descrição da cidade do ponto de vista de alguém que veio da província mas que depressa se adaptou às exigências urbanas: A primeira vez que vi a cidade de Lisboa pensei para comigo: esta terra é como uma “madama” que tem de ser engatada com muito jeito. Nada de pressas, nada de deitar a mão antes do tempo. É preciso andar devagarinho com olho vivo e não cheirar dos pés. É preciso sobretudo um homem lembrar-se que nasceu numa aldeia de pategos e aprender a aguentar-se. A minha vizinhança veio quase toda corrida da cidade. Vieram com uma pressa tamanha que bateram com 35. Monólogo da sequência inicial de Os Verdes Anos.
o nariz no primeiro muro e ficaram espalhados por aí.35 Tal como afirma José Vaz Pereira, Paulo Rocha conseguiu uma Lisboa diferente, mas real: o Areeiro e Alvalade mostram uma retaguarda carrancuda, com escadas de serviço, «hoje não
36. José Vaz Pereira in Programa da Semana do Novo Cinema Português
pode ser», marquises tristes, roupa a secar, melancolia quotidiana e namoros frustes.36 A (re)descoberta da Cidade Antiga Ao contrário de Paulo Rocha, Fernando Lopes optou por mostrar um novo olhar sobre a velha cidade que, apesar de ser o centro, raramente era retratada no cinema português. Belarmino é a Lisboa popular, da Mouraria, dos Restauradores, da Baixa e do Rossio. É a Lisboa dos cafés que se tornam espaços domésticos, dos cinemas que se transformam em salas de estar e dos clubes nocturnos onde uma geração oprimida encontrava momentos de liberdade. Tal como refere Luís de Pina, mais do que documento de um pugilista em declínio, Belarmino será uma nova crónica de Lisboa, desencantada e
37. Pina, [s.d.]
amarga37. Fernando Lopes escolhe um personagem do bas-fond Lisboeta e acompanha-o na sua interacção com o quotidiano urbano: a verdade se encarregaria de lhe fornecer o
38. António-Pedro Vasconcelos [1964] in Costa (org.), 1994: 109
melhor dos seus temas.38
fig. 15 | 16 | 17. Belarmino, 1964
São lugares comuns, bem conhecidos dos Lisboetas, mas que pela primeira vez são transpostos para o grande ecrã sem a poesia das ficções. O espectador é confrontado com o seu quotidiano, com a sua realidade, e reconhece-a. É neste gesto que reside a novidade e a subversão de Fernando Lopes. 39. Eduardo Geada, “O Inconsciente da Cidade” in Costa (org.), 1994: 78
No cinema, a cidade não existe apenas enquanto reprodução mais ou menos realista daquilo que julgamos conhecer, existe sobretudo em função da energia que o filme desencadeia na descoberta e na compreensão de uma nova realidade, surpreendente e comovente, agora evidente, 39
de um espaço habitado que julgáramos familiar. 30
Durante a noite, a cidade antiga transforma-se em espaço de liberdade, onde protegidos pelas sombras e entre ruas estreitas, os personagens parecem revelar a sua verdadeira personalidade. Uma cidade alternativa que tinha como principais pontos de encontro bares como o Hot Club ou o Ritz Club. Já em Os Verdes Anos encontramos esta analogia, na cena em que Júlio acompanha o tio ao Texas Bar (onde, vinte anos mais tarde, Wim Wenders irá filmar The State of Things). Aborrecido com o episódio no salão de dança, em que Ilda aceita dançar com outro homem, Júlio bebe descontroladamente e torna-se violento com o tio, que o reprime e o esbofeteia. Por um lado, assistimos pela primeira vez a uma agressividade em Júlio que desconhecíamos e que, de certo modo, nos ajuda a perceber a sua atitude no final do filme. Por outro, observamos em Afonso uma autoridade e intransigência que até então não nos tinham sido reveladas. De seguida, Júlio sai pelas ruas do centro histórico na companhia de um estrangeiro que o leva a uma casa de prostituição. Embora esteja já presente, neste filme, uma ideia de liberdade associada à noite e à cidade antiga, a sequência não deixa de sugerir um certo tom de reprovação moral, que em Belarmino é definitivamente abandonado. A afirmação de um novo olhar Numa altura em que os cineastas parecem dispersar para ambientes mais rurais (por exemplo, Paulo Rocha vai para o Furadouro realizar o filme Mudar de Vida e Alfredo Tropa escolhe Trás-os-Montes para o seu Pedro Só), o olhar urbano anunciado em Os Verdes Anos, é retomado e definitivamente assumido em 1970, com a estreia de O Cerco. Em plena Primavera Marcelista, o filme de Cunha Telles é o reflexo de uma cidade que se queria mais moderna e de uma sociedade que parecia apontar profundas alterações. O conflito cidade/campo tão presente em Os Verdes Anos, perde o peso que tinha até então e o retrato da nova geração de Alvalade faz-se através da sua relação com Lisboa. A construção narrativa é menos elaborada, como se o importante fosse ir filmando a cidade e os seus episódios, tal como eles se vão sucedendo. No Cerco, os personagens já não são recém chegados das zonas rurais, mas indivíduos embrenhados no meio urbano e que, ora tiram partido deste, ora sofrem as consequências. A Lisboa do Telles é já a Lisboa dos negócios; do imobiliário; dos pequenos truques das ‘boites’; das discotecas; transmitida através de três personagens básicos, dos quais o mais emocionante de todos é, evidentemente, a Maria Cabral. Ela é, de resto, uma espécie de Belarmino no feminino.40
40. Fernando Lopes. “Duas ou Três Coisas que Eu Sei d’Ela (Lisboa)” in Costa (org.), 1994: 54
fig. 18 | 19 | 20. O Cerco, 1970
Novos espaços surgem na cinematografia portuguesa, símbolo de uma cidade mais livre e mais consumista: o jardim público onde Marta é fotografada e onde acaba por se envolver com o fotógrafo, numa cena verdadeiramente chocante para a época; 31
as lojas a que Marta regressa com frequência, revelando a importância crescente das aparências numa sociedade em mutação; ou os clubes nocturnos de reputação duvidosa, onde reinava o tráfico de favores e a prostituição. Cunha Telles regista assim uma Lisboa que pretendia igualar-se a outras capitais europeias, e o resultado é a presença de O Cerco na Quinzena dos Realizadores do Festival de Cinema de Cannes desse mesmo ano. Os filmes que se seguiram, prolongam este olhar sobre o quotidiano urbano. Perdido Por Cem, estreado em 1972, passa-se quase sempre durante a noite e em interiores, mas nem por isso deixa de ser sobre a cidade. Porque a Lisboa do final dos anos 60, para aquela geração, vivia à noite e atrás de portas. Era a Lisboa a que Luís de Pina se refere como a cidade da transição do Salazarismo para algo que se pressente mais livre mas ainda 41. Pina [s.d]
não se adivinha41. Era a cidade dos salões de bilhares, dos quartos alugados, dos jogos de poker clandestinos, dos bares nocturnos, das paixões passageiras, da prostituição. É a Lisboa dos momentos de solidão, em que a cidade abre as mandíbulas e mostra a dentuça
42. José Vaz Pereira in Programa da Semana do Novo Cinema Português
como se fosse preciso devorar este ou aquela para provar a sua dureza de metrópole.42
fig. 21 | 22 | 23. Perdido por Cem, 1973
Se noutros filmes a aproximação à cidade é habitualmente feita através da estação ferroviária – Júlio de Os Verdes Anos chega a Lisboa de comboio e em O Mal Amado a estação do Rossio ocupa o primeiro plano – em Perdido por Cem, Artur entra em Lisboa ao volante do descapotável de Artur, um empresário que lhe dera boleia. Numa clara referência ao cinema americano, o filme começa com uma espécie de road trip pontuada por alguns episódios e momentos hilariantes. Entre conversas de circunstância e muitos pás, Rui vai dando conta de alguns pormenores importantes para nos situarmos no contexto daquela época: a necessidade de emigrar, as difíceis condições que os portugueses encontravam em Paris, e a forma como alguns empresários, incluindo ele mesmo, se aproveitavam da sua desgraça para fazer negócios lucrativos. Chama também a atenção para o crescente interesse por Portugal como destino turístico para os estrangeiros, quando tenta seduzir uma bimba à saída do mosteiro da Batalha, que Rui diz ser uma linda obra do românico. Em O Mal Amado, a imagem global da cidade é substituída pela imagem de um bairro: Campo de Ourique é uma das personagens principais do filme. Mais do que pano de fundo da acção, este bairro ganha destaque e identidade própria. A escolha não é aleatória: também Matos Silva escolhe filmar o bairro onde vivia e descreve-o como 42. Fernando Matos Silva na Sinopse do Guião Técnico do Filme, 1973
sendo uma espécie de território fechado, uma encruzilhada de ruas, um jogo de cafés e um jogo de 43
personagens típicas.
32
fig. 24 | 25 | 26. O Mal Amado, 1974
A cidade é apresentada de uma forma progressiva (ainda durante o genérico) como se o espectador se tratasse de um viajante que chega pela primeira vez à cidade e é conduzido através dela. Assim, o filme é iniciado com um plano da estação, porta da cidade por excelência, seguido de várias panorâmicas filmadas a partir dos miradouros, apresentando-nos uma visão geral do espaço de acção, para depois nos encaminhar, pouco a pouco, até ao particular: o quarto do João. No caminho, mostra-nos imagens de lugares característicos do bairro, como as lojas ou os cafés, mas que são ao mesmo tempo lugares semelhantes a outros bairros e a outras cidades de Portugal daquela época, permitindo ao espectador identificar-se e reconhecer-se de imediato nesta história. Ficção ou documentário, cada filme é assim um testemunho da cidade em determinados momentos da sua história. Os filmes do Novo Cinema, em particular, procuraram uma abordagem da cidade de Lisboa numa progressiva aproximação: Os Verdes Anos entrou no espaço urbano a partir da periferia, mas apesar de desvendar uma nova cidade, está ainda ancorado a uma certa ideia de campo; Belarmino imergiu no centro, reencontrando a velha cidade com novos costumes; e O Cerco apoderou-se do “ser lisboeta”, assumindo um novo rumo para a representação cinematográfica da cidade.
33
deambulação 1. Marcel Réjà, 1907. “L’Art chez les fous” in Benjamin, [1939]: 434
E viajo para conhecer a minha geografia.1 O acto de caminhar pela cidade foi desde cedo explorado como método para o conhecimento, reconhecimento e crítica do espaço urbano, realçando a importância da experiência participativa na construção da cidade. A arquitecta Paola Berenstein Jacques, num texto intitulado “Elogio aos Errantes. Breve Histórico da Errâncias Urbanas”, distingue três momentos na história do urbanismo moderno: a modernização das cidades, que corresponde ao período compreendido entre meados e final do século XIX e início do século XX; as vanguardas modernas e o movimento moderno propriamente dito, dos anos 1910-1920 até ao último CIAM, em 1959; e modernismo ou moderno tardio, do pós-guerra até aos anos setenta. A cada um desses momentos faz corresponder uma forma específica de errância urbana, definindo o errante moderno como aquele que não perambula mais pelos campos como os nómadas mas pela própria cidade grande, a metrópole moderna, e recusa o controlo total dos planos urbanísticos modernos.2 Desta forma, ao primeiro
2. Jacques, 2004
momento corresponderia o período da flânerie de Baudelaire e Walter Benjamin, ao segundo momento equivaleriam as deambulações dos dadaístas e surrealistas que criticavam algumas ideias discutidas nos CIAM, e o terceiro momento seria a fase da deriva que, como foi referido no capítulo anterior, era protagonizada pelo movimento situacionista. O flanêur é uma figura literária do século XIX, central na poesia de Baudelaire, numa época em que a cidade de Paris sofria profundas alterações, em que as ruas estreitas e sinuosas eram substituídas pelas novas boulevards do barão Haussmann. Caracterizado como burguês ocioso movido pelo tédio e pela melancolia, o flanêur é um observador atento da paisagem urbana. A rua é a sua casa e percorre-a à procura de informações sensoriais, decifrando sinais e imagens, apreendendo a riqueza e a variedade de um quotidiano em transição, a cada dia mais moderno. O flâneur não tem motivação aparente, não carrega o peso da erudição nem da memória do passado, não tem direcção nem objectivo.3 Em
3. Urbano, 2007
permanente estado de solidão, procura refúgio nas massas. A sua paixão e a sua profissão é desposar a multidão. Para o perfeito flâneur, para o observador apaixonado, escolher declínio no número, no ondulante, no movimento, no fugidio e no infinito, é um imenso prazer. Estar fora da sua casa mas sentir-se em casa em toda a parte; ver o mundo, estar no centro do mundo e permanecer escondido do mundo (...) 4
4. Baudelaire, [1863]: 287
Walter Benjamin retoma a prática da flânerie na sua reflexão sobre a cidade moderna. Para Benjamin, o próprio Baudelaire é um verdadeiro flâneur que através da sua obra realizou uma transfiguração poética da cidade de Paris. Dá especial importância aos momentos inesperados que transformam a cidade num labirinto de surpresas. Para que tal aconteça, Benjamin fala-nos da necessidade de possuir um certo distanciamento, característica que distingue o flâneur de um caminhante comum. 35
Dialéctica da flânerie: por um lado, o homem que se sente observado por todos, como um verdadeiro suspeito, e por outro, o homem que não conseguimos encontrar, aquele que está 5. Idem: 438
dissimulado.5 Benjamin retoma assim o tema da multidão, que entende encontrar-se alienada pelo capitalismo burguês, consequência nefasta da cidade moderna.
fig. 27. Gustave Caillebotte, 1877 fig. 28. Flânerie
Por outro lado, o movimento surrealista procura experimentar e exprimir a vida real através da exploração do inconsciente, reanimando as intenções de Baudelaire. Os membros do grupo, como Louis Aragon, André Breton, Francis Picabia e Tristan Tzara, organizavam deambulações aleatórias pela cidade, experiências que deram origem aos seus manifestos. Valorizando a experiência sensível do indivíduo, apropriavam-se das imagens sugeridas pelo quotidiano, criando obras que são também um valioso testemunho do processo de urbanização e das contradições da modernidade. Em Le Paysan de Paris (1926), Louis Aragon recupera o conceito de flâneur, mas coloca um camponês no papel de narrador. Este desloca-se como um estrangeiro que ora se surpreende com a dimensão do espaço urbano, ora destaca os pormenores, procurando o invisível da cidade através da imaginação. No seu percurso por Paris, pontuado por encontros ocasionais, descreve os lugares por onde caminha, questionando as incoerências da cidade moderna. Repara, por exemplo, que lugares como a passagem da Ópera e o parque Buttes-Chaumont, apesar de serem locais públicos, não são completamente abertos, já que a cobertura da passagem a protege do exterior e o parque obedece a um horário de acesso. O olhar lógico, racional e distante do burguês é assim substituído pela de visão provinciana do camponês que, apesar de aparentemente ingénua, está livre de preconceitos e cânones urbanos, despertando a atenção para novas questões. Nos anos cinquenta, em clima de pós-guerra, a exploração deambulatória da cidade é, como vimos, reanimada pelos situacionistas. A deriva é um incentivo à participação, à apropriação prática do espaço urbano como forma de combate à monotonia e à alienação dos grandes centros urbanos. Os situacionistas acreditavam que a alienação era consequência da aniquilação das várias formas de nomadismo pela espectacularização da cidade. As grandes cidades são favoráveis à distração a que chamamos deriva. A deriva é uma técnica de andar sem rumo. Ela baseia-se na influência que o ‘décor’ exerce. Todas as casas são belas. A arquitetura deve tornar-se emocionante. Não podemos considerar tipos de construção 6. Debord & Fillon, [1954]
menores. 36
6
Este andar sem rumo aproxima a deriva da flânerie. Mas enquanto o flâneur não tem outro objectivo senão tirar prazer da sua deambulação, a deriva é uma técnica para um fim específico, o da criação de mapas psicogeográficos. Debord enumera assim um conjunto de regras que vão desde o número máximo de participantes ao horário e condições atmosféricas mais favoráveis. Ao contrário dos surrealistas, o terreno era entendido como passional e não apenas subjectivo, em que o indivíduo devia deixar levar-se por sensações suscitadas pelo ambiente urbano. As diferentes propostas de percurso pela cidade parecem ter objectivos semelhantes, mas diferentes formas de actuar: o flâneur observa as mudanças do quotidiano com entusiasmo, os surrealistas procuram o inconsciente e o onírico da cidade e os situacionistas propõem uma participação activa contra a alienação. No entanto, todas elas se debruçaram sobre a forma como nos relacionamos com o meio envolvente e tornaram-se num testemunho das transformações da cidade na era moderna. Giuliana Bruno, no livro Atlas of Emotion: Journeys in Art, Architecture, and Film – também ele, como o subtítulo indica, constituído por jornadas – explora a relação entre deambulação, cidade e cinema. Partindo de exemplos como o famoso texto de Eisenstein, “Montage and Architecture”7, Bruno chega mesmo a afirmar que a figura da ‘promenade’ é a principal ligação entre o conjunto arquitectónico e o cinema8, já que ambos implicam uma sucessão de imagens (ou frames) através da qual somos conduzidos.
7. Texto escrito por Sergei Eisenstein em 1938, em que afirma que a arquitectura é a arte mais parecida com o cinema. Ficou conhecida a descrição que faz da Acrópole de Atenas, o exemplo perfeito de um dos mais antigos filmes, já que a forma como se organiza o seu percurso aproxima-se à técnica da montagem em cinema.
Por outro lado, o filme oferece-nos uma experiência espacial próxima à deambulação, transformando o espectador num viajante. Tal como afirma Bruno, desde o momento
8. Bruno, 2002: 56
em que a deambulação foi incorporada no cinema, assistir a um filme tornou-se uma forma imaginária de flânerie.9
9. Idem: 17
Fig. 29. Mapa imaginário que integra a primeira parte do romance Clélie, Histoire Romaine, da précieuse Madeleine de Scudéry, editado em 10 volumes entre 1654 e 1660. O mapa é uma representação topográfica e alegórica das diferentes etapas da vida amorosa.
Ao criar um Atlas da Emoção, que Bruno diz ser inspirado na Carte du Pays de Tendre, a autora parece aproximar-se das teorias situacionistas, entendendo a cartografia como algo que confere subjectividade e emoção ao espaço. Ao mesmo tempo, é a emoção que nos leva a percorrer quer o espaço cinematográfico, quer o espaço urbano, transformando essa experiência num fenómeno háptico, mais do que meramente visual.
37
Cinema para G. Bruno é háptico porque cria um espaço que é habitável, habitabilidade essa que implica um ambiente no qual o espectador entra em contacto com a cidade, não apenas visualizando uma representação, mas experimentando a sensação de ver o espaço urbano em 10. Melo e Castro, 2000
primeira mão.10 Os retratos urbanos que nos chegam através do cinema estão, portanto, ancorados à figura daquele que percorre a cidade. Da deambulação dos personagens ou da própria câmara, emergem narrativas que, tal como na literatura, nos fornecem importantes dados para a interpretação de uma determinada cidade, num determinado momento da sua história. Por outro lado, o movimento contínuo intrínseco à deambulação, permite-nos apreender a verdadeira geografia do espaço urbano. Porque se a ‘promenade’, ou a deriva no sentido ‘debordiano’ do termo, pode permitir aos que a praticam apropriar-se da cidade, dar-lhe um sentido, de a apreender de uma forma que pode chegar até ao sonho, com a mistura de temporalidades, de real e de imaginário próprio deste tipo de
11. Thiery Jousse in Jousse, & Paquot, 2005: 9
expedições, o cinema dá simultaneamente acesso ao tempo e ao espaço sob uma forma condensada 11
que permite frequentemente à cidade implantar-se em aspectos literalmente nunca vistos.
Fig. 30 | 31. Á Bout de Souffle, 1960
A Nouvelle Vague francesa é mais uma vez exemplo da deambulação e encontros ocasionais que esta proporciona, como forma de desenvolvimento da narrativa. O filme À Bout de Souffle (Jean-Luc Godard, 1960), como filme-manifesto desta vaga, é representativo desse processo. Através de um movimento de câmara fluido, que por vezes parece ganhar vida própria, acompanhamos a deriva de Michel Poiccard pelas ruas de Paris, perseguido pelo assassinato de um polícia. O seu único objectivo é sair da cidade, mas sucessivos acontecimentos parecem impedi-lo, como se Paris possuísse uma força centrífuga. Desta forma, a sua morte torna-se inevitável, como única forma de parar este movimento aparentemente perpétuo.
38
Deambulação no Novo Cinema As histórias do Novo Cinema centram-se nas acções de um único personagem, que a câmara acompanha nas suas diferentes deslocações. Ao contrário da noção baudelairiana de flâneur, os protagonistas não são burgueses entediados mas personagens desajustadas em permanente conflito interior, à descoberta de si, do outro e da cidade enquanto mundo de referências e experiências novas.12 Vivendo na casa dos familiares, amigos
12. Areal, 2011: 394
ou amantes, não têm uma morada que considerem sua e a cidade transforma-se no seu habitat. O flanêur agora carrega uma câmara Belarmino será o filme que melhor explora a descrição e caracterização da cidade através das deambulações de um personagem, em parte devido à sua vertente documental aliada a uma sensibilidade poética característica das obras de Fernando Lopes. Vertente documental em vez de documentário, porque apesar da entrevista realizada a Belarmino e do tom observacional da câmara que pressupõe uma intervenção mínima por parte do realizador, as deslocações do personagem são contudo encenadas, de forma a clarificar a interpretação que se pretende da cidade. Paul Melo e Castro, num artigo intitulado “Circling the City in Fernando Lopes’ Belarmino”, compara a noção de flânerie presente em Belarmino com o trabalho do documentarista britânico Patrick Keiller: o flâneur agora carrega uma câmara.13
13. Patrick Keiller in Melo e Castro, 2009
Fig. 32 | 33 | 34. Belarmino, 1964
Através da observação da interacção do protagonista com o quotidiano urbano, o espectador é convidado a acompanhar o seu percurso, numa verdadeira experiência háptica como aquela que nos descreve Giuliana Bruno. Experienciamos diferentes ritmos, tons, formas e relações espaciais, e identificamo-nos emocionalmente com o personagem. Imaginamo-nos a residir num lugar, num lugar doutra pessoa, e mapeamo nos tangivelmente dentro dele.14 Como um mapa psicogeográfico ou um atlas da emoção, a cidade é apresentada em fragmentos que se ligam através das práticas dos seus habitantes, e neste caso, da trajectória específica de um homem. A Lisboa vista por Belarmino é também o olhar de Fernando Lopes sobre a cidade, por sua vez representativo do ambiente urbano que se fazia sentir nos anos sessenta. Essa incidência na realidade urbana é sugerida imediatamente no genérico, constituído por uma sucessão de imagens fixas de Belarmino nas ruas de Lisboa, em extrema profundidade de campo. Tal técnica, aliada ao posicionamento de Belarmino por entre a multidão, remete-nos uma vez mais para a noção do flâneur que se mistura nas massas. Porém, não é um acto consciente e deliberado, mas antes um isolamento 39
14. Bruno, 2002: 36
imposto pelas condições sociais e políticas da época (ou pelo menos, assim o quis transmitir Fernando Lopes que, por várias vezes, recorre ao confronto do personagem solitário com algo maior, quer seja a multidão, quer seja o estádio vazio onde treina). A experiência de deambular pela cidade torna-se ainda mais próxima do espectador quando a câmara alterna entre o nosso ponto de vista, mais alto e panorâmico, e o ponto de vista de Belarmino, mais baixo, conseguido através de planos subjectivos que simulam aquilo que ele vê. A sequência em que Belarmino sai de casa e anda sem rumo pela baixa de Lisboa é exemplar dessa técnica. Começamos por ver o personagem à varanda, num plano geral do prédio - mais uma vez, um ponto isolado numa fachada de grandes dimensões. De seguida, é introduzido um plano da paisagem de Lisboa encimada pelo Castelo de S. Jorge, simulando a vista que Belarmino está a ter naquele momento. Finalmente, é retomado o plano inicial e acompanhámo-lo na sua descida até à rua, onde ora observamos o seu percurso de longe, ora somos colocados na sua posição. Esta última sensação é conferida através de planos contra-picados de edifícios monumentais ou planos médios de pormenores que captam a atenção de Belarmino, como o vendedor de bilhetes do cinema ou os cartazes em exposição. Para este tipo de planos são habitualmente usadas as técnicas de travelling ou panorâmica, que pelo movimento que lhes está implícito, simulam a própria experiência do espaço.
