Sombra de um anjo

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Sombra de um Anjo Ana Beatriz Brandão

Prólogo

Meu nome é Samantha Lyterin, tenho 17 anos e a minha vida é uma droga. Minha mãe morreu quando nasci e não sei nada sobre ela. Meu pai morreu com dois tiros na cabeça, dados por um cara que foi contratado para matá-lo apenas porque ele bebia até desmaiar num bar e depois não pagava. Eu tinha três anos quando isso aconteceu. Fui mandada para um orfanato e fiquei lá até eu ter minha primeira visão, aos nove anos. Acharam que eu era louca quando contei, então me mandaram para um hospital psiquiátrico, onde fiquei até os doze anos, ou melhor, até eu aprender a ficar com o bico calado sobre tudo o que eu via. Depois de inúmeros tratamentos para uma doença que não existia e várias tentativas de fugas, uma enfermeira teve pena da pobre e louca órfã e me adotou. Kathryn Mark era uma mulher baixinha, gordinha e carinhosa, de fala mansa e olhar triste, que me tratava com carinho. Eu e os quatro filhos que ela teve com o primeiro marido, que morreu na guerra, morávamos em uma casa simples, onde não faltava nada. Eu ia pra escola e ajudava a cuidar dos afazeres e dos meus novos irmãos: Jack e Joseph eram gêmeos e tinham sete anos, Sophia tinha quatro anos e o pequeno Benjamin, três. Era uma vida boa, não posso negar. Até minhas visões me deixaram em paz por um tempo, mas tudo mudou quando Kath conheceu um cara no trabalho, Frank, um porco nojento. Os dois tinham inúmeras brigas sempre por motivos idiotas, mas nunca vou me esquecer da última...


Começou por um motivo bobo, um copo de cerveja que Ben derrubou em cima de Frank quando passou correndo pela sala e esbarrou na mesa onde o briguento e os amigos jogavam cartas. Ele se levantou e pegou Ben, na época já com seis anos, pela gola da camisa. Ele já estava com a mão cerrada prestes a dar um soco no menino, quando eu corri e pulei em suas costas com o braço em volta de seu pescoço. Apertei o mais forte que eu consegui e gritei pela ajuda de Kathryn. Com o susto, ele soltou o garotinho e se jogou de costas contra a parede. Bati a cabeça com força e caí sentada no chão sentindo o sangue escorrer pelo meu cabelo, já prestes a desmaiar, mas antes pude ver Kath correr na direção dele com uma faca tentando acertá-lo na barriga. Com um movimento rápido, ele pegou a faca da mão dela e a acertou no coração, girando a faca no lugar. Depois disso não vi mais nada, só a escuridão. Já faz um ano que isso aconteceu. Kathryn Mark morreu naquele dia e Frank foi preso e condenado à prisão perpétua. Os pequenos moram agora com o irmão dela, eu ia visitá-los sempre que tinha folga no meu trabalho de caixa de supermercado. Acabei me mudando para uma pequena pensão de garotas depois do incidente. Minha vida era um tédio, a não ser por um pequeno detalhe: minhas visões estavam cada vez mais frequentes. Me lembro como se fosse hoje do dia em que elas começaram. Eu tinha nove anos, era uma garotinha inocente e blá-blá-blá. Eu pulava feliz pelo jardim do orfanato até tropeçar em alguma coisa e cair de cara no chão. Comecei a chorar, o que acontece sempre quando crianças caem e batem o nariz. Foi então que a vi. Uma pena negra. Não daquelas de pombo ou de pássaro, essa era diferente, era do tamanho do meu antebraço. Eu a peguei e analisei, afinal uma garotinha daquela idade não imaginaria que aquilo faria mal a ela. Aliás, ninguém poderia imaginar. Foi então que aconteceu: eu tive uma visão. PUF! Pisquei e eu estava em outro lugar. Uma sequência de cenas se formou em minha cabeça. Só me lembro de flashes de luz e asas brancas e negras. Também havia uma voz. “Samantha! Samantha, acorda! Preciso que acorde, Samantha!”. Quando voltei a mim, estava no meio do jardim, encolhida, chorando e gritando.


Foi aí que minha vida piorou. Desde que tive cabeça para pensar em tudo o que havia acontecido comigo desde o início da minha vida, decidi que eu não iria me revoltar ou virar uma delinquente como os outros por aí. É verdade que tive meu período de rebeldia logo depois de conseguir sair daquele lugar infernal que era o hospital psiquiátrico. Kath sofreu um pouco comigo, até andei roubando umas carteiras, o que me rendeu alguns dias no reformatório, e não me orgulho disso até hoje, mas posso dizer que foi uma experiência interessante. No final, Kath me ensinou que devemos aprender a aceitar nosso destino e lutar para ter uma vida digna, então resolvi ignorar minha visões e me dedicar aos estudos. Tenho certo talento na vida, era o que me diziam os professores da escola onde cursei o ensino médio, e se é verdade que tirar dez em Botânica, Biologia, Anatomia e essas coisas é ter talento, então eu sou merecedora de um prêmio Nobel. Porém, sou boa apenas em matérias que falam sobre toda a espécie de ser vivo, nada de Matemática, Economia e coisas assim. Motivo pelo qual os outros zombavam de mim, diziam que só era boa nessas matérias porque para fazer poções e bruxaria era necessário saber bastante sobre seres vivos. Eu não tinha muitos amigos, aliás, não tinha nenhum. Eu era daquelas garotas que sempre sentam num canto do refeitório para ler livros sobre plantas, vestindo-se de um jeito esquisito. Era assim que eu vivia: trabalhava no mercado de manhã, depois ia pra escola e voltava para meu quarto na pensão, onde ficava o resto do dia pensando na droga da minha vida. O quarto era enorme, com grades nas janelas, pois a dona dizia que nós vivíamos num mundo muito perigoso para as mulheres. Ele tinha uma decoração brega, papel florido demais nas paredes, móveis que estavam muito velhos e que um dia já tinham sido brancos e minha cama tinha um edredom floral vermelho e preto que pinicava muito. Minha vida começou a mudar quando um certo dia fui abordada no final da aula pela minha professora de Biologia. Ela me perguntou sobre minhas aspirações do futuro, “me livrar dessas malditas visões” era o que eu queria responder, mas me contentei em apenas falar um “eu não sei”. Então ela me disse que tinha entrado em contato com um amigo, reitor de uma pequena universidade da cidade, e que ele tinha visto meu histórico escolar e me


oferecido uma bolsa integral no curso de Biologia, com direito a uma renda mensal para algumas despesas e um quarto no campus da faculdade. Foi assim que meus dias como caloura da Universidade Sant’ France começaram, e não, não consegui entrar em nenhuma fraternidade e nem em nenhum grupo de nerds. Continuei sendo a menina deslocada que senta sozinha no refeitório. Eu passava grande parte do meu tempo livre em uma estufa que havia nos arredores da faculdade. Quando a encontrei por acaso em uma das minhas caminhadas procurando um lugar tranquilo para estudar, ela estava completamente destruída e as flores, murchas. Depois de alguns meses de dedicação de minha parte, ela estava praticamente nova, cheia de flores e cores para todos os lados. Geralmente eu ficava lá para não ver os vultos que me assombravam em outros lugares. A estufa era o único lugar em que eu encontrava um pouco de paz. Nunca tive um diagnóstico exato, eu havia pesquisado em todo o tipo de livro de anatomia, até de botânica, com medo de ter ingerido algo que me deixou louca, mas não havia nada, nunca. Minha rotina se resumia a me levantar todos os dias às cinco horas da manhã, as aulas começavam às seis, terminavam às três da tarde, tínhamos dois intervalos de meia hora. Depois começavam as aulas extracurriculares, você podia fazer do que quisesse: culinária, botânica, desenho, música, basebol etc. Eu fazia duas: Botânica e Astronomia, que era outro assunto que me fascinava.

