POESIA E A CIDADE O OLHAR COMO FORMA DE SUBVERSÃO DO COTIDIANO
Ana Carolina da Cruz Trabalho Final de Graduação Faculdade de Arquitetura e Urbanismo Universidade Presbiteriana Mackenzie Orientador de monografia: Prof. Me. Paulo Olivato Orientador de projeto: Prof. Dr. Marcelo Barbosa São Paulo, 2020
RESUMO Esse trabalho propõe reflexões e atuações possíveis a partir do diálogo entre a poesia e a cidade, com a intenção de estimular um modo distinto de se debruçar sobre o espaço urbano, que dê abertura a novas experiências em meio a tempos marcados pela racionalidade, rapidez de acontecimentos e percepções rasas. A percepção sensível do mundo requer um olhar poético, irreverente; implica enxergar o óbvio, o banal e esmiuçá-lo, transvê-lo ou seja: ver além, a partir de um olhar subjetivo. Assim, a poesia rechaça as limitações da realidade e proporciona a formulação de hipóteses para que, em suas minúcias, a vida seja reinventada. Propõe-se, portanto, indagar se a consideração de tais relações entre a poesia, o indivíduo, a cidade e o cotidiano favoreceria uma condição relevante para adquirir diferentes percepções e experimentações poéticas do espaço urbano, e, por consequência, subverter as barreiras que limitam tanto o olhar e a permeabilidade na cidade, como as que limitam o raciocínio projetual. Palavras-chave: poesia, cotidiano, olhar, experiência. 4
RESUMEN Este trabajo académico propone reflexiones y actuaciones posibles a partir del diálogo entre poesía y ciudad, con el objetivo de estimular una forma distinta de comprender el espacio urbano, que traiga aberturas a nuevas experiencias en un tiempo marcado por la racionalidad, celeridad de acontecimientos y por percepciones superficiales. La percepción sensible del mundo requiere una mirada poética, irreverente; implica observar el obvio, el banal y desmenuzarlo, ver más allá de su exterior y le analizar por medio de una óptica más subjetiva. De esta forma, la poesía contrapone las limitaciones de la realidad y estimula la formulación de hipótesis para que, en sus detalles, la vida sea reinventada. Se propone, por lo tanto, que se pregunte si la consideración de las relaciones entre poesía, individuo, ciudad y cotidiano favorecerían una condición relevante para que se adquieran diferentes percepciones y explotaciones poéticas del espacio urbano y, por lo tanto, se subviertan tanto las barreras que limitan la óptica y permeabilidad de las ciudades, como las que limitan el razonamiento proyectual. Palabras clave: poesía, cotidiano, mirada, experiencia. 5
SUMÁRIO 6
Apresentação
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A expropriação do olhar poético e da experiência subjetiva na metrópole [14] 1.1 A cidade e a modernização 1.2 Experiência na metrópole
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Aproximando a poesia à questão urbana [48]
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Aspectos do cotidiano vistos pelo olhar do poeta [88]
2.1 A poesia como agente da percepção e de um outro olhar para a vida urbana 2.2 A poesia como forma de subversão 2.3 Poesia urbana e seus desdobramentos
3.1 Fernando Pessoa e a experiência subjetiva da cidade 3.2 Carlos Drummond de Andrade e o olhar crítico 3.3 Mário Quintana e as descobertas a partir do olhar 3.4 Manoel de Barros e a poética da desutilidade
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A reinvenção da situação urbana do Brás a partir do “novo olhar” [144] Considerações finais
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A poesia ĂŠ a descoberta das coisas que nunca vi (Oswald de Andrade) 9
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APRESENTAÇÃO A presente pesquisa tem como objetivo central explorar os diversos significados que podem advir do diálogo entre a paisagem construída e a poesia. Desta forma, propõe-se estimular um modo distinto de se debruçar sobre a cidade, que mude o raciocínio comum e dê abertura à novas experiências em meio a tempos contemporâneos, marcados pela rapidez de acontecimentos e percepções rasas. A análise se dá em meio a situações e vivências encontradas na cidade de São Paulo, no bairro do Brás, com o propósito repensar relações do homem com a paisagem edificada e de criar configurações que podem alterar seu significado, buscando reformular o modo com o qual olhamos a cidade a partir de uma perspectiva poética. A partir dessa relação, busca-se encontrar os meios que a poesia oferece para atravessar barreiras, superar o quadro violento da cidade e ressignificar lugares. Acredita-se que desta forma seja possível habitar melhor o espaço urbano. A experiência sensível na cidade tem sido cada vez mais rara, uma vez que o cotidiano é marcado pela rapidez e sucessão interminável de acontecimentos e informações, produtividade excessiva, sensação de aceleração dos afazeres e falta de tempo livre. No espaço urbano, nota-se a presença cada vez mais marcante de barreiras, espaços segregadores, muros de condomínios privados, em conjunto com espaços abandonados e degradados, fatos que afetam a relação do homem com o ambiente e 11
com as pessoas ao seu entorno. Diante desse quadro, compartilhado por grande parte dos habitantes da cidade, é muito comum que o indivíduo use como reação uma postura anônima, impessoal, automatizada, mecânica, racional e desatenta. Esses fatores afetam sua percepção, construção de vivências e assimilação dos fatos, tornando sua experiência mais escassa ou vazia de significado. A poesia traz a oportunidade para que, ao contrário de sermos submissos à realidade, fiéis às verdades impostas, consigamos subverter a ordem do cotidiano rotineiro e construir novos sentidos para a vida. Sua presença provoca um estranhamento no cotidiano, originando uma fresta, uma janela onde o sujeito pode se refugiar, refletir e criar sentidos tanto para o que se passa dentro de si, tanto para o que se passa no mundo. A poesia – em suas diversas formas: música, arte, intervenção, poema, olhar, paisagem – possui a capacidade de se conectar com aquele que a experimenta, fazendo com que este se identifique, dê abertura ao imaginário, e vivencie as imagens poéticas que ela transmite. Esse súbito realce do psiquismo causado pela imagem nova, dá ocasião para que outras imagens poéticas emerjam, por meio da imaginação, e traz a oportunidade para que o indivíduo experimente um tempo diferente, mais lento, uma pausa em meio à agitação, onde se pode perceber sensivelmente, criar reflexões mais aprofundadas sobre aquilo que é vivenciado, como também proporciona a formulação de hipóteses para que, em suas minúcias, a vida seja reinventada. Pensar essas relações intertextuais entre a poesia, o indivíduo e 12
o cotidiano na cidade e abordar a percepção do espaço sob um ponto de vista que pode ser considerado incomum, possibilita que hajam diferentes assimilações do ambiente construído e estimula diferentes ações projetuais desvinculadas dos mecanismos utilitaristas e racionais, de modo a recriar sentidos a partir de pequenas transgressões, subversões e alteridades. Para tanto, organizamos a pesquisa da seguinte forma: no primeiro capítulo são apresentados os fatos que fazem com que a experiência sensível na cidade seja cada vez mais obstruída e o olhar poético cada vez mais raro; o segundo capítulo tratará de aproximar a poesia da cidade, explorando as possibilidades de percepção do espaço urbano que surgem a partir dessa intertextualidade; já no terceiro capítulo, por meio dos poemas de Fernando Pessoa, Carlos Drummond de Andrade, Mário Quintana e Manoel de Barros, são ampliadas as análises de como o poema possui a capacidade de aguçar a sensibilidade do homem, de modo a alterar a forma com que ele lida com a realidade e fazê-lo experimentar uma nova visão do mundo; o quarto capítulo apresenta o projeto final, localizado na região do Brás e Parque Dom Pedro II, o qual consiste em intervenções que tem como intenção estimular a prática da cidade e um novo olhar para a paisagem, para que, a partir de experiências poéticas, sejam criadas aberturas para a ressignificação do ambiente.
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A expropriação do
olhar poético e da experiência metrópole
subjetiva
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na
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“Para abrir os olhos, é preciso saber fechá-los. O olho sempre aberto, sempre desperto – fantasma de Argos –, torna-se seco. Um olho seco veria talvez tudo, o tempo todo. Mas olharia mal. Para olhar melhor nos são necessárias – paradoxo da experiência – todas as nossas lágrimas.”¹ (Didi-Huberman) 17
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A metrópole é regida pelas leis do capitalismo contemporâneo, onde predomina a razão instrumental e o domínio do intelecto, fatores que estimulam uma produção impessoal e individualista, com foco no capital. Assim, marcada pela transitoriedade e por transformações rápidas e intensas, a cidade oferece aos seus habitantes diversos estímulos simultâneos que demandam respostas imediatas. Essa rapidez causa a “aceleração do tempo”, fazendo com que o indivíduo esteja constantemente ligado aos acontecimentos e direcione grande parte de sua energia para a realização de tarefas, e, com isso, desenvolva apenas percepções superficiais sobre sua experiência na cidade.
Figura 1: Tóquio 07
A globalização e o capitalismo atingem diversos aspectos da vida urbana e passam a coordenar grande parte das atividades cotidianas do indivíduo, que passa a ser regido pela lei do 19
capital, marcada pela quantidade em detrimento da qualidade, objetividade, produtividade, racionalidade, e onde somente realizações mensuráveis e objetivas são de interesse, fatos que o alienam o indivíduo e reduzem sua experiência como sujeito. A especialização do trabalho levou o indivíduo a não ter o total conhecimento sobre o produto que é fruto do seu ofício, pois esse realiza sequências de gestos mecânicos que o desconectam e quebram seu vínculo com o que produz (SIMMEL, 1967). Sua atividade se torna, então, alienada e assume a forma de um valor, de uma mercadoria, fato que torna o indivíduo igualmente mercantilizado (PEARLMAN, 1969). Dado isso, homem e as relações sociais passam por um processo de coisificação, esse é tratado como um número, tendo sua qualidade e individualidade desprezadas, tais fatos fazem criam certa insensibilidade do indivíduo em relação ao outro: A economia monetária e o domínio do intelecto- estão intrinsecamente vinculados. Eles partilham uma atitude que vê como prosaico o lidar com homens e coisas; e, nesta atitude, uma justiça formal frequentemente se combina com uma dureza desprovida de consideração. (SIMMEL, 1967, p.13)
O modo de produção capitalista considera o dia em sua totalidade como tempo disponível para o trabalho, não levando em conta a existência do tempo livre para contemplação e do período noturno de descanso. Com a organização institucional do tempo, o indivíduo se torna subordinado pelo mercado mundializado, alienado, constantemente acelerado e há um sentimento permanente de falta de tempo (MATOS, 2008). Bondía (2002) também aborda a questão da falta de tempo na vida do indivíduo, afirmando que ele: 20
[...] é um sujeito que usa o tempo como um valor ou como uma mercadoria, um sujeito que não pode perder tempo, que tem sempre de aproveitar o tempo, que não pode protelar qualquer coisa, que tem de seguir o passo veloz do que se passa, que não pode ficar para trás, por isso mesmo, por essa obsessão por seguir o curso acelerado do tempo, este sujeito já não tem tempo. (BONDÍA, 2002, p.23)
O indivíduo, em seu tempo livre, contenta-se em se distrair com espetáculos [hiper]midiáticos e com o consumo constante de mercadorias. Essa forma de vida tende a lhe causar certa angústia, aumentando seu vazio existencial, pois se torna cada vez mais insatisfeito com quem é e com aquilo que tem e faz (MATOS, 2008). Portanto, o indivíduo parece se transformar em mero cumpridor de uma rotina, marcada pela agitação permanente, empobrecimento psíquico e perda dos sentidos da vida. As transformações urbanas, geradas pela modernização e pelo capitalismo, interferem na experiência sensível e subjetiva dos habitantes da cidade. Segundo Simmel, há um fenômeno psíquico reservado à metrópole, a atitude blasé, esta resulta dos estímulos contrastantes gerados pela vida moderna e pelo ambiente urbano, onde a rapidez das mudanças agita os nervos até sua exaustão. Dado isso, o intelecto do homem passa a assumir a prerrogativa do psíquico, afim de preservar sua vida subjetiva e sua individualidade. (SIMMEL, 1967) A vida metropolitana, assim, implica uma consciência elevada e uma predominância da inteligência no homem metropolitano. A reação aos fenômenos metropolitanos é transferida àquele órgão que é menos sensível e bastante afastado da zona mais profunda da personalidade. A intelectualidade, assim, se destina a preservar a vida subjetiva contra o poder avassalador da vida metropolitana. (SIMMEL, 1967, p.13)
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O uso constante do intelecto e da razão torna o indivíduo indiferente, impessoal, anônimo e calculista, prejudicando sua vida social. Segundo Matos (2008), o indivíduo torna-se desengajado em relação à vida compartilhada e passa a ter dificuldade de construir relações duradouras: O eu procura eliminar todos os laços e sentimentos, reduzidos, agora, a valor de troca, e o mercado conduz ao consumo permanente, induzindo à pressa, constrangendo à rapidez, acentuando a superficialidade nos vínculos. Na medida em que os sentimentos exigem a duração para se desenvolverem, a aceleração do tempo produz a “pobreza interior” (MATOS, 2008, p.461)
Figura 2: Frame do filme Medianeras - nele percebe-se o modo de vida dos moradores da metrópole, onde predomina a falta de vínculos afetivos nas relações humanas. As imagens da cidade de Buenos Aires contribuem para essa narrativa: o crescimento desordenado, as empenas, o caos urbano afetam o abrigo íntimo da pessoa, que passa a viver isolada em casa.
Em vista disso, há a perda de valores e um déficit simbólico no indivíduo e na sociedade, uma vez que a permanência dos valores depende da existência de experiências compartilhadas (MATOS, 2008). O mundo se torna o mundo do capital, da racionalidade, velocidade, da falta de tem22
po e de valores, e o cotidiano é marcado pela monotonia, pelo tempo estagnado, patológico e vazio de significado. O indivíduo, ao perder parte de sua sensibilidade, passa a ver o mundo com um olhar desatento, sem o cuidado e a vontade de experimentar mais profundamente os acontecimentos que ele vivencia. Essa ideia também é abordada por Bernardo Soares, semi-heterônimo de Fernando Pessoa, em um trecho do Livro do Desassossego onde afirma que a falta de sensibilidade faz com o indivíduo seja menos hábil a sentir as pequenas coisas da vida:
Figura 3: Noturno
Quanto mais alta a sensibilidade, e mais subtil a capacidade de sentir, tanto mais absurdamente vibra e estremece com as pequenas coisas. É precisa uma prodigiosa inteligência para ter angústia ante um dia escuro. A humanidade, que é pouco sensível, não se angustia com o tempo, porque faz sempre tempo; não sente a chuva senão quando lhe cai em cima.²
A seguir investigaremos mais profundamente como a modernização das cidades e os novos hábitos do homem afetaram o urbano, tal como a relação entre as pessoas e os espaços públicos. 23
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A CIDADE E O PROCESSO DE MODERNIZAÇÃO Segundo Santos (1988), a cidade é objeto de um processo incessante de transformações e reflete o mundo nos seus processos históricos, econômicos e políticos. Na metrópole, a ordem que rege as coisas, as informações e as ideias é a do capital, mundialmente globalizado. O meio ambiente construído é então adequado para possibilitar a ação global das forças do mercado, tal ação imprime no espaço um novo sentido, rígido e com primazia de normas, deformando seu sistema social e cultural. Por consequência, são reduzidas as possibilidades de formas de viver onde há solidariedade, território compartilhado e é afirmado um território que dispõe de egoísmos funcionais, comandado pela racionalidade e pelo lucro, fato que afeta negativamente a dimensão pública de alguns espaços da cidade e seu sistema de movimento, sendo a base de práticas sociais hegemônicas e sistêmicas (SANTOS, 1988).
Figura 4: Edifício São Vito e Viaduto Diário Popular
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O território se dá através daquilo que Milton Santos chama de horizontalidades e verticalidades, ordens que coexistem e compõem o ambiente urbano. As verticalidades refletem a ordem global, regem o funcionamento da sociedade e representam os territórios de interesse das empresas, racionalizados, composto por pontos isolados que se impõem no tecido urbano. Por sua vez, as horizontalidades baseiam-se na ordem local, onde se localiza o território de todos, regido pela interação e contiguidade. Essas ordens dividem o mesmo espaço, o horizontal, que é obrigado a lidar com o isolamento, a segregação e imposições dos pontos verticais (BUCCI, 2010). Apesar disso, é no espaço horizontal que reside a chance de resistência e mudança: As horizontalidades são tanto o lugar da finalidade imposta de fora, de longe e de cima, quanto o da contrafinalidade, localmente gerada. Elas são o teatro de um cotidiano conforme, mas não obrigatoriamente conformista e, simultaneamente, o lugar da cegueira e da descoberta, da complacência e da revolta. (Santos, 2006, p.193)
A arena de oposição entre o mercado e a sociedade é o território, nos lugares onde há vetores da mundialização, espaços de alguns, também existe a possibilidade resistência, onde há solidariedade entre pessoas e lugares. (SANTOS, 1988) REDUÇÃO DA EXPERIÊNCIA: AS BARREIRAS A cidade atual foi marcada por intervenções urbanísticas que não adotaram um “olhar incorporado” sobre o tecido urbano – método não usual, proveniente de um olhar baseado na experiência do pedestre – como balizador para a tomada de decisões referentes ao território, mas sim um método de “diagnóstico”, 26
que é baseado em estatísticas e dados genéricos, uma vez que o urbanismo como campo disciplinar e prática profissional surgiu para que as cidades fossem transformadas em metrópoles modernas. (JACQUES, 2012a) Em razão da modernização das cidades, foram feitas imposições verticais à natureza, como a retificação e soterramento de rios e córregos, construção de linhas férreas, grandes vias rodoviárias e viadutos; que priorizavam a velocidade e a mobilidade dos veículos e as lógicas racionais do crescimento da urbanização. A cidade de ontem foi moldada a partir do imaginário da mecânica e da velocidade. Tal imaginário hierarquizou as redes, fragmentou a cidade, ignorou a capilaridade. Certamente abriu possibilidades, aproximou o longínquo, mas também acabou afastando o próximo.³ Figura 5: Faróis no Parque Dom Pedro
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Tais infraestruturas rodoviárias e ferroviárias, feitas com a intenção de conectar lugares e encurtar caminhos, acabaram tornando-se empecilhos para a mobilidade dos pedestres e auxiliando na degradação do ambiente que os circunda. Dado isso, nos deslocamentos pela cidade, as pessoas precisam enfrentar muros, vias expressas, avenidas, viadutos, baixios, desníveis, desvios, calçadas estreitas, ferrovias... elementos que marcaram o desenvolvimento da cidade contemporânea e resultaram dos “raios verticais” que atingiram o espaço urbano e o fragmentaram, criando obstáculos materiais e simbólicos para o percurso na cidade. O espaço urbano é igualmente afetado por edifícios que se fecham à cidade e criam barreiras que reduzem a qualidade do espaço público diante do qual foram implantados e a possibilidade de haver experiências, desqualificando a caminhada. Esses são os chamados espaços pacificados e homogeneizados, que, segundo Jacques (2012b), surgiram em resposta aos conflitos urbanos e buscam esterilizar o espaço público, eliminar a alteridade e diversidade existente na cidade com a intenção de criar uma boa imagem publicitária. Os espaços pacificados são aqueles onde as pessoas, apesar de compartilharem o mesmo espaço, não possuem a necessidade de interagir entre si e, ainda que haja diferenças entre os frequentadores, estas diferenças não são consideradas ameaçadoras. Exemplos desses espaços são os “condomínios clube” e os grandes locais de consumo como os shoppings, onde o cidadão anseia alcançar o pertencimento que, possivelmente, não recebe do lado de fora. (BAUMAN, 2001) 28
[...] a atual estratégia de apaziguamento programado do que seria um novo choque contemporâneo: uma hábil construção de subjetividades e de desejos, hegemônicos e homogeneizados, operada pelo capital financeiro e midiático que capturou o capital simbólico e que busca a eliminação dos conflitos, dos dissensos e das disputas entre diferentes – seja pela indiferenciação, seja pela inclusão excludente – promovendo, assim, a pasteurização, homogeneização e diluição das possibilidades de experiência na cidade contemporânea. (JACQUES, 2012a, p.13-14)
Figura 6: Condomínio Piscine Station Resort, localizado na Rua Domingos Paiva (Brás)
Segundo Bauman (2001), os espaços compartilhados voltados somente para o consumo, templos de consumo, são espaços onde não se é necessário criar empatia ou realizar qualquer intercambio com quem lhes é estranho, constituindo, assim, um estar junto não problemático. Ademais, tais ambientes oferecem suporte para que tudo possa ser aproveitado sem medo, uma vez que se encontram longe dos “seres indesejados”, que poderiam vir a interromper o isolamento do consumidor. Já os grandes condomínios fechados, espaços seletivos onde há a separação do lugar 29
da vida comum, são repletos de espaços-slogans, que oferecem diversas experiências fabricadas, falsificadas, atividades de lazer, em suma: um espaço que se encerra em si mesmo. Nele o indivíduo metropolitano se fecha, tendo cada vez menos o contato com o outro e com a cidade. Tais espaços pacificados buscam impedir o contato social e interação entre indivíduos diferentes, isso se dá a partir da separação espacial, entrada seletiva ou espaços desenhados para não serem circundados. (BAUMAN,2001)
Figura 7: Condomínio Piscine Station Resort, localizado na Rua Domingos Paiva (Brás)
O MEDO E OS MUROS Segundo Bauman (2001),
grande parte das pessoas com-
partilha o hábito de buscar encontrar uma lógica para a sua infelicidade, atribuindo a culpa a fatos alheios. Atualmente os culpados são os assaltantes, vagabundos, personagens estranhos ao ambiente em que estão ou que se mostram difertentes, estes passam a ser a personificação do mal. 30
Assaltante já se tornou um nome comum e popular para o medo ambiente que assola nossos contemporâneos; e assim a presença ubíqua dos assaltantes tornou-se crível e o temor de ser assaltado, amplamente compartilhado (BAUMAN, 2001, p.109)
Consequentemente, as pessoas passam a se preocupar cada vez mais com a segurança na cidade e buscam comprar proteção – estimulando a indústria da segurança privada –, se escondendo em vez de tentar solucionar os problemas que causam a violência e criando, assim, a “política do medo cotidiano” (BAUMAN, 2001). Esse projeto de se esconder e de eliminar a diferença é realizado a partir da fuga do espaço polifônico (por vezes ameaçador) e reclusão no espaço seguro, onde todos tem uma identidade parecida e se sentem seguros, como nos condomínios e templos de consumo. Porém, esconder-se atrás de uma casca identitária faz com que a pessoa tenha uma experiência de vida menos sensível, subjetiva e poética, fato que pode vir a criar fronteiras no território: A realidade do homem moderno é recheada de solidão, individualismo e de uma lógica mercantil-consumista que sufoca cada vez mais seu lado poético, sua imaginação criadora. Solitário como nunca, o homem perdeu assim o sentido do comunitário [...] e quando o busca, o faz sem critério (através de identidades mais radicais e fundamentalistas, extremistas) e quando isso é refletido no território surgem fronteiras que, na defesa de uma alteridade negada ou quase inteiramente cooptada pelo capitalismo e modernização tecnológica da sociedade de consumo, impedem qualquer diálogo e às vezes até mesmo o contato com o outro. Tratado como mero número de uma massa ou narcisisticamente encerrado em seu casulo pretensamente ‘autêntico’ o homem se desterritorializa, se desqualifica e perde inclusive sua identidade com a natureza, alimento maior para a recriação simbólico-poética do/com o mundo. (HAESBAERT, 1997, p. 29)
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De acordo com Bauman (1999), o medo tende a crescer à medida que se cria barreiras “de proteção”, pois estas reforçam ainda mais o egoísmo do indivíduo e sua incapacidade de lidar com o diferente. Logo, a violência se torna um fato na cidade e passa a atuar como norma no ambiente urbano, transformando o medo em paredes e espaços abandonados. Tal norma reflete nos hábitos, costumes no e comportamento do indivíduo, afetando negativamente sua relação com o espaço público, seu modo de vida na cidade e reflete também espaço privado, no interior das casas, ocasionando a destruição dos redutos da intimidade, abrigo fecundo das imagens poéticas (BUCCI, 2010). A questão é que por um processo de inversão de valores a violência passa a atuar como norma: estabelece parâmetros, que por sua vez se desdobram em regras de conduta que pautam as nossas ações no espaço urbano.[...] Tal inversão coloca em crise a própria ideia de cidade como instituição, ou como acordo ético travado entre os habitantes e que deveria estar expresso nas regras que regem o nosso convívio. Aquele acordo deixa de prevalecer para ser, paulatinamente, substituído por uma falta: a ausência de acordos e regras que caracteriza o quadro em que a violência urbana se alastra. (BUCCI, 2010)
Não obstante, a presença de barreiras e restos na cidade dá oportunidade para alterarmos a configuração atual de seus espaços, “uma barreira é tanto um obstáculo que desengana quanto um convite para que se procure superá-lo. A barreira tanto desencoraja quanto tenta”4. Por consequência, Bucci expõe a hipótese de que imagens poéticas podem atuar como superação e escape do quadro violento da cidade e são capazes de nos fazer atravessar barreiras e paredes, possibilitando que o espaço urbano seja habitado e que haja uma conexão entre o território interior 32
e o exterior. Para isso, propõe atuações imaginárias que sustentarão ações projetivas no ambiente urbano e no campo da afetividade, são elas: mirar, transpor, invadir e infiltrar, operações que buscam permitir o que os aspectos poéticos e estéticos contidos na paisagem sejam desfrutados. As imagens nos habilitam a atravessar aquelas paredes que a violência como norma constituiu no ambiente urbano. São paredes solidamente constituídas pela razão que se voltou contra o propósito a que se deveria servir: ao homem. (BUCCI, 2010 p. 134)
As imagens poéticas podem ser consideradas um meio de fuga à violência, às barreiras e ao espaço abandonado. Uma das possibilidades de experimentá-la é por meio da vivência de uma experiência nova ou a partir do percurso por um espaço conhecido imaginando novas configurações, compreendendo o espaço de um modo diferente e sensível.
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EXPERIÊNCIA NA METRÓPOLE A velocidade de acontecimentos, mudanças e transformações que marcam a vida na metrópole fazem com que o indivíduo procure se proteger dos choques da vida urbana e passe a evitar o contato com o outro, fechando-se em espaços pacificados. Estes buscam eliminar a alteridade e a experiência e dão as costas ao espaço público diante do qual se erguem. Entretanto, a esterilização da experiência causada pelo processo de espetacularização urbana, não consegue destrui-la completamente, embora busque sua domesticação e anestesiamento (JACQUES, 2012a) A experiência é aquilo que nos toca, é um saber único que fica para sempre marcado em quem a vivencia e possibilita que a vida tenha um aspecto diferente, “podemos pensar que tudo o que faz impossível a experiência faz também impossível a existência.” (BONDÍA, 2002, p.28) A experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca. A cada dia se passam muitas coisas, porém, ao mesmo tempo, quase nada nos acontece. [...] Nunca se passaram tantas coisas, mas a experiência é cada vez mais rara. (BONDÍA, 2002, p.21)
O nosso tempo tem passado por uma destruição generalizada da experiência e diversos fatores da vida contemporânea contribuem para que a experiência na cidade seja cada vez mais escassa. Bondía (2002) expõe alguns desses fatores: segundo ele, a experiência torna-se rara pela falta de tempo livre, aliado ao excesso de trabalho e à busca incessante por informações, sem que haja de fato uma reflexão demorada sobre elas. 35
Figura 8 e 9: Frames do filme Asas do desejo, onde Wim Wenders nos mostra que, enquanto muitos humanos, mortais, seres que experimentam a vida sensorialmente, querem viver além do tempo que tem, constantemente acelerados e sem dar a devida atenção aos acontecimentos do cotidiano, sem permitir que um deles os toque ou que hajam experiências, alguns anjos observam a vida humana sem poder sentí-la, e gostariam de abandonar sua eternidade para experimentar as pequenas sensações do mundo.
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As coisas se passam cada vez mais depressa e o sujeito precisa aproveitar ao máximo seu tempo, de preferência fazendo algo “útil”, para isso, passa consumir vorazmente informações, notícias, mercadorias e espetáculos, tornando-se sempre agitado e ocupado, sem um momento de pausa que dê espaço para a experiência. A velocidade com que os acontecimentos ocorrem impossibilita com que haja uma conexão significativa entre eles e o sujeito que os vivencia, portanto tudo o atravessa, mas nada realmente acontece (BONDÍA, 2002). Esses fatos, parte do cotidiano, contribuem para que a experiência seja empobrecida: A experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque, requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço. (BONDÍA, 2002, p.24)
Portanto, o indivíduo que se faz submisso a esses fatores se torna um sujeito com dificuldades de experiência, nas palavras de Bondía é “um sujeito firme, forte, impávido, inatingível, erguido, anestesiado, apático, autodeterminado, definido por seu saber, por seu poder e por sua vontade.” (BONDÍA, 2002, p.25) Já o sujeito da experiência se define não por sua atividade, mas por sua passividade: para que a experiência aconteça é necessário que ele se faça disponível, esteja aberto à alteridade e disposto a ser formado e transformado por aquilo a que se submeteu 38
(BONDÍA, 2002). Portanto, abrir-se a uma experiência oferece a oportunidade do homem ser além daquilo que é, ou seja, de ser outros. Bernardo Soares escreve no Livro do Desassossego um poema que se relaciona com o assunto da experiência, de se abrir para novas possibilidades e correr o risco de ser transformado por elas: Viver é ser outro. Nem sentir é possível se hoje se sente como ontem se sentiu: sentir hoje o mesmo que ontem não é sentir — é lembrar hoje o que se sentiu ontem, ser hoje o cadáver vivo do que ontem foi a vida perdida. Apagar tudo do quadro de um dia para o outro, ser novo com cada nova madrugada, numa revirgindade perpétua da emoção — isto, e só isto, vale a pena ser ou ter, para ser ou ter o que imperfeitamente somos. Esta madrugada é a primeira do mundo. Nunca esta cor rosa amarelecendo para branco quente pousou assim na face com que a casaria de oeste encara cheia de olhos vidrados o silêncio que vem na luz crescente. Nunca houve esta hora, nem esta luz, nem este meu ser. Amanhã o que for será outra coisa, e o que eu vir será visto por olhos recompostos, cheios de uma nova visão. Altos montes da cidade! Grandes arquiteturas que as encostas íngremes seguram e engrandecem, resvalamentos de edifícios diversamente amontoados, que a luz tece de sombras e queimações – sois hoje, sois eu, porque vos vejo, sois o que serei? Amanhã, e amo-vos da amurada como um navio que passa por outro navio e há saudades desconhecidas na passagem.5
Para se dar lugar à experiência, é necessário desacelerar, deixar de lado os saberes construídos, aquilo que é dado como “conhecido” e se fazer disponível para o novo.
EXPERIÊNCIA NARRADA Jacques (2012a) afirma que além da diminuição e tentativa de eliminação da experiência, as pessoas têm perdido a capacidade de transmitir, narrar e compartilhar tais experiências. 39
Walter Benjamin6 diferencia os tipos de experiências, são estas: Erlebnis (a vivência, o acontecimento, uma experiência sensível, efêmera e individual) e Erfahrung (experiência assimilada, transmitida e coletiva). Benjamin afirma que a incapacidade de intercambiar e narrar as experiências faz com que a experiência individual não possa ser transformada em experiência acumulada, coletiva. Franco Berardi afirma a essencialidade da narrativa, alegando que o uso da voz faz com que a vida e as relações se tornem menos mecânicas e racionais: A voz de um ser humano é a única forma de garantir de maneira afetiva a consistência semântica do mundo. A rarefação da voz transforma a interpretação num ato puramente econômico, funcional e combinatório. (BERARDI, 2017)7
Bachelard (2003) fala da possibilidade de narrar as experiências quando experimentamos uma imagem poética – podemos relacionar a imagem poética, a imagem nova que nos toca, como um tipo de experiência – e afirma que ao admitirmos uma nova imagem poética desejamos compartilhar esta vivência com outros, com o objetivo de comunicar o nosso entusiasmo por experimentá-la. O acontecimento da imagem poética, por ser algo que quebra a rotina, cria um “assunto” a ser comunicado, a novidade presente nela estimula a criatividade do ser falante e desperta conexões. A narrativa está também associada ao movimento, ao caminhar, nas palavras de Michel de Certeau “todo relato é um relato de viagem, uma prática do espaço”8. O compartilhamento de narrativas de uma experiência, em especial as narrativas urbanas 40
da experiência errática, faz com que esta continue sobrevivendo às forças que tentam eliminá-la “sua forma de transmissão e compartilhamento, podem operar como potente desestabilizador de algumas das partilhas hegemônicas do sensível e, sobretudo, das atuais configurações.” (JACQUES, 2012a, p.11) Diante das circunstâncias atuais da cidade e da rarefação da experiência e da narrativa, deve ser dada grande relevância à valorização da experiência da caminhada, de corporeidade na cidade, tal como faz o Outro urbano – que, segundo Certeau, é o cidadão que resiste às normas, que foge do cotidiano, reinventando-o e se apropriando do espaço urbano – e os homens lentos de Milton Santos (1994), que são aqueles que podem melhor ver, apreender e perceber a cidade, pois negam o ritmo veloz da contemporaneidade. Na cidade e no “fazer da experiência” a força é dos lentos, visto que, com rapidez vê-se pouco da paisagem e com lentidão se pode realmente vivenciar e observá-la atentamente.
A EXPERIÊNCIA DA CAMINHADA A experiência de uma nova imagem poética, de alteridade e corporeidade com a cidade pode ser encontrada a partir da experiência da paisagem, da caminhada e da errância (isto é, da caminhada a partir da busca do estranhamento, daquilo que jamais foi visto ou sentido, de prática do lugar sem um objetivo preciso). Por meio da caminhada pode se experimentar a cidade de dentro, ser atravessado por ela e ter uma abertu41
ra às suas qualidades sensíveis, adquirir um saber subjetivo. Dessa maneira, o espaço urbano pode ser apreendido de outra forma, a partir da da paisagem não apenas enxergada, mas sim experimentada com todos os sentidos, “caminhar não é simplesmente uma forma de estar fora, passivamente, no mundo. Na caminhada, a sensibilidade é tão ativa quanto ativada, o estar no mundo é orientado, articulado”(BESSE, 2014, p.54). A caminhada estimula uma outra percepção sobre a paisagem, a sair do “conhecido” e ter contato com o outro: Paisagem é o nome dado a essa presença do corpo e ao fato de ele ser afetado, tocado fisicamente pelo mundo ao redor, suas texturas, estruturas e espacialidades: há nisso algo como um acontecimento. [...] A experiência da caminhada nos indica que essa “vida” de que falamos aqui, essa “experiência vivida” não se identifica com a vida interior ou a subjetividade pessoal. Na paisagem, a vida subjetiva se desenrola à beira das coisas. [...] Se há experiência, há exposição da subjetividade a algo como um “fora” que a conduz e a empurra, às vezes violentamente, fora dos seus limites. Nesse sentido, a paisagem é, literalmente, “isso” que põe o sujeito fora de si mesmo. (Besse, 2014, p.47-48)
A caminhada está diretamente ligada à maneira como vemos um espaço, Robert Smithson afirma que “o caminhar condiciona a vista e a vista condiciona o caminhar a tal ponto que parece que apenas os pés podem ver”9. De acordo com Certeau (1998), há um conhecimento espacial próprio dos praticantes da cidade, por meio da caminhada se obtém uma experiência essencial para se apreender a cidade e transmitir esse aprendizado a outros, Certeau compara essa “prática da cidade” a um texto urbano, escrito por aqueles que praticam a caminhada:
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Mas “embaixo”(down), a partir dos limiares onde cessa a visibilidade, vivem os praticantes ordinários da cidade. Forma elementar dessa experiência, eles são caminhantes, pedestres, Wandersmãnner, cujo corpo obedece aos cheios e vazios de um “texto” urbano que escrevem sem poder lê-lo. Esses praticantes jogam com espaços que não se veem; têm dele um conhecimento tão cego como no corpo-a-corpo amoroso. Os caminhos que se respondem nesse entrelaçamento, poesias ignoradas de que cada corpo é um elemento assinado por muitos outros, escapam à legibilidade. Tudo se passa como se uma espécie de cegueira caracterizasse as práticas organizadoras da cidade habitada. As redes dessas escrituras avançando e entrecruzando-se compõem uma história múltipla, sem autor nem espectador, formada em fragmentos de trajetórias e em alterações de espaços: com relação às representações, ela permanece cotidianamente, indefinidamente, outra (CERTEAU, 1998, p.171)
Para Francesco Careri (2013), o caminhar é, ao mesmo tempo, leitura e escrita do território, um ato simultâneo de percepção e criação. Mesmo que não traga uma alteração física ao espaço, o caminhar pode transformar a paisagem e seus significados. (CARERI, 2013, p. 51). Afinal, a caminhada é também se dar ao luxo de parar e resistir ao impulso natural, que é justamente, se mover. A genialidade da caminhada é o que permite poetas, escultores e acadêmicos a absorver o melhor da memória dos lugares – sejam cidades, montanhas, florestas, oceanos – e trazer para o seu trabalho. Para o planejador urbano, a caminhada é uma análise urbanística. Nós devemos à caminhada a responsabilidade de tornar as cidades mais humanas e vivas. [...] A caminhada, em si, é um ato que requer sair da inércia e atenção aos múltiplos sentidos: é a própria mudança!10
A caminhada, a errância e as narrativas, apesar de sua fragilidade e efemeridade, são meios de sobrevivência potentes e modos de subversão da realidade e dos métodos de se atuar na cidade. Essa postura crítica em relação ao modo de se rela43
Figura 10: Carl Andre. Secant, 1977. Obra que é uma presença ausente no espaço, ocupando-o sem preenchê-lo. Nela o caminhar é usado como forma de arte (resultado da expansão da literatura nas artes visuais) e convida o espectador a caminhar ao redor delas e através dela (CARERI, 2016)
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cionar e compreender a cidade permite uma leitura que foge ao método tradicional urbanísticos de “diagnósticos” criados a partir de dados estatísticos e genéricos para criar soluções objetivas e constitui uma forma de reverter o processo de destruição da experiência e pacificação de espaços (JACQUES, 2012b) Através das narrativas errantes seria possível apreender o espaço urbano de outra forma, pois o simples ato de errar pela cidade cria um espaço outro, uma possibilidade para a experiência, em particular para a experiência da alteridade. O errar, ou seja, a prática da errância, pode ser pensado como instrumento da experiência de alteridade na cidade, ferramenta subjetiva e singular – o contrário de um método cartesiano. [...] O errante não vê a cidade somente de cima, a partir da visão de um mapa, mas a experimenta de dentro [...] (JACQUES, 2012a, p. 23-24)
Ao caminhar e fazer experiências sensíveis e de alteridade11, podemos adquirir uma outra percepção sobre a cidade e notar que, apesar de tudo, ainda existem redutos para explosão da imagem poética e possibilidades de dar novos valores ao ambiente urbano, para que ele seja realmente habitado. Para isso, deve-se negar o ritmo contemporâneo, fugir do cotidiano criado pela metrópole e pela modernização, e se fazer disponível para a possibilidade ao novo. A experiência, portanto, representa um modo diferente de apreender a cidade, que passa a ser compreendida a partir de seus aspectos afetivos e sensíveis. Esse aprendizado pode mudar o fazer de arquitetura e do planejamento urbano, que devem ser feitos com a intenção de estimular o contato com o outro, criar novas conexões e sociabilidades entre as pessoas e a cidade. 45
NOTAS: 1 DIDI-HUBERMAN, 2002, p.127. apud CASA NOVA, Vera. Cascas sobre o papel: memória do dilaceramento. Aletria: Revista de Estudos de Literatura, [S.l.], v. 24, n. 2, p. 65-75, ago. 2014, p.65. 2 SOARES, Bernardo. In. PESSOA, Fernando. Livro do Desassossego. São Paulo: Principis, 2019, p.374 3. Texto retirado da exposição ‘Passagens – Espaço de Transição para a Cidade do Século XXI’, mostra internacional do Instituto Cidade em Movimento (IVM) realizada no período de 17 de fev. a 8 de abr.de 2018, no Museu da Casa Brasileira (MCB), instituição da Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo. 4. TRECHO do livro “A Capital da Solidão”. Folha de São Paulo, 2003. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/folha/sinapse/ult1063u646. shtml>. Acesso em: 23 de mar. de 2020 5. SOARES, Bernardo. In. PESSOA, Fernando. Livro do Desassossego. São Paulo: Principis, 2019, p. 96 6. BENJAMIN, Walter apud JACQUES, Paola Berenstein. Elogio aos errantes. Salvador: EDUFBA, 2012, p.18-19 7. NEORIBERALISMO, assexualidade e desejo de morte. Outras Palavras, 2017. Disponível em: <https://outraspalavras.net/tecnologiaemdisputa/ neoliberalismo-assexualidade-e-desejo-de-morte/>. Acesso em: 05 de Mar. de 2020. 8. CERTEAU, Michael de. apud JACQUES, Paola Berenstein, 2012. Texto citado, p.17 9. SMITHSON, Robert apud CARERI, Francesco. Walkscapes: O caminhar como prática estética. São Paulo: Editora Gustavo Gili, 2016, p. 110 10. IVM Internacional participa de livro sobre genialidade do caminhar, Cidade em Movimento, 2017. Disponível em: <https://cidadeemmovimento.org/genialidade-do-caminhar-por-mireille-apel-muller-ivm-internacional/> Acesso em: 10 de mar. de 2020 11. Entendemos “alteridade” como algo que traz diferença, que nos desloca, que possibilita o encontro com o Outro, com o diferente.
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LISTA DE FIGURAS - CAPÍTULO 1: Figura 1: Tóquio - 07. Foto: Cristiano Mascaro. Disponível em: <http://www. cristianomascaro.com.br/galerias/o-mundo/toquio> Acesso em: 10 de Jul. 2020. Figura 2: Frame do filme Medianeras MEDIANERAS: Buenos Aires da Era do Amor Virtual. Direção de Gustavo Taretto. Argentina: 2011. Disponível em: <https://www.planocritico.com/ critica-medianeras-buenos-aires-na-era-do-amor-virtual/>. Acesso em: 02 de Jul. 2020. Figura3: NOTURNO 2. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2020. Disponível em: <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra23626/noturno-2>. Acesso em: 23 de Mar. 2020. Figura 4: Edifício São Vito e Viaduto Diário Popular Foto: Cristiano Mascaro. Disponível em: <http://www.cristianomascaro. com.br/img_bank/b02d308b5b8e661cec9f4771304a5678.jpg>. Acesso em: 10 de Jul. 2020. Figura 5: Faróis no Parque Dom Pedro. Foto: Cristiano Mascaro. Disponível em: <http://www.cristianomascaro.com.br/galerias/colecoes/sao-paulo-acidade>. Acesso em: 10 de Jul. 2020. Figura 6: Condomínio Piscine Station Resort, localizado na Rua Domingos Paiva (Brás). Disponível em: <https://www.piscinestation.com/>. Acesso em: 03 de Mai. 2020. Figura 7: Condomínio Piscine Station Resort, localizado na Rua Domingos Paiva (Brás). Disponível em: <https://www.piscinestation.com/> Acesso em: 09 de Jul. 2020 Figura 8 e 9: frames do filme Asas do desejo ASAS do desejo. Direção de Win Wenders. Alemanha, 1987. Figura 10: Carl Andre. Secant, 1977. Disponível em: <https://rudygodinez. tumblr.com/post/68276752836/carl-andre-secant-197>. Acesso em: 14 de Jul. 2020
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poesia questão urbana
Aproximando a à
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“O jogo é buscar a aventura, como um veleiro, soltar as velas. Vagar e vagar por partes desconhecidas e sentar-se debaixo de uma árvore quando se está cansado, comprar uma banana ou uns pães, pegar um trem e ir a um lugar que você goste e olhar, desenhar também, e olhar. Sair do mundo conhecido, entrar no que você nunca viu, deixar-se guiar pelo gosto, ir a muitos lugares. Pouco a pouco você vai encontrando coisas e as imagens vão surgindo”¹. (Sergio Larrain) 51
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Neste capítulo, buscamos analisar como a poesia, em suas diversas formas, pode estimular uma nova relação física e sensível do ser humano com a cidade. Tais relações dão margem a significados incessantes e que podem ajudar a transver o espaço urbano, despertando diferentes imagens poéticas sobre o que já existe – a partir do reconhecimento de suas potências e experiências existentes – como também possibilidades para que sejam criadas novas experiências poéticas. Desta forma, exploraremos ainda as conexões intertextuais entre o texto poético e o texto visual, o poema e a cidade. A partir do diálogo entre essas linguagens, investigaremos possibilidades de transgredir as barreiras que marcam o tecido urbano, de descobrir as potências contidas naquilo que é banalizado e desconstruir os saberes conhecidos, fatos que podem ser transformados a partir do modo com o qual um indivíduo vê a cidade. O ritmo veloz que a metrópole contemporânea impôs à vida cotidiana do homem – juntamente com a automatização dos atos e a alienação do trabalho – contribuiu para que ele se tornasse um sujeito apático e desconectado em relação aos lugares por onde passa. Embora tenha contato com o ambiente público em algum momento do dia, esse sujeito está frequentemente desatento em relação ao espaço que o circunda e não observa com profundidade as características que o fazem único. O espaço e seus componentes, formas, linhas, sombras, cores, volumes, abrigam sentidos que estão prontos para serem desvendados, porém isso só pode ser feito por meio do olhar desperto, aguçado e da experiência sensível. 53
Figura 1: Avenida do Estado
Essa forma de olhar e vivenciar o mundo é abordada por Bernardo Soares no trecho do poema a seguir, onde fala sobre a experiência única que cada dia – e cada coisa – traz consigo e que para vivenciá-la é necessário deixar de ser míope, ou seja, olhar de forma mais atenta e sensível para os elementos presentes no cotidiano: Cada rosto, ainda que seja o de quem vimos ontem, é outro hoje, pois que hoje não é ontem. Cada dia é o dia que é, e nunca houve outro igual no mundo. Só na nossa alma está a identidade — a identidade sentida, embora falsa, consigo mesma — pela qual tudo se assemelha e se simplifica. O mundo é coisas destacadas e arestas diferentes; mas, se somos míopes, é uma névoa insuficiente e contínua. ²
O poema anterior nos oferece ensinamentos que podem aguçar nossa percepção e nos incentivar a caminhar, olhar com atenção os espaços na cidade e dar abertura à novas vivências, uma 54
vez que a cidade ainda possui espaços – muitas vezes não notados – onde há poesia e possibilidades de novas experiências. Dado isso, surge a possibilidade de aplicar à vida na cidade e ao raciocínio projetual uma forma poética de olhar, perceber e vivenciar a cidade.
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A POESIA COMO AGENTE DA PERCEPÇÃO DE UM OUTRO OLHAR PARA A VIDA URBANA Partiremos da diferenciação dos significados de “poema” e “poesia”, para melhor entender suas ligações com a experiência sensível e com a vida na cidade. Conforme o E-Dicionário de Termos Literários3, a palavra “Poesia” se originou do termo grego poíesis, que significa “ação de fazer” e a palavra “poema”, vem de poiema, que significa “o que se faz”. Segundo Haesbaert (1997), a poesia pode ser considerada uma forma de expressão da arte, que é aquilo que possui entusiasmo criador, inspiração e que desperta o sentimento do belo; já o poema, para Octavio Paz (1982), pode ser considerado uma criação, obra literária, um organismo verbal, que pode suscitar e emitir a poesia, esta, por sua vez, pode se fazer presente também em outros lugares e sob outras formas: Há máquinas de rimar, mas não de poetizar. Por outro lado, há poesia sem poemas; paisagens, pessoas e fatos podem ser poéticos: são poesias sem ser poemas. Pois bem, quando a poesia acontece como uma condensação do acaso ou é uma cristalização de poderes e circunstâncias alheios à vontade criadora do poeta, estamos diante do poético. (...) O poético é poesia em estado amorfo; o poema é criação, poesia que se ergue. Só no poema a poesia se recolhe e se revela plenamente. (PAZ, 1982, p. 16 e 17)
A poesia oferece abertura à múltiplas significações, interpretações e é capaz de sugerir as mais diversas imagens, em razão de ser uma representação vinculada à realidade que não é coordenada por um código padronizado. Dado isso, o poe57
ma encontra-se além da mera linguagem, – embora seja através dela que ele se expressa – pois a poesia tem o poder de transformar a matéria (palavra, som, objeto) em imagem e, ao tornar-se imagem, o poema transcende o campo da linguagem e ganha múltiplos significados, tornando-se uma obra única e irrepetível. Octávio Paz afirma que “o fato de serem imagens, e o estranho poder de suscitarem no ouvinte ou no espectador constelações de imagens, transforma em poemas todas as obras de arte” (PAZ, 1982, p. 27). Portanto, esta característica nova, transcendental e irrepetível do poema estende-se também para outras obras de arte, como pinturas, esculturas, monumentos, músicas e danças, que também são formas poéticas. (PAZ, 1982) Com efeito, acima das diferenças que separam um quadro de um hino, uma sinfonia de uma tragédia, há neles um elemento criador que os faz girar no mesmo universo. Uma tela, uma escultura, uma dança são, à sua maneira, poemas. E essa maneira não é muito diferente do poema feito de palavras. A diversidade das artes não impede sua unidade. Ao contrário, destaca-a. (PAZ, 1982, p.21 e 22)
Segundo Paz, apesar de haver diferenças entre as diversas formas de expressões artísticas, devemos ter plena convicção de que todas compartilham um ponto em comum: são, em sua essência, linguagem: Pintores, músicos, arquitetos, escultores e outros artistas não usam como materiais de composição elementos radicalmente distintos dos que emprega o poeta. Suas linguagens são diferentes, mas são linguagem. (PAZ, 1982, p.23 e 24)
O homem, qualquer que seja atividade que faça, transforma uma matéria-prima em obra, dando à matéria um novo 58
Figura 2: Bailarina ensaiando na UNE
significado. Tal significado não despreza ou desvaloriza sua natureza original, mas a ultrapassa e transcende, portanto, as transformações da matéria atuam como “pontes que nos levam à outra margem, portas que se abrem para outro mundo de significados” (PAZ, 1982, p. 26). 59
O tecido urbano e sua arquitetura compõem, de certo modo, matérias que já foram transformadas, mas que podem vir a ser ressignificadas pois são, igualmente, um tipo de linguagem. Portanto, parece ser plausível a possibilidade de criar relações intertextuais entre o tecido da cidade e a poesia; relações que podem dar abertura a novos significados, que transcendam as “definições” neles contidas.
A POESIA E A CIDADE Segundo Haesbaert (1997), o sentido dos espaços encontra-se além de seus limites físicos e de sua função, envolve também a dimensão sensível do espaço, que é influenciada pela memória afetiva, emoções, sensibilidade e pela vivência daqueles que o frequentam. Sua peculiaridade e característica simbólica dão margem à criação de uma leitura subjetiva que pode ser poética, pois “a abertura para múltiplas significações é própria do discurso simbólico que caracteriza o poema” (HAESBAERT, 1997, p. 24). Tais fatos mostram que o espaço é formado por diferentes agentes, e portanto, por diferentes linguagens, diferentes vozes – a voz dos agentes do espaço, a voz da poesia, a voz da cidade, onde a poesia se encontra, e a voz do poeta, que a transmite – a relação entre elas, quando feita, resulta na intertextualidade. Conforme Perrone-Moises: Entende-se por intertextualidade esse trabalho constante de cada texto com relação aos outros, esse imenso e incessante diálogo entre obras que constitui a literatura. Cada obra surge como uma nova voz (ou um novo conjunto de vozes) que fará soar diferentemente as vozes anteriores, arrancando-lhes novas entonações – diálogo infinito/obra inacabada. (apud Guatelli, 2008 p.62)
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Segundo Guatelli (2008), a intertextualidade é um espaço para intermediação entre diferentes ações a partir das diferentes vozes relacionadas, é híbrido, aberto a outros sentidos, e dá a chance de serem criadas novas possibilidades em relação às funções específicas já existentes e às verdades usualmente tidas como inquestionáveis. Essa possibilidade também pode ser percebida em certos poemas, onde há alteração da paisagem a partir da inserção de palavras estranhas ao contexto. A palavra possui o poder de destacar e revelar a realidade das coisas, como também a capacidade de dar significado ao insignificante, criar outras realidades e novos sentidos, proporcionando novas percepções dos lugares já conhecidos, pois não mostra uma verdade absoluta, está aberta à alteridade. Um exemplo de alteridade causada por palavras é o poema a seguir, onde Manoel de barros mostra que devemos fazer o uso de “novas palavras” para poder criar alteridades em relação às normas estabelecidas: Eu estava parado no meio de uma oração como se eu estivesse desenvolvido a vermes. Veio a minha professora e me ensinou: Tudo o que você tem de fazer é tirar do seu texto as palavras bichadas de seus próprios costumes — falou! Poesia é um desenho verbal da inocência!4
Os poemas podem, igualmente, atuar como narrativas referentes à experiência na cidade, prolongando sua duração e descrevendo aquilo que está lá mas que muitas vezes não é visto. A narrativa traz consigo oportunidades de mudança para o olhar, uma vez que busca descrever a experiência sensível e representar o espaço da paisagem que nos envolve e nos transpassa, dando sentido à ele: 61
Os discursos que se encarregaram, principalmente, dessa interrogação sobre a língua e seus poderes de apresentação da experiência, assim como sobre as relações que ela mantém com o momento próprio da sensibilidade paisagística, situam-se mais do lado da poesia e da filosofia (e até, às vezes, no caso da fenomenologia, na exata articulação, embora sempre problemática, do registro filosófico e do registro poético). Como se, no fundo, apenas trabalho sobre a língua que se faz em filosofia e em poesia pudesse fazer jus à experiência paisagística na sua verdade, como somente na poesia e na filosofia o evento paisagístico pudesse ser restituído e levado ao auge da sua realidade. De forma geral, somente a arte, como poema, e talvez a mística podem dizer essa experiência da paisagem ou, mais precisamente, dar a ver e a ouvir essa paisagem como experiência fundamental, originária, da conivência com o mundo. Arte não porque representaria a paisagem, mas porque mostra a paisagem, porque a faz chegar como tal à presença e, mais geralmente, porque faz aparecer o mundo enquanto mundo. (BESSE, 2014, p.52-53)
O poema pode realizar mudanças no nosso modo de ver a cidade, pois nos dá outra apreensão de seus espaços – em especial aqueles que são desprezados, que ficam à margem – pois “do mesmo modo que através de um corpo amado entrevemos uma vida mais plena, mais vida que a vida, através do poema vislumbramos o raio fixo da poesia” (PAZ, 1982, p.29). Segundo Bachelard, o leitor, ao realizar a leitura do poema, passa a viver aquilo que ele exprime, “o poeta cria imagens, poemas; o poema faz do leitor imagem, poesia” (PAZ, 1982, p.30). Portanto, a leitura de um poema nos oferece a oportunidade de vivenciarmos uma imagem poética, “oportunidade” porque depende do contato do homem, da participação do leitor ou do ouvinte para “animar-se”, e essa vivência traz um novo despertar, que o permite olhar de outra maneira para a cidade, trazendo novas sensações e que consequentemente nos torna outro. 62
Portanto, não seria o poema – narrativa de uma experiência, que transmite um olhar poético sobre certa paisagem – uma abertura à alteridade que viabilizaria novas criações a partir da relação de seus “ensinamentos” com a vida na cidade? Para que o sujeito tenha uma percepção poética do espaço, é necessário que ele se desprenda, ainda que por alguns instantes, da racionalidade que rege o seu olhar, deixe de estar ocupado por certezas e se faça disponível, apto a ver. É importante também que esse habite o espaço, e perceba os detalhes “banais” da paisagem – dando abertura ao novo, ao devaneio e à imaginação – como fazem os artistas e poetas: Retomemos o contato com os devaneios mais curtos, evocados pelo detalhe das coisas, pelos episódios do real à primeira vista insignificantes. Quantas vezes já não se fez lembrar que Leonardo da Vinci aconselhava aos pintores com deficiência de imaginação diante da natureza que contemplassem com olho sonhador as fissuras de uma velha parede? Não há um plano de universo nas linhas desenhadas pelo tempo sobre a velha muralha? Quem já não viu em algumas linhas que aparecem num teto o mapa de um novo continente? O poeta sabe tudo isso. Mas para dizer à sua maneira o que são esses universos criados pelo acaso nos confins de um desenho e de um devaneio, ele vai habitá-los. Encontra um canto onde viver nesse mundo do teto desenhado. (BACHELARD, 2003, p.109)
O espaço, ao ter sua poesia latente descoberta, é transformado por ela e transmite uma imagem poética nova ao observador, este tem sua imaginação realçada e passa a contemplar mais atentamente a paisagem. O espaço é, então, revestido com um novo sentido e passa a ser habitado, ganhando uma imensidão que representa uma fuga em relação às adversidades do mundo: 63
Figura 3:
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Uma folha tranquila verdadeiramente habitada, um olhar tranquilo surpreendido na mais simples das visões, são operadores de imensidão. Essas imagens fazem crescer o mundo, crescer o verão. Em certas horas, a poesia propaga ondas de calma. De ser imaginado, a calma se institui como uma emergência do ser, como um valor que domina, apesar dos estados subordinados do ser, apesar de um mundo conturbado. A imensidão foi aumentada pela contemplação. (BACHELARD, 2003, p. 152)
A poesia traz verdades que habitam no observador e que o fazem se reconhecer, sentir-se conectado a ela. Ao enxergar a poesia na cidade, pode-se ter uma maior conexão com ela e também com os indivíduos que a frequentam, pois, segundo Bachelard (2003), ao experimentarmos uma imagem poética nova, somos dominados por um grande entusiasmo e pelo desejo de transmitir essa experiência, compartilhá-la com outras pessoas. Portanto, por meio da poesia, em suas diferentes formas – poema, arte, espaço, dentre outras – somos capazes de ter uma maior comunhão com nosso “mundo interior”, bem como com o outro, com o mundo exterior. Deste modo o espaço da intimidade e o espaço do mundo passam a existir em harmonia. A partir da experiência sensível na cidade e das imagens poéticas que essa gera, o homem pode habitar o espaço urbano (BACHELARD, 2003). Por fim, a relação entre poesia e cidade pode abrir espaço à distintas possibilidades e ajudar a construir o significado do lugar, uma vez que tem a capacidade de incentivar tanto o leitor quanto o arquiteto a imaginar novas configurações, a projetar no campo da afetividade, buscando dar um sentido humano ao local.
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A POESIA COMO FORMA DE SUBVERSÃO A poesia é conhecimento, salvação, poder, abandono. Operação capaz de transformar o mundo, a atividade poética é revolucionária por natureza; exercício espiritual, é um método de libertação interior. A poesia revela este mundo; cria outro. (PAZ, 1982, p.15)
A poesia é uma visão do mundo, ao mesmo tempo que o transforma, “é a imaginação rechaçando as pressões da realidade”5. Por ser uma visão muitas vezes crítica, a poesia é também um meio de inquietar o homem; seu modo de ver desconstrói o modo de vida imposto pelo sistema e rompe a linearidade, funcionalidade e regras impostas, difundindo o lúdico, o poder criador e a imaginação (HAESBAERT, 1997). A poesia, é, portanto, revolucionária.
Figura 4: Meninos assistindo a jogo de fora do estádio do Pacaembu
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Figura 5: Meninos assistindo a jogo de fora do estรกdio do Pacaembu
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Diante do sistema capitalista, a razão e a produção foram priorizadas e sobrevalorizadas em detrimento da emoção e da criatividade humana, o trabalho assumiu um valor e se tornou fonte de alienação, e as obras de arte foram monetizadas, em razão de produzirem objetos que podem possuir um valor mercantil. Entretanto, ao dar às obras um valor de trabalho-mercadoria, expulsou-se dessa esfera da realidade os poetas e suas produções, pois estes não produzem objetos vendíveis ou passíveis de troca (PAZ, 1982, p.297). Octavio Paz (1997), afirma que os poemas não valem “nada” pois o esforço demandado para sua criação não pode reduzir-se a um valor, “como a poesia não é algo que possa ingressar no intercâmbio de bens mercantis, não é realmente um valor. E se não é um valor, não tem existência real dentro do nosso mundo”6. Kant, conforme citado por Olgária Matos (2008) no texto “O mal estar da contemporaneidade”, aborda esse mesmo pensamento, afirmando que, apesar de não possuírem um valor monetário, as coisas gratuitas possuem valor simbólico e dignidade: ”Todas as coisas que podem ser comparadas podem ser trocadas e têm um preço; aquelas que não podem ser comparadas não podem ser trocadas, não têm preço, mas dignidade”. Dado isso, a poesia pode ser considerada como algo que foge às normas e limites do mundo dominado pelo capital, assim como outras coisas gratuitas da vida: Apesar de todas as tentativas de privatização, há algumas coisas que se recusam a ser possuídas. Música, água, sementes, eletricidade, idéias - tais coisas continuam irrompendo para fora dos limites erguidos em torno delas. Têm uma resistência natural à prisão, uma tendência a fugir, à troca, a fluir através das cercas, e a escapar pelas janelas abertas (KLEIN, 2003, p. 25)
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Faz-se necessário, portanto, por meio das coisas que fogem às normas, criar modos de fuga e resistência que transpõem as relações que o mercado estabeleceu com a vida. Bernardo Soares ressalta a importância e beleza da arte em relação à vida – marcada por rotinas, propósitos e pensamentos racionais – e propõe a criação de percursos que seriam “inúteis” mas que seriam belos por serem contrários às lógicas da produtividade da vida: [...]Por que é bela a arte? Porque é inútil. Por que é feia a vida? Porque é toda fins e propósitos e intenções. Todos os seus caminhos são para ir de um ponto para o outro. Quem nos dera o caminho feito de um lugar donde ninguém parte para um lugar para onde ninguém vai! Quem desse a sua vida a construir uma estrada começada no meio de um campo e indo ter ao meio de um outro; que, prolongada, seria útil, mas que ficou, sublimemente, só o meio de uma estrada.[...] 7
Por vezes nos acostumamos ao cotidiano, ao conhecido e nos tornamos anestesiados e indiferentes em relação à vida e ao outro. Essa forma rasa de compreensão do mundo caracteriza o olhar do homem moderno, consumidor, ávido por novidades e que, diante de uma ordem homogeneizadora e hegemônica cada vez mais presente, não faz uso de uma contemplação sensível. Porém, mesmo diante dessas condições, a poesia sobrevive, insubmissa, sob a forma de pequenas resistências que mostram que ainda existem lugares que transmitem imagens poéticas, lugares que ao serem percebidos e vivenciados podem reconstruir o sentido da cidade. A poesia pode aguçar nossa percepção e guiar nosso olhar desatento, traz uma abertura para novas experiências e, portanto, subverte a “normalidade” do cotidiano e do pensamento comum. Ao deixamos de lado o espírito do homem metropolitano racional e impessoal e adquirimos a possibilidade de habitar o espaço urbano, vivenciar novas experiências. 70
A poesia tem um caráter duplamente “revolucionário”: primeiro porque vai contra o mundo-mercadoria que cada vez mais domina a face do planeta e seu caráter lúdico torna-se transgressor: ela não pertence à lógica e ao mundo da compra-e-venda. A poesia é gratuita, “não tem finalidade” sua utilidade é sua in-utilidade: mostrar ao mundo da produção e do consumo sua contraface, oculta, sufocada, o mundo da imaginação e da sensibilidade, “incontrolável” mundo dos sentidos do qual a razão nunca vai tomar posse. [...] a única coisa que nunca pode ser aprisionada é a imaginação”. (HAESBAERT, 1997, p.23)
A poesia pode auxiliar a mudar um espaço da cidade considerado desprezado, sem valor, com uma função “dura” e estabelecida. Segundo Guatelli (2008), o espaço do “entre” – espaço em latência, sem significado, desprezado, que não tem valor e livre de pré-configurações – é também um espaço aberto ao porvir e pronto para ser fecundado, reconfigurado e, assim, adquirir diferentes sentidos e significados. Nele nós podemos criar condições para o devenir autre e afirmar o espaço ao mesmo tempo em que se nega a função simplificada que ele possui, questionando as normas e permanecendo à margem, indo além daquilo que é considerado natural, nas palavras de Guatelli: “não apenas (mas também) aceitação do designado pelo objeto e suas destinações mas interrogação e solicitação permanente”(GUATELLI, 2008, p.77). Com o auxílio da poesia e do olhar atento, podem surgir novas operações projetuais, que tem como intenção criar imagens poéticas mediante a transformação do entre. Esta transformação poderia ser feita por intermédio de pequenas transgressões que trazem alteridade e dão espaço à imaginação e à novas descobertas. e que também incentivem a caminhar mais e ter uma relação de corporeidade com a cidade. 71
Figura 6: Gordon Matta-Clark – Splitting, 1974, Englewood, New Jersey. Intervenção onde Matta-Clark corta uma casa abandonada ao meio e, por meio dessa fissura, a casa é invadida [irregularmente] pela luz. Em suas obras, Matta-Clark encontra potências em meio ao espaço abandonado e sintetiza outra arquitetura possível.
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Busca-se, por fim, utilizar a poesia como lanterna, algo que tem a capacidade de iluminar um pedaço do cotidiano por vezes escuro e monótono e atuar como uma ferramenta de escape e sobrevivência, pois detém em si uma força capaz de transformar a vida – podendo também ser considerada uma forma de ressurreição, pois representa uma vida retirada da vida, aquilo que se ganha em meio a todas as perdas, o que sobra da vida, resiste e persiste. Em relação ao cotidiano e a prisão que pode ser a vida regida pelo capital, onde a alienação e racionalidade tendem a prevalecer, a poesia vem como a oportunidade de uma janela a ser aberta, um sopro de ar fresco e cria uma “revolução molecular lentíssima, quase imperceptível, que, no entanto, modifica radicalmente a existência de todo o percebido” (ROLNIK, 2018, p.14).
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POESIA URBANA E SEUS DESDOBRAMENTOS Existem na cidade lugares que podem transmitir imagens poéticas que realçam nossa imaginação e trazem alteridade ao cotidiano. A eventualidade dessa experiência de imagem poética pode existir tanto nos espaços habituais e ínfimos da cidade, como também nos locais afetados por um acontecimento diferente, ainda que mínimo ou efêmero. Estes lugares podem ser considerados subversivos à “ordem natural” da cidade, onde predominam espaços privados e racionais, barreiras, a velocidade e a falta de tempo.
Figura 7: Foto da instalação de Didier Faustino na Shenzhen Hong Kong Bi-City Biennale of Urbanism and Architecture
Exemplos de experiências poéticas são as intervenções urbanas que propõem usos diferentes, estranhos à função prévia do lugar, provocando dúvida ou estranhamento. Esses usos podem ser de atividades culturais ou recreativas, exposições, apresentações, instalações, como também a inserção de uma imagem, 75
cor ou objeto fora de contexto, ou até mesmo um espaço de pausa e descanso. Tais intervenções atuam como um ponto de atenção, iluminando o local em que estão instaladas e criando outras percepções, transformações no espaço e novas experiências ao indivíduo da cidade, despertando imagens poéticas e incentivando-os a sair do comum, usar a imaginação, criar diferentes sociabilidades e ocupações. [...] Na arte não há tributo ou multa que paguemos por ter gozado dela. O prazer que ela nos oferece, como em certo modo não é nosso, não temos nós que pagá-lo ou que arrepender-nos dele. Por arte entende-se tudo que nos delicia sem que seja nosso — o rasto da passagem, o sorriso dado a outrem, o poente, o poema, o universo objetivo. [...]8
Figura 8: Rede de Colaboração e Sonecas. Construção de rede gigante nas árvores caidas no Festival Parque Augusta.
A presença da arte na paisagem altera os olhares sobre aquilo que existe e cria uma maior conexão com a cidade, possibilitando que haja aproximação, pausa e contato entre os indivíduos 76
que a observam; essa conexão pode modificar a dinâmica do espaço urbano, dando mais vida ao lugar e instigando as pessoas a habitarem os espaços públicos. Um exemplo de apropriação artística pode ser uma empena ocupada por um grafite, lambe-lambe, novas cores e desenhos nos elementos urbanos usuais, assim como projeções de vídeos e imagens nos espaços e empenas da cidade, entre outros. A arte pode incidir sobre distintos procedimentos, matérias, objetos e convenções, ressignificando-os, deslocando-os da apreensão cultural comum. (...) seja propondo uma nova percepção sobre o presente, uma conscientização, uma perspectiva libertária, um novo modo de agir, ou uma ação coletiva construtiva (ou desconstrutiva) em relação ao entorno socioambiental. (ABRIGO PORTÁTIL, 2016)
Figura 9: Instalação “This is not a love song” de Didier Faustino na Vila Andre Bloc’s, ativando o significado do espaço.
A experiência poética pode estar presente também em intervenções mínimas no espaço, em uma simples alteração que marca a presença de algo, como também no espaço “comum”, tal como 77
um detalhe notado em meio ao caos e à correria urbana, como o sol peneirado pela copa de uma árvore ou a sombra das folhas projetadas no chão; e até mesmo em pequenas resistências às lógicas, como nos espaços intersticiais por onde a vida brota e cria resistência, plantas que crescem em meio às fendas do concreto. Quando tudo é dado como repetitivo, igual e monótono, dificilmente se consegue perceber e contemplar as pequenas coisas, notar a beleza que pode existir ao contemplar uma paisagem em seus mínimos detalhes. Ao oferecermos um segundo olhar para as coisas, um olhar lento, com mais atenção, podemos perceber as coisas em sua plenitude, como também explorar as diversas maneiras de olhar que podem existir sobre uma mesma coisa. Figura 10: Criaturas de giz de David Zinn.
As coisas O encanto sobrenatural que há nas coisas da natureza! No entanto, amiga, se nelas algo te dá encanto ou medo, não me digas que seja feia ou má, é, acaso, singular... E deixa-me dizer-te em segredo um dos grandes segredos do mundo: - Essas coisas que parece não terem beleza nenhuma - é simplesmente porque não houve nunca quem lhes desse ao menos um segundo olhar! Mário Quintana9
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Figura 11: Desenho do projeto Ervas sp - Laura Lídia - ocupação Minhocão Figura 12: Edifício Guarani - Rino Levi, vista para os viadutos 25 de Março, Antônio Nakashima e Mercúrio, que cruzam o Parque Dom Pedro II
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Figura 13: Gradil do Viaduto Santa IfigĂŞnia
Figura 14: Entre duas memĂłrias
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No poema “as coisas”, Mário Quintana afirma que há na Natureza um encanto sobrenatural, só possível de ser captado se lhe lançarmos um segundo olhar. Sempre vistas de relance, ou mesmo se percebidas num olhar de primeira vez, essas coisas, tão logo passe o espanto que nos causam por ensejarem o novo, vão se tornando comuns, perdendo a beleza e a aura de mistério, retiradas (em verdade) pela visão automatizada, da qual mesmo os observadores mais argutos, como os poetas, não estão isentos. O lirismo singular de Mário Quintana, e os demais vetores de sua poética, como o humor, a crítica de costumes, a concepção metafísica (muito particular) da existência, advém desse seu segundo olhar para o cotidiano, a infância, o amor, a cidade e o mundo, a vida humana e a própria poesia.10
O espaço está aberto às ressignificações, basta que nós estejamos igualmente abertos para investigá-lo a partir de um novo olhar, um olhar que se expande em todas as direções e valoriza os elementos da paisagem, até mesmo os restos e as coisas ínfimas e banais, como também as sensações mínimas da experiência sensível. Bernardo Soares aborda em um texto a mesma temática, comentando a respeito de seu gosto pelas coisas fúteis, a beleza das coisas “inúteis” e das sensações mínimas e o prazer que elas trazem: [...] As várias posições que uma borboleta que voa ocupa sucessivamente no espaço são aos meus olhos maravilhados várias coisas que ficam no espaço visivelmente. As minhas reminiscências são tão vívidas que só as sensações mínimas, e de coisas pequeníssimas, é que eu vivo intensamente. Será pelo meu amor ao fútil que isto me acontece. Pode ser que seja pelo meu escrúpulo no detalhe. Mas creio mais — não o sei, estas são as coisas que eu nunca analiso — que é porque o mínimo, por não ter absolutamente importância nenhuma social ou prática, tem, pela mera ausência disso, uma independência absoluta de associações sujas com a realidade. O mínimo sabe-me a irreal. O inútil é belo porque é menos real que o útil, que se continua e prolonga, ao passo que o maravilhoso fútil, o glorioso infinitesimal fica onde está, não passa de ser o que é, vive liberto e independente. O inútil e o fútil abrem na nossa vida real intervalos de estática humilde. Quanto não me provoca na alma de sonhos e amorosas delícias a mera existência insignificante dum alfinete pregado numa fita!
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Triste de quem não sabe a importância que isso tem! [...] Benditos sejam os instantes, e os milímetros, e as sombras das pequenas coisas, ainda mais humildes do que elas! Os instantes (...) Os milímetros — que impressão de assombro e ousadia que a sua existência lado a lado e muito aproximada numa fita métrica me causa. Às vezes sofro e gozo com estas coisas. Tenho um orgulho tosco nisso. Sou uma placa fotográfica prolixamente impressionável. Todos os detalhes se me gravam desproporcionadamente [a] haver um todo. Só me ocupa de mim. O mundo exterior é-me sempre evidentemente sensação. Nunca me esqueço de que sinto.11
Figura 15: Bicicleta. São Paulo, 1950.
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As experiências poéticas são cada vez mais necessárias na cidade onde os espaços são marcados pela racionalidade, pelo fluxo incessante de pessoas, veículos, mercadorias e pela constante presença dos espaços homogeneizados, que ocasionam a redução e o abandono do espaço público. É possível perceber que a experiência de uma imagem poética reduz as barreiras entre a cidade e o corpo, tornando o cotidiano mais palatável e com sentido. Tal experiência escapa à racionalidade e provoca mudança na percepção da paisagem urbana, dando margem à outras e múltiplas atitudes, comportamentos, sociabilidades e diferentes modos de vivenciar e habitar a cidade.
Figura 16: Sala de estar no Minhocão - Intervenção de Felipe Morozini
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NOTAS: 1. LARRAIN, Sergio. In. OLIVEIRA, Joana. O magnetismo de Sergio Larrain, um fotógrafo com “gosto pela vadiagem”, El País, 2019. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2019/04/26/cultura/1556309974_157552. html>. Acesso em: 06 de mar. de 2020 2. SOARES, Bernardo. In. PESSOA, Fernando. Livro do Desassossego. São Paulo: Principis, 2019, p.151 3. PINTO, Sílvia Regina. “POEMA”, E-Dicionário de Termos Literários (EDTL), coord. de Carlos Ceia. Disponível em: <https://edtl.fcsh.unl.pt/ encyclopedia/poema/>. Acesso em: 14 de mar.2020 4. BARROS, Manoel de. Poesia completa. São Paulo: Leya, 2010, p. 461 5. HEANEY, 1996, p. 35, apud HAESBAERT, Rogério. Território, poesia e identidade. Espaço e Cultura, Rio de Janeiro, v. 3, n. 3, p. 20-32, 1997, p.29 6. PAZ, 1982, p.296-297, apud HAESBAERT, 1997, p.23. 7. SOARES, Bernardo. In. PESSOA, Fernando. Livro do Desassossego. São Paulo: Principis, 2019, p. 278 8. Ibid., p.236 9. QUINTANA, Mário. A cor do invisível. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2012 10. CARRASCOZA, João Anzanello. In. QUINTANA, Mário. O segundo olhar. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2018, p. 2. 11. SOARES, Bernardo. In. PESSOA, Fernando. Livro do Desassossego. São Paulo: Principis, 2019, p. 434 - 435
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LISTA DE FIGURAS - CAPÍTULO 2 Figura 1: Avenida do Estado. Foto: autora Figura 2: Bailarina ensaiando na UNE. Foto: Thomaz Frakas. Disponível em: <http://galeriazoom.com/exposicao/thomaz-farkas-fotografias/>. Acesso em:19 de Maio de 2020. Figura3: Foto: Marcelo Giró. Disponível em: <https://www.marcelgiro.com/ fotografia-post-moderna1970-1990-pt>. Acesso em: 24 abr. 2020. Figura 4: Meninos assistindo a jogo de fora do estádio do Pacaembu, São Paulo, 1941. Foto: Thomaz Farkas [Acervo Instituto Moreira Salles]. Disponível em: <http://201.73.128.131:8080/portals/#/search?collection=Thomaz_Farkas>. Acesso em: 07 de mar. 2020. Figura 5: Meninos assistindo a jogo de fora do estádio do Pacaembu, São Paulo, 1941. Foto: Thomaz Farkas [Acervo Instituto Moreira Salles]. Disponível em: <http://201.73.128.131:8080/portals/#/search?collection=Thomaz_Farkas>. Acesso em: 07 de mar. 2020. Figura 6: Gordon Matta-Clark – Splitting, 1974, Englewood, New Jersey. Disponível em: < https://otapume.com/as-fissuras-no-real-de-gordon-matta-clark-98f636a47d04>. Acesso em: 01 de jul. 2020. Figura 7: Foto da instalação de Didier Faustino na Shenzhen Hong Kong Bi-City Biennale of Urbanism and Architecture. Disponível em: < https:// www.moma.org/collection/works/159014 >. Acesso em: 19 de maio de 2020. Figura 8: Rede de Colaboração e Sonecas. Construção de rede gigante nas árvores caidas no Festival Parque Augusta. 7 de Novembro de 2013. Disponível em: <http://basurama.org/pt-br/projetos/playground-augusta>. Acesso em 23 de mar. 2020. Figura 9: Instalação “This is not a love song” de Didier Faustino. Disponível em: <https://www.dezeen.com/2014/10/27/didier-faustino-installationsandre-bloc-villa-france-this-is-not-a-love-song/>. Acesso em: 10 de abr. 2020. Figura 10: Criaturas de giz de David Zinn. Disponível em: https://streetart360.net/2017/03/06/david-zinn-dream-chalk-creatures/. Acesso em: 23 de maio de 2020.
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Figura 11: Ocupação Minhocão - Ervas SP, Laura Lydia. Disponível em: < https://mapeamentojardinagemterritorialidade.wordpress.com/ervas-sp-laura-lydia/>. Acesso em: 10 de abr. 2020. Figura 12: Edifício Guarani - Rino Levi. Foto: Nelson Kon. Disponível em: <http://www.nelsonkon.com.br/edificio-guarani>. Acesso em: 03 de maio de 2020. Figura 13: Gradil do viaduto Santa Ifigênia, 1945. Foto: Thomas Farkaz [Acervo Instituto Moreira Salles]. Disponível em: <https://ims.com.br/wp-content/uploads/2017/06/acv_imgcapa_1412366996-1200x798.jpg>. Acesso em: 07 de mar. 2020. Figura 14: Entre duas memórias. Foto: Mariano Klautau. Disponível em: <http://www.culturapara.art.br/fotografia/marianoklautau/obras1.htm>. Acesso em: 23 de mar. 2020. Figura 15: Bicicleta. Thomas Farkas, 1950. Disponível em: <https://ims.com. br/wp-content/uploads/2017/06/acv_imgcapa_1412366830-640x425.jpg>. Acesso em: 07 de mar. 2020. Figura 16: Sala de estar no Minhocão - Intervenção de Felipe Morozini. Foto: Matheus Evangelista. Disponível em: <https://siterg.uol.com.br/ lifestyle/2015/09/21/uma-sala-de-estar-no-minhocao-e-isso-mesmo/#gallery=4&slide=3> Acesso em: 23 de mar. 2020.
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Aspectos do vistos pelo
cotidiano
olhar do poeta
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Penso que o andarilho é um ser desajustado no mundo por isso provoca estranhezas por onde vai e o poeta (falo de mim) eu não gosto das normas do idioma, eu procuro fazer distúrbios no idioma. Nós somos insatisfeitos com as normas: ele com as normas da sociedade e eu com as normas da linguagem. (desfazer o normal é uma norma poética) (Manoel de Barros) 91
A partir da relação estabelecida entre poesia e a cidade, buscou-se construir nesse capítulo associações entre a forma poética textual e a vivência urbana. Assim, não exatamente estabelecer uma relação direta e literal de um poema com um ambiente específico, mas sim traçar pontos de aproximação entre o modo com o qual os poetas olham, experimentam e descrevem a paisagem, interpretando a realidade acrescida da imaginação, e o modo com o qual a paisagem é vista e vivenciada geralmente; buscando encontrar diferentes maneiras de experimentar e investigar o espaço urbano. Serão ainda propostas relações entre a temática do poema e fotografias que exploram o ínfimo, retratando coisas e situações que podem não ser percebidas no cotidiano mas que, por meio da fotografia, podemos observar com mais cautela e notar a poesia presente no momento da captura. É do lado dos artistas e nas linguagens novas que eles propõem que, talvez, possamos aprender a ler e a apreciar as paisagens nas quais a organização da vida contemporânea nos levou a viver. (BESSE, 2014, p.26)
A escrita poética provoca diferentes emoções, incentivando o leitor a experimentar um novo olhar sobre as coisas já conhecidas e adentrar a uma nova (e possível) realidade. Os poemas deslocados de um livro para uma paisagem ou uma experiência, passam a integrar um novo contexto, trazendo novos sentidos para o local. Segundo Bachelard (1974), a linguagem do poema cria uma singularização do mundo e adiciona à existência uma pitada de valor, despertando imagens poéticas que alteram o significado e a percepção da paisagem. Tais podem nos auxiliar a perceber e valorizar as pré-existências do local e usá-las como mote para projetar. 92
O projeto de paisagem seria, então, o seguinte: criar algo que já estava aí. [...] Efetivamente, trata-se de fabricar, elaborar o que já está presente e que não se vê. Devemos construir para ver o que está aí, para descobrir o que está aí [...] (BESSE, 2014, p.61).
Deste modo, buscamos extrair dos poemas lições para a percepção dos espaços urbanos paulistanos, para subverter certos pensamentos e ordens estabelecidas, e viver o cotidiano de forma mais inventiva, dado que, apesar de sermos submetidos à realidade atual, podemos ser agentes capazes de criar saídas a partir percepção em conjunto com imaginação e a ação. Para apoiar essa reflexão, serão usadas como base as obras de quatro poetas: Fernando Pessoa, Carlos Drummond de Andrade, Mário Quintana e Manoel de Barros.
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Fernando Pessoa
e a experiência subjetiva da cidade
“[...] há tantas consolações! Há o céu azul alto, limpo e sereno, onde boiam sempre nuvens imperfeitas. Há a brisa leve, que agita os ramos duros das árvores, se é no campo; que faz oscilar as roupas estendidas, nos quartos andares, ou quintos, se é na cidade. Há o calor ou o fresco, se os há, e sempre, no fundo, vêm memórias, com as suas saudades ou sua esperança, e um sorriso de magia à janela do nada, o que desejamos batendo à porta do que somos, como pedintes que são o Cristo.”1 94
Fernando Pessoa (1888 – 1935): “sujeito estourado em mil sujeitos, para se tornar um não sujeito”, poeta Lisboano que experimentou a alteridade absoluta de ser outros e perdeu a capacidade de ser um, tornou-se um objeto flutuante, localizado no intervalo entre seus heterônimos, como se Fernando Pessoa “ele mesmo” fosse também um outro heterônimo (PERRONE-MOISÉS, 1982). Pessoa reuniu em seus poemas diversas experiências e sentimentos, usando uma linguagem que demonstra a expressão intelectual de uma emoção e oferece ao leitor saberes que ampliam sua percepção sobre o mundo; neles aborda elementos da cidade e da paisagem de forma sensível, como também apresenta reações à forma de vida burguês-capitalista e ao tempo acelerado com que as pessoas passaram a viver. Muitos de seus textos oferecem alternativas de interpretação e vivência da experiência urbana e podem nos trazer ensinamentos para que a vida seja experimentada de uma forma diferente, analogamente, diante das fragilidades de análises urbanísticas atuais, tais ensinamentos podem contribuir para sejam criadas outras análises urbanísticas, que valorizem a experiência física e sensível do pedestre como forma de apreender a cidade, feita por meio da caminhada e da observação; Joseph Rykwert aborda esse mesmo assunto: Sociólogos, especialistas em tráfego e políticos, todos já escreveram longamente sobre a cidade e seus problemas atuais. Economistas e futurólogos profetizaram a sua morte. Lendo todos eles, sempre me surpreende quão pouco o tecido físico da cidade – o toque, o cheiro e até as revelações da cidade – ocupa a sua atenção. (RYKWERT, 2004, p.6)
Embora não haja um Fernando Pessoa “ele mesmo”, muito menos a soma de todos os heterônimos resultaria nesse “um”, 95
adentraremos à sua poesia como se ele fosse esta unidade que se difere e dá origem às outras. Foram escolhidos um heterônimo e um semi-heterônimo de Fernando Pessoa para serem estudados mais profundamente, são esses Alberto Caeiro e Bernardo Soares. Daremos início a essa investigação:
ALBERTO CAEIRO Segundo Perrone-Moises, Alberto Caeiro busca oferecer uma saída, uma salvação àquilo que chama de doença ocidental e para isso, passa a desconfiar da razão, desprezando os saberes construídos, a percepção intelectual e as totalidades estabelecidas, pois “o racionalismo é uma doença da qual precisamos curar-nos pelo esvaziamento, pelo desaprender” (PERRONE-MOISÉS, 1982, p. 158). Caeiro experimenta a vida e a paisagem “como ela é” e assim adquire a sabedoria existente na vivência inteira do real. Podemos observar esse fato no poema “O Guardador de Rebanhos”, onde o poeta explora a dimensão polissensorial da paisagem, que é experimentada sensivelmente, por intermédio do olhar, do sentir, cheirar, ouvir, tatear, e saborear: [...] Penso com os olhos e com os ouvidos E com as mãos e os pés E com o nariz e a boca. Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la E comer um fruto é saber-lhe o sentido. Por isso quando num dia de calor Me sinto triste de gozá-lo tanto, E me deito ao comprido na erva, E fecho os olhos quentes, Sinto com todo o meu corpo deitado na realidade, Sei a verdade e sou feliz.²
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Figura 1: Frame do filme Poesia
No poema anterior vemos a paisagem observada para além de sua característica visual, sentida em seus múltiplos sentidos e significados, sendo esta uma forma de experimentar o espaço diferente da forma racional. Em seus poemas, Caeiro convida o leitor a abandonar o olhar raso e acostumado que esse frequentemente tem do cotidiano e ver o as coisas como ela são, do ponto de vista sensorial, sem levar em conta os pensamentos e os saberes conhecidos que o acometem. Caeiro nos ensina em um de seus poemas que “O essencial é saber ver”: O que nós vemos das cousas são as cousas. Por que veríamos nós uma cousa se houvesse outra? Por que é que ver e ouvir seria iludirmo-nos Se ver e ouvir são ver e ouvir? O essencial é saber ver, Saber ver sem estar a pensar, Saber ver quando se vê, E nem pensar quando se vê Nem ver quando se pensa. Mas isso (tristes de nós que trazemos a alma vestida!), Isso exige um estudo profundo, Uma aprendizagem de desaprender E uma sequestração na liberdade daquele convento De que os poetas dizem que as estrelas são as freiras eternas E as flores as penitentes convictas de um só dia, Mas onde afinal as estrelas não são senão estrelas Nem as flores senão flores. Sendo por isso que lhes chamamos estrelas e flores.3
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Figura 2: Frame do filme Poesia
Figura 3: Frame do filme Poesia
Figura 4: Frame do filme Poesia
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Ao vivenciarmos o ambiente por completo, sem levar em conta os “preconceitos” que regem o olhar, podemos vivenciar imagens poéticas e experimentar as sensações e sentimentos provenientes da experiência afetiva do corpo em relação ao espaço construído. Caeiro estabelece contato constante com a experiência por meio do caminhar e do olhar atencioso para o que há a sua volta, e esse torna-se o recurso utilizado para escrever seus poemas, onde descreve a paisagem a partir de suas experiências poéticas: Cada experiência que guardamos está fundada em elementos objetivos e subjetivos que compõem um todo e nos permitem diferenciá-la das demais. Isto é, Caeiro compreende que é a experiência que o autoriza a falar com propriedade e riqueza de cada fenômeno sobre o qual lança seu olhar. (BORBA.; SOUZA, 2014, p.25)
Talvez, se nos despirmos dos nossos pensamentos construídos sobre um determinado local ou coisa – aquilo que nos foi passado e ensinado – e nos fizéssemos disponíveis para o novo, para apreender verdadeiramente um local, poderíamos reconhecer espaços onde existem experiências poéticas a serem vivenciadas. Para experimentar as novas possibilidades do olhar é necessário ver somente aquilo que está no local, como o poeta no seguinte poema:
Deito-me ao comprido na erva. E esqueço do quanto me ensinaram. O que me ensinaram nunca me deu mais calor nem mais frio, O que me disseram que havia nunca me alterou a forma de uma oisa. O que me aprenderam a ver nunca tocou nos meus olhos. O que me apontaram nunca estava ali: estava ali só o que ali estava.4
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Caeiro dá à situação comum a qualidade de uma experiência única, sendo capaz de criar algo surpreendente e extraordinário em meio a realidade conhecida. Ele demonstra ver as coisas como se fossem novidades, seu modo de percepção se assemelha ao olhar curioso de uma criança, recriando sentidos. Segundo Bondía, a experiência é uma abertura para o desconhecido, algo irrepetível, portanto, ao se vivenciar uma experiência sempre haverá algo de novo, como se fosse a primeira vez:
O meu olhar é nítido como um girassol. Tenho o costume de andar pelas estradas Olhando para a direita e para a esquerda, E de vez em quando olhando para trás... E o que vejo a cada momento É aquilo que nunca antes eu tinha visto, E eu sei dar por isso muito bem... Sei ter o pasmo essencial Que tem uma criança se, ao nascer, Reparasse que nascera deveras... Sinto-me nascido a cada momento Para a eterna novidade do Mundo... [...] 5
Por fim, para desfrutarmos devidamente da experiência poética é necessário explorar, caminhar e observar estando realmente presente e atento em cada momento da vida, fazendo isso num tempo próprio que nega o ritmo acelerado da metrópole. Desse modo passamos a ver a paisagem de uma outra forma, vivenciamos uma corporeidade para com a cidade, “porque a pé a vida é outra. Olhamos para tudo a partir de nós mesmos. Aqui, cada corpo é um corpo.”6 Caeiro aborda um assunto semelhante no poema a seguir: 100
Figura 5: As
Não tenho pressa: não a têm o sol e a lua. Ninguém anda mais depressa do que as pernas que tem. Se onde quero estar é longe, não estou lá num momento. [...] Não tenho pressa. Pressa de quê? Não têm pressa o sol e a lua: estão certos. Ter pressa é crer que a gente passa adiante das pernas, Ou que, dando um pulo, salta por cima da sombra. Não; não sei ter pressa. Se estendo o braço, chego exactamente aonde o meu braço chega Nem um centímetro mais longe. Toco só onde toco, não aonde penso. Só me posso sentar aonde estou. E isto faz rir como todas as verdades absolutamente verdadeiras, Mas o que faz rir a valer é que nós pensamos sempre noutra coisa, E vivemos vadios da nossa realidade. E estamos sempre fora dela porque estamos aqui. 7
s filhas do pescador, Los Horcones, Chile, 1956.
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O olhar do leitor é refinado por meio das palavras do poeta e é afetado pelas imagens passadas no poema, adquirindo uma nova forma de se relacionar com o mundo. Assim, é criada uma conexão entre o leitor e o poema, pois, nas palavras de Bachelard: “a imagem se transforma num ser novo de nossa linguagem, exprime-nos fazendo-nos o que ela exprime, ou seja, ela é ao mesmo tempo um devir de expressão e um devir de nosso ser.” (BACHELARD, 1974, p.7).
Figura 6: La red / Pavo real del mar, Ciénaga Grande, Colombia, 1939.
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BERNARDO SOARES Para Bernardo Soares, dizer é fazer existir, ele salva as coisas do desastre por meio do palavrar, do bem dizer, é por meio das palavras que Soares transforma o mundo infeliz em uma linguagem feliz8 e assim transmite ao leitor um novo olhar sobre o cotidiano e sobre aquilo que “não presta” (PERRERONE-MOISES 2001). Diante da temática da experiência sensível por meio do olhar e do caminhar, podemos observar que Bernardo Soares trata cada momento como uma experiência única e considera que, ainda que a paisagem de um momento vivido venha a se repetir, sempre haverá uma percepção diferente sobre ela: “[...] Nunca houve esta hora, nem esta luz, nem este meu ser. Amanhã o que for será outra coisa, e o que eu vir será visto por olhos recompostos, cheios de uma nova visão. [...]”9 Um outro exemplo desse modo de percepção é o poema a seguir, no qual Bernardo Soares escreve sobre como ele aprende com cada elemento da paisagem e como a convivência com o que o cerca o faz estar em comunhão com o mundo, adquirindo novos saberes:
[...] Em certos momentos muito claros da meditação, como aqueles em que, pelo princípio da tarde, vagueio observante pelas ruas, cada pessoa me traz uma notícia, cada casa me dá uma novidade, cada cartaz tem um aviso para mim. O meu passeio calado é uma conversa contínua, e todos nós, homens, casas, pedras, cartazes e céu, somos uma grande multidão amiga, acotovelando-se de palavras na grande procissão do Destino. 10
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Nota-se que Soares considera todos os componentes da paisagem como coisas que informam, que falam, e que podem ser apreendidos por ele. No poema “Estética do desalento” Bernardo Soares explora outra forma de apreender a paisagem, a partir da “valorização” daquilo que é considerado ruim e nos orienta a extrair o melhor da realidade que nos cerca – ainda que esta seja desprovida de beleza – usando o que existe como base para a criação de mudanças e diferentes significados por meio do uso da imaginação: Já que não podemos extrair beleza da vida, busquemos ao menos extrair beleza de não poder extrair beleza da vida. Façamos da nossa falência uma vitória, uma coisa positiva e erguida, com colunas, majestade e aquiescência espiritual. Se a vida não nos deu mais do que uma cela de reclusão, façamos por ornamentá-la, ainda que mais não seja, com as sombras dos nossos sonhos, desenhos a cores mistas esculpindo o nosso esquecimento sobre a parada exterioridade dos muros. [...] 11 Figura 7: Fragmentos. Jorge Rodriguez-Gerada
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Bernardo Soares cria poemas que provocam mudanças no olhar do leitor em relação ao mundo e iluminam a sua vida, mostrando que o modo de perceber os elementos da cidade e do cotidiano pode fazer toda a diferença. Esse pensamento reforça a ideia de Bachelard de que “o bem dizer é um elemento do bem viver”, trazendo suas palavras para este contexto: “mas essa expressão poética, embora não seja uma necessidade vital, é mesmo assim uma tonificação da vida.” (BACHELARD, 2003, p.9). Por fim, os poemas escolhidos demonstram a efemeridade da experiência – e dos momentos da vida – e como a percepção sensível do espaço é essencial para que tenhamos um aprendizado apurado da cidade, já apontado como uma ausência por Rykwert. A leitura desses nos habilita a fazer diversas interpretações do espaço – levando em conta de que o sentido do espaço é algo que se constrói e que isso ocorre a partir da vivência e da experiência sensível – e nos mostra que para apreender a cidade é necessário observá-la com um olhar “despido”, percorrê-la e absorver cada aprendizado, buscando colher de cada momento coisas que nunca havia visto. Tais formas de interpretação do espaço poderiam ser aplicadas também ao modo de pensar e ressignificar a cidade, pois trazem convites – tanto para o pedestre comum, aquele que vivencia os lugares, quanto para aquele que projeta lugares – para a apreensão do ambiente, fazendo com que estes busquem potências, possibilidades de vir a ser outro, ainda em lugares “ruins”, considerados à margem.
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Carlos Drummond de Andrade e o olhar crĂtico e aguçado
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Carlos Drummond (1902 – 1987), o Gauche: um anti-herói tímido e solitário que se volta contra os valores convencionais do estado, da religião e da modernidade, buscando subverter a realidade por meio das palavras. Nasceu na cidade de Itabira, em Minas Gerais e a memória dessa cidade permeia sobre parte de sua obra. Drummond acompanhou o poder devastador da ação mineradora da Vale e isso causou um trauma que o levou a fazer críticas por meio de sua obra poética, denunciar seus efeitos danosos, enfrentar os poderes geoeconômicos (WISNIK, 2019). Seus poemas demonstram a força de (re)existência que a poesia possui, pois esta não se acua diante das forças que a rodeiam, está continuamente tomando vidas novas. Iremos explorar apenas alguns pontos de sua vasta obra nesse capítulo, em especial aqueles onde o poeta expõe certa angústia da existência, diante das condições da sociedade e reflete sobre a importância da poesia, da liberdade e do olhar. Em diversos poemas pode-se perceber que o poeta se recolhe no seu canto, se isola do mundo, buscando fugir da realidade da vida (SANT’ANNA, 1992). Este canto é o quarto, refúgio da confusão e solidão que há na cidade “nesta cidade do Rio/ de dois milhões de habitantes/ estou sozinho no quarto/ estou sozinho na américa”¹. Contudo, olhos do poeta parecem resistir à solidão em que se encontra, “Ficaste sozinho, a luz apagou-se/mas na sombra teus olhos resplandecem enormes”², seus olhos brilham em meio à escuridão e passam a contemplar a realidade, a ser “o instrumento de contato com o mundo, mirante onde se instala para contemplar o que se passa”. (SANT’ANNA, 1992, p.44). É por meio da visão que o gauche se relacio107
na com o mundo e a partir disso ele passa a o conhecer, perceber e entender. Essa comunicação com a realidade por meio do olhar é transformada em poesia, onde Drummond chama a atenção para o que existe, e busca, através das palavras, aguçar o olhar desatento e despertar a consciência do homem: Tudo existe porque foi pintado À feição da laranja mágica não para aplacar a sede dos companheiros, principalmente para aguçá-la até o limite do sentimento da terra domicílio do homem.3
Segundo Álvaro Cardoso Gomes, a poesia drummondiana pode ser considerada como a “laranja mágica”, tendo sua magia guardada no fato de que sua leitura “estimula a sede”, ou seja, aguça a sensibilidade, de modo a levar o homem a ver o mundo criticamente, neste ponto de vista, corrobora com a argumentação de que a sua poesia possa estimular uma percepção outra do cotidiano. Drummond também utiliza a poesia para criar intervenções na vida, por meio do uso da imaginação e da palavra, como na poesia “cantiga de enganar”: meu bem, usemos palavras façamos mundos: ideias. deixemos o mundo aos outros, já que o querem gastar.4
O poeta utiliza a linguagem para falar sobre a realidade e ao mesmo tempo tenta substitui-la por uma linguagem alterada, sob um novo significado, “a linguagem imita a realidade ao mesmo ou reflete a estrutura social ao mesmo tempo que é elemento de ação sobre ela” (SANT’ANNA, 1992. P 59). Portanto, a poesia pode ser considerada um “código de rupturas”, pois 108
se alimenta da subversão e da quebra do linear. (SANT’ANNA, 1992). A respeito da crítica drummondiana e da poesia como forma de subversão, leiamos alguns versos de “A Flor e a Náusea”: Preso à minha classe e a algumas roupas, vou de branco pela rua cinzenta. Melancolias, mercadorias espreitam-me. Devo seguir até o enjôo? Posso, sem armas, revoltar-me? [...] Em vão me tento explicar, os muros são surdos. Sob a pele das palavras há cifras e códigos. O sol consola os doentes e não os renova. As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase. Vomitar esse tédio sobre a cidade. Quarenta anos e nenhum problema resolvido, sequer colocado. Nenhuma carta escrita nem recebida. Todos os homens voltam para casa. Estão menos livres mas levam jornais e soletram o mundo, sabendo que o perdem. [...] Uma flor nasceu na rua! Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego. Uma flor ainda desbotada ilude a polícia, rompe o asfalto. Façam completo silêncio, paralisem os negócios, garanto que uma flor nasceu. Sua cor não se percebe. Suas pétalas não se abrem. Seu nome não está nos livros. É feia. Mas é realmente uma flor5 [...]
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Figura 8: Ocupação Minhocão - Ervas SP, Laura Lydia.
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Esse poema sintetiza a realidade do homem e demonstra o sofrimento e a perda do sentido da vida, causados pela modernização e a vida cotidiana que ela originou. Drummond adquire consciência de tais fatos e se mostra inconforme à configuração da sociedade, porém reconhece a sua impotência: “Posso, sem armas, revoltar-me?”, sua forma de se revoltar é através dos poemas. Analogamente, podemos perceber a sua incomunicabilidade em relação ao mundo, pois até “os muros” agem com indiferença, e as relações entre os homens se tornam escassas: “Nenhuma carta escrita nem recebida”. O poeta já não vê mais saída à essa realidade, uma vez que até “o sol consola os doentes e não os renova”. Nota-se a falta de liberdade na vida das pessoas, que é substituída, inutilmente, por um produto: o jornal, a partir do qual as pessoas “soletram o mundo, sabendo que o perdem”, sendo assim, uma tentativa – em vão – de consolo. No verso “vomitar esse tédio sobre a cidade”, nota-se que a consciência da realidade provoca um mal-estar no poeta, causando revolta e levando-o a pensar que o seu ódio seria a melhor saída para essa situação. Entretanto, em meio a todos esses acontecimentos, surge uma esperança, no verso “Uma flor nasceu na rua!”, Drummond exclama a sua exaltação e euforia com o acontecimento, quebrando a monotonia do ambiente com seu grito. A “flor” contrasta com a paisagem de “bondes, ônibus, rio de aço do tráfego”, elementos racionais que resultaram da modernização e do progresso. Ao nascer em meio ao asfalto, a flor – que pode ser considerada símbolo que representa a poesia – possui a força de uma revolução, ainda que tímida, e representa a liberdade. Sua presença mostra um possível caminho de fuga ao caos e desarmonia do cotidiano, marcado pela desumanização, monotonia, apatia e 111
homogeneização, provenientes do sistema capitalista e da modernização. O poeta revela a realidade, chama atenção para o que existe e busca, por meio das palavras, fazer com que o olhar distraído do ser se aguce. Ao mesmo tempo que escancara a realidade, o poeta mostra-se inconforme a ela e usa a poesia para criar intervenções na vida, atribuindo um novo significado e mostrando uma alternativa de saída. A presença da poesia em relação ao mundo conturbado estende-se também aos lugares poéticos que podem existir na cidade, como também aqueles que podem ser criados pelo arquiteto e que fogem da lógica mercantil, desumana e homogênea, atuando como resistência.
Figura 9: Ocupação Minhocão - Ervas SP, Laura Lydia.
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Mário Quintana e as descobertas a partir do olhar
“Impossível qualquer explicação: ou a gente aceita à primeira vista, ou não aceitará nunca: a poesia é o mistério evidente. Ela é óbvia, mas não é chata como um axioma. E, embora evidente, traz sempre um imprevisível, uma surpresa, um descobrimento.” (Mario Quintana) 114
Mário Quintana (1906 – 1994): poeta caminhante, despreocupado com o tempo, grande observador da vida que exprimia a poesia a partir do uso de versos simples, puros e claros, que demonstram grande domínio pela matéria poética e aguçam a consciência do leitor. Nasceu em Alegrete (RS) e depois mudou-se para Porto Alegre, lugar que é muito presente como temática em seus poemas, onde o poeta percorre suas ruas tanto na realidade, quanto na imaginação: Olho o mapa da cidade Como quem examinasse A anatomia de um corpo... (É nem que fosse o meu corpo!) Sinto uma dor infinita Das ruas de Porto Alegre Onde jamais passarei... Há tanta esquina esquisita, Tanta nuança de paredes, Há tanta moça bonita Nas ruas que não andei (E há uma rua encantada Que nem em sonhos sonhei...)¹
Em sua obra em geral percebe-se a sua relação com o lugar onde habita, transposta para o poema por meio de suas palavras. Além disso, em alguns poemas, Quintana demonstra apego ao coloquial e ao quotidiano, apropriando-se de coisas e situações da realidade e criando uma nova realidade a partir delas, despertando novas imagens “o mundo é frágil e cheio de frêmitos/ como um aquário.../sobre ele desenho este poema: imagem de imagens”². Seus versos tratam do banal e do cotidiano de forma transcendente, onde as palavras transmitem experiências, contém imagens e sons. 115
Transcendentais, porque nos espantam; porque deixam ver um inequívoco desejo de ultrapassagem da experiência imediata; porque parecem se lançar para fora e muito além dos limites da própria gestualidade, empurrando a escrita, aquele que escreve e, por conseguinte, seu leitor para uma dimensão sublime, de exaltação, em que o impossível se torna plausível e a poesia se dá como verticalidade absoluta do espírito.³
A afetividade que ele demonstra ter com o ambiente urbano dá mais vida ao espaço, que, uma vez expresso, expande-se e convida o leitor a experimentá-lo, explorá-lo, a descobrir novos caminhos:
A gente sempre deve sair à rua como quem foge de casa Como se estivessem abertos diante de nós todos os caminhos do mundo. Não importa que os compromissos, as obrigações, estejam ali… Chegamos de muito longe, de alma aberta e o coração cantando!4
É essa aproximação e afetividade com o ambiente urbano que convida o leitor a realizar derivas pela cidade, independentemente da correria do cotidiano, e assim ir contrário à falta de tempo e ao tempo acelerado da vida: “E se me dessem – um dia – uma outra oportunidade, eu nem olhava o relógio/ seguia sempre em frente…/ E iria jogando pelo caminho a casca dourada e inútil das horas”.5 Semelhantemente, o poeta fala da essencialidade que possui a presença do homem no espaço e como o poema tem a capacidade de transformá-lo: “O espaço, que seria dele sem nós?/Mas o que enche, mesmo, toda a sua infinitude/É o poema!/- por mais leve, mais breve, por mínimo que seja...”6. 116
Quintana apresenta cada momento a partir de um ponto de vista singular, único, demonstrando que ainda os momentos comuns do cotidiano podem ser vivenciados como se fosse pela primeira vez, nas palavras de Ferraz (2013): “o que se vê não é mais que uma coisa deste nosso mundo [...] coisa cuja obviedade aguardava apenas um ponto de vista novo para que desse a ver sua “singularidade”7. Como se pode perceber no poema Canção do dia de sempre: Para Nora Lawson Tão bom viver dia a dia... A vida, assim, jamais cansa... Viver tão só de momentos Como essas nuvens do céu... E só ganhar, toda a vida, Inexperiência.., esperança... E a rosa louca dos ventos Presa à copa do chapéu. Nunca dês um nome a um rio: Sempre é outro rio a passar. Nada jamais continua, Tudo vai recomeçar! E sem nenhuma lembrança Das outras vezes perdidas, Atiro a rosa do sonho Nas tuas mãos distraídas...8
A predisposição pelo trivial, a simplicidade e espontaneidade presente em seus versos criam intimidade com quem o lê, de modo que o leitor se sente como se fosse ele quem escrevera os versos, ou que fora descrito pelo poeta. Quintana afirma que isso é o que acontece quando se lê um bom poema: “Um bom poema é aquele que nos dá a impressão/ de que está lendo a gente … e não a gente a ele!”9. As imagens passadas por Quintana em seus poemas incitam o leitor a experimentar o mundo, apreciando cada momento vivido, e a dar espaço à poesia inerente à vida. 117
Figura 10: Sem título, Geraldo de Barros.
Por meio do poema, as coisas banais adquirem uma nova luminescência: o olhar do poeta encontrou nelas a poesia, revestiu-as de imagens de beleza, de novos significados e, com isso, nos convida a compreender o espaço a partir da imaginação, como fato essencial para uma vida bem vivida:
As pessoas sem Imaginação podem ter tido as mais imprevistas aventuras, podem ter visitado as terras mais estranhas. Nada lhes ficou. Nada lhes sobrou. Uma vida não basta apenas ser vivida: também precisa ser sonhada 10
De outro lado, são muitos os poemas onde Quintana reflete sobre a poesia e sua função, segundo ele “poeta é quem encontra uma moedinha perdida”, alguém que faz descobertas, sendo assim: o poema é o que resulta da percepção de uma situação da realidade, acrescida da imaginação do poeta. É algo que traz salvação, que transforma a realidade, dá sentido ao lugar e o torna mais humano, podendo ser usado como uma fuga ao caos, por trazer alteridade ao cotidiano e à rotina que aprisiona o ser humano. No poema “emergência”, o poeta evidencia tal característica de fuga e provoca comoção no leitor, como se fosse este que estivesse se afogando e volta, de repente, a respirar. 118
Quem faz um poema abre uma janela. Respira, tu que estás numa cela abafada, esse ar que entra por ela. Por isso é que os poemas têm ritmo — para que possas profundamente respirar. Quem faz um poema salva um afogado 11
Essa janela aberta pelo poema pode representar a oportunidade de ressignificação que traz a imagem poética nele contida, a existência de tal oportunidade pode propiciar que o espaço seja compreendido a partir de um outro ponto de vista, da imaginação. Tal fato que pode criar um devir, um novo lugar, como também estimular ações que trazem, em sua essência, a sensação de liberdade: como uma pausa em meio a correria do dia-a-dia, uma nova experiência, uma pequena alteração na normalidade das coisas, situações que podem trazer um ar fresco em relação ao “ar viciado” do cotidiano na cidade. Figura 11: Henri Cartier Bresson
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Figura 12, 13 e 14: Frames do filme Medianeras. Embora constantemente oprimidos pelo modo de vida na cidade, existe sempre uma possibilidade de fuga, uma saĂda, uma janela, como a poesia, que ilumina a escuridĂŁo do cotidiano e desobedece as normas impostas.
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Manoel de Barros e a poética da desutilidade
“A maior riqueza do homem é a sua incompletude. Nesse ponto sou abastado. Palavras que me aceitam como sou - eu não aceito. Não aguento ser apenas um sujeito que abre portas, que puxa válvulas, que olha o relógio, que compra pão às 6 horas da tarde, que vai lá fora, que aponta lápis, que vê a uva etc. etc. Perdoai Mas eu preciso ser Outros. Eu penso renovar o homem usando borboletas.” Manoel de Barros¹ 122
Manoel de Barros (1916 - 2014): poeta encantador de palavras, que possuía grande curiosidade para com a vida e se deslumbrava com seus ínfimos detalhes, representados em seus poemas por meio da celebração daquilo que é inútil. Insubmisso às normas, tinha gosto por andar de costas e desaprender os saberes construídos, aprender rebeldias e criar desvios linguísticos. Considerava-se um “poeta andarilho”, gostava de caminhar sem rumo, observar a paisagem vagarosamente e de provocar estranhezas por onde ia, imaginando e criando situações de alteridade, que passam diferentes experiências ao leitor. Seus poemas nos aproximam da característica subversiva da poesia:
Eu já disse quem sou Ele. Meu desnome é Andaleço. Andando devagar eu atraso o final do dia. Caminho por beiras de rios conchosos. Para as crianças da estrada eu sou o Homem do Saco. Carrego latas furadas, pregos, papéis usados. (Ouço arpejos de mim nas latas tortas.) Não tenho pretensões de conquistar a inglória perfeita. Os loucos me interpretam. A minha direção é a pessoa do vento. Meus rumos não têm termômetro. De tarde arborizo pássaros. De noite os sapos me pulam. Não tenho carne de água. Eu pertenço de andar atoamente. Não tive estudamento de tomos. Só conheço as ciências que analfabetam. Todas as coisas têm ser? Sou um sujeito remoto. Aromas de jacintos me infinitam. E estes ermos me somam.²
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Figura 15: Geraldo de Barros Figura 16: Obra do Coletivo Bijari, parte da exposição “Jardinalidades”, no SESC Dom Pedro II, 2019. Figura 17: Túnel José Roberto Fanganiello Melhem, Avenida Paulista. Foto tirada em Novembro de 2019.
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Nasceu em Cuiabá mas se tornou sul-matogrossense de pertencimento ao se mudar para Corumbá. O poeta utiliza aspectos do cotidiano, elementos corriqueiros, naturais e aparentemente banais da vida no Pantanal como matéria poética. Estado - Em que medida Mato Grosso do Sul está presente em sua poesia? Qual é sua relação com o regionalismo? Manoel de Barros - Há sempre um lastro de ancestralidades que nos situa no espaço. Mas não importa muito onde o artista tenha nascido. O que marca um estilo literário é a maneira de mexer com as palavras. Poesia é um fenômeno de linguagem. De minha parte, confesso que fujo do regionalismo que não dê em arte, que só quer fazer registro. Não gosto de descrever lugares, bichos, coisas da natureza. Gosto de inventar. Quem descreve não é dono do assunto; quem inventa é. Não tenho compromisso com as verdades consagradas. O que desejo é me constar por meio de um trabalho estético. Se de tudo resultar um cheiro de coisa do chão, é bom. Pode até ser que seja regionalismo. Porém, há de ser mais transfigurismo pela palavra. (CASTELHO, 2007)3
Para Barros, a palavra não possui limites, podendo ser considerada a única coisa que não foi afetada pela ordem ”normatizadora” que rege as coisas. Por essa razão, oferece a possibilidade de ter suas normas alteradas e dá margem à criação de situações improváveis. Barros deixa explícito em seus poemas tal possibilidade de alteridade da palavra transmudada, como no poema a seguir: [...] Naquele tempo de dantes não havia limites para ser. [...] Depois veio a ordem das coisas e as pedras tem que rolar seu destino de pedra para o resto dos tempos. Só as palavras não foram castigadas com a ordem natural das coisas. As palavras continuam com os seus deslimites.4
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Figura 18: Chuva na vidraรงa, 1952.
Figura 19: Sergio Larrain
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Figura 20: Sem tĂtulo, 1950. Marcel GirĂł
Figura 21: Italy, Rome. 1959
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Barros subverte as lógicas da sintaxe e desobedece as normas de morfologia das palavras, criando situações onde o verbo recebe “doses de delírio” e se renova. Para que isso seja possível, ele desaprende e deixa de lado os saberes já conhecidos, como pode-se observar no trecho do poema A arte de infantilizar formigas:
As coisas tinham para nós uma desutilidade poética Nos fundos do quintal era muito riquíssimo o nosso dessaber. A gente inventou um truque pra fabricar brinquedos com palavras. O truque era só virar bocó. Como dizer: Eu pendurei um bentevi no sol…5
Os resultados de sua desobediência são versos simples com palavras que vão além do significado raso e causam estranhezas e atiçam a imaginação, criando imagens e acontecimentos improváveis. As imagens poéticas de Barros revelam aquilo que só pode ser percebido a partir de transgressões gramaticais. O poeta se apropria de elementos do espaço e os transforma em poesia, assim como insere palavras no meio de paisagens faladas, como se fossem personagens capazes de criar acontecimentos, como no poema seguinte: Eu bem sabia que a nossa visão é um ato poético do olhar. Assim aquele dia eu vi a tarde desaberta nas margens do rio. Como um pássaro desaberto em cima de uma pedra na beira do rio. Depois eu quisera também que a minha palavra fosse desaberta na margem do rio. Eu queria mesmo que as minhas palavras fizessem parte do chão como os lagartos fazem. Eu queria que minhas palavras de joelhos no chão pudessem ouvir as origens da terra.6
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Figura 22: Sem título, Gustavo Lourenção.
No poema anterior, Manoel de Barros usa sua visão sensível como meio de percepção do mundo, revelando o que existe além do óbvio, coisas que só podem ser vistas a partir do olhar atento e do uso da imaginação. A partir do olhar poético, Barros dá importância às coisas (e seres) abandonadas e rejeitadas, consideradas inúteis, dando a elas outros significados. 130
Aprendo com abelhas do que com aeroplanos. É um olhar para baixo que eu nasci tendo. É um olhar para o ser menor, para o insignificante que eu me criei tendo. O ser que na sociedade é chutado como uma barata – cresce de importância para o meu olho. Ainda não aprendi por que herdei esse olhar para baixo. Sempre imagino que venha de ancestralidades machucadas. Fui criado no mato e aprendi a gostar das coisinhas do chão – Antes que das coisas celestiais. Pessoas pertencidas de abandono me comovem: tanto quanto as soberbas coisas ínfimas.7
No poema anterior, o poeta dirige seu olhar para baixo e mostra o valor e a grandeza que podem ter as coisas ínfimas e desprezadas. Por meio de seu olhar pra baixo o poeta se mostra inconforme e insubmisso às lógicas da sociedade capitalista e imediatista, onde o consumo desenfreado deu brevidade à utilidade das coisas.
Prefiro as máquinas que servem para não funcionar: quando cheias de areia de formiga e musgo — elas podem um dia milagrar de flores. (Os objetos sem função têm muito apego pelo abandono.) Também as latrinas desprezadas que servem para ter grilos dentro — elas podem um dia milagrar violetas. (Eu sou beato em violetas.) Todas as coisas apropriadas ao abandono me religam a Deus. Senhor, eu tenho orgulho do imprestável! (O abandono me protege.)8
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Um outro poema explora essa temática do ínfimo: O apanhador de desperdícios, nele o poeta exalta o valor que tem, para ele, os restos: coisas consideradas desimportantes pela maioria das pessoas, mas que possuem potência poética ao serem vistas sob um outro olhar: [...] Dou respeito às coisas desimportantes e aos seres desimportantes. Prezo insetos mais que aviões. Prezo a velocidade das tartarugas mais que a dos mísseis. Tenho em mim um atraso de nascença. Eu fui aparelhado para gostar de passarinhos. Tenho abundância de ser feliz por isso. Meu quintal é maior do que o mundo. Sou um apanhador de desperdícios: Amo os restos como as boas moscas. Queria que a minha voz tivesse um formato de canto. Porque eu não sou da informática: eu sou da invencionática. Só uso a palavra para compor meus silêncios.9
O poeta realiza transforma fatos ínfimos em seres viventes, dá oportunidade de fala à coisas desprezadas, estas, ao serem descritas por ele, crescem em tamanho e adquirem notabilidade, subvertendo aos valores estabelecidos pela sociedade: Ao abraçar o ínfimo, Manoel de Barros experimenta e expõe a face oculta das coisas, lançando um olhar espontâneo para o mundo, um olhar não atrofiado pelos limites impostos pela convenção. Muito conscientemente, ele conduz o seu fazer de maneira a questionar as tentativas de homogeneização da percepção e compreensão humanas. Associando o questionamento à própria subversão dos paradigmas, que acontece no plano da forma, o poeta incita e direciona o leitor de poesia a um estado de insubmissão frente às tentativas de padronização. (SANTOS; BUSATO, 2016, p.4189)
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Figura 23: Trafalgar Square Londres, Inglaterra. 1958 - 1959
No trecho a seguir, é possível refletir a respeito da visão de Barros sobre a importância e função da poesia, esta seria a de alterar consideravelmente o modo com que o homem reage e lida com a realidade em que está inserido, convidando-o a experimentar uma nova visão sobre o mundo. Conforme Barros (1996, p.310): A mim me parece que é mais do que nunca necessária a poesia. Para lembrar aos homens o valor das coisas desimportantes, das coisas gratuitas. Vendem-se hoje até vistas para o mar, sapos com esquadrias de alumínios, luar com freio automático, estrelas em alta rotação, laminação de sabiás, etc. Há que ter umas coisas gratuitas para alimentar os loucos de águas e estandarte. (apud SANTOS; BUSATO, 2016, p.4183)
Ao se fazer insubmisso ao sistema e valorizar aquilo que é ínfimo, que é marginalizado, Barros incita o leitor a fazer o mesmo: a deixar os saberes construídos de lado, questionar normas e funções pré-estabelecidas, ser insubmisso, observar o mundo de forma mais reflexiva e a experimentar a cidade de forma sensível, a partir de um novo olhar para com as coisas.
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Constata-se que os poemas possuem a capacidade de despertar imagens, aguçar a sensibilidade do homem e alterar a forma com que ele lida com a realidade. O poeta muda o mundo em que vivemos e transmite uma nova visão sobre o cotidiano, visto que dá importância e oportunidade de fala a seres e coisas consideradas desimportantes, àquilo que é descartado, sem exuberância. Essa valorização do ínfimo possibilita que haja uma alteridade em relação àquilo que é considerado “normal” e rotineiro. Além disso, os poetas trazem um convite a explorar o espaço urbano por meio da deriva, a partir de um olhar atento, e assim experimentar de novas relações de corporeidade com a cidade, considerando que durante a caminhada percebemos o espaço e lhe atribuímos significado, e também é atribuído um novo sentido a nós. Suas narrativas nos incentivam a observar e percorrer o espaço do “entre”, considerado desprezado e sem valor, mas que pode possuir aberturas para ressignificação, possibilidades de criar alteridades. Ao ver a poesia daquilo que é desprezado e aproximá-lo daquilo que é contraditório, cria-se uma resistência, uma ressignificação possível. O texto poético pode ser considerado uma narrativa de uma experiência, que valoriza e estende a duração tal momento único e irrepetível, “a paisagem é primeiramente vivenciada e depois, talvez, falada, a palavra buscando, sobretudo aqui, prolongar a vida, ou melhor, o vivo que faz da paisagem uma experiência.“ (BESSE, 2014, p.47). O poema registra a experiência e a narra para o leitor, tendo a potência de o incentivar a criar ou136
tras narrativas e partilhá-las. Esse fato somado à experiência de corporeidade na cidade, traz uma oportunidade para que haja contato com o Outro, “entendendo-o não apenas como o próximo, mas aquilo em que estamos nos tornando ou em vias de tornarmo-nos.” (GUATELLI, 2008, p.75) Por fim, deve-se valorizar a interpretação poética do espaço, considerando ele é um texto pronto para ser decifrado, um poema disponível ao nosso olhar. Ao adquirirmos um novo olhar sobre o percurso, imagens poéticas podem explodir dos lugares desprezados. O estranhamento, o modo de olhar, as novas vivências, a valorização do ínfimo e o tornar-se outro dão margem à novas experiências, e constituem lições que podem servir para o exercício de compreensão do contexto e do projetar do arquiteto: uma cartografia, na qual, a partir da intertextualidade, podem ser criadas pequenas alterações, situações inusitadas que transpõem o habitual e que mudam o contexto de um local; mais do que entender, recriar.
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NOTAS Fernando Pessoa: 1. SOARES, Bernardo. In. PESSOA, Fernando. Livro do Desassossego. São Paulo: Principis, 2019. p.370 2. Alberto Caeiro: Trecho retirado de “O Guardador de Rebanhos”. Disponível em: http://multipessoa.net/labirinto/alberto-caeiro/2 3. Alberto Caeiro: O Guardador de Rebanhos. Disponível em: <http://arquivopessoa.net/textos/1172> 4. Alberto Caeiro. Disponível em: <http://arquivopessoa.net/textos/379> 5. Alberto Caeiro: O Guardador de rebanhos. Disponível em: <http://arquivopessoa.net/textos/1463.> 6. RISERIO, Antonio. Pobres pedestres: As calçadas desprezadas das cidades brasileiras. Vitruvius, 2018. Disponível em <https://333.vitruvius. com.br/revistas/read/minhacidade/19.217/7072> acesso em: 11 de mar. de 2020 7. Alberto Caeiro. Disponível em: <http://arquivopessoa.net/textos/391> 8. Como Soares afirma no Livro do Desassossego “Gosto de dizer. Direi melhor: gosto de palavrar. As palavras são para mim corpos tocáveis, sereias visíveis, sensualidades incorporadas (...)” SOARES, Bernardo. In. PESSOA, Fernando. Livro do Desassossego. São Paulo: Principis, 2019. p.225 9. Ibid., p.96 10. Ibid., p. 296 11. Ibid., p.261-262 Mario Quintana: 1. O mapa QUINTANA, Mário. Apontamentos de História sobrenatural. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012, p.128
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2. Momento QUINTANA, Mário. Poesia Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2006, p.428 3. FERRAZ, Eucanãa. In. QUINTANA, Mário. Esconderijos do Tempo. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013, p. 9. 4. A verdadeira arte de viajar QUINTANA, Mário. Poesia Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2006, p.863 5. Seiscentos e sessenta e seis Ibid., p. 378 6. O tamanho do espaço Ibid., p.907 7. FERRAZ, Eucanãa. In. QUINTANA, Mário. Esconderijos do Tempo. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013, p.9. 8. QUINTANA, Mário. Poesia Completa [recurso eletrônico]. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2006, p.144 9. A revelação Ibid., p.531 10. Nada sobrou Ibid., p. 364 11. Emergência Ibid., p.22 Carlos Drummond: 1. SANT’ANNA, Affonso Romano de. Drummond: o gauche no tempo. Rio de Janeiro: Record, 1992, p. 43 2. Ibid., p. 44 3. GOMES, Álvaro Cardoso. O poético: magia e iluminação (coleção debates). São Paulo: Perspectiva - USP, 1989, p. 162 4. Ibid., p. 163
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5. DRUMMOND, Carlos. A rosa do povo. São Paulo: Companhia das letras, 2012, p.11-12 Manoel de Barros: 1. BARROS, Manoel de. Poesia completa / Manoel de Barros. São Paulo: Leya, 2010, p. 374. 2. Ibid., p. 353 3. CASTELHO, Jose. Manoel de Barros busca sentido da vida. In: O estado de S. Paulo. Caderno 2. Disponível em: <http://www.jornaldepoesia.jor.br/ castel09.html> Acesso em: 23 de Jun. de 2020 4. BARROS, Manoel de. Poesia completa / Manoel de Barros. São Paulo: Leya, 2010, p.373. 5. Ibid., p.329 6. Ibid., p.461 7. Ibid., p. 361 8. Ibid., p.342 9. OCUPAÇÃO Manoel de Barros, 2019. Disponível em: <https://issuu.com/ itaucultural/docs/oc_manoel_de_barros>. Acesso em: 22 de ago. 2019
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LISTA DE FIGURAS - CAPÍTULO 3 Figura 1-4: Frames do filme Poesia. POESIA. Direção de Lee Chang-Dong. Coréia do Sul, 2010. Figura 5: As filhas do pescador, Los Horcones, Chile, 1956. Disponível em: <https://ims.com.br/exposicao/sergio-larrain-um-retangulo-na-mao-ims-paulista/>. Acesso em: 06 de mar. 2020. Figura 6: La red / Pavo real del mar, Ciénaga Grande, Colombia, 1939. Foto: Leo Matiz. Disponível em: <https://www.revistaarcadia.com/agenda/ articulo/macondo-visto-por-leo-matiz-gerald-martin-biografo-gabriel-garcia-marquez/49374/>. Acesso em: 06 de mar. 2020 Figura 7: Fragmentos, Jorge Rodriguez-Gerada. Foto: Fer Alcalá. Disponível em: <https://www.achtungmag.com/fragmentos-de-jorge-rodriguez-gerada-en-navarra/>. Acesso em: 19 de maio de 2020. Figura 8: Ocupação Minhocão - Ervas SP, Laura Lydia. Disponível em: <http://www.ervassp.com/>. Acesso em: 10 de abr. 2020. Figura 9: Ocupação Minhocão - Ervas SP, Laura Lydia. Disponível em: <http://www.ervassp.com/>. Acesso em: 10 de abr. 2020. Figura 10: Sem título. Foto: Geraldo de Barros. Disponível em: <https://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra28786/sem-titulo>. Acesso em: 07 de mar. 2020 Figura 11: foto: Henri Cartier Bresson. Disponível em: <https://radardesign. com.br/a-arte-da-fotografia/henri-cartier-bresson-1024x772/>. Acesso em: 06 de mar. 2020. Figura 12 - 14: Frames do filme Medianeras. MEDIANERAS: Buenos Aires da Era do Amor Virtual. Direção de Gustavo Taretto. Argentina: 2011. Figura 15: foto: Geraldo de Barros. Disponível em: <http://enciclopedia. itaucultural.org.br/obra65284/sem-titulo>. Acesso em: 07 de mar. 2020 Figura 16 e 17: fotos: autora Figura 18: Chuva na vidraça. Foto: German Lorca. Disponível em: <http:// enciclopedia.itaucultural.org.br/obra64944/chuva-na-vidraca>. Acesso em: 07 de mar. de 2020.
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Figura 19: Foto: Sergio Larrain. Disponível: <https://www.ft.com/content/893a5b8c-dd43-11e6-9d7c-be108f1c1dce>. Acesso em: 09 de jul. 2020. Figura 20: Sem título, 1950. Marcel Giró. Disponível em: <https://www.instagram.com/marcelgirofotografia/>Acesso em: 24 de abr. 2020. Figura 21: Italy, Rome, 1959. Foto: Larrain. Disponível em: <https:// pro.magnumphotos.com/C.aspx?VP3=CMS3&VF=MAGO31_10_ VForm&ERID=24KL535Z8S>. Acesso em: 06 de mar. 2020 Figura 22: Sem título. Foto: Gustavo Lourenção. Disponível em: <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra9994/sem-titulo>. Acesso em: 06 de Mar. 2020. Figura 23: Trafalgar Square Londres, Inglaterra. 1958 - 1959 Foto: Sergio Larrain. Disponível em: <https://www.arteinformado.com/magazine/n/ loquehayquever-en-argentina-el-fotografo-chileno-sergio-larrain-cierra-el-ano-expositivo-5773>. Acesso em: 18 de maio de 2020.
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A
reinvenção
da
situação urbana do Brás a partir do
novo olhar
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04
“O olho vê, a lembrança revê, e a imaginação
transvê.
É preciso transver o mundo”1 (Manoel de Barros)
Os versos de Manoel de Barros foram escolhidos para alicerçar o pensamento que deu origem ao projeto final, pois consolidam seu propósito por intermédio das palavras, esse é: ver além, reinventar. O poeta instrui o leitor: “é preciso transver o mundo”. Transver: palavra inventada, manifesta que o mundo precisa ser transfigurado, renovado; deve ser visto não somente com olhos, mas também a partir da memória e da imaginação, pois esta nos capacita a mudar a realidade. O prefixo [trans], que significa “além de”, somado ao verbo [ver] nos traz um convite para ir além, ver além: à liberdade. O projeto busca afastar as certezas absolutas, alterar espaços, transpor obstáculos, estimular a caminhada e dar ao sujeito uma percepção imaginativa e um outro olhar, potencializando um espaço mais habitado e experimentado.
Figura 1: São Paulo. Região em destaque ampliada na página ao lado.
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PROJETO A área de projeto corresponde à região do Parque Dom Pedro II e suas imediações, localizado em São Paulo na subprefeitura da Sé, e a região próxima à linha elevada de metrô que liga a estação Parque Dom Pedro II à estação Brás, localizada na subprefeitura da Mooca. Será realizada uma aproximação por meio de uma breve história do local e da apresentação de sua realidade atual com a intenção de entender as dinâmicas da área.
Figura 2: Brás
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A região foi marcada pela antiga várzea do Carmo do Rio Tamanduateí - que, com o tempo, foi retificado e canalizado - e passou por intensos processos de urbanização e industrialização, principalmente a partir da segunda metade do século XIX. Seu crescimento, urbanização e importância foram impulsionados pela presença de ferrovias, linhas de ônibus, indústrias, entre outros fatores, como a presença da Companhia de Gás de São Paulo (Comgás) inaugurada em 1872, responsável pela produção de energia a partir do uso do carvão. Com o tempo, o Brás se tornou o principal destino da maioria dos trabalhadores da indústria e do pequeno comércio, atraindo, sobretudo, imigrantes italianos e migrantes nordestinos. A região passou a ser um lugar de passagem, com grande fluxo de pessoas, automóveis e mercadorias. Em 1922, foi executado um parque próximo ao Rio Tamanduateí, que se tornou um importante espaço público da cidade de São Paulo, entretanto, em 1940, a construção de cinco viadutos e a pavimentação da Avenida do Estado impactou negativamente sua estrutura, cortando sua relação com o rio. Outras obras acabaram degradando e diminuindo o espaço do parque – como o terminal de ônibus Parque Dom Pedro II, a estação Pedro II do Metrô e o expresso Tiradentes – dando origem a um panorama urbano desarticulado, espaços fragmentados e residuais.
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Figura 3: Vista do Parque Dom Pedro II e Viaduto 25 de Março
Na atual caótica configuração desse não-parque, o emaranhado de viadutos, a sobreposição de edifícios de várias épocas, as irregularidades das superfícies e a descontinuidade do terreno conformam um horizonte nada fácil de dominar. Os deslocamentos velozes ou trancados de carros, ônibus, caminhões e motocicletas, ignoram os vestígios de uma desaparecida área verde que era usufruída por famílias, passeantes e frequentadores de toda ordem. Os pobres caminhantes contemporâneos, deslocando-se do ou para o metrô ou ponto de ônibus, ou simplesmente os que perambulam sem muito rumo por ali, não devem imaginar que os fluxos de veículos e fuidos, os ruídos, os resíduos, os cheiros, o asfalto, a terra batida, a aspereza do território exilaram a placidez das margens de um curso d’água que um dia orientou a fundação de São Paulo, quatro séculos e meio atrás2. Figura 4: Vista do Parque Dom Pedro II, baixio dos viadutos Mercúrio e Antônio Nakashima
APROFUNDANDO A ANÁLISE Partindo da premissa que as informações sensoriais captadas durante o deslocamento acionam diversas sensações, sentimentos e modificam a experiência que temos na cidade, foi utilizada como ferramenta de apreensão da área a experiência da caminhada, em conjunto com narrativas de pessoas que habitam e frequentam a região. As representações dessa experiência foram feitas por meio de cartografias, realizadas ao longo da pesquisa, que auxiliaram na compreensão da área e na delimitação do assunto a ser estudado. Ao longo da investigação, cada imagem vivenciada trazia à mente um verso de um poema, como também, após ao ler um verso, vinha em mente uma imagem do local. A partir da relação entre imagens e poemas foram reunidas pistas que dão ensinamentos sobre o que existe e trazem abertura a novos caminhos, reforçando os conceitos estudados nos capítulos anteriores. Por se encontrar em uma área baixa e consideravelmente plana da cidade, do Brás se tem uma visão privilegiada do centro velho de São Paulo, zona alta. A área de projeto compreende a um percurso que tem seu perímetro dado, respectivamente, pela Avenida Mercúrio, Avenida do Estado, Rua da Figueira, abrangendo quatro viadutos, sendo estes: Viaduto Diário Popular, Viaduto Antônio Nakashima, Viaduto Mercúrio, Viaduto 25 de Março (1° parte do percurso) e Rua Torquato Neto (2° parte do percurso). É marcada pelo caos dos carros, pela transitoriedade, rapidez, dificuldade de transposição, longas distâncias, barreiras, verticalização, baixios, 152
áreas livres abandonadas, edifícios históricos que representam rastros do passado do local, como o Museu Catavento, Mercado Municipal, Casa das Retortas, Complexo da Figueira (Comgás), Escola Estadual São Paulo, e espaços que fazem parte da dinâmica do Brás, como o SESC Parque Dom Pedro II, a Zona Cerealista, entre outros. Devido à presença crescente de novos empreendimentos residenciais, o bairro tem perdido parte de suas características e a experiência dos pedestres tem sido empobrecida.
Figura 5: Vista da quadra do Parque Dom Pedro II
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Figura 6: Colagem: visรฃo serial do Brรกs
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Grande parte das pessoas tem uma percepção do Brás associada a seus fatores negativos, essas o consideram uma área residual, descuidada, sem valor, abandonada, perigosa, onde não tem nada de bom para ver. O Brás é considerado por muitos como um lugar de transporte, compras, missas, do movimento momentâneo e imediato e não um lugar de percurso agradável, de pausa e descanso, de experiências.
Figura 7: Rio Tamanduateí: esgoto a céu aberto
Apesar de considerada “esquecida”, perigosa e, por vezes, caótica, a região ainda possui espaços onde há valores de sociabilidade, de refúgio, de respiro em meio ao caos, como em alguns eventos religiosos (festas), feiras livres, os parques (D. Pedro II e Benemérito José Brás) e lugares que atraem uma grande quantidade de pessoas como o SESC e a Zona Cerealista. O Parque 156
Dom Pedro II, por exemplo, recebe frequentadores diversos, muitos podem ser chamados de assíduos: como as inspetoras do colégio São Paulo, idosas da AMA Sé que vão fazer exercícios, skatistas, pessoas que vão passear com seu cachorro ou jogar futebol (e até pequenos campeonatos), catadores que vão em busca de um espaço para descansar, moradores de rua, vendedores que fogem do “rapa” e pessoas que moram em albergues. Mais recentemente, o Parque cedeu parte de seu espaço para uma casa noturna – resultado de uma parceria público-privada – localizada sob os viadutos Antônio Nakashima e 25 de março. A Associação de bairro é seu principal agente de manutenção, lutando por mudanças e melhorias.
Figura 8: Parque Dom Pedro II: refúgio em meio ao caos.
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Figura 9: cartografia dos abandonos
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Por meio da aproximação, vemos os impasses como a degradação, resíduos e as barreiras deixadas pelas imposições verticais e pela modernização na região, como também passamos a perceber que, quanto mais se conhece do lugar, mais sua percepção muda. Para além da “visão conhecida”, o Brás dispõe de potências e agentes que muitas vezes não são vistos quando contemplados sob um olhar negativo e higienista. Um poema de Manoel de Barros expõe como o abandono de um determinado lugar pode afetar o olhar e fazer com que se passe a ver tudo com um “olhar abandonado”. Apesar de ser transmitido pelo lugar, o abandono pode ser reproduzido no pensamento e se estender para outros locais, porém, quando se faz uso da imaginação e se busca encontrar novas descobertas em meio ao abandono, é possível reinventá-lo: O abandono do lugar me abraçou de com força. E atingiu meu olhar para toda a vida. Tudo que conheci depois veio carregado de abandono. Não havia no lugar nenhum caminho de fugir. A gente se inventava de caminhos com as novas palavras. A gente era como um pedaço de formiga no chão. Por isso o nosso gosto era só de desver o mundo. 3
Em vista disso, há a necessidade de apanhar o que hoje é considerado “resto”, “morto”, abandonado e procurar potências, ressignificar. Não é negar o que já está lá ou eliminar tudo aquilo que fragmentou a região, nem aceitar o que é imposto, mas sim trabalhar em meio a espaços “ruins” 160
para poder quebrar as “verdades inquestionáveis” e dar outros significados para a palavra abandono, vas
possibilidades,
configurações,
inventar no-
caminhos
e
ações:
Tenho certeza que o meu avô enriquecia A palavra abandono. Ele ampliava a solidão dessa palavra. E as borboletas se aproveitavam dessa Amplidão para voar mais longe4
Conforme apresentado por Guatelli (2008), o espaço residual é um espaço de experimentação, nele reside a possibilidade de alteridade, de um devir. A poesia inerente aos espaços banais e residuais traz resistências às lógicas do cotidiano, dá margem à significados incessantes e possibilita que surjam novas oportunidades de vivência das estruturas existentes. Sou um apanhador de desperdícios: Amo os restos como as boas moscas. 5
Para isto, é necessário atrair olhares para o Brás e organizar um redescobrimento do espaço, usar os restos como material para dar origem à imagens poéticas e aparelhá-los a novos novos elementos que o ressignificam. Deve-se, primeiramente, vivenciar os espaços por meio do novo olhar, para compreender melhor o território e despertar a imaginação, para depois projetar a partir dessa mudança.
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IMAGINAR NOVAS CONFIGURAÇÕES Foi realizada uma cartografia onde são destacados lugares para olhar e permear (existentes ou não) que representam qualidades poéticas, esses deram pistas de locais para intervenção projetual. Dos pontos para olhar, pode-se encontrar potências em meio ao
Figura 10: cartografia: experiência do olhar e permear
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banal e imaginar novas configurações que podem gerar experiências e imagens poéticas. Buscou-se, assim, compreender o espaço a partir da imaginação acrescida do que já existe, fato que dá margem a muitas possibilidades. A partir da compreensão do existente, do passado do local e do uso da imaginação, é possível transver o mundo.
163
Cabe utilizar a arquitetura como se esta fosse linguagem, poesia, onde o resto, o abandono, pode ganhar um significado diferente e transcender. O projeto, portanto, surgiu como reação à dureza transmitida pelas barreiras, rapidez, e pelo olhar acostumado, e pretende transformar a realidade, o cotidiano, ainda que minimamente. Com
isso, buscou-se trabalhar em meio aos interstícios
dos espaços do entre, tentando subtrair o aspecto residual inerente à região e conectar as presenças existentes a elementos que não pertencem ao atributo inicial do local. Esses podem
estimulam a prática do espaço, requalificando-
-o, para que
assim seja possível habitar o espaço urbano.
Tensões programáticas obtidas por associações inusuais de atividades – intertextualidade – seriam uma possível estratégia para a destruição ou superação de uma representação histórica capaz de condenar um lugar a uma identidade negativa a qual, muitas vezes, sugere ações frágeis, equivocadas, convencionais, justamente por seguirem o que sempre pareceu ser o mais adequado e ajustado àquele lugar? (GUATELLI, 2008, p. 76)
O modo e o lugar de olhar podem originar novas percepções dos lugares já conhecidos e mudar seus sentidos. Embora vejamos tudo o tempo todo, muitas vezes vemos mal; para vermos melhor e ter uma percepção sensível da paisagem precisamos de pausas e caminhadas qualificadas, que potencializem corporalidades, temporalidades e espacialidades contrárias à lógica racional homogeneizante. 164
Figura 11: vista do centro velho da cidade a partir da cota do Viaduto Diรกrio Popular
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MIRAR Fixar o olhar em alguém, algo ou si mesmo; “Eu bem sabia que a nossa visão é um ato poético do olhar”6 Manoel de Barros
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PERMEAR Passar através de; atravessar “É preciso flanar em ruas — os passos levando sempre para nenhum lugar”7 Manoel de Barros
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Após as reflexões contidas nas páginas anteriores, decidiu-se utilizar o “permear” e o “mirar” como partido de projeto, pois por meio deles acredita ser possível trazer novos sentidos ao espaço e melhorar sua relação com aqueles que o frequentam.
PERCURSO: Com o termo “percurso” indicam-se, ao mesmo tempo, o ato da travessia (o percurso como ação do caminhar), a linha que atravessa o espaço (o percurso como objeto arquitetônico) e o relato do espaço atravessado (o percurso como estrutura da narrativa). Pretendemos propor o percurso como forma estética à disposição da arquitetura e da paisagem” (CARERI, 2013, p.31)
O percurso potencializa as experiências erráticas, o descobrimento, investigações poéticas, onde o corpo se envolve com o espaço. Nele a caminhada e o olhar são usados como meio de ressignificação, pois qualifica o espaço, entrelaça suas pré-existências e dá suporte para novos caminhos, experiências e sociabilidades. Escolheu-se criar um percurso que se aproveite das “presenças ausentes”, dos espaços do entre, para existir, que invada espaços anteriormente fechados, altere as lógicas e ofereça apoio para a apropriação simbólica.
MIRANTE: O mirante não é um lugar que produz algo ou que possui uma função objetiva: tem como característica a “desutilidade”, consiste em uma pausa, negação do ritmo acelerado do cotidiano. Nele você pode abdicar do conhecimento racional e dar espaço 168
ao conhecimento subjetivo, contemplar a imensidão, fato que pode originar a explosão de imagens poéticas. Buscou-se utilizar o mirante como uma presença ausente, que se apropria do que já existe para existir, que marca e comunica pontos importantes para o olhar. O mirante utiliza a paisagem existente como potencial para transformação, trazendo percepções diferente sobre o que está lá (quando você muda de cota você também muda de percepção) e convidando o indivíduo a explorar a cidade. A partir do percurso e dos mirantes, pedestres exploram a paisagem sobre outras cotas e invadem espaços fechados por meio do olhar, fatos que trazem imagens geralmente não vividas, possibilitam novas percepções, descobertas, reinvenções e podem criar vínculos com o território.
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REMOÇÕES E EXPANSÕES
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CONEXÃ&#x2022;ES
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MASTERPLAN Ampliar a área do Parque e Museu Catavento Volta da experiência do rio (despoluído) Superar obstáculos, revelar novos pontos de vista. Qualificar a caminhada Ciclofaixa, iluminação, mobiliário urbano Transposições verticais para os viadutos Nova transposição em nível (viaduto diário popular) Mirantes Percurso
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4. PARQUE D.PEDRO
EXP. TIRADENTES RIO TAMANDUATEÍ
5. EXP. TIRADENTES
PARQUE D.PEDRO RIO TAMANDUATEÍ
6. AV. DO ESTADO RIO TAMANDUATEÍ TÚNEL AV. DO ESTADO
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1. AV.DO ESTADO
2. EXTENSÃO PARQUE DOM PEDRO II
3. EXTENSÃO PARQUE DOM PEDRO II
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MIRANTE 1 Localização: Avenida Mercúrio Pontos para olhar: Mercado municipal, Sesc Parque Dom Pedro II, Rio Tamanduateí, Viaduto Diário Popular (Mirante 2)
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MIRANTE 1 Foi ocupado parte de um estacionamento existente para implantar a praça onde se localiza o mirante, encostado na empena do prédio ao lado. O mirante dá visão para o entorno imediato e, ao mesmo tempo que busca revelar o que já existe, atua como ponto de atenção e alteridade.
PLANTA – MIRANTE COTA 733.6
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MIRANTE 2 Localização: Viaduto Diário Popular Pontos para olhar: Mercado municipal, Sesc Parque Dom Pedro II, Rio Tamanduateí, Museu Cata-vento, Edifícios do Centro Histórico.
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Segundo Benedito Lima de Toledo: “Desde a inauguração, o Viaduto Diário Popular não tinha qualidade como projeto urbanístico. Liga o nada a lugar nenhum e acabou com a luminosidade no Parque Dom Pedro”8. O Viaduto Diário Popular atua como retorno à Avenida do Estado e é usado principalmente pelos ônibus com destino ao terminal Parque Dom Pedro II. Encontra-se num ponto de localização fundamental para que haja uma conexão entre o SESC, Parque e Museu Catavento. De acordo Companhia de Engenharia de Tráfego, passam pelo viaduto 1.200 carros por hora, número inferior à sua capacidade de tráfego de 6 mil veículos/hora. O viaduto já passou por vários projetos de demolição que nunca foram executados, por fim sua demolição virou diretriz para o modelo de recuperação do centro. Apesar de ser uma barreira visual quando visto do nível da rua, ao caminhar sobre o viaduto se obtém outra percepção da paisagem, dele se pode ter um olhar mais ampliado do entorno e também de paisagens mais distantes. Dado isso, no projeto, parte da estrutura do viaduto foi demolida e o restante teve sua configuração reformulada, atuando como um mirante/percurso. Em substituição à transposição feita pelo viaduto foi criada uma passagem no nível da rua sobre o rio Tamanduateí, facilitando o deslocamento tanto dos pedestres como dos veículos. O deslocamento pelo viaduto traz novas descobertas e significados outros, mostra o entorno sobre diferentes pontos de vista e pode gerar imagens poéticas, favorecendo a transformação do espaço.
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MIRANTE 3 Localização: Viaduto 25 de Março Pontos de olhar: Sé, edifício Guarani, Altino Arantes (centro em geral) Metrô Parque Dom Pedro II, Comgás, Avenida do Estado, Rio Tamanduateí
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O mirante 3 consiste em um percurso sobre o viaduto 25 de Março, composto por uma passarela com faixa para pedestres e ciclovia, elevada 30 centímetros em relação ao piso do viaduto. Essas passagens já existiam, porém eram menos evidentes, mais estreitas e localizadas no mesmo nível do viaduto (ciclofaixa) e em um nível mais baixo (pedestre). A intenção foi destacá-las, integrá-las e com isso garantir segurança e qualidade ao ciclista e ao pedestre, para que o deslocamento seja feito sem pressa e o indivíduo se dê a chance de parar e olhar a paisagem ao redor. Além disso, foi adicionado um canteiro verde na extremidade do viaduto, iluminação mais baixa e mobiliários urbanos ao longo do percurso, assim como novas transposições verticais que levam ao nível da rua, para que o pedestre tenha outros acessos e mais liberdade de locomoção ao transpor o viaduto.
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PERCURSO A rota entre o metrô Parque Dom Pedro II e Brás é marcada principalmente pela presença da Comgás, igreja Mundial, Igreja Nossa Senhora da Casaluce, Fundação Casa, escolas (EMEI e CEI), e pelo parque Benemérito José Brás. O baixio do metrô gerou áreas livres abandonadas: um estacionamento, praças, como também ruas pouco movimentadas, tanto por carros quanto por pedestres. Nas imediações da linha do metrô, é nítida a presença crescente de condomínios residenciais, que se fecham para rua e criam barreiras visuais, prejudicando a visão serial das pessoas que por ali transitam, que acabam por contemplar apenas passagens não Figura 12: Delimitação do percurso. Seleção sobre foto feita pela autora. Fonte da foto: H+F arquitetos
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convidativas. Tais fatores fazem com que, tal percurso seja uma transposição difícil de ser feita. Segundo uma moradora da região, no percurso entre metrôs, muitas vezes se utiliza o interior da Igreja Mundial como atalho. Em vista das características e dinâmicas da área, foi criado um novo percurso entre essas quadras, por meio de aberturas, invasões e costuras entre praças, calçadas e ruas. O percurso tem como premissa encurtar distâncias, interligar os caminhos e espaços existentes e requalificar o espaço do baixio do metrô por meio da criação de novas passagens de pedestres, novos espaços verdes e espaços de pausa e lazer, onde se pode fugir do ritmo acelerado do cotidiano e contemplar mais atentamente a paisagem. Essa abertura dá margem para outros acontecimentos, novos lugares para olhar, sendo um convite a praticar a cidade, encontrar o outro e compartilhar narrativas. Os elementos novos criam conexão com o existente, trazem novos valores ao espaço e podem possibilitar a construção simbólica do território, permitindo, assim, que o ambiente urbano seja realmente habitado.
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ATUAL
PROJETO
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PAISAGISMO
O paisagismo pode proporcionar a melhora do microclima, trazendo mais o conforto térmico, sombra e qualidade à caminhada. Escolheu-se usar vegetação nativa e colorida, que traz diversidade, muda a organização do lugar, modifica a paisagem, e
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pode alterar os olhares e comportamentos dos frequentadores, dando mais “vida” ao espaço. O elementos vegetal, com diferentes cores e tamanhos, torna-se, então, uma potência poética.
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As calçadas, ruas, muros e vegetação são espaços comuns pertencentes a todos. Embora sejam, diversas vezes, considerados como algo ordinário, habitual ou banal, podem ser potencializados e trazer novas percepções e dinâmicas ao espaço. No percurso, busca-se fazer isso a partir do uso de diferentes cores,
PLANTA GERAL PERCURSO - TÉRREO
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conexão entre quadras (por meio do desenho de piso e lombofaixas), como também pela ocupação dos muros e do paisagismo. Tais intervenções não representam um futuro totalmente diferente, mas sim pequenas alteridades, que provocam certo estranhamento e convidam pessoas a praticarem o espaço.
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TRECHO 1 Mirante 4 - Transposição
PLANTA NÍVEL 726,65 - PASSARELA
PLANTA NÍVEL 725,74 – MIRANTE TÉRREO
CORTE A - A
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O primeiro trecho do percurso consiste na transposição da quadra da Comgás, atualmente fechada ao público. A transposição será feita por uma passarela que invade a quadra mas não atrapalha sua dinâmica, deixando o térreo livre. O fechamento do terreno é estabelecido pelo percurso da passarela, que cria um espaço público mais permeável e convidativo para a caminhada e apropriações. A passarela é conectada ao mirante, que ocupa a empena do prédio de estacionamentos da Comgás, e atua também como um mirante-percurso horizontal, revelando o interior da quadra ao longo da caminhada. O mirante possui vista para o centro (sentido Sé) e também para os outros trechos do percurso (sentido Mooca). Por meio da passarela e do mirante, são estabelecidas novas conexões, tanto a partir do permear, como também do olhar.
VISTA 1
VISTA 2
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AMPLIAÇÃO – CONEXÃO MIRANTE E PASSARELA
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DETALHE 1 â&#x20AC;&#x201C; CORTE DA PASSARELA
205
TRECHO 2 Travessia
CORTE A-A
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CORTE B-B
CORTE C-C
CORTE D-D
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AMPLIAÇÃO BIBLIOTECA MÓVEL
TRECHO 3 Costura
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CORTE A-A
CORTE B-B
AMPLIAÇÃO SANITÁRIOS - TÉRREO
CORTE C-C
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TRECHO 4 Interligação
VISTA 1
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TRECHO 2 Travessia localizada no meio de quadra, baixio da linha de metrô, onde atualmente há um estacionamento [espaço entre condomínios]. A abertura para passagem peatonal contém espaços infraestruturais de apoio, como comércios, quadras de esportes, bancas, quiosques, e uma biblioteca móvel que pode ser ativada durante o dia e desativada durante a noite. Estes elementos podem criar pontos de atração, qualificar a caminhada e amenizar as barreiras visuais existentes. 2
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TRECHO 3 costura entre espaços públicos em ambos os lados da rua, pausas, biblioteca, módulos para comércios, horta, espaços de lazer e encontro. 2
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TRECHO 4 espaço-suporte para a feira livre, pista de skate, reconfiguração de praça para playground e conexão entre ela e a área do baixio.
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TRECHO 5
Redesenho d tos que pod e oferecer a metrô, são urbano, ilu proporciona calçada com Brás.
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de rua, acrescido de elemendem qualificar a caminhada apoio no percurso final até o esses: ciclofaixa, mobiliário minação, e uma cerca que a uma maior integração da m o Parque Benemérito José
As intervenções realizadas são convites para experimentar a cidade poeticamente. Ao alterarmos tais espaços, demonstramos não aceitar a representação que os eles adquiriram ao longo do tempo, vemos além e também possibilitamos que aqueles que o utilizam possam ver além, a partir do olhar e do uso da imaginação.
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NOTAS DO CAPÍTULO: 1. BARROS, Manoel de. Poesia completa / Manoel de Barros. São Paulo: Leya, 2010, p. 349 2. MAGNANI, Luís Antônio; SEGAWA, Hugo. Complexo do gasômetro: a energia de São Paulo. São Paulo: Via das Artes, 2007 3. BARROS, Manoel de. Poesia completa / Manoel de Barros. São Paulo: Leya, 2010, p. 463 4. Ibid., p.475 5. OCUPAÇÃO Manoel de Barros, 2019. Disponível em: <https://issuu.com/ itaucultural/docs/oc_manoel_de_barros>. Acesso em: 22 de ago. 2019 6. BARROS, Manoel de. Poesia completa / Manoel de Barros. São Paulo: Leya, 2010, p. 461 7. Ibid, p.84 8. TOLEDO apud ZANCHETTA, Diego. Viaduto menor espera demolição há 20 anos. Estadão. Disponível em: <https://sao-paulo.estadao.com.br/ noticias/geral,viaduto-menor-espera-demolicao-ha-20-anos-imp-,548199> Acesso em: 04 de mar. 2020 LISTA DE FIGURAS - CAPÍTULO 4 Figura 1: São Paulo. Destaque feito sobre imagem retirada de: < https:// www.archdaily.com.br/br/01-12113/plano-urbanistico-parque-dom-pedro-ii-una-arquitetos-hf-arquitetos-metropole-arquitetos-e-lume/01_metropole>. Acesso em: 24 de set. 2019. Figura 2: Brás Fonte: Google Earth Figura 3: Vista do Parque Dom Pedro II e Viaduto 25 de Março Foto: autora Figura 4: Vista do Parque Dom Pedro II, baixio dos viadutos Mercúrio e Antônio Nakashima Foto: autora
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Figura 5: Vista da quadra do Parque Dom Pedro II Foto: Autora Figura 6: Colagem: visão serial do Brás Fonte: elaborado pela autora Figura 7: Rio Tamanduateí: esgoto a céu aberto Foto: Autora Figura 8: Parque Dom Pedro II: refúgio em meio ao caos. Foto: Autora Figura 9: Cartografia dos abandonos Fonte: Elaborada pela autora Figura 10: Cartografia: experiência do olhar e permear Fonte: Elaborada pela autora Figura 11: Vista do centro velho da cidade a partir da cota do Viaduto Diário Popular. Foto: Autora Figura 12: Delimitação do percurso, seleção feita sobre foto. Fonte: H+F Arquitetos. Disponível em: <http://www.hf.arq.br/projeto/plano-parquedom-pedro/. Acesso em: 24 de set. 2019.> As fotos que apresentam a localização das intervenções projetuais a partir da página 179 até a página 223 (com das imagens localizadas na página 190 e na página 214) foram todas elaboradas pela autora, tiradas no ano de 2019 e foram desconsideradas na numeração de figuras.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS As considerações apresentadas nas páginas anteriores não trazem respostas definitivas sobre métodos de análise, raciocínio projetual ou formas de projetar, mas sim um quadro de reflexões e atuações possíveis na cidade. Em outros termos, entende-se que a intertextualidade, a interligação entre diferentes linguagens, narrativas e pontos de vista, viabiliza diferentes experimentações e reinvenções do cotidiano na cidade; dão margem a um outro olhar.
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“Pretendo que a poesia tenha a virtude de, em meio ao sofrimento e ao desamparo, acender uma luz qualquer, uma luz que não nos é dada, que não desce dos céus, mas que nasce das mãos e do espírito dos homens. Pois a poesia é isso. É a verdade absoluta em cada um de nós.” Ferreira Gullar
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