Anais 7gplv2l versão final

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Eunice Prudenciano de Souza Rauer Ribeiro Rodrigues Marcos Rogério Heck Dorneles Pauliane Amaral Natália Tano Portela (Organizadores)

Anais do 7º Seminário do GPLV e 2º Seminário de Linguística

Três Lagoas - MS 2017


Anais do 7º Seminário do GPLV e 2º Seminário de Linguística © 2017 dos respectivos autores

PRODUÇÃO EDITORIAL Coordenação Editorial Prof.ª Dr.ª Eunice Prudenciano de Souza Prof. Dr. Rauer Ribeiro Rodrigues Prof. Doutorando Marcos Rogério Heck Dorneles Doutoranda Pauliane Amaral Mestranda Natália Tano Portela Periodicidade Semestral Divulgação Eletrônica UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL GPLV - PPG/Letras/UFMS/Câmpus de Três Lagoas

COMISSÃO ORGANIZADORA Rauer Ribeiro Rodrigues Eunice Prudenciano de Souza Marcos Rogério Heck Dorneles Natália Tano Portela Flávio Faccioni

COMISSÃO CIENTÍFICA Rauer Ribeiro Rodrigues Eunice Prudenciano de Souza Marcos Rogério Dorneles Janaína Zaidan Bicalho Fonseca Pauliane Amaral Natália Tano Portela

Contato Principal E-mail: seminariogplv@gmail.com Site: http://seminariogplv.blogspot.com.br SOUZA, Eunice Prudenciano; RODRIGUES, Rauer Ribeiro; DORNELES, Marcos Rogério Heck; AMARAL, Pauliane; PORTELA, Natália Tano. (Orgs.). SEMINÁRIO DO GPLV, 7., SEMINÁRIO DE LINGUÍSTICA, 2. 2016-2017, Três Lagoas, MS. Anais... Três Lagoas, MS: GPLV - Grupo de Pesquisa Literatura e Vida : UFMS, 2017. 441 p. ISSN 2525-7463.


Sumário Apresentação ...................................................................................... 7 Programação ..................................................................................... 14 Resumos de linguística .................................................................. 19 Resumos de literatura .................................................................... 25 Resumo de minicurso..................................................................... 47 Palestras ............................................................................................ 49 Texto de palestra completo ........................................................... 52 Lendo contos de Luiz Vilela na sala de aula ................................... 52 Karina Torres Machado; Rauer Ribeiro Rodrigues

Artigos completos ......................................................................... 106 A metáfora do eu, no conto “O Buraco”, de Luiz Vilela ........... 106 Elcione Ferreira Silva

O revelar poético em Claudia Roquette-Pinto.............................. 127 Eloiza Fernanda Marani


Modos de construção do narrador contemporâneo: uma análise de Mongólia, de Bernardo Carvalho................................................. 151 Eloiza Fernanda Marani; Maisa Barbosa da Silva Cordeiro

A morte em Luiz Vilela: do provado ao público ......................... 183 Eunice Prudenciano de Souza

A representação da mulher em A Dança dos Cabelos, de Carlos Herculano Lopes ................................................................................... 207 Lydyane de Almeida Menzotti Silva; Ricardo Magalhães Bulhões

Identidade: uma busca em O Último Conhaque de Carlos Herculano Lopes ................................................................................... 234 Lydyane de Almeida Menzotti Silva; Ricardo Magalhães Bulhões

"Por toda a vida”: “memória da biblioteca” de Luiz Vilela ...... 269 Lucas Rodrigues Neves

Aspectos elusivos em contos de A Cabeça, de Luiz Vilela ......... 294 Marcos Rogério Heck Dorneles; Eunice Prudenciano de Souza

20 anos de Amélia: 20 anos de submissão e resistência ............. 326 Maria do Socorro Pereira Soares Rodrigues do Carmo

Implicaturas e máximas conversacionais: regras inerentes ao funcionamento da conversação ........................................................ 352 Maria Izabel Gerstemberger de Oliveira; Nayra Modesto dos Santos Nunes


Uma leitura de “Mulher em Recesso”, de Alciene Ribeiro ....... 375 Natália Tano Portela

Uma amostra das entrevistas e depoimentos de Luiz Vilela ... 389 Rodrigo Andrade Pereira

O niilismo em “Axilas e outras Histórias Indecorosas”, à luz do pensiero debole .......................................................................................... 414 Ronaldo Vinagre Franjotti


Apresentação Rauer Ribeiro Rodrigues

A APRESENTAÇÃO destes Anais fugirá ao tom normal das peças similares, cuja estrutura e intenção prestam-se normalmente a enumerar e realçar o conteúdo dos volumes que prefaciam, destacando temas e abordagens texto a texto. Quanto a esse aspecto, registremos que se trata de uma boa amostra do conteúdo do evento, ainda que ele tenha sido realizado em duas etapas e com atraso, devido à ocupação da Universidade pelos acadêmicos, que protestavam contra medidas políticas ou educacionais então especuladas pelo governo federal. Temos 25 resumos, 13 artigos, uma palestra (das três palestras do evento, uma está aqui reproduzida, trazemos de outra o link para leitura na Guavira Letras, na qual foi publicada na edição de dezembro de 2016, e a outra está prometida pelo

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autor para publicação em breve). Registramos também a programação completa do evento. Nosso objetivo central neste momento é trazer a informação do que foi definido no 1º Congresso do GPLV, um dos eventos do 7º Seminário do GPLV e 2º Seminário de Linguística. Apresentado por um integrante do Grupo em uma das primeiras reuniões de 2016, após consulta prévia a mim, como fundador e líder do Grupo, tendo na sequência passado por várias etapas de discussão e de consultas, o Congresso aprovou alterar a nomenclatura do Grupo sem alterar seu acrônimo. A nova nomenclatura visa definir com maior clareza o trabalho realizado pelo GPLV no momento, assim como a refletir novas pesquisas que os integrantes do Grupo pretendem iniciar em futuro próximo. Desse modo, o GPLV ─ Grupo de Pesquisa Luiz Vilela ─ tornou-se GPLV ─ Grupo de Pesquisa Literatura e Vida. Fundado em maio de 2011 na cidade de Ituiutaba por mim e

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orientandos dos mestrados em Letras da UFMS de Três Lagoas e Estudos de Linguagens, da UFMS de Campo Grande, todos nós naquele momento desenvolvendo pesquisas sobre a obra de Luiz Vilela, aquele pesquisadores-fundadores, hoje, ampliaram o rol de pesquisas, e novos pesquisadores introduziram variáveis que o Grupo incorporou, de modo que a alteração se impunha para que mantivesse coerência com o trabalho realizado; registre-se, que o GPLV, o novo, mantem constantes algumas variáveis do antigo GPLV: deve realizar verticalizada análise narratológica, com referencial que se mostrar mais adequado, e a análise deve ser realizada tendo por fundamento a montagem de acervos literários e deve ter por um dos métodos intermediários a elaboração de fortunas críticas. Por outro lado, o projeto de pesquisa do qual nasceu o Grupo de Pesquisa, e que permitiu os sucessivos eventos nomeados “Seminários do GPLV”, além de outras atividades, cobria de 2011 a 2016, concluindo-se com um estudo sobre a