Corredores

Eu estava exausta, havia acabado de voltar da aula de Botânica e estava suja de terra dos pés à cabeça; usava uma sandália gladiador de couro marrom, um short jeans e uma camiseta tingida verde e amarela, meu cabelo estava preso com pauzinhos vermelhos, como aqueles japoneses, e algumas mechas caíam do coque.


Abri a porta de meu dormitório e dei de cara com uma garota de cabelos azuis-turquesa. Ela estava sentada na minha cama olhando o quarto e quando me viu, deu um pulo. Sorriu, acenou e falou: – Oi! Tudo bem? Sou a Helena, sua nova companheira de quarto. Olhei boquiaberta para ela. Uma companheira de quarto? Como assim?! Balancei a cabeça e falei: – Deve estar no quarto errado, eu... – Não estou, não. Olha, eu sei que deve ser difícil pra você acreditar e tal, mas quando eu e meus pais estávamos escolhendo meus companheiros de quarto não nos deram muitas opções, já que estamos no meio do semestre, então ou era você ou uma menina que cheirava à sopa, como não suporto sopa você foi a escolhida.... É sério! Quando entrei no outro quarto e senti aquele cheiro, a única coisa que passava pela minha cabeça era: será que à noite ela vai arrancar os meus dedos e cozinhá-los junto com um monte de legumes para comer no almoço?... Desculpe, eu falo um pouco demais. – Tudo bem. Era bom que ela falasse bastante, assim eu não teria que contar nada da minha história e nem responder a nenhuma pergunta. A garota tinha os olhos castanho-claros, vestia uma saia branca e uma camiseta preta. Ela tagarelava sem parar sobre o que havia achado do campus da faculdade. – Qual o seu curso? – perguntou. – Biologia. E você? E por que você foi transferida para cá no meio do semestre? – Medicina Veterinária. Eu amo os animais! Só vim pra cá porque fui convidada me retirar da outra faculdade. Isso apenas porque passei por uma fase rebelde e pichei propriedade pública e roubei uns refrigerantes da cantina – disse ela, revirando os olhos. – Tudo bobagem. Eu sabia que era errado. Fiz porque queria que meus pais prestassem um pouquinho de atenção em algo que não fosse trabalho, mas ao contrário do que eu pensava, eles decidiram se livrar de vez de mim, me mandando pra uma universidade de tempo integral. Bom, mas qual o seu nome? – Samantha.


– Sammy, vou te chamar de Sammy. Você faz parte de alguma irmandade? Eu queria muito entrar na Delta, mas é difícil, sabe? Tem que ter indicação ou ter uma beleza incrível, e eu não tenho nenhuma das duas. – Não, eu também não tenho – respondi, não vendo a hora de aquela conversa acabar. Uma garota de irmandade, era só o que me faltava! Helena era uma garota meiga, prato cheio para aqueles que adoram transformar os “não populares” em saco de pancada e motivo de diversão, aquela menina era tão inocente... Com certeza não duraria mais de três dias sem levar uma surra de alguém. Eu tinha pena dela e até estava indo com sua cara, mas seu futuro era bem previsível... Não! Não! Não! Agora não! Já estava acontecendo, eu estava tendo uma visão. Era ela, Helena, eu via tudo aquilo como o... Digamos que era o vilão. Eu a prendia contra um armário, ela chorava e falava “Não! Por Favor!”. Eu tinha uma faca na mão, a levei na direção do pescoço de Helena e o cortei, fazendo com que o sangue escorresse por suas roupas e ela caísse morta no chão. Quando voltei a mim mesma, Helena ainda tagarelava sobre como tudo aquilo era legal e nem sequer havia percebido a cara de horror que eu fazia. Uma coisa que eu havia aprendido depois de tantos anos era que, seja o que fosse que acontecesse em minhas visões, eu deveria ficar calada. Mas eu mal conhecia aquela garota, não podia deixá-la morrer. – Certo, ahn... Preciso tomar um banho, mas não saia sozinha do quarto. NUNCA – falei. Fui na direção do banheiro. Como ainda não conhecia minha nova colega de quarto muito bem, resolvi usar o banheiro coletivo que ficava no final do corredor. Eu estava completamente suja de terra, tomei banho e escovei os dentes. Enquanto me trocava, vi sombras rodearem meus pés. – Dá um tempo! Pisei em uma delas, o que não fez a mínima diferença, a não ser o arrepio percorrendo minha espinha. Balancei a cabeça e me olhei no espelho. No reflexo, havia uma garota de olhos azuis, cabelos ondulados e compridos cor de caramelo. Não parecia ter passado por tudo o que passou. Sorri e


balancei a cabeça, minhas bochechas estavam rosadas, eu tinha o rosto fino e os olhos grandes. Soltei o cabelo e o penteei, ele caía até a altura do quadril. Vesti short jeans, uma camisa preta, cuja bainha amarrei na altura da cintura, e fiz uma tiara com um lenço vermelho, com o laço virado para cima. Andei descalça até o quarto e sentei na cama. Agora Helena estava sentada na cama dela, os lençóis e o edredom eram brancos. – Quer conhecer o lugar? – perguntei. – Quero! Ai que máximo! – Por que está tão animada? – É que eu nunca morei sozinha antes! Balancei a cabeça, me levantei da cama e peguei minha bolsa, fiz um gesto para que Helena me acompanhasse e saímos do quarto. Os corredores eram comuns, até bonitos. Os armários eram verde-escuros, o chão era cinza-escuro e as paredes brancas; ao fundo de cada corredor, na parede contrária à da porta de entrada, havia uma enorme janela que ocupava mais da metade da parede, iluminando todo o corredor. Saímos por uma porta de ferro enorme e chegamos ao grande campus. Havia vários jovens sentados em grupos na grama, cada um com sua turma. Os nerds próximos das árvores com seus livros, os populares juntos em uma mesa ao lado da rua que dava direto para a entrada do prédio principal, os alternativos de outro lado e uma porção de outros grupos espalhados pela grama. Andamos entre eles e vimos os prédios da faculdade que eram... eu não conseguia encontrar um adjetivo certo, algumas vezes os achava bonitos, outras os achava horríveis. Eram três prédios, de um lado os dormitórios com cinco andares, o do meio era o prédio onde ficavam as salas de aula, o laboratório, o auditório, o refeitório e a administração. No último, que ficava ao lado dele, estavam as piscinas, o ginásio de esportes (que também era utilizado para a realização das festas e eventos da universidade) e, no fundo, um campo de futebol com uma pista de corrida em volta. As paredes eram divididas em duas partes, a de cima era branca e a de baixo era coberta por tijolos cinza-escuros e entre as pedras havia musgo.