Fig. 35 | 36 | 37. Belarmino, 1964
A faixa sonora é também importante para a construção de um ambiente propício a uma experiência háptica. Melo e Castro explica essa importância usando as 15. Compositor francês de música experimental, conhecido pela investigação nesta área a partir dos anos setenta e pelas publicações sobre a interacção entre o som e a imagem no cinema, especialmente o livro L’audio-vision. Son et image au cinéma, publicado em 1990.
palavras de Michel Chion:15 Este filme faz um uso extensivo dos sons reais da cidade, tentando processar a substância sonora da vida de Lisboa, admitindo aquilo que Chion determina como ‘the drone of the world’ (o zumbido do mundo). Para Chion, o filme representa este ambiente sonoro através do uso daquilo a que ele chama ‘elementos de configurações auditivas’. Estes são ‘sons com uma fonte mais ou menos pontual, que aparecem mais ou menos intermitentes e que ajudam a criar e a definir o
16. Melo e Castro, 2009
espaço de um filme por meios específicos, por pequenos toques distintos’.
16
Assim, as variações de intensidade e de tipo de som, expõem as características de cada espaço, de cada rua, permiti-nos distingui-los e captar a essência do lugar. Ao mesmo tempo, intensificam a noção de percurso, como se também o espectador estivesse a caminhar pela cidade.
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Deambulações de um provinciano Tomando como referência a obra já citada de Aragon, poderíamos apelidar o filme Os Verdes Anos de O Provinciano de Lisboa, ou utilizando a expressão usada pelo personagem do tio, O Patego de Lisboa. De facto, tal como nesta referência literária, a cidade nova é dada a conhecer através do olhar de alguém proveniente desse espaço genérico que é o campo. Mas ao contrário do personagem de Aragon, Júlio não descobre a cidade com entusiasmo, nem parece interessado em perceber as suas contradições. Se de início ainda é possível identificar um olhar curioso e assustado, principalmente na sequência que o acompanha desde a sua chegada à estação até ao momento em que entra no prédio de Ilda, esse mesmo olhar vai sendo substituído por desprezo e alienação. Ilda é a sua única motivação e, por isso, Júlio não é o verdadeiro flâneur solitário que percorre a cidade sem objectivo. No entanto, é através dos seus passeios, sempre acompanhados de outras personagens, que Paulo Rocha nos dá a conhecer a melancólica Lisboa do início das anos sessenta. Tal como afirma Leonor Areal, a revolução no olhar está precisamente na forma de dar presença ao espaço da cidade através dos trajectos dos personagens e da descoberta de contrastes que existem em continuidade.17
17. Areal, 2011: 393
Fig. 38 | 39 | 40. Os Verdes Anos, 1963
No percurso da estação à oficina do sapateiro e, de seguida, até ao hall de entrada do edifício onde Ilda trabalha, Júlio tem os seus primeiros contactos com a cidade: viaja, pela primeira vez, no metropolitano, caminha lentamente pelas avenidas novas, e parece especialmente interessado nas montras das lojas. Este último detalhe parece ser uma referência à sociedade de consumo, tantas vezes criticada na abordagem à cidade moderna. Por outro lado, tal como afirma Lina Bo Bardi, as vitrinas são o espelho imediato, a denúncia rápida da personalidade de uma cidade, e não somente da personalidade, como do carácter mais profundo.18
18. Lina Bo Bardi in Grinover & Rubino, 2009
Fig. 41 | 42 | 43. Os Verdes Anos, 1963
Ao longo da narrativa, que se constrói como uma espécie de deambulação onde o espectador não reconhece uma estrutura habitual19, Júlio percorre diferentes espaços da cidade. Na companhia de Ilda procura os lugares mais bucólicos, como as azinhagas, ou os lugares mais desertos, como a cidade universitária. A excepção será a ida ao salão de baile, no cidade antiga, onde Ilda insiste para que Júlio aprenda a dançar rock and roll 41
19. Areal, 2011: 293
e se torne um homem mais moderno, episódio que iniciará a ruptura da sua relação. Também Afonso leva o sobrinho a percorrer a cidade antiga, procurando lugares mais pitorescos, numa tentativa de mostrar o que de melhor a cidade tem para oferecer: história, tradição e paisagem natural (rio). Ainda com um estrangeiro desconhecido, que o defende numa briga com o seu tio, Júlio perde-se em deambulações nocturnas, e a cidade antiga transforma-se em lugar de vício e, como vimos anteriormente, de liberdade.
Os errantes urbanos Nos restantes filmes em análise, os protagonistas são figuras citadinas e movemse no espaço urbano com mais destreza do que Júlio. São jovens em fases críticas da sua vida, que coincidem com o início da idade adulta e com momentos de decisão em relação ao seu futuro. É esta inquietação interior que os empurra para as ruas numa permanentemente busca de si mesmo e do seu espaço. Na maioria destes filmes, não há uma flânerie explícita como a que vimos em Belarmino, em que as cenas de rua são recorrentes e privilegiadas. A deambulação é experimentada pela constante mudança de espaço.
Fig. 44 | 45 | 46. O Cerco, 1970
Marta, protagonista de O Cerco, está a reaprender a viver sozinha: muda-se para uma nova casa, procura um novo emprego, cria novas rotinas e novos círculos de amigos. Os lugares que habita são símbolos da cultura urbana do início dos anos setenta: os cafés, os bares, as boutiques, a agência de publicidade. Numa das cenas em que, excepcionalmente, a acompanhamos no percurso pela rua entre dois desses espaços, a câmara capta o ambiente frenético que se vivia na capital. Através de um tracking shot que segue toda a sua trajectória, somos levados por entre as ruas plenas de peões e automóveis. Tal como em Belarmino, a câmara coloca-nos, em determinado momento, no ponto de vista de Marta, que olha curiosa para um edifício neo-clássico. Quando pergunta a Vitor que lugar é aquele, este responde-lhe ‘Isso? Nem lhe conto!”, numa clara crítica aos organismos do governo. O Cerco, como forma estrutural narrativa, é uma deambulação, também ela centrada na protagonista sobre quem recaem as presunções e as insinuações masculinas, numa deriva (também antonioniana) em que os fragmentos de quotidiano, os encontros, os personagens típicos da época vão adensando uma sensação de claustrofobia (...)
42
Fig. 47 | 48 | 49. O Recado, 1972
Em O Recado, Lúcia vive um momento em que terá de optar entre duas formas de vida, duas ideologias e duas posições políticas distintas, com as consequências que tal possa representar. Alternando constantemente entre a cidade onde vive e outros lugares na periferia, as deslocações de Lúcia não imprimem um sentimento tão urbano. Por outro lado, e ao contrário dos restantes filmes, em que nunca deixamos de acompanhar os movimentos dos protagonistas, as acções de Lúcia são muitas vezes intercaladas com as acções de Francisco, interrompendo a viagem do espectador. No entanto, não deixa de constituir um interessante exercício de deambulação cinematográfica, já que as movimentações desassossegadas de Lúcia nos envolvem numa verdadeira experiência emocional.
Fig. 50 | 51 | 52. O Perdido por Cem, 1973
Artur, protagonista de Perdido por Cem, é um personagem à deriva, ao sabor dos 20 acasos, em constante nomadismo. Desloca-se pela cidade na pressa de atingir o seu único
20. Coelho, 1983: 41
objectivo: emigrar. Sem morada própria, alterna entre a casa de amigos e conhecidos, bares e agências de viagens e de publicidade, numa abordagem urbana semelhante à de O Cerco. Das suas incursões urbanas, uma cena se destaca pela vertente quase documental: sentado numa esplanada, Artur observa os transeuntes enquanto lê um texto de Musil.21 Mais uma vez, o plano simula o seu ponto de vista, colocando-nos no papel do personagem. As pessoas, ora surpreendidas pela câmara, ora alheadas do que as rodeia, carregam uma expressão grave e resignada, retratando uma época marcada pela transição do Salazarismo para algo que se pressentia mais livre mas ainda não se adivinhava.22
21. Robert Musil (Áustria, 18801942) é o autor de O Homem Sem Qualidades, uma obra que apesar de nunca ter sido terminada, é considerada um dos mais importantes romances modernistas, pelo olhar crítico sobre a sociedade da sua época. 22. Pina, [s.d.]
Fig. 53 | 54 | 55. O Mal Amado, 1974
O Mal Amado parece ser uma síntese dos diferentes tipos de deriva que atravessam os restantes filmes. João é também um jovem no início da vida adulta: enquanto espera pelo serviço militar, começa o seu primeiro emprego. Tal como em 43
Belarmino, acompanhamos detalhadamente o seu percurso desde que sai de casa até que imerge nas ruas do seu bairro. Mas ao contrário do que seria um verdadeiro flâneur, João despreza o cenário que o envolve e caminha enquanto lê, talvez por se sentir na rua como em casa e não ter qualquer expectativa em relação a encontros ocasionais. Num registo idêntico à cena na esplanada de Perdido por Cem, João observa os rostos anónimos enquanto viaja no autocarro. A mesma apatia e resignação faz-se sentir, naquela que poderia ser a ilustração da obra de Steinbeck, Os Náufragos do Autocarro. Também no café, João observa as pessoas que ocupam as diferentes mesas, que embora sendo personagens fictícias, representam alguns dos estereótipos lisboetas: o casal de jovens de olhar ausente, o engraxador (que curiosamente é interpretado por Belarmino Fragoso) e as outras figuras típicas do bas-fond de Lisboa, como a prostituta, a fadista e o marialva. Um boxeur que encontra na cidade o seu maior adversário; um provinciano cuja curiosidade pela vida na capital depressa se esmorece; quatro errantes urbanos que nasceram na cidade, mas que nem por isso encontram o seu lugar dentro dela. A sua agitação interior ganha uma dimensão física e o seu dia-a-dia transforma-se num movimento contínuo que convida o espectador a uma verdadeira experiência corpórea e emocional.
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deslocamento O espírito de renovação e mudança que atravessou a década de sessenta, ao questionar permanentemente os valores sociais ou políticos, gerou pontualmente um clima de instabilidade e crise de identidade. A crítica à cidade moderna, muitas vezes sem subsequentes soluções práticas, criou momentos de incerteza e de retrocesso. No cinema, se por um lado existe uma vontade de sair à rua e registar uma cidade e um tempo específicos, por outro há também um sentimento de perda de identidade, estimulado por uma constante deriva e desenraizamento. Assistimos então a um deslocamento psicológico dos personagens face ao ambiente urbano, e um deslocamento físico da acção do centro para a periferia. Quer seja através do olhar de alguém que chega da província ou pela experiência de quem nasceu citadino, os valores urbanos são frequentemente questionados nos novos cinemas, principalmente quando confrontados com a aparente pureza do espaço rural.
Fig. 56 | 57 | 58. Les Cousins, 1959
1 Nesse mítico ano de 1959 , Claude Chabrol estreou um filme intitulado Les
Cousins, onde Charles, um rapaz dos subúrbios, se muda para Paris para frequentar a faculdade. Sem morada própria, vai viver com o seu primo Paul, igualmente estudante, mas perfeitamente integrado no ambiente urbano e cosmopolita. No confronto com a vida libertina e decadente dos jovens da cidade, Charles tenta manter-se fiel aos seus valores e costumes. A repulsa e a negação dos vícios urbanos são mediados pelo seu amor por Florence, uma jovem citadina que mantém uma relação sexual com Paul. Contudo, Charles toma consciência que a sua conduta não significa necessariamente melhores resultados, já que enquanto ele estuda para os exames e reprova, o seu primo diverte-se e passa. O contraste entre a cidade e o campo, entre o urbano e o rural, constitui assim o fio condutor da narrativa. Mas ao contrário do que seria habitual, não há neste confronto uma atitude moralista, em que o bem acaba por derrotar o mal. Existe antes uma tom de desencantamento e desistência, que Paulo Rocha irá explorar alguns anos mais tarde. Um outro Carlos, desta vez a viver na cidade de São Paulo e protagonista do filme São Paulo, Sociedade Anônima, (Luís Sérgio Person, 1965), vive insatisfeito perante uma rotina e um destino que não parece controlar. Deambula pela cidade, evocando episódios dos últimos quatro anos da sua vida e relembrando as pessoas que dela fizeram parte. As constantes exigências, o ritmo alucinante, a ambição desmedida e a perda de valores que parecem ser inerentes à vida na metrópole, levam Carlos questionar-se 47
1. Ano em que se inicia simbolicamente a Nouvelle Vague, com a consagração no Festival de Cinema de Cannes dos filmes Les 400 Coups (François Truffaut) e Hiroshima, Mon Amour (Alain Resnais). Foi igualmente o ano em que Jean Rouch apresentava o seu primeiro filme de cinema vérité e em que Godard preparava o seu À Bout de Souffle. Também em tália foi um ano de viragem: Fellini apresentava La Dolce Vita e Antonioni finalizava L’avventura.
sobre a suas escolhas e sobre o seu futuro. Num acto desesperado, rouba um automóvel para fugir da cidade (um pormenor irónico, uma vez que Carlos gere uma empresa de peças para automóveis). Mas a cidade é traiçoeira e a rebeldia depressa se esvanece: na manhã seguinte está de volta a São Paulo. Neste caso, o desconforto do personagem não se justifica no confronto com origens rurais, mas na dificuldade em acompanhar a evolução alucinante das metrópoles. A presença esmagadora da cidade de São Paulo é imediatamente sugerida na sequência inicial do filme. Um plano filmado do exterior para o interior de um apartamento, onde um casal discute. No vidro, a cidade reflectida dilui-se com a imagem do interior. A câmara move-se então lentamente em panorâmica, mostrando uma cidade densa e populosa, com grandes construções em betão, que associadas a uma banda sonora quase apocalíptica, nos apresentam São Paulo como o principal objecto a ser caracterizado no filme. O próprio título - Sociedade Anónima remete-nos para uma ideia de cidade industrializada, num sentido negativo de alienação. Mais uma vez, a cidade é entendida como um obstáculo, e os esforços para o ultrapassar conduzem novamente à desistência.
Fig. 59 | 60 | 61. São Paulo Sociedade Anônima, 1965
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Deslocamento no Novo Cinema A cidade nos filmes do Novo Cinema é simultaneamente fonte de atracção e de repulsa. Para aqueles que chegam de fora, há o entusiasmo da descoberta de uma nova realidade e a expectativa de uma vida mais promissora do que aquela que acabaram de abandonar. Mas depressa são confrontados com a força esmagadora da capital, que parece querer travar uma luta desigual e injusta. Esta visão mais pessimista do espaço urbano poderá ter diferentes explicações: por um lado, a cidade é representativa de um país e de uma época ameaçados pela sombra de um regime ditatorial, responsáveis pelo descontentamento e apatia do seu povo; por outro, a recente modernidade que se instaurava lentamente num território que há muito lhe resistia, despoleta uma crise de valores que provoca um sentimento de estranheza, especialmente nas camadas mais jovens em busca de identidade própria. O automóvel é muitas vezes utilizado como símbolo desse imaginário moderno e das ideias que a ele estão associadas: tecnologia, estandardização e capitalismo. De Belarmino popularizou-se na imprensa o fotograma em que o boxeur surge no meio de um imenso conjunto de carros, ressaltando uma vez mais o seu isolamento social. Na cena final de Os Verdes Anos, Júlio é confrontado pelos faróis ameaçadores dos automóveis como se estes o acusassem do crime que acabara de cometer. E no exemplo estrangeiro São Paulo Sociedade Anônima, Carlos percorre desorientado um parque de estacionamento cheio de veículos que ele próprio ajudou a fabricar.
Fig. 62. Os Verdes Anos, 1963 Fig. 63. Belarmino, 1964 Fig. 64. São Paulo Sociedade Anônima, 1965
Deste desajuste dos personagens em relação ao ambiente que os rodeia, surge um forte desejo de fuga (para fora da cidade ou, em último caso, para fora do país). Desta forma, procuram outros lugares longe do centro urbano, lugares periféricos associados frequentemente à natureza e ao seu valor simbólico de pureza e genuinidade. Como se a cidade, frenética e hostil, não permitisse uma vivência saudável e autêntica. Binómio Cidade/Campo Depois, Os Verdes estrearam no São Luiz, os arquitectos apaixonaram-se pela relação cidade-campo dentro da fita, e toda a gente perdeu a cabeça com a Isabel Ruth (…)2 Os Verdes Anos será o exemplo mais paradigmático deste contraste, habitualmente apelidado de binómio cidade/campo, e que é simultaneamente causa e consequência do deslocamento físico e psicológico dos personagens. Mais do que espaços propriamente ditos, cidade e campo são aqui símbolo de dois valores contrastantes, de duas vivências 49
2. Paulo Rocha in Silva (org.), 1994: 91
distintas. Cidade é, como vimos, sinónimo de modernidade e de mudança. O campo é a origem de Júlio, metaforicamente representada pelos arrabaldes da cidade. Paulo Rocha introduz, pela primeira vez no cinema português, este espaço limítrofe de Lisboa, onde as traseiras dos modernos edifícios de habitação colectiva convivem com as azinhagas e as construções de lata, capazes de ir abaixo com um coice de burro3. Cidade e campo são 3. Texto do personagem Afonso em Os Verdes Anos
ambos periferia: a cidade porque corresponde às construções modernas da nova orla urbana, o campo porque está claramente fora dos limites da cidade. A sequência inicial é exemplar deste binómio. O filme começa com uma
Fig. 65 | 66 | 67. Os Verdes Anos, 1963
panorâmica que nos mostra campos de cultivo, acompanhada por planos de pormenor de um riacho ou de uma ponte onde atravessa uma carroça. Ainda não sabemos onde se irá passar a acção, mas somos levados a acreditar que será numa qualquer aldeia das muitas que predominavam em Portugal na década de sessenta. De seguida, a câmara sobe numa panorâmica vertical, mostrando a cidade moderna, com os seus blocos de apartamentos a surgirem por detrás dos pequenos montes. E assim, em pouco menos de um minuto e ao som da guitarra melancólica de Carlos Paredes, é-nos apresentado o tema que está na base de todo o filme: um olhar saudoso para o campo, ameaçado pelo 4
moderno.
Mas o espaço a que, por contraste, nos habituamos a chamar campo, é um
4. Ferreira (coord.), 2007
lugar indefinido, um espaço sobrante que já não é campo, mas que também ainda não se fez cidade. Aí habitam os marginalizados pela sociedade urbana ou aqueles que, como Afonso, desdenham a cidade mas dependem dela para trabalhar. Este sentimento está presente nas palavras de Afonso: olhem que às vezes, à noite, à janela, antes de me deitar, ponho-me a olhar lá para os prédios do bairro da Ilda, e penso no que aquela gente toda paga 5. Texto do personagem Afonso em Os Verdes Anos 6. Areal, 2011: 392
para estar lá dentro. Sai-lhes mais caro o dormir que o comer.5 Esta é uma classe que Leonor 6 Areal diz ser os invisíveis do cinema, sempre presentes mas secundários , e que no filme de
Paulo Rocha assumem protagonismo. Personagens entre o camponês e o burguês, que estão no cerne da transformação social e que passam desconhecidos porque não pertencem nem a um mundo nem a outro.7 O campo será então o refúgio para estas personagens deslocadas e tão indefinidas
7. Idem
Fig. 68 | 69 | 70. Os Verdes Anos, 1963
50
quanto aquele lugar. O bucolismo que o caracteriza parece despertar os sentimentos adormecidos daqueles que habitam na cidade. É neste espaço que Ilda e Júlio têm o primeiro encontro, têm a primeira discussão e onde Júlio sugere um pedido de casamento que acaba recusado. Durante os seus passeios, cruzam-se com outros jovens casais que, como eles, procuram um lugar recatado, longe dos olhares alheios, ou com homens misteriosos que parecem fugir de algo que desconhecemos mas que podemos adivinhar. A periferia transforma-se assim numa terra sem dono, num território neutro, onde os valores tradicionais inerentes ao campo parecem ser recuperados. Outras Periferias O Recado é, como vimos, um filme em permanente deslocamento. A indecisão de Lúcia traduz-se na sua relação com o espaço. Em casa, lugar que é uma espécie de subconsciente, Lúcia transita de divisão em divisão, ora manipulando objectos como quem desenterra memórias, ora falando consigo mesma. Este ambiente tenso contrasta com o espaço associado a Francisco e a Mal de Vivre, uma praia quase deserta que adivinhamos situar-se algures entre Lisboa (a morada de Lúcia) e o Cabo de Espichel (onde Francisco é assassinado). A periferia é, neste filme, sinónimo de clandestinidade: da água chegam mercadorias, fugitivos e sinais de esperança. É também um lugar associado ao meio rural, à cultura popular e às aldeias piscatórias, fazendo lembrar o segundo filme de Paulo Rocha, Mudar de Vida (1966), cuja acção se desenrolava na praia do Furadouro. Já nesse filme parece haver uma certa ideia de liberdade associada à praia, independentemente das dificuldades que aí se viviam. Em entrevista, Paulo Rocha falava da independência daquela gente naquele reino escondido entre as areias, durante 8 séculos, longe de tudo. É na praia que Francisco marca um encontro com Lúcia, ao qual
chega a comparecer. Numa longa sequência, Lúcia espera no areal, primeiro ansiosa, depois progressivamente triste e resignada. Tal como acontece em Os Verdes Anos, é no espaço periférico que se estabelece o ponto de viragem da narrativa, o momento em que
8. Entrevista a Paulo Rocha publicada no quinzenário ovarense João Semana (Suplemento de 15 de Abril de 1991)
o personagem constata uma realidade – em ambos, a impossibilidade de um amor – e caminham rumo ao desenlace final. Depois deste encontro frustrado, as acções de Lúcia dirigem-se finalmente para um dos mundos que tinha à escolha: o mundo de António e do conforto burguês. Este momento de deriva e posterior lucidez, associado a um espaço periférico
Fig. 71 | 72 | 73. O Recado, 1972
da cidade de Lisboa, está igualmente presente no filme O Cerco. Embora a crítica à cidade, tal como afirma Luis Urbano, seja menos carregada negativamente como nos filme de Rocha ou Lopes, [a cidade] não deixa de ir minando, como uma entidade viva, as aspirações de Marta, colocando-a à mercê dos outros.9 Depois de saber que Vítor tinha sido assassinado, Marta anda à deriva no cacilheiro, embarcação que é também símbolo dos deslocações 51
9. Urbano, 2012
diárias entre centro e periferia. Depois deste momento de pausa, em que olha a cidade de fora como se olhasse para si do exterior, regressa à intimidade do seu quarto e acerta o relógio, num gesto que parece ser um sinal de recomeço.
52
II. ESPAÇO PRIVADO
a porta A porta é um elemento essencial da linguagem arquitectónica e da organização e experiência espacial, revelando detalhes do modo como nos relacionamos com aquilo que nos rodeia. Dificilmente encontraremos uma cultura que não faça uso da porta, e a sua presença comum no nosso quotidiano leva a que raramente tomemos consciência do seu valor. Ao nível da percepção do espaço, a porta é um ponto mediador que controla aquilo que é visto e, sobretudo, aquilo que é ocultado, sendo por isso fundamental para a construção da privacidade e segurança. Por outro lado, a porta é também um importante instrumento de medição do espaço. Estabelecendo relações de escala, ganhamos uma maior consciência do meio envolvente. No exercício da arquitectura, por exemplo, se uma planta ou um corte não têm informação sobre a escala, é comum olharmos para a porta e estabelecermos comparações entre os elementos que compõem o desenho. Tal acontece porque a porta, com algumas excepções1, é representativa da escala humana. Pontuando a nossa experiência no espaço, a porta é também um instrumento de medição do tempo, proporcionando a cristalização do momento de passagem e transformando-se num símbolo de chegada e de partida.