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metacrítica da recepção acadêmica à obra de Luiz Vilela ─ ora, embora haja no momento uma pesquisa de mestrado e cinco de doutorado em desenvolvimento no âmbito do Grupo, há uma pesquisa de pós-doutoramento sendo desenvolvida pela nossa co-líder, Profa. Eunice Prudenciano de Souza, exatamente sobre a metacrítica na recepção crítica à obra de Luiz Vilela. O próprio registro de que há pesquisas em andamento, realçando as de doutorado, que serão concluídas após o fechamento da pesquisa da Profa. Eunice, mostra que o estudo da obra de Luiz Vilela, assim como o sonho de trabalhar com o seu acervo (registre-se, en passant, que Vilela é arquivista compulsivo, guardando tudo que produziu, recebeu ou enviou ao longo dos, hoje, mais de sessenta anos de atividade literária), permanecem nucleares nas nossas pesquisas. No entanto, com um novo projeto de pesquisa, mais amplo, pudemos incorporar a nossos estudos pesquisas de conclusão de curso do Câmpus do Pantanal, da UFMS de

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Corumbá, sobre a escritora mineira Alciene (Maria) Ribeiro (Leite) (de Oliveira), hoje já na casa de meia dezena, assim como ─ também sobre Alciene ─ dois mestrados em Três Lagoas. Importa informar aqui que a escritora doou todo o seu acervo para o Prof. Rauer, e tal acervo tem sido organizado e trabalhado no Laboratório de Acervos Literários do Grupo de Pesquisa Literatura e Vida nas dependências do Programa de PósGraduação em Letras Mestrado e Doutorado da UFMS de Três Lagoas. Sem a ampliação da nomenclatura do Grupo, não poderíamos nele ter pesquisas na área da escolarização da literatura, que já eram realizadas por seus integrantes, tanto na pós-graduação acadêmica quanto no Profletras da UFMS de Três Lagoas, e que tem se mostrado fundamentais na discussão inclusive da literatura do Luiz Vilela, com realce para os volumes editorialmente direcionados para as escolas e para leitores jovens.

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Diga-se, por oportuno, que pesquisas sobre a obra de Manoel de Barros e de outros autores estão projetadas, sempre com a preocupação de montar acervos dos autores e de produzir fortunas críticas atualizadas, criteriosas e acessíveis. Para tanto, criamos

três

subgrupos:

gpluizvilela,

gpalcieneribeiro

e

gpmanoeldebarros; cada subgrupo tem um blog, e eles podem ser

acessados

diretamente

ou

a

partir

do

portal

<gpliteraturaevida.blogspot.com.br>; neles, há notícias, acervo, fortuna crítica, serviços em geral. Fica nosso convite para que acesse cada um deles. Ressalte-se, ainda, que o GPLV nasceu com cinco ou seis mestrandas e um líder, e hoje conta com um rol que inclui outros professores-pesquisadores, vários PIBICs, vários TCCs, vários mestres, vários mestrandos, vários doutorandos, diversos intercâmbios com professores de outras universidades, centenas de artigos, centenas de participações em eventos, seu líder fez estágio pós-doutoral na UERJ e o Grupo está próximo de formar

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um pós-doutorando, o primeiro na área de Letras na UFMS. Uma visão da variedade e número pode ser constatada pela programação do evento, logo nas primeiras páginas destes Anais. Por favor, releve, leitor, a indeterminação dos sucessivos “vários” no parágrafo anterior: é que, de fato, a nós importa menos o número, e mais, muito mais, o amor que todos nós, do GPLV ─ Grupo de Pesquisa Literatura e Vida ─, dedicamos à nossa causa, a Literatura, e à nossa missão: aprofundar o estudo da literatura, a partir da formação de acervos e a constituição de fortunas críticas, sem perder de vista um qualificado ensino da literatura para as novas gerações. Desejamos que estes Anais sejam mais um tijolo no edifício que estamos construindo para isso. E desejamos, claro, que tenha uma boa e proveitosa leitura.

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Programação 12 de dezembro de 2016 13h30 – Seminário de Pesquisa Sala de Acervos Literários do GPLV, Câmpus 1, UFMS, Três Lagoas Debatedora: Profa. Dra. Maria Cristina Cardoso Ribas (UERJ) Projetos em debate: 1. Karina de Fátima Gomes, projeto de doutorado sanduíche: A concepção de infância em contos de Alciene Ribeiro. 2. Letícia Alvarez Mendes, pré-projeto de mestrado: Augusto César Proença: Acervo e Fortuna Crítica. 3. Nathália Soares Fontes, pré-projeto de mestrado: A consciência do feminino nos contos de Alciene Ribeiro. 4. Katria Gabrieli Fagundes Galassi, pré-projeto de doutorado: A Fortuna Crítica de Judith Grossmann. 5. Maria do Socorro Pereira Soares Rodrigues do Carmo, projeto de mestrado: Alciene Ribeiro: uma vida registrada em Acervo.

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20h – Palestra Anfiteatro, Câmpus 1, UFMS, Três Lagoas Acervos literários: a prática, a teoria, a experiência - meu caso de amor com Machado de Assis, por Profa. Dra. Maria Cristina Cardoso Ribas (UERJ)

13 de dezembro de 2016 19h – Minicurso Sala do 3º ano da Graduação em Letras, Câmpus 1, UFMS, Três Lagoas Literatura e(m) Cinema: por um novo olhar sobre Adaptação, por Maria Cristina Cardoso Ribas (UERJ)

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16 de janeiro de 2017 13h30 às 18h – Debate de Projetos Sala do 1º ano da Graduação em Letras Câmpus 1, UFMS, Três Lagoas Debatedor: Prof. (CPAN/UFMS)

Dr.

Julio

Augusto

Xavier

Galharte

Projetos em debate: 1. Sueli Aparecida Racanelli da Silva, pré-projeto de doutorado: Fortuna crítica de Hélio Serejo: trajetória de um memorialista. 2. Marcos Rogério Heck Dorneles, projeto de doutorado: Ruínas e modos de narrar em A cabeça, de Vilela, e em Sete contos de fúria, de Vieira. 3. Mateus Antenor Gomes, pré-projeto de mestrado: Acovardamento e silenciamento em Os novos, de Luiz Vilela: uma análise da construção narrativa. 4. Natália Tano Portela, projeto de mestrado: Submissão e servidão: cerceamento do feminino em Alciene Ribeiro. 5. Ronaldo Vinagre Franjotti, pré-projeto de doutorado: O inferno é aqui mesmo - estudo sobre a presença do niilismo em contos brasileiros da segunda metade do século XX.