Costumava chover muito naquela cidade e o clima era tão úmido que eu chegava a ter medo de morrer afogada. Tirei os óculos de sol da bolsa de couro vermelha que eu carregava e os coloquei, as lentes eram negras e redondas, no estilo John Lennon. Mostrei a ela todos os lugares possíveis: os corredores onde ficavam as salas, a administração, a sala do reitor (acrescentando meu desejo de que ela nunca fosse convidada a ir até lá), a piscina de natação, que era aquecida, o refeitório e os banheiros. Mostrei todos os lugares, menos um. Um que era meu e que não dividiria com ninguém: a estufa. Aquele lugar à noite era horrível. Os alunos aproveitavam a escuridão para roubar, bater, namorar ou fazer outras coisas terríveis com os outros, mais parecia um reformatório do que uma faculdade, na minha opinião. Eu e Helena estávamos no corredor e estava escuro, já era noite. – Temos que voltar. Nunca saia sozinha do seu dormitório depois das oito. Está ouvindo? – pedi. – Sim, sim – disse ela, enquanto olhava para o outro lado e sorria, certamente maravilhada demais para prestar atenção. Eu não demorei nada para descobrir o motivo: garotos. Balancei a cabeça e andei em direção ao quarto. Helena entrou logo depois de mim, tranquei a porta e fui direto para o banheiro. Eu gostava de andar descalça pelos lugares, a fim de ter mais contato com a natureza, então sempre que voltava para o quarto eu ia ao banheiro lavar os pés. Voltei e vesti meu pijama. Era um short de moletom cinza e uma regata branca. Os quartos tinham aquecedor, então não era necessário que nos agasalhássemos. Além disso, estávamos em pleno verão, então não fazia muita diferença. Deitei na cama e apaguei o abajur, Helena já estava dormindo, com a roupa que havia chegado mesmo. Era cedo demais para eu dormir. Eu ficava grande parte do tempo deitada na cama, até ter certeza de que todos haviam dormido. Foi o que fiz, fiquei até uma hora da manhã deitada e me levantei. Vesti um casaco de lã cinza, pois apesar de estarmos em pleno verão as noites eram frias, e meus chinelos brancos, andei na ponta dos pés até a porta e a abri. Saí do quarto e fechei a porta. Havia apenas algumas luzes acesas para iluminar o corredor, e às vezes elas piscavam, me deixando totalmente no


escuro. Eu não tinha medo. Andei sem fazer barulho até o lado de fora do prédio. O céu estava nublado, anulando qualquer chance de procurar constelações. Me dirigi direto para a estufa. Dentro dela a temperatura era de mais ou menos vinte e cinco graus. Eu tinha flores de todos os tipos. A professora de botânica era a única que sabia da existência da estufa, e me doava sementes de flores. Ela havia até me dado um dos maiores presentes que eu já havia ganhado, a minha flor favorita, uma tulipa negra. Eu cuidava dela como se fosse uma filha, era o meu xodó. Eu tinha lírios, watsonias, rosas, helicônias, íxias, girassóis e todo o tipo de flor que conseguia imaginar, cada uma tratada de um jeito especial, de um jeito único. A estufa foi construída em uma região de ladeira. A parte da frente era virada para a subida e a trilha que levava até a faculdade e a parte de trás era voltada para a descida e sustentada por enormes vigas. Havia também uma grande porta de vidro que ia do chão ao teto. Logo que descobri a estufa me perguntei o porquê de se ter colocado aquela porta ali, afinal não poderia ser a saída da estufa, já que ela ficava a pelo menos dez metros de distância do chão. Pensei que talvez fosse esse o motivo pelo qual eu a adorava. Era ali que eu costumava me sentar para olhar a paisagem, ou as estrelas nas noites mais claras, isso ajudava a me desligar do mundo. Aquele era um lugar onde eu me sentia segura e feliz. E era exatamente ali que eu estava quando uma sensação quente atingiu as costas de minha mão, como se alguém tivesse posto a mão por cima da minha. Quando olhei, não havia nada e a sensação havia sumido. – Pode me assombrar em qualquer lugar, menos na minha estufa, por favor – falei. Eu não sabia com quem estava falando, nem se realmente havia alguém ali, mas era melhor deixar bem claro para o caso de haver. Já estava tarde e o sono estava chegando. Resolvi voltar ao dormitório, então tranquei tudo e caminhei em direção ao campus. Eu estava subindo a ladeira quando senti uma sensação estranha, um arrepio subindo por minha espinha. – Samantha – ouvi alguém sussurrar meu nome.


Girei no lugar. Quem havia me chamado? Uma risada ecoou na minha cabeça. – Samantha. – A mesma voz, só que agora falava alto, era um homem, pelo menos era o que parecia. – É mais inteligente do que isso, Samantha. – O que você quer? – Não havia ninguém ali, devia ser tudo coisa da minha imaginação. – Não é o quê. É quem. Samantha, minha querida, você sabe quem eu quero, também sabe quem eu sou. – A voz era quase um ronronado, rouca e grossa. – O que quer de mim? Novamente a risada. Eu girava no lugar, procurando quem poderia ser, mas não havia ninguém, apenas o escuro. Corri para o meu quarto, a risada ficava cada vez mais alta em minha cabeça. Cheguei ao corredor dos dormitórios, as luzes pareciam piscar mais rapidamente, depois uma por uma foi se apagando atrás de mim. Quando finalmente cheguei ao meu quarto, percebi que a porta estava emperrada, foi aí que todas as luzes se apagaram. Eu não tinha medo, só sentia agonia por ficar no escuro. Minha respiração começou a ficar ofegante de tanto tentar abrir a porta. Então desisti, encostei minhas costas nela e fechei os olhos. As luzes ficaram mais alguns segundos apagadas e se acenderam, ficaram dois segundos acesas e mais dois apagadas, e assim foi. Depois de um tempo começaram a piscar mais lentamente, abri os olhos e vi uma sombra negra vindo pelo corredor em minha direção. –Vai se ferrar! Se quer me dar medo mande algo mais assustador do que isso – falei. A risada em minha cabeça, que continuava alta, cessou nesse momento e disse: – Foi você quem pediu. A luz piscou mais uma vez e quando voltou a acender havia várias pessoas no corredor, pessoas... mortas, mas todas eram conhecidas. A professora de botânica, Helena, os alunos da minha sala e o homem que eu lembrava ser meu pai. Todos jogados no chão do corredor, com feições de pânico e sobre poças de sangue. O sangue começou a escorrer em minha direção, me espremi contra o batente da porta tentando ficar o mais longe


possível dele, me virei rapidamente e tentei abrir a porta novamente. Agora sim eu estava com medo. Tudo parecia acontecer em câmera lenta, as luzes piscavam mais lentamente e o sangue vinha cada vez mais devagar em minha direção, tampei os ouvidos, fechei os olhos e gritei “CHEGA!”, fiquei imóvel por alguns instantes e quando voltei a abri-los tudo havia sumido, o corredor estava limpo e não havia ninguém nele além de mim. Suspirei aliviada, mas não durou muito, as luzes piscaram mais uma vez e quando olhei para o meu lado esquerdo, todos os mortos estavam de pé me encarando. Soltei um grito abafado e me joguei contra a porta. Ela abriu com um baque e eu caí no chão, chutei a porta e ela se fechou, me deixando no escuro, no chão do meu dormitório. A voz tinha parado e eu podia ver por baixo da porta que as luzes haviam se apagado completamente. – Que droga foi aquela? – perguntei para mim mesma.

Férias de verão

Passei dias explicando a Helena o porquê de toda a confusão daquela noite. Com o baque, ela acordou assustada achando que eu ia atacá-la. Expliquei que tinha sentido fome e ido até o refeitório e quando voltei a porta estava emperrada e tive que me jogar contra ela para conseguir abrir. No começo ela me atormentou perguntando se eu estava me encontrando escondido com algum gatinho, mas depois de ouvir muitos nãos e pedidos para me deixar em paz ela acabou aceitando minha versão da história. Eu e Helena havíamos nos tornado melhores amigas, passávamos o dia inteiro passeando pelo campus. Eu a ensinei a ver todas as constelações e ela me ensinou a cozinhar e como combinar roupas. Ela tinha conseguido entrar na tal irmandade que desejava, mas a alegria dela durou pouco quando descobriram com quem ela dividia o quarto. Acabei com a vida social dela, mas mesmo assim ela não deixou de ser minha amiga. Ainda bem, pois eu gostava muito de nossas conversas, que eram, aliás, muito mais um monólogo. Eu só ria e ouvia enquanto ela falava, falava, falava mais um pouco e depois falava mais ainda.


