1|1 VOCÊ CONSEGUE SER
ECOTURISTA?
A equipe da Nonada levantou do sofá e foi para o meio do mato provar que ecoturismo não é só para quem gosta de aventura
Viagens de descoberta 1 Novembro de 2010
UMA CARETA EM AMSTERDÃ Na capital do sexo
e das drogas, conservadorismo é pensar que liberdade é sinônimo de libertinagem INTERIOR LUSITANO Descubra quatro rotas alternativas traçadas por quatro repórteres O poeta está vivo, diferentes declamando seus sonetos de amor nas ruas da capital chilena
SANTIAGO DE NERUDA
2|2
3|3
Embarque Nonada. É assim que João Guimarães Rosa começa a contar uma viagem pelas veredas de um grande sertão. Só que nonada não é aqui, nem lá. Nonada é lugar nenhum. E desde quando uma viagem começa em lugar nenhum? Achamos que a nossa viagem havia começado em Amsterdã e terminaria em Ibitipoca, onde estivemos algumas semanas atrás. Nada. Voltamos, mas a sensação é de que a viagem não terminou. Talvez sempre estivemos viajando. Talvez viajar seja mais que ir de uma cidade a outra e menos que atravessar a rua. Se a viagem começa em lugar nenhum, é porque ela acontece dentro da gente. O começo é nonada, o fim é incerto. Estamos no meio de uma travessia. Passamos pelo Distrito da Luz Vermelha e visitamos os coffeshops holandeses. Subimos Cipó, Caraça e Pico do Pião. Conhecemos quatro “Portugais”. Assistimos a um show de rock. Acampamos. Ouvimos histórias de quem saiu de casa para vencer na vida e de quem saiu só para conhecer a Ásia. Comemos polvo, frango, carneiro, queijo e pimenta. Vimos fantasmas em Santiago. Viajando, olhamos para o novo. E então passamos a ver o mundo de uma nova forma. E o movimento do olhar é a descoberta que propomos nas próximas páginas. Essa é a Nonada, uma revista feita por viajantes, para viajantes. Longe de ser uma revista de turismo, a Nonada é baseada nas experiências das nossas viagens para incentivar você a fazer as suas (e, se quiser, nos contar depois). Nonada é o ponto de partida e essa edição é nosso primeiro convite para que você experimente um pouquinho de outras viagens. Antes de abrir essa revista, você estava em algum lugar. Durante a leitura, queremos que se sinta em outro. Ao fim, no nada. Benvindo à nossa travessia.
Colaboradores Carol Abreu é especialista na arte de viajar com menos de 15 reais no bolso. Procurou nas bancas, não achou nada interessante sobre viagens e pensou na Nonada.
Vicente Cardoso nunca faz a barba e gosta muito de Belchior. Só andava de chinelo, regata e bermuda até passar frio de verdade em Portugal.
Nuno Manna estuda narrativas fantásticas e pretende se tornar crítico gastronômico especializado em pastéis. Ama a namorada mais do que o cinema - e os pastéis.
Mariana Garcia divide seu tempo entre a fotografia e o jornalismo. Tirou a poeira do seu tênis confortável para a Nonada (com um estoque de relaxante muscular).
Diogo Domingues é jornalista, fotógrafo, tiete do Schopenhauer e escritor de status de Facebook (dele). Sua mente sempre relaciona lugares legais a músicas legais.
Ronei Sampaio não se decide entre a tela de pintura e a do computador, mas às vezes acredita que o melhor jeito de expressar suas idéias é mesmo no papel.
Danielle Pinto tem quase sempre um livro debaixo do braço. Só não foi para Ravena (MG) em todos os finais de semana dos últimos meses porque está em Portugal.
Marcelo Dourado não ganhou o BBB, não toca instrumentos e não é jornalista, mas tem fama de bom escritor e entendedor de música para os amigos de escola.
Bruno Fonseca está em seu quarto mês de intercâmbio no Chile e, em um domingo de sol, jura ter encontrado o fantasma de Neruda no parque.
Renata Gibson é apaixonada por design. Morou um ano e meio na Alemanha e, apesar de não curtir esportes radicais, caiu de paraquedas nessa edição da Nonada.
Léo Rodrigues morou seis meses em Lisboa. Depois de voltar, pagou as dívidas do seu turismo irresponsável por treze países e ajudou a eleger Dilma presidente.
Tahiana Máximo gosta mais que tudo de palmito, viajar e fotografar. Antes de virar jornalista, morou um ano na Austrália: viajou, tirou fotos e comeu palmito.
Renné França não joga nada fora. Arrastou a namorada para uma feira de Star Wars e agora que voltou de Portugal, está sendo arrastado para morar em São Paulo com ela.
Augusto Molinari aprendeu a desenhar lendo quadrinhos e vendo anime. É muito presente nas redes sociais, nas viagens da Nonada e, ano que vem, na Itália.
Paula Lanza morou na Alemanha e visitou diversos países, dentre eles Portugal. Tem o sonho de um dia conhecer a Grécia e comprar uma das ilhas à venda por lá.
4|5
Índice 6 18
Sacola Perfil
Viagens de um retirante
Piquenique
22
As cozinhas de cinco países em São Paulo
26
Bagagem
30 44
Travessia
56
Mochilagem
Santiago e a poesia de Pablo Neruda
Ecoturismo por sedentários Pelo interior de Portugal
E quando dá tudo errado na viagem?
Lugar Comum
60
Uma repórter “certinha” experimenta Amsterdã
Guichê
68
Aprenda a comprar passagens aéreas baratas
73
Aconteceu em...
78
Souvenir
Impressões sobre o SWU
“Seja viajante, não turista”
Expediente Textos Igor Lage e Luiza Lages Edição Elton Antunes, Igor Lage e Luiza Lages Diagramação e projeto gráfico Ana Dourado Projeto editorial Ana Dourado, Igor Lage, Luiza Lages e Vicente Cardoso Orientação Elton Antunes
Sacola
Estrada da morte
Perigo à vista Pistas esburacadas, falta de sinalização, longos trechos sem acostamento... É bem provável que você já tenha encarado esses e alguns outros problemas viajando pelos 92 mil quilômetros de malha rodoviária do Brasil. Mas os nossos vizinhos bolivianos têm que lidar com algo muito pior. Considerada a estrada mais perigosa do mundo, o Camino de las Yungas liga a capital La Paz a Coroico, em um percurso construído ao longo da porção leste da Cordilheira dos
clima da montanha pode provocar
pense que isso assusta os viajantes da
Andes. São 70 km de pista estreita,
neblina forte e deslizamentos de terra
região: a nova moda por lá é percorrer
onde, muitas vezes, não dá para
em função das chuvas.
o Camino de las Yungas de bicicleta.
passar dois veículos. Além disso, o
Estima-se que, anualmente, morram
Além das descidas aceleradas e do
trajeto oscila entre subidas íngremes
entre 200 e 300 pessoas na “estrada
belo visual, há sempre a adrenalina
(o ponto mais alto chega a 4650 m
da morte”. Para se ter uma idéia,
de não saber se os caminhões e ôni-
de altitude) e descidas repletas de
na BR-101, próximo a Florianópolis,
bus na pista contrária estão ou não
curvas perigosas. O lado do desfila-
trecho mais perigoso do Brasil, 20
te enxergando. Já temos uma nova
deiro não possui nenhuma guia ou
pessoas morrem anualmente em
candidata à ciclovia mais perigosa do
proteção e, para piorar a situação, o
acidentes automobilísticos. Mas não
mundo.
criando geografias
Setas amarelas espalhadas pelo mundo inteiro, que elevam o posto de lugar
Siga a seta
amarela
qualquer a algum lugar através de experiências compartilhadas. A proposta do projeto público e mundial Yellow Arrow, iniciado em 2004, é que pessoas possam enviar informações relacionadas a espaços para um banco de dados. Podem ser textos, imagens ou até sons. Se você um dia passar por uma dessas setas, tudo o que precisa fazer é mandar uma mensagem de celular para um dos códigos inscritos no símbolo e então terá acesso às informações deixadas por outras pessoas, suas memórias. “No caso do Yellow Arrow, você cria geografias, é físico e é imaginativo: aquilo que não está ali passa a estar. Não é uma memória de preservação, é de resgate. A memória é viva quando está em uso”, explica Carlos Falci, professor do curso de Cinema de Animação da UFMG, e estudioso da relação memória-espaço. Para conhecer o projeto, acesse o site www.yellowarrow.net.
6|7 Viagem no tempo
Vai de DeLorean ou de esfera? “Se viagens no tempo existissem, os cientistas do futuro já as teriam descoberto e nossa época estaria cheia de turistas do tempo.” A constatação de Stephen Hawking, um dos mais influentes cientistas vivos, é irônica, mas faz sentido. Tanto que, mesmo sendo uma ideia antiga, até hoje o homem não inventou um mecanismo que chegasse perto de realizar seu sonho de revisitar o passado ou dar um pulinho no futuro. Mas ainda tem muita gente tentando. O físico israelense Yakir Aharonov é um deles. Condecorado em outubro com a Medalha Nacional de Ciências dos Estados Unidos, o cientista desenvolveu uma teoria de que a máquina do tempo pode sim existir, e teria o formato de uma esfera maciça com capacidade para se expandir ou encolher muito rapidamente. Essa mudança rápida de densidade no interior da esfera seria capaz de provocar alteração no fluxo do tempo, fazendo com que o passageiro não consiga identificar se está no passado, presente ou futuro. Se essa teoria puder ser aplicada e controlada, seria possível fazer com que a máquina parasse em um tempo diferente do de sua
usado no filme De Volta para o Futuro, do que em uma
partida, de acordo com o comando do operador. Claro que
esfera qualquer. Por isso, a Universal está lançando o
tudo isso é apenas uma ideia na cabeça do Dr. Aharonov,
box comemorativo dos 25 anos da série “De Volta para o
mas a proposta é considerada inovadora pela comunidade
Futuro”. A caixa vem com a trilogia original, dirigida por
científica e pode ser importante para as discussões sobre
Robert Zemeckis, e mais uma pilha imensa de extras como
viagens no tempo.
entrevistas, cenas deletadas, making of e explicações sobre
Um dos pontos mais criticados na teoria de Aharanov
os conceitos da física que permeiam a obra. Uma boa
é o design do aparelho, afinal, todo mundo sabe que
alternativa para viajar no tempo enquanto a máquina de
é muito mais legal viajar em um DeLorean, veículo
Aharanov não fica pronta.
Couchsurfing
Hospedagem
sustentável
Agora, tire o sofá e substitua por
ideológico do Wwoof. A hospitalidade
fazendas orgânicas. O Wwoof, World
é resultado de um esforço mundial
De couchsurfing você já deve ter ouvido
Wide Opportunities on Organic Farms,
para promover o conceito de agricul-
falar. Se não, o nome é autoexplicativo:
é uma rede online de viajantes que
tura orgânica e sustentável e hábitos
“surfing” é um termo que designa
gera uma lista de fazendas membro
de consumo responsáveis. São hábitos
busca na internet, neste caso, para en-
onde quem estiver cadastrado pode
que os membros aprendem fazendo,
contrar um sofá (couch). Em qualquer
ficar, de uma semana a vários meses.
literalmente. Os convidados participam
lugar do mundo, mais de 2 milhões
Estadia e alimentação são incluídas
da execução das tarefas diárias da
de pessoas oferecem hospitalidade ou
no pacote, ou seja, gratuitas.
fazenda Wwoof.
oferecem a si mesmas para aceitar a hospitalidade alheia.
A maior diferença entre a primeira
O Brasil também integra a rede, hos-
e segunda rede de viagens é o suporte
pedada no site www.wwoofbrazil.com.
Sacola
Top 5
Lugares mais
extraterrestres
da Terra
1. Ilha Socotra A ilha de 3600 km2 faz parte de um arquipélago do oceano Índico e se manteve isolada durante milênios. Como resultado, o local é berço de uma incrível diversidade: a vida animal e vegetal em Socotra é única. São paisagens que provocam muito mais que estranheza, à altura de uma verdadeira experiência alienígena.
Nesta lista, Stonehenge e Ilha de Páscoa ficam de fora. Não é necessária a suspeita de que um ser extraterrestre esteve
2. Mina Naica
aqui e produziu algo inconsistente com a nossa capaci-
Não tem como ver uma imagem da Mina Naica sem
dade: nosso planeta, por si só, já tem muitas surpresas.
lembrar-se de cenas cinematográficas, de desenho anima-
Vamos às cinco paisagens mais inesperadas no mundo,
do ou quadrinhos de um dos mais famosos alienígenas da
dignas de existirem em outros mundos.
ficção: o Super-Homem. O local ganhou inclusive o apelido “Fortaleza da Solidão”, em homenagem à casa do superherói. A caverna localizada em Chihuahua, no México, possui os maiores blocos de cristal de selenita conhecidos no mundo – passam dos 11 metros de altura.
3. Pamukkale Cleópatra e César, entre outras grandes figuras da história já se retiraram para as águas termais da Turquia. O nome Pamukkale figura a imagem do local: castelo de algodão. É um penhasco branco, formado por um conjunto de piscinas – a temperatura da água é de 35 oC – de origem calcária. A cor branca é motivo para mais um aspecto que dá a posição de número três ao Pamukkale nesta seleção: de acordo com a luz solar, há variação na coloração do local.
1
2
3
8|9
Minha trilha sonora
Morrinhos nunca mais Texto de Diogo Domingues
Estava eu sozinho em um bar na belíssima Morrinhos, centro exportador de nada no norte de Minas. O boteco, ou pocilga na gíria
4
da capital, era completo, tinha até um desses velhos alcoólatras de chapéu de couro que fala pelos cotovelos. O tema da vez era como ele odiava taxistas e motoqueiros. “Para mim, o único jeito é matar, pena de morte para taxistas e motoqueiros”. O momento não podia ser mais terrível, já que odeio me identificar com pessoas que em nada se parecem comigo. Até posso me exceder no álcool, usar chapéu e odiar taxistas e motoqueiros até a morte, mas eu não sou de Morrinhos e não sou velho. Pois então, o momento não podia ser pior. Se Deus descesse dos céus e dissesse para um crente (um bem certinho, que anda com Bíblia debaixo do braço no domingo) que ele estava vivendo tudo errado, esse crente não passaria momentos tão desesperadores quanto eu naquela hora.
5
4. Dry Valleys
De fundo musical, um rádio antigo, desses que sempre toca chiando, ressonava a maravilhosa canção “Pobre Menina”, na versão dos Golden Boys. Pronto, a fórmula estava
O vale seco da Antártida (Dry Valleys) é considerado por
preparada para que aquele momento nunca
geólogos o local mais parecido com o solo marciano no
mais saísse da minha cabeça. Morrinhos
nosso planeta. Curiosamente, é um ponto extremamente
estaria para sempre marcada a ferro em meu
frio, mas quase sempre desprovido de neve – e também de
cérebro.
plantas e animais. No meio do lugar, há um lago perma-
Momento infernal esse em que o progra-
nentemente congelado. Abaixo do gelo, em uma água com
mador da rádio local alinhou-se às bandas de
alta concentração de sal, vivem microorganismos que
festa de formatura para que Morrinhos virasse
são hoje fonte de pesquisas. Por estarem num ambiente
parte de minhas memórias. Agora não tinha
excessivamente hostil, alguns cientistas especulam que
mais jeito: ou eu parava de ver meus amigos
eles poderiam sobreviver em outros planetas.
formarem e casarem, ou aquela cidade que o
5. Giant’s Causeway
Google não descobriu nem por satélite viraria parte de mim. Nas melhores comemorações,
Não é a toa que esse é um dos pontos mais visitados na
eu lembraria o quanto sou um velho alcoóla-
costa irlandesa. Milhões de colunas hexagonais quase
tra de Morrinhos.
perfeitas formam dois braços de terra – ou pedra alieníge-
Não penso mais em Morrinhos, mas ouvi
na – que saem em direção ao mar. Os locais contam que
falar que a festa de casamento do meu irmão
a estrutura é o que sobrou de uma ponte entre Irlanda e
foi muito animada.
Inglaterra, construída por um gigante, daí o nome “ponte do gigante” (Giant’s Causeway). Mas a ciência explica que é tudo culpa da lava vulcânica, que subitamente se resfriou e contraiu, dando origem à formação de basalto.
Sacola
Som na estrada
Nas prateleiras
Carro + rádio = viagem
Atlas da vivência
O automóvel foi inventado em 1886, o rádio dez anos
Jorge Luis Borges (1899 – 1986)
depois e ainda foi preciso mais três décadas para o
criou uma geografia pessoal a
homem pensar em juntar os dois. Há exatos 80 anos,
partir de contos e ensaios no seu
chegava às lojas o primeiro modelo comercial de som
último livro publicado em vida,
automotivo. O responsável pela proeza foi o norte-
“Atlas”, lançamento da editora
americano William P. Lear. No final dos anos 20, Lear foi
Companhia das Letras. Na obra,
contratado pela Galvin Manufacturing Corporation para
o escritor argentino seleciona
adaptar aparelhos de rádio domésticos a automóveis. O
elementos da natureza e da
resultado de suas pesquisas, um rádio pequeno equipa-
paisagem urbana para construir
do com um eliminador de baterias, chegou às lojas em
histórias baseadas em mitos
1930, batizado de Motorola. O nome é uma combinação
mundiais. Suas reflexões e
de “motor” com o sufixo “ola”, muito usado na época em
associações são desencadeadas
produtos relacionados à indústria fonográfica (vitrola,
por diversos lugares e eventos,
radiola etc.). O modelo fez tanto sucesso que acabou
como as ruas de Buenos Aires ou Maiorca, um passeio de
virando o nome da empresa anos mais tarde.
balão na Califórnia, uma praça em Roma, um monstro
Desde então, carro e rádio se tornaram bons com-
na Islândia e até mesmo um simples brioche. Ao mesmo
panheiros. Depois da década de 60, com o surgimento
tempo, Borges explora a relação entre memória e experi-
da fita cassete e a ebulição dos ideais beatniks, toda
ência. Na Irlanda, ele resgata os personagens de “Ulisses”,
viagem tinha que ter a sua própria trilha sonora. E, até
de James Joyce, e pode vê-los percorrendo as ruas do país.
hoje, não inventaram um jeito melhor de aproveitar a
Dessa forma, assim como em outras de suas obras, o
estrada sem ser com uma boa seleção musical. Então,
autor mistura ficção e realidade. O elemento que dá um
da próxima vez em que for viajar de carro, separe seus
tom mais pessoal e real a “Atlas” são as fotografias de sua
melhores CDs e arquivos em MP3 e agradeça ao Seu
aluna – quem também quem cuidou de Borges no fim da
Lear antes de colocar o pé na estrada.
vida – María Kodama, que ilustram todo o livro.
Playlist Confira o que nossos colaboradores ouviram nas viagens nessa edição da Nonada. Rock With You - Seu Jorge e Almaz
Danielle Pinto: “Ando escutando muito durante o intercâmbio”. Young Folks - The Kooks
Mariana Garcia: “Tomara que o Augusto não tenha falado essa”. 3 x 5 - John Mayer
Augusto Molinari: “Fala sobre viagens, sobre como faz bem ver a natureza e o pôr do sol. Excelente música!” Town ship Rebellion- Rage against the machine
Marcelo Dourado: “A cara do SWU” Santorini Blues - os Paralamas do Sucesso
Nuno Manna “Substituindo o filme ‘Quatro amigas e um jeans viajante’” Samba Lando - Inti Illimani
Bruno Fonseca: “A banda é aqui de Santiago, da mesma Universidade onde estou estudando”.
A versão de “Young Folks” do The Kooks (acima) foi a mais tocada nas viagens da Nonada
10 | 11
Livro de cabeceira
De corpo e alma na África “África?!! Mas por que você vai para a África?!!”. Foi com as repetidas exclamações que Fábio Zanini reproduziu aos leitores do seu blog (www.penaafrica.folha.blog.uol.com. br) os muitos comentários – ora de espanto, ora de admiração – ouvidos quando decidiu fazer a viagem, no início de 2008. O jornalista da Folha de São Paulo percorreu, literalmente e em palavras, do sul ao norte, o continente africano. Da sua passagem por 13 países e 30 cidades, nasceu o livro “Pé na África” (2009). A coletânea de reportagens relata a experiência do autor como turista e jornalista – mapas e fotos também compõem a obra. Dentro de um panorama de situações polêmicas e, muitas vezes, controversas, Fábio cria um diário dos seus quatro meses de viagem. “A África está lá, com 54 países, milhares de dialetos, petróleo, parques nacionais inigualáveis, ditadores de almanaque, banheiros sem papel higiênico, mosquitos que não ligam para repelentes e a maior diversidade cultural desse planeta. Vamos juntos”, propôs ao leitor e respondeu às indagações iniciais de quem ainda era incrédulo da sua opção de viagem.
Li na viagem
Volumosos companheiros Texto de Danielle Pinto
O aclamado “Cem Anos de Solidão”, de
E os critérios que motivam tais escolhas
Gabriel García Marquez, e o clássico
nunca são iguais: número de páginas,
infantil “História Sem Fim”, de Michael
relação com a história, indicação de um
Ende. Juntas, essas quase oitocentas
amigo. Na minha cabeça, quanto mais
páginas me serviram de companhia
intuitiva a opção, mais surpreendente
nas últimas férias de verão. Parece
será o companheiro de viagem.
muito para uma viagem de descanso,
Escrevo este texto também de
mas apenas para quem aproveita o
uma viagem. Estou na Europa desde
tempo livre do trabalho para se ver
setembro. Fico aqui até março de 2011.
longe dos livros. Além de mp3 player,
Dessa vez, resumi minha escolha em
caderno e caneta, um ou mais livros
três volumes. “The Beatles – A Biografia”,
são artigos obrigatórios em minha
escrita pelo jornalista Bob Spitz: se
mala. O hábito começou quando,
relaciona muito aos meus planos de
ainda no ensino fundamental, faltava
conhecer Londres e Liverpool. O “Viagem
tempo para colocar as leituras em dia.
a Portugal”, de José Saramago, para
E eu sempre aproveitava para retirar
provar que, mesmo em crise, Portugal
da prateleira aquelas obras empoei-
nunca deixou de produzir excelentes
radas, que pensei nunca ser capaz de
autores. O terceiro, eu admito, já reli
terminar, não pela baixa qualidade
algumas vezes. Mas também é disso que
do texto, mas pelos outros motivos,
as viagens às vezes são feitas: reencon-
da vida cotidiana, que sempre nos
tro com velhos amigos, como Manuelzão
mantém afastados dos bons livros.
e Miguilim, personagens do livro de
É basicamente olhar para a prateleira e escolher a capa mais interessante.
mesmo nome, do meu conterrâneo Guimarães Rosa.