1. No projecto do arquitecto Álvaro Siza para a igreja do Marco de Canavezes, este exercício deixa de ser válido. Tratando-se de um edifício religioso, a porta ultrapassa a escala humana, conferindo-lhe assim um valor espiritual e simbólico.
O principal poder da porta é, contudo, o de simultaneamente ligar e dividir o espaço. Local de opostos e contradição, a porta é o ponto de contacto entre diferentes mundos, mas é igualmente um ponto de discriminação e controlo. A porta é, simultaneamente, um sinal para parar e um convite para entrar. A porta da frente da casa resiste ao corpo pelo seu peso, ritualiza a entrada, e faz antecipar os espaços e a vida por detrás dela. A porta silencia, mas é simultaneamente um sinal das vozes ocultas, tanto fora como dentro da casa. Abrir uma porta é um encontro físico íntimo entre a casa e o corpo; o corpo encontra a massa, a materialidade e a superfície da porta, e a maçaneta, polida pelo uso ao longo do tempo, oferece um aperto de mão acolhedor e familiar.2
2. Pallasma, 2011: 131
Como barreira, a porta estabelece limites de território. O professor e teórico de arquitectura Simon Unwin, no livro intitulado Doorway3, explica que a porta é um dos mais importantes elementos de divisão, apesar de podermos achar que essa função pertenceu primeiramente à parede e que a porta teria sido apenas uma forma de resolver a acessibilidade. Para demonstrar que, através do seu poder simbólico, uma porta gera um sentimento de divisão que de outra maneira poderia não existir, dá como exemplo um exercício do arquitecto e designer Ettore Stottsass (1917-2007). A experiência, a que chamou ‘porta para entrar na escuridão’, consistia na colocação de um portal (construído com varas de madeira, cordas e folhas de palmeira) no meio do deserto, sobre uma linha de sombra. Unwin explica que este gesto muda a percepção da paisagem desértica, afectando o nosso comportamento em relação a ela. A colocação daquele objecto chama a atenção para uma divisão do território que de outra maneira talvez não tivéssemos reparado, ao mesmo tempo que estabelece o ponto exacto onde essa barreira deve ser atravessada. Neste sentido, esse ponto é também um convite à 57
3. A palavra inglesa ‘doorway’ não significa apenas porta, mas também entrada, passagem ou portal, não sendo possível fazer uma tradução literal para a língua portuguesa.
passagem, provocando um sentimento de desafio e ousadia, já que sabemos que atravessar aquele elemento é experimentar realidades distintas. Tal como refere Unwin, 4. Unrwin, 2007:17
mais do que uma escultura, Ettore realizou um pequeno exercício de arquitectura.4
Fig. 74. Ilustração da experiência Porta para entrar na escuridão (Ettore Sottsass, 1972)
Por outro lado, a porta é também um elemento de definição de propriedade, segurança e privacidade. Na Sicília, quando alguém toma posse de uma parcela, a primeira tarefa é colocar uma porta ou portão, mesmo antes da vedação, definindo 5. Idem: Ibidem
imediatamente que aquele território à propriedade privada.5 Mesmo no espaço interior, a porta estabelece noções de privacidade e intimidade. O arquitecto e historiador Robin Evans, no seu texto Figures, Doors and Passages, afirma que as diferentes configurações da porta no interior não só provocam uma reorganização do espaço da casa, como obrigam a uma reestruturação do modelo de vida doméstica. Distingue duas grandes formas de organização: a de matriz medieval italiana de espaços interconectados, provenientes de um contexto social apoiado na proximidade, na carnalidade e nos encontros sociais acidentais; e o modelo britânico de corredor e célula, com um contexto social baseado na privacidade, na distância e na segregação. Segundo Evans, a disposição e o número de portas de um edifício é um dos principais factores que distingue estes dois modelos. De acordo com a arquitectura italiana do século XVI, cada divisão da habitação deveria ter duas ou mais portas, dando origem a uma planta aberta relativamente permeável aos numerosos membros da casa (...) que se vejam obrigados a atravessar uma matriz de habitações
6. Evans, [1978]: 80
comunicantes onde tinham lugar os assuntos diários da vida.6 No século XIX, as habitações inglesas rejeitam esta ideia de livre comunicação entre as diferentes partes por tornarem
7. Robert Kerr cit. Evans, [1978]: 78
impossível a domesticidade e o retiro.7Cada sala passa a ter a sua própria e única porta, tornando necessária a criação de espaços de distribuição. Ao mesmo tempo que actua como barreira, a porta é também um convite para entrar. Enquanto que o poder da parede é ‘negar’, manter afastado, o poder da porta
8. Unwin, 2007: 3
é ‘permitir’, deixar passar.8 Tal como vimos no exemplo de Stottsass, a porta desperta um sentimento de curiosidade, um desejo de descoberta que nos atrai. Este fenómeno psicológico deriva da tensão sugerida pela ideia de espaço ‘entre’. Esta condição de ponto de transição entre dois opostos leva a que lhe seja atribuído um forte valor simbólico, chegando mesmo a atingir uma conotação religiosa ou espiritual, especialmente nas civilizações antigas (a porta como passagem entre dois mundos, entre a vida e a morte). 58
Por vezes, este valor simbólico é reforçado pelos arquitectos, que dedicam um especial cuidado ao desenho da porta ou da entrada. O arquitecto Peter Zumthor (n.1943) procura frequentemente intensificar a experiência proporcionada por esse momento de transição. Tanto no abrigo que construiu para as ruínas romanas em Chur (1986) ou na capela de Saint Benedict (1988), a porta é um volume saliente, elevado, em que os degraus de acesso estão ligeiramente afastados, numa espécie de ritual de preparação para a entrada no edifício. O arquitecto Álvaro Siza (n.1933), na Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, coloca um volume de acesso junto à rua, mas ao contrário dos exemplos de Zumthor, este não comunica directamente com o interior do edifício, pontuando apenas o início do percurso de entrada no conjunto. Fig. 75. Entrada do brigo de proteção das minas romanas na estação arqueológica de Chur (Peter Zumthor, 1986) Fig. 76. Entrada da capela de Saint Benedict (Peter Zumthor, 1988) Fig. 77. Entrada da da faculdade de arquitectura do Porto (Álvaro Siza, 1994)
Estas características físicas e simbólicas da porta, como temas universais e identificáveis em qualquer parte do mundo, em qualquer período da história humana, dotam-na de uma potencialidade dramática que a transforma num elemento recorrente na literatura, pintura, fotografia, cinema, entre outros. Vejamos, por exemplo, a obra de Hammershøi9, um pintor dinamarquês do final do século XIX, conhecido pelas suas representações subtis e ‘silenciosas’ de interiores domésticos. Quase sem personagens ou objectos que contem uma história, as suas obras sugerem tensões e suscitam mistérios através de uma composição onde a porta é protagonista. Nenhum objecto palpável interrompe o vazio por detrás de cada uma [porta], nem o corredor que leva a uma terceira porta sombria que, por sua vez, abre para uma sala iluminada. Será que essa estreita e distante faixa de encandeamento marca o fim de um curto mas memorável percurso? Que percurso é este? Alguém está ocupado a não estar aqui. E se essa pessoa, essa pista que falta, se encontra depois da porta mais interior e mais escura, aquela que conduz à direita, para fora do hall?10
9. Vilhelm Hammershøi (1864-1916) é um nome controverso na história da pintura. Se hoje as suas obras são reconhecidas pela pureza, pelo despojamento e pelo lirismo, para os seus contemporâneos era um trabalho simplista e demasiado tradicional, numa altura em que artistas como Henri Matisse e Marcel Duchamp ditavam vanguardas. No catálogo da exposição “Poetry of Silence”, organizada pela Royal Academy of Arts de Londres, pode ler-se: Even now, however, Hammershøi is difficult to place. Perhaps a Symbolist, a modernist, an existentialist, or just a loner. 10. Bell:2008
Fig. 78 | 79 | 80. Interiores Strandgade, Vilhelm Hammershøi (1908, 1906, 1914)
59
Este exemplo demonstra que a representação de uma porta, mesmo que não acompanhada de uma acção, contém em si uma determinada tensão dramática. Aquilo que ela simultaneamente nos mostra e nos oculta, bem como ideia de movimento transitório que lhe atribuímos, cria uma espécie de suspensão de um momento. Neste sentido, o cinema explora profundamente o uso da porta, não só como representação pictórica, mas apoderando-se desse valor simbólico e dramático. A passagem pela porta permite a passagem de uma realidade visível para uma realidade imaginária. Do ponto de vista dramático é esta passagem do que se vê para o que se adivinha e se avizinha que nos interessa. Toda a porta encerra um segredo e é por isso que ela constitui um tão forte embraiador de ficção e de suspense no cinema espectáculo. A interpretação analítica frequente que relaciona o lugar interdito que a porta fecha — repleto de som¬bras, de interrogações, de surpresas ou de ameaças— com o desejo irresistível do olhar trans¬gressor, tanto dos personagens como dos especta¬dores, aponta para a própria natureza voyeurista do cinema. Querer saber o que se encontra por detrás de uma porta é um impulso equivalente ao do querer saber o que vamos 11. Geada, 1997: 27
11
encontrar no ecrã.
Fig. 81 | 82 | 83. Nosferatu, 1922
O primeiro filme de Nosferatu (F.W.Murnau, 1922) explora a tensão dramática associada à porta. Numa sequência em particular, vemos um plano de uma porta fechada que se abre sozinha. Por segundos, a câmara detém-se nesta imagem, criando uma suspensão no momento, que aumenta a ansiedade do espectador. No plano seguinte, a silhueta de Nosferatu surge lentamente no enquadramento da porta, numa quase sacralização da sua figura. Quando finalmente atravessa a porta, dá-se o momento de maior tensão, já que Nosferatu ultrapassa a barreira que diferenciava o seu espaço do nosso enquanto espectadores.
Fig. 84 | 85 | 86. Double Indemnity, 1944
O valor da porta no espaço cinematográfico, como vimos, é igualmente associado à ideia de ponto de passagem e de barreira, em que uma porta fechada é sinal de segurança ou segredo e uma porta aberta é sinónimo de insegurança ou de convite. No entanto, em Double Indemnity (Billy Wilder, 1944) há uma subversão deste conceito: porta aberta, em vez de revelar, impede que a protagonista seja descoberta. 60
Do ponto de vista técnico, a porta é um importante elemento de transição de planos ou cenas, auxiliando no processo de montagem. Tal como afirma Eduardo Geada, a transposição do ângulo de visão da câmara através do limiar da porta, segundo a observância das regras do raccord de continuidade, pode servir para criar um espaço fílmico coerente, estável e contíguo quando, por vezes, a geografia real que separa os dois lados da porta é completamente distinta.12
12. Idem: Ibidem
A porta no Novo Cinema A porta como barreira Nos filmes do Novo Cinema encontramos frequentemente o uso da porta como barreira, destacando-se dois tipos com funções distintas: a porta opaca e a porta transparente. Em Uma Abelha na Chuva, a porta é a barreira opaca e intransponível entre Álvaro e Maria dos Prazeres. É a porta do quarto em que a mulher se refugia para evitar qualquer contacto com o marido. É esta barreira que leva Álvaro a adoptar um esquema manipulador sob o pretexto de vingança: denunciar o romance de Jacinto e Clarice ao mestre António, pai desta última, na esperança de que este tome as devidas (ou esperadas) precauções. A motivação maior de Álvaro não é, no entanto, o facto de o casal comentar a sua vida sexual em conversas de cozinha, mas antes, e como Eduardo Prado Coelho refere: [o ódio] vem da insuportável raiva que o espectáculo harmonioso provoca naquele que do desejo apenas conhece a frustração quotidiana de uma porta fechada.13
13. Coelho, 1983: 36
Fig. 87 | 88. Uma Abelha na Chuva, 1972
A barreira de Os Verdes Anos é uma barreira de vidro, invisível, e consequentemente perversa porque propõe os objectos como objectos desejáveis ao mesmo tempo que institui entre nós e esses objectos uma distância intransponível.14 Numa das sequências iniciais, Júlio é atraído pelos pássaros detidos no hall do prédio onde Ilda trabalha, que consegue ver através da porta de vidro, acidentalmente aberta. Atravessa então esta barreira, ocupando um espaço a que não pertence e para o qual não foi convidado. Apercebendo-se da transgressão, tenta recuar, mas é tarde demais: a porta está fechada. E Júlio, como os pássaros, preso numa gaiola de vidro. 61
14. Idem: 17
Fig. 89 | 90. Os Verdes Anos, 1963
Júlio e Ilda, durante um dos seus passeios de fim-de-semana por Lisboa, 15. Complexo composto por vários projetos, construídos entre 1952 e 1960. Entre os autores estão Porfírio Pardal Monteiro e Norberto Correia.
visitam o exterior da cidade universitária.15 A imponência monumental do edifício confunde-se com a de um templo sagrado, e as grandes portas de vidro, encerradas, reforçam o distanciamento e a impossibilidade dos personagens de pertencer àquele lugar. Enquanto espreitam através dos vidros, Júlio e Ilda conversam sobre o futuro que idealizaram, futuro esse que conscientemente sabem não passar além daquela barreira. Mais uma vez, a porta de vidro a deixar apenas vislumbrar um conteúdo a que não deixa ter acesso.
Fig. 91 | 92. Os Verdes Anos, 1963
O mesmo acontece quando Artur, o tio de Júlio, leva o casal a visitar a loja 16. Projecto da autoria de Francisco Conceição Silva (1955)
16
Rampa para lhes mostrar o trabalho de azulejo que realizou na entrada. A espessa moldura da porta, colocada numa parede inteiramente de vidro, cria um efeito curioso, quase caricatural: um portal invisível que, novamente, separa os personagens daquilo que não podem adquirir.
Fig. 93 | 94. Os Verdes Anos, 1963
Embora com uma presença menos significativa no conjunto de filmes escolhidos para esta análise, é possível destacar um outro tipo de porta com uma função fílmica específica: a porta de vidro translúcido. Ao deixar ver apenas silhuetas, pressentir uma presença que se desconhece ou sugerir determinados acontecimentos, esta porta revela-se um importante ingrediente para induzir intensidade dramática e mistério a determinadas sequências. É o caso da sequência final de Os Verdes Anos, quando Júlio faz uma visita inesperada a Ilda. Nunca chegamos a assistir à sua conversa. Tudo o que vemos é o vidro fosco da porta que separa o hall de entrada do resto da casa. O grito de 62
Ilda, seguido de uma mudança de plano para Júlio a fugir pela escadaria, confirmamnos aquilo que não vimos, mas que as imagens sugeriram. Ora quem souber ver um filme, saberá aplaudir que você “feche a porta” sobre o crime final, que faça um grande silêncio na cena seguinte, e que fixe o último instante do filme, que fica suspenso pelo fio invisível da tragédia. Dir-me-ão talvez que são pequenas coisas, mas são essas 17
pequenas coisas que fazem os grandes filmes.
17. António-Pedro Vasconcelos, [1963]. ‘Carta Aberta a Paulo Rocha’ in Melo (coord.), 1996: 148
Curiosamente, a mesma porta aparece em Perdido Por Cem, quando Artur regressa à cidade e é confrontado pela senhoria com as rendas em atraso. Neste caso, o plano não parece ser usado para potenciar algum tipo de dramatismo, mas funciona como ferramenta para auxiliar a mudança de sequência.
Fig. 95 Os Verdes Anos, 1963 Fig. 96 Perdido por Cem, 1973
A PORTA COMO TRANSIÇÃO Do ponto de vista técnico, a porta em cinema pode ser um instrumento útil para suavizar a transição de planos, ambientes e atmosferas. Nos filmes escolhidos, o mais exemplar deste método é talvez Belarmino. Durante todo o filme somos convidados a seguir o personagem nas suas deambulações pela cidade, numa constante transição entre espaços interiores e espaços exteriores. De casa para a rua, da rua para o café, e do café novamente para a rua. Muitas vezes, essa transição é feita pelas imagens da entrevista que estrutura o filme. Outras, é o acto de atravessar a porta que estabelece a passagem de um espaço para outro de características diferentes.
Fig. 97 | 98 | 99 Belarmino, 1964
Em O Recado, mais do que um instrumento, o uso da porta parece fazer parte de um estilo. Há em todo o filme, e principalmente à medida que nos aproximamos do final, uma certa obsessão pelas portas que Lúcia abre, fecha e atravessa constantemente, como se estivesse perdida na sua própria casa. A porta parece ser a metáfora para a situação em que Lúcia se encontra, hesitante entre dois mundos distintos – um revolucionário, representado por Francisco, outro conservador, representado por António. 63
Por outro lado, a câmara raramente se encontra no mesmo plano de Lúcia, que aparece quase sempre enquadrada por uma porta. Num artigo intitulado ‘Trompe l’oeil’, Miguel C. Tavares explora o papel mediador da arquitectura, e em especial da porta, entre Lúcia e o espectador. Afirma que, mais do que um recurso formal, estes enquadramentos são também símbolo de uma mensagem cifrada, de uma verdade que não se podia contar por inteiro, nem muito menos de perto: Por causa de todos os condicionalismos inerentes à época em que foi realizado, Fonseca e Costa recorreu a inúmeros meios artísticos para que o seu “recado” pudesse ter o aval da censura. Tal como afirma: “O Recado é um pouco um filme trompe l’oeil, onde o que conta não é a 17. Tavares, 2011
aparência das coisas, mas o que está por detrás delas.”18 Na cena final, depois de destruir alguns vestígios do passado, Lúcia sai definitivamente para a rua. A câmara detém-se na porta fechada: Lúcia optara finalmente por um dos seus lados.
Fig. 100 | 101 | 102 O Recado, 1972
64
a janela (...) uma menina está numa sala com uma decoração austeramente simplificada. Diante de um ecrã emoldurado, suportado quase invisivelmente por um acrílico, ela declara de um modo ligeiramente pesado: “Eu gosto destas aulas de história.” Uma imagem do skyline de Nova Iorque aparece no ecrã: “Que lugar engraçado era Nova Iorque, toda a apontar para cima e cheia de janelas!” O seu envelhecido bisavô, tenta fornecer uma legenda explicativa para a imagem:. “Eles abriam e fechavam essas janelas para deixar entrar o vento e impedir a entrada da chuva e do frio. Eu não sei como descrever essas janelas, mas talvez sejam imagens... A idade das janelas “, continua a explicar, “durou quatro séculos.” [Things to Come (William Cameron Menzies, 1936]]1
1. Anne FriedBerg. [2006] cit. Bull, & Paasche (ed), 2011
Tal como a porta, a janela é um elemento mediador entre interior e exterior, entre privado e público, e influencia não só a caracterização dos espaços que a rodeiam como a nossa relação com os mesmos. O estudo da janela, da sua forma, do seu tamanho, ou da sua localização, pode revelar importantes detalhes acerca das formas de estar e habitar um lugar.2 Herman Neuckermans, no texto A ‘thick’ description of windows, serve-se da janela como pretexto para demonstrar a complexidade e a multiplicidade de abordagens a que a arquitectura está sujeita e a que o arquitecto deve ser especialmente sensível. Fala da importância da janela como elemento de composição da fachada, que através da variedade de formas confere diferentes expressões ao edifício. A própria relação do indivíduo com a janela vista do exterior, isto é, a forma como a decora ou a maneira como actua por se saber exposto, pode revelar não só alguns aspectos da personalidade do indivíduo, como questões de ordem social e cultural relativas ao contexto em que está inserido. Por outro lado, Neuckermans afirma que o desenho da janela é igualmente determinante para a configuração do espaço interior, podendo gerar diferentes tipos de ambientes. Esse desenho determina igualmente o modo como encaramos a paisagem, por vezes de forma imprevisível. O formato semelhante ao cinemascope, por exemplo,
2. Numa viagem ao Camboja, no âmbito da disciplina de projecto que frequentei na École Nationale d’Architecture de Belleville, pedi a uma criança que desenhasse a sua casa. O resultado não se afastava muito do desenho convencional do quadrado encimado pelo triângulo, com excepção de um pormenor: em vez de desenhar as janelas no interior do quadrado (muitas crianças ocidentais acrescentariam ainda uma cruz que representa a caixilharia), a criança cambojana desenhou as janelas do lado de fora. Para ela, a janela é uma abertura com uma portada constantemente aberta. Um facto que encontra explicação não só nas características climatéricas daquele lugar mas também na forma como habitam em comunidade, onde espaço privado e espaço público muitas vezes se diluem.
nem sempre é o que mais se aproxima da experiência cinematográfica: Janelas horizontais e janelas verticais fornecem informação visual substancialmente diferente, bem como valor experimental. Janelas horizontais resultam numa estratificação horizontal da vista; janelas verticais induzem um movimento paralaxe, uma espécie de ‘movimento entre as imagens’, como no cinema. No caso de uma janela horizontal, a imagem é mais estática, pelo menos no que diz respeito ao movimento do observador. A janela vertical mostra uma parte 3
do céu, assim como a envolvente imediata e longínqua.
3. Neuckermans in Farmer & Louw (ed.), 1993: 364
Contudo, esta relação com a paisagem de que nos fala Neuckermans é sobretudo visual. Ao contrário da porta, a janela não pressupõe um atravessamento físico mas um acto de contemplação. Tal como afirma Beatriz Colomina, ver uma paisagem através de uma janela implica uma separação. Uma ‘janela’, qualquer janela, quebra a conexão entre estar 67
4. Beatriz Colomina in Bull, & Paasche (ed), 2011
numa paisagem e vê-la.4 A mesma autora, no livro Privacy and Publicity: Modern Architecture as Mass Media, caracteriza e distingue a arquitectura de Adolf Loos e de Le Corbusier através da forma como encaram a janela no projecto. Demonstra que se para Loos a janela não é mais do que um ponto de luz, para Le Corbusier é fundamental para o enquadramento da paisagem.
Fig. 103 Casa Hans Brummel (Adolf Loos, 1928) Fig. 104. Livraria Manz (Adolf Loos, 1912) Fig. 105. Casa Scheu (Adolf Loos, 1912)
5. Le Corbusier [1925] . cit. Colomina. 1994: 234
[Le Corbuiser] Loos disse-me um dia: ‘um homem culto não olha pela janela; a sua janela é um vidro fosco; ela está ali apenas para dar luz, não para deixar passar o olhar’.
5
A janela para Loos é opaca ou coberta com cortinas, e o sofá é habitualmente colocado de costas para o exterior. A janela para Le Corbusier, pelo contrário, nunca tem cortinas ou qualquer obstáculo que impeça o acesso à vista sobre a envolvente. Tais diferenças dão origem a vivências do espaço interior igualmente distintas: nas casas de Loos, o olhar é direccionado para o interior, tornando os habitantes simultaneamente 6. Colomina. 1994: 244
actores e espectadores da cena familiar6; inversamente, nas casa de Le Corbusier, o olhar parece ser constantemente atraído por um exterior subjectivo, provocando um afastamento do indivíduo em relação à sua própria casa, como se de um visitante, um
7. Idem: 244
espectador, um fotógrafo, um turista7 se tratasse. Assim, a arquitectura de Loos sugere uma percepção estática, mais próxima da fotografia, enquanto que a arquitectura de Le Corbusier se associa mais rapidamente ao movimento e, portanto, ao cinema. Uma associação pertinente se tivermos em conta que o próprio Le Corbusier utilizou o filme como instrumento de divulgação, ou até mesmo de propaganda, da sua arquitectura e
7. Em 1930, Pierre Chenal realizou L’Architecture d’aujourd’hui, uma série de curtas-metragens filmadas em várias obras de Le Corbusier, frequentemente relembrada nos discursos sobre as relações entre a arquitectura e o cinema.
dos seus ideais modernos.