Ela era uma garota alegre. Todos os dias eu ficava pensando se seria naquele dia que ela morreria, por isso eu tomava muito cuidado para não permitir que ela saísse sozinha depois das oito. Eu nunca mais ouvi aquela terrível voz, mas todas as vezes que eu ia à estufa, tinha a sensação de não estar sozinha. Estávamos lendo embaixo de uma árvore, o dia estava mais quente do que o inferno a ponto de eu não conseguir sequer ver as letras do livro por causa do suor que escorria da minha testa. – Vamos tomar uma limonada, estou morrendo de sede – propus. – Beleza. Helena se levantou e nos dirigimos ao refeitório. Fomos até uma máquina de refrigerantes que havia perto da entrada, peguei uma limonada normal e Helena, a rosa, nos sentamos em uma das mesas, olhei pra ela e perguntei: – E aí? O que está achando da “Universidade Presos no Inferno”? – Estou achando a “Universidade Presos no Paraíso”! Cara! Ficamos livres a tarde inteira sem os pais enchendo o nosso saco! Temos piscina! Podemos fazer o que quisermos! Não sei por que não gosta deste lugar. –Você é muito ingênua, Helena... – Ora, ora! A esquisita e a sem cérebro – falou uma garota que passava, usando um biquíni branco, óculos pretos e com o cabelo loiro preso em um coque. Tifanny, a garota mais popular da faculdade, presidente da Delta e que nutria uma certa raiva da Helena por ter abandonado a irmandade e que por mim sentia desprezo, pois me achava menor do que um inseto. – Quem você está chamando de sem cérebro, loira burra? – perguntou Helena. – Tente tirar uma nota maior do que a da minha amiga em Biologia, só depois que conseguir vai ter moral pra chamá-la de algo que não seja o nome dela. – Não esquenta, Helena. A cadela tá no cio. Ignora – falei, enquanto me levantava. – O que você disse, sua bruxa louca? Essa era a única coisa da qual eu não admitia que me chamassem. Antes que eu pudesse pular em cima da garota, Helena foi mais rápida. Agora


ela a estava estapeando e xingando. Uma coisa que eu havia descoberto sobre Helena em nossa convivência é que ela não era tão indefesa quanto parecia. Como eu havia previsto, não demorou muito para que alguém arrumasse confusão com ela. Foi no terceiro dia no horário do almoço, Helena tinha acabado de pegar a bandeja com o almoço e estava indo em direção à mesa que eu estava, quando uma menina entrou na frente dela, pegou a sobremesa de sua bandeja e falou algo que eu não consegui escutar. De repente, só consegui ver de longe a bandejada na cara da provocadora e um dente voando, a menina caiu no chão e Helena na maior tranquilidade do mundo disse pra ela nunca mais roubar a sobremesa dela; se virou e seguiu em minha direção como se nada tivesse acontecido, com a maior cara de paisagem começou a comer. Mas é claro que aquele ato não passou em branco: os pais dela foram chamados e ela quase foi expulsa de novo. Tirei Helena de cima da garota e a levei para fora do refeitório. – Obrigada – agradeci. – Nada. É pra isso que servem as amigas, além do mais eu estava louca para desarrumar aquele coque horroroso que ela estava usando. Nós duas rimos e eu a abracei. Nunca tive uma amiga que entrasse numa briga por mim. Na verdade, nunca tive uma amiga, até agora. Eu ainda não tinha mostrado a estufa para Helena, nem planejava fazer isso. Eu sei que parece egoísta, mas eu temia que a razão de eu não ver sombras naquele lugar era o fato de ele ser secreto. Assim ninguém levava energia ruim para lá. – O que quer fazer no resto do dia? Estou entediada – eu disse a Helena. – É, tem razão. Esse lugar é um porre. Além da piscina, não tem mais nada pra fazer. – Na verdade tem. – O quê? – Estudar. – Tá zoando né? ESTAMOS DE FÉRIAS!!! Sorri e olhei para baixo. Eu geralmente passava as tardes cuidando das flores, mas Helena achava isso um saco. –Vamos tomar banho, depois a gente vê – sugeri.


Helena assentiu e fomos para o quarto, tomamos banho e nos trocamos. Eu vestia short jeans e uma camiseta azul-bebê. Sentei-me na minha cama e Helena na dela. – Qual vai ser a primeira coisa que vai fazer quando se formar? – perguntei. – Quero ir à Flórida. Meu sonho é ir pra lá, ou Amsterdã. Conhecer campos floridos e pássaros cantantes com um lindo garoto ao meu lado, pular pelo campo de mãos dadas com ele e... – Tá, acorda – falei, sorrindo. – Tô falando sério! Mas e você? – Quero... comprar uma casa com um jardim enorme, adotar um labrador e plantar vegetais e flores no jardim. Tudo o que eu comer virá da horta. – Nenhum romancezinho? Sorri e olhei para baixo. Eu nunca havia pensado nisso, nem em filhos, nem em nada. Para mim, o meu futuro se resumiria a estudo, animais, plantas, e, o mais importante, a trabalho. Helena riu e perguntou: – Você nunca teve um namorado?! Nem um ficante? Nada assim?! – Ah, claro! Eu tinha um namorado no hospital psiquiátrico! Dividíamos as camisas de força. Também tive um no orfanato só para meninas que eu morava. Ah! Também tem o namorado do berço ao lado da maternidade e o melhor de todos foi o daqui da faculdade e que conheci na aula de botânica, ele era ruivo e era anão, todos o chamavam de anão de jardim, o que era engraçado, porque ele sempre usava uma touca pontuda vermelha e ele era do tamanho da minha canela – falei, sem graça. – O que você acha? – Nossa! Que ausência de vida social! Pra alguém que ama a vida você maltrata bastante a sua. Tenho certeza de que nunca teve namorado aqui por opção. Você parece uma deusa grega! A Afrodite, que é a mais bonita de todas. Olha os seus olhos azuis! E esses dentes perfeitamente brancos? Mas o melhor é o seu cabelo, senhorita madeixas perfeitas. Olhei para baixo, visivelmente envergonhada. Eu não acreditava em nenhuma palavra dela, mas pelo menos ela tinha tentado. Ela não sabia dos meus problemas, os que realmente afastavam as pessoas. Ela não sabia sobre as sombras, nem sobre os vultos e muito menos sobre as visões.


– Mas e você, senhorita Barbie do cabelo azul? – perguntei. – Já tive, pelo menos dois. Fui eu quem terminei com eles. O primeiro foi por causa do segundo e o segundo foi porque eu tive uma recaída com o primeiro, a segunda vez com o primeiro porque ele me traiu com outra e fim. Ri e balancei a cabeça. Ela continuou a tagarelar: – Sabe... agora vejo o quanto fui burra. Eu tinha a vida perfeita. Tinha quase tudo, menos a atenção dos meus pais, não se pode ter tudo. Aí porque eu fui tentar ter tudo acabei perdendo o que tinha e vim parar aqui nesse fim de mundo, sem ofensas. Pelo menos eu tenho uma amiga. –Você não estava dizendo que isso aqui era um paraíso meia hora atrás? – Estava, mas eu devia ter tomado muito sol na cabeça. Ri e olhei para o lado de fora. Helena pintava suas unhas com um esmalte vermelho e mal me olhava. Helena era perfeita, tinha uma vida perfeita antes de vir pra cá. Eu sinceramente gostaria de ter tido a vida dela. Mas não poderia, nunca.