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17 de janeiro de 2017 8h30 às 10h – Sessão de Comunicações Salas da Graduação m Letras, Câmpus 1, UFMS, Três Lagoas

10h20 às 12h – Palestra Anfiteatro, Câmpus 1, UFMS, Três Lagoas Os desgraçados risos: uma comparação entre "Eu choro do palhaço", de Alciene Ribeiro Leite, e "Palhaço da boca verde", de João Guimarães Rosa, por Prof. Dr. Julio Augusto Xavier Galharte (CPAN/UFMS)

14h às 15h30 – Sessão de Comunicações Salas da Graduação m Letras, Câmpus 1, UFMS, Três Lagoas

15h30 às 18h – Palestra Anfiteatro, Câmpus 1, UFMS, Três Lagoas

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Contos de Luiz Vilela em Sala de Aula, por Me. Karina Torres Machado e Prof. Dr. Rauer Ribeiro Rodrigues (CPAN/UFMS)

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Resumos de linguística A PRESENÇA DO TEXTO NA SALA DE AULA: PORTAS PARA O INUSITADO? Aline Rodrigues da Silva (CPTL/UFMS) Celina Aparecida Garcia de Souza Nascimento (CPTL/UFMS) Resumo: Compreende-se que o melhor lugar de expressão da dialética entre estabilidade e instabilidade é o texto, pois convive com imprevistos e acontecimentos. Logo, este trabalho objetiva analisar como ocorre a interação e o uso do texto em sala de aula a partir de uma perspectiva sócio histórica e interacionista, a fim de contribuir no aprendizado da linguagem enquanto formação social do aluno. A base teórica se sustenta a partir da Linguística Aplicada, fundamentada em Geraldi (2009, 1993, 2010) e Kleiman (2008), numa interface com a Psicologia da Aprendizagem, a partir de Vygotsky (1991) e Leontiev (1978). Enfim, o córpus pesquisado consistiu nos textos utilizados em sala, em dados da interlocução que antecedeu a utilização destes e em entrevistas realizadas com alunos e professor sobre o desenvolvimento da aula em uma turma de 8º ano na cidade de Três Lagoas-MS. Ademais, nota-se a excessiva preocupação com

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o conteúdo em detrimento da prática social de comunicação em um contexto significativo. Palavras-chave: Ensino e aprendizagem, texto, acontecimento.

O ALUNO SURDO (NÃO) APRENDENDO ESPANHOL: UMA OBSERVAÇÃO A PARTIR DA REALIZAÇÃO DO ESTÁGIO OBRIGATÓRIO EM LÍNGUA ESPANHOLA I Flávio Faccioni (CPTL/UFMS) Amaya Abata Mouriño de Almeida Prado (CPTL/UFMS) Resumo: O estágio obrigatório leva o acadêmico a conhecer o microterritório da educação, a escola. É neste período que o aluno observa, com maior ênfase, as relações entre a teoria e prática, e além disso adquire práticas pedagógicas para sua docência. Para a realização do estágio em língua espanhola procedeu-se com as leituras teóricas do ensino de línguas de Sabino (1994), Leffa (1988), Rojo (2013), entre outros. Durante as aulas observadas percebeu-se, em especial, que a aprendizagem de espanhol como L4 se torna muito mais difícil para o aluno surdo. Observando esta questão, propõe-se neste trabalho analisar o processo de ensino por parte do professor, observando suas metodologias e a aprendizagem da língua espanhola pelo

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aluno surdo. E por fim, pretende-se propor uma sequência didática, a partir dos moldes de Dolz e Shneuwly (2004), para o ensino de língua estrangeira para o aluno surdo.

OS GUANÁS – LAYANA, KINIKINAU E TERENA: A BUSCA PELO MATERIAL DIDÁTICO Flávio Faccioni (CPTL/UFMS) Claudete Cameschi de Souza (CPTL/UFMS) Resumo: Este trabalho tem como objetivo analisar os processos híbridos identitários dos povos indígenas, habitantes do etnoterritório “Povos do Pantanal”, que se voltam para a reflexão, produção e aplicação de material didático para a manutenção dos saberes indígenas. Sendo assim, observa-se a busca pela manutenção cultural, artística e linguística dos povos Terena, Kinikinau e Layana (falantes de línguas da família linguística Aruak). Para tal análise, observou-se os trabalhos de conclusão de curso da Licenciatura Intercultural Indígena “Povos do Pantanal” (PROLIND) de Roberto (2014), Silva (2014) e o material didático produzido por Julio et al. (2015), que acreditam, a partir das produções e por meio da Educação Escolar Indígena, no ensino e aprendizagem dos saberes e vivências indígenas. Por fim, observa-se a busca de cada povo

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pela continuidade étnica a partir da educação e de materiais didáticos por eles produzidos. Palavras-chave: Povos indígenas, Línguas indígenas, Ensino e Aprendizagem, Material didático.

O DISCURSO KINIKINAU SOBRE CULTURA, IDENTIDADE E EDUCAÇÃO Maira Luana Morais (CPTL/UFMS) Claudete Cameschi de Souza (CPTL/UFMS) Resumo: Integrado ao Projeto de Pesquisa Koenukunoe: língua e Cultura, este Plano de Trabalho teve como o objetivo geral contribuir para a visibilidade do povo Kinikinau, e, por especifico, analisar o discurso Kinikinau sobre cultura, identidade e educação. A pesquisa ancorou-se nos pressupostos da Análise de Discurso para a discussão dos conceitos de sujeito, formação ideológica e discursiva, interdiscurso e memória discursiva, sobretudo nos estudos de Foucault (2008), Coracini (2007); na Linguística Aplicada e no método arqueogenealógico de Foucault. O corpus foi constituído de recortes extraídos de um Trabalho de Conclusão de Curso, de um professor indígena Kinikinau e cinco textos produzidos por alunos do ensino

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fundamental (2º segmento). Os resultados apontaram que em decorrência das inúmeras transformações nas estruturas econômicas e políticas, os povos indígenas tem sua cultura, língua e identidade afetadas pelos modos de vida do branco e, portanto, (re) significam suas práticas, crenças e necessidades na contemporaneidade situando-se no entre lugar conflituoso que, de um lado, o mantém em uma relação de dependência e integração com a natureza, com os valores culturais, linguísticos e identitários de seu grupo, e do outro, o coloca frente a frente com os valores da sociedade hegemônica que deseja para si. Palavras-chave: Discurso Indígena; kinikinau; Língua.