8
Fig. 106 | 107 | 108. L’Architecture d’aujourd’hui , 1930
Por outro lado, Juhani Pallasmaa faz uma interpretação poética e antropomórfica da janela. Partindo do princípio que uma casa se assemelha muitas vezes a um corpo humano, define as janelas como os olhos que observam o mundo e inspeccionam os 9. Pallasmaa, 1982:130
visitantes.9 Deste modo, uma janela partida transmitiria um sentimento desagradável 68
de violação e um edifício contemporâneo, com janelas tapadas por painéis, seria uma casa que cegou com uma terrível e contagiosa doença. Pallasmaa acrescenta ainda que as janelas podem ser olhos maliciosos que secretamente controlam até os próprios moradores. Curiosamente, esta observação parece encontrar um paralelo no cinema de Jacques Tati, em particular no filme Mon Oncle (1958)
Fig. 109 | 110. Mon Oncle, 1958
Nas diferentes abordagens ao tema da janela no âmbito da arquitectura, parece inevitável uma associação, mais ou menos indirecta, ao universo cinematográfico. De facto, alguns filmes utilizam as relações que se constroem a partir da janela como metáfora do próprio cinema. O filósofo e psicanalista Slavoj Zizek, no documentário The Pervert’s Guide to Cinema, onde nos guia através de alguns dos mais importantes filmes da história do cinema, toma como exemplo uma sequência do filme Possessed (Clarence Brown, 1931), onde a protagonista se detém junto a uma linha ferroviária. As janelas do comboio em andamento vão revelando pequenas histórias, pequenos excertos da vida dos passageiros. De repente, ela encontra-se numa situação onde a realidade reproduz a experiência mágica do cinema. Ela aproxima-se dos carris, o comboio está a passar, e é como se, o que na realidade é apenas uma pessoa parada junto a um comboio que passa lentamente, se transformasse num espectador a observar a magia da ecrã. (...) O que temos é uma cena muito real, comum, onde o espaço interior da heroína, o seu espaço de fantasia, é projectado, de modo que, apesar de toda a realidade estar simplesmente ali – o comboio, a cidade, a menina - parte da realidade na sua percepção e na nossa percepção enquanto espectadores é, por assim dizer, elevada ao nível da 10
magia, torna-se o ecrã dos seus sonhos. Esta é a arte cinematográfica na sua forma mais pura.
10. Slavoj Žižek, in The Pervert’s Guide to Cinema (2006, Sophie Fiennes)
Fig. 111 | 112. Possessed, 1931
O filme Rear Window (Alfred Hitchcock,1954) é talvez o mais paradigmático desta ideia de auto-reflexão do cinema através da metáfora da janela, tema explorado pelos arquitectos Manuel García Roig e Carlos Martí Aris, no livro em que procuram estabelecer relações entra a arquitectura e o cinema: 69
A arte moderna caracteriza-se pela sua condição auto-reflexiva, ou seja, pelo facto de incorporar no próprio objecto uma reflexão interna sobre si mesmo. Assim acontece neste filme que se constrói como uma metáfora do próprio cinema. Na verdade, a janela a que o título se refere equivale a uma tela de cinema. Jeff, com a perna partida, é apenas um espectador. A imobilidade forçada obriga-o a adoptar uma atitude passiva própria de um espectador de cinema. Com o que vai vendo através da sua janela, “constrói” um filme cujo significado reside no olhar do próprio 11. Arís & Roig. 2008: 59
Jeff.11 Neste caso, temos a janela de Jeff que capta a atenção para o exterior, e as janelas dos vizinhos que, no sentido inverso, atraem o olhar para o interior. Mas na sua
11. Pallasmaa. 2007: 169
natureza, a janela é para olhar para fora de, e não o inverso.12 Esta transgressão transforma a janela num instrumento de voyeurismo: observar sem ser observado, ser observado sem o saber. Por esta razão, os enquadramentos de Hitchcock são frequentemente comparados às obras do pintor americano Edward Hopper (1882-1967). Em ambos os casos, o espectador é forçado a assumir o papel de voyeur, questionando os limites entre o domínio público e o domínio privado.
Fig. 113. Rear Window, 1954 Fig. 114. Night Windows, (Edward Hopper, 1928)
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A janela no Novo Cinema No Novo Cinema português, não há uma forma generalizada de filmar a janela, mas é possível identificar determinados grupos que parecem ir de encontro a algumas das abordagens anteriores. Tal como nas obras de Adolf Loos, a janela é por vezes utilizada como fonte de luz para a criação de um certa ideia de interioridade, criando ambientes mais introspectivos. Por outro lado, há também uma intenção de enquadramento que, tal como nas obras de Le Corbusier, remete para a própria ideia de cinema. Finalmente, o valor simbólico da janela parece fazer-se sentir de forma mais intensa na sua ausência, remetendo para uma ideia de clausura. A janela como introspecção Belarmino é talvez o filme que melhor se enquadra nesta perspectiva, facto aparentemente paradoxal, já que a acção se passa quase exclusivamente em lugares públicos. No entanto, Belarmino é um personagem da cidade e o café é o espaço que mais se aproxima de uma ideia de lar, o lugar que melhor caracteriza este personagem complexo - boxer, engraxador e colorista de fotografias. Entrar no café é entrar no interior de Belarmino, no seu íntimo. A agitação da cidade é anulada pelos vidros foscos das janelas, e a luz devidamente filtrada cria um ambiente propício à introspecção. Não há interacção entre os clientes, cada um executa as tarefas que lhe são mais aprazíveis. Um casal conversa comprometidamente, um homem solitário lê o jornal, e Belarmino prepara metodicamente a sua mesa de trabalho. Um espaço público por excelência transforma-se assim num interior quase doméstico.
Fig. 115 | 116. Belarmino, 1964
O mesmo tratamento dos espaços interiores pode ser encontrado no filme de António da Cunha Telles, O Cerco. Neste caso, a janela, para além de funcionar como um elemento que reforça a interioridade daquele espaço, é também símbolo de uma liberdade conquistada pela protagonista. Marta, ao divorciar-se do marido, passa de uma casa tradicional e conservadora, onde as cortinas contribuem para um ambiente sombrio e opressor, para um lofte moderno, de uma única janela horizontal.
Fig. 117 | 118. O Cerco, 1970 71
Apesar deste desenho se aproximar mais da janela modernista de Le Corbusier, não há uma preocupação em destacar a paisagem, mas antes em deixar entrar uma luz que parece representar a esperança numa vida nova, mais moderna, mais liberta de valores tradicionais e conservadores.
A janela como ecrã Embora com uma intenção menos perversa do que em Rear Window, a janela em Os Verdes Anos é o ponto de contacto de Júlio com o exterior, enquanto trabalha numa minúscula oficina de sapatos. É através dela que acompanha os movimentos de Ilda nas suas tarefas diárias de empregada doméstica. A câmara fixa mostra-nos a Lisboa moderna emoldurada por um formato que nos remete para o cinemascope, realçando a ideia de um “filme dentro do filme”. Ilda entra e sai desse ecrã, protagonizando aquele que parece ser o filme do imaginário mais íntimo de Júlio. Pelo facto da oficina se situar numa cave, a janela oferece-nos um ponto de vista mais próximo do nível da rua, permitindo um interessante jogo de perspectiva e uma maior proximidade com o objecto de desejo do protagonista. Esta sensação de estar a assistir a um filme é abruptamente interrompida quando Ilda se debruça sobre esta mesma janela. A tridimensionalidade que a figura de Ilda confere à imagem, atravessando aquilo que, por um momento, acreditamos ser uma tela bidimensional, rompe com esse olhar contemplativo e transforma-a num ponto de interacção directa entre os personagens.
Fig. 119 | 120 | 121. Os Verdes Anos, 1963
Também em Uma Abelha na Chuva podemos encontrar um exemplo desta relação, que coincide com uma das cenas mais importantes para a compreensão da trama: o momento em que Álvaro, o patrão, assiste a uma conversa entre a empregada e o cocheiro através de uma janela interior. Na cozinha, o casal troca carícias e tece comentários jocosos sobre a repressão sexual dos patrões, tema que resume a intriga do filme. São finalmente interrompidos por Maria dos Prazeres, a patroa, que entra na cozinha e lança um olhar comprometido a Álvaro.
Fig. 122 | 123 | 124. Uma Abelha na Chuva, 1972
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Estabelece-se assim uma interessante dinâmica mediada pela janela: o casal age naturalmente, por se julgar sozinho; Álvaro assiste, achando-se protegido pela caixilharia fragmentada; e Maria dos Prazeres surge inesperadamente no enquadramento, surpreendendo não só o casal como o próprio Álvaro. Tal como acontece em Os Verdes Anos, a ilusão do ecrã é desmantelada pela interferência de um personagem. Fernando Lopes havia já explorado este tema em Belarmino, embora de uma forma mais abstracta e possivelmente metafórica. Na sequência de abertura do filme, em que Belarmino e outros atletas treinam compenetradamente, o olhar da câmara e, por consequência, do espectador, raramente é directo. A imagem é quase sempre enquadrada por uma moldura e filtrada por uma rede. Num filme repleto de entrelinhas e metáforas sobre o panorama político e social dos anos sessenta em Portugal, o recurso a estes elementos parece relacionar-se com uma ideia de clausura e aprisionamento. Esta metáfora é retomada na última cena do filme, quando Fernando Lopes filma Belarmino no meio da multidão através de um gradeamento. Ainda sobre a sequência inicial, um outro plano se destaca: o treino de Belarmino visto daquilo que parece ser uma frecha no exterior do edifício. A imagem de alto contraste não nos permite identificar uma localização exacta, ao mesmo tempo que cria um maior enfoque na acção. O enquadramento é, curiosamente, muito semelhante à forma de um olho, como se estivéssemos a espreitar um conteúdo proibido ou a analisar no microscópio uma amostra de um conjunto maior.
Fig. 125 | 126. Belarmino, 1964
A ausência de janela Uma Abelha na Chuva é um filme sobre repressão, sobre dominadores e dominados. De um lado estão os patrões, Maria dos Prazeres e Álvaro, socialmente opressores mas sexualmente reprimidos. Do outro estão Clara, a empregada, e Jacinto, o cocheiro, socialmente oprimidos mas sexualmente livres. Os primeiros, pela frustração de uma vida submissa e alienada, acabam com a felicidade (e a vida) dos segundos. No final não fica senão a culpa, perpetuando um ambiente já de si decadente e corroído. A janela (ou neste caso, a sua ausência) desempenha um importante papel na construção desta atmosfera. Nos planos fechados raramente se vêem janelas e, nas poucas vezes que aparecem, são tapadas por portadas. A sua ausência é assim símbolo do sufoco e da tensão que impera na vida dos personagens, um fechamento que parece querer denunciar uma mentalidade retrógrada de uma burguesia em decadência.
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Fig. 127 | 128. Uma Abelha na Chuva, 1972
Uma abordagem semelhante é a de Perdido por Cem, onde a ausência de janela é reflexo de uma geração que vivia de noite e atrás de portas. Na sua permanente deslocação em busca de um lugar próprio, Artur visita vários ambientes domésticos, como o quarto que deixara de alugar, o quarto do amigo que o abriga, ou o apartamento que ocupa na ausência de Rui. Todos eles apresentam um carácter hermético sugerindo uma ideia de abrigo secreto. A janela, como em Uma Abelha na Chuva, é negligenciada. Repare-se que, na única vez em que Artur olha pela janela, o que se vê é um fundo negro, neutro e abstracto, como se a cidade parasse assim que a noite caía.
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o corredor (...) o corredor, desde a sua concepção, foi um instrumento da modernidade, relacionado primeiro com a velocidade, depois com o poder, depois com a arregimentação da masculinidade, depois com as estruturas sociais vitorianas emergentes, e, finalmente, no século XX, com a higiene, a industrialização e a mercantilização da vida.1
1. Jarzombeck 2010: 768
Apesar da história do corredor estar ainda por escrever2, o teórico e historiador
2. Evans, [1978]: 86
de arquitectura Mark Jarzombeck, no artigo intitulado “Corridor Spaces”, faz uma abordagem à evolução deste dispositivo desde as primeiras referências à palavra “corredor” até à sua aparente desvalorização na arquitectura contemporânea. Corredor, como o próprio nome indica, é alguém que corre, e durante o século XIV era o nome atribuído, por exemplo, ao olheiro enviado atrás das linhas inimigas, ou ao mensageiro governamental3. Não é por isso surpreendente que o mesmo termo tenha sido aplicado
3. Jarzombeck 2010: 731
ao espaço que tem por função unir diferentes compartimentos, facilitando a circulação. Usados inicialmente na arquitectura militar ou como passagens secretas dentro ou entre edifícios, só no século XVII os corredores começam a ser integrados na habitação, primeiro como simples ligação entre o exterior e a zona central da casa e, mais tarde, como meio de circulação interior, privatizando o quotidiano doméstico e criando o conceito de privacidade. No século XVIII, há uma disseminação do corredor, embora o seu uso não fosse consensual: se em Inglaterra generalizava-se a adaptação aos espaços domésticos, em França era considerado uma fonte de ruído para os quartos4, sendo privilegiada a sua aplicação na arquitectura militar.
4. Jacques-François Blondel cit. Idem: 747
Na Inglaterra vitoriana do século XIX, o corredor tinha como principal função canalizar a circulação de forma a proteger a privacidade dos proprietários, evitando o contacto com os criados. Um facto que Robin Evans acredita ser, em certa medida, responsável pela mudança de uma sociedade que estimava a interacção social para uma sociedade construída à volta de princípios de privacidade e segregação pessoal.5 Desde então, o corredor foi ganhando autonomia e relevância como lugar de interacção social. Inicialmente, era um espaço de prestígio e diferenciação, cuidadosamente decorado, onde os proprietários das habitações recebiam os convidados. Mais tarde, a sua popularização em blocos de escritórios e edifícios governamentais, transformou-o num dispositivo genérico e linear. Contudo, durante o século XX, a imagem do corredor sofre novamente uma profunda alteração: Os desenhadores de hospitais em vez de verem um espaço de higiene e ordem, agora queixavam-se de que corredores “interferem com a comunicação verbal normal, devido às suas propriedades acústicas”. Educadores, em vez de louvar o potencial regulador e democratizador do corredor, agora queixavam-se que era um sintoma de aprendizagem mecanizada. Estudos ambientais, em vez de provar a eficácia social do corredor, agora provavam que era isolado e stressante e que os estudantes que viviam em edifícios corredor “tendiam a afastar-se socialmente”. 77
5. Evans [1978] cit. Idem: 766
Sociólogos, em vez de verem uma tradição de interacção pessoal, viam apenas faixas escuras de 6. Idem: Ibidem
espaço desperdiçado, que traziam à tona o pior das pessoas.6 A história do corredor é assim pontuada por constantes alterações na forma como é encarado pela sociedade, que ora o privilegia como espaço dinâmico e de interacção, ora lhe confere um carácter secundário. Actualmente, parece persistir a associação do corredor a uma ideia de espaço desperdiçado. Nas escolas de arquitectura, os alunos são por vezes incentivados a evitar o corredor, especialmente quando se fala de habitação. Projectos com longos corredores são até motivo de sátira: o projecto de habitação colectiva Estoril-Sol (2004-2010), da autoria de Gonçalo Byrne Arquitectos, que possui corredores de quase 30m de comprimento, foi alvo de uma onda de críticas que chegou a invadir as redes sociais na internet e a imprensa especializada. Por especulação imobiliária ou simples medo do vazio, o corredor perdeu o estatuto que havia conquistado no século XIX. Mas está certamente longe de morrer, e poderá um dia até
7. Idem: Ibidem
encontrar quem o defenda.7 A ideia de corredor associada à claustrofobia, à ausência de luz natural, ao desconforto de percorrer sozinho um espaço meramente funcional, foi igualmente transportada para o imaginário cinematográfico. Frequentemente, uma cena onde um personagem percorre um corredor serve não só para gerar ansiedade dramática, dada a
8. Ahmed, 2012
8 aparente solidão, mas significa geralmente algum tipo de confronto com o desconhecido. Esta
sensação é intensificada no espectador pelo facto de, em cinema, os percursos lhe serem impostos, enquanto que na experiência real do espaço o indivíduo movimenta-se de forma livre e consciente. Por esta razão, o corredor é um espaço muitas vezes associado ao género de terror.
Fig. 129. The Shining, 1980
No filme The Shining (Stanley Kubrick, 1980), a cena em que Danny percorre os corredores do hotel no seu triciclo até encontrar as duas irmãs mortas pelo próprio pai naquele mesmo espaço, é talvez a cena mais icónica do filme, ou pelo menos aquela que é alvo de um maior número de análises, pela tensão e pelo medo que despoleta. Neste caso, para além das razões apresentadas anteriormente, outros factores se acrescentam. Em primeiro lugar, o uso do tracking shot remete para uma ideia de perseguição, que se torna ainda mais assustadora quando o perseguido é uma criança que julgamos inocente e indefesa. Por outro lado, esta não é a primeira vez que acompanhamos Danny neste percurso. Por isso, quando a câmara, no primeiro plano, hesita em continuar a seguilo, criando um momento de suspensão, é sugerido que algo diferente acontecerá. Por fim, o desenho do corredor, composto por várias mudanças de direcção, marca pontos 78
de tensão a cada viragem. O efeito de perspectiva que o corredor permite reforça ainda mais esta ideia, já que a tensão psicológica parece encontrar um paralelo na tensão das linhas que compõem o espaço. Tal efeito é especialmente eficaz quando, como neste caso (e em muitos dos filmes de Stanley Kubrick), a perspectiva é central, de um único ponto de fuga. Apesar desta íntima relação com as atmosferas de terror, o corredor como espaço cinematográfico é transversal a todos os géneros, talvez até um dos mais recorrentes. Em O Sangue (Pedro Costa, 1989), o corredor serve de cenário a uma longa cena de luta onde, mais uma vez, o movimento da câmara e a perspectiva central reforçam a tensão criada no espectador. Devido a essa potencialidade dramática, o corredor é um espaço também frequente nos dramas psicológicos, especialmente quando associados a instituições governamentais como os hospitais, as prisões, as escolas ou as sedes de governo. Em One Flew Over the Cuckoo’s Nest (Milos Forman, 1975), quando o protagonista entra pela primeira vez no hospital psiquiátrico, o corredor parece ser uma metáfora para a jornada que acabara de iniciar e que conduzirá para a sua progressiva degradação psicológica. Por outro lado, longos corredores que avançam em diferentes direcções são associados a uma ideia de labirinto, que provoca um sentimento de desorientação. O filme The Shining é novamente uma referência, não só pela sequência já referida, mas também pela sequência final, em que Danny é perseguido pelo pai num jardim exterior em forma de labirinto.
Fig. 130. One Flew Over the Cuckoo’s Nest, 1975 Fig. 131. The Shining, 1980
Mesmo quando não estão directamente associados a uma situação de complexidade psicológica ou forte carga dramática, os corredores continuam a marcar presença no espaço cinematográfico, até nas meras conversas de corredor, como o famoso diálogo protagonizado por John Travolta e Samuel L. Jackson em Pulp Fiction (Quentin Tarantino, 1994).
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O corredor no Novo Cinema Pela dimensão psicológica e pelas mensagens subtis que continham, a maioria dos filmes do novo cinema português utilizava o corredor, não como cenário de uma acção mais ou menos complexa, mas como elemento de reforço na construção de atmosferas e, por vezes, de metáforas. O corredor como tensão dramática Na sequência inicial de Belarmino, um travelling pelo corredor do estádio de Alvalade apresenta-nos o personagem. Belarmino avança confiante, preparando-se para o combate. O seu andar é leve e confunde-se com uma dança, um traço muito particular, de acordo com o testemunho de Fernando Lopes: Havia nele uma ligeireza física que era rara na maioria dos portugueses. Pelo facto de ele ser boxeur, andava na rua de uma maneira que os portugueses não andavam. Os portugueses 9. Excerto da entrevista a Fernando Lopes, realizada pelo projecto de investigação “Ruptura Silenciosa”, em Setembro de 2011
andavam como fantasmas ambulantes na rua. Ele não, ele mexia-se, era como se estivesse a dançar na rua, e isso era fantástico. Introduzia um elemento de subversão no que nós estávamos habituados a considerar como a cidade, a Lisboa...9
Fig. 132 | 133. Belarmino, 1964
O mesmo corredor volta a aparecer no filme, no sentido inverso: se no primeiro plano, Belarmino era filmado de frente, em movimento, com as portas abertas a iluminar o espaço e a acentuar o ritmo, agora vemos Belarmino de costas num plano obscurecido, a dirigir-se para o único ponto de luz, provavelmente numa referência simbólica à luz ao fundo do túnel.
10. Fernando Matos Silva in Andrade (coord.), 1996: 35
Não é de uma grande beleza o travelling sobre a mesa da sala de jantar em que Belarmino 10
percorre para chegar à luz, ao espaço, ao grande ringue onde ele se sentia um grande lutador?
Também em Um Abelha na Chuva, Fernando Lopes apresenta o personagem principal através de um travelling que o acompanha pelo corredor. Desta vez, o andar optimista de Belarmino é substituído pelo tom grave e desencantado de Maria dos Prazeres. Enquanto caminha, o ritmo é mais uma vez marcado pelas portas que ficam para trás e pelo som dos seus passos. Em off, um discurso na terceira pessoa, mas na voz de Maria dos Prazeres, explica o motivo da tensão: Avançava pelo braço do pai toda de branco, entre o murmúrio do órgão e vozes sussurrantes. Tinha a certeza de que ia a sorrir, mas dentro de si nascia um grito, um grito sempre reprimido. E agora, volvidos vinte anos, sentia bem que ainda o não soltara. 80
A mesma cena é repetida na sequência final do filme, completando uma elipse que reforça a metáfora da repetição e da monotonia daquele universo estagnado, e para o qual não parece haver solução. Planos fixos de corredores vazios são também frequentes em Uma Abelha na Chuva. Sendo o corredor, por definição, um lugar de circulação e movimento, quando deserto cria um momento de suspensão, sabemos que algo está na eminência de acontecer. Estes planos estão quase sempre associados a Clara e Jacinto – as suas vozes são muitas vezes sobrepostas à imagem – remetendo para um estilo de vida burguês em que os corredores são os espaços de serviço por onde circulam os criados. O facto de estarem vazios, parece relacionar-se igualmente com a clandestinidade a que está votado o amor deste casal.
Fig. 134 | 135. Uma Abelha na Chuva, 1972
A cena de maior erotismo de O Mal Amado, talvez até de todo o Novo Cinema português, tem lugar no corredor do moderno apartamento de Inês. Enquanto João avisa a mãe por telefone de que não irá jantar a casa, Inês caminha lentamente pelo corredor, de corpo despido, até se ajoelhar aos pés de João. A deslocação do acto sexual do quarto para o corredor parece ser um gesto subversivo, reforçando a perversão de um amor tão doentio e perigoso como o de Inês.
Fig. 136 | 137. O Mal Amado, 1974
O corredor como desorientação Em Os Verdes Anos, Júlio, recém-chegado à cidade, viaja de metro pela primeira vez. Acompanhado por um desconhecido que se disponibiliza a ajudá-lo, Júlio atravessa desconfiado os corredores subterrâneos, onde um grupo de jovens corre em sentido 81
contrário, num misto de festejo e manifestação, fazendo lembrar a cena inicial de BlowUp (Michelangelo Antonioni, 1966). Quando volta à superfície, Júlio sente-se perdido. A transladação directa de um lugar para outro através dos corredores do metro, sem a possibilidade de identificar pontos de referência que lhe permitam reconstruir mentalmente o percurso, provocam em Júlio um sentimento de desorientação.
Fig. 138 | 139. Os Verdes Anos, 1963
O mesmo sentimento parece tomar conta de João em O Mal Amado, quando visita o local de trabalho pela primeira vez. Enquanto procura o seu posto, acaba perdido num corredor monótono de portas iguais. João hesita em frente a cada uma delas, não encontrando qualquer diferença que as distinga. De facto, este edifício de escritórios, de traços modernistas, pertence a uma época em que o corredor perde a sua autonomia enquanto espaço e passa a assumir um carácter meramente funcional. A desorientação experimentada por João naquele corredor é também uma representação da sua própria desorientação em relação ao futuro.
Fig. 140 | 141 | 142. O Mal Amado, 1974
82
III. ESPAÇO PSICOLÓGICO
reflexos Diante de mim estava uma pessoa que me fitava com uma inteira individualidade que vivesse em mim e eu ignorava. Aproximei-me, fascinado, olhei de perto. E vi, vi os olhos, a face desse alguém que me habitava, que me era e eu jamais imaginara.1
1. Ferreira, [1959]
O tema do reflexo do indivíduo no espelho foi sempre alvo de múltiplas interpretações e tema frequentemente abordado em diversos campos, como a literatura, a filosofia ou a psicologia. Desde a Antiguidade que se acreditava que o espelho captava a alma de quem o observasse2. Partindo desta metáfora, o espelho é um objecto ao
2. Teyssot, 2010: 248
qual são atribuídos significados subjectivos e simbólicos, representando quase sempre questões de identidade, de reconhecimento do “eu”. No campo da psicanálise, é o tema central de algumas das questões levantadas por Sigmund Freud e Jacques Lacan. Freud denomina de narcisismo o processo através do qual o sujeito assume a imagem do seu próprio corpo como sua e se identifica. Este novo conceito, desenvolvido numa fase mais tardia da investigação de Freud, viria a transformar radicalmente a sua teoria do Ego, que se torna agora um ‘objecto’, uma ‘imagem’ um vestígio das identificações passadas diferente do Ego da inibição das pulsões e do controlo da motricidade.3 Jacques Lacan recupera o legado de Freud e propõem o
3. Mannoni, 1968: 163
estádio do espelho, que identifica como sendo a fase da formação da identidade em que a criança se vê ao espelho e toma consciência da sua imagem, do seu corpo como totalidade unificadora. O espelho é um fenómeno-limiar, que marca os limites entre o imaginário e o simbólico. (...) Numa primeira fase confunde a imagem com a realidade, numa segunda fase apercebe-se que se trata de uma imagem, numa terceira compreende que é sua. Neste ‘assumir jubilatório’ da imagem, a criança reconstrói fragmentos ainda não unificados do próprio corpo, mas o corpo é reconstruído como algo de externo.4
4. Eco, [1959]: 12
Na literatura, são vários os exemplos em que o autor se serviu da metáfora do espelho como base para narrativas e reflexões. O escritor brasileiro Machado de Assis escreve, em 1882, um conto intitulado O Espelho, onde se propõe a traçar, como o próprio subtítulo da obra indica, um esboço de uma nova teoria da alma humana. Conta a história de um homem que, ao ser nomeado alferes, passa a ser identificado e reconhecido por este título em vez do seu nome próprio – O alferes eliminou o homem.
5
Constrói, a partir daí, uma imagem sua baseada na imagem que os outros têm de si. Um dia, depois de uma longa temporada sozinho, em que a ausência dos outros lhe provoca uma progressiva crise de identidade, decide olhar-se ao espelho. A imagem que vê não a sente como sua, afigura-se-lhe incompleta: A realidade das leis físicas não permite negar que o espelho reproduziu-me textualmente, com os mesmos contornos e feições; assim devia ter sido. Mas tal não foi a minha sensação. Então 87
5. Assis, [1882]
tive medo; atribuí o fenômeno à excitação nervosa em que andava; receei ficar mais tempo, e enlouquecer. (...) De quando em quando, olhava furtivamente para o espelho; a imagem era a 6. Idem
mesma difusão de linhas, a mesma decomposição de contornos...6 Decide desesperadamente voltar a vestir a farda de alferes: o vidro reproduziu então a figura integral; nenhuma linha de menos, nenhum contorno diverso; era eu mesmo, o
7. Idem
alferes, que achava, enfim, a alma exterior.7 Através da metáfora do espelho, Machado de Assis defende assim a existência de duas almas, uma interior e outra exterior, sendo que a última é mutável e pode representar um objecto, um homem, um evento, ou qualquer outra coisa que complete esse indivíduo. A perda de uma dessas almas, de uma dessas metades que constituem o sujeito, provoca necessariamente uma crise existencial. O escritor britânico Lewis Carroll leva ainda mais longe esta metáfora na obra Through the Looking-Glass, a sequela do seu famoso livro Alice’s Adventures in the Wonderland. Nesta história, que em 1928 Walter Lang viria adaptar ao cinema, Alice não apenas se olha ao espelho como o atravessa, descobrindo um novo mundo em que tudo funciona de maneira inversa, um mundo de sonho que muitos analisam como sendo o mundo do seu inconsciente. Em arquitectura, o uso do espelho altera a percepção do espaço, deturpando a realidade e criando imagens ambíguas capazes de transformar profundamente as características de um lugar. O desenho, as dimensões e até mesmo a luminosidade de um determinado espaço ganham novas interpretações na presença de uma superfície em espelho, muitas vezes responsável por provocar desorientação no utilizador. Por outro lado, pode realçar determinados pormenores do espaço ou estabelecer relações com o exterior. Na Pousada de Santa Bárbara (1968-71), o arquitecto Manuel Taínha coloca um espelho na sala de estar, para que quem estiver de costas para a janela possa apreciar igualmente a paisagem. A paisagem não é obviamente a mesma do que aquela observada pela janela, mas surge por entre as pessoas que percorrem o espaço e por aqueles que aparecem também reflectidos. O espelho ganha assim um carácter de duplicação da paisagem quase cinematográfico, ao mesmo tempo que origina a criação de um jogo entre vultos, movimentos, reflexos e até mesmo entre troca de olhares.
Fig. 143 | 144. Pousada de Santa Bárbara (Manuel Taínha 1968-71)
88
O artista norte americano Dan Graham, cujas obras se encontram no limite entre a escultura e a arquitectura, questiona modos de percepção através do uso de superfícies reflectoras. Em Alteration to a Suburban House (1978), Graham constrói a maquete de uma típica casa americana de subúrbio, substituindo a fachada por um plano de vidro e colocando um espelho ao centro que divide o espaço doméstico em duas secções: a privada e a pública. Como o espelho está voltado para a fachada de vidro e para a rua, reflecte não só o interior da casa, como também a rua e o contexto exterior da casa.8 O espelho assume assim a função perversa de expor a interioridade da casa, anulando-a. O dispositivo converte-se numa representação pública da domesticidade convencional 9, que
8. Dan Graham in Colomina, 2006:195 9. Idem: 197
ao mesmo tempo que expõe publicamente o habitante, transforma cada transeunte num intruso.
Fig. 145. Alteration to a Suburban House (Dan Graham, 1978)
O uso do espelho em arquitectura, contudo, nem sempre significa a exposição forçada da intimidade do indivíduo. Pelo contrário, os reflexos podem inclusivamente reforçar uma ideia de interioridade. Georges Teyssot, no texto intitulado Dis-eases of the Domicile, questiona-se sobre a existência de uma “arquitectura de todos os dias”, propondo uma análise das doenças ou padecimentos que poderão estar relacionados com o espaço doméstico, partindo da premissa que conceitos como “conforto” e “bem estar” começaram por ser psicológicos. Distingue as doenças relacionadas com o tempo – ansiedade, nostalgia, melancolia – e com o espaço – claustrofobia, agorafobia, inquietação, homesickness (saudades de casa) – e destaca o tédio como a doença da “arquitectura de todos os dias” mais comum e menos explorada. O tédio move-se para além dos limites físicos do corpo, para se revelar no ‘intérieur’, nos quartos interiores da domesticidade, onde o espaço íntimo esconde o corpo com as formas inquietantes da familiaridade.10
10. Teyssot, 2010: 155
Teyssot afirma que o tédio pode ser considerado uma falha de felicidade, resultado de uma decadência, um desmazelo do instante no intervalo da duração.11 Uma vez que a felicidade é um instante, ou seja, um tempo condensado, a tentativa de prolongar essa felicidade pode causar decepção e, consequentemente, tédio. Partindo deste princípio, Teyssot explora a importância do espelho no espaço interior, espaço que se transforma num lugar de reflexão, no mundo da consciência interior:
89
11. Idem: 161
Não há felicidade se se está sozinho: a felicidade tem de ser partilhada, necessita de um público. Se não houver mais ninguém, precisamos de um espelho para nos reflectirmos a nós 12. Idem: Ibidem
próprios.12 Evoca, como exemplo, a aguarela Quarto de Berlim (cerda de 1820-25) de Johann Erdmann Hummel, em que um grande espelho é colocado no centro da composição, a reflectir uma porta fechada no lugar onde deveria estar o observador. Teyssot defende que se o sujeito não aparece representado, então ele passou a fazer parte do próprio quarto. E as janelas, ao se reflectirem nos espelhos e criarem uma certa ambiguidade – janelas e espelhos transformam-se num só – realçam a ideia de que o mundo exterior não existe, é apenas umas representação. Esta teoria vai de encontro ao
13. Theoor Adorno cit. Idem:163
filósofo dinamarquês Søren Kierkeggard, o flanêur que se passeia no quarto13 que Teyssot define como o primeiro filósofo da intimidade, e para quem o sujeito é a única verdade e a realidade é apenas aquilo que ocorre dentro do quarto.
Fig. 146. Quarto de Berlim (J. E. Hummel, 1820-25)
O cinema toma partido quer das características físicas quer do conteúdo psicológico inerentes ao espelho e aos seus reflexos. Tal como em arquitectura, o espelho é usado em cinema para aumentar a profundidade de campo ou alterar a percepção espacial. Em Duck Soup (Leo McCarey, 1933), por exemplo, um dos famosos filmes dos irmão Marx, Harpo choca violentamente contra um espelho por confundi-lo com uma porta. O espelho parte-se e revela que do outro lado existe um quarto simétrico. Quando Groucho entra em cena, Harpo aproveita a coincidência, coloca-se no outro quarto e simula os movimentos do irmão. Desta vez, é Groucho que confunde a porta com o espelho, até ao momento que Chico aparece e acaba com a farsa.
Fig. 147 | 148 | 149. Duck Soup, 1933
Por outro lado, o cinema serve-se igualmente da capacidade simbólica do espelho para intensificar a carga psicológica da história e melhor caracterizar os personagens. Um dos exemplos mais significativos é a segunda longa-metragem de Agnés Varda, Cléo de 5 à 7 (1962). O filme acompanha, em tempo real, noventa minutos da vida de uma 90
jovem cantora da cidade de Paris, no dia mais longo do ano (na realidade, porque é o dia do Solstício de Verão, e no sentido metafórico, porque é o dia em que vai receber o resultado de um exame médico que ditará o seu futuro). Desde que sai de um encontro com uma vidente até ao momento que entra no hospital, acompanhamos os passos de Cléo, que oscilam permanentemente entre opostos: superstição e ciência, natural e artificial, e principalmente, realidade e aparência. Durante esse período, assistimos a uma progressiva alteração da imagem que Cléo tem de si mesma, que coincide com um progressivo desprezo relativamente à imagem que os outros têm de si. Esta mudança é materializada através dos espelhos que, na primeira parte do filme, são quase uma obsessão. Quando Cléo sai de casa da vidente, tenta recompor-se do choque e olha-se num espelho que está colocado em frente a outro, o que provoca uma sucessão infinita de reflexos seus. Para Cléo não é apenas olhar para si mesma, assumindo uma expressão corajosa; ela observa-se da mesma maneira que é vista pelos outros. De facto, a sua expressão nasce daquilo que ela crê serem as expectativas dos outros em relação a si. Cléo está a tornar-se a percepção que outros têm dela, que a influenciam para mudar de modo a influenciar outros, num infinito e repetitivo padrão como o dos espelhos.14
14. Nelson:1983: 739
Fig. 150 | 151. Cléo de 5 à 7, 1962
Mais tarde, numa loja de chapéus, Cléo aparece reflectida em dois espelhos, que nos revelam diferentes vistas do seu rosto: uma de frente, que poderá ser interpretada como a imagem que Cléo tem de si mesma, e outra de perfil, que corresponderá à imagem que os outros têm dela. Uma vez mais, Cléo observa-se com a consciência (ou expectativa) de estar a ser observada. Mas o seu reflexo vai sendo cada vez mais fragmentado, atingindo o clímax no momento em que Dorothée, uma amiga de Cléo, parte acidentaltmente um espelho. A sua imagem desfaz-se em pequenos pedaços, libertando-a finalmente da obsessão que a atormentava e permitindo-lhe aprender a ser ela mesma. No limite, talvez possamos afirmar que o próprio cinema é espelho, uma vez que reflecte um contexto, as intenções do autor e, muitas vezes, a sua própria vida. Zerkalo (Andrei Tarkovsky, 1975), título que em português significa “espelho”, é um dos exemplos que melhor ilustram este conceito. O filme baseia-se em episódios reais da vida de Tarkovsky e da sua família e são-nos apresentados, não através de uma lógica cronológica, mas da forma que a própria memória opera, fragmentada, por vezes difusa, e organizada segundo um sistema de relações que nem sempre é completamente perceptível. Os acontecimentos são ainda intercalados com a representação de sonhos e com fragmentos de documentários, e os espelhos são muitas vezes usados para fazer 91
essa transição. O momento presente, isto é, aquele em que o protagonista está a evocar essas memórias, é um momento de especial lucidez que é comummente interpretado como o instante da sua morte. Esse protagonista, quando adulto, nunca entra em campo, criando a sensação de que estamos nós mesmos a reviver aquelas memórias. Tal fenómeno reforça a ideia de que os filmes são também o espelho de outras vidas e, por vezes, o nosso próprio reflexo. (...) porque o cinema, ou mais genericamente a arte, podem fazer nos ver – e podem fazer com que nos vejamos a nós próprios – com uma lucidez particular, tal como sucede ao protagonista de ‘O Espelho’ no momento da sua morte; e essa lucidez pode levar-nos, mesmo estando longe do contexto histórico e geográfico do filme, a reconhecer nas vidas retratadas – que 15. Graça Moura, [s.d]
por sua vez espelham outras vidas – a nossa própria vida, passada ou futura.15
Fig. 152 | 153. Zerkalo, 1975
Reflexos no Novo Cinema Em todos os filmes do Novo Cinema Português escolhidos para esta análise podemos encontrar cenas em que os reflexos no espelho fazem parte da composição da imagem. Embora alguns exemplos sejam mais ricos do ponto de vista psicológico e, por isso, mais pertinentes para a abordagem neste capítulo, quase todos os protagonistas, em algum momento dos respectivos filmes, se contemplam através do seu reflexo. De entre os exemplos escolhidos, e de acordo com a análise anteriormente descrita, é possível dividi-los em dois temas: os que, através do reflexo, nos revelam o seu íntimo, o seu outro “eu” reprimido, numa abordagem mais próxima da psicanálise; e os que, à semelhança de Cléo de Agnés Varda, se olham na expectativa de consolidar uma imagem exterior, que não corresponde à sua imagem real, mas à imagem que querem projectar para os outros. Por outro lado, a ideia de que o filme é também ele um reflexo, principalmente do seu realizador, parece estar presente na maioria dos filmes portugueses deste período, já que a intenção predominante era a de tentar expor uma realidade pouco conhecida do cinema até então, através de metáforas e “entre-linhas” que não comprometessem a sua passagem pela censura. Reflexo como o outro “eu” O psiquiatra Enrique Pichon (1907-1977) afirmava que a personalidade se constrói a partir da interação do eu com o outro que existe dentro de nós, um outro ‘eu’ com que falamos e discutimos enquanto pensamos. Vários exemplos no Novo Cinema parecem ilustrar esta teoria. Em Os Verdes Anos, Ilda é a personagem mais 92
sonhadora, mais optimista, aquela que constrói mais expectativas em relação ao futuro. A cena que melhor a caracteriza é o momento em que Ilda, na ausência dos patrões, convida Júlio a passar uma tarde com ela no apartamento onde trabalha. No quarto da “senhora”, Ilda experimenta os seus vestidos e desfila para Júlio, que assiste confuso ao espectáculo. Enquanto se olha ao espelho, explica a que ocasião se adequa cada um dos vestidos e justifica a necessidade da patroa de ter um tão grande número de sapatos. O reflexo de Ilda no espelho, é o reflexo da sua ambição, da sua vontade de ascender socialmente e viver uma vida diferente da dos seus pais. Um reflexo de uma faceta que Júlio desconhecia e que será um dos motivos para o desfecho trágico desta história.
Fig. 154 | 155 | 156. Os Verdes Anos, 1963
Como já referido anteriormente, Uma Abelha na Chuva é um filme sobre desejos reprimidos – no caso de Maria dos Prazeres – e desejos oprimidos – no caso de Jacinto e Clara. Escondido no contexto social, é nos espelhos que os personagens se confrontam com esse seu lado mais íntimo. Maria dos Prazeres, que constrói a imagem de uma mulher fria, independente e despreocupada com a aparência, quando sozinha em frente ao espelho parece abraçar-se a si própria16, enquanto hesita na escolha da roupa mais
16. Coelho, 1983: 38
adequada para levar ao teatro. Deste modo, Maria dos Prazeres revela uma sensualidade que lhe desconhecíamos e que não transporta para além do espelho e das paredes do seu quarto. O espelho adquire assim um carácter libertador, uma saído do ‘eu’ para a expressão de um desejo ou de uma aspiração.
Fig. 157 | 158 | 159. Uma Abelha na Chuva, 1972
Da mesma forma, a cena em que finalmente presenciamos uma manifestação de amor entre o casal de empregados, amor esse que até agora nos tinha sido apenas sugerido, recorre igualmente ao uso de espelhos. Não no quarto, mas no espaço que lhes é mais íntimo – as cavalariças – Jacinto declara o seu amor a Clara, repetindo o monólogo de Amor de Perdição (aliás, é aqui que percebemos que Jacinto era o actor principal da peça a que Maria do Prazeres fora assistir, facto que justifica a sua demora frente ao espelho). Para conferir mais lirismo à cena, ou para escapar ao lápis da censura, a cena de sexo entre Clara e Jacinto é parcialmente revelada pelos espelhos e sugerida pelo som. 93
Fig. 160 | 161. Uma Abelha na Chuva, 1972
Em O Recado, é ao espelho que Marta tenta perceber qual o caminho que deve escolher. Depois de receber um bilhete de Francisco para, à luz dos velhos tempo, marcarem um encontro, Marta senta-se demoradamente em frente ao espelho. Age como se o seu reflexo fosse um outro sujeito, como se de repente existissem efectivamente duas Martas, uma burguesa e outra revolucionária. Esse comportamento é ainda mais evidente quando, depois de fitar, tocar e beijar a sua própria imagem, Marta termina com a pergunta “Vais tu ou vou eu?”, numa perfeita aproximação à teoria de Pichon. Ao falar consigo mesma, Marta tenta racionalizar os sentimentos, já que através das palavras torna-os aparentemente mais inteligíveis.
Fig. 162 | 163. O Recado, 1972
Inês, a chefe e amante de João em O Mal Amado, é também um personagem de personalidade dupla, embora ao contrário de Marta, não esteja decidida a optar por uma delas. Pelo contrário, Inês esconde o seu verdadeiro “eu”, doentio, agressivo e perverso, por detrás de uma máscara de mulher sofisticada e bem sucedida. Esse lado mais sombrio fica completamente a descoberto na cena final do filme em que Inês, ainda mascarada de Alma do Auto de Gil Vicente, dispara contra João dizendo: “nós não admitimos traições”. O sujeito plural desta frase não deixa de ser curioso, podendo referir-se simultaneamente às duas facetas de Inês ou, numa leitura mais abrangente, a Inês e ao Estado, intolerante face às deserções. O uso do espelho nesta cena é fundamental para atingir essa densidade simbólica: ao mesmo tempo que duplica a imagem de Inês, mostra-nos um João enclausurado, preso entre Inês e uma estatueta africana, metáfora do colonialismo.
Fig. 164 | 165. O Mal Amado, 1974 94
Reflexo como imagem exterior Apesar dos oito anos que os separam, O Cerco e Cléo de 5 à 7 são filmes muito próximos do ponto de vista temático. Ambos têm como protagonista uma mulher, característica pouco comum no cinema do período e do contexto em que se inserem. Ambas estão numa fase particularmente delicada da sua vida. E finalmente, ambas se preocupam obsessivamente com a imagem que os outros têm de si. Mas se para Cléo os espelhos vão perdendo importância, de tal forma que deixamos de os ver, Marta começa e termina o filme diante de um, arranjando o cabelo ou colocando as sardas postiças. Marta necessita de se afirmar, de provar que consegue ser uma mulher independente numa sociedade predominantemente machista, e a imagem exterior torna-se fundamental. (...) olha-se a si como nós a olhamos, ou seja, vendo-se como quem é vista, cultivando a sua beleza tanto quanto nós, espectadores, a apreciamos, e tal como os vários homens que a circundam e a desejam.17
17. Areal, 2011: 475
Fig. 166 | 167 | 168 O Cerco, 1970
Da mesma forma que, para se consagrar, Cléo cultiva uma imagem de diva da música, Marta tenta a sua sorte no mundo da publicidade. Apesar das suas ambições, ambas caem na tentação de ceder ao preconceito social que vê a mulher como um mero objecto de desejo. Também Marta visita uma loja de chapéus, onde experimenta vários modelos em frente a um espelho. Acabado o seu casamento, a jovem mulher quer assumir uma nova vida, e procura nos chapéus o visual mais adequado. Embora com menos incidência do que em O Cerco, outros filmes jogam com este conceito do reflexo como a imagem ideal que o personagem quer projectar para os outros. Essa imagem corresponde às expectativas sociais que o sujeito se sente na obrigação de concretizar, mais do que a um objectivo pessoal. É o caso de João de O Mal Amado, que após ter abandonado a faculdade, e ainda a viver na casa dos pais, é pressionado a trabalhar numa empresa. No seu primeiro dia de trabalho, acompanhamolo desde que se levanta até ao momento em que sai de casa. Em frente ao espelho, João passa da imagem que tem de si mesmo – fazendo expressões cómicas enquanto lava a cara com sabão – para a imagem que os pais esperam que ele tenha – apertando seriamente a gravata. Mas encontra aí a primeira dificuldade, não conseguindo finalizar o nó, que quase o asfixia.
Fig. 169 | 170 | 171. O Mal Amado, 1974 95
FILME COMO REFLEXO Como obra de arte, qualquer filme é sempre um reflexo da pessoa que o idealizou. Num contexto em que se servia da arte para denunciar um governo opressor e uma sociedade estagnada, esse reflexo parece tornar-se ainda mais expressivo. Podemos encontrar, na maioria dos filmes, pequenos reflexos da vida dos realizadores. Paulo Rocha, no seu Os Verdes Anos parece reflectir em Júlio o choque cultural que encontrou quando chegou à capital: para os lisboetas, um provinciano do norte, para Paulo Rocha, uma Lisboa provinciana sem o saber.18 Os próprios cenários, ainda 18. E eu? No meio destas sereias (católicas) da capital? Eu, quando cheguei, trazia uma medonha arrogância portuense. Lisboa era a província, a capital era o Porto. Era Oliveira no Cinema, o T.E.P. no Teatro, a Agostina no romance, o Távora na Arquitectura, até a Pintura, até a Música. Só o Cesariny salvava a honra de Lisboa. (...) achava-me já um estrangeiro (do Norte) e o salazarismo uma dança lisboeta, um anacronismo. Paulo Rocha [1990] in Melo, 1996: 36
que, mais do que uma escolha, tenham sido uma imposição do reduzido orçamento, são os lugares que Paulo Rocha frequentava habitualmente: o apartamento em que Ilda trabalha era o apartamento dos seus pais, e o café situado no mesmo cruzamento era o Vává, conhecido pelas tertúlias que reuniam os realizadores, escritores e outros artistas daquele período. O Telles anunciou-me que o Paulo ia fazer o primeiro filme das suas produções – Os Verdes Anos. E que esse filme se passava nas Avenidas Novas e arredores. Fiquei zangado. As Avenidas Novas eram o meu território natural e o ‘Vává’ o meu poiso quotidiano. Como é que um intruso, do Norte e ainda por cima do Furadouro, se atrevia a roubar-me aquilo que eu considerava minha propriedade privada?19
19. Fernando Lopes in Melo (coord), 1996: 50
Também de Belarmino se diz ser um reflexo de Fernando Lopes, teoria que o próprio realizador confirma: Eu achava que o Belarmino - e agora vou utilizar aqui um chavão - podia ser uma metáfora de mim mesmo e do que era o país naquele momento. Quer na filmagem, quer na montagem eu tomo o partido do Belarmino, estava do lado dele, identificava-me com ele: era como se eu fosse o alter ego dele.20
20. Idem
Os espaços de Belarmino são também os espaços de Fernando Lopes e da sua geração – e de outra maneira o realizador não conheceria tão bem o boxeur. Os cafés, o cinema e, principalmente, o Hot Club eram, à semelhança de Vává, lugares de eleição de uma elite intelectual que convivia perfeitamente com o bas-fond lisboeta. É neste sentido que Baptista-Bastos afirma que Belarmino não é apenas o reflexo de Fernando Lopes: O rosto do Belarmino é o nosso rosto. Um, múltiplos rostos, todos eles enleados, com extrema doçura, pela câmara do Cabrita. Quando o Belarmino vai a sair do túnel para entrar no ringue - nós estamos com ele, estamos com o coração opresso e a lágrima nos olhos. Nós somos 21
ele e vamos para a luta. 21. Baptista-Bastos in Andrade (coord.), 1996: 52
Todos os filmes aqui abordados são, em larga medida, o reflexo de uma geração e das suas inquietações. Em O Cerco, vemos uma cidade que se queria mais moderna, mas que continuava presa à tradição e aos costumes. Em O Recado, da perseguição de Francisco pela máfia, subentende-se a perseguição de Fonseca e Costa pela polícia política. Em O Mal Amado, a morte de João simboliza a morte de muitos daqueles que 96
partiam para a guerra colonial. Mas será talvez Perdido Por Cem que melhor reflecte uma Lisboa sem esperança, em que a câmara, confessional e triste, é a personificação de uma geração que cresceu sob a sombra constante da ditadura. Aquele que Bénard da Costa diz ser o mais português de todos eles.21 21. Fernando Lopes in Andrade (coord.), 1996: 73
97
projecções A linguística define metáfora como recurso expressivo que consiste em usar um termo ou uma ideia com o sentido de outro com o qual mantém uma relação de semelhança1. Quando
1. Dicionário Online Porto Editora
atribuímos um valor metafórico a determinado objecto, estamos a atribuir-lhe uma interpretação pessoal a partir da comparação com outros objectos que conhecemos. Estamos, por isso, a projectar nele códigos culturais, experiências passadas, crenças, e outros factores que contribuem para a nossa complexidade enquanto indivíduo e enquanto parte de uma determinada sociedade. Em arquitectura, a metáfora está sobretudo associada à forma e à imagem do edifício: ouvimos dizer, por exemplo, que a Casa da Música (Rem Koolhaas, 2005) é um meteorito que aterrou na Boavista, e os arquitectos possivelmente associarão essa imagem à ruptura que o projecto estabeleceu com a arquitectura tradicional da cidade do Porto; ou que a Igreja do Marco de Canaveses (Álvaro Siza, 1990-1997) mais parece 2 um quartel de bombeiros , por não corresponder à imagem generalizada de um edifício
religioso. No livro que viria a tornar-se uma das mais importantes bases teóricas do Movimento Pós-Moderno – The Language of Post-Modern Architecture – Charles Jencks expõe a importância da metáfora como modo de comunicação em arquitectura. Para
2. Num artigo publicado no segundo número da fanzine “Friendly Fires”, intitulado “Com o Sagrado não se Brinca”, Francisco Rocha parte dos comentários que se generalizaram em torno da Igreja e propõe um quartel de bombeiros para aquele espaço, sem alternar o projecto inicial de Álvaro Siza.
Jencks, o que falhara no Movimento Moderno fora sobretudo a univalência, a pretensão a uma gramática universal que desprezava o lugar e a função. Propunha, em alternativa, uma dupla codificação da arquitectura, inteligível não apenas para uma elite. As pessoas percebem inevitavelmente um edifício em relação a outro edifício, ou em relação a um objecto semelhante, em resumo, eles percebem no como uma metáfora. Quanto menos um edifício moderno lhes parecer familiar, mais elas tendem a compará-lo metaforicamente àquilo que conhecem. Esta aproximação entre duas experiências é a base de todo o pensamento, e particularmente do pensamento criativo.3
3. Jencks, [1977]: 42
Jencks explica que estas relações são subjectivas e profundamente dependentes de preceitos culturais. Assim como no desenho cabeça de pato/cabeça de coelho – em que os que lêem da esquerda para a direita vêem um pato, e os que lêem no sentido inverso vêem um coelho – também a leitura dos edifícios varia consoante a cultura e a sociedade em que o indivíduo se insere. De forma a ilustrar a ambiguidade da metáfora em arquitectura, Jencks elege como exemplo a Ópera de Sidney (Jorn Utzon, 1957-74), uma obra alvo das mais variadas interpretações, tanto pelo público como pelos meios especializados. As suas formas insólitas e orgânicas facilmente evocam outros objectos: o próprio arquitecto relacionou-o com os gomos de uma laranja e a imprensa generalizou a metáfora das velas brancas dos barcos que se avistam no porto de Sidney. Houve quem a comparasse a um “acidente de carro sem sobreviventes”, a “flores a desabrocharem” ou a “tartarugas a fazerem amor”. A radicalidade da sua forma poderia ser facilmente interpretada como 99
símbolo de uma Austrália livre da dependência anglo-saxónica, e as metáforas teriam então uma conotação positiva. Mas como a nossa percepção é moldada e modificada por 4. Idem: 45
códigos fundados sobre experiências anteriores4, é quase impossível, pelo menos para os australianos, entender este edifício sem evocar o escândalo que lhe está associado: uma obra projectada por um europeu e vinte vezes mais cara do que o previsto. Neste caso, as mesmas metáforas adquirem conotações negativas. Por outro lado, os modernistas criticam a Ópera segundo outra razão: a falta de comunicação literal, uma vez que a forma exterior do edifício não permite identificar e diferenciar cada um dos espaços que alberga, como os teatros, os restaurantes e as salas de exposições.
Fig. 172. Ópera de Sidney (Jorn Utzon, 1957-74) Fig. 173. Caricatura realizada por estudantes de arquitectura
A capela de Notre Dame-du-Haut (Le Corbusier, 1950-55), em Ronchamp, é para Jencks um dos melhores exemplos de uma linguagem metafórica sugerida. O poder deste edifício deve-se em parte ao seu carácter sugestivo, a essa capacidade de significar 5. Idem: 48
várias coisas ao mesmo tempo (...)5 como, por exemplo, duas mãos juntas, um pato ou a cabeça de uma freira. As significações atribuídas a este edifício funcionam ao nível do inconsciente: o talento do artista depende da sua capacidade de estimular a nossa rica colecção
6. Idem: Ibidem
de imagens visuais sem que tenhamos consciência das suas intenções.6
Fig. 174. Metáforas de Ronchamp (Hillel Schiocken) 100
Em suma, Jencks apela a que os arquitectos recorram de novo a um sistema de ordem semântica, às regras de uma gramática arquitectónica que parecia existir na Arquitectura Clássica, ao elogio da metáfora. (…) a arquitectura deve codificar os seus edifícios, recorrer à redundância dos signos e das metáforas populares, se ela quer que a sua obra transmita as mensagens previstas e sobreviva às mutações impostas pela perpétua renovação de códigos.7
7. Idem: 50
O crítico e historiador de cinema Marcel Martin escreve, em 1955, um livro intitulado Le Langage Cinématographique, onde dedica um capítulo à diferenciação entre metáfora e símbolo em cinema. Para Martin, esta é uma questão primordial, já que a imagem em cinema não depende apenas da vontade do realizador mas sobretudo da actividade mental do espectador, que com ela se relaciona num complexo afectivo e intelectual.8
8. Martin, [1955]: 117
Assim como Jencks defende a pluralidade de significados (dupla-codificação) em arquitecura, Martin refere que a qualidade de um filme se relaciona com os diferentes níveis de leitura que é capaz de desencadear. Estes, por sua vez, estão dependentes do grau de sensibilidade, de imaginação e de cultura do espectador. A propósito da imagem fílmica poder-se-ia falar, na realidade, de um conteúdo ‘aparente’ e de um conteúdo ‘latente’ (ou ainda de um conteúdo ‘explícito’ e de um conteúdo ‘implícito’), sendo o primeiro directamente legível e o segundo (eventual) constituído pelo sentido simbólico que o realizador quis dar à imagem, ou o sentido que o espectador por si próprio vê nela.9
9. Idem: 118
A partir desta ideia, distingue metáfora como uma significação secundária que é feita a partir da conjugação de duas imagens, enquanto que o símbolo propriamente dito é uma dimensão expressiva complementar provocada pela continuação de uma imagem ou de um acontecimento. A metáfora é assim uma justaposição de duas imagens – a primeira como elemento comum da acção, a segunda como elemento que confere a metáfora – que provoca no espectador um choque psicológico de forma a que este assimile a ideia que o autor pretende exprimir. Está, por isso, dependente do processo de montagem.
Fig. 175 | 176 | 177.O Couraçado de Potemkin, 1925
Martin distingue três tipos de metáforas, embora a essa diferenciação não seja algo estanque, podendo a mesma metáfora ser simultaneamente de diferentes tipos. As metáforas plásticas originam-se numa semelhança ou analogia de estrutura ou de tonalidade psicológica no conteúdo puramente representativo das imagens.10 Como exemplo, 101
10. Idem: 119
11. É natural que Martin recorra regularmente a Eisenstein para ilustrar as ideias presentes neste capítulo, já que foi precisamente o cineasta soviético que introduziu este estilo de montagem que, contrariamente à fluidez do estilo americano, procura provocar o choque no espectador. Baseandose na dialéctica de Hegel (que Marx usa para a sua teoria de mudança revolucionária), acreditava que combinando duas imagens diferentes (tese e antítese) era possível criar um novo conceito (síntese) que de outra forma não existiria em nenhum dos planos individualmente. 12. Idem: 120 13. Idem: 122
descreve a cena do Bronenostetz Potyomkin (O Couraçado de Potemkin, 1925) de Sergei Eisenstein11 , em que planos dos rostos expectantes dos marinheiros durante o ataque são alternados com planos de máquinas paradas, reforçando o dramatismo do momento de espera. O segundo tipo seriam as metáforas dramáticas, que desempenham um papel mais directo na acção, trazendo consigo em elemento explicativo útil para a condução e a compreensão da narrativa.12 Em Stachka (A Greve, 1925), também de Eisenstein, uma cena dos operários a ser atingidos pelo exército czarista é procedida por uma imagem de um matadouro, em que os animais se encontram decapitados. Finalmente, o terceiro tipo corresponde às metáfora ideológicas, cuja finalidade é causar na consciência do espectador uma ideia cuja força ultrapassa largamente o quadro da acção do filme e implica uma tomada de posição mais vasta acerca dos problemas humanos.13 Martin relembra, como exemplo, a abertura do filme Modern Times (Tempos Modernos, Charlie Chaplin, 1936), onde vemos um plano de um rebanho de ovelhas, seguido de outro que nos mostra uma multidão a sair do metro.
Fig. 178 | 179 | 180. Modern Times, 1936
A partir dos exemplos sugeridos, Martin conclui que a metáfora nasce do choque de duas imagens, uma das quais é o termo de comparação e a outra o objecto de comparação, a coisa comparada.14 Por norma, o termo de comparação é um animal ou um objecto, enquanto que o objecto de comparação é sempre o ser humano, já que o seu comportamento é mais flexível e interessa mais ao espectador. O tom da metáfora será mais trágico quanto maior for a tensão de um plano para o outro, ou quanto maior for a discrepância entre o tom da metáfora e o tom geral do filme: uma metáfora cómica num filme trágico, ou uma metáfora trágica num filme cómico, produzem um efeito dramático mais grave e amargo.
102
Projecções no Novo Cinema Na análise das metáforas do Novo Cinema português, tentou-se conjugar a definição cinematográfica (comparação de duas imagens – o termo de comparação e o objecto comparado) com a ideia mais comum de metáfora em arquitectura, isto é, a comparação de um espaço ou um edifício a uma ideia relacionada com a experiência pessoal do indivíduo. Assim, o objecto comparado é um espaço físico e o termo de comparação é um desejo, uma aspiração ou algum outro sentimento que o personagem projecta nesse espaço e que lhe confere um outro significado para além do óbvio. O teatro Numa peça de teatro, tal como no cinema, espaço e tempo são conceitos subjectivos e facilmente manipuláveis. Talvez por isso, o teatro é um espaço a que alguns dos filmes do novo cinema recorrem para, através do seu valor metafórico, sublinharem características ou determinados estados de espírito dos personagens. O espaço metafórico de maior relevância de Uma Abelha na Chuva corresponde ao único episódio que não faz parte da obra literária que serviu de base ao filme: a representação de Amor de Perdição (Camilo Castelo Branco, 1862), no teatro local de Corgos. Fernando Lopes, ao passar das palavras às imagens, fez uma verdadeira adaptação, omitindo personagens secundários e acrescentando novos dados que ajudam à construção da atmosfera e à compreensão da base narrativa. Fê-lo de uma forma sensível e inteligente, sem comprometer o texto original. (...) revela uma profunda e autónoma fidelidade em relação à literatura que lhe serviu de tema. Fernando Lopes não abordou o texto do romance como um «pre-texto» a libertar, como uma narrativa de que se colhem dados para uma dissertação parcial. Também não se fechou nele como num «texto confinado» à intriga e à atmosfera, nada disso. Sem se deixar encandear pelo esplendor literário, praticou a mais exigente das fidelidades a um autor porque o traduziu em imagens até ao nível da escrita (...) Mas em arte, a fidelidade maior só se faz por transgressões.14
14. José Cardoso Pires cit. Andrade, 1996:31
Fig. 181 | 182 | 183. Uma Abelha na Chuva, 1972
O teatro transforma-se então numa terceira história que introduz a dimensão do imaginário15, espaço onde, metaforicamente, Maria dos Prazeres concretiza os seus desejos
15. Coelho, 1983: 38
(Eduardo Prado Coelho chega mesmo a afirmar que este poderia ser entendido como um momento de orgasmo imaginário). A tragédia na vida real é projectada naquele espaço imaginário, onde Maria dos Prazeres encontra na heroína a mesma privação de amor e as consequências de um casamento por conveniência – teatro e vida cruzam-se e casam-se no espaço cinematográfico.16 Esta transferência dos seus sentimentos ocultos é ainda mais 103
16. Areal, 2011: 497
pertinente quando, mais tarde, percebemos que Simão, personagem principal da peça, é interpretado pelo cocheiro Jacinto. Num momento de grande intensidade dramática, adensado pelo som da ópera de Verdi, Maria dos Prazeres acaricia o braço, visivelmente consternada, despertando a atenção do marido e da criada, que parecem entender por fim as suas inquietações. A partir de então, os ecos de Simão (ou Jacinto) irão perpetuarse até ao final, antecipando o seu desfecho trágico: aproxima-se a hora em que me vão roubar o tesouro mais precioso que possuo (...) Ó Teresa, Teresa...assim nos vão separar, quem sabe, talvez para sempre...
Fig. 184 | 185 | 186. O Mal Amado, 1974
Em O Mal Amado, a acção principal é intercalada com ensaios da peça Auto da Alma (1518), uma das obras mais moralistas e religiosas de Gil Vicente. Conta a história das deambulações da Alma pela Terra, alternadamente submetida às solicitações do Diabo, que a tenta com joias e outros bens, e do Anjo, que a incentiva a resistir e a descansar, por fim, na “estalagem”, representação simbólica da Igreja. No filme, a personagem principal é interpretada por Inês, e há uma maior incidência nos excertos da peça correspondentes às aproximações do Diabo. A introdução deste elemento, embora não se relacione, à primeira vista, com a sequência lógica de acontecimentos da narrativa, cria uma cadência dramática que nos conduz lentamente para o desfecho do filme. As constantes cedências da Alma ao Diabo, são uma projecção do comportamento patológico de Inês, cujas intenções se vão tornando, desta forma, mais claras aos olhos do espectador. A última cena do ensaio do auto termina com a Alma a tentar dar a mão ao Diabo, representação simbólica da derradeira escolha de Inês. Fernando Matos Silva, à semelhança de Fernando Lopes em Uma Abelha na Chuva, introduz assim um segundo nível paralelo mas complementar à história, servindo-se também de um outro tipo de ficção encenada – o teatro. E da mesma forma que Fernando Lopes coloca Jacinto no papel principal de Amor de Perdição, Matos Silva transforma Inês em Alma, projectando as suas frustrações e intuitos no espaço cénico. Este é um espaço não tradicional, abstracto, em que os actores caminham sobre estruturas suspensas que balançam a cada passo. Um espaço que, ao mesmo tempo que ilustra a mensagem deste Auto, ou seja, a fragilidade da nossa passagem pela Terra, poderá ser uma interessante metáfora para um país que se encontrava igualmente suspenso, à espera da mudança que se adivinhava próxima e inevitável. Talvez não será absurdo falar de um terceiro nível de compreensão da narrativa, também ele introduzido através da encenação do Auto. Um nível de conotação política que explica um contexto e justifica comportamentos, e ao qual Leonor Areal faz referência na sua análise do filme:
104
É interessante verificar que esta dimensão de teatralização, quando se encaixa – fora dos ensaios do grupo cénico – nestes momentos de quotidiano, ganha corpo de paródia colectiva, numa demonstração de como o registo teatral promove um processo de distanciação, uma forma de resistência ideológica, uma fuga contra o regime. E de facto também assim é – nas cenas onde é ensaiado o texto de Gil Vicente – cujas frases ditas ganham ressonâncias suspeitas e conotações políticas precisas.17
17. Idem: 513
O ringue É que eu achei que havia no Belarmino qualquer coisa de crístico. E é por isso que o combate de boxe - fui eu que o organizei, porque o Belarmino já não combatia há muito tempo, nem tinha já condições para combater - é pontuado com sete paralíticos com os golpes, como se ele passasse pelas várias estações do Calvário. Eu fiz essa alegoria conscientemente, mas na altura nem quis falar nisso, porque caía-me tudo em cima.18
Fig. 187 | 188 | 189. Belarmino, 1964
Num filme tão cheio de metáforas, algumas assumidas pelo próprio autor, outras efusivamente defendidas nos textos que ainda hoje se escrevem sobre Belarmino – o filme e o homem –, o ringue como palco da vida real parece ser a mais explícita de todas elas. Fernando Lopes, num registo não completamente documental, encena um combate no ringue que Belarmino Fragoso havia abandonado anos antes. Luta ali como na vida, tentando defender-se dos constantes ataques: as difíceis condições económicas, a exploração, a iliteracia, a fome – ou como diria Belarmino, um estado de fraqueza razoável. E esquiva-se desses ataques com a mesma ligeireza com que caminha nas ruas de Lisboa e com a coragem de um sobrevivente. Se é verdade ou não o que responde ao questionário quase inquisidor de Baptista-Bastos, não é a questão mais importante. Belarmino, nas palavras de Bénard da Costa, é um filme sobre o silêncio e sobre a fuga a ele – nossa última etapa. Por isso não é cinema-verdade nem cinema-mentira, é contemplação de quem sabe e pode fazê-lo, sabendo que os exames de consciência são sempre falsos e, em 19 rigor, inúteis. À medida que avança para um tom mais provocatório – Baptista-Bastos
confronta Belarmino com a opinião depreciativa dos outros em relação à sua postura no boxe – a entrevista é intercalada com cenas da chegada do pugilista ao ringue para o seu derradeiro confronto com o adversário, ou da nossa verdade com a sua mentira. Dado o sinal de partida, inicia-se uma longa sequência do combate onde imagens em movimento são intercaladas com fotografias, num interessante jogo de montagem que enaltece o carácter metafórico daquela cena. Fernando Lopes abdica de uma montagem fluida e de uma sequência lógica das acções, para provocar o espectador com imagens entrecortadas e som desfasado, levando-o à reflexão e à crítica. O som que se ouve é o som da cidade, realçando esta comparação ideia de ringue como arena da vida. Sobre esta técnica, que explorou mais do que qualquer outro realizador do mesmo 105
19. Bénard da Costa in Andrade, 1996: 110
período, Fernando Lopes evocava frequentemente uma frase de Jean-Marie Straub: o 20. Bénard da Costa in Andrade, 1996: 110
que é preciso é que o filme destrua a cada minuto, a cada segundo, o fotograma anterior.20 Vinte
21. Houve outra coisa que me interessou no Belarmino na altura, através da qual eu ligo o filme com o Raging Buli do Scorsese. Como o meu filme foi feito vinte anos antes estou à vontade para falar nisto. É que eu achei que havia no Belarmino qualquer coisa de crístico. Fernando Lopes in Andrade, 1996: 74
são evidentes até para o próprio Fernando Lopes21: Raging Bull (Martin Scorsese, 1980),
anos mais tarde, a mesma técnica é usada num filme cujas semelhanças com Belarmino eternizou a imagem do boxeur em decadência Jake La Motta, este ficcional, com uma montagem que, tal como Belarmino, pode ser comparada a Eisenstein.
O aeroporto Numa realidade que se sentia tão pesada e castradora, que obrigava os jovens a partirem para uma guerra com a qual não se identificavam, o desejo de fuga é transversal a vários filmes do novo cinema. O aeroporto surge assim como metáfora desse desejo, como derradeira oportunidade de escapar a essa realidade emigrando. Em Os Verdes Anos, o aeroporto é um lugar fora de campo, muitas vezes referido mas nunca visitado. Pela novidade que representava, era um lugar de contemplação, um passatempo de fim de semana.
Fig. 190 | 191. Perdido Por Cem, 1973
O filme Perdido por Cem, como refere Eduardo Prado Coelho, vive 21. Coelho, 1983:40
fundamentalmente dessa obsessão de partir/chegar22: Rui trabalha para os emigrantes, Joana sonha em partir para a cidade grande e Artur tem como objectivo principal ganhar dinheiro suficiente para sair do país – repare-se que, numa visita a uma agência de viagens, pergunta preços de bilhetes de avião só de ida para Paris, Roma e Nova Iorque. Consequentemente, o aeroporto é um dos espaços mais importantes da narrativa. É no aeroporto que Artur termina definitivamente a sua relação com Luísa, quando toma consciência da barreira que os separa: para ela, o aeroporto é apenas um espaço de chegada (lugar onde vai esperar o marido que viaja com frequência), e para ele, é um lugar (único) de partida. É também no aeroporto que se desenrola a sequência final, quando Artur tem finalmente a oportunidade de partir com Joana. Porém, são interceptados pelo ex-namorado da rapariga que, voltado da guerra, persegue-a por toda a Lisboa e mata-a a tiro. Com a chegada da polícia, Artur finge não conhecer Joana, para que aquela desgraça não provoque uma outra, de consequências mais desastrosas: a impossibilidade de partir.
106
símbolos Epistemologicamente, não há nenhum domínio do conhecimento mais difícil de delimitar, pois o processo de simbolização intervém a múltiplos níveis da experiência, desde o jogo complexo das nossas percepções até aos mais elevados graus de elaboração e de sistematização das nossas representações do mundo. (...) pretender estudar todos os aspectos de um assunto vasto como o do simbolismo seria uma empresa desmedida, estéril e individualmente irrealizável.1
1. Alleau, 1976: 7
Dada a natureza complexa dos símbolos e da sua interpretação não nos é possível, tal como afirma René Alleau (n.1917), delimitá-lo numa definição concisa e objectiva. O Homem desde sempre transformou inconscientemente objectos e formas em símbolos. Não se trata, por isso, de uma característica intrínseca a um 2
objecto mas algo de exterior, um dado directo e que directamente se dirige à nossa intuição .
2. Hegel, [s.d.]
Os símbolos e a interpretação que deles fazemos abarcam assim inúmeros significados que variam de acordo com o nosso contexto, com a sua expressão e com o seu sentido. Consequentemente, diferentes disciplinas têm também diferentes abordagens relativamente ao entendimento dos símbolos e do seu valor. Friederich Hegel (17701831), no seu ensaio sobre estética, distingue o símbolo como o início da arte, tanto do ponto de vista conceptual como histórico.3 Carl Gustav Jung (1875-1961), no campo da
3. Idem
psicologia, explora o facto do homem produzir símbolos inconsciente e espontaneamente, em forma de sonhos.4 Charles Peirce (1839-1914), do ponto de vista da semiótica, define
4. Jung (ed.), [1964]: 20
símbolo como uma divisão do signo que representa o objecto, independentemente de alguma semelhança ou alguma conexão real, porque as disposições ou os hábitos fictícios dos seus intérpretes asseguram que eles assim o sejam entendidos.5
5. Charles Peirce in Barthes, [1964]
O símbolo é assim algo que possui conotações que vão para além do seu significado mais óbvio, mas cuja interpretação depende de uma determinada predisposição do indivíduo. Este, por sua vez, necessita de mecanismos próprios para a descodificação desses significados, oriundos de um domínio da linguagem cultural, afectiva, espiritual e social. Neste sentido, os símbolos são os instrumentos por excelência da ‘integração social’: (…) eles tornam possível o consensus acerca do sentido do mundo social que contribui fundamentalmente para a reprodução da ordem social (…).6 Deste modo, podemos afirmar que todas as coisas estão sujeitas a interpretações
6. Pierre Bourdieu [1989] in Rocha, 2011: 13
simbólicas e que o símbolo tem, portanto, uma presença constante no nosso quotidiano. A arquitectura, como fenómeno cultural comunicante, tem a capacidade de comunicar símbolos que transcendem a sua existência material. Um elemento arquitectónico não denota apenas uma função (primeira), remete para certa concepção do habitar e do usar, conota modos/ideologias diferentes de conceber a função, começa a assumir uma função simbólica. As conotações – “funções” (segundas) simbólicas – podem relegar importância à função primeira “funcional”.7
7. Rocha, 2011: 13 109
John Onians, no texto intitulado Sign and Symbol, faz uma breve análise da história da arquitectura através da sua interpretação dos símbolos. Começa por esclarecer que a importância dos símbolos e dos signos nasce da estreita relação das propriedades físicas e expressivas de um edifício, que derivam das necessidades daquele que constrói e daquele que usufrui. Os construtores procuram abrigar e proteger, conter e excluir. Aqueles que usam o edifício 8. Onians in Farmer & Louw (ed.), 1993: 511
experienciam estar abrigados e protegidos, contidos e excluídos. Ambos beneficiam quando estas necessidades não são apenas experienciadas fisicamente mas são comunicadas.8 Para Onians, a relação entre construtor e utente é como a de duas pessoas que acabaram de se conhecer: uma tenta causar uma determinada impressão na outra, e a outra procura por sinais do que será essa impressão. Os primeiros servem-se das características físicas de um edifício para exprimir e comunicar, enquanto os segundos experimentam-nas como expressão e comunicação. Assim, para além da função física, essas características expressam ou representam algo e são apreendidas como tal. No entanto, as propriedades físicas prevalecem sobre propriedades expressivas, porque lhe antecedem: uma parede funciona como uma barreira ou suporte da cobertura antes de ter
9. Idem: Ibidem
qualquer camada expressiva, e essa camada existe antes de mais para confirmar essa função física.9 Onians aponta esta como uma das principais características que distingue a arquitectura de outras artes, como a literatura, a pintura ou a música, porque nelas a matéria física é menos substancial e, por isso, as interpretações simbólicas tornam-se claramente dominantes. Desde o aparecimento das primeiras construções que são atribuídos símbolos aos elementos que as constituem: uma parede e uma cobertura significam protecção, estrutura simboliza estabilidade, entrada é sinal de abertura e porta exprime controlo de acesso. Uma única construção evoca sentimentos de segurança doméstica e um conjunto de construções sugere um sentido de coerência social. Desta forma, Onians explica que os símbolos constituíram um factor importante para a identidade e sobrevivência dos povos e que assumiram formas e significados cada vez mais complexos. Robert Venturi e Denise Scott Brown são talvez os arquitectos mais empenhados em defender uma arquitectura que comunique através do simbolismo, comunicação menosprezada pelo Movimento Moderno, que assim perdeu a capacidade de transmitir significados e valores. Consideram que os elementos simbólicos podem
10. Esta contradição divide-se em duas manifestações principais, ambas válidas: o pato (“duck”), que ocorre quando os sistemas de espaço, estrutura e programa estão submersos e distorcidos por uma global forma simbólica; e o barracão decorado (“decorated shed”), quando os sistemas de espaço e estrutura estão directamente ao serviço do programa e o ornamento é aplicado com independência. O pato é um edifício especial que é um símbolo; o barracão decorado é um abrigo convencional a que se aplicam símbolos. (Rocha, 2011:14)
10
ser frequentemente contraditórios
com a forma, estrutura e programa com que
se combinam num edifício, mas que a arquitectura deve assumir e integrar essas contradições. Desta forma, o uso dos símbolos, de convenções arquitectónicas de apelo popular, convencionais, estandardizadas, facilitam a comunicação e aproximam a arquitectura das pessoas. O arquitecto deveria voltar-se para esses símbolos, compreendêlos e torna-los ainda mais vivos. Da mesma maneira, no cinema, como arte igualmente comunicante, a criação de símbolos é fundamental. Poder-se-ia dizer que o grande impacto do cinema advém, em parte, da sua capacidade de traduzir símbolos em imagens, através de um sistema complexo de associações conscientes e inconscientes. 110
Marcel Martin, no texto referido no capítulo anterior, define símbolo como imagem que, para além do seu significado directo, contem um valor mais profundo e mais vasto. Ao contrário da metáfora, o significado do símbolo não surge da comparação de duas imagens ou ideias mas reside nela própria. Segundo o autor, os símbolos em cinema podem dividir-se em dois grupos: composição simbólica da imagem – uma imagem em que o realizador terá, mais ou menos arbitrariamente, reunido dois fragmentos de realidade para fazer brotar da sua confrontação um significado mais largo e mais profundo do que o seu simples conteúdo material11 – e conteúdo latente ou implícito da imagem – uma
11. Martin, [1955]: 123
imagem que tem a sua função própria a desempenhar na acção e que pode parecer não conter qualquer implicação não evidente, mas cujo conteúdo toma mais ou menos claramente, para lá do seu significado imediato, um sentido mais geral.12
12. Idem: Ibidem
A composição simbólica da imagem pode ser conseguida de diferentes modos: - personagem diante de um cenário: em Lady from Shangai (A Dama de Xangai, Orson Welles, 1947), Elsa suplica a Michel que a leve consigo para longe do seu cruel marido diante de um aquário com monstros marinhos.
Fig. 192 | 193 | 194. Lady from Shangai, 1947
- personagem com objecto: o polícia de Touch of Evil (A Sede do Mal, Orson Welles, 1958) veste cuidadosamente a luva, diante do homem que vai estrangular; - duas acções simultâneas: o casamento que decorre ao mesmo tempo que um funeral em Greed (Aves de Rapina, Erich von Stroheim, 1924), denunciando o fracasso do primeiro;
Fig. 195 | 196. Greed, 1924
- acção visual combinada com um efeito sonoro: em Les Diaboliques (As Diabólicas, Henri-Georges Clouzot, 1955), ouvimos a professora assassina a ensinar o verbo encontrar aos seus alunos, enquanto o jardineiro observa a piscina onde talvez se encontre o cadáver; - sublinhando o sentido de uma acção ou de uma situação: os cartazes com as frases Viver perigosamente até ao fim ou Mais dura será a queda em À Bout de Souffle (O Acossado, Jean-Luc Godard, 1960) sugerem o final trágico do filme; - adição de um elemento exterior à acção: em Spellbound (A Casa Encantada, Alfred 111
Hitchcock, 1945), uma imagem de portas a abrirem-se de par em par é sobreposta à cena em que a heroína é beijada, sugerindo a sua libertação.
Fig. 197 | 198 | 199. Spellbound, 1945
Relativamente ao segundo grupo, o conteúdo latente ou implícito, Martin distingue três tipos de forma análoga à metáfora: os símbolos plásticos, os símbolos dramáticos e os símbolos ideológicos. Os símbolos plásticos correspondem aos planos em que um gesto ou o movimento de um objecto podem evocar uma nova realidade, como o voo dos pombos em La Passion de Jeanne d’Arc podem simbolizar a partida de uma alma. Os símbolos dramáticos são os mais abundantes e têm um papel directo na acção, facilitando a compreensão da narrativa. Um exemplo deste símbolo será a cena de Conquest (Maria Walewska, Clarence Brown, 1937) em que Napoleão, durante uma discussão, atira uma faca para cima de um mapa e esta cai precisamente em Waterloo. E finalmente, os símbolos ideológicos são aqueles que ultrapassam largamente os limites da narrativa: em L’Espoir (André Malraux, Boris Peskine, 1945), uma formiga em cima de uma metralhadora pode simbolizar a fragilidade de uma vida em relação ao absurdo da guerra. Martin conclui explicando que o símbolo é mais eficaz e mais intenso quanto menos visível for, isto é, quanto mais natural parecer ao espectador.
112
Símbolos no Novo Cinema
Como foi referido anteriormente, o novo cinema português é rico em mensagens codificadas e gestos subtis, devido ao contexto específico donde emergiu. Deste modo, para além de uma propensão para a simbologia inerente ao próprio cinema, os filmes deste período têm por vezes uma necessidade de se servir dos símbolos para dissimular significados ou despertar sentimentos. São por isso, na sua maioria, de uma complexidade que obriga a repetidas leituras, principalmente quando não se possui os mecanismos necessários à sua descodificação, ou seja, um conhecimento do contexto histórico, cultural, social e político. Por outro lado, o peso desse contexto pode criar exageros, originando interpretações simbólicas que vão muito além das intenções do autor. As interpretações que se seguem baseiam-se não só nesse contexto, mas também nas conotações mais ou menos generalizadas de alguns símbolos, sobretudo por via da iconologia mitológica e religiosa. Elementos naturais A água é habitualmente entendida como símbolo de limpeza e purificação. Nos rituais religiosos, o Baptismo é o momento em que a água limpa simbolicamente o pecado que o homem transporta desde o momento da sua criação. No novo cinema, a água é o elemento natural mais frequente, e se por vezes é utilizada de forma aparentemente banal – como quando Belarmino ou Júlio de Os Verdes Anos bebem nas fontes públicas – noutros momentos parece conter uma verdadeira intenção simbólica. Alguns personagens, como Marta de O Cerco ou Lúcia de O Recado, parecem eleger a água como lugar de reflexão e purificação numa fase final da trama: Marta, após tomar conhecimento da morte de Vítor, para a qual contribuiu inocentemente, faz uma viagem de barco pelo rio Tejo; Lúcia, numa situação idêntica – após saber que Francisco fora assassinado – passeia-se em frente ao mar antes de tomar uma decisão definitiva sobre o seu futuro.
Fig. 200. O Recado, 1972 Fig. 201. Uma Abelha na Chuva, 1972 Fig. 202. Os Verdes Anos, 1963
Ambos os casos remetem para outro dos significados atribuídos a este elemento: a morte. Segundo Bachelard, que dedicou uma obra aos significados da água nos sonhos (L’Eau et les Rêves, 1942), para alguns sonhadores, água é o universo da morte...a água comunica com todos os poderes da noite e da morte, i.e., a água é um elemento ‘melancolizante’... para algumas almas, água é a matéria do desespero.13 Uma das cena que melhor ilustra esta conotação pertence a Uma Abelha na Chuva, quando o mestre António e o seu aprendiz transportam o corpo de Jacinto num pequeno barco. A natureza torna-se assim testemunha de um acto violento, com o som da água a reforçar o poder simbólico 113
13. Bachelard cit. Pallasmaa, 2007: 82
da imagem e a perpetuar a morte de um inocente. São panorâmicas lentas que nos remetem, por sua vez, para o último das significações mais recorrentes da água no cinema: o tempo. Tal como afirma Pallasmaa, a propósito da análise de Nostalghia (Andrei Tarkovsky, 1983), a água concretiza e abranda o tempo, assim como seduz o espectador 14. Pallasmaa, 2007: 84
para o sonho interior e para o devaneio14. O efeito das águas que avançam lentamente, como no filme de Fernando Lopes, é quase hipnotizante e parece simbolizar um ciclo contínuo, o ciclo vicioso em que se tornou a vida dos protagonistas. Em Os Verdes Anos, é diante de um lençol de água que decorre uma das cenas mais poéticas do filme. Júlio, num acto de ciúme, atira do alto de uma ravina a camisola que o seu tio oferecera a Ilda. A jovem tenta recuperá-la e acabam os dois debruçados sobre a água, com a cidade como pano de fundo. Nesta caso, a água parece condensar os significados anteriormente descritos. Por um lado, pode simbolizar a pureza e inocência de Ilda, por contraponto às desconfianças infundadas de Júlio. Por outro, pode ser entendida como um prenúncio da sua morte prematura. E, por fim, a água parada remete-nos para um tempo estagnado. As declarações de Paulo Rocha mostram-nos que, mesmo que estas interpretações possam ser questionáveis, a cena em questão poderá estar na base da própria concepção do filme: Assim nasceram os Verdes Anos, a olhar a cidade a meus pés reflectida numa poça de
15. Paulo Rocha in Andrade (coord.), 1996: 24
água, do alto de uma ravina que descia a pique, até ao enfiamento dos Estados Unidos.15 Objectos artificiais e formas construídas Alguns símbolos são evocados pelos objectos que compõem o décor, remetendonos para um dos tipos de símbolo que Martin distingue: composição simbólica da imagem. Em Uma Abelha na Chuva, há um interessante jogo na composição da cena em que Álvaro agride Maria dos Prazeres. Os dois discutem numa sala inóspita, de janela fechada e quase sem mobiliário. Entre eles, vemos apenas um elemento decorativo: um quadro com um cavalo e um cocheiro. Este, não só simboliza o interesse e o desejo reprimido de Maria pelo cocheiro Jacinto, como é uma referência ao carácter bruto e animalesco de Álvaro. Esta imagem é revisitada outras vezes ao longo do filme, reforçada com o som dos cascos de um cavalo. Também em Os Verdes Anos há diálogos mediados por um elemento decorativo semelhante: o primeiro, em casa de Ilda, quando o casal toma chá na sala, e a câmara fixa o quadro que está pendurado por cima das suas cabeças; o segundo, quando Júlio discursa em frente aos painéis da fachada da universidade. Em ambos os casos, esses elementos parecem simbolizar uma vontade de ascensão social e intelectual por parte de Ilda e um desprezo de Júlio por essas intenções.
Fig. 203. Uma Abelha na Chuva, 1972 Fig. 204. Os Verdes Anos, 1963 114
Em O Mal Amado também podemos encontrar um interessante jogo com o simbolismo dos objectos. A forma como estão decoradas as casas dos personagens são a expressão da sua forma de ser e estar. A casa de João é decorada à imagem do seu pai: os móveis dos anos 1930 parecem ser tão velhos quanto as suas convicções e a excessiva utilização de “biblots”, rendas e outros objectos antigos reforçam a sua postura retrógrada perante a vida. Na cena em que o pai chama João ao seu escritório para lhe dar, pela primeira vez, uma cópia da chave de casa, um busto de António Oliveira Salazar está colocado sobre a mesa, entre os dois personagens, simbolizando o autoritarismo, o moralismo e a ordem. Já a decoração do apartamento de Inês parece ser tão contraditória quanto o seu comportamento: os espaços comuns apresentam mobiliário branco, de linhas simples, papel de parede de padrões modernos e um ambiente mais luminoso; enquanto que no quarto o mobiliário é tradicional, o desenho do papel de parede é mais orgânico e o ambiente mais escuro. Pelo quarto estão ainda espalhadas fotos do seu irmão morto na guerra colonial, simbolizada pelas estatuetas africanas que também fazem parte da decoração. Na cena final, vemos o reflexo de João no espelho, encurralado entre dois problemas: Inês, símbolo de um amor doentio, e uma estatueta, símbolo da inevitabilidade da mobilização para a guerra.
Fig. 206 | 206 | 207. O Mal Amado, 1974
Outro símbolo com uma forte expressão e destaca neste filme: o relógio. Em todos os planos da sequência de abertura, mas nem sempre de forma evidente, está presente um relógio. De início, parece ser apenas um modo de nos situar temporalmente na história mas, numa segunda leitura mais atenta, parece ser um símbolo de que o país está em espera, aguardando a hora certa, a hora da mudança. Esta ideia é ainda reforçada quando Fernando Matos Silva fixa a câmara num plano em que vemos um camião com o letreiro de “Mudanças”.
Fig. 208 | 209 | 210. O Belarmino, 1964
Ainda dentro da lógica da composição simbólica da imagem de personagem diante de um cenário ou em interacção com um objecto, é importante relembrar a cena final de Belarmino: enquanto o boxeur caminha por entre a multidão Lisboeta, a câmara desfoca lentamente o seu alvo para focar o gradeamento da varanda que se encontra em primeiro plano. Esse elemento constitui uma forte expressão do momento de clausura 115
e aprisionamento que se vivia nos anos sessenta e que Fernando Lopes transformou intencionalmente em símbolo. Por último, destaca-se a utilização da ruína como elemento que pode ser entendido ora como vestígio do passado, ora como símbolo de destruição e desmoronamento. Em Os Verdes Anos, numa das sequências já referidas dos passeios de Júlio e Ilda, o casal brinca em cima de uma ruína. Para além da intenção claramente poética na introdução deste elemento na composição, a ruína parecer exprimir um elogio dos valores do passado, a importância da origem para a construção de um identidade.
Fig. 211 | 212 | 213. Os Verdes Anos, 1963
Já em O Recado, as Ruínas do Santuário de Nossa Senhora do Cabo de Espichel parecem ser símbolo desertificado e desertificador, um deserto de almas, onde a paisagem tem 16. Tavares, 2011
correspondência directa no desalento que se apodera das personagens.16 A ruína é ao mesmo tempo um espaço de comemorações populares para os habitantes locais e espaço de morte para Francisco. Miguel C. Tavares interpreta esto uso deste elemento como crítica à postura passiva da maioria da população, num período em que se exigia mais intensidade na
17. Idem
oposição ao regime, para que se pudesse mudar o rumo do país17, já que o povo alienado não se apercebe que Francisco sofre a poucos metros. As interpretações destes símbolos são, e não poderiam deixar de ser, pessoais. Embora algumas intenções possam parecer claras, muitas vezes subentendidas em depoimentos dos próprios autores, a análise que fazemos pode ser tão subjectiva quanto a complexidade humana.
116
conclusão Embora exista, no Novo Cinema, uma forte expressão individual de cada um dos seus autores e das suas respectivas influências, directas ou indirectas, persiste uma unidade correspondente ao seu tempo, à visão social incapaz de ser indiferente ao contexto político português e ao próprio sentido artístico em oposição a “moldes” vigentes de “fazer” cinema. A vontade de ruptura nestes campos é também o enunciar do nascimento de um cinema complexo e diversificado com várias camadas passíveis de diferentes análises. Das imagens do cinema adivinharam-se temáticas arquitectónicas, e das temáticas arquitectónicas reinterpretaram-se as imagens do cinema. Neste jogo de constantes relações, o Novo Cinema português serviu como ponto de partida para reflectir sobre a arquitectura nas suas múltiplas dimensões. Inversamente, os pressupostos arquitectónicos permitiram novos olhares sobre o espaço cinematográfico. A imagem que temos de uma determinada cidade é, em certa medida, moldada pelo imaginário cinematográfico. Muitas vezes, a sua imagem real confunde-se com a sua representação no cinema. É quase inevitável, para um amante de cinema ou espectador mais atento, pensar em Paris e não evocar imagens dos cafés de Godard, ou desejar secretamente correr nos corredores do Louvre e bater o record de velocidade das personagens de Band à Part. Ou pensar em Nova Iorque sem recordar a descrição que Woody Allen faz da cidade na sequência de abertura de Manhattan ou do famoso plano junto à ponte. Da mesma maneira, a Lisboa dos anos sessenta, para alguns, será sempre a Lisboa desencantada de Os Verdes Anos. E os cafés da baixa lembrarão muitas vezes Belarmino, sentado numa mesa a colorir fotografias. Neste sentido, percebemos que a construção da identidade do espaço urbano e a forma como o apreendemos depende de múltiplos factores e não apenas da disciplina do urbanismo. Há uma troca de influências, uma contaminação recíproca entre diferentes campos que faz convergir objectivos, de uma maneira nem sempre intencional. Vimos que a década de sessenta foi marcada por uma certa tendência para a revisão do Modernismo, apelando a um urbanismo de menor escala e mais participativo. No cinema, os cânones vigentes são igualmente postos em causa e procura-se um cinema mais real e mais biográfico, despertando um novo interesse pelo quotidiano urbano. Apesar das diferenças que os separa, urbanismo e cinema perseguiam o mesmo objectivo de se libertar do peso da tradição e voltar a olhar a cidade de perto. Apreender o espaço urbano em toda a sua complexidade exige percorrêlo, atravessá-lo deixar-se perder e ser surpreendido. Vimos que a deambulação é um exercício recorrente como forma de reconhecimento da cidade e dos seus diferentes fenómenos, sendo alvo de especial destaque na era moderna, também ela marcada por uma certa ideia de movimento. Na literatura, na filosofia, no urbanismo e no cinema, há um prazer implícito no acto de percorrer que corresponde, numa primeira fase, a um fascínio pela riqueza dos ambientes urbanos. Nos anos sessenta, é reforçada uma 119
ideia de deriva urbana que, especialmente nas novas vagas do cinema, corresponde a uma deriva existencial. A deambulação é também um exercício intrínseco tanto à disciplina de arquitectura como ao campo do cinema. Se por um lado, o movimento é fundamental para a apreensão total de uma obra arquitectónica, o cinema proporciona ao espectador uma experiência de percurso ou de viagem. O fascínio pela cidade coexiste, no entanto, com um sentimento de repulsa. A cidade moderna, complexa e aparentemente contraditória, é também o ponto de partida para questionar valores morais, sociais e políticos. Este questionamento pode levar a uma crise de identidade, que no cinema ganha especial destaque. O ritmo alienante dos ambientes urbanos leva a um desejo de fuga para a periferia, mas a cidade parece conter uma força atractiva que impede a sua concretização. Passando do exterior para o interior, do público para o espaço privado, vimos que determinados elementos que o compõem e que são quase um arquétipo da arquitectura, são igualmente relevantes no espaço cinematográfico. Para além de funcionarem como instrumentos técnicos auxiliares ao processo de montagem, possuem uma dimensão simbólica capaz de comunicar determinadas mensagens e emoções de uma forma mais imediata e mais profunda. Essa dimensão é em parte construída a partir do seu valor arquitectónico. A porta, a janela e o corredor estão associados a uma noção de privacidade: os dois primeiros por mediarem a nossa relação com o exterior e o terceiro por conter uma ideia de ‘privatização’ do espaço do interior, ao possibilitar a criação de divisões independentes. A porta indica onde começa e acaba o espaço privado, o território de cada um. Atravessar uma porta que nos é aberta, é um convite a entrar no espaço e na intimidade do outro, da mesma maneira que forçar a entrada numa porta é sinónimo de violação de privacidade. Estas noções são também aplicáveis à janela, embora num sentido mais visual. A sua função de enquadrar a paisagem, de selecionar aquilo vemos e a forma como o vemos, leva a que a janela seja muitas vezes interpretada como própria metáfora do cinema. Como ponto de luz, a janela também é fundamental para a criação de diferentes atmosferas interiores, que nos filmes analisados são profundamente exploradas. Por fim o corredor, especialmente pela sua geometria e pelo seu efeito de perspectiva, tem um lugar de destaque no espaço cinematográfico. Como elemento de ligação de diferentes espaços, ora é propício à interacção social ora é sinónimo de reclusão. Se por um lado, estes elementos arquitectónicos são comuns no cinema, por outro, o valor cinematográfico que adquirem podem ser transportados para a arquitectura, enriquecendo a sua potencialidade dramática. A sua forma, o material de que são compostos e a posição que ocupam no espaço, provocam sentimentos como o desejo, a repulsa ou o medo, muitas vezes associados à memória de experiências cinematográficas. Como vimos, é impossível falar de espaço sem falarmos de emoções, de sentimentos ou de sensações. Através das superfícies e dos objectos que o compõem, o espaço assume significados que ultrapassam a sua configuração material. Essas interpretações subjectivas, apesar de muitas vezes se basearem em valores universais, dependem da predisposição psicológica do indivíduo, que nelas projecta as suas vivências, as suas memórias, os seus desejos e frustrações. Entender o lugar que 120
habitamos, é também entendermo-nos a nós mesmos. As questões ligadas à identidade, à posição do sujeito em frente ao mundo e a si mesmo, são temas centrais em diversos campos, inclusivamente na arquitectura, porque condiciona a forma como nos movemos e interagimos com o espaço. Esse universo pessoal é determinante no modo como atribuímos significados às coisas que nos rodeiam. Este processo poder ser realizado através de metáforas, entendidas como a comparação de duas ideias, ou através de símbolos propriamente ditos, entendidos como significados com um valor mais abrangente, que com o tempo se tornam quase universais. Neste sentido, parece ser pertinente falar de dimensão psicológica do espaço, quer na disciplina da arquitectura, quer no exercício de cinema. No limite, foram estas associações mentais que estabelecemos quer através de significados intrínsecos, quer por meio da comparação, que possibilitaram toda a análise explorada neste trabalho. A vontade de abranger um tão grande número de temas leva a que, necessariamente, muito fique por dizer e muitos exemplos fiquem por citar. Mais do que o produto final, valorizou-se o processo. Mais do que conclusões, valorizaram-se hipóteses. O resultado é um mapeamento das intersecções entre a arquitectura e o cinema, em particular o Novo Cinema, que pretende abrir um leque de possibilidades para o futuro, mais do que resumir as experiências do passado.
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bibliografia referencida
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Fig. 38 | 39 | 40. Fotogramas extraídos do filme ‘Os Verdes Anos’ (Paulo Rocha, 1963) Fig. 41 | 42 | 43. Fotogramas extraídos do filme ‘Os Verdes Anos’ (Paulo Rocha, 1963) Fig. 44 | 45 | 46. Fotogramas extraídos do filme ‘O Cerco’ (António da Cunha Telles, 1970) Fig. 47 | 48 | 49. Fotogramas extraídos do filme ‘O Recado’ (José Fonseca e Costa, 1972) Fig. 50 | 51 | 52. Fotogramas extraídos do filme ‘Perdido por Cem’ (António-Pedro Vasconcelos, 1973) Fig. 53 | 54 | 55. Fotogramas extraídos do filme ‘O Mal Amado’ (Fernando Matos Silva, 1974) Fig. 56 | 57 | 58. Fotogramas extraídos do filme ‘Les Cousins’ (Claude Chabrol, 1959) Fig. 59 | 60 | 61. Fotogramas extraídos do filme ‘São Paulo Sociedade Anônima’ (Luís Sérgio Person, 1965) Fig. 62. Fotograma extraído do filme ‘Belarmino’ (Fernando Lopes, 1964) Fig. 63. Fotograma extraído do filme ‘Os Verdes Anos’ (Paulo Rocha, 1963) Fig. 63. Fotograma extraído do filme ‘Os Verdes Anos’ (Paulo Rocha, 1963) Fig. 64. Fotograma extraído do filme ‘São Paulo Sociedade Anônima’ (Luís Sérgio Person, 1965) Fig. 65 | 66 | 67. Fotogramas extraídos do filme ‘Os Verdes Anos’ (Paulo Rocha, 1963) Fig. 68 | 69 | 70. Fotogramas extraídos do filme ‘Os Verdes Anos’ (Paulo Rocha, 1963) Fig. 71 | 72 | 73. Fotogramas extraídos do filme ‘Os Verdes Anos’ (Paulo Rocha, 1963) Fig. 74. Simon Unwin, [s.d.]. in UNWIN, Simon. 2007. Doorway. USA & Canada: Routledge Fig. 75. Simon Unwin, [s.d.]. in UNWIN, Simon. 2007. Doorway. USA & Canada: Routledge Fig. 76. Simon Unwin, [s.d.]. in UNWIN, Simon. 2007. Doorway. USA & Canada: Routledge Fig. 77. Fotograma do filme de apresentação da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto ‘FAUP [trav]’ (Miguel C. Tavares, 2012) Fig. 78 | 79 | 80. Vilhelm Hammershøi. http://www.gwick.ch/Perspe/Pictures/Stich/ OT.html Fig. 81 | 82 | 83. Fotogramas extraídos do filme ‘Nosferatu’ (F. W. Murnau, 1922) Fig. 84 | 85 | 86. Fotogramas extraídos do filme ‘Double Indemnity’ (Billy Wilder, 1944) Fig. 87 | 88. Fotogramas extraídos do filme ‘Uma Abelha na Chuva’ (Fernando Lopes, 1972) Fig. 89 | 90. Fotogramas extraídos do filme ‘Os Verdes Anos’ (Paulo Rocha, 1963) Fig. 91 | 92. Fotogramas extraídos do filme ‘Os Verdes Anos’ (Paulo Rocha, 1963 Fig. 93 | 94. Fotogramas extraídos do filme ‘Os Verdes Anos’ (Paulo Rocha, 1963) Fig. 95. Fotograma extraído do filme ‘Os Verdes Anos’ (Paulo Rocha, 1963) Fig. 96. Fotograma extraído do filme ‘Perdido por Cem’ (António-Pedro Vasconcelos, 1973) Fig. 97 | 98 | 99. Fotogramas extraídos do filme ‘Belarmino’ (Fernando Lopes, 1964) Fig. 100 | 101 | 102. Fotogramas extraídos do filme ‘O Recado’ (José Fonseca e Costa, 1972) 130
Fig. 103. [s.a., s.d.] in Gravagnuolo, Benedetto. 1918. Adolf Loos: Teoria e Opere. Milano: Idea Books. p.192 Fig. 104. [s.a., s.d.] in Gravagnuolo, Benedetto. 1918. Adolf Loos: Teoria e Opere. Milano: Idea Books. p.149 Fig. 105. Roberto Schezen [s.d.] in Schezen, Roberto. 1996. Adolf Loos: arquitectura 1903-1932. Barcelona: Editorial Gustavo Gili. p.86 Fig. 106 | 107 | 108. Fotogramas extraídos do filme ‘L’Architecture d’aujourd’hui’ (Pierrre Chenal & Le Corbusier, 1930) Fig. 109 | 110 Fotogramas extraídos do filme ‘Mon Oncle’ (Jacques Tati, 1958) Fig. 111 | 112. Fotogramas do filme Possessed (Clarence Brown, 1931) extraídos do documentário The Pervert’s Guide to Cinema (Sophie Fiennes & Slavoj Zizek, 2006) Fig. 113. Fotograma extraído do filme ‘Rear Window’ (Alfred Hitchcock, 1954) Fig. 114. Edward Hopper, 1928 http://illustrationart.blogspot.pt/2007_10_01_archive. html Fig. 115 | 116. Fotogramas extraídos do filme ‘Belarmino’ (Fernando Lopes, 1964) Fig. 117 | 118. Fotogramas extraídos do filme ‘O Cerco’ (António da Cunha Telles, 1970) Fig. 119 | 120 | 121. Fotogramas extraídos do filme ‘Os Verdes Anos’ (Paulo Rocha, 1963) Fig. 122 | 123 | 124. ‘Uma Abelha na Chuva’ (Fernando Lopes, 1972) Fig. 125 | 126. Fotogramas extraídos do filme ‘Belarmino’ (Fernando Lopes, 1964) Fig. 127 | 128. Fotogramas extraídos do filme ‘Uma Abelha na Chuva’ (Fernando Lopes, 1972) Fig. 129. Fotograma extraído do filme ‘The Shining’ (Stanley Kubrik, 1980) Fig. 130. Fotograma extraído do filme ‘One Flew Over the Cuckoo’s Nest’ (Milos Forman, 1975), Fig. 131. Fotograma extraído do filme ‘The Shining’ (Stanley Kubrik, 1980) Fig. 132 | 133. Fotogramas extraídos do filme ‘Belarmino’ (Fernando Lopes, 1964) Fig. 134 | 135. Fotogramas extraídos do filme ‘Uma Abelha na Chuva’ (Fernando Lopes, 1972) Fig. 136 | 137. Fotogramas extraídos do filme ‘O Mal Amado’ (Fernando Matos Silva, 1974) Fig. 138 | 139. Fotogramas extraídos do filme ‘Os Verdes Anos’ (Paulo Rocha, 1963) Fig. 140 | 141 | 142. Fotogramas extraídos do filme ‘O Mal Amado’ (Fernando Matos Silva, 1974) Fig. 143 | 144. Rodrigo Dessa, 2012 Fig. 145. Dan Graham, 1978. in COLOMINA, Beatriz. 2006. Doble Exposición – Arquitectura a través del arte. Madrid: Ediciones Akal. p.159 Fig. 146. J. E. Hummel, 1820-25. in TEYSSOT, Georges. 2010. Da teoria de arquitectura : doze ensaios. Lisboa: Edições 70. p.168 Fig. 147 | 148 | 149. Fotogramas extraídos do filme ‘Duck Soup’ (Leo McCarey, 1933) Fig. 150 | 151. Fotogramas extraídos do filme ‘Cló de 5 à 7’ (Agnés Varda, 1962) Fig. 152 | 153. Fotogramas extraídos do filme ‘Zerkalo’ (Andrei Tarkovsky, 1975) Fig. 154 | 155 | 156. Fotogramas extraídos do filme ‘Os Verdes Anos’ 131
Fig. 157 | 158 | 159. Fotogramas extraídos do filme ‘Uma Abelha na Chuva’ (Fernando Lopes, 1972) Fig. 160 | 161. Fotogramas extraídos do filme ‘Uma Abelha na Chuva’ (Fernando Lopes, 1972) Fig. 162 | 163. Fotogramas extraídos do filme ‘O Recado’ (José Fonseca e Costa, 1972) Fig. 164 | 165. Fotogramas extraídos do filme ‘Os Verdes Anos’ (Paulo Rocha, 1963) Fig. 166 | 167 | 168. Fotogramas extraídos do filme ‘O Cerco’ (António da Cunha Telles, 1970) Fig. 169 | 170 | 171. Fotogramas extraídos do filme ‘O Mal Amado’ (Fernando Matos Silva, 1974) Fig. 172. [s.a.; s.d.] in JENCKS, Charles. [1977]. Le language de l’architecture postmodern. Paris: Denoel. 1985. p.43 Fig. 173. [s.a.; s.d.] in JENCKS, Charles. [1977]. Le language de l’architecture postmodern. Paris: Denoel. 1985. p.43 Fig. 174. Hillel Schocken, [s.d.] in JENCKS, Charles. [1977]. Le language de l’architecture post-modern. Paris: Denoel. 1985. p.43 Fig. 175 | 176 | 177. Fotogramas extraídos do filme ‘O Couraçado de Potemkin’ (Eisenstein,1925) Fig. 178 | 179 | 180. Fotogramas extraídos do filme ‘Modern Times’ (Charles Chaplin,1936) Fig. 181 | 182 | 183. Fotogramas extraídos do filme ‘Uma Abelha na Chuva’ (Fernando Lopes, 1972)) Fig. 184 | 185 | 186. Fotogramas extraídos do filme ‘O Mal Amado’ (Fernando Matos Silva, 1974) Fig. 187 | 188 | 189. Fotogramas extraídos do filme ‘Belarmino’ (Fernando Lopes, 1964) Fig. 190 | 191. Fotogramas extraídos do filme ‘Perdido por Cem’ (António-Pedro Vasconcelos, 1973) Fig. 192 | 193 | 194. Fotogramas extraídos do filme ‘Lady from Shangai’ (Orson Welles, 1958) Fig. 195 | 196. Fotogramas extraídos do filme ‘Greed’ (Erich von Stroheim, 1924) Fig. 197 | 198 | 199. Fotogramas extraídos do filme ‘Spellbound’ (Alfred Hitchcock, 1945) Fig. 200. Fotograma extraído do filme ‘O Recado’ (José Fonseca e Costa, 1972) Fig. 201. Fotograma extraído do filme ‘Uma Abelha na Chuva’ (Fernando Lopes, 1972)) Fig. 202. Fotograma extraído do filme ‘Os Verdes Anos’ (Paulo Rocha, 1963) Fig. 203. Fotograma extraído do filme ‘Uma Abelha na Chuva’ (Fernando Lopes, 1972)) Fig. 204. Fotograma extraído do filme ‘Os Verdes Anos’ (Paulo Rocha, 1963) Fig. 205 | 206 | 207. Fotogramas extraídos do filme ‘O Mal Amado’ (Fernando Matos Silva, 1974) Fig. 208. | 209 | 210. Fotogramas extraídos do filme ‘Belarmino’ (Fernando Lopes, 1964) Fig. 211. | 212 | 213. Fotogramas extraídos do filme ‘Os Verdes Anos’ (Paulo Rocha, 1963) 132
anexos . os filmes Os Verdes Anos Realização - Paulo Rocha Produção - António da Cunha Telles/Produções Cunha Telles Argumento - Paulo Rocha Adaptação e Diálogos - Nuno Bragança Assistentes de Realização - Fernando Matos Silva, António Vilela e Olavo Rasquinho Fotografia - Luc Mirot Operador de imagem - Elso Roque e Eduardo Ferros (assistente) Montagem - Margarette Mangs Assistentes de Montagem - Emília de Oliveira, Isabel Marques e Noémia Delgado Som - Heliodoro Pires Música - Carlos Paredes Intérpretes - Isabel Ruth (Ilda), Rui Gomes (Júlio), Paulo Renato (Afonso), Cândida Lacerda (Patroa), Carlos José Teixeira (Patrão), Irene Dyne (Prima), Ruy Furtado (Raul), Harry Weeland (Inglês), Alberto Ghira, Órcar Acúrcio, José Victor, Rui Castelar, Carlos Alberto dos Santos, Carlos Canduzeiro, Manuel de Oliveira, Raul Dibini, Maria Helena, Joaquim António Mendes, Victor Dias, Carlos Jesus Afonso, Carlos Rodrigues, Elisa Maria, Henriqueta Domingues, Manuel Bento, Manuel Reis e Olga Campos.
Sinopse Nos Verdes Anos, por detrás da perturbante história de amor entre dois jovens adultos, conta-se a história de dois campónios recém-chegados à cidade. Somos guiados através dos olhos de Júlio que vem para Lisboa viver com o tio e trabalhar como sapateiro. No dia da chegada, um incidente leva-o a conhecer Ilda, jovem da mesma idade, empregada doméstica numa casa próxima da oficina onde Júlio trabalha. Júlio sente-se num ambiente estranho e hostil, não se conseguindo enquadrar na cidade e procurando conforto na ideia segura do casamento, que Ilda recusa. Embora procure encaixar-se na vida da capital é incapaz de lidar com a rejeição da namorada, acabando por matá-la. Paulo Rocha filma as paisagens desoladas de uma Lisboa em construção, entre dois espaços aparentemente contraditórios (já que ambos são periferias): uma urbana, os novos bairros nas Avenidas Novas, onde trabalham os dois personagens principais, e uma rural, onde Júlio vive com o tio, lugar já ameaçado pelo crescimento da cidade. Rocha estabelece também uma dicotomia entre uma Lisboa contemporânea, diurna, onde a maior parte da acção decorre; e uma Lisboa antiga, nocturna, onde alguma liberdade é permitida.
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Belarmino Realização – Fernando Lopes Produção – António da Cunha Telles/Produções Cunha Telles Diálogos – Fernando Lopes, Baptista-Bastos e Manuel Ruas Assist. Realização – Fernando Matos Silva Dir. Fotografia – Augusto Cabrita Imagem – Elso Roque Montagem – Manuel Ruas Dir. Som – Heliodoro Pires Sonoplastia – Alexandre Gonçalves Música – Manuel Jorge Veloso, Justiniano Canelhas, Conjunto Hot Club Portugal
Sinopse Belarmino retrata a história do outrora pugilista Belarmino Fragoso. Uma história de altos e baixos, de constantes dificuldades, da solidão, do medo, da decadência, o retrato de um homem que é também o do país. Apresentado como um documentário, com notórias influências do neo-realismo italiano, da nouvelle vague francesa, e do cinema directo inglês, Belarmino é um dos filmes chave do Novo Cinema Português.
O Cerco Argumento - António da Cunha Telles, Gizela da Conceição, Carlos Rodrigues, Vasco Pulido Valente Realização - António da Cunha Telles Produção - Cinenovo Filmes Produtor - Virgílio Correia Exteriores - Lisboa - Graça, Parque Eduardo VII Formato - 35 mm p/b Género - ficção (drama social Duração - 120 min. Intérpretes - Maria Cabral, Ruy de Carvalho, Miguel Franco Sinopse Uma filha da alta burguesia de residência lisboeta, Marta, deixa o marido. Fartou-se. Sabe que há coisas que já não lhe interessam e tenta vida nova. É hospedeira de terra numa companhia de aviação e modelo de uma agência de publicidade. Tem problemas de dinheiro e recorre a Vítor, para melhorar as coisas. Mas tudo piora. Vítor – um contrabandista a quem a vida já tudo ensinou e que já não tem esperança – agrada-lhe, conforta-a, mas não lhe dá nada do que verdadeiramente precisa. Certo dia, ele aparece morto. Culpa sua? Um descuido? E Marta prossegue, sempre de certo modo sozinha, o seu caminho, em busca de qualquer coisa, numa terra que não é bem a sua. 136
Uma Abelha na Chuva Realização - Fernando Lopes Produção - Média Filmes Argumento Original - Carlos Oliveira Argumento - Fernando Lopes Intérpretes - Ruy Furtado, Zita Duarte, João Guedes, Laura Soveral, Carlos Ferreiro Dir. Fotografia - Manuel Costa e Silva Montagem - Fernando Lopes Decoração - Maria Helena Matos Dir. Som - Alexandre Gonçalves Música - Manuel Jorge Veloso, Giuseppe Verdi Dir. Produção - Fernando Matos Silva Produção Executiva - Alfredo Tropa, Faria Aboim
Sinopse Adaptação cinematográfica de Fernando Lopes ao romance de Carlos Oliveira, este filme é definido pelo cruzamento de duas histórias: de um lado Maria Prazeres e Álvaro Silvestre, os senhores da casa; do outro, Clara, a criada, e Jacinto, o cocheiro. Um universo rural opressivo, marcado por silêncios, desencontros, frustrações e pelos conflitos entre as personagens que reflectem as difíceis relações entre classes e as suas diferenças. Um ambiente cinzento e frio marca insistentemente o filme, mergulhando as personagens numa atmosfera indecisa e indefinida, criando, assim, um certo misticismo nas suas actuações. Entre a crise e a opressão, frustrações e conflitos, o desejo e o amor proibido. De um lado uma história sem fim, um universo de repetição e de um amor impossível; do outro, uma história de amor que de um momento para o outro passa da felicidade à tragédia, da água ao fogo.
O Recado Argumento - José Fonseca e Costa Realizador - José Fonseca e Costa Dir. Produção - Henrique Espírito Santo Director de Fotografia - José Ochoa Assistente de Imagem - José Abel Aboim Director de som - Virgílio Luz Efeitos sonoros - Luís Castro e Alexandre Gonçalves Sonoplastia - Luís Barão e Heliodoro Pires Música - Rui Cardoso Montagem - José Fonseca e Costa Assistente de montagem - Solveig Nordlund
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Sinopse Retrato social do país, tem em Lúcia (Maria Cabral) a sua personagem principal. Cortejada por António, da mesma classe, guarda em Francisco, marginal e aventureiro, memória amorosa. Este último, após longa ausência, regressa à terra e, através de Malde-Vivre (José Viana), envia-lhe um recado para que se reencontrem. Lúcia sente-se atraída pelo mundo da resistência aos valores da burguesia mas é, ao mesmo tempo, incapaz de aderir a ele. Francisco não aparece no dia e no local marcado o que levará a que Lúcia se entregue perante os valores que António representa. Mais do que a história sobre as indecisões e opções de Lúcia, este é um filme sobre um povo alienado, indiferente ao que se passava à sua volta.
Perdido Por Cem Realização - António Pedro Vasconcelos Produção - CPC - Centro Português de Cinema Argumento - António Pedro Vasconcelos Assist. Realização - José Nascimento Intérpretes - Carlos Ferreiro, Rosa Lobato Faria, José Cunha, Marta Leitão, José Nuno Martins, Ana Maria Lucas, António Machado, António Rama, Albano Pereira Carmizé, Nuno Pereira Dir. Fotografia - João Rocha Montagem - António Pedro Vasconcelos Dir. Som - Ruy d’Almeida e Mello Sonoplastia - Alexandre Gonçalves Música - Paulo Gil e Paulo de Carvalho Dir. Produção - Paulo Gil Sinopse Artur é um jovem da província que, ao regressar a Lisboa após ter passado os meses de Verão na sua terra natal, aceita a boleia de Rui, um empresário de reputação duvidosa que o apresenta ao mundo da rádio e da publicidade. Durante a viagem, conhece Joana que, tal como ele, nasceu na província mas sonha com a cidade. Através de uma sucessão de episódios que testam constantemente a sua capacidade de sobrevivência, Artur vê-se preso a uma vida sem esperança, de futuro incerto e paixões obsessivas, em que a única saída parece ser a emigração.
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O Mal Amado Realizador – Fernando Matos Silva Assistentes de realização – José Nascimento e Francisco Manso Fotografia – Manuel Costa e Silva Assistente de imagem – Pedro Efe Iluminação – Manuel Carlos Silva e Carlos Manuel da Silva Decoração – Mário Alberto Director de som – Alexandre Gonçalves Operadores de som – João Diogo, José de Carvalho e Luís Filpe Música – Luís de Freitas Branco Montagem – Fernando Matos Silva e Alexandre Gonçalves
Sinopse João, um jovem desajustado e Mal Amado à procura de respostas, abandona os estudos e, através das influências e contactos do pai, começa a trabalhar num escritório. Rodeado de mulheres, acaba por se envolver com Inês, a sua chefe, uma mulher solitária que vive assombrada pela morte do irmão na guerra colonial. Mas se, inicialmente, a sofisticação e a posição social de Inês entusiasmam João, no final ele acaba por preferir Leonor, uma rapariguinha de valores mais tradicionalistas. A obsessão e o ciúme levam Inês à loucura, que põe termo ao seu sofrimento matando João a tiro.
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