Garoto novo

– Vamos, Helena, acorda. Precisamos ir para a aula. – Eu a sacudia, mas ela parecia uma pedra. Se ela não queria acordar era problema dela. Eu havia passado a noite na estufa. Tinha tido a maior felicidade da minha vida: uma pequena mudinha no vaso da minha tulipa negra. Por causa da noite em claro, agora eu estava morrendo de sono. As férias haviam acabado e esse era o primeiro dia de aula do segundo semestre. Estávamos na pior estação do ano para mim, o outono. A estação na qual eu perdia todas as minhas flores. Não entendia como minha tulipa havia nascido naquela estação do ano, o que me deixava mais preocupada com ela e com a possibilidade de que não vingasse. Eu já estava pronta para a primeira aula, usava uma saia godê rosaescura, uma regata branca, um cinto de couro marrom fino e sapatilhas da


mesma cor. Meu cabelo estava solto e eu usava uma tiara, também de couro marrom. Eu era a única naquele lugar que não se vestia como punk ou uma patricinha de Beverly Hills. Eu usava as roupas que tinha conseguido comprar com meu mísero salário do supermercado e todas foram compradas em brechós. Ainda assim, eu parecia uma criança. Fui em direção à sala, a primeira aula era genética. Fiquei feliz quando recebi meus horários e vi que era o mesmo professor que me dava aulas de botânica. Estranhamente, eu confiava nele, não sei explicar o motivo. Somente me lembrava de ter visto uma sombra, me assustado e saído correndo, chorando e depois ter trombado com ele no corredor. Foi quando ele ganhou a minha confiança. Depois de uma conversa acabei contando o que acontecia comigo. Foi um alívio poder dividir aquilo com alguém, ele não me tratou como louca e nem achou que eu estava mentindo para cabular aula, muito pelo contrário, disse que acreditava em mim e me deu um terço de madrepérola que carregava com ele, falando que aquilo me protegeria. Pena que não adiantou. Bati na porta da sala e entrei. Ainda não havia ninguém além do professor. Que novidade! Revirei os olhos e sorri, eu era sempre a primeira a chegar na sala, me sentei na cadeira em frente à mesa dele. – Aconteceu algo muito estranho comigo no último dia de aula do primeiro semestre, professor Miguel – falei. O professor Miguel tinha por volta de uns cinquenta anos, era barrigudo, só tinha cabelos dos lados da cabeça, usava óculos fundo de garrafa e a camisa por dentro da calça, além de usar uma gravata borboleta diferente a cada dia. Agora ele estava com uma vermelha. – O quê, Samantha? Contei a ele tudo o que havia acontecido, menos a parte em que eu estive na estufa. Esta eu substituí por “Eu estava voltando do refeitório, pois tinha ido pegar uma água, quando ouvi uma voz em minha cabeça...”. Ele ouviu tudo atentamente e ficou visivelmente pálido quando cheguei à parte dos mortos. Quando ele abriu a boca para falar alguma coisa, Helena entrou na sala segurando um milhão de livros. Estavam todos quase caindo, ela apoiou as


costas no batente da porta, segurou os livros com uma mão e voltou a abrir a porta que iria fechar em cima dela com a outra mão. – Alguém me ajuda aqui, por favor? Ri e peguei os livros dela, que eram extremamente pesados; os coloquei na cadeira ao meu lado e ela suspirou aliviada. Vestia um minishort branco, uma camiseta preta cuja bainha ficava na altura da cintura, uma tiara feita com um lenço preto de bolinhas brancas e óculos de grau aviador prateados. Ri de sua feição cansada e sonolenta. – Por que não guardou os livros no armário? – perguntei. – Eu não sei onde fica! – Eu te mostrei as férias inteiras, garota! – disse, rindo. Me virei para o professor Miguel e a apresentei: – Minha “nova” companheira de quarto. Helena, Miguel. Miguel, Helena. Miguel é nosso professor de Genética. – Oi, professor Miguel! – Helena respondeu enquanto sentava na cadeira ao lado da minha. Me sentei também e logo depois os outros alunos começaram a entrar na sala. O professor estava explicando algo sobre a fisiologia de alguma espécie animal ou sei lá o quê, quando houve duas batidas na porta. Era o reitor da faculdade. Ele chamou o professor Miguel, que saiu da sala. Todos automaticamente começaram a conversar, Helena me olhou e riu. – Que roupas são essas? Parece uma criança! - Desculpe, mas não sou como você que pode escolher entre um milhão de roupas. Eu sou pobre e não posso comprar roupas descoladas como as suas, princesinha. E você viu essas roupas as férias inteiras e nunca reclamou. – É que eu achava que eram roupas apenas de férias, não sabia que as usava nas aulas. Venha. – Helena se levantou e me puxou para fora da sala. Ouvimos a voz do reitor atrás de nós. – Aonde as senhoritas vão? – Ao banheiro – disse Helena, já correndo pelo corredor sem dar oportunidade para que ele protestasse ou nos impedisse de sair. Ela me puxou pelos corredores e praticamente me jogou dentro do quarto, abriu a mala rapidamente e pegou algumas roupas.


– Helena, precisamos voltar! – eu reclamei. – Relaxa! Entra no banheiro e veste isso. Ela me entregou algumas peças de roupa, entrei no banheiro e me tranquei. Havia uma calça jeans rasgada e justa, uma regata branca, uma camisa vermelha quadriculada e uns colares estranhos. Dei de ombros e vesti, dobrei as mangas da camisa até os cotovelos e coloquei algumas pulseiras. Saí do banheiro e Helena ficou boquiaberta. – Agora sim parece uma garota madura! – Uma garota madura e que vai ao shopping, não uma que vai pra aula. – Quem liga? Dei de ombros e a puxei de volta para a sala. Como o professor não estava mais no corredor, achei que ele já havia voltado para a sala; então, bati duas vezes na porta e entrei. Ele ainda não tinha voltado, e a maioria dos alunos estavam no fundo da sala conversando, apenas Helena e eu nos sentamos nas cadeiras da frente. Helena mudou de lugar e ficou atrás de mim, na fileira da parede. Me virei de lado e perguntei: – O que acha que eles estão conversando lá fora? – Não faço ideia. Nesse instante, o professor entrou na sala. - Teremos um novo aluno. O nome dele é Gabriel. Um garoto de uns dezessete anos entrou na sala, ele tinha o cabelo castanho-escuro e os olhos azuis-claros. Ele era... lindo e familiar, mas óbvio que eu nunca o tinha visto na vida, se tivesse jamais esqueceria, então não tinha como conhecê-lo. Ele usava uma camisa azul-clara, da cor dos olhos, uma calça jeans escura e tênis brancos. Todas as garotas suspiraram, menos eu. O garoto me olhava fixamente, nem tinha chegado a olhar para os outros, já havia entrado na sala olhando na minha direção, como se já soubesse que eu estaria sentada ali. Desviei o olhar e pigarreei. Ouvi a voz de Miguel: – Pode se sentar ali ao lado da Samantha. Ai, não! Samantha era eu, né? Infelizmente, sim. – Samantha? – perguntou o garoto. Sua voz era incrivelmente angelical e linda.


– É isso aí que você escutou, Samantha. – Senti que as palavras saíram mais rudes do que eu queria. – Nossa, amiga, não precisa ser tão grossa – cochichou Helena, atrás de mim. Gabriel deu de ombros e se sentou ao meu lado, um arrepio percorreu minha espinha, eu estava ficando tensa. Uma sombra passou à frente da janela ao meu lado. Desviei o olhar, mas me surpreendi com o que vi. Gabriel também olhava para a sombra. Juntei as sobrancelhas e o observei, pensando se ele poderia estar vendo o mesmo que eu. Balancei a cabeça e voltei a prestar atenção na aula. Quando a aula acabou, me levantei e praticamente corri para fora da sala. Um pressentimento ruim estava me atingindo. Girei no lugar enquanto estava no corredor. Não. Não. Ali não. Já era tarde demais, eu estava tendo uma visão. Eu estava em um lugar em chamas, segurava minha tulipa negra, cercada pelo fogo, mas ele estranhamente não avançava além de uma linha de um metro de distância de mim. O ar estava cheio de fumaça e eu não conseguia respirar. Alguém me pegou no colo e eu perdi a consciência. Agora eu tinha voltado para o corredor, estava em pânico, Helena estava à minha frente e me olhava como se esperasse que eu respondesse uma pergunta, levantou as sobrancelhas, impaciente. – É... sim. – Foi tudo o que consegui resmungar. – Sim o quê, garota? Eu perguntei qual é a sua aula de agora! – Ah, é Botânica. E a sua? – Matemática. Fui! – disse ela, enquanto saía pelo corredor. Eu estava andando na direção da sala de aula, quando alguém segurou o meu braço. Era Gabriel. Levantei uma sobrancelha e olhei confusa para ele, que me deu um sorriso torto e perguntou: – Seu nome é Samantha, não é? – Ahn... não. – Menti. – Então você não é a garota que pode me ajudar. – Gabriel soltou meu braço e continuou andando.


– Ei! Espera! – Corri em sua direção e fiquei na frente dele. – Pra que precisa da minha ajuda? – Pra achar a sala de Botânica. – Ah. Me virei e comecei a andar, ele me seguiu, eu abraçava um livro de Literatura: – Por que falou que eu era a única que poderia te ajudar? – É que você é a única que tem as mesmas aulas que eu, e como eu sou novo aqui, precisava de ajuda para achar as salas, então perguntei quem você era e te descreveram pra mim, cabelo castanho-claro, olhos azuis... Enfim, você. É claro que sentar ao seu lado na última aula me ajudou bastante a reconhecê-la. Dei de ombros e voltei a olhar para o chão. De repente, surgiu uma sombra no chão à frente dos meus pés. Eu parei no mesmo instante, tinha levado um susto enorme. Soltei um grito, abafado pela minha mão. Gabriel parou e olhou para mim, perguntou: – O que houve? – Nada. – Menti e passei por cima da sombra. Ótimo. Eu tinha acabado de dar uma de louca na frente do garoto. Perfeito. Todas as garotas que passavam olhavam para ele e suspiravam. Revirei os olhos e continuei andando. Gabriel me acompanhou em todas as aulas daquele dia. Fomos para o refeitório juntos, até que em um momento ele começou a rir. – O que foi? – perguntei. – Olha, eu sei que é chato ter alguém no seu pé o tempo inteiro... Sorri e dei de ombros. – Como eu sei que é chato, vou te deixar em paz. – Não! Tudo bem! Não tem problema nenhum. É só que eu não estou muito acostumada a que as pessoas falem comigo. Vou tentar ser mais legal a partir de agora. Vamos começar de novo – falei mais alto e apressadamente do que eu gostaria. Gabriel levantou as sobrancelhas e sorriu. Estendeu a mão, eu a apertei e sorri. – Oi. Sou Samantha, mas pode me chamar de Sammy. Ou Sam. Ou Samantha mesmo. Tanto faz.


– Oi. Sou Gabriel, mas pode me chamar de... Gabriel. Rimos e nos sentamos à mesa que estava ao nosso lado, o refeitório estava começando a lotar. Eu estava esperando Helena, mas ela parecia nunca chegar. Coloquei meu livro em cima da mesa, cruzei as pernas e me virei para Gabriel, que me olhava pensativo. Seus olhos azuis pareciam ter clareado um pouco, me perguntei o porquê de um garoto como aquele estar falando comigo. Não havia explicação. –Você chegou hoje? – perguntei. – Não, na verdade foi ontem à noite. – Por que veio pra cá? – Total falta de opção. E você? Porque escolheu Sant’ France? – Ganhei uma bolsa de estudos integral, acho que eles pensam que eu sou algum tipo de gênio, sei lá, mas tenho certeza que estão total e completamente enganados. Gabriel abriu a boca para falar algo, mas logo a fechou, pois Helena se sentou à mesa conosco, segurando um bolinho de carne: – Alguém aí quer? – Não, obrigado – respondeu Gabriel. – Sou vegetariana, lembra? – falei, olhando para o outro lado. – Sério?! – surpreendeu-se Helena. – Você não tem vida, garota! – Pelo contrário, tento salvar a vida o máximo possível. Nunca percebeu que eu não como carne? É mais distraída do que eu pensava – falei e me levantei da mesa. Caminhei na direção da mesa de frutas e peguei uma maçã, sentei novamente na mesa e a mordi, Gabriel me olhava de um jeito estranho. O que foi? – perguntei. – Nada. Que aulas extracurriculares você faz? – Astronomia e Botânica. E você? – Nenhuma – respondeu. – Ah, eu faço Moda e Culinária, não teria tempo para mais nada – falou Helena, se intrometendo. Sorri, e dei mais uma mordida na maçã. Coloquei os pés em cima da mesa e ri, Helena me olhou confusa e perguntou com a boca cheia:


– O que foi? – Nada, é que depois dos anos no colégio e metade do primeiro semestre aqui sozinha, de um dia pro outro eu ganho dois “colegas de mesa” para depois das aulas. – Sorri e mordi novamente a maçã. Gabriel deu de ombros e olhou para baixo, o sinal tocou e me levantei, perguntei para Helena: – Qual é a sua aula? – Microbiologia, aff – respondeu revirando os olhos. – Então eu vejo você mais tarde.

Uma vida

As aulas haviam acabado e eu prometera a Gabriel que lhe mostraria o campus. Haveria uma festa em um dos dormitórios naquela noite e é claro que ele já tinha sido convidado e Helena também. Quanto a mim? Claro que não. A mim só restava minha linda estufa. A festa começaria às nove, ainda eram seis horas e eu não tinha terminado de mostrar o lugar para Gabriel. Ele tinha ficado indeciso sobre aceitar o convite, pois eu não iria. Insisti para que ele fosse, afinal Helena iria e eu queria que ele a acompanhasse por causa da minha visão. Ela tinha ido para o quarto escolher suas roupas e se arrumar. – Aqui é o jardim, temos um pedaço de terra para cada um na aula de Botânica. Havia um grande jardim à nossa frente, dividido por vários quadrados, cercados com arame farpado cuja altura era de aproximadamente um metro e meio. – Qual é o seu? – Adivinhe. Gabriel sorriu ao meu lado, o sol estava se pondo, estávamos sozinhos naquela área. Havia várias flores bonitas no jardim, mas uma área específica estava impecável: é claro que era a minha, mas eu não diria isso a ele. Gabriel se aproximou do jardim e passou por entre os espaços livres.


– Nenhuma dica? Sorri e balancei a cabeça, e Gabriel sorriu de volta e apontou para um canto do jardim no qual havia várias rosas vermelhas. – É lindo, mas não é meu. Sou um pouco mais original do que isso. No meu há mais de dois tipos de flores. – Isso já é uma dica. – Estou me sentindo bondosa hoje. Gabriel permaneceu mais alguns minutos analisando as divisórias e apontou para uma qualquer, que continha jacintos, genistas e girassóis. Não eram flores que combinavam entre si. Balancei a cabeça e o puxei pela mão para o canto mais distante do jardim. O meu pedaço era o último e era cuidado por mim todos os dias. Nele, havia frésias de várias cores, helicônias e gloriosas. Gabriel olhava boquiaberto. Abri a divisória e entrei no pequeno cercado. Gabriel me acompanhou. Ajoelhei-me no meio das flores e toquei as pétalas de uma gloriosa. – Cuido de cada uma delas como se fossem a minha vida. Todos os seres vivos precisam de amor, e elas não são diferentes. – Olhei para Gabriel e sorri, ele havia se ajoelhado à minha frente. Uma gloriosa nos separava. – Dizem que elas vivem mais quando se fala com elas. Algumas palavrinhas por dia fazem bastante diferença, é o que Alice diz. – Alice era minha professora de botânica. Permaneci por alguns segundos observando a flor à minha frente, depois me levantei. Esperei que Gabriel saísse e fechei a porta. Os últimos raios de sol brilhavam em uma pequena parte do jardim. Fomos até lá. Gabriel ficou à minha frente. – Já está na hora de você se arrumar para a festa – falei. – Você tem certeza de que não quer ir comigo? – Sim, tenho muito trabalho a fazer. – Então não vou, vou te ajudar. – Não precisa, e alguém tem que cuidar da desmiolada da Helena, é bem provável que ela apronte alguma por lá. – Sorri, para disfarçar o aperto que tomou meu coração. – Mas obrigada por se oferecer, e divirta-se.


Sorri para ele, que era alguns centímetros mais alto do que eu. Uma leve brisa bateu, fazendo com que uma mecha de cabelo caísse na frente do meu olho. Gabriel a tirou para mim e dei um passo para trás, sentindo um arrepio percorrer todo o meu corpo. – Tenho... que ir. Me virei e corri na direção do quarto, abri a porta, entrei e a fechei, me encostando a ela e fechando os olhos. Não conseguia parar de sorrir. Por quê? Não fazia ideia. – Epa! Eu conheço esse olhar – falou Helena, assustando-me. – Está toda derretidinha pelo Gabriel, não é? – Claro que não! Ei! Acabei de conhecê-lo, esqueceu? – Ah, mas não negue que ele é lindo e ficou amarradão em você. – Cala a boca! – Sorri e a empurrei. Ela estava à minha frente, de braços cruzados e uma sobrancelha levantada. – Ele vai? – Sim. – Então você PRECISA ir também! Que se dane que não foi convidada, nessas festas qualquer um pode entrar, até a esquisitona. E tem mais, você realmente vai arriscar deixar o gato do Gabriel sozinho e indefeso na casinha das cachorras? Vem, você tem que ficar lindona. Vou ajudá-la, você vai usar um dos meus vestidos. – Não precisa. Eu não vou. – Precisa e vai sim. Helena mandou que eu fosse tomar banho, e como não tinha como vencer aquela discussão, acabei aceitando. Ao voltar ao quarto, só de toalha, percebi que havia uma montanha de roupas jogadas em cima da cama dela e apenas uma separada e dobrada. – Essa aqui é a sua – declarou Helena. Revirei os olhos, concordei e vesti a roupa. Um lindo vestido branco, tomara que caia com decote coração, que ficava um pouco acima dos joelhos. Tinha um cinto fino de couro caramelo na altura da cintura. Helena deixou meus cabelos soltos, que caíam em ondas até a altura do quadril. Passou um batom cor de boca em mim, concentrando a atenção em meus olhos, que


foram maquiados com diversas sombras, máscaras para cílios e não sei mais o quê. Coloquei minhas sandálias gladiador que iam até os tornozelos e esperei que Helena terminasse de se arrumar. Ela vestia um vestido supercurto e justo, preto. Tinha passado um batom vermelho matte e usava um salto alto enorme. De repente, tive um estalo: essa era a roupa que ela usava na minha visão. – Troque de roupa, Helena. – Eu não! Eu não podia dizer a ela o que aconteceria, pois havia aprendido que era melhor não mencionar as minhas visões. – Então, pelo menos, use esse xale vermelho. – Felizmente, ela aceitou. Não sabia o que poderia acontecer, pois eu estava mudando o curso da visão. Dali em diante, tudo seria um mistério. Andamos até o local da festa. O dormitório estava com a porta fechada, mas podíamos ouvir a música e os gritos vindos de dentro. Batemos na porta e um cara bêbado atendeu. – Entrem, gatinhas! – Eu mio, por acaso? – perguntei enquanto passava por ele e revirava os olhos. Helena me cutucou, dizendo: – Relaxa, Sammy... Lá dentro, luzes negras impressionavam e criavam um ambiente assustador no quarto. Era quase impossível andar sem tropeçar em alguma coisa. A música alta fazia os meus ouvidos chiarem. Como eu poderia relaxar num lugar como aquele? Balancei a cabeça e fui até a mesa de bebidas, desejando que houvesse alguma coisa sem álcool por ali. Por sorte, pensei, encontrei algo que parecia ser refrigerante, transparente e com bolhas de gás. Ao encher um copo e começar a beber, Helena parou ao meu lado: – Água com gás, limão e vodca? Não sabia que você bebia. Cuspi todo o líquido na mesma hora. Eu não bebia. Aliás, só o cheiro de bebida já me deixava tonta, quanto mais um copo. – Como sabia? – perguntei. – Plaquinhas de identificação servem para isso – disse Helena, rindo e apontando para as plaquinhas que eu não havia percebido. A única coisa não


alcóolica que havia ali era água. Bebi uns cinco copos e decidi andar pela festa. Havia um casal punk se agarrando no canto do quarto; um garoto bêbado dançando em cima de uma das camas. O barulho, o piscar das luzes e a fumaça de cigarro estavam me deixando tonta. Me sentei em um canto ao lado da porta, esperando que Gabriel entrasse a qualquer momento... Mas não, não havia sinal. Será que ele tinha arrumado alguém na festa antes de eu chegar, e estava dando uns amassos pelos corredores? Esse pensamento me fez sentir uma pontada no estômago. Eu não queria ficar a festa inteira plantada num canto, esperando por ele. Uma onda de fumaça me atingiu, impossibilitando a minha respiração. Comecei a me desesperar em meio a tanta gente, fumaça de cigarro e música alta. Certamente, não aguentaria ficar naquele lugar por mais um minuto... foi aí que eu vi a pior coisa que eu poderia ver naquele momento: o xale vermelho de Helena em cima de uma das camas. O peguei e andei pela festa inteira à procura da garota de cabelos azuis, mas nenhum sinal dela. O pânico começou a tomar conta de mim. – Não – sussurrei. Corri para o lado de fora do quarto. Olhei para os lados, mas não havia sinal de Helena. Na visão, eu a apertava contra um armário. Corri para o prédio principal. Ouvi um grito. Corri o mais rápido possível. O corredor estava à minha frente, eu estava prestes a virar para salvá-la quando alguém me segurou pelo braço e tampou a minha boca com a mão. A pessoa sussurrou em meu ouvido: – Não vá, Sam. Você não quer ver isso. Você não pode mais salvá-la. Tentei me soltar, afinal o mais importante era salvar a minha amiga. Em meio ao desespero, pude ver sangue escorrer à minha frente, mas não podia ver Helena, nem quem a estava atacando. – Samantha, não adianta mais! – Só naquele momento reconheci a voz. Era Gabriel. – Não vai fazer bem a você ver isso. Ele já havia tirado a mão da frente da minha boca, porém, ainda assim, eu não conseguia emitir nenhum som, tamanho o meu choque. Minha visão começou a embaçar até que desmaiei.


Estava quente, mas não muito. Era uma temperatura agradável. Só um lugar podia ter aquela temperatura: a estufa. Abri os olhos, mas minha visão estava muito embaçada, me impedindo de enxergar com clareza. Apoiei-me em meus cotovelos e olhei em volta. Eu não estava sozinha. Gabriel me observava sentado com as pernas para o lado de fora da janela. Me sentei no chão e Gabriel sorriu para mim. Juntei as sobrancelhas e olhei em volta novamente. Como ele sabia que aquele lugar existia e por que me trouxe justamente para cá? – Tudo bem? – perguntou. – Sim, só estou um pouco tonta. O que aconteceu? – Do que você se lembra? Ele realmente tinha essa mania irritante de responder perguntas com outras perguntas? Decidi entrar no jogo: – Do que eu devo me lembrar? Sem alternativas, Gabriel começou a falar: – Encontrei o corpo de Helena em um dos corredores de armários. Quando estava indo avisar algum funcionário, encontrei você correndo desesperada atrás dela. Eu sabia que você não gostaria de ver aquela cena, então a impedi, mas mesmo assim você viu uma poça de sangue, entrou em choque e perdeu a consciência. Ao contrário do que eu pensava, não senti nada com aquela notícia. Talvez eu já estivesse me preparando desde o dia em que a conheci. Porém, o que mais me intrigava era que, de algum jeito, eu não acreditava nele... – Por que devo acreditar em você? – Porque eu salvei a sua vida. – Como assim? – Um dia você vai entender. – Por que não posso entender agora? Por que não me explica? Eu sabia que ele estava prestes a começar a me enrolar novamente, mas dessa vez eu estava preparada. – Por que eu devo explicar a você?


– Porque eu tenho o direito? – Por que tem o direito? Revirei os olhos e me levantei. Ao meu lado estava o vaso com minha tulipa negra. Eu a observei e sorri levemente, passando um dedo por uma de suas pétalas. Eu sabia que não o convenceria a responder minhas perguntas, então decidi mudar de assunto: – É linda, não é? Rara. A única que eu tinha... Até você chegar. Estranho isso... Na noite em que você chegou, uma mudinha apareceu. – Olhei para Gabriel e sorri; ele tinha se levantado e estava ao meu lado. – Uma pequena vida. Ela não se move, não fala, mas mesmo assim está viva. Isso é incrível. Ela não pode se defender das pessoas que pisam nela e arrancam suas pétalas, assim como não pode se defender dos animais. Apesar de tudo, continua viva. Um trovão ecoou pelas paredes da estufa e uma chuva torrencial começou a cair do lado de fora. Eu podia ver os enormes raios. Olhei para baixo e me lembrei que vestia a roupa de Helena, que agora estava morta. Tão inocente tão empolgada. Tinha acabado de chegar e logo foi morta violentamente. Ao pensar nela, uma lágrima rolou pelo meu rosto. Uma vida fora tirada. Cada vida era uma perda irreparável para alguém. Eu não suportava isso, pois sabia que, de certa forma, era culpa minha. Talvez todos tivessem razão, talvez eu realmente fosse amaldiçoada. Gabriel colocou a mão em meu queixo e fez com que eu olhasse para ele. Com a outra mão enxugou minha lágrima. –Você não podia fazer nada para evitar, Sam. – Podia sim, Gabriel. Eu podia ter impedido. Eu sabia que aconteceria. Se eu tivesse prestado mais atenção... – Não foi culpa sua. Não foi você quem a matou. Confie em mim, quando uma coisa é escrita, não pode ser apagada. Era o destino dela. Já estava certo que isso aconteceria desde que ela nasceu. Por que ela precisava morrer de uma forma tão horrível? Por que as pessoas que me cercam sempre morrem? Por que as pessoas precisam morrer? Eu não suporto isso. – Toda alma tem uma missão, depois que a cumpre, precisa deixar o corpo que habita.


– Qual era a missão dela? – Ninguém sabe. Mais um trovão. Afastei-me de Gabriel e caminhei até o vaso que continha a mudinha de tulipa negra. – Deve me achar uma idiota. – Por quê? Por causa do amor que tem pela vida? Claro que não. Eu acho isso... legal. – Legal? – sorri e balancei a cabeça. – Acho melhor eu ir, preciso ficar um pouco sozinha. Antes que Gabriel pudesse dizer algo, eu já estava do lado de fora da estufa. Fazia muito frio e em segundos eu fiquei encharcada. Abraçava a mim mesma a fim de tentar me aquecer, mas meus dentes batiam, mostrando que, por mais que eu tentasse me aquecer, na verdade, eu estava congelando. Podia ouvir o barulho de sirenes e pessoas falando alto, devia ser policiais que estavam a caça do assassino de Helena. Tirei os sapatos e os segurei nas pontas dos dedos. Pude sentir a grama e a terra molhada sob meus pés e a sensação me trazia um pouco de tranquilidade. Olhei para cima, fechei os olhos e deixei a chuva me molhar ainda mais, esperando que ela pudesse diminuir a dor e a culpa que eu sentia pela morte da minha melhor amiga. – Que linda cena. – Dei um pulo ao ouvir a voz, que logo reconheci ser a mesma daquele dia antes das férias. – Você aí, toda feliz logo após a sua única amiga ter morrido. – Cale a boca! Foi você quem fez isso? – Sou apenas uma voz, pelo que você sabe, querida. – Quem é você? O homem riu. Girei no lugar, à sua procura, mas não encontrei ninguém. Caminhei para o meu quarto, ignorando a voz. –Você podia ter impedido. Se tivesse percebido antes, teria impedido. – Você não tem o direito de se intrometer na minha vida. Nem me conhece. – Oh, Samantha, pelo contrário, eu te conheço muito bem... Aliás, melhor do que qualquer um no mundo.


Balancei a cabeça e continuei andando. Havia acabado de chegar à entrada do prédio. Podia ver que havia várias sombras no corredor, mas não me amedrontei. Andei ainda mais rápido, e a voz em minha cabeça agora parecia sair de alto-falantes. – Samantha, não me ignore. Cheguei à porta do meu quarto, a abri e falei: –Vá se ferrar. Entrei no quarto e tranquei a porta. As roupas de Helena estavam todas jogadas em cima da cama, como ela havia deixado. De repente, todas as luzes se apagaram: – De novo não... A luz se acendeu. Então, pude ver Helena, que estava de pé à minha frente, a menos de um metro de mim. Ela me encarava com o olhar vazio e tinha sangue jorrando de seu pescoço. Ela caminhou em minha direção e falou com a voz rouca: –Você. Você me matou. Agora eu vou fazer o mesmo com você. – Não! – berrei. Me apertei contra a porta e fechei os olhos – Por favor, para! PARA! Ela estava a dez centímetros de mim quando as luzes se apagaram novamente. Gritei. Eu tremia demais, não havia mais tempo para abrir a porta. Fiquei alguns segundos no escuro, sentindo a presença de Helena. A luz piscou, agora estavam todos em meu quarto, todos me encaravam: meus pais, Helena, Miguel, Alice, até mesmo Gabriel. A luz piscou novamente e eles desapareceram. Sentei-me no chão, encolhida. Estava em pânico e sem saber o que fazer.


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