Guimarães Rosa, autor de Grande Sertão Veredas
Sacola
Filme da minha viagem
Roteiro romântico-mediterrâneo-cinematográfico Texto de Nuno Manna
Há algum tempo assisti a três filmes que tinham duas coisas em comum. 1) Eram filmes de cineastas consagrados, mas nenhum deles um grande filme: 1.1) “Vicky Cristina Barcelona” (2008) – bom, mas não, assim, um Woody Allen; 1.2) “Beleza Roubada” (1996) – Bernardo Bertolucci mais adocicado e raso que de costume; e 1.3) “Um Bom Ano” (2006) – esse sim dentro da onda mais-errosque-acertos da carreira recente do Ridley Scott. 2) Birras à parte, cada um deles compensa cada minuto de projeção com ótimos passeios pela Europa mediterrânea, nos quais os protagonistas são tão estrangeiros como nós: 2.1) Woody Allen apresenta a Scarlett Johansson e a nós as belezas da arquitetura de Barcelona e alguns recônditos preciosos da Catalunha – além de me presentear com uma Penélope Cruz pra levar de cartão postal; 2.2) Bertolucci nos leva junto de Liv Tyler para os campos e vilarejos rústicos (mas nada simplórios) da Toscana; e 2.3) Ridley Scott joga um paraíso provençal no colo de Russel Crowe e no nosso, com direito a passeio de bicicleta pelos vinhedos – ainda que o filme acabe fazendo cara de paisagem. O arco do trajeto estava feito, começando pelo nordeste da Espanha, passando pelo sul da França e terminando na Itália central. Ideal pra um programa romântico. Na minha lua de mel, nada de cruzeiro com show da Daniela Mercury ou resort em Puntacana. Pego minha pastelzinho e vamos explorar juntinhos as locações desse roteiro mediterrâneo-cinematográfico. Contei minha idéia pra uns amigos, e me sugeriram que eu esticasse o percurso até as ilhas gregas. Mas a que custo? Assistir a “Quatro Amigas e um Jeans Viajante”! O preconceito bateu forte. Esse vai ter que ficar de fora do roteiro – pelo menos do cinematográfico.
De cima para baixo: Barcelona; sul da França e região da Toscana, na Itália.
12 | 13 Nos cinemas
Comédia de viagem O título “Um Parto de Viagem” (Due
do diretor de “Se Beber
Date) traduz bem o espírito do mais
Não Case” (2009). Quem
recente filme de Todd Phillips, que
já assistiu ao filme, sabe
entra em cartaz neste mês em todo o
bem do que se trata:
país. Na trama, Peter (Robert Downey
uma série de confusões
Jr.) tem exatos cinco dias para voltar a
e problemas quase
tempo do nascimento do seu pri-
absurdos, que dão um
mogênito. Incapacitado de viajar de
tom (muito) bem hu-
avião, ele se junta ao então desco-
morado ao longa. Enquanto Peter se
uma viagem de dois desconhecidos,
nhecido Ethan (Zach Galifianakis)
apresenta como alguém conservador
na qual suas diferenças motivam
em uma viagem de carro rumo a Los
e regrado, o aspirante a ator Ethan é
a maioria dos conflitos cômicos.
Angeles.
o oposto. Mas na hora do aperto, é o
Enquanto isso acontece, você fica
Poderia ser um percurso simples
futuro papai que entra em pânico e
com belas paisagens, reflexões e um
se a história não estivesse nas mãos
piora toda a situação. Em resumo, é
divertido road movie de comédia.
Novas
53 anos de estrada Depois de “Central do Brasil” (1998) e “Diários de Motocicleta” (2004), Walter Salles põe o pé na estrada mais uma vez. Em agosto deste ano, o diretor deu início às gravações do longa “On the Road”, adaptação do livro de 1957, escrito por Jack Kerouac. Marco da contracultura norte-americana, o enredo falava sobre e para uma nova geração que daria impulso à revolução comportamental registrada nas décadas de 50 e 60. Eram pessoas que queriam sair de casa e conhecer o mundo – com pouco mais de 50 dólares no bolso. Sal Paradise e Dean Moriaty colocam a mochila nas costas e o pé na estrada, vão de Nova Jearsey à costa oeste dos Estados Unidos. É a história dos dois amigos que vai ganhar vida nas telas do cinema em 2011. Para recriar os espaços e pessoas citadas por Kerouac, Walter Salles fez sua própria viagem pelo país. Os cinco anos de pesquisa e procura deram origem ao documentário “making of” “Em busca de On the Road”. No elenco de “On the Road”, Sam Riley, Garrett Hedlund, Kristen Stewart, Kirsten Dunst e Alice Braga.
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14 | 15 ENTREVISTA
Sob duas rodas, o mundo Argus Caruso Saturnino resolveu, em 2003, que iria viajar. Ficou dois anos só nos planos, mas, ao contrário das pessoas que em algum momento sonham com isso, ele realmente deu a volta ao mundo. De bicicleta. A empreitada veio depois de atravessar o Atlântico em uma regata e andar Europa e África com uma mochila nas costas; antes de viajar todo o nordeste brasileiro com uma bicicleta à vela. O arquiteto mineiro, natural de Cordisbugo, terra de Guimarães Rosa, hoje mora no Rio de Janeiro.
A bicicleta em que você fez a viagem
Everest com um monociclo. Aqueles
De um hotel em Juiz de Fora, contou
foi uma só?
de circo mesmo.
por telefone à Nonada sobre sua não
Não. Eu comecei com uma mountain
paixão pela bicicleta.
bike 18 marchas. Comprei ela muito
Do mundo inteiro, quais são os melho-
barata. Acabei viajando um ano com
res lugares para andar de bicicleta?
ela, e foi só na Ásia que me arruma-
Gostei muito da cordilheira dos Andes
Nonada: O que te fez gostar de andar
ram a bicicleta que dá para ver nas fo-
e do Himalaia. O visual da montanha é
de bicicleta?
tos. Foi com ela que eu terminei a vol-
sensacional, viajar com aquela paisa-
Argus: Eu nunca fui muito de andar de
ta ao mundo.
gem. Mas falando de conforto, a Austrália. Os australianos respeitam mui-
bicicleta. Tem gente que tem uma relação engraçada com bicicleta, eu não
Como foi pedalar carregando o seu pe-
to a bicicleta, têm ciclovias, o país é
tenho amor. Eu gosto de viajar e esse
so e mais o que você levou?
bem preparado. Na Eslovênia também
foi um meio de viajar. Em 94, eu tinha
Eu saí pensando que eu tinha que car-
fiquei impressionado.
uma Caloi 10 e resolvi pegar ela e ir até
regar o mínimo possível. Levei coisas
o Rio de Janeiro. Depois disso, guardei
de camping, para reparar a bicicleta,
A nova bicicleta para a sua viagem de
e só fui andar de bicicleta de novo na
fazer comida, algumas roupas e equi-
2010, do projeto Escola do Mundo é
volta ao mundo.
pamentos para o trajeto. Acabei fican-
bem diferente, com a estrutura de ve-
do muito pesado, com 80 kg, e foi mui-
la. Você que criou essa bicicleta?
Se você nem gostava tanto de bicicle-
to difícil no começo. Aos poucos fui
tas, porque escolheu dar a volta ao
cortando as coisas e uma hora tirei 20
Quando eu fiz a volta ao mundo eu fui
mundo em uma?
kg de bagagem. Vira quase uma neuro-
até o sul da Bahia, o vento a favor, e
Quando eu defini que ia fazer a via-
se: eu via uma caneta e logo pensava
pensei em montar uma estrutura para
gem eu estava na dúvida se ia de car-
“a tampinha eu não preciso”; via uma
fazer proveito disso. Como era o final
ro, a cavalo ou a pé. De carro eu desisti,
camisa e tirava o botão que não usava.
da viagem, eu fiquei com preguiça de
achava que deveria fazer um esporte,
Quando eu cheguei no Himalaia, de-
fazer, mas fiquei com aquilo na cabe-
uma coisa mais ativa. A viagem a ca-
cidi tirar ainda mais peso. Terminei a
ça. Para essa viagem resolvi colocar a
valo seria mais problemática: mais um
viagem com 40 kg.
idéia da vela em prática.
de um país para o outro seria compli-
No caminho, você viu alguma bicicleta
Mas o vento estava sempre a favor?
cado. A pé era uma forma muito deva-
curiosa ou que chamou atenção?
Nunca tinha vento contra. O vento
gar de fazer o percurso. Naquela via-
No Brasil, já vi gente carregando gela-
alísio sopra do norte, então é lateral
gem de 94 eu percebi que dava para fa-
deira e cama de casal na bicicleta. Já
ou a favor. Para quem vive no nordes-
zer uma viagem longa de bicicleta. E
passei por gente viajando em bicicleta
te, era um pequeno incentivo a tam-
foi a solução: eu queria ir numa velo-
dupla. Encontrei um japonês que esta-
bém se aproveitar mais do vento. Eu
cidade para ir conhecendo as pessoas,
va fazendo uma volta ao mundo com
acho que a gente ensina mais com o
cumprimentando e conversando, mas
um carrinho de supermercado. Outro
que a gente faz do que com o que a
também andando rápido o suficiente.
que estava com um projeto de subir o
gente fala.
para comer, sem contar que atravessar
Sacola
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Imagem do mês
“Nunca havia pensado em conhecer a Turquia, era um país que estava além do meu horizonte. No comércio de lá, só trabalham homens e os vendedores são insistentes: pedem telefone, tentam adivinhar sua nacionalidade, convidam para tomar chá. É bem... opressor.” Lygia Santos, 22 anos, estudante de Comunicação social
Vendedores de bolsas e tapetes na entrada do Kapalicarsi ou Grande Bazar. Localizado em Istambul, é o maior mercado coberto do mundo, com uma área equivalente a dez campos de futebol e cerca de cinco mil lojas.
Viajante
Uma história de retirante Aos vinte e poucos anos, Seu Ferreira decidiu abandonar de vez João Pessoa e morar em Belo Horizonte. Casou, descasou, teve filhos, netos, e continuou na cidade mineira. Em maio, resolveu visitar a mãe na Paraíba depois de 10 anos. Uma viagem de ida que parecia sem volta, e um retorno que pareceu uma chegada. Dois momentos que fizeram Seu Ferreira descobrir qual era sua verdadeira casa. Texto de Igor Lage
“Muita gente volta, mas eu sou uma raridade”.
não morava mais na mesma casa. “Sem ter
José Ferreira de Souza é um personagem
pra onde ir, tive que dormir uns dois dias na
caricato do imaginário popular dos habitantes
rodoviária antes de achar uma república, onde
da região Sudeste: o nordestino. Saiu jovem
fiquei por uma semana mais ou menos”. Nesse
da Paraíba para tentar vencer na vida, mas,
meio tempo, Seu Ferreira encontrou Toninho
ao contrário de muitos de seus conterrâneos,
por acaso na rodoviária e foi morar com ele.
que acabam voltando para a terra natal, Seu
Conseguiu um emprego na mesma fábrica
Ferreira ficou. “Aqui, eu me sinto mais em
que seu amigo, onde trabalhou por seis meses.
casa”, garante o porteiro do Vale dos Vinhedos,
Quando as coisas pareciam ter se acalmado,
edifício bem localizado em Lourdes, bairro
ele decidiu que seria uma boa ideia se mudar
nobre de Belo Horizonte.
para o Rio de Janeiro, mas hoje nem ele mesmo
A história de Seu Ferreira se assemelha à de
sabe por quê.
outros milhares de nordestinos que resolveram largar família e trabalho em busca de melhores condições de vida. As datas ele não lembra
Interlúdio - Uma breve estadia no Rio “O pessoal nordestino é muito viajante pro
muito bem, mas chegou a Minas Gerais pela
Rio e pra São Paulo”. Seu Ferreira confirma esse
primeira vez com uns 20 anos, no comecinho
clichê com a naturalidade de quem já viu e
da década de 80. “Eu vim, como eles dizem,
ouviu diversas histórias parecidas com a dele.
com a cara e com a coragem”, lembra. A via-
“A maioria vem, trabalha seis meses ou um
gem de ônibus durou três dias. Suas lembran-
ano, volta pro Nordeste e depois desce para cá
ças são de muitos acidentes, estrada péssima
de novo. É uma mania que parece que não vai
e ônibus lotado. “Apesar das condições ruins,
acabar nunca”.
graças a Deus nunca aconteceu nada comigo”. Assim que pôs os pés em Belo Horizonte,
Foi o que aconteceu com ele no Rio. Ficou lá só um ano, na Ilha do Governador. Achou tudo
Seu Ferreira tratou de caçar o endereço de um
muito bonito, mas ficava incomodado demais
conhecido de muitos anos, o Toninho, que nem
com a violência. Até mataram um amigo que
sabia que ele estava vindo para a cidade, mas
fez por lá. Na cidade, conheceu muitas pessoas
que talvez pudesse oferecer abrigo por uns
que vieram de outros lugares e acabaram
dias. Chegando lá, descobriu que seu amigo
não encontrando aquilo com que sonhavam.
Ana Dourado
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Viajante
Quatro momentos na vida de Seu Ferreira. Mais à esquerda, ainda jovem, servindo o Exército em Natal. Ao lado, trabalhando como vigilante em João Pessoa, antes
“Talvez foi falta de sorte deles...”, reflete. Talvez
O tempo de serviço militar foi importante
dele próprio também. Quando percebeu que
para sua decisão de tentar a vida em Belo
havia se tornado mais um desses desiludidos,
Horizonte. “Meus pais não ficaram com medo
o então jovem José Ferreira decidiu abandonar
quando falei que vinha porque eles sabiam
seus planos e voltar para casa.
que eu já conhecia alguma coisa de mundo.
Em João Pessoa, algo ainda o incomodava. A
Eles me apoiaram porque sabiam que eu tinha
vida dos pais e dos irmãos (todos mais novos)
vontade de vencer na vida, de conseguir um
estava até melhorando, mas Seu Ferreira não
emprego”.
queria mais viver ali. “Eu pensava comigo mesmo: ‘Tenho que arrumar alguma coisa pra mim. Não posso depender só de pai e
Desfecho – Lar Quando voltou a Belo Horizonte, Seu
mãe. Tenho que trabalhar também, ter mais
Ferreira estava decidido a ficar. Conseguiu ar-
autoridade de ser humano e vencer na vida’”.
rumar trabalho como porteiro de prédio, mas,
Era hora de voltar para Belo Horizonte.
ainda assim, sentia a vida tão difícil quanto lá em João Pessoa. “Essa vida corrida não foi
Prólogo (atrasado) – Primeiras viagens Antes de falar do retorno de Seu Ferreira a Minas Gerais, é importante voltar a 1957. Neste
fácil não. Foi um pouco complicado porque eu lembrava muito de lá, dos meus pais, meus irmãos. Dá muita saudade...”
ano, Luiza, mulher de João Ferreira, deu à luz
Nesse mesmo ano, Seu Ferreira conheceu
o pequeno José Ferreira de Souza, na também
Eva, sua primeira esposa. “Bom, na verdade, a
pequena Guarabira, cidade no interior da Para-
gente era só juntado mesmo...”, ele se corrige,
íba, a 104 km de João Pessoa. Vieram mais cin-
um pouco sem jeito. Com ela, teve duas filhas,
co depois dele, três meninos e duas meninas.
Renata e Roberta, esta última mãe de seus dois
Seu João trabalhava na agricultura e a mulher sempre foi dona de casa. Quando José completou 16 anos, a família toda mudou
netos. Separaram-se poucos anos depois, mas mantiveram um relacionamento amigável. Hoje, Seu Ferreira é casado há 18 anos
para a capital. Dois anos depois, o garoto faria
com sua segunda esposa, Maria de Lourdes.
sua primeira viagem: até Natal, para servir
“Quando nos casamos, ela ainda era menor.
o Exército. “Servi só um ano. Gostei muito da
A gente teve que ir ao juiz pedir autorização
experiência e me arrependi muito de não ter
junto com o pai dela”, conta achando graça.
ficado mais. Só que, como não tenho literatura,
Maria de Lourdes e Seu Ferreira tiveram três
não sei se teria dado certo, mas podia ter ficado
filhos: Ana Paula, Vanessa Daiana e Matheus
lá e estudado”, conta Seu Ferreira hoje.
Lucas. Os cinco moram juntos em uma casa
fotos arquivo pessoal
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“É igual em viagem de ônibus quando passa um filme na cabeça da gente. Nessa hora, eu pensei: ‘não, não é aqui’”
de se mudar para Belo Horizonte, cidade onde se casou com Maria de Lourdes. Por último, com a família reunida.
localizada em Ribeirão das Neves, município
diferente, mais cuidada e organizada. E aí, o
da região metropolitana de Belo Horizonte, a 18
encontro com a família depois de dez anos.
km da capital. “BH é uma cidade muito boa de
“Ah, foi bom demais ver todo mundo de novo.
viver. Eu gosto das praças daqui. São muito bem
Conheci sobrinho já grande, sobrinho já noivo,
feitas”.
sobrinho querendo casar. Pra mim, foi uma
Daqui a quatro anos, Seu Ferreira se apo-
experiência muito boa. Tanto que eu pretendo
senta. A mulher fala vez ou outra sobre morar
voltar já no ano que vem, ou talvez mais um
em João Pessoa, mas ele nem cogita a ideia.
pouco, mas não passar esse tempo todo. Eu
Como ele mesmo disse lá no primeiro pará-
fiquei sem ir não foi tanto por querer, foi
grafo, é em Belo Horizonte que se sente mais
por causa da vida que eu tava passando. A
em casa. “Mas eu ainda tenho um laço muito
fase difícil, o pensamento de ‘eu não posso
forte com João Pessoa”, revela. E é justamente
chegar dessa maneira lá’... Não podia deixar
por ser forte que, de vez em quando, esse laço
família, tava com menino pequeno e tal. Foi
aperta.
passando, foi passando, e a gente vai esperando o dia melhor. Foi por isso que passou esse
Epílogo - O bom filho à casa torna Já tinha dez anos que Seu Ferreira não
tempo todo”. A folga curta de Seu Ferreira permitiu que
pisava na Paraíba. Sua mãe, 85 anos, andava
ele ficasse só 15 dias. Aproveitou a família e
bastante doente, então ele sentiu que talvez
a cidade. “Eu gosto de viajar. Gosto muito de
essa fosse uma boa hora para visitá-la. Além
conhecer as cidades, o interior, ver as paisa-
disso, por que não aproveitar a oportunidade
gens. Eu fico lembrando o tempo que eu era
e realizar um sonho antigo? Comprou sua pri-
criança, adolescente, correndo, pegando fruta
meira passagem de avião. O preço estava bom,
no pé”. As memórias reapareciam trazendo
mas ainda assim era caro para levar a esposa e
uma sensação gostosa de nostalgia, mas Seu
os filhos, que têm muita vontade de conhecer
Ferreira realmente precisava voltar. Pegou o
a terra do pai. “Quando a situação melhorar, a
voo de volta. “É igual em viagem de ônibus
gente vai”, garante.
quando passa um filme na cabeça da gente. Aí
Escolheu o lado da janela. “Eu estava vendo a casa lá embaixo e, de repente, ela sumiu. Depois, como era de noite, eu só via nuvem,
você começa a encaixar algumas coisas. Nessa hora, eu pensei: ‘não, não é aqui’”. De volta a Belo Horizonte, Seu Ferreira
nuvem, nuvem... Era muito bonito mesmo. Eu
retornou à rotina de vigiar a casa dos outros, se
gostei”. Saiu de Belo Horizonte às 21h e chegou
sentindo bem por estar naquela cidade das praças
em João Pessoa às 4h. Encontrou a cidade
bem cuidadas. A casa que ele escolheu.
piquenique Mais à esquerda, o prato de entrada do Acrópoles. Ao lado, o menu na cozinha do restaurante. Abaixo, em ordem, o prato carneiro assado; a fachada do estabelecimento; e seu Trasso servindo azeite.
Entre burritos e takoyakis
Para Zeus nenhum botar defeito “Azeite é igual água aqui”, disse o seu Trasso (ou Thrasyvoulos Georgios Petrakis, para os gregos) enquanto entornava muitos mililitros do tempero no prato da Nonada Trabalhando diariamente no recinto desde 1961, esse simpático senhor grego, que começou como garçom e hoje é dono do
Às vezes, o melhor jeito de sair da rotina é com garfo e faca na mão. Para almoçar um Masala Dosa indiano, beber um típico Ayran turco e, de sobremesa, se deliciar com o bolinho japonês Yakimanju, não é preciso ir longe. A Nonada escolheu São Paulo como palco para uma microturnê gastronômica internacional, que você pode tentar em qualquer lugar. Confira as impressões que as cozinhas grega, mexicana, indiana, turca e japonesa deixaram na boca e no bolso da nossa equipe de reportagem. Texto de Igor Lage e Luiza Lages fotos de Ana Dourado e Tiago Megale
lugar, é sempre atencioso com os clientes, mesmo que seja tarefa difícil entender seu português encharcado de sotaque. Talvez seja por causa dessa dedicação que o Acrópoles esteja sempre bastante cheio. Isso proporciona aquele ambiente aconchegante de bagunça familiar, mas o caos das mesas acaba comprometendo um pouco o atendimento. Para pedir, nada de cardápio. O cliente é levado diretamente à cozinha, onde o chef explica as combinações possíveis de pratos. Detalhe: eles não são baratos. Os preços chegam até a 60 reais, mas alguns podem ser divididos. É o caso da escolha da Nonada, o carneiro assado (R$ 32). A porção inteira, acompanhada por arroz e batata, serve bem duas pessoas. O prato é delicioso e realmente compensa desembolsar um pouquinho a mais para experimentar. Outra sugestão legal é a entrada completa (R$ 20), que contém coalhada seca com pepino, patê de berinjela, purê de batatas ao alho, polvo ao vinagrete e pão. A fotógrafa quase desistiu do prato principal, de tanto degustar a entrada. Ah, e adivinha quem veio tirar a mesa depois que a Nonada acabou de comer? O próprio Trasso, no auge de seus 91 anos. O segredo da vitalidade desse senhor grego, ninguém sabe, mas dá para sair de lá achando que é algo na comida. Rua da Graça, 364, Bom Retiro Segunda a domingo das 6h30 às 23h (11) 3223-4386 | www.restauranteacropoles.com.br
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À esquerda, os pratos escolhidos pela Nonada: Chicken Biryani e Masala Dosa. Abaixo, imagens do restaurante e do combo Chicken Madhu.
Acima, a fachada do Edifício Copan. À esquerda, o mapa do prédio com a numeração das lojas, logo na entrada. E abaixo, o burrito La Guapita acompanhado de nachos e molho cheddar.
Mais rápido que o Papa-Léguas
Namastê, gulab jamun
Loja 25. Para chegar ao El Coyote é bom memorizar a nu-
Diriam as más línguas que não se deve começar pe-
meração do restaurante. Ou saber que ao passar pela entra-
la sobremesa, mas, ao falar do Madhu, restaurante indiano
da principal do Edifício Copan, um gigante de 115 metros de
cujo nome significa mel ou néctar, não poderia ser uma op-
altura projetado por Niemeyer, você deve virar à esquerda.
ção mais apropriada. O gulab jamun (R$ 6,50), doce frito de
Logo à frente, entre piso e paredes tons pastéis, um espaço
trigo, assado em calda doce, é motivo suficiente para conhe-
vermelho vai chamar sua atenção.
cer o restaurante. Você pode tentar rememorar um sabor
Além de um grande ventilador que mantém o ambiente fresco, é possível ver os pratos sendo feitos do balcão: bur-
equivalente, mas assim como grande parte do menu, vai ficar na dúvida sobre o que está provando.
ritos, nachos e tacos. O restaurante é um fast-food Tex-Mex
“Ah. Neste prato são 15 condimentos: cardamomo, ca-
adaptado ao Brasil. Tudo bem que a Nonada ocupava uma
nela, açafrão, folha de curry, por aí vai”. Leonardo Menezes,
das duas mesas que tinham clientes no momento, mas o
um dos cinco donos do estabelecimento, falava do Chicken
único garçom/caixa foi rápido no gatilho e os pratos chega-
Biryani (R$ 13), arroz com coxa e sobrecoxa de frango. Parece
ram em menos de 10 minutos.
simples, mas é justamente o tempero (e as castanhas de ca-
Dessa vez os repórteres não estavam sozinhos e foi possí-
ju) que transformaram o prato no vencedor da noite.
vel experimentar metade do menu de burritos. O El Ranche-
A equipe da Nonada experimentou também o combo do
ro é feito à base de frango e tomate, que dá um gosto enjoa-
Masala Dosa (R$ 16), crepe feito à base de massa de farinha
tivo. Dona Hermosa não correspondeu à expectativa de ser
e lentilha, recheado com batata. O acompanhamento foi o
pesado, tendo como ingredientes principais calabresa e sal-
sambar, uma espécie de sopa com gosto bem forte, e malai
sicha. Era, na verdade, bem saboroso. Alguns votaram em La
kofta, bolinhos de queijo com molho de tomate e manjeri-
Guapita como o melhor burrito, outros como o pior, devido
cão. Bem servido (o crepe era maior que o prato) e diferen-
ao gosto forte de feijão do chilli beans. Ay Caramba ficou na
te (mais uma vez, muitos condimentos), é uma boa opção
mesma: o guacamole dividiu a mesa.
vegetariana.
O combo médio (R$ 14,50), pedido da Nonada, atende
Na verdade, quase metade do cardápio do Madhu é vege-
bem uma pessoa faminta, e o grande (R$ 17,50) é suficiente
tariano. “Vocês são vegetarianos? Eu vou de carne, mas é le-
para dividir com mais alguém. O burrito vem acompanhado
gal dar opções para todo mundo”. O foco do restaurante está
de refrigerante e nachos com molho. Os repórteres da Nona-
na cozinha do Sul da Índia, herança da mãe indiana de um
da escolheram, sem hesitar, o de cheddar: opção errada. Mas
dos sócios. “Nós também desapimentamos as receitas”, con-
você não espera que cheddar seja sem graça...
tou Leonardo. Os repórteres da Nonada agradecem.
Av. Ipiranga, 200, loja 25 - Edifício Copan, Centro Próximo à estação República (11) 3256-7213 | www.restauranteelcoyote.com.br
Rua Augusta, 1422 (dois quarteirões da estação Consolação) Segunda a sexta, das 11h30 às 22h30. Fins de semana das 12h às 24h (11) 3262-5535 | www.madhurestaurante.com.br
piquenique Carne, azeitonas e água salgada
Muito além do peixe cru
“O que servimos aqui é o kebab tradicional da culinária
Esqueça os sushis, sashimis, temakis e wasabis. O legal
turca, que é bem diferente do sanduíche barato vendido em
da feirinha da Liberdade é comer justamente o que você não
algumas lanchonetes da Europa”. Ricardo Libbos, gerente do
costuma encontrar nos restaurantes japoneses de shopping.
café-restaurante Kebab Salonu, fez questão de deixar isso
Apesar de simples, todos os quitutes orientais vendidos nas
bem claro para a nossa equipe. Utilizado em diversos pratos
diversas barraquinhas montadas próximas à saída do metrô
típicos do Oriente Médio, o kebab (grelhado de carne no espe-
são muito gostosos e baratos.
to) é o carro-chefe do estabelecimento. Se na Europa ele ficou
Teve repórter da Nonada que esqueceu o almoço e já foi
conhecido por ser um lanche rápido, sujo e barato, no Kebab
direto para o doce, um bolinho feito de feijão azuki chamado
Salonu é justamente o contrário. O kebab shish de cordeiro,
yakimanju (R$ 2). Mas o espírito era esse mesmo. Depois de
por exemplo, é limpinho e custa 32 reais. A mesa ao lado pe-
uma primeira olhada nas barracas, todo mundo concordou
diu e parecia muito gostoso, então se você quiser/puder de-
que era melhor ficar beliscando ao invés de sentar em um
sembolsar a grana, pode ser uma opção.
restaurante (são muitos no bairro!).
A equipe da Nonada, por sua vez, preferiu a pide de quei-
Uma das iguarias que mais chamou a atenção do grupo
jo, sujuk e pastirma (R$ 14) acompanhada pela mini salada
foi o takoyaki. O bolinho recheado com polvo ou camarão e
tunisiana (cuscuz, tomate, azeitona, ervas, azeite e limão -
coberto com molho shoyu é servido quente, em caixinhas
R$ 9). A pizza turca serve bem uma pessoa. Seu formato lem-
com quatro ou seis unidades (R$ 6 e R$ 8, respectivamente).
bra as tradicionais esfirras e o recheio é composto por salsi-
Vale a pena reparar no pessoal da barraca, que frita a massa
cha turca apimentada (sujuk) e o pastirma, uma espécie de
de farinha de trigo na hora, com habilidades dignas de um
carne-de-sol. A salada era pura azeitona, o que não agradou
verdadeiro ninja.
muito aos repórteres (a fotógrafa nem se importou).
Aqueles que vão a feiras só para comer pastel podem fi-
Para beber, a sugestão são os chás gelados de mate com
car despreocupados. Na Liberdade, há duas opções pareci-
tangerina e melão com hortelã (R$ 5). Se quiser ousar um
das: o guioza, uma massa frita com recheio de carne de por-
pouco, experimente o Ayran, bebida típica a base de água
co (R$ 2,50), e o tempurá, que mistura verduras, camarão e
salgada e iogurte. O primeiro gole é estranho, mas depois fica
legumes (R$ 3). Não são gigantes como os pasteis do Merca-
até refrescante. Uma boa pedida para quem está com sau-
dão, mas valem a pena. Se nada disso te interessou, você po-
dades de ser surpreendido por uma onda gigante na praia.
de recorrer ao bom e velho sushi (R$ 1). E se sua onda não
E, para fechar a conta, o tradicional café turco, tido como o
é comida japonesa, tem suco a quatro reais e raspadinha a
melhor do mundo. Custa seis reais, mas é gostoso mesmo.
três. Dá para, pelo menos, aliviar o calor da muvuca.
Rua Augusta, 1416, Consolação (próximo à estação Consolação) Segunda a domingo, de 12h às 24h. Sextas e sábados até 1h30. (11) 3283-0890 | www.kebabsalonu.com.br
Pça da Liberdade, s/ nº, Liberdade (ao lado do metrô Liberdade) Sábado e domingo, de 10h às 19h. (11) 3208-5090
À esquerda, a fachada do Kebab Salonu. Abaixo, a pide turca acompanhada da salada. Ao lado, o processo de fritura dos takoyakis na feira da Liberdade e, acima, a caixinha com o produto final: os bolinhos de lula e camarão. A imagem final mostra um visitante comendo tempurá. Na página 24, no canto esquerdo, o yakimanju e sua preparação. Ao lado, o interior do restaurante turco e os chás de mate com tangerina e melão com hortelã.
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AMBIENTE
LOCALIZAÇÃO
ACRÓPOLES
EL COYOTE
MADHU
KEBAB SALONU Ao lado do Madhu.
Fica no Bom Retiro,
Perdido no meio do
Na Augusta, a dois
próximo à Estação da
Ed. Copan. Passe lá
quarteirões da Paulis-
Liberdade. Não fique
Luz e ao Museu da
depois de bater perna
ta. Dá até para sair
lá até tarde da noite.
Língua Portuguesa.
na Galeria do Rock.
direto para a balada.
Cuidado para não
Vermelho, verde e
Lembra o Habib’s.
O uniforme dos
Se o Seu João se
confundir com um
sem graça. Um gran-
A diferença são os
garçons e a meia-luz
chamasse Akira e
boteco qualquer. O
de ventilador deixa o
pôsteres de fotos
compõem o clima
vendesse takoyaki,
restaurante é simples,
lugar fresquinho.
indianas nas paredes.
sofisticado.
poderia ser a feira do
ATENDIMENTO
mas autêntico.
MENU PRATO
seu bairro. A equipe soma um
O gerente e os em-
Além de bem vesti-
Os pratos saem bem
e um pouco de caos.
garçom/caixa e uma
pregados são super
dos, são prestativos e
rapido, mas, às vezes,
Pelo menos, ninguém
cozinheira. Reze
simpáticos. Fique
educados, mas falam
é preciso batalhar por
quebra os pratos.
para não estar muito
atento ao número da
tão baixinho que é
um espaço na fila ou
cheio.
sua senha.
difícil de escutar.
no caixa.
Aquilo mesmo que
Funciona no esquema
Cardápio diversifi-
Cada barraca vende
você conhece da
de “combos” dos fast-
cado, mas cuidado:
uma coisa diferente.
cozinha mexicana:
foods tradicionais.
algumas bebidas
Em um dia, dá para
burritos, nachos e
e preços são bem
experimentar tudo.
tacos.
salgados.
é o chef quem faz as combinações. E nem todas são baratas...
Muito gostoso! Foi
Alguns burritos
eleito o melhor de
agradaram, outros
todos pela equipe de
nem tanto.
reportagem.
Os pratos principais eram gostosos e bem servidos, mas os acompanhamentos eram meio “exóticos”.
PREÇOS
Do lado da estação
Da Grécia, a gritaria
Muitas opções, mas
DEFINIÇÃO RÁPIDA
FEIRA DA LIBERDADE
O prato tinha boa
Foram muitos
aparência e o sabor
quitutes e todos eram
era adaptado para o
bons. Destaque para
paladar brasileiro. Ou
o guioza e o takoyaki.
seja, menos pimenta. Ufa!
A conta pode sair
O preço do combo é
Por ser um fast-food,
Há opções baratas,
Dá para comer só
bem alta para quem
baixo, tendo em vista
os preços são bem em
mas as caras pare-
com os trocados da
quiser comer sozinho.
que ele dá e sobra
conta. Dá para comer
cem ser bem mais
carteira.
para uma pessoa.
e sair satisfeito.
gostosas.
Ay caramba!
Temperos, condimen-
Piscinão de azeite
tos, temperos
Salgado
Alta densidade demográfica
Bagagem
Poesia de Santiago Isla Negra, Valparaiso e Santiago. Pablo Neruda residiu nos três lugares. E foi em La Chascona, sua casa na capital chilena, onde ele escreveu seus “Cem Sonetos de Amor” (1959). A Nonada leva até você um passeio por Santiago através desses versos de Neruda, por quem acredita que, em sua obra, o poeta nunca morre. Texto de bruno fonseca E ilustraçÃo de ana dourado
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Uma tarde de domingo e um calor infernal. A prima-
“El amor supo entonces que se llamaba amor. Y cuando
vera em Santiago é assim, quando menos se espera,
levanté mis ojos a tu nombre tu corazón de pronto
trinta e quatro graus centígrados e vinte porcento
dispuso mi camino”, completou. Quase caí para
de umidade relativa do ar. Eu estava sentado
trás – como era possível saber a continuação exata do
debaixo de uma árvore no Parque Quinta Normal
poema? Estávamos suficientemente afastados para
lendo compulsivamente os “Cem Sonetos de Amor”
que o tipo pudesse ler meu livro e ele tampouco tinha
de Pablo Neruda. Devia estar por volta do poema
alguma cola em suas mãos. Seria mesmo o fantasma
número 72 ou 73, quando ocorreu o inusitado. Um
encarnado do poeta?
senhor surgiu do nada, afastou algumas folhas e se
Conferi um retrato do Neruda na orelha da minha
sentou calmamente ao meu lado. Vestia um casaco
edição de “Cem Sonetos de Amor” e fiquei impressio-
escuro, blusa de lã, calças compridas e sapato
nado com a semelhança entre a figura da fotografia
social. Eu, de camiseta e bermudas e, ainda assim,
e o senhor sentado à minha frente. Eram exatamente
suando em bicas, me perguntava por que raios o
os mesmos traços, a mesma expressão, exceto pelo
sujeito usava tais roupas naquele calor. Foi então
rosto pálido e a pele levemente translúcida. Sussurrei:
que reparei na boina xadrez, no nariz avantajado,
“Neruda?” e ele acenou positivamente com a boina.
no olhar contemplativo e quase não acreditei no
Olhei ao meu redor para ver se mais alguém havia se
que via. Era Pablo Neruda, em carne, osso e alma
dado conta do que estava acontecendo, mas ninguém
penada, descansando tranquilo, bem ao meu lado,
ali parecia reparar no velho poeta, como se fosse
no meio do parque.
absolutamente rotineiro ver um defunto tomando
Poderia ser apenas um senhorzinho chileno
sol no parque aos sábados. Pensei que estava ficando
parecido com o poeta ou mesmo alguém que gostasse
louco ou, no mínimo, desidratado. Então o sujeito se
de se passar por seu sósia, pensei. Resolvi ignorar a
levantou, sacudiu a terra do casaco e se pôs a cami-
companhia insólita e retomar a leitura. Ainda des-
nhar pelo parque.
concentrado, li mentalmente outro soneto. “Hombre y
Resolvi acompanhar o velho, ainda um pouco
mujer talaron montañas y jardines, bajaron a los ríos,
assustado com a aparição. O local estava lotado, mas
treparon por los muros, subieron por los montes su
ninguém reparava na assombração caminhando ao
atroz artillería”, estava escrito. Mal havia terminado
meu lado. Neruda parecia perdido, como se buscasse
estes versos quando o senhor se remexeu em seu
a Santiago de sua época. Caminhava errante, parava
lugar, pigarreou alto e continou sem muita cerimônia.
por um momento, examinava alguma coisa no ar e
Bagagem
retomava o passo. “Santiago, tus parques llenos de manos,
de neon, lâmpadas, velas e pontas de cigarros. Cruzamos
llenos de bocas y besos”, falou ao ver um casal enamorado.
a ponte do Rio Mapocho, eu acompanhando meu guia
Eu tentei lhe explicar que o ano era 2010, que a cidade já
defunto, ele redescobrindo seus caminhos por Santiago.
ultrapassava os seis milhões de habitantes e que muito
“Y el crepúsculo que caía sobre los techos de Mapocho con
do que ele conhecia havia mudado. Neruda fez cara de
un color de café triste y luego la ciudad ardía crepitaba
incrédulo e acenou para que o seguisse. Saímos os dois
como una estrella”, recitou. Mais à frente, o bairro boêmio
juntos do parque, sem que ninguém fizesse caso do meu
Bellavista fervilhava com o cheiro das tábuas de chorrilla-
estranho acompanhante.
nas, o tilintar dos brindes de pisco sour, as gargalhadas de
Rumamos para a Estação Central, uma construção his-
quem já demonstrava os primeiros sinais de embriaguez.
tórica onde funciona um dos principais terminais ferroviá-
Neruda seguia interessado em cada detalhe e eu em cada
rios do Chile. O local estava apinhado de gente comprando
observação do poeta.
muamba, tomando sorvete, falando alto ao celular. Neruda
Continuamos até o Cerro San Cristóbal, de onde, a
navegava por aquele mar de chilenos sem esforço e, mais
quase 900 metros de altitude, tem-se uma das melhores
uma vez, ninguém parecia notá-lo em meio à multidão. Já
vistas da cidade. Na subida, passamos pelo zoológico
eu, que caminhava com dificuldade, desviando de sacolas e
municipal, com suas feras gigantes espremidas em peque-
tropeçando em crianças pirracentas, quase dei de cara com
nas jaulas nas encostas da colina. Também vimos duas ou
um velho barbudo que cantava aos berros uma estranha
três festas moderninhas, onde jovens chilenos dançavam,
música folclórica. “La estación Central es un león”, disse
bebiam e se drogavam, aproveitando apaixonadamente
o poeta, flutuando sereno naquela desordem. “Como ele
os últimos instantes antes do nascer do sol. Finalmente
consegue tirar poesia dessa bagunça?”, pensei.
alcançamos o topo, onde a estátua da virgem, assim como
Seguimos então para o bairro Yungay, uma das regiões
um cristo, zela em silêncio pela cidade logo abaixo. “Amo la
mais antigas de Santiago. Neruda reparava nas inúmeras
virgen ovalada que ilumina sin entusiasmo los sueños de la
casas de fachadas coloridas espremidas uma ao lado da
zoología”, entoou Neruda.
outra. Eu me entretinha com o traço debochado do grafite
Os primeiros raios de sol começavam a colorir o alto
que competia com a arquitetura rebuscada dos séculos
da cordilheira ao fundo, fazendo brilhar em um dourado
XVIII e XIX. Na praça do bairro, alguns jovens liam estirados
sonolento a neve que os Andes ainda guardavam. Reparei
na grama, enquanto um bêbado dançava ao som da cumbia
que, assim como a neblina que se dissipava, o espectro de
de uma velha e estridente jukebox. O poeta observava tudo
Neruda também se tornava cada vez mais rarefeito. Ele
com uma serena satisfação, como se tecesse poesia com as
estava indo. Tantas perguntas a fazer, tanto o que desejaria
cores, ruídos e cheiros da cidade que se mostrava outra vez
aprender com o poeta, mas aquele domingo havia passado
aos seus olhos. “Mi poesía es la Alameda, mi corazón es un
por nós contemplativo e silencioso. E antes que eu pudesse
teléfono”, versou. Passamos por Bellas Artes, bairro descolado próximo
dizer qualquer palavra, antes de perceber que eu adormecia, Neruda apontou para a cidade e disse: “envejezco
ao centro da metrópole. Seguimos cubanos e cubanas
con mi ciudad pero los sueños no envejecen: crían tejas y
caminhando exóticos pelas ruas com suas peles negras,
crían plumas, suben las casas y los pájaros y así Santiago,
saias frisadas, camisetas de algodão e castelhano peculiar.
nos veremos dormidos por la eternidad y profundamente
Conhecemos os blocos de apartamentos onde se amontoam
despiertos.”
colombianos e bolivianos, cafés onde jovens peruanas
Despertei-me naquele momento. Era uma tarde de do-
desfilam beleza no salto alto e restaurantes onde europeus
mingo e fazia um calor infernal. Eu estava sentado debaixo
encontram refúgio de cachorros-quentes duvidosos. “Sí,
de uma árvore no Parque Quinta Normal e, ao meu lado,
Santiago, soy una esquina de tu amor siempre movedizo”,
o “Cem Sonetos de Amor” de Pablo Neruda se encontrava
declarou o poeta.
caído na grama. Devia estar por volta do poema número 72
Caía a noite e a cidade se iluminava com faróis, letreiros
ou 73 e continuei a ler o livro até o final.
28 | 29
travessia
Da
a l o c – a coc
o a r a p
30 | 31 Ficar em casa vendo TV ou aproveitar o dia lindo lá fora para fazer uma trilha e nadar na cachoeira? Muitos associam a segunda opção a pessoas esportistas e aventureiras, e logo a descartam. Com o intuito de provar que mato não é só esporte de ação e tentando fugir do sedentarismo, a Nonada viajou até Serra do Cipó, Caraça e Parque do Ibitipoca. Com a ajuda de amigos, a equipe ganhou mais que dores nas pernas. Texto de Igor Lage e Luiza Lages e Fotos de Mariana Garcia
e d a r o gat
Travessia
Nossos eco-sedentarios Ana fez ioga em 2006. Aliás, ioga é esporte? Augusto diz que quer ter uma experiência não urbana. Diz isso no Twitter. Igor três matrículas na academia, três fracassos. Lolis até faz trilhas, mas não esquece o chocolate. Luiza tem chiliques épicos com insetos e a última vez que praticou esportes foi em Da esquerda para a direita: Luiza, Raquel, Lolis, Mauro, Terêncio, Igor e Augusto.
2004. Mari fumante do grupo, carregou Dorflex em todas as viagens. Mauro um italiano muito animado e pouco familiarizado às cachoeiras e ao calor brasileiro. Rafael é um excelente músico. Raquel resolveu fazer cooper em 2010, mas a sola do tênis de 2003 descolou na primeira tentativa. Terêncio vira noites e dorme de dia.
Ana, Luiza, Igor, Rafael e Mari.
O que levar para umA caminhada ecologica Mínimo de dois litros de água Chapéu ou boné Protetor solar Repelente de carrapato Óculos escuros Lanche de trilha
O que vestir e calcar Roupas leves – para quem for de bermuda é importante usar protetor solar. Evitar roupas escuras que aumentam a sensação de calor. Bota ou tênis que você já tenha hábito de usar, caso contrário ganhará algumas bolhas. Duas meias para dar uma sensação melhor de conforto.
32 | 33 Enquanto Igor tomava calmamente seu banho, Luiza, Lolis, Raquel, Mari, Mauro, Augusto e Terêncio aguardavam do lado de fora do prédio. Apesar do combinado de sair de Belo Horizonte às 7h, já passava das 8h. Na noite anterior, o grupo só voltou de madrugada para casa e a noite de Igor havia se estendido ainda mais, até as 4h. Obviamente, ninguém acordou na hora certa. A justificativa bem humorada ao atraso (e depois a qualquer outro problema) foi a vida sedentária urbana. É que a proposta da Nonada de mostrar o que seria o ecoturismo para sedentários parecia permitir que a própria equipe de reportagem (e de apoio) se enquadrasse no perfil. No dia anterior, Luiza, Igor e Mari se inteiraram de recomendações para uma caminhada ecológica. Pela manhã, os três trajavam roupas próprias para uma trilha ecoturista. Em contraste aos dois pares de meias que Igor usava, Raquel e Lolis estavam de chinelo e biquíni – indício do que estava por vir. No dia 18 de setembro, a Nonada partiu assim para o Parque Nacional da Serra do Cipó. A ideia inicial era conversar com Marcelo Pereira, monitor do projeto Caminhada Mineira, que organizou para aquele dia uma trilha guiada no parque com mais de 200 participantes. “Na verdade, somos um grupo de pessoas que gosta dessa coisa ecoturista e se reúne para fazer caminhadas e outras atividades, para reduzir custos mesmo”.
O fator caminhada curta mais o anúncio de que Lolis carregava um bronzeador na mochila, deram o espírito da primeira experiência ecoturista: um passeio entre amigos na cachoeira
Nossos ecoturistas caminham até a Cachoeira Grande, na Serra do Cipó.
Travessia Foi o que explicou Marcelo ao telefone, antes de marcar
minutos, suficientes para sentir o clima farofa que enchia
um encontro às 9h na entrada do parque. Com o atraso de
de turistas as margens do rio. Raquel, rainha do Cipó - como
uma hora, a Nonada só encontrou dois guardas, uma guia
foi apelidada -, conhecia a tal cachoeira do telefone que, na
local e duas alemãs que não entendiam uma palavra de
verdade, chamava Cachoeira da Chica. “Telefone” era nome
português – e nada do que os funcionários se esforçavam
inventado, de criança.
para explicar. Enquanto Marcelo Pereira e seus 200 ecoturistas ruma-
Foi perfeito. Tirando um casal e uma grande aranha, o lugar era exclusivo do grupo. Quebra de expectativas ecotu-
vam para uma trilha de 8 km até a Cachoeira da Farofa,
rísticas iniciais à parte, aquela dobra de rio propiciou uma
Raquel, profunda conhecedora da região, anunciou seus
tarde bem divertida e diferente de qualquer dia na cidade.
planos para o dia: passar na casa de sua família e depois ir
Nadamos e tomamos sol; alguns levaram mordidas de
até a Cachoeira Grande, a 500 metros de onde se encontra-
piabas, e depois as alimentaram com biscoito; aliás, outros
vam. O fator caminhada curta mais o anúncio de que Lolis
redescobriram os prazeres de comer Aymoré de coco. Lolis
carregava um bronzeador na mochila deram o espírito da
se bronzeou; Mauro, o italiano curioso, finalmente conheceu
primeira experiência ecoturista: um passeio entre amigos
uma cachoeira mineira; Augusto pôde falar sobre Pokémon;
na cachoeira.
Terêncio parecia entretido em sua observação introspectiva da natureza; Mari fotografou; Raquel pôde mostrar aos
Ecoturismo preguiçoso No caminho para a casa da tia da Raquel, um dos
amigos tudo isso; Igor e Luiza tiveram uma experiência ecoturista que se propuseram a buscar pela Nonada.
carros perdeu a entrada certa e deu voltas por mais de meia hora, sem conseguir enxergar a rua mais fácil de ser
Informacoes adicionais
avistada, onde deveriam entrar. “Não acredito que vocês
Gasto com gasolina: 45 reais por carro
não conseguiam ver a rua, foi ridículo”, zombou Raquel
Distância Belo Horizonte – Cipó: 100 km (1h30 de viagem)
quando finalmente nos reunimos, no supermercado local.
Distância entre a entrada do Parque e as Cachoeiras: 500 m
Lá, compramos biscoitos – que se mostrariam muito úteis, para alimentar os pseudo-ecoturistas e também as piabas do Rio Cipó – e água. Conhecidas as casas e tias da Raquel, deixamos os carros por lá e partimos, às 11h, para a “trilha” da vez. No caminho, a maioria passou protetor solar (contra o sol a pino) e esfregou ramo de alecrim no corpo, segundo a lenda, muito eficaz para evitar carrapatos. Menos de meia hora e dois km depois, chegamos à placa que indicava a Cachoeira Grande. O grupo só ficou no local por dez
À esquerda, Terêncio em um dos seus momentos contemplativos. Ao lado, Mauro caminha de volta para a casa da tia de Raquel e, na outra página, a equipe ignora a “farofada” da Cachoeira Grande para aproveitar as águas da Cachoeira da Chica.
35 |
Quebra de expectativas ecoturĂsticas iniciais Ă parte, aquela dobra de rio propiciou uma tarde bem divertida e diferente de qualquer dia na cidade
travessia Dia do Caraca Antes de colocarmos os pés na trilha de 6 km até a Cascatona, a recepcionista da hospedaria do Santuário do Caraça alertou: “é íngreme”. Coube exatamente nas intenções da Nonada de, desta vez, fazer uma atividade que de fato oferecesse algum desafio ao habitual sedentarismo da equipe. Nesse dia eram só Igor, Luiza, Mari e Augusto – todos não praticantes de esportes ou de hábitos remotamente considerados saudáveis. Um quinto protagonista da história é Filipe. Natural de Santa Bárbara, município onde se localiza a reserva, partiu dele a ideia da trilha. “Um roteiro legal seria a Cascatona, que não precisa de guia, e depois a Cascatinha, que é bem na entrada. Uma é mais pela caminhada e pela vista e a outra para nadar”, argumentou. Sugestão acatada, partimos rumo ao percurso, munidos de um pequeno mapa. Descida, subida, pedras, vista bonita, parar e beber água, uma hora passada. “Acho que a gente só andou uns 2 km”, apostou Luiza. A única noção da distância que já havíamos percorrido dependia do cálculo do tempo de caminhada previsto por Filipe, de duas horas e meia. O maior problema daquela trilha foi logo identificado: a completa falta de indicações. Andar no meio da mata, sem qualquer noção de localização ou distância só podia ser perturbador. E a palavra mata é bem empregada aqui: de Mata Atlântica. Alguns trechos de cerrado, mas em sua maioria, a vegetação é fechada e o uso de shorts e bermudas virou motivo de arrependimento. Depois de muito chão (aparentemente) e lamentos irônicos por ninguém carregar um facão, a mata fechada foi pouco perto da insegurança que se instaurou. “Só tem um ponto do caminho que dá pra se perder, mas acho que vocês acham o lugar certo”, dissera Filipe rindo muito no dia anterior. A bifurcação à frente fez o grupo parar por alguns minutos. “Vamos pela esquerda, deve ser por aqui”, comandou Igor. E então, eis que Filipe se enganou. Não sobre o encontrar o caminho certo, mas sobre haver um único ponto de dúvida. Nos deparamos com uma segunda divisão na trilha, que o mapa não dava conta de explicar. “No máximo a gente vai acabar parando em outro lugar, trilha tem que levar a alguma coisa”. Augusto estava certo. Seguimos novamente pela esquerda, intuição precisa, e finalmente encontramos uma placa que apontava para um semiabismo, com a inscrição “Cascatona”. “Pelo que a gente escuta, as trilhas mais difíceis são as do Pico do Sol e Pico do Inficionado. Por isso é necessário o acompanhamento de um guia. Entre as que os turistas podem fazer sozinhos, não tem nenhuma difícil. Quer dizer... Se bem que a Cascatona é sim. A minha preocupação é que quando você chega na cachoeira, tem uma parte bem íngreme. Ali é perigoso, né?”. Quando a bióloga do parque, Foi no Caraça que a equipe Nonada fez a trilha mais longa: 12 km de ida e volta até a Cascatona (foto do meio). Na página ao lado, ainda no começo do caminho, Igor, Luiza e Augusto observam a paisagem entre os vales, sem saber das subidas e descidas íngremes que os esperam.
36 | 37 Andar no meio da mata, sem qualquer noção de localização ou distância só podia ser perturbador Aline Abreu, apontou isso minutos após a caminhada, foi motivo para Luiza e Mari se defenderem das acusações de medrosas saídas das bocas dos meninos. Poucos passos descendo em direção à cachoeira, o
por Augusto entre um enxame de, segundo ela, pequenas
primeiro “o-ou” de Augusto, e Mari logo apelou: “Vocês
abelhas, mas que Igor garante que eram apenas moscas.
podem ir, eu fico aqui esperando”. Levou alguma argumen-
Algum tempo antes, o grupo brincou – nervosamente –
tação, entre promessas de que ela estaria segura, para que
sobre um animal maior ter feito barulho nas imediações.
retomássemos a descida. Luiza não estava muito melhor. O
“Ah, Geraldo. Eles ouviram a onça. Viram uma onça aqui
medo de altura foi o grande obstáculo para as duas garotas
há pouco tempo, vocês acreditam?” Não. Nos recusamos a
naquele momento. “A perna de vocês não para de tremer,
acreditar na constatação do Padre Paulo.
claro que vai ser mais difícil!”, retrucava Igor. Quase meia hora depois, chegamos à queda d’água. O lugar era mesmo muito bonito e o esforço foi
A primeira vez em que pisou no Caraça, Pépe tinha apenas 12 anos de idade. Natural de Dores do Indaiá, ele foi enviado em 1945 ao colégio para meninos que existia lá,
justificado pelos rápidos 40 minutos que ficamos por lá.
antes do espaço dar lugar a uma hospedaria e ao parque.
Mais rápido foi o banho de cachoeira, uma vez que a água
A constante foi sempre o status de Santuário, que torna o
beirava temperaturas glaciais. Alimentados e com energias
Caraça, além de ponto de lazer e turismo ecológico, destino
renovadas – pelo menos pensávamos assim – retomamos
espiritual. “Dá para sentir que tem um clima pesado aqui,
a trilha, de volta às instalações na entrada do parque. A
uma coisa diferente”, refletia Augusto.
subida do mesmo semiabismo se mostrou muito mais fácil,
Pertencente à congregação da Missão dos Padres
e chegamos ao topo em menos da metade do tempo que
Lazaristas e Vicentinos, o Caraça é inteiramente adminis-
levamos no caminho contrário.
trado por padres, que se fazem presentes a todo momento.
E então veio a parte difícil: encarar subidas e mais su-
Naquela noite, no pátio à frente da escadaria da igreja, era
bidas já com os músculos doendo. Paramos algumas vezes,
a vez de Pépe alimentar a maior tradição do parque. “Guará!
cada vez com mais frequência, à medida que o percurso
Guará! Guará!”, gritava.
– que totalizava 12 km – chegava ao fim. Mari, fumante do
– Jerônimo, Francisco, Maria e Marlene, não é?
grupo, foi quem mais teve dificuldades e, ocasionalmente,
– Quase isso, Seu Pépe. Augusto, Igor, Luiza e Mariana.
soltava um “espera um pouco, gente”. A diferença positiva da volta foi a despreocupação com a possibilidade de nos
Será que o lobo demora? – perguntou Mari. – Ih. Se eu fosse vocês iria jantar. Como acabou de
perdermos no caminho. Não aconteceu. Chegamos ao
passar um carro, o lobo fica assustado e aí demora mais de
restaurante a tempo – às 16h, uma hora antes de fechar -
hora pra ele vir.
de pedir um lanche completo, com direito a hambúrguer,
– Nossa, Seu Pépe. A gente tem que voltar pra Belo
pão com linguiça e refrigerante.
Horizonte ainda hoje... Vale a pena esperar?
Enquanto seu lobo não vem
Vou ali dentro passar um e-mail pro lobo vir mais rápido.
– Claro! Vocês já estão aqui, espera mais um pouquinho. “Aaaaaaaaaah! Bicho!” era um grito recorrente vindo da
E-mail enviado ou não, pelo menos mais dois automó-
boca de Luiza. “Tudo bem, não gosto de insetos mesmo e de
veis passaram no local em seguida, o que levou o grupo a
abelha eu tenho pânico”, repetia enquanto era escoltada
desistir de esperar pelo famoso lobo-guará – na noite anterior o animal só apareceu às quatro da manhã. Desde maio de 1982, os padres colocam todas as noites, às 18h30, uma bandeja com carne em frente à igreja. E em todas elas, um lobo – às vezes dois ou mais – aparece para filar a comida, o que já atraiu muita gente ao Caraça. “E também a natureza, reza, história ou só o descanso mesmo”, acrescentou a bióloga do parque. Para a Nonada, restou exatamente isso. Informacoes adicionais Gasto com gasolina: 60 reais por carro Distância Belo Horizonte - Caraça: 120 km (2h30 de viagem) Distância total do circuito da Cascatona: 12 km
Travessia O banho era necessário naquele momento para nos preparar espiritualmente para nosso primeiro grande desafio: montar as barracas no completo breu
Ecoturismo “de verdade” Depois de duas experiências curtas (mas divertidas) de viagens, era hora da Nonada colocar seu plano principal em prática: acampar quatro dias no Parque Estadual de Ibitipoca, uma área de preservação ambiental de 1448 hectares localizada próxima ao município de Lima Duarte, em Minas Gerais. Para esse novo desafio, Luiza, Igor e Mari contaram com duas novas companhias: Ana e Rafael. Também sedentários e nem um pouco ecoturistas, os dois logo se mostraram bastante animados com a possibilidade de nadar em cachoeiras naturais e fotografar belas paisagens. O tempo, porém, não colaborou tanto com eles. O céu nublado de chuva tapou um pouco da luz necessária para os cliques e o frio tornava os banhos de cachoeira uma tarefa só para os mais corajosos. Só que antes de encararmos o clima de final de inverno no alto da serra, tivemos que lidar com outro inimigo poderoso: nossa própria falta de organização. Com o horário de saída marcado para as 10h30, a Nonada só botou o pé na estrada mesmo quatro horas depois. Não bastassem os já rotineiros atrasos para acordar e uma parada desnecessariamente longa no supermercado, ainda fomos surpreendidos por um eterno engarrafamento na saída de Belo Horizonte. No fim das contas, os carros só foram estacionados em Ibitipoca às 20h, quando a escuridão e o silêncio já reinavam sob a área habitada do parque. “Pelo menos a água é quentinha”, constatou Ana aliviada enquanto mergulhava a cabeça no chuveiro aquecido da área de camping. O banho era necessário naquele momento para nos preparar espiritualmente para nosso primeiro grande desafio: montar as barracas no completo breu. Vale ressaltar que nenhum de nós havia feito isso antes e que, depois das dez, é horário de silêncio no camping. Buscamos as barracas no porta-malas e começamos. A lona foi estendida no chão e os materiais retirados da compacta sacolinha. As duas únicas lanternas do grupo, coitadas, se revezavam entre iluminar o manual pouco didático e as quatro extremidades da barraca esticada. “Eu finco a estaca na vertical, na diagonal para dentro ou na diagonal para fora?” “Aquilo é um formigueiro? Se for, não pode montar a barraca aqui!” “Como assim ‘haste transversal’?” “Gente, acho que ouvi um barulho de lobo...” Pobres mochileiros acampados nas outras barracas. Aos poucos, os sussurros quase se escapuliam em gritos, à medida que a barraca não ficava de pé e novas peças eram misteriosamente
38 | 39 encontradas na sacola. Apesar de toda confusão, a primeira barraca foi montada com sucesso. Seria esse um indício da existência de um espírito ecoturista dormente nos viajantes da Nonada? A segunda barraca mostrou que não. Novas peças, mais instruções confusas e uma maldita proteção para chuvas que não se amarrava em lugar nenhum tornaram a segunda montagem tão trabalhosa quanto a primeira. Milagre ou talento inato, fato é que ambas as barracas foram armadas e assim permaneceram durante os quatro dias de acampamento. Uma delas recebeu até um elogio: “Tá vendo, Matheus? Olha que barraca bacana!”, disse Antônio, um estudante que chegou ao Parque um dia depois da Nonada, mas foi embora antes de ver uma das hastes da primeira barraca ceder na parte remendada por fita crepe.
Saudades do McDonald’s Na manhã seguinte, as esperadas reclamações pela barulheira da noite anterior não vieram. Quem apareceu foi um solzinho tímido, que acabou nem ficando para o almoço. Logo às 8h30 da manhã, ele emitia seus primeiros sinais de claridade, incomodando o nosso sono, numa tentativa de nos obrigar a levantar para o primeiro dia de caminhadas. Nesse momento, ainda deitados e cansados do dia anterior, o que passava na cabeça de cada um era que esse papo saudável e aventureiro de ecoturista não passava de uma grande baboseira. Afinal, quem em sã consciência trocaria o conforto da cama quentinha por uma noite de sono numa barraca? Aliás, sono não: sequência curta de cochilos estendidos, pois não havia posição confortável o suficiente naqueles cubículos de pano que permitisse uma dormida de mais de duas horas. Mas, estranhamente, assim que o grupo se colocava de pé, todos os desconfortos sofridos na madrugada eram
À esquerda, uma foto panorâmica do Parque do Ibitipoca e, logo abaixo, o Rio do Salto (ou Rio do Xixi para Luiza) e sua coloração semelhante à de Coca-Cola. Nessa página, a equipe da Nonada encara a trilha do Circuito das Águas em um dia nublado.
Travessia solenemente ignorados e se justificavam pelo simples fato de ser aquela a primeira vez que eles acampavam de verdade. Nada de Toca do Gugu montada no quintal da vovó. Ali, mesmo com toda infraestrutura de apoio do Parque, tínhamos que nos virar sozinhos no mato, tentando, errando e acertando. E era essa pequena sensação de independência, até de certa liberdade, que fazia com que noites mal dormidas, picadas de insetos e qualquer outra desventura se tornassem simbólicas recompensas para aquele momento de novas experiências. Infelizmente, todo esse nobre sentimento de aventura não amenizava nosso sono. Foi preciso um banho para espantar a preguiça, e, em seguida, estávamos todos reunidos para o primeiro café da manhã em Ibitipoca. “Podemos fazer primeiro esse Circuito das Águas, que é o mais curto e o que tem mais atrações”, sugeriu Luiza. O trajeto mais simples do Parque possui 5 km e não oferece tanta dificuldade. A caminhada seguia por uma trilha aberta, que acompanhava paralelamente as águas avermelhadas de quartzito do Rio do Salto. “Lembro de vir aqui quando era pequena. Eu e meus irmãos chamávamos isso de Rio de Xixi”. O comentário de Luiza seria suficiente para destruir toda a beleza da paisagem, mas Igor retrucou: “Pra mim, parece Coca-Cola”. Todos concordaram. Coca-Cola – o “abre-te Sésamo” dos espíritos sedentários adormecidos. McDonald’s, batata frita, ketchup, pizza... Tudo isso vinha a nossas mentes, salivava a boca, mas era doce ilusão: delivery nenhum chegaria até onde estávamos. Ana parecia ansiosa (ou preguiçosa) e repetia a toda hora “quantos metros faltam?” E olha que as atrações do Circuito das Águas são bem próximas umas das outras. A cada dez minutos de caminhada, aparecia uma placa indicando novas cachoeiras, prainhas ou formações rochosas.
Nada de Toca do Gugu montada no quintal da vovó. Ali, mesmo com toda infraestrutura de apoio do Parque, tínhamos que nos virar sozinhos no mato, tentando, errando e acertando
40 | 41
Abaixo, o Rio do Salto segue seu curso natural, enquanto, à esquerda, bem agasalhados, Luiza, Ana, Igor e Rafael descansam em uma pedra do Lago Negro, umas das atrações mais próximas à área de camping do Parque.
Devido ao tempo em que permanecíamos em cada atração, a caminhada foi mais demorada do que previmos, mas ninguém se importou muito. A única reclamação geral foi da água, que estava extremamente gelada. Rafael até tentou um mergulho na Cachoeira dos Macacos, mas não conseguiu molhar muito além da cintura. De volta à área de convivência do camping, decidimos descer até a cidade para almoçar. O vento que soprava já dava indícios de que outra noite fria estava por vir. Em Conceição do Ibitipoca, comemos um PF gigante, compramos um vinho e ainda pedimos um bocado de papelão na padaria, na esperança de que isso pudesse ser usado como forro no chão para diminuir o frio dentro das barracas. Não deu certo, obviamente. Na subida de volta ao Parque, os moletons e casacos já se faziam mais que necessários.
Dentro de um mundo de névoa Dito e feito. Após o anoitecer, não havia blusa, jaqueta, vinho ou chocolate quente que fizesse o frio passar. A
“A gente está dentro de uma nuvem!”, jurou Luiza ao
altitude e o pátio aberto, sem árvores, faziam o vento cortar
colocar a cabeça para fora da barraca. A serração da manhã
de um tanto que até machucava. O jeito era tentar se
parecia vapor de sauna às avessas e tomava todo o Parque.
esquecer dele. Sentados em uma das mesas da área externa
Mari, que havia madrugado para tentar fotografar o nascer
da lanchonete, conversamos, bebemos, comemos e jogamos
do sol, voltou decepcionada: no meio daquela neblina, não
baralho. Antônio e Matheus, aqueles dois que elogiaram as
dava para ver nada. Para piorar a situação, chovia.
barracas, também apareceram por lá e o papo rendeu até
O terceiro dia da Nonada em Ibitipoca parecia aquelas
mais tarde. Algumas risadas mais altas escapavam depois
entediantes tardes chuvosas de sábado, só que sem
do horário de silêncio, mas elas acabavam virando motivo
televisão. “Ninguém trouxe um DVD?”, brincou Rafael. A
de mais risadas. Pelo menos por alguns momentos, as boas
vontade de sair das barracas chegava a ser menor que a
companhias conseguiam aquecer um pouco do frio que o
temperatura do lado de fora. Por fim, decidimos conhecer o
vento trazia.
Centro de Visitantes e algumas atrações mais próximas.
De volta às barracas, a baixa temperatura ainda era um
A primeira tentativa foi a Gruta dos Coelhos, que fica
incômodo. Mari foi quem mais reclamou. Mais até que a
antes da área de camping. Não foi uma boa ideia. A cavida-
Ana, que passou aperto com seus dois casaquinhos finos.
de escura e apertada assustava, de modo que era impossível
Pelo menos, as duas haviam levado saco de dormir. Rafael
seguir em frente só com uma lanterna. A outra lanterna
teve que se virar só com edredons e Luiza fez de um mole-
do grupo, que Igor havia comprado pouco antes de saírem
tom seu travesseiro. E também não havia colchão de ar para
de Belo Horizonte, havia sido sequestrada na noite anterior
todo mundo: a cama de Igor acabou sendo um colchonete
enquanto os meninos tomavam banho. Seu desapareci-
velho mais o tapete de ioga da mãe do Rafael.
mento levou o repórter a um estado quase irreversível
“A previsão do tempo disse que fez sete graus aí em
de depressão crônica, que era sentido diretamente pelos
Ibitipoca na última madrugada”, disse o pai de Luiza em
outros membros do grupo, obrigados a ouvir incansáveis
uma ligação no dia seguinte. Ninguém ousou duvidar.
reclamações e choramingos. E a falta que ela fez na Gruta
Apesar de tudo, dormir não era tão difícil, já que todo
do Coelho só serviu para piorar a situação.
mundo ficava exausto por conta das caminhadas. Igor, por
De lá, Igor, Luiza e Mari foram até o Centro de Visitantes,
exemplo, já começava a roncar 30 segundos depois do boa
enquanto Ana e Rafael optaram por voltarem às barracas. O
noite. “A vida de esquimó deve ser muito difícil”, ele pensa-
trio foi recebido por Rose Belcavelo, assistente administrati-
va enquanto tentava descobrir uma posição minimamente
va do Parque e salvadora da Nonada. Foi ela quem garantiu
confortável naquele apertado protótipo de iglu.
as vagas para a revista no camping (eles não trabalham
Sobrevivemos, mas levamos um susto ao acordar.
com reserva) e autorizou a entrada dos carros após as 17h,
Editoria
Chega de viagens “quase” ecoturistas. Era hora de tentar outra trilha “de verdade”
horário em que o Parque fecha. Apesar de ser um espaço aberto à visitação, Ibitipoca possui normas restritas de funcionamento. Por dia, é permitida a entrada de 300 viajantes no máximo. Em fins de semana e feriados, o número sobe para 800. Na área de camping, só podem ser montadas 15 barracas e o número de campistas não deve ultrapassar 45. “Em um parque, é preciso conciliar o uso público com a preservação, interferindo o mínimo possível nesse ambiente natural. Por isso as normas são rígidas”, defendeu João Carlos Oliveira, gerente de Ibitipoca. Além de funcionar como sede administrativa, o Centro de Visitantes guarda diversos detalhes sobre a história do Parque, que foi criado em 1973. O lugar é todo decorado com peças de artesanato local e belíssimas fotografias tiradas pela própria Rose. Foi numa conversa sobre essas fotos que ela alertou a Mari: “Nem adianta tentar fazer os circuitos do Pico do Pião e da Janela do Céu hoje porque, com esse tempo, vocês vão chegar lá e não vão aproveitar nada da vista, muito menos tirar boas fotos”. A viagem então parecia perdida, afinal já tínhamos decidido ir embora sem atrasos no dia seguinte. No caminho de volta à área principal do camping, a Nonada reencontrou Antônio e Matheus. “Acabamos de voltar do Pico do Pião. Desistimos no meio do caminho porque a serração estava muito alta”, eles disseram. Era a confirmação do conselho de Rose. Em uma tentativa de aproveitar o resto do dia, nos reunimos e fomos até o Lago dos Espelhos, que é chamado assim por refletir o céu em suas águas. A camada cinza de nuvens impediu que a procedência do nome fosse verificada, mas a sensação de silêncio que o barulho da trilha do rio fazia foi suficiente para justificar a visita. Quando a noite chegou, voltamos às barracas, conversamos, rimos e dormimos.
Adeus vida nova “Vamos! É o último dia aqui! Precisamos ser mais ecoturistas!” Igor tentava animar Ana e Rafael. Era inútil. Acima, Igor, Luiza e Mari chegam ao topo do Pico do Pião depois de caminharem 5 km. À direita, na outra página, a última foto tirada antes da barraca ter sido desmontada e a Nonada voltar para casa.
Nenhum dos dois estava convencido a se aventurar no ousado plano final da viagem: aproveitar o retorno do Sol para subir até o Pico do Pião e voltar antes da uma da tarde. Igor e Luiza tinham essa dívida com eles próprios. Chega de viagens “quase” ecoturistas. Era hora de tentar outra trilha “de verdade”. Mari resolveu acompanhá-los e partiram os três para encararem os 4 km de distância até o topo
42 | 43 do pico. E, desde o começo, a trilha foi bastante puxada. Era
a vista. Parece mesmo uma janela do céu”. Bateu uma
preciso atravessar uma sequência de morros até chegar
vontade de ir, mas era tarde demais para encarar os 16
lá em cima, por isso o percurso se alternava entre subida
km de ida e volta do circuito Janela do Céu. Em uma hora e quarenta no total, Luiza, Mari e Igor
e descida, subida e descida. Na verdade, mais subida, pois precisavam chegar até o alto dos 1722 m de altitude do pico.
chegaram à Prainha das Elfas, próxima ao restaurante, onde encontraram Ana e Rafael. Relaxamos nas águas
Foram necessários dois morros para realmente cansar. Mari teve que guardar a câmera para descansar o pes-
calmas e voltamos para o camping. Hora de desmontar
coço e evitar parar toda hora para fotografar. Durante a
as barracas. “Ah, se montar fosse tão fácil igual é
caminhada, falávamos sobre as outras viagens e qualquer
desmontar...”, suspirou Rafael. Não era só mais fácil. Era
outra futilidade. A primeira parte da ida, uma trilha de
triste também. “Vamos tirar uma última foto daqui de
terra cercada por pequenas árvores, foi vencida sem tantos
dentro”. E Mari fotografou Igor, Luiza e Ana. Em poucos segundos, as barracas viraram plástico
problemas. Mas, a partir do momento em que o caminho se transformou em pedras e areia cinza, começamos a
no chão. Veio um vazio. Era como se estivéssemos des-
sentir a distância que já havíamos percorrido. O Sol parecia
montando nossas próprias casas. Em alguns instantes
queimar um pouco mais de perto e a vegetação perdia cor e
não estaríamos mais ali. Sentimos que viajar era isso:
densidade. Até pensamos em desistir e voltar. “Não vai dar
montar e desmontar sua casa várias e várias vezes, em
tempo”. Mas ao olhar para trás, vimos o tanto que já havia
lugares e momentos diferentes. Ir embora era empa-
sido trilhado e sentimos que voltar seria desprezar todo
cotar tudo e guardar dentro de si. Ligamos os carros e
esforço despendido até aquele ponto.
partimos: era hora de voltar para casa.
E subimos. A área do camping quase sumia na vista de tão pequenina. E mais de uma hora e meia depois de
Informacoes adicionais
termos saído, avistamos o topo do Pico do Pião. Ainda
Gasto com gasolina: 120 reais por carro
precisávamos percorrer a trilha em torno do cume, mas
Distância Belo Horizonte – Ibitipoca: 350 km (4h30 de viagem)
pelo menos as ladeiras íngremes haviam terminado. Mais
Distância percorrida nas trilhas:
alguns minutos e, enfim, chegamos. “Aaaaah!”, gritamos
Circuito das Águas: 5 km
lá de cima. Igor talhou o nome da Nonada em um pedaço
Pico do Pião: 10 km
de madeira enquanto Mari tirava suas fotos. “Que bonito”, contemplou Luiza ao avistar vales, montanhas e casinhas minúsculas do Parque. A perna doía, mas nenhum de nós percebia. Aquela sensação era melhor que a de resolver um problema de função logarítmica. Só que o tempo era curto, e logo chegou a hora de voltar. Como era de se esperar, a descida foi bem mais fácil. No final do caminho, encontramos um casal que nos contou sobre a outra grande trilha do Parque. “Lá no topo tem um ponto onde a mata forma uma espécie de moldura para
Gasto com gasolina: 120 reais Distância Belo Horizonte – Parque do Ibitipoca: 350 km (4h30 de viagem) Distância percorrida nas trilhas: Circuito das Águas: 5 km Pico do Pião: 10 km
Travessia
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Por dentro de
Portugal
Bacalhau, Camões, bigodes, Manuel, pastel de Belém e Cristiano Ronaldo. De tudo isso você já ouviu falar. Mas e o resto de Portugal? Para dar conta de retratar o interior desse país, que só parece pequeno, a Nonada convidou quatro repórteres. Com jeitos bem diferentes, cada um deles descobriu uma faceta distinta de Portugal. Suas viagens e impressões você confere nas próximas páginas.
Danielle Pinto
Entrada da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, a mais antiga de Portugal, fundada em 1290.
Editoria
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Quando Vicente deu a notícia de que ficaria seis meses em Portugal, sabíamos que a primeira pauta da revista estava definida. Era tudo o que precisávamos: nosso repórter viajando para aquele país de que ouvimos falar desde quando, sentados na carteira da escola, nossos pés mal alcançavam o chão. Munido de boas expectativas e muita força de vontade, Vicente não esperou nem uma semana para pedir socorro. Nas poucas semanas entre sua chegada e o fechamento desta edição, seria impossível percorrer tantas cidades no interior e explorar cada beiradinha das famosas Braga e Coimbra. Portugal mostrou-se muito maior do que havíamos imaginado. A solução foi recrutar mais três viajantes. Léo foi intercambista antes de Vicente. Chegou em Lisboa no dia 4 de setembro de 2009 e ficou por mais seis meses. Antes de se aventurar por outros países da Europa, passou por Sintra, cidade a 35 km da capital, e logo depois por Óbidos. Dois lugares famosos por sua arquitetura e pontos de partida do roteiro traçado aqui na Nonada. O segundo da lista é Renné, que durante um ano viveu em Braga, cidade mais antiga de Portugal. Entre livros, história e muita observação, Renné se dedicou principalmente à sua pesquisa de doutorado, mas, sempre que podia, arrumava tempo para descobrir as delícias gastronômicas lusitanas. Em suas viagens (pelo blog www.entrecaminhos. wordpress.com é possível se inteirar ainda mais), ele visitou Guimarães, considerada o berço da nação portuguesa. Ao contrário de Léo e Renné, Paula foi a Portugal exclusivamente a passeio. Morando em Weimer, na Alemanha, ela fugiu para o sul por alguns dias, para a costa alentejana em Zambujeira do Mar. O vilarejo de muitas praias vira um importante ponto turístico lusitano durante o verão, também palco do Festival Sudoeste, um dos maiores eventos musicais do país. E Vicente, que deu início a tudo, é quem finaliza a matéria. Ele agora é um dos milhares de estudantes que fazem de Coimbra um importante centro universitário de Portugal, repleto de bares, festas e banhado pelas águas do Rio Mondego. Quatro viajantes nos apresentam suas experiências, localizadas dentro dos mesmos 92 mil km² do mapa. Descubra com a Nonada as descobertas desses repórteres em suas viagens pelo interior lusitano.
De cima para baixo: Vicente, Léo, Paula e Renné. Quatro visões diferentes de Portugal.
travessia
Sintra e Óbidos
Entre a Idade Média e a contemporaneidade Texto de Léo Rodrigues
De repente, senti-me no topo do velho mundo, nos pri-
do romantismo arquitetônico do século XIX. Eleito em
mórdios da história. Foi uma longa subida para chegar ali,
2006 uma das sete maravilhas de Portugal e considerado
tendo a Europa diante dos meus pés e a Idade Média ao
patrimônio da humanidade pela Unesco, é sem dúvida o
meu redor. Nem mesmo toda a expectativa criada durante
lugar mais luxuoso em que já pisei. Tive a sensação de estar
o período preparatório dos meus seis meses de intercâmbio
dentro de um filme de época, percorrendo salões, quartos e
foi capaz de me antecipar as emoções que vieram à tona
varandas e tendo a impressão de ver condes e fidalgos que
naquele momento. Não fazia nem um mês que eu havia
certamente tomavam algumas decisões que influenciariam
desembarcado em terras lusitanas e era a primeira vez que
os rumos da história brasileira.
saía de Lisboa. Tomei mesmo um susto quando percebi que
Terminado o passeio, lembrei da passagem de comboio
havia adentrado uma construção erguida entre os séculos
(trem) de Lisboa a Sintra, que comprei por 1,90 euros. Fui in-
VIII e IX.
formado que a viagem durava 40 minutos. A verdade é que
Falo do Castelo dos Mouros, no município de Sintra,
foi um transporte entre séculos diversos que se misturavam
uma fortaleza localizada a 35 km de Lisboa, utilizada como
em um mesmo lugar. Aquela experiência serviu de aviso
vigilância dos arredores. Impressiona a edificação em
prévio para o que viria dali pra frente.
pedras de grande porte, que provavelmente foram transportadas pelos 3 km de subida, a base de muita força muscular dos guerreiros mouros. O Castelo foi reconquistado por D. Afonso Henriques
Muros para o passado Como uma boa introdução, tudo o que conheci nos próximos meses me remetia a Sintra. A cidade abriu as portas
no ano de 1147. E com alguns metros de caminhada, logo
para que eu tivesse curiosidade de me dirigir a lugares
percebi que estava quase dez séculos mais tarde. É que
que não são de tão fácil acesso, como Óbidos, que apesar
o Palácio da Pena, que divide os cumes da montanha
de receber muitos visitantes, é difícil de ser alcançada por
com o Castelo, confirma a expulsão dos mouros dali e se
transporte público. Não foi impedimento para mim. Aluguei
apresenta como uma das mais representativas expressões
um carro com amigos e fui. A cidade é um verdadeiro burgo, cercada por um muro, que me fez novamente voltar à Idade Média, como se tudo ali estivesse parcialmente parado no tempo. Suas ruas estreitas, onde não passam carros (devem ficar do lado de fora da fortificação), dão uma impressão de que, não fossem certos confortos criados pela tecnologia, os cerca de 3,1 mil habitantes viveriam mais ou menos como os 161 indivíduos que lá residiam no ano de 1527: uma sociabilidade intensa, tranquilidade enorme e um tempo que parece não passar, como se cada dia fosse durar uma agradável eternidade. A alguns quilômetros dali, a cidade que guarda o caixão de D. Pedro I nos receberia com uma exposição. A Mostra de Doces de Alcobaça, reunindo peculiaridades de cada região do país, nos deu a oportunidade de experimentar variados sabores, sob o teto de um mosteiro gótico do século XII (também uma das sete maravilhas locais). Percebi aí que a vocação de Portugal para esculpir quitutes ia muito além do pastel de Belém.
À esquerda, a vista sobre Óbidos. Na outra página, no topo, os palácios de Sintra que serviram de cenário para o luxuoso filme de época que passou na cabeça de Léo. Abaixo, o estudante na Festa do Avante!, evento cultural organizado pelo Partido Comunista Português desde 1976. Todos podem participar independentemente da orientação política.
Marcela Prieri
Marcela Prieri
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de cerca de 400 mil pessoas de todas as faixas etárias apreciava danças folclóricas regionais, alimentos típicos, exposições artísticas e shows musicais que sintetizam uma tradição que está sempre se renovando. Ao mesmo tempo, manifestações culturais e políticas clamam por um país mais justo, fraterno e menos desigual.
Portugal nem tão distante Viajar por Portugal nos mostra que há outras maneiras
Em que pesem suas distintas trajetórias históricas, talvez os encontros e desencontros de Portugal e Brasil os
de conhecer sua história, superando as limitações e restrições
fazem mais próximos do que sugere esse mar que nos sepa-
dos livros de escola que, muitas vezes, nos dão a impressão
ra. É como se os entrecruzamentos culturais de influência
que o país se resume a Lisboa, Porto e Coimbra. A opressão
mútua nos transportassem para realidades que apresentam
medieval, o imperialismo da nobreza lusitana ávida por
situações comuns a serem superadas. E aguardassem o dia
novas colônias, o heroísmo de pobres marujos lançados
prenunciado por Chico Buarque em que, numa pororoca,
ao mar ou a força dos soldados que depuseram Salazar
o Rio Amazonas se encontraria com o Rio Tejo, seguindo
na Revolução dos Cravos certamente se fizeram sentir na
ambos em direção ao futuro.
história de cada uma das pequenas cidades. Claro que os centros urbanos nos oferecem experiências incríveis, e minha estadia de meio ano na capital foi suficiente para me deixar deslumbrado por aquele pontinho no de fazer os meus pensamentos e as minhas surpresas serem digeridas e melhor assimiladas enquanto apreciava a vista do Rio Tejo sentado no Miradouro do Adamastor ou tomando um imperial (nosso chope) nas ruas apertadas do Bairro Alto. O interessante é que, a cada dose de séculos VIII, IX, X etc., eu retornava para a contemporaneidade globalizada. E em plena Lisboa me deparava com o meu Brasil, nos sambas tocados em bares, nas feijoadas servidas em restaurantes, nos comentários de portugueses sobre futebol, filmes e novelas tupiniquins. Esses cruzamentos temporais me lembraram o primeiro dia em Portugal, quando fui direto para a Festa do Avante, organizada pelo Partido Comunista Português (PCP). Naquele setembro, ao longo de três dias, um público
Arquivo pessoal
mapa. Entre umas e outras viagens, eu não poderia deixar
Travessia
Guimarães e Braga Onde tudo começou Texto de Renné França
O bacalhau estava mergulhado em uma travessa funda,
local. As construções circulares de pedra remetem a algum
coberto por batatas e rodeado por broa. Eu, que nunca
misticismo ancestral que se sente no ar do lugar.
gostei do peixe, olhei impressionado para a abundância de
Braga foi fundada com o nome de Bracara Augusta, e no
carne, muito diferente daquela casca salgada que comemos
seu solo se encontram vestígios dessa época de dominação
no Brasil. Meu avô iria adorar aquilo. Depois de uma bela
romana. Aproveitando mais uma vez as gratuitas manhãs
entrada com moelas e pão, pensei que nem iria querer
de domingo, visitei o museu Dom Diogo de Sousa, que conta
provar o tradicional prato da culinária portuguesa. Mas o
as descobertas arqueológicas na cidade. Ao fim da visita, o
cheiro estava delicioso e o gosto na boca do vinho tinto da
museu possui um maravilhoso restaurante self service, algo
casa convidava para uma bela posta de bacalhau. Por fim,
difícil de ser encontrado em Portugal.
devorei tudo, enquanto acompanhava a reprise de um jogo do campeonato português pela televisão pendurada na
Durante uma semana de maio, Braga volta ao Império Romano, com pessoas fantasiadas. Virgens vestais falando
eu estava: Mumadona. Foi no século X que a condessa Mumadona Dias mandou construir por ali um mosteiro que se tornou um pólo de atração, fazendo a população se fixar na região e dando
Arquivo pessoal
parede. O nome do prato leva o nome do restaurante onde
origem à cidade de Guimarães. Hoje um dos pontos turísticos mais visitados de Portugal, Guimarães é conhecida como “berço da nação” por ter sido a cidade onde nasceu o primeiro rei português, Afonso Henriques. E o próprio está lá, em pé, verde e imponente logo após a praça localizada em frente ao restaurante Mumadona. Apesar de Coimbra também reivindicar este nascimento, a prova definitiva das origens do homem que deu início à nação portuguesa está logo atrás de sua estátua de bronze. O Castelo de Guimarães é o local mais visitado da cidade por ter sido a casa dos pais de Afonso Henriques e onde o próprio teria nascido. Os portugueses brincam que brasileiro adora ver castelo, mas mesmo a carapuça me servindo, o de Guimarães não é obrigatório. O melhor é aproveitar a manhã de domingo para entrar de graça... No centro histórico da cidade, meu lugar favorito é a Praça das Oliveiras, onde há vários restaurantes com É agradável para tomar cerveja e, durante o verão, filmes são projetados nas suas paredes em deliciosas sessões de cinema.
Um self-service na Roma antiga Na rodoviária de Guimarães você pode pegar, por pouco mais de dois euros, o ônibus para a mais antiga cidade portuguesa, Braga. Separadas por apenas 25km de distância, as duas cidades possuem no meio do caminho um tesouro histórico desconhecido até mesmo pelos portugueses. Na Citânia de Briteiros, caminhei pelas belas ruínas do que um dia foi um povoado celta, antes dos romanos chegarem ao
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mesas colocadas ao redor da árvore que dá nome ao lugar.
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no celular, legionários fumando, senadores romanos com fone de ouvido. Nas tabernas, mesas longas, cerveja, vinho, muita carne e teatro, malabarismo, dança, música. Tudo servido em copos e pratos de barro, e talheres de madeira. No mercado, armaduras, doces e bebidas como hidromel. À noite, cortejos de fantasia e luta de gladiadores na praça. Além da herança romana, Braga mistura seu centro medieval com belas igrejas barrocas, como a Sé. Tão antiga que deu origem à expressão portuguesa “mais velho que a Sé de Braga”, a igreja do século XII contém os túmulos dos pais do rei Afonso Henriques. Meu restaurante favorito na cidade é o Velhos Tempos, onde se saboreia o arroz de pato, acompanhado pelo tradicional vinho verde do Minho, bem gelado. Para uma cerveja refrescante no verão, eu fugia do óbvio e ia sempre ao escondido Portugália. Lá, o fino (como o chope é conhecido em alguns lugares da região central de Portugal) custa 60 centavos... Em um domingo, depois de vários 60 centavos gastos, atravessei a cidade até um dos estádios de futebol mais bonitos do mundo. Casa do Sporting Braga, o AXA foi construído dentro de uma pedreira e não possui arquibancadas atrás dos gols, mas um enorme paredão de rocha. Com tanta coisa para ver, comer e beber, pode até parecer difícil escolher entre Braga e Guimarães. Mas as cidades são tão próximas que, no fim das contas, a decisão pode ficar de lado. É só ir nas duas.
Viagem no tempo em Portugal: acima, as construções celtas em Citânia de Britaneiros e a festa romana em Braga. Na outra página, Renné posa em frente ao Castelo de Guimarães e, abaixo, sentado em um dos restaurantes locais, registra o movimento na Praça das Oliveiras.
Travessia
Zambujeira do Mar Jeitinho português Texto de Paula Lanza
Comprometi-me a relatar minha viagem a Zambujeira do Mar, cidade na região do Alentejo, na costa atlântica de Portugal, mas quando abri o arquivo de Word em branco me deu um desespero: havia esquecido todos os nomes de bares, ruas, comidas típicas, praias... Acho que meu esquecimento se deve ao Festival Sudoeste 2009, o maior evento Em Zambujeira aprendi que, assim como no Brasil, você vai ver carros passando de janelas abertas, tocando funk carioca na maior altura. As pessoas são mais saradas e bonitas do que as que se exibem nas praias do Rio de Janeiro – a propósito, passei a maior vergonha com minha forma e cor de mulher da Renascença. Você também vai perceber que as mulheres que fazem topless são sempre espanholas e não portuguesas, e os óculos modelo Wayfarer são mato nas praias de lá, quando no Brasil ainda eram chamados de “óculos do Zé Bonitinho”. Aprendi que o pôr-do-sol no mar mais lindo do mundo é lá – além de ser o último do dia europeu – e que a bebida Amêndoa Amarga é uma versão mais gostosa e mais barata do Amaretto (um tipo de licor italiano de amêndoas). Descobri que presunto é fiambre, que presunto tipo parma é presunto e que o melhor jeito de não tomar prejuízo por causa da cerveja cara é aplicando o golpe português do ice tea. Arquivo pessoal
Arquivo pessoal
musical lusitano, que acontece todo mês de agosto.
O pôr-do-sol sereno e as bonitas casas vernaculares portuguesas de Zambujeira do Mar até tentam, mas não conseguem disfarçar a grande festança que é o Festival Sudoeste, um dos maiores eventos de música de Portugal. Paula e seus amigos (à esquerda, no alto), aproveitaram o festival ao som do kuduro e de muita Amêndoa Amarga.
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O truque é o seguinte: uma pessoa, de preferência do sexo feminino, deve pedir pelo menos cinco cervejas (para valer o risco) e, quando o gajo (rapaz) do estande terminar de encher todos os copos, ela deve dizer: “Ah! E um ice tea também!”. No momento em que ele se virar para procurar a bebida, todos os cúmplices da farsa devem pegar as cervejas no balcão, e a gaja sumir em meio às milhares de pessoas presentes no Festival. Ninguém sai no prejuízo, pois os vendedores não serão punidos, já que não há como controlar a saída de cerveja (essa já é um absurdo de cara). E os impostores farão valer os 80 euros pagos somente de entrada para esses dias de shows. Mas a descoberta mais fixe (legal) foi no meu primeiro dia de Festival Sudoeste. Confesso que no começo estava um pouco desanimada de ir quatro dias seguidos ao festival com um grupo de dez homens extra-sensíveis a ferormônios femininos. Mas quando adentrei o grande portal do evento, minhas articulações foram seduzidas pelo ritmo da banda Buraka Som Sistema e, foi nesse dia, que me apaixonei pelo kuduro. Melhor dizendo, kuduro progressivo ou lisboeta, que, apesar de manter a ginga angolana, é produzido com os aparatos técnicos mais modernos, geralmente nos subúrbios de Lisboa. A experiência com o Buraka Som Sistema foi singular. Depois deles, as apresentações do Basement Jaxx e do Mad Caddies foram “boazinhas”. Em suma, é preciso muita disposição para aproveitar tantos dias e horas de música sem parar. Eu fiquei hospedada em uma casa de praia super confortável, dormia até tarde sem barulho algum para incomodar e mesmo assim ficava quebrada. Imagine as pessoas acampadas na Herdade da Casa Branca (local do evento em Zambujeira do Mar), aguentando um batidão na cabeça o tempo inteiro, sem contar a convivência com o cheiro horroroso dos banheiros químicos. A experiência do Sudoeste valeu pelo kuduro. Se algum dia voltar a Zambujeira do Mar, gostaria de aproveitar melhor meu tempo para curtir as praias maravilhosas que a cidade oferece e tomar uma ou, melhor, várias doses de Amêndoa Amarga com gelo e limão siciliano, vendo o pôr-do-sol alentejano. Para mim, que tenho o sonho de conhecer a Grécia, Zambujeira conseguiu matar um pouco essa vontade, com suas inúmeras casas brancas – as famosas casas vernaculares alentejanas – e seus penhascos monumentais. Depois de umas e outras você vai achar que está em Santorini. E o melhor de tudo: vai se perguntar por que consegue se comunicar com as pessoas com tanta facilidade!
Travessia
Coimbra
À sombra da universidade Texto de Vicente Cardoso
Dá a impressão de que a Universidade impera sobre a cidade de Coimbra. Soberana na paisagem central, a torre da Faculdade de Direito, quase 500 anos, é o último ponto antes do céu quando se olha dos mais diversos locais. É como se a disposição geográfica anunciasse a organização da vida social, dominada pela presença marcante, agitada e por vezes quase opressiva dos universitários. Para identificar essa parcela da população conimbricense, o traje dos estudantes veteranos é um facilitador. Para os homens, calça, para as mulheres, saia, e o resto da vestimenta é basicamente igual: camisa social branca, colete, paletó e gravata pretos, tudo coberto por uma distinta capa negra. Quem visitar a cidade em período letivo certamente irá vê-los a ponto de açoitar os calouros recém-chegados – na variante lusitana, caloiros. Verdade que não chega ao açoite, mas o ritual de recepção e passagem, aqui chamado de praxe, é muito mais duro e duradouro que o trote praticado no Brasil. Ouvi relato sobre uma turma de caloiros que, para subir as escadas monumentais da Universidade, com seus 125 subir novamente e enfim avançar. O mesmo com os outros 100 degraus, diariamente, durante um semestre. Maurício, 17 anos, caloiro venezuelano do curso de Jornalismo, até entrou no clima da praxe, mas acha que as brincadeiras
Danielle Pinto
degraus, precisava subir 25, depois descê-los, para então
Danielle Pinto
Ao lado, a Torre da Faculdade de Direito vigia toda a cidade de Coimbra, um dos mais importantes pólos universitários do país. Vicente, que está lá em intercâmbio, garante: “São os estudantes que ditam o ritmo da vida local”.
54 | 55 perdem a graça com a insistência. “Ficar abraçado a uma
nas férias, os estudantes viajam e vira cidade fantasma.
árvore dizendo ‘Eu amo a natureza!’ por alguns minutos,
Durante as aulas, são eles quem ditam o ritmo da vida
tudo bem. O problema é quando já cansou e ainda querem
local, pelo menos nos pontos mais tradicionais da cidade.
mais 20 minutos disso”.
Os donos da rua Em fila, a turma de caloiros esperava pelo constrangimento da vez no meio de um cruzamento, fechando o trânsito por alguns minutos. Me impressionou ter ouvido
Três programas marginais Para fugir um pouco da efervescência universitária, encontrei alternativas margeando o Mondego, rio que corta a cidade de Coimbra. A 10 minutos de táxi do centro, mas também acessível
muito pouca buzina dos carros que eram impedidos de
de ônibus, chega-se a uma praia fluvial do Mondego.
seguir. Parecia mesmo que os estudantes eram os donos
Corrente calma, água pouco acima do umbigo, faixa de
da rua. Dona Fernandinha, de aparentemente 70 anos,
areia razoavelmente larga. Programa sossegado, que
todos vividos na cidade, lamenta que “Coimbra não é mais
combinou bastante com a ideia de voltar a pé. Em uma
a mesma”. Hoje em dia, os estudantes estariam “de festa
caminhada de quase uma hora, foi possível conhecer um
todos os dias. É normal fazer uma farrinha nos finais de
espaço entre o urbano e o rural, onde toda casa aproveitava
semana, isso sempre houve, mas atualmente é exagerado.
um terreno ao fundo para cultivar uma horta ou um pomar.
Vejo da janela até mesmo as raparigas embriagadas, mais
Das culturas de quintal, fomos agraciados por videiras que
do que os rapazes, e isso em outros tempos não existia”.
cresceram à beira da estrada, que nos ofertavam generosos
Para aumentar lamentos como o de Dona Fernandinha, a vida em festa dos universitários vara a madrugada, tendo
cachos de uva em vários pontos do caminho. Seguindo o curso do Mondego, de volta à zona central
pelo menos dois pontos de concentração. A Praça da Sé
de Coimbra, encontram-se os bares das docas. Numa noite
Velha é dominada pelos moradores da “Casa da Dona Rosa”,
de domingo, foi por ali que ouvi um excelente cantor de
senhoria setentona com dezenas de quartos alugados na
banquinho e violão - entre o rock e o blues, coisa muito
região, a maioria para brasileiros. Ali, as atrações principais
melhor do que já havia ouvido nos outros programas na
são os bares Bigorna (com o mais óbvio da música pop do
cidade. Mas o avanço na qualidade musical tinha reflexos
momento e de todos os tempos, além de um fino de chope
nos preços do cardápio.
a meio euro) e o Cabido (para matar a saudade do Brasil ao
E como todo bom rio, o Mondego chega ao mar, preci-
som de Ivete Sangalo e Claudinho e Buchecha, bebendo um
samente na cidade de Figueira da Foz. Chegando à praia
litro de sangria a um euro).
de Cabedelo, a mais recomendada, fui surpreendido por
A Praça da República também abriga universitários
um campeonato de surf, que fez da paisagem algo ainda
bebendo, pulando e cantando pelas ruas, circulando entre
melhor. O pôr-do-sol ali, atrás de um forte que embarreira
os bares e boates da região. A música eletrônica, que é a
o mar, foi uma coisa linda, que valeu o risco de perder
cara da juventude europeia, domina a maioria dos ambien-
o último trem de volta para Coimbra - chegamos a um
tes, o que me repeliu um pouco. Para mim, destacou-se
minuto do embarque!
entre tudo o Feito Conceito, que à noite é bar, mas é salão de beleza e loja de roupas de manhã e à tarde. A multifuncionalidade dá uma aparência peculiar ao local, que combina com a música alternativa que toca ali. E o garçom compulsivo por limpar cinzeiros, para mim é uma ótima imagem para traduzir a presteza do serviço. No calendário anual, também há dois pontos de concentração. No primeiro semestre acadêmico, o segundo do ano, os caloiros são recebidos com a Festa da Latas e Imposição de Insígnias. No segundo semestre, em maio, os veteranos se despedem na Queima das Fitas - esta provoca até interrupção no calendário oficial da Universidade. Duas festas tradicionalíssimas, mas que parecem ter tomado um caráter comercial muito grande também. Falar das duas mereceria um relato muito maior. A recomendação fundamental é que, para quem se interessa pelo clima de agitação dos universitários, programar uma visita para essas datas é indispensável. Mas para quem, pelo contrário, prefere fugir disso, o ideal é evitar os eventos, pois a cidade parece existir em função deles.
Marcela Prieri
Coimbra é realmente como já haviam me antecipado:
Mochilagem
Ops! E agora? Era a viagem da sua vida. Você juntou grana, pagou passagem, arrumou as malas e foi. Chegando lá... Putz! Tudo começa a dar errado. Mas não se preocupe, você não é o único. Conheça quatro histórias de gente que passou por casos assim e hoje dá risada do que aconteceu. Texto de igor lage
Perrengue na viagem todo mundo passa.
Tatiana Mi
tre
O problema é dar de cara com eles logo na chegada ao destino. Pior do que isso, só se você estiver em um povoadozinho no meio do Peru, ilhado pela cheia do rio. O turismólogo Gabriel Barbosa que o diga. Quando saiu de Belo Horizonte com três amigos no início de janeiro para fazer um mochilão pela América Latina, ele nunca poderia imaginar que ficaria seis dias preso em Águas Calientes – e que seria notícia nos principais telejornais do país. “Nós pretendíamos dormir
Tatiana Mitre
lá só por uma noite e depois seguir viagem”, afirma. Águas Calientes é um pequeno vilarejo próximo às ruínas de Machu Picchu, onde os viajantes fazem uma espécie de pit stop antes de seguir para a antiga cidade dos Incas. O povoado, também conhecido como Machu Picchu Pueblo, foi construído em 1911 às margens do caudaloso Rio Urubamba, o grande vilão dessa história. Após viajarem dois dias a pé e mais um de bicicleta (eles não quiseram pegar o trem que Refeição oferecida pelo governo boliviano aos viajantes ilhados. Mais acima, em Águas Calientes, eles se reúnem na praça principal do vilarejo.
sai de Cusco), Gabriel e seus amigos chegaram ao vilarejo, onde passaram a noite. Às quatro da manhã, começaram a subida em direção a Machu Picchu. Depois de meia hora nas ruínas, o guia soltou a bomba: o Urubamba havia subido mais que o esperado e não era possível
gABRIEL E SEUS AMIGOS DESCOBRIRAM QUE NÃO HAVIA COMO SAIR DO VILAREJO E QUE PRECISARIAM BATALHAR POR UM LUGAR PARA DORMIR
sair de Águas Calientes. “Vários turistas que estavam com a gente ficaram desesperados e desceram”, lembra Gabriel. Como queriam aproveitar mais o lugar, os quatro foram falar com um guarda florestal, que os aconselhou a permanecer lá em cima porque era mais seguro. “Foi a melhor coisa que fizemos! O tempo abriu, e Machu Picchu, que normalmente parece um formigueiro,
Tatiana Mitre
Tatiana Mitre
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Acima, o avião que trouxe Gabriel e seus amigos de volta para o Brasil. Abaixo, já dentro da aeronave, com outros ilhados.
Aviso do Governo é alvo de ironias dos viajantes. “Prioridade: pessoas com dinheiro”.
estava muito vazia”. O problema veio depois. Ao voltarem a
uma boa relação com os amigos, mesmo na hora dos problemas. Quanto mais o tempo
Águas Calientes, Gabriel e seus amigos encon-
passa, mais as imagens ficam vivas. Eu penso
traram a cidade em estado de caos. “Era uma
nisso quase todo dia”, reflete Gabriel.
confusão, um monte de gente desorientada pelas ruas, sem saber onde ficar”, lembra. Eles descobriram então que não havia como sair
Maledetto anno nuovo “Sinceramente, não sei por que a gente
do vilarejo e que precisariam batalhar com
achou que seria uma boa ideia passar o
outras centenas de turistas por um lugar para
Réveillon em Bolonha”, desabafa a estudante
dormir. Por sorte, um dos guias arrumou um
Patrícia Diniz. Mas foi o que ela e mais quatro
quarto em uma pousada, que eles dividiram
amigas fizeram, em dezembro de 2009. E é a
com mais três desconhecidos.
própria Patrícia quem garante: a experiência
Foram seis dias nesse perrengue. Gabriel estima que havia três mil pessoas na mesma
não foi nada boa. Depois de pegarem um trem em Florença, as cinco chegaram à estação de Bolonha e
se reuniam na praça principal e esperavam
foram imediatamente pedir informações sobre
notícias dos representantes dos consulados de
como chegar ao hotel que haviam reservado.
seus respectivos países. “Ficamos assustados
“Err... Esse hotel não fica em Bolonha”, disse o
porque, nos primeiros dois dias, o helicóptero
cara do guichê apontando para um lugar muito
Tatiana Mitre
situação que eles. Diariamente, os turistas
não resgatou nem cem pessoas”, diz
isolado do mapa. Pequeno pânico. OK, passou.
o mochileiro. Por sorte, eles ainda
Então, debaixo de chuva e com muitas malas,
tinham dinheiro e conseguiam falar
Patrícia e suas amigas pegaram um ônibus que
com os familiares no Brasil.
supostamente iria para o hotel.
Depois de quase uma semana
No meio do caminho, resolveram per-
nessa situação, comendo mal e
guntar ao motorista exatamente em qual
pagando caro para utilizar os
ponto deveriam descer e descobriram que
serviços inflacionados da cidade,
esse já tinha passado há uns cinco minutos.
o grupo conseguiu voltar para
“Achamos estranho porque o cara da estação
Belo Horizonte com a ajuda da
tinha dito que o hotel era longe pacas e a
embaixada brasileira no Peru.
gente nem tinha andado muito ainda”, lembra
“Hoje, eu encaro o que aconteceu
Patrícia. Desceram e pegaram a mesma linha
como um momento de aprendi-
no sentido contrário, até o ponto em que o
zado. Saber ter paciência, não
motorista apontou. Chegando lá, acharam um
desesperar... Continuar tendo
prédio com o mesmo número, mas ninguém
Luiza Glória
mOCHILAGEM
atendia. “A rua não era aquela. O motorista tinha mandado a gente pro lugar errado!”. Com um restinho de bateria que sobrou do notebook, as meninas conseguiram o telefone do hotel e descobriram que haviam pegado o ônibus certo, mas descido na metade do caminho. Quase uma hora depois, as cinco conseguiram chegar ao lugar, “que ficava perto de uma boate meio... estranha”, conta Patrícia. Sãs e salvas, tiveram seu sono de beleza para a grande noite de Réveillon. Nem a festa salvou o dia. “Fomos para a pracinha, onde tinha um show estranho de um cara esquisito. Ele cantou umas músicas e aí veio a contagem regressiva. Deu meia-noite e começou a Terceira Guerra Mundial”. Segundo a estudante, eram foguetes sendo disparados no meio das pessoas, bombinhas colocadas em garrafas de cerveja e muita chuva. Desiludidas Patrícia Di
niz
com a vida e com o ano novo, Patrícia e suas amigas decidiram voltar para casa. Não acharam táxi. “Voltamos no carro de entrega de um restaurante que cobrou 60 euros para nos deixar no hotel”. Acima, em Roma, Patrícia ainda feliz, sem saber o que a esperava na noite de Reveillón que, de tão ruim, nem mereceu ser fotografada. À esquerda, já no dia seguinte, ela passeia por uma Bolonha deserta.
Apesar da noite desastrosa, o dia seguinte foi melhor: “no fim das contas, foi até divertido. E todas nós sobrevivemos. Acho que valeu a pena”.
Patrícia Diniz
A volta do que não foi Apesar dos perrengues que passaram, Gabriel e Patrícia chegaram a conhecer os lugares para os quais viajaram. Caio Malta não. Ele tinha 19 anos quando resolveu fazer uma viagem a Londres. A ideia era passar um mês conhecendo diversas cidades e dormir em albergues e hotéis baratos. Chegando ao Aeroporto de Gatwick, Caio foi abordado por um agente de imigração que falava português: – O que você veio fazer aqui? – ele perguntou. – Vim curtir, aproveitar. – Quem comprou sua passagem? – Minha mãe. – Onde você vai ficar? – insistiu o agente. – Não sei. Ainda vou ver alguns albergues. – Podemos abrir a sua mala? – Claro, sem problemas. Não havia nada de “suspeito” na mochila de Caio, mas, ainda assim, a resposta foi negativa: ele não poderia entrar na Inglaterra. “Eles acharam que eu estava mentindo e que, na
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“Não sei por que a gente decidiu
Dunedin (a passagem já havia sido comprada)
passar o réveillon em Bolonha.
e encontraria Flávia, sua melhor amiga. “Nós
Deu meia noite e começou a terceira guerra mundial”
éramos praticamente uma conta bancária conjunta: sempre que os cartões de crédito davam problemas, uma cobria a outra”, explica Carolina. Feliz com seus 19 dólares restantes, esperou sua amiga, que chegou 30 minutos depois com um sorriso gigante no rosto: “Ainda bem que você está aqui, Carol! Meu cartão parou de funcionar e eu não tenho nem um tostão!”.
verdade, estava indo para morar lá”, conta o
As duas congelaram. Flávia não tinha mais
estudante de Administração. Além disso, Caio
que algumas moedas e Carolina precisava
não havia escolhido uma época boa para viajar.
de 17 dólares para poder voltar ao aeroporto
Alguns meses antes, em julho de 2005, aconte-
no dia seguinte. Com os pouco mais de dois
ceram os atentados ao metrô de Londres, que
dólares que restavam, compraram e dividiram
intensificaram o combate ao terrorismo e torna-
um lanche infantil do Kentucky Fried Chicken
ram mais difícil o processo de entrada no país.
(KFC). Voltaram para a cidade e tentaram
Depois de barrado, Caio foi levado a uma
achar um lugar para dormir, mas os cartões
espécie de alojamento próximo ao aeroporto,
teimavam em não funcionar. Até que, em um
onde havia vários outros viajantes na mesma
albergue, o cartão de Flávia passou, mas só
situação. “Nesse lugar, que mais parecia uma
havia dinheiro suficiente para a diária individu-
prisão, tinha gente de todo tipo, de todo canto
al. “Esperamos a recepção lotar para eu poder
do mundo. Um dos caras lá me disse que era
subir pro quarto sem o recepcionista ver e dor-
traficante e tinha sido pego”, lembra Caio.
mir escondida lá”, lembra Carolina. “Quando o
Apesar de tudo, ele afirma que ficou bem
recepcionista vinha trazer outro hóspede, eu
tranquilo. Ligou para os pais e remarcou a
me escondia no armário. Era ridículo!”.
passagem de volta. “Pô, eu fiquei bem chateado,
Com fome e sem dinheiro, as amigas
né? Já tinha pagado umas 2 mil libras na
resolveram dormir. No dia seguinte, Carolina
passagem e nem cheguei a entrar no país”,
conseguiu embarcar normalmente e, chegando
reclama. “Mesmo assim, ainda tenho vontade
em Dunedin, a cidade onde estava morando,
de conhecer a Inglaterra. Voltaria para lá numa
conseguiu uma carona até o centro em uma
boa, só que dessa vez com um roteiro mais
van cheia de velhinhas. “Ainda dei sorte da
definido”.
minha companheira de quarto ter esquecido a porta aberta quando foi trabalhar. Entrei e
Sem crédito com a sorte Carolina Esperon Kauer também passou aperto em uma de suas viagens. Ela fazia
comi um pacote inteiro de Sucrilhos, que era tudo o que tinha”. Mesmo tendo passado por uns maus
intercâmbio na Nova Zelândia e decidiu ir
bocados na viagem, ela se diverte lembrando
sozinha até Queenstown para encontrar
tudo o que aconteceu. “Eu não aguentava mais
amigos que estavam em uma excursão. Três
aquela situação, mas pensando bem, até que
dias depois de chegar lá, seu cartão de crédito
foi divertido”, garante Carolina, que nunca en-
parou de funcionar. Para piorar a situação, era
tendeu porque seu cartão parava de funcionar
seu último dia com reserva paga no albergue.
de vez em quando. Se esses imprevistos eram
“A minha sorte é que outros amigos meus, sem
obra do destino ou uma simples falha da rede
serem os da excursão, também estavam em
bancária neozelandesa, não importa. Carolina,
Queenstown”, conta Carolina, que os convenceu
assim como Gabriel, Patrícia e Caio, sofreu um
a deixá-la dormir escondida no chão do quarto
pouquinho, mas tem uma boa história para
deles, em outro albergue.
contar. E se viagens são feitas de boas histórias,
No dia seguinte, um dos garotos emprestou
as deles valeram a pena. Ainda que os rios, moto-
dinheiro para ela fazer um lanche e pegar o
ristas de ônibus, agentes de imigração e cartões
ônibus até o aeroporto, de onde voaria para
de crédito tenham tentado estragá-las.
∞
Lugar comum
Careta
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para você
Amsterdã é a capital do sexo e das drogas?
A repórter da Nonada morou um ano na cidade e tentou responder à pergunta. Só que ela não fuma, não bebe, não usa drogas e não tem uma vida sexual liberal. O clichê careta encontra aqui o clichê sexo, drogas e rock’n roll. Texto e fotos de Luiza Lages
Sentada no hall do aeroporto, esperava há menos de dez minutos o aluno da universidade que deveria me buscar. Calmamente, um homem ao meu lado enrolou um cigarro de maconha e foi para o lado de fora fumar. Foi nessa hora, logo no meu primeiro dia, que acreditei naquilo que ouvi por seis meses, desde que descobri que ficaria um ano em intercâmbio: “Aaaaahm... Amsterdã, hein?” “Te escolheram a dedo para ir, Lu”, foi o que disse Lolis logo que dei a notícia aos meus amigos, comentário que provocou muitos acenos de aprovação. Ela falava da ironia de que, entre todos os alunos da UFMG que se candidataram ao intercâmbio, a selecionada para estudar na capital liberal da Europa ser justamente eu: provavelmente a pessoa mais careta que você vai conhecer. Não gosto do termo “careta”. Na verdade, acho careta rotular alguém assim, mas fato é que não bebo, não fumo, não uso drogas e não tenho uma vida sexual liberal. Razões pelas quais as pessoas se dividiam em achar – e mencionar inúmeras vezes – que eu seria imune à experiência libertadora do intercâmbio ou me entregaria completamente a ela. Mas adianto que não gosto de extremismos.
Lugar comum Já na segunda noite em Amsterdã, andava com duas
Aquilo que todos imaginam, de mulheres lindas dançando,
amigas sem direção no centro da cidade, quando uma
figurando poses sexy ou chamando a atenção como podem,
brasileira nos ouviu conversando em português e resolveu
não era a realidade. Eram mulheres das mais diversas
pedir para que a acompanhássemos pelo conhecido bairro
nacionalidades e tipos físicos. Você encontra lá uma menina
da Luz Vermelha – para os holandeses, o De Wallen. Sex
linda, loira e russa de 18 anos e também uma senhora de
shops, turistas, vermelho, vitrines e de repente água. “You
70. Obesas, magras, todas seminuas, para todos os tipos
stupid bitch!”, xingaram duas prostitutas que haviam jogado
de fetiches. Às vezes chamam os homens na rua, às vezes
um balde de água na nossa direção. “No picture! No picture!”,
comem iogurte, fazem as unhas ou brigam com turistas
gritavam. Olhamos para o lado e entendemos: a tal brasileira
que apontam as câmeras.
resolveu filmar o local, o que, segundo a lei das ruas, é
“Acho que uma pessoa só consegue trabalhar como
proibido. Joe, o guia australiano do tour que fiz ainda aquela
prostituta ou tomar essa decisão se é capaz de separar sexo
semana, explicou que “fotografar ou filmar o distrito da Luz
e amor. Eu nunca tive problemas com isso porque comecei
Vermelha desperta o comportamento hostil das prostitutas,
aos 16 anos de idade e era rebelde. Eu via sexo como um
que em casos extremos atiram as câmeras nos canais e
jogo e era muito fácil transar sem pensar na droga dos
normalmente guardam xixi em baldes para jogar no infrator.
relacionamentos. Assim que você consegue fazer essa se-
Então, vamos guardar as câmeras?” Tenho certeza de que
paração, você se acostuma rapidamente com a prostituição
fomos atingidas somente por água. Certeza absoluta.
e fica indiferente a tudo aquilo. É um trabalho”, me contou Mariska Majoor, que foi prostituta em Amsterdã até os 21
Atrás da vitrine tem iogurte, lixa e prostituta “É mãe, hoje eu passei lá no bairro da Luz Vermelha de novo”. No começo repetia essa frase pelo menos uma vez
anos de idade. Ela é fundadora e dirigente do Centro de Informação sobre a Prostituição (PIC), instalado no coração do bairro, entre vitrines e a Igreja mais antiga da cidade.
por semana ao conversar com a minha mãe. Ela sempre se divertia com o fato e eu sempre tentava explicar que a zona faz parte da cidade, fica no centro, no meio de tudo. Pensei que ficaria chocada com as 480 vitrines, com os homens saindo e entrando, com as sex shops, casas de strip-tease, cinemas e teatros de sexo explícito, lojas de souvenires, museus de sexo e com o mote comercial de tudo aquilo. Até que não. Meus amigos achavam interessantíssimo ou olhavam com nojo; eu talvez fosse a mais indiferente. Era também como eu via as prostitutas: indiferentes.
No Distrito da Luz Vermelha você encontra mulheres obesas, magras, todas seminuas, para todos os tipos de fetiches
a Igreja mais antiga da cidade a Oude Kerk (Igreja Velha) foi fundada em Amsterdã em algum ponto entre os séculos 13 e 14. A cidade prosperava como pólo comercial e conseqüência disso foi o crescente número de marinheiros que lá aportavam. A prostituição na cidade teve seu início aí, como forma de proteger as mulheres de família do incontrolável apetite sexual dos viajantes. E instalada na mesma região, a Igreja era responsável pela venda das indulgências necessárias para neutralizar o pecado da carne, protegendo por sua vez os homens dos perigos do mar e do inferno.
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Em Amsterdã você não precisa ter pudores, pode falar: vou ali fumar um
Não que eu conseguisse pensar para mim a ideia de criar essa separação entre sexo e sentimentos, e muito menos que tenha pensado em me prostituir para poder comprar um pastor alemão – caso de Mariska. Mas eu entendi. O comércio do sexo, pelo menos ali, é na maioria das vezes fruto de uma escolha, coisa que grande parte das pessoas não vê. Mariska explicou melhor do que eu poderia: “Imagine que olhem constantemente para você como uma vítima, que te coloquem em uma posição inferior. É isso o que fazem com os trabalhadores do sexo. Para as pessoas de fora, não interessa se você é forçada a estar ali ou se foi uma opção. Elas sentem pena, e esse é o maior problema na prostituição. Isso te faz sentir vulnerável e pequena, e aí quem compra se dá ao direito de te tratar como tal”.
Preciso da minha visão periférica Dar uma escapada de um assunto mais sério, de alguma preocupação ou só ficar de boa. Em Amsterdã você não precisa ter pudores, pode falar: vou ali fumar um. O consumo de maconha e haxixe, as chamadas drogas leves, é legal na Holanda desde 1978. Se você é maior de 18 anos, é muito fácil ir a uma das coffeeshops, “escolher entre um vasto menu se quer ficar alto, dopado ou feliz; entre um sabor mais doce ou picante; se quer fumar, comer ou só carregar a erva. Cinco gramas por pessoa, no máximo, é a única regra”, diz Jason den Enting, gerente da Dampkring, uma das mais famosas casas da cidade.
coffeeshops casas autorizadas a vender drogas leves desde os anos 70 na Holanda. Hoje o governo não distribui mais licenças para os estabelecimentos, assim a tendência é que existam cada vez menos marcas e mais
Sarah Heward
filiais das que tem maior força comercial.
Lugar comum
O holandês não é simplesmente mais liberal, é indiferente
Eu poderia concordar com o Maurice – Maurice van Huijssteden, meu colega na Vrije Universiteit e residente há três anos em Amsterdã – se eu não fosse estrangeira e compartilhasse com o resto do mundo a visão de que alguma coisa diferente acontece lá. Realmente, depois de um ano morando na cidade, não achava nada de mais naquilo. E, realmente, são os turistas os principais responsáveis pelo sensacionalismo à tal liberalidade holandesa. De sete entrevistas com turistas transeuntes no centro, apenas uma alemã não citou ir a coffeeshops como objetivo da viagem, opinião minha, por vergonha. Sem contar alguns grandes
Sabendo disso, você já deve imaginar o que é morar com
indícios como os vários grupos irritantes de homens
outros doze intercambistas nos seus vinte e poucos anos:
ingleses em festas de despedida de solteiro, ou os grupos de
muitas vezes eu colocava uma toalhinha na abertura de
senhoras de terceira idade passeando entre as prostitutas.
baixo da porta do meu quarto, para evitar que toda aquela
Só fui refletir sobre a situação dos dois maiores clichês
fumaça entrasse. “Que engraçado, é sempre o contrário, Lu!
holandeses quando comecei a pensar e realizar essas
As pessoas colocam a toalha para evitar que alguém de fora
entrevistas. Mais que tudo, eles são produto de um estilo de
perceba”, me disse um amigo no Skype, quando contei da
vida diferente. O holandês não é simplesmente mais liberal,
festa de vinte espanhóis que acontecia no quarto da frente,
é indiferente. Ele não liga se você sai à rua trajando quatro
como o meu, de 10 metros quadrados. Para mim é muito simples: não gosto do cheiro, me enjoa. Nunca tinha experimentado maconha, pelas mesmas razões pelas quais não bebo e não fumo. Primeiro, tenho horror a cigarro e, segundo, a sensação de perder o controle sobre o meu corpo é uma das piores coisas para mim. Se eu falo isso agora, é com convicção. Perdi o medo e aí perdi o controle algumas vezes. Mas foi me enganando que consegui: é muito mais fácil consumir uma droga quando ela vem no formato de um delicioso bolinho com gotas de chocolate. E muito mais fácil quando você sabe que não tem problema fazer isso em um parque aberto, com pessoas passando. Mas não é nada fácil ser a primeira vez e descobrir que ingerir maconha é muito mais forte que fumar. Sete horas de efeito, treze horas de sono. Um dia da minha vida em que me dividi entre ter certeza de que estava sonhando, perder a capacidade de conversar em inglês, de ver normalmente as coisas, rir desesperadamente e querer apertar um botão de desligar. O importante é que aprendi que o desligar acontece sozinho eventualmente, e não tive medo quando outros amigos pediram que eu me juntasse à comilança. Mas a última vez, acho que foi realmente a última. Divirto-me mais contando essas histórias do que vivendo elas.
Capital da indiferença “As duas primeiras coisas que estrangeiros sempre presumem é que Amsterdã é uma espécie de capital das drogas e do sexo, onde tudo acontece e tudo é permitido. A realidade é que as coffeeshops são apenas bares onde se pode comprar e fumar erva. Não é como se todos daqui fizessem isso também: eu, por exemplo, não vou a coffeeshops e, como a maioria dos residentes, mal noto que elas existem. E o bairro da Luz Vermelha? É uma pequena área de prostituição no centro, geralmente cheia de turistas e só”.
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cores e estampas descombinando (o que pessoas lá fazem regularmente); não liga para o seu vício; não vai encarar se você fizer topless no parque ou na praia. Desde que não prejudique o outro ou a economia, o que as pessoas fazem ou deixam de fazer não é da conta de mais ninguém. Você pode se expressar sem ter medo de virar motivo de fofoca. Acredite, eles realmente não estão nem aí. Assim, as pessoas são livres para serem e fazerem o que quiserem, incluindo fumar maconha, vender o corpo e casar com alguém do mesmo sexo.
A vitrine é real, mas a mulher que se esconde atrás dela é de cera. A artista Nacy Kienholz recriou em 1983 parte do Bairro da Luz Vermelha para a exposição “The Hoerengracht” (O canal das prostitutas). Depois de levar as histórias da prostituição em Amsterdã para todo o mundo, a exibição retornou à cidade em junho de 2010. Achei uma obra carregada, pesada, mas precisa ao captar os significados desse universo. Principalmente depois de assistir ao documentário que leva o mesmo nome.
Portas de vidro Descobri o PIC e conversei com Mariska Majoor depois de levar nãos raivosos das prostitutas do bairro da Luz Vermelha. Não fui ingênua, esperava ter meus pedidos de entrevista negados, mas abordei três delas durante o dia, quando o movimento é bem menor. A única que chegou a me escutar de verdade respondeu em tom de deboche que conversaria comigo: “querida, são 50 euros por 15 minutos”. Justo, era o horário de trabalho dela. Agradeci e deixei para a próxima. Assim como fecharam as portas para mim, as prostitutas do bairro da Luz Vermelha podem se negar a atender quando não tiverem vontade. “É o meio mais independente de se prostituir porque, se não quiser receber alguém, tudo o que se tem que fazer é manter a porta fechada”, afirmou Mariska Majoor. Foi aí que entendi o outro lado das vitrines. Elas dão transparência à prostituição: ao mesmo tempo em que expõem literalmente e figurativamente as mulheres, garantem a elas uma independência que dificilmente seria alcançada de outras formas. A prostituição na Holanda foi legalizada em 2000, e hoje as mulheres que trabalham nas 18 áreas regulamentadas de Amsterdã são consideradas trabalhadoras autônomas que devem encargo tributário ao governo. O projeto 1012 do governo holandês, que prevê a reestruturação urbana do distrito, vem fechando as vitrines para dar outra cara ao espaço. Com a diminuição das possibilidades, o valor do aluguel das vitrines aumentou. Além de impostos, as prostitutas do bairro da Luz Vermelha hoje alugam os quartos pelo valor de 80 a 120 euros diários. Tudo bem, elas ganham entre 35 e 50 euros por, no máximo, 20 minutos (tempo extra ou serviços adicionais são cobrados a parte), mas os gastos fixos são preocupação constante e reduzem a possibilidade de escolha. A porta não pode mais ficar tão fechada quanto elas gostariam.
Sarah Heward
Lugar comum
Por debaixo da seda É legal portar e consumir maconha e haxixe na Holanda, mas o comércio não se qualifica assim. A venda das drogas pelas coffeeshops é ilegal, porém não penalizada quando Esse é Tugrul Toru, meu vizinho turco que aproveitou plenamente seus seis meses em Amsterdã. Para ele, sinônimo de ir a quase todas as coffeshops da cidade. Apesar de abrir a minha porta sem sequer bater e me fazer usar toalhas para reduzir a fumaça que entrava por debaixo da porta, Tugrul se tornou um grande amigo que me servia cafés da manhã às 4 da tarde.
as casas são licenciadas. Desde que os estabelecimentos se enquadrem dentro das regulamentações oficiais – trabalho discreto sem uso de publicidade, venda para maiores de 18 anos, controle de quantidade e qualidade da droga dentro do estabelecimento – não existem sanções legais para a venda ao consumidor. Mas se um trabalho de fiscalização comprovar, por exemplo, que uma coffeeshop vendeu mais de 5 gramas de maconha por usuário, a loja pode até ser fechada. O interessante mesmo é que a polícia não quer saber como as drogas chegam aos estabelecimentos: a compra e o cultivo são ilegais e penalizados. O governo holandês faz vista grossa à chamada “política da porta de trás”, o que permite que todo o comércio se desenrole, apesar da base não existir oficialmente. Não existe fiscalização sobre o caminho que a droga toma desde as plantações até dentro das coffeeshops. Dessa forma, a tolerância à maconha teve sucesso em tirar os consumidores da clandestinidade, mas não surtiu o mesmo efeito sobre o tráfico. “Os políticos holandeses têm medo do que o resto do mundo vai pensar sobre a política de drogas do país e fica assim em cima do muro”, opina Jason den Enting. Como parte da ONU, a Holanda assinou em 1993 uma lei que proíbe o comércio, cultivo e importação de drogas, incluindo maconha e haxixe. “Você pode colocar o controle das drogas nas mãos de três partes: do governo, o que eu não acho muito esperto, porque, considerando as questões de saúde pública, é uma instituição que deve se manter neutra; nas mãos dos comerciantes; ou nas dos criminosos, a alternativa mais adotada. Se o governo lamenta que a situação de tráfico e violência está ruim, devese pensar primeiro que isso parte de uma decisão política. Ao legalizar e passar a responsabilidade aos comerciantes, você cria uma regulamentação, como é feito com qualquer outro produto. É o que tentam fazer aqui. É uma questão de olhar por outro ângulo: o problema não está com o produto e sim com as pessoas”, diz o comerciante.
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GuichÊ
Trecho de ida a cinco reais; 300 destinos a partir de 69; feirão para todo o mês que vem; passaporte Azul; muitas reticências promocionais. Viajar de avião está cada vez mais acessível, mas em um mar de tarifas, serviços e ofertas, como comprar a passagem ideal? Texto de Luiza Lages e Ilustração de ronei sampaio
Em 2006, Rodrigo Freire viu seu nome entre os profissionais de Comunicação Social aprovados no concurso da Petrobras e teve que se mudar para o Rio de Janeiro, deixando família e amigos em Belo Horizonte. Constantemente, ele volta à terrinha para passar o final de semana, comer comida de mãe e nunca perder as festas da cidade que o interessam. Se Rodrigo realmente faz por mês as duas viagens de avião que diz fazer, então ele esteve em pelo menos 48 dos 56 milhões de desembarques nacionais contabilizados em 2009 no Brasil. Em 2008, esse número foi 13 % menor.
Nas alturas, só você O crescimento das viagens em território nacional veio acompanhado do aumento das ofertas de preços e destinos pelas companhias aéreas. Hoje existem pelo menos quatro grandes empresas que operam nacionalmente - Webjet, TAM, Azul e Gol. E aí o livre mercado funciona mesmo e a gente sente no bolso. A concorrência tem obrigado as companhias a reduzir suas tarifas para atrair mais clientes e nos inundam com pacotes e tarifas promocionais. “Várias vezes eu comprei passagem e depois vi que outra companhia ou a mesma que eu comprei tinha abaixado o preço ou lançado uma promoção. Para o Planeta Terra [festival que acontece em São Paulo no dia 20 de novembro] eu comprei bem antes e aí já rolaram várias promoções desde então”, conta Rodrigo. A recifense Clarissa Correia passou pela mesma situação ao comprar passagens para o Rio de Janeiro: “A TAM estava com passagens nacionais a 4 mil milhas. De repente, a Gol também lançou trechos nacionais, em milhagem, com o mesmo preço. Então a TAM diminuiu o valor e a Gol a seguiu. Isso tudo no intervalo de dias! Resultado: até preferi guardar minhas milhas e ir pela Gol, porque, pesando
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Onde desembarcar Para conferir variações de preços tudo, o preço era melhor. Foi meio complicado, você fica até receoso de comprar,
e promoções, marque a opção
com medo da promoção que vem em seguida ser melhor do que a que você com-
que disponibiliza passagens
prou! Bizarro, né? Você acaba torcendo para não ter promoções!”, brinca. Não há o
para todas as alternativas de
que temer Clarissa, é só continuar lendo.
aeroportos tanto da saída quanto do destino. Mas fique atento: às
A Nonada também é cliente A viagem a São Paulo, para que a matéria “Entre burritos e takoyakis” fosse apu-
vezes, vale a pena pagar um pouco mais por um voo com destino
rada, veio a calhar para entendermos esse universo da compra online de passagens.
central do que gastar o triplo com
Pesquisamos entre as quatro companhias aéreas e sites de busca a melhor relação
táxi ou ônibus de conexão.
custo-benefício que nos levasse à cidade no final de semana de 16 e 17 de outubro. Um mês antes foi feita a primeira procura, exatamente na época em que a Azul lançou a promoção de venda de um dos trechos (ida ou volta) a 5 reais. Inicialmente parecia certo ir de Azul, mas lembrando do alerta de Isabela Eu-
Ônibus ou avião? Se viajar de ônibus é uma opção,
genio, dois dias antes de começarmos a nossa busca, ficamos com o pé atrás:
olhe primeiro o valor da passa-
“Quando não estamos acostumados a viajar e a comprar passagens online, acho
gem. Ela é tabelada e não sofre
que é comum nos iludirmos com as promoções. No fim das contas, é tanta taxa
alterações, o que te permite usá-la
que eles colocam que o preço acaba não valendo à pena. Já me iludi assim, mas
como referência para a compra de
agora estou mais acostumada e, sempre que vejo uma promoção que me interes-
passagens aéreas. Foi isso que fez
sa, prossigo com o processo de compra até o final pra ver qual é o preço real”. Isa-
Raquel Garcia, coordenadora de
bela é estudante e filha de donos de agência de viagens.
um dos programas do Cisv Brasil,
Indo à frente com o processo de compra, encontramos taxas de embarque que
organização que promove encon-
encareciam em pelo menos 40 reais o trecho promocional de volta. Como a viagem
tros interculturais: “Teve uma vez
teria de ser marcada para o final de semana, dias em que os valores são mais al-
que precisava ir a São Paulo e iria
tos, o trecho de ida era relativamente caro. Além disso, o aeroporto de destino era
gastar muito dinheiro da minha
em Campinas, o que demandaria um deslocamento impossível na madrugada de
casa até o aeroporto de Confins,
segunda-feir, para chegar a tempo de pegar o voo das 6h.
em Belo Horizonte, e depois do
Pesquisando em outras companhias, a tarifa com horário mais atrativo era da
aeroporto de Congonhas até a
Gol, que não oferecia nenhuma promoção, só preços melhores. Mas o roteiro caía
casa do meu amigo. Preferi ir de
novamente no problema de ir para o aeroporto de Campinas, além de voos que
ônibus, durante a noite, e chegando
iriam reduzir nosso tempo na cidade. Passamos então a considerar ir de ônibus e
lá pegar o metrô que passa na
a torcer por encontrar uma tarifa mais barata.
rodoviária”, explicou a estudante,
No dia 3 de outubro, entramos outra vez nos sites de busca e o melhoresdestinos.com anunciava o “último feirão Gol do ano”. Eram 300 trechos sendo vendidos
que já havia feito três viagens para São Paulo só naquela semana.
Guichê Para buscar passagens aéreas de várias companhias ao mesmo tempo
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Como o Yahoo, procura trechos e valo-
Possui muitos textos informativos
res em agências de viagens.
com dicas.
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E para você que não tem data definida Primeiro, tente olhar o melhor preço em várias datas próximas da sua viagem. A melhor forma de encontrar a menor tarifa é testando as datas e horários. Altere o número de noites no destino, tente em outras semanas. Isso inclui o teste em diferentes dias da semana: geralmente os horários mais procurados têm tarifas mais caras - como em uma sexta à noite ou na segunda de manhã. Quando for pesquisar, já selecione “ida e volta”, que é geralmente regra para que as promoções sejam válidas. Assim que uma promoção é anunciada, tente comprar a
Comprando no lugar certo
passagem o mais rápido possível, uma vez que os voos têm
Sites de compra de passagens
cotas promocionais pré-definidas que costumam se esgotar
são excelentes para fazer buscas,
rapidamente. O objetivo das empresas aéreas é preencher
pois analisam diversas opções
pelo menos 60% do avião e, à medida que isso acontece, os
de companhias e as promoções
preços podem encarecer. Lembre-se sempre de ler as regras
oferecidas, mostrando no final
de uma promoção. Assim fica mais fácil adequar sua busca
os melhores preços. Mas como
para encontrar as tarifas promocionais.
cobram uma taxa de serviço,
∞
é interessante gastar mais 10 minutos reproduzindo o voo exato no buscador do site oficial da companhia aérea. O valor final provavelmente será o mesmo, mas sem o custo adicional de serviço.
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No descampado da sustentabilidade Por pelo menos um ano, brasileiros foram bombardeados por informações e expectativas sobre o festival que prometia ser um Woodstock nacional, o SWU. Na Fazenda Maeda, em itu (sp), uma grande área de camping e palcos que dariam espaço aos três dias de shows – do metal ao pop rock. Envolvendo toda a estrutura física e ideológica, o mote da sustentabilidade. Dia 9 de outubro chegou, a Nonada se fez presente e conta o que aconteceu. Texto de Marcelo Dourado
aconteceu em... itu Assim como o silêncio que precede as tempestades, o burburinho que se propagava pelo público também era carregado de eletricidade. Um tipo de eletricidade inversamente proporcional à chocha energia que alimentava os alto-falantes secundários, mas suficientemente forte para impulsionar a massa à minha frente para direções diversas e rumos impossíveis. De uma distância nada segura, observava a plateia espremer-se, e não demorou muito para que me juntasse forçosamente à turba, rodopiando sem Liliane Callegari
direção concreta. Ao meu lado direito, um homem gordo espumava em antecipação. Ao esquerdo, um jovem casal de namorados, posicionados naquela postura de quem assiste ao show da Norah Jones: a garota na frente do rapaz, carinhosamente protegida pelos braços dele. Algo me dizia realizado em uma grande fazenda nos arredores de Itu,
que não seria o suficiente. A despeito do receio, eu não lamentava nada. Ao contrá-
como um brinde ao passado. A inquietação da plateia me forçava a encarar a urgência do presente.
rio, queria estar ali. Eu devia aquele momento ao jovem espinhento e revoltado de 15 anos de idade, soterrado em
Todos os meus devaneios se dissiparam ao som da
algum canto dentro de mim. Devia isto a todas as tardes
sirene que gritava acompanhada pelo despontar de uma
preguiçosas que passei ouvindo os discos e lendo as letras.
estrela vermelha no telão que se estendia por todo o palco.
Devia o respeito à minha formação, acompanhando o
Sem muitos anúncios, o show começa com um estrondo,
desenvolvimento musical da banda cover dos meus amigos
a guitarra inicial de “Testify” cortando o ar, surpreendendo
na época da escola. Na noite do dia 9 de outubro de 2010, eu
a multidão e suspendendo meus pés do chão. Não havia
encarava o show do Rage Against the Machine no festival SWU,
espaço para vontades. Não havia espaço. Iniciou-se uma cadeia de movimentos que nos atropelou e subitamente fui
Abaixo, a banda Rage Agains the Machine no palco do SWU. À extrema direita, instalação artística dentro do tema do festival: sustentabilidade.
arrastado algumas dezenas de metros para frente e para trás. Pude ver a cabeça de um de meus amigos desapare-
Divulgação
cendo submersa no mar de gente enquanto eu rodopiava como água descendo no ralo. Ao meu redor, garotas passavam mal, sem fôlego. No chão, pares de tênis postos como se seus donos tivessem levitado. Começou a segunda música. Perdido entre os que queriam sair da multidão e os que se atraíram por ela, consegui alcançar a grade que protegia a grua da câmera de televisão, na qual subi em busca de uma visão privilegiada do cenário dantesco ao meu redor: gente sendo pisoteada, homens e mulheres desmaiando, freezer despencando, gordos metaleiros ensandecidos, e todo o tipo de gente unida sob aquela solidariedade típica que aflora em momentos de tensão extrema. Do alto da grade, assumi que não poderia esperar nada diferente do que via naquela noite em um show do Rage – que encerra praticamente todas as suas músicas com um grito de guerra e um chamado às armas. Trata-se de uma banda que
Eu devia aquele momento ao jovem espinhento e revoltado de 15 anos de idade, soterrado dentro de mim
74 | 75 alimenta-se da energia agressiva do público, metabolizan-
Não bastando o telão, o público que esperava o começo do
do-a e despejando-a de volta à plateia, com uma virulência
show da banda Kings of Leon, o último da noite, ainda foi
três vezes maior, ainda que amputada pelo baixo volume
agraciado com o discurso de um fulano que assumiu o palco
das caixas de som.
inadvertidamente, com o dedo em riste, gritando: “Estamos
Sem conflito, não haveria show, não haveria uma performance que se desenrolava nas contradições, sendo a mais gritante delas o descalabro de uma “Pista Premium”
em guerra!” Estamos em guerra. Contra quem? “Contra a ganância!” – o sujeito responde imediatamente. Não pude deixar de notar que o discurso inflamado
bem em frente ao palco, recebendo antes dos outros os
do ator talvez encontrasse uma ressonância maior caso
perdigotos revolucionários do vocalista Zack de La Rocha e
antecedesse o show do Rage Against the Machine. Ele com-
grande parte do volume de som que saía dos alto-falantes.
partilhava com a banda a visão de um mundo facilmente
A existência de uma área VIP em um show como aquele era
compreendido e explicado pela tensão e pelo conflito. Se
fato bastante bizarro, e se poucas cenas seriam tão absurdas
para os integrantes do Rage os antagonistas deste mundo
quanto ver o Henri Castelli ou outro global com o dedo em
são bem delineados (basta vestir um boné do MST para
riste gritando “Fuck you, I won’t do what you tell me”, nada
declarar-se mocinho), na “guerra pela sustentabilidade
me surpreenderia mais do que se as grades e os limites desta
contra a ganância” declarada no dia posterior, os comba-
área permanecessem intactas durante todo o show.
tentes, os inimigos, eram convenientemente indefinidos.
Não permaneceram. Afinal de contas, eram o alvo mais
Afinal, para quem o SWU apontava o dedo? Para o público?
óbvio para o qual se canalizava toda aquela fúria que
Para o mundo? Para os porcos capitalistas? A despeito desta
precisava explodir para algum lugar. E enquanto as grades
indefinição, é curioso poder apontar uma agressividade
protetoras da grua nas quais estava prostrado também
perene durante todo o festival.
cediam, derrubando-me, pensei na palavra “sustentabilidade” como uma piada cretina.
Estamos em guerra contra a ganância, pela sustentabilidade. Ocorre que sustentabilidade, no SWU, era pagar cem reais de estacionamento, comer mini-pizza crua a oito reais
Um discurso insustentável
e jogar latas de cerveja no chão para alguém catar e reci-
Vendido como um retorno ao espírito hippie que embeleza
clar. Se a desorganização do primeiro Woodstock contribuiu
a imagem icônica do festival Woodstock de 1969, o festival
para perpetuar um clima de informalidade e comunhão -
SWU (Starts With Us) atualizou o slogan “paz e amor” da ge-
além de alimentar o romantismo das mil causas advogadas
ração anterior, revestindo-o de um envoltório ambientalista.
durante o festival - a sustentabilidade em Itu servia para
“Sustentabilidade” é a palavra do momento, um conceito
justificar o desconforto de seus frequentadores.
que paira sobre as cabeças urbanas, sem que ninguém tenha muita certeza do que realmente se trata. Um slogan Divulgação
cuja amplitude e indefinição permite que qualquer iniciativa seja carregada de um valor positivo resvalado no politicamente correto. Um discurso modestamente martelado, do qual o público era lembrado pela repetição hipnótica dos anunciantes no intervalo entre os shows (Nescau, Oi FM, “Faça xixi no banho”, Heineken, “separe seu lixo”). Ou reiterado de maneira nada sutil, como no segundo dia do evento. No intervalo entre o penúltimo e o último show do palco principal, o público foi bombardeado por uma colagem de notícias fictícias do Jornal Nacional, anunciando cataclismos ambien-
Divulgação
tais. Tsunami em São Paulo. Furacão em Santa Catarina.
aconteceu em... itu Afinal, para quem o SWU apontava o dedo?
dormindo mal no frio e acordando no mais infernal dos calores, nas primeiras horas da manhã; sendo mal alimentado no intervalo por um regime de Cup Noodles e outras drogas mais leves; evitando dar esparro em rede nacional diante das onipresentes câmeras da imprensa. O ineditismo de um festival como o SWU no Brasil tornou a experiência do camping em uma espécie de microcosmo antropológico
Acampar é...
estudado com curiosidade pela imprensa. Esperando captar
Ao longo de um extenso e inclinado descampado da
um clima de descontração que realmente existia, as câmeras
Fazenda Maeda, tomado por um frio cortante que beirava
filmavam pessoas esperando em filas e circulando o ambien-
os 10 graus, foram instalados dois grandes palcos alinhados
te em busca de alguma água corrente para escovar os dentes,
nos quais ocorriam os shows principais. Ao fundo, uma tenda abrigava um palco menor no qual se apresentavam bandas menos conhecidas. E em toda parte, o som alto de uma tenda eletrônica, inescapável, que abusava do baixo
Sustentabilidade,
alcance dos alto-falantes dos palcos principais para ins-
no SWU, era pagar
taurar uma ditadura sonora. A cacofonia servia à atmosfera festeira que permeava o público, constituído pela reunião das
cem reais de
“savassis” de todo o país em uma profusão de sotaques que
estacionamento e
fazia tudo soar invariavelmente paulista, especialmente na área do camping. Eu e meus amigos nos instalamos na área “Premium”, cuja principal regalia era nos proporcionar um acesso mais rápido ao espaço dos shows. Eu nunca havia acampado em toda minha vida. Portanto, qualquer desconforto inerente à experiência de acampar era absorvido por mim pelo espírito
jogar latas de cerveja no chão para alguém catar e reciclar
Liliane Callegari
da novidade. Passar quatro dias acampado é sobreviver
76 | 77 Qualquer desconforto inerente à experiência de acampar era absorvido por mim pelo espírito da novidade constitui uma identidade brasileira, um fio condutor, aglutinador, enxergado ali, no mais brasileiro dos ambientes: uma
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fila. Pareceu-me ao longo do festival que nem o samba, as
Das filas do SWU, uma das menores. Abaixo, a área de camping do festival.
mulatas, a perseverança populista, a irreverência, a seleção brasileira, nada tem mais poder de construir laços de amizade entre nós brasileiros do que a constante sensação de estar sendo lesado. Nada mais pujante do que a comunhão de corações e mentes brasileiras quando a atenção é destinada a um inescapável inimigo comum, uma força capaz de turvar por algum momento as diferenças entre paulistas e, bem, todos os outros. Reclamar era a toada do momento. Reclamar gerava amizades superficiais. Uma mistura indigesta e
entre uma roda de violão e outra.
bastante familiar de revolta e conformismo, o reconhe-
A despeito das câmeras de segurança e da monitoria
cimento da inutilidade de se fazer mais do que esperar
constante, havia um clima de conivência no camping, como
na fila. A raiva do público do Rage Against the Machine,
que uma aceitação de que “acampamento é acampamento”,
dissipada. Finalmente, um sentimento de pertencimento
e que nada poderia ser feito para acabar com este espírito.
que sustentou o grito de guerra que superou o de todos os
Uma ideia corroborada pela distância escabrosa entre o
times de futebol evocados pela plateia. Alguém falou, em
que o site oficial do evento informava (revistas rigorosas,
algum lugar do público, em sustentabilidade. Não encon-
cães farejadores e condenação de qualquer comportamento
trou o silêncio da indiferença. “Ei, SWU, vai tomar no c*” foi
subversivo) e o que realmente acontecia. No SWU, a vista
o grito de resposta.
era grossa, muito grossa. Na área do camping, os pontos de encontro, os espaços comuns de convivência contrariavam em certa medida o que se espera de um acampamento. Mais do que em rodas de violão, as pessoas se reuniam em filas: para comer, para usar a torneira e a mais imponente, a fila para tomar banho. Durante quatro dias, tínhamos direito a quatro “vales-banho”, com a duração média de sete minutos cada – o suficiente para uma lavagem concentrada nas áreas mais críticas. Banhos sustentáveis. Enquanto tentava captar conversas, personagens, relatos e opiniões que pudessem compor um quadro geral dos ânimos do público no evento, não fui nada bem sucedido até passar uma hora e quarenta minutos na fila do banho duas vezes. Havia uma uniformidade de ânimos no ar, uma mistura de antecipação pelo que o futuro no festival nos reservava, e um sincero descontentamento com a organização do evento. Um descontentamento que, uma vez alimentado pelo descrédito e escárnio cínico em relação à ideologia do festival, poderia aguçar perigosamente os ânimos da multidão – um sentimento demonstrado por guerras de pizza crua e pelo quase tombamento do estande de venda de tickets frente à falha geral das máquinas de cartões. Escaldado pelo sol e conversando amenamente com o
Divulgação
pessoal, imaginei perceber o vislumbre do que realmente
Souvenir
“Seja viajante, não turista” Como uma viagem no lado de lá do mundo me ajudou a entender essa frase (que eu li numa propaganda do lado de cá). Texto de Tahiana Máximo e Ilustração de Augusto Molinari
Meus dedos coçaram para fazer um retrato quando avistei um senhor com vestimentas tradicionais em um templo nas montanhas de Bali. Educadamente, pedi à minha amiga indonésia se era possível perguntar a ele se eu poderia tirar a foto. Bem cheia de dedos mesmo. Pedindo licença, sumi atrás das lentes e tentei, rapidamente, encontrar um ângulo bom e focar logo o que eu queria, para não aborrecer demais o sujeito. Apertei o botão como quem não quer assustar um passarinho bonito. Clique. Ficou mais ou menos. Clique… Acho que agora ficou melhor. De repente: clique, clique, clique, clique. “Yes! Smile! Smile!
descrevesse o que eu senti naquele dia. Percebendo meu
That’s it man!” Um estadunidense parecia levar a metáfora
desespero expressivo, ele me olhou e arriscou um tímido
do passarinho longe demais e fotografava o homem como
“inebriada...?”. “Inebriada!”, eu gritei, aliviada por encontrar
se ele fosse uma arara em extinção! E o pior, sem a mínima
vazão linguística meses depois. Aquela noite tailandesa,
preocupação em não espantá-lo.
assim como todos os dias de viagem, foi completamente
A atitude do meu “amigão” americano é o melhor
inebriante! Cheiros, sons, palavras, letras, olhos, tons de
exemplo de como não se comportar se você quiser conhe-
pele, baratas na rua, a música... Tudo descrevia outro mun-
cer a Ásia. Não dá para chegar lá pensando que você está
do. Não importa se está lotado de estrangeiros por todas as
no Ocidente. Muito menos que está em uma viagem de
partes, você sabe muito bem que está em um outro lugar.
conquista do Oriente, há séculos de distância. Meu amigo,
É de deixar qualquer um boquiaberto porque apresenta
você está é em outro mundo e é melhor acatar isso com a
nuances que não estamos acostumados a ver. E essas
maior dose de humildade possível porque – com o perdão
novidades fazem parte de um espectro amplo. Desde coisas
do clichê dos clichês – o lugar só vai se abrir se você estiver
impossíveis de não serem notadas, como a suntuosidade
aberto para ele. E, pode acreditar, ninguém quer chegar lá e
dourada do palácio real tailandês, a estranhamentos mais
ver a Ásia fechada!
sutis, como o fato de a maioria dos homens balineses andar
Se o americano metido a fotógrafo é nosso contrae-
com uma florzinha atrás da orelha. E ainda passando por
xemplo, guie sua visita por um dos atos que você mais vai
situações que você nunca viu e não vai ver em outro lugar:
fazer ao longo de sua viagem: ao visitar os templos e locais
na Tailândia, entre os trailers e o filme no cinema, você
sagrados, é muito provável que lhe peçam para deixar os
precisa se levantar em respeito ao rei enquanto assiste a
sapatos na porta. Deixe por lá seus preconceitos também e
um vídeo no estilo “eu sou tailandês e não desisto nunca”.
dê boas vindas ao Oriente.
Muitas vezes, eu me pegava pensando “por que nós
Na minha primeira noite tailandesa, fui dar uma
ainda vamos à Europa?!”. Nada contra o Velho Mundo...
volta pela Kao San Road, a caótica área dos mochileiros
Levando em conta toda a sua riqueza artística-histórica-
em Bangkok. Estava acompanhada dos meus mais novos
cultural, essa frase pode soar bastante estúpida. Mas é que
melhores amigos gringos, que eu havia acabado de
o sabor da novidade do lado de lá é tempero correndo nas
conhecer no albergue. Tempos depois, sentada num bar
veias. E parece que nós brasileiros, ao contrário de europeus
do edifício Maletta com um amigo, já em Belo Horizonte,
e norte-americanos, ainda não descobrimos o quão gratifi-
eu ainda me esforçava para encontrar uma palavra que
cante pode ser o pouso em solos do Sudeste Asiático.
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