IMPLICATURAS E MÁXIMAS CONVERSACIONAIS: REGRAS INERENTES AO FUNCIONAMENTO DA CONVERSAÇÃO Maria Izabel Gerstemberger de Oliveira (CPTL/UFMS) Nayra Modesto dos Santos Nunes (CPTL/UFMS) Resumo: O presente trabalho visa discorrer sobre os campos linguísticos: Semântica e Pragmática, mais especificamente, com foco na visão teórica das Implicaturas e Máximas conversacionais. O objetivo consiste em evidenciar as regras

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inerentes ao funcionamento da conversação. O aporte teórico da pesquisa está ancorado em autores como Araújo (2007), Cançado (2005), Crystal (1985), Fiorin (2010), Grice (1975), Oliveira e Basso (2014), entre outros. Assim, pretende-se, sobretudo, refletir acerca das funções exercidas pelos elementos que constituem a linguagem, na construção do seu significado – Implicaturas e o Princípio de Cooperação, mediante as Máximas conversacionais. Logo, dispomos apresentar as regras que regem a conversação. Para tanto, foram analisadas algumas situações da conversação cotidiana. Os resultados apontam que esses processos Semânticos e Pragmáticos, dentre vários outros, contribuem para a produção da interação e para que o falante atinja os seus propósitos comunicativos. Palavras-chave: Implicaturas; Conversação.

Máximas

conversacionais;

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Resumos de literatura A REALIDADE E A VOZ DO LEITOR NO MÉTODO RECEPCIONAL Ângela Nubiato Lopes (CPTL/UFMS) Priscila Feliciano Costa (Unesp-Marília) Resumo: O método recepcional, cuja fundamentação teórica reside nos postulados da Estética da Recepção, é descrito no livro de Maria da Gloria Bordini e Vera Teixeira Aguiar, Literatura: a formação do leitor ─alternativas metodológicas (1993), e estruturado como um método de escolarização da literatura. O objetivo do método é o desenvolvimento de atitude participativa dos alunos no contato com os diferentes textos, sendo a função mediadora do docente incentivar e provocar nos alunos a análise crítica de sua interação com a obra. O livro de Bordini e Aguiar nos coloca em contato com problemas referentes à formação de leitores literários e propõe o trabalho com cinco metodologias, entre as quais o método recepcional. As autoras propõem tais alternativas para suprir lacunas no trabalho com a literatura em sala de aula a partir do diagnóstico do crescente desinteresse por leitura de literatura pelos alunos conforme avanço no grau de

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escolaridade ─ quadro esse que desde então tornou-se ainda mais grave. Os métodos estruturados na leitura de literatura fornecem liberdade ao docente na escolha dos materiais literários que serão estudados. Escolhemos a obra do escritor Luiz Vilela, a partir da consideração de que o escritor mineiro desenvolve temas que permeiam constantemente o imaginário juvenil tais como as dores da juventude, a sensibilidade das pessoas, a solidão humana, a incomunicabilidade no contexto social e conflitos existenciais. Relatamos o desenvolvimento da proposta entre estudantes do 8° ano do Ensino Fundamental, visando formação literária tendo por premissa a voz do leitor e sua realidade. Os resultados da aplicação do método demonstraram a importância de associar literatura e cotidiano dos alunos como meio de desenvolver a reflexão crítica e autônoma. Isso provocou grande interesse e motivação nos alunos, fazendo-os superar o horizonte de expectativas em que se encontravam antes do trabalho ser iniciado. Palavras-chave: Alternativas Metodológicas, Literatura, Luiz Vilela, Método Recepcional.

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A CULTURA POP E O SIMBOLISMO RELIGIOSO: UMA LEITURA SEMIÓTICA Diego Barcellos de Souza (CCHS/UFMS) Resumo: Desde o surgimento do videoclipe, uma grande variedade de linguagens é utilizada com o intuito de transmitir uma determinada mensagem. Na cultura pop, as produções audiovisuais são repletas de simbolismos que fazem alusão à religião e contém várias mensagens que podem ser interpretadas de diversas formas. O presente estudo pretendeu, por meio da utilização dos princípios teóricos da Semiótica de Charles Sanders Peirce, interpretar essas mensagens e compreender de que forma a linguagem contribui para a transmissão de uma determinada informação. Como objeto de estudo, foram utilizados alguns videoclipes antigos e atuais da cultura pop que contém os elementos citados e a análise foi feita levando-se em consideração o uso dos elementos simbólicos dentro do contexto geral da obra audiovisual. Palavras-chave: linguagem; videoclipe; semiótica; cultura pop.

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LIVING FOR LOVE: UMA LEITURA SEMIÓTICA DA PRODUÇÃO AUDIOVISUAL DA CANTORA MADONNA Diego Barcellos de Souza (CCHS/UFMS) Resumo: Conhecida por ser uma artista inovadora e versátil, a cantora norte-americana Madonna surgiu no mercado fonográfico no ano de 1983 e há mais de 30 anos se mantém em voga na cena musical. Tida como referência por diversas artistas atualmente, a cantora se destaca por sua versatilidade e constante reconstrução. No videoclipe intitulado Living for Love (2015), a cantora apresenta uma obra audiovisual simples, porém repleta de significados. Com base na teoria semiótica de Charles Sanders Peirce, o presente estudo procurou interpretar a linguagem utilizada no enredo do videoclipe, viabilizando uma compreensão do contexto geral da obra. A semiótica como base interpretativa possibilitou uma leitura mais concisa da mensagem apresentada, comprovando a importância da utilização desta teoria na compreensão da mensagem audiovisual. Palavras-chave: semiótica; videoclipe; Madonna; living for Love.

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A METÁFORA DO EU, NO CONTO “O BURACO”, DE LUIZ VILELA Elcione Ferreira Silva (CPTL/UFMS) Resumo: O conto O buraco é uma das peças que compõem a obra Tremor de terra, do escritor Luiz Vilela (2003).O objetivo deste artigo é apresentar como procede o processo metafórico, a partir do título da obra. A postura do narrador é fundamental para exemplificar o desenvolvimento do percurso metafórico.Tomamos, como suporte teórico: Paul Ricouer (2000) com a obra A metáfora Viva, assim como, o capítulo, Para uma pedagogia da metáfora de José Paulo Paes (1997) . Palavras-chave: Metáfora; Narrador; Luiz Vilela.

A SOLIDÃO E O VAZIO: EXPECTATIVA DO “OUTRO” EM LUIZ VILELA Eliza da Silva Martins Peron (CPTL/UFMS) Resumo: Esse artigo versa sobre o tema da solidão e o vazio em dois contos de Luiz Vilela, dentre eles Zoiuda, de Você Verá (2014), e Bem, do livro homônimo discutindo de que maneira

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essas temáticas se inscrevem na tessitura do texto. Assinalamos ainda, as recorrências desses temas na ficção do autor apontados pela crítica como elementos comuns a seu fazer literário somados à incomunicabilidade nas relações humanas. Como suporte teórico, utilizaremos as teorias de Majadas (2011) e Rauer (2006) no que concerne à solidão bem como Houaiss (2003) na tentativa de defini-la. Em relação ao outro nos pautaremos em Todorov (2003) e para elucidarmos os sentidos do vazio, nas definições de Chevalier & Gheerbrant (2015). Após as considerações e análise de como os elementos retratados acima se constituem, procuramos deslindar de que maneira essa própria incomunicabilidade, o vazio e a solidão também compõem o mote para o encontro com o outro. Palavras-chave: Solidão; Vazio; Incomunicabilidade.

O REVELAR POÉTICO EM CLAUDIA ROQUETTE-PINTO Eloiza Fernanda Marani (CPTL/UFMS) Resumo: Claudia Roquette-Pinto, embora tenha publicações significantes, ainda é uma escritora pouco conhecida nos meios acadêmicos. Entretanto, o estudo de sua poética revela uma autora que se apropria de recursos literários, como a metáfora,

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para sinalizar uma de suas principais características – a metapoesia –, através de assimilações e exaltações às simplicidades e insignificâncias do cotidiano, como jardins e insetos. Para isso, apresentaremos a análise do poema “Nada”, constituinte da obra Corola, no intuito de exemplificar, ilustrar e apontar o percurso trilhado pela autora na formação do constructo poético. Palavras-chave: Literatura Brasileira; Poesia Contemporânea; Metapoesia.

MODOS DE CONSTRUÇÃO DO NARRADOR CONTEMPORÂNEO: UMA ANÁLISE DE MONGÓLIA, DE BERNARDO CARVALHO Eloiza Fernanda Marani (CPTL/UFMS) Maisa Barbosa da Silva Cordeiro (CPTL/UFMS) Resumo: Este artigo tem como proposta analisar os modos de construção do narrador contemporâneo no romance Mongólia, de Bernardo Carvalho. Por meio do movimento de articulação de três narrações distintas para compor uma única diegése, a narrativa se destaca pelo mistério que envolve o encontro das vozes nela presentes. Trazendo à tona a ideia de que o narrador

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do romance contemporâneo não se propõe mais a partilhar aconselhamentos, Mongólia evidencia caminhos distintos pela busca da própria história. Desse modo, é objetivo deste trabalho entender de que modo o narrador é construído e de que modo o foco narrativo é articulado. Palavras-chave: Narrador contemporâneo; Romance; Mongólia; Bernardo Carvalho.

A MORTE EM LUIZ VILELA: DO PRIVADO AO PÚBLICO Eunice Prudenciano de Souza (CPTL/UFMS) Resumo: O presente artigo discute a morte da privacidade na obra de Luiz Vilela, por meio de alguns contos que colocam em cena a questão da morte e a atitude dos seres humanos frente à tragicidade da vida. A reflexão sobre a respectiva temática vai aparecer em contos como “Vazio”, “Enquanto dura a festa” e “Velório”, de Tremor de Terra (1967), “Fazendo a barba”, de O fim de tudo (1973), “A cabeça”, de livro homônimo (2002), “Corpos” e “O que cada um disse”, de Você verá (2013). Nos primeiros contos, das coletâneas Tremor de Terra e O fim de tudo, as narrativas abordam a morte em âmbito mais privado, restritos

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ao círculo familiar e ao de amigos, enquanto os contos de A cabeça e Você verá ganham o espaço do público, das ruas e do mundo virtual, em que é perceptível a banalização da morte como um dos fenômenos da chamada sociedade contemporânea do espetáculo. De certo modo, as mídias sociais e as tecnologias contribuíram para que a solidão na hora da morte, antes restrita à esfera familiar, adquirisse os contornos do público. Os contos apontados, a nosso ver, retratam uma mudança de atitude do homem contemporâneo em relação à Morte. Para nossa discussão alicerçamo-nos em estudos históricos e sociológicos, como os de Ariès e Bauman. Palavras-chave: histórico; Luiz Vilela; morte; sociedade.

AS NARRATIVAS DE POE E A CONSTITUIÇÃO DO ALUNO LEITOR-AUTOR Gabriel Lúcius dos Santos (CPTL/UFMS) Aline Rodrigues da Silva (CPTL/UFMS) Resumo: Este trabalho é resultado de observação e regência de aulas em uma sala do oitavo ano em uma escola Estadual de Três Lagoas-MS, situa-se no campo teórico-metodológico da Linguística Aplicada a partir de Geraldi (1993), Dolz (2004) e

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Alarcão (2003) e tem como objetivo descrever e refletir acerca do ensino de língua portuguesa a partir da prática em sala de aula. Assim, fomentada pelo Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID), foi elaborada e aplicada uma Sequência Didática (SD) que objetivou a manipulação, leitura e compreensão de contos de terror, especialmente, do autor Edgar Allan Poe, com contação de histórias, leituras na biblioteca e em sala e, posteriormente, a escrita de contos de terror, que após algumas etapas de produção resultou em um livro. Por fim, percebe-se a aparente motivação dos alunos ao vivenciar os contos e ao os atribuir sentido durante as aulas. Considera-se, então, que o planejamento e a reflexão acerca das aulas antes, durante e depois se apresentam como extremamente importantes para uma boa prática em sala de aula. Palavras-chave: Leitura; produção de texto; Contos de terror.

“BONÉ VERMELHO”, DE ALCIENE RIBEIRO LEITE: CHAPEUZINHO VERMELHO REPAGINADA – METÁFORAS DE ONTEM E HOJE Karina de Fátima Gomes (CPTL/UFMS)

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Resumo: O conto “Boné Vermelho” (LEITE, 1988) foi publicado na coletânea “Um jeito Vesgo de Ser”, fazendo parte da Coleção Narrativas, da Editora do Brasil S/A. É um texto de leitura simples, clara, objetiva, com personagens que já são de domínio público (pelo menos metaforicamente: chapeuzinho vermelho, lobo, vovó). Boné Vermelho, a personagem central, recebe da mãe a incumbência de fazer uma entrega para sua avó, em se tratando de uma releitura moderna, elementos do cotidiano das grandes cidades aparecem neste percurso: ônibus, becos, bairro perigosos, homens que fazem insinuações. Neste trabalho, será realizada um estudo da obra Chapeuzinho Vermelho, e das metáforas que se encontram de forma generalizada na mesma, serão apresentadas releituras e apresentações do conto clássico na contemporaneidade e será realizada a análise do conto “Boné Vermelho” observando a construção e a presença de metáforas constantes na trama de Alciene, sendo estas muito relevantes na trama e no discurso, permitindo verificar a presença de uma voz narrativa questionadora e irônica. Para o estudo da metáfora, nos valemos de referencial colhido em Aristóteles, em Paul Ricouer e em José Paulo Paes. Palavras-chave: Alciene Ribeiro Leite; releitura; Chapeuzinho Vermelho; metáfora; reconto.

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A REPRESENTAÇÃO DA MULHER EM A DANÇA DOS CABELOS, DE CARLOS HERCULANO LOPES Lydyane de Almeida Menzotti Silva (CPTL/UFMS) Ricardo Magalhães Bulhões (CPTL/UFMS) Resumo: A partir da análise do romance A dança dos cabelos, pretendemos examinar a representação da mulher nesta obra de Carlos Herculano Lopes. O romance em que a trajetória das três personagens principais, que se chamam Isaura, é narrada em primeira pessoa gramatical e apresenta grande penetração na psicologia feminina, é memorialista. Essas narradoras analisam, descrevem e comentam o que se passa na vida da família, o que é muito significativo para a análise proposta, visto que traz à tona o espaço de submissão que acompanha o sujeito feminino desde sua infância. Julgamos necessário, apresentar a representação do espaço na obra, já que este contribuí de forma significativa para análise como um todo. Palavras-chave: Romance; Representação; Espaço; Mulher.

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IDENTIDADE: UMA BUSCA EM O ÚLTIMO CONHAQUE DE CARLOS HERCULANO LOPES Lydyane de Almeida Menzotti Silva (CPTL/UFMS) Ricardo Magalhães Bulhões (CPTL/UFMS) Resumo: A globalização, os avanços da era tecnológica do mundo contemporâneo e o trauma de momentos históricos sociais, como a ditadura no Brasil, têm provocado sentimentos de rupturas, fragmentação do indivíduo e tensão na sociedade. Não é difícil perceber que esses sentimentos tenham se refletido nas artes, e a literatura enquanto arte tem produzido essas impressões por meio da palavra. No romance O último conhaque, do escritor mineiro Carlos Herculano Lopes, o protagonista recupera antigas lembranças que têm como cenário uma paisagem tipicamente rural em Santa Marta. Trata-se de um texto que narra a história desse homem desenraizado e atormentado pelas memórias de sua infância e que representa a metáfora do ser deslocado, em busca de identidade. Nos ancoramos em autores como Antonio Candido (2000), Benjamin (1994), Hall (2006), Ginzburg (2012), entre outros. Palavras-chave: Contemporâneo.

Memória;

Identidade;

Social;

Busca;

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“POR TODA A VIDA”: "MEMÓRIA DA BIBLIOTECA" DE LUIZ VILELA Lucas Rodrigues Neves (CPTL/UFMS) Resumo: Com o trabalho proposto, pretendemos desenvolver um estudo onomástico das personagens do conto "Por toda a vida", do escritor mineiro Luiz Vilela, que está presente em sua obra inicial, Tremor de Terra (1967). Acreditamos que a nomenclatura das personagens não ocorre de forma aleatória, constituindo-se em signos dispostos de significado, o que o torna primordial na construção do texto. Ao pensarmos no texto ficcional como uma estrutura, descrevemos os efeitos de sentido dos contos, nos quais as personagens são nomeadas de forma a compor um todo significativo com a cena. Tal estudo nos propicia um modo de aproximação do fazer poético do escritor. Para embasar teoricamente o estudo, vamos nos valer, inicialmente, do seguinte referencial: de Ana Maria Machado, Recado do nome; de Leyla Perrone-Moisés, Mutações da Literatura no Século XXI; de Antonio Candido e Anatol Rosenfeld, A Personagem de Ficção; de Autran Dourado, Personagem, Composição, Estrutura; e de Nelson Oliver, Dicionário de nomes. Palavras-chave: Tremor de Terra; Personagens; Onomástica.

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ASPECTOS ELUSIVOS EM CONTOS DE A CABEÇA, DE LUIZ VILELA. Marcos Rogério Heck Dorneles (CPTL/UFMS) Eunice Prudenciano de Souza (CPTL/UFMS) Resumo: Artigo sobre contos do livro A cabeça, de Luiz Vilela, com destaque para análise e interpretação dos elementos constitutivos, e para a percepção de aspectos elusivos na criação da narrativa literária. Como objetivos principais da atividade situam-se o levantamento dos procedimentos recorrentes na produção desse livro, a percepção de camadas textuais que não se encontram evidentes na superfície de alguns contos e a associação dessa escrita a uma visão de mundo. O artigo foi realizado por meio da leitura de contos do autor, e de textos das teorias narrativas, da recepção crítica e dos estudos filosóficos. Derivam da pesquisa também o registro de temas, tensões e intertextos dispostos nas estruturas narrativas. Palavras-chave: Conto; Literatura; Luiz Vilela.

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20 ANOS DE AMÉLIA: 20 DE SUBMISSÃO E RESISTÊNCIA Maria do Socorro Pereira Soares Rodrigues do Carmo (CPTL/UFMS)

Resumo: Este trabalho tem por objetivo explicitar como se dá a construção da personagem Amélia no conto “Vinte anos de Amélia”, que integra a coletânea Eu choro do palhaço (1989), da escritora mineira contemporânea Alciene Ribeiro Leite. No conto, temos o espaço patriarcal da personagem feminina totalmente submissa ao homem que, após vinte longos anos de matrimônio e total submissão, resolve libertar-se. A narrativa é estruturada pelo tempo psicológico, pois é através das memórias de Amélia que o narrador onisciente relata os fatos, descrevendo uma mulher submissa, que desempenha, com zelo e determinação, o papel de dona de casa, mãe e esposa. Amélia leva uma vida de servidão, imposta pelo casamento, cumprindo o seu papel social e assim fazendo jus ao juramento de subserviência que professara ao marido e à sociedade durante a realização pública do matrimônio. Com o passar do tempo, a personagem começa a refletir sobre a sua vida e o que fizera dela. Após as reflexões, a personagem surge com um novo olhar sobre si mesma, frente à realidade opressora em que vive. O enredo do conto nos apresenta a mulher contemporânea e sua resistência à submissão, que lhe foi imposta por normas e regras sociais oriundas do sistema patriarcal. Deste modo, o conto nos permite

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observar uma mudança na condição feminina: da absoluta submissão à possibilidade de um novo reposicionamento, condizente com as reorganizações sociais do mundo contemporâneo. Temos no conto a configuração de um grande problema social presente nos tempos contemporâneos. A metodologia utilizada foi revisão bibliográfica e como aporte teórico, utilizamo-nos dos pensamentos de Alfredo Bosi, Simone de Beauvoir, Stuart Hall, Rose Marie Muraro, dentre outros. Palavras-chave: Feminismo; Resistência; Sociedade.

UMA LEITURA DE “MULHER EM RECESSO”, DE ALCIENE RIBEIRO LEITE Natália Tano Portela (CPTL/UFMS) Resumo: Dentre 449 trabalhos concorrentes, "Mulher em Recesso", de Alciene Ribeiro Leite, foi um dos dez contos indicados para publicação na coletânea 8º Concurso de Contos Luiz Vilela (1999). O conto, narrado em terceira pessoa, descreve um dia da vida da personagem “mulher” com seus afazeres domésticos. Este trabalho pretende uma leitura desse conto a partir da construção da personagem feminina, tendo por objetivo

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demonstrar sua tomada de consciência e consequente mudança comportamental. Palavras-chave: Alciene Ribeiro Leite; conto; feminismo.

ACERVO LITERÁRIO E FORTUNA CRÍTICA: UMA AMOSTRA DAS ENTREVISTAS E DEPOIMENTOS DE LUIZ VILELA Rodrigo Andrade Pereira (CPTL/UFMS) Resumo: Ao debruçarmos sobre as entrevistas e depoimentos do

escritor mineiro Luiz Vilela, percebemos a necessidade de analisarmos as “faces” construídas pelo escritor diante de seus interlocutores. Estabelecida importância e o lugar da entrevista e do depoimento diante do acervo literário do escritor, até para podermos lidar não com todos, mas apenas com os mais significativos, nos debruçaremos neste artigo em uma pequena amostragem das entrevistas e depoimentos de Luiz Vilela, algumas delas já publicadas, sendo uma ainda em arquivo digital. Tais entrevistas e depoimentos, juntando-se à outras, e são inúmeras, consistirá em uma parte do acervo literário do escritor.

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Palavras-chave: Acervo Literário; Luiz Vilela; Entrevistas; Depoimentos.

A LEITURA LITERÁRIA COMO ESTRATÉGIA DE ESCRITA DO TEXTO DISSERTATIVO Rodrigo Andrade Pereira (CPTL/UFMS) Resumo: A prática de leitura de textos ficcionais como leitmotiv para a produção de textos dissertativos é uma prática pouco usual em muitas oficinas textuais. Este texto, portanto, tem por objetivo apresentar uma reflexão acerca do trabalho com esse tipo de leitura nas oficinas de escrita que se efetiva no ensino médio. Mais especificamente, pretende-se refletir acerca da importância da leitura do texto literário como responsável pela construção de repertório e técnicas de escrita, bem como, a partir dos temas “dissertativos” abordados por alguns contos, neste caso, contos de Luiz Vilela, refletindo a cerca deles, desenvolver textos dissertativo-argumentativos mais eficientes do ponto de vista da força argumentativa e da organização da linguagem. Palavras-chave: Leitura; Produção de textos; Contos; Luiz Vilela.

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O NIILISMO EM “AXILAS E OUTRAS HISTÓRIAS INDECOROSAS”, À LUZ DO PENSIERO DEBOLE Ronaldo Vinagre Franjotti (CPTL/UFMS) Resumo: A presente comunicação visa discutir o volume de contos “Axilas e outras histórias indecorosas”, do carioca Rubem Fonseca, especificamente no que tange ao aspecto do niilismo presente na obra, correlacionando-o com a obra do filósofo italiano Gianni Vattimo. O principal conceito da obra do pensador italiano é a noção de pensiero debole (pensamento fraco/débil). A nomenclatura peculiar se refere a um enfraquecimento do pensamento, e da própria noção de finalidade da filosofia na contemporaneidade. Esse enfraquecimento das noções absolutas da verdade filosófica é uma marca da flexibilidade moral e ideológica do século XX, quando, a partir do materialismo histórico, dentre outras correntes, decretou-se a morte da metafísica. Esse arcabouço teórico pode iluminar a supracitada obra de Fonseca pois ela, em sua pluralidade existencial e moral, propõe justamente essa aniquilação da verdade como conceito absoluto, elegendo novos conceitos ou mesmo recuperando valores agora desprezados. Palavras-chave: Niilismo; Pensiero Debole; Rubem Fonseca; Gianni Vattimo; Conto.

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SEQUÊNCIA DIDÁTICA: A CONTRIBUIÇÃO À MELHORIA DO DESENVOLVIMENTO DO ENREDO EM NARRATIVAS DE CONTOS Sueli Aparecida Racanelli Da Silva (CPTL/UFMS) Solange De Carvalho Fortilli (CPTL/UFMS) Resumo: A produção de um texto coeso, coerente e em conformidade com os traços do gênero ao qual pertence é um dos propósitos do ensino da língua portuguesa na Escola Básica. Para isso, é preciso levar os alunos a construir um caminho em sua produção textual, a partir de um trabalho específico em sala de aula. Nesse sentido, o objetivo deste artigo é verificar, a partir da aplicação de uma sequência didática, o adensamento do elemento narrativo enredo no gênero conto literário. Nosso foco é observar, a partir de estratégias de reescritas direcionadas pelo docente, o ganho materializado no enredo, que contribui para um texto mais coeso, coerente, mais denso. A opção metodológica, a sequência didática, proporcionou ao aluno escrever um primeiro textos, que permitiu visualizar os pontos a serem melhorados. Posteriormente, desenvolvemos ações específicas para saná-los, ou minimizá-los. Essas ações compreenderam leituras e releituras de contos de Machado de Assis e Luís Vilela, atividades que aprofundavam os saberes sobre os elementos da narrativa, e reescrita de textos de outros alunos, para que, ao corrigi-los, conhecessem o que lhes é

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cobrado numa produção de texto. Os resultados mostram que, ao realizar ações específicas a partir de sequência didática visando um aprofundamento no desenvolvimento do elemento literário enredo, o aluno reconstruiu seu texto de forma mais coesa, delimitando informações a partir de segmentação por períodos mais organizados e substituindo palavras de acordo com o contexto, o que permite ao autor melhoria na competência escritora. Palavras- chave: Enredo; Sequência Didática; Reescrita.

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Resumo de minicurso LITERATURA E(M) CINEMA: POR UM NOVO OLHAR SOBRE ADAPTAÇÃO Maria Cristina Cardoso Ribas (UERJ) Resumo: Diante da crescente demanda pelos estudos das narrativas contemporâneas que recolocam em cena o diálogo Literatura e outras linguagens, vimos propor uma reflexão sobre Adaptação de textos literários pelo cinema. Pretendemos discutir, do ponto de vista do pesquisador da área de Letras, o conceito de adaptação (Hutcheon, 2006) e seus desdobramentos, sobretudo quando erigidos a partir de condicionamentos prévios que direcionam as análises usuais sobre o tema de forma redutora. No processo de migração entre as narrativas literária e fílmica, a perspectiva tradicionalista as estigmatiza, respectivamente, em texto fonte e texto derivado (STAM, 2000), numa ordem hierárquica quase insolúvel e avessa ao método comparativista (CARVALHAL, 2006). Tais estigmas serão postos em xeque a partir de tópicos da teoria literária circunscritos a: (1) noção de sujeito, autoria; (2) postulados de originalidade, continuidade e fidelidade; e (3) cadeia linear origem, meio e fim.

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Como problematização da proposta, faremos, ainda, um breve estudo comparativo do conto de Machado de Assis “Pai contra Mãe” (Relíquias da Casa Velha, 1906) e o filme de Sergio Bianchi, “Quanto vale ou é por quilo” (2005). Esperamos trazer, ao debate, tópicos usualmente aceitos como dispositivos de valorização e validação das narrativas em jogo e, em última análise, da obra artística e do próprio discurso crítico sobre a arte e que obliteram o nosso olhar sobre a produção artística na contemporaneidade. Palavras-chave: Adaptação; Literatura e cinema; Migração de narrativas; Machado de Assis; Sergio Bianchi.

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Palestras OS DESGRAÇADOS RISOS: UMA COMPARAÇÃO ENTRE "EU CHORO DO PALHAÇO", DE ALCIENE RIBEIRO LEITE, E "PALHAÇO DA BOCA VERDE", DE JOÃO GUIMARÃES ROSA Julio Augusto Xavier Galharte (CPAN/UFMS)

ACERVOS LITERÁRIOS: A PRÁTICA, A TEORIA, A EXPERIÊNCIA - MEU CASO DE AMOR COM MACHADO DE ASSIS1 Maria Cristina Cardoso Ribas (UERJ) Resumo: Relato de pesquisa realizada na Academia Brasileira de Letras, no Arquivo Machado de Assis, do Centro de Memória da ABL. A documentação, constituída majoritariamente de O texto completo pode ser conferido em edição da Revista Guavira, Três Lagoas/MS, n. 23, p. 122-138, jul./dez. 2016. Disponível em: <http://websensors.net.br/seer/index.php/guavira/article/view/461/425> 1

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manuscritos, abre um leque de possibilidades interpretativas sobre os perfis de Machado e permite reconhecer o foco oblíquo com que o “bruxo” radiografa a sociedade carioca do século XIX em sua passagem para o XX. A reconhecida obliquidade da lente machadiana ganha novas cores e máscaras no exame cuidadoso do acervo.

LENDO CONTOS DE LUIZ VILELA NA SALA DE AULA Karina Torres Machado (SEE-SP) Rauer Ribeiro Rodrigues (CPAN/UFMS) Resumo: Este artigo apresenta a síntese de uma pesquisa-ação, realizada em uma escola pública de cidade do interior do Estado de São Paulo, que utiliza alternativas metodológicas de ensino do texto literário. Buscamos ressignificar o papel ocupado pela leitura de textos literários no atual Ensino Fundamental II. A área de Língua Portuguesa em São Paulo oferece material com a proposta de desenvolver competências de leitura e de escrita por meio de leituras obrigatórias, textos instrumentais e fragmentos que se apropriam do texto literário de modo utilitário, em prática defasada e descontextualizada, aquém de uma proposta que tenha centralidade no texto literário. Devido a isso, ocorre descrédito no ensino de literatura e fracasso na formação de

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leitores. Nosso referencial teórico teve por alicerce as reflexões de Bordini e Aguiar no livro Literatura: a formação do leitor - alternativas metodológicas (1993). As cinco propostas elaborados pelas autoras nos possibilitaram flexibilizar a atuação em sala de aula, promovendo o contato dos alunos com o texto literário, formando leitores e despertando o gosto pela leitura literária. Partimos da concepção de que o texto literário ultrapassa ao informativo e ao utilitário e que cabe ao educador propor leituras que promovam, para o aluno, a percepção estética, a ampliação do horizonte de expectativa e a construção de sentidos de modo consciente e linguisticamente competente, o que o contato com a literatura proporciona de modo muito superior à proposta curricular vigente. Também utilizamos os conceitos de leitura de literatura na escola de Marisa Lajolo e de Regina Zilberman. Verificamos que a proposta desenvolvida, com a inserção das alternativas metodológicas e o trabalho com o texto literário, contribuiu para a formação de leitores, o que a atual proposta curricular do estado de São Paulo não tem propiciado. Como corpus da pesquisa, valemo-nos da obra contística de Luiz Vilela, inclusa em antologias destinadas ao público infantojuvenil, pois são contos com os quais os alunos se identificam, pelo perfil das personagens, pelo enredo encenado e pelo pathos vivenciado. Palavras-chave: Escolarização da literatura; Formação de leitores; Literatura Brasileira; Metodologias de ensino.

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Texto de palestra completo LENDO CONTOS DE LUIZ VILELA NA SALA DE AULA Karina Torres Machado (SEE-SP) Rauer Ribeiro Rodrigues (CPAN/UFMS) Resumo: Este artigo apresenta a síntese de uma pesquisa-ação, realizada em uma escola pública de cidade do interior do Estado de São Paulo, que utiliza alternativas metodológicas de ensino do texto literário. Buscamos ressignificar o papel ocupado pela leitura de textos literários no atual Ensino Fundamental II. A área de Língua Portuguesa em São Paulo oferece material com a proposta de desenvolver competências de leitura e de escrita por meio de leituras obrigatórias, textos instrumentais e fragmentos que se apropriam do texto literário de modo utilitário, em prática defasada e descontextualizada, aquém de uma proposta que tenha centralidade no texto literário. Devido a isso, ocorre descrédito no ensino de literatura e fracasso na formação de leitores. Nosso referencial teórico teve por alicerce as reflexões de Bordini e Aguiar no livro Literatura: a formação do leitor - alternativas metodológicas (1993). As cinco propostas elaborados

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pelas autoras nos possibilitaram flexibilizar a atuação em sala de aula, promovendo o contato dos alunos com o texto literário, formando leitores e despertando o gosto pela leitura literária. Partimos da concepção de que o texto literário ultrapassa ao informativo e ao utilitário e que cabe ao educador propor leituras que promovam, para o aluno, a percepção estética, a ampliação do horizonte de expectativa e a construção de sentidos de modo consciente e linguisticamente competente, o que o contato com a literatura proporciona de modo muito superior à proposta curricular vigente. Também utilizamos os conceitos de leitura de literatura na escola de Marisa Lajolo e de Regina Zilberman. Verificamos que a proposta desenvolvida, com a inserção das alternativas metodológicas e o trabalho com o texto literário, contribuiu para a formação de leitores, o que a atual proposta curricular do estado de São Paulo não tem propiciado. Como corpus da pesquisa, valemo-nos da obra contística de Luiz Vilela, inclusa em antologias destinadas ao público infantojuvenil, pois são contos com os quais os alunos se identificam, pelo perfil das personagens, pelo enredo encenado e pelo pathos vivenciado. Palavras-chave: Escolarização da literatura; Formação de leitores; Literatura Brasileira; Metodologias de ensino.

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INTRODUÇÃO

Este trabalho é o relato de uma pesquisa-ação[1] realizada com o intuito de estudar práticas de ensino que contribuam para uma escolarização mais efetiva de literatura no Ensino Fundamental na rede Estadual do Estado de São Paulo, visto que os textos literários são pouco explorados nesse nível de ensino, em especial no ciclo II — e, quando estudados, são analisados com objetivos que não os da apreensão da especificidade do literário. Nosso corpus tem a obra de Luiz Vilela como base literária e se vale das proposições de Maria da Glória Bordini e Vera Teixeira Aguiar no livro Literatura: a formação do leitor — alternativas

metodológicas,

de

1993,

como

procedimento

metodológico central. A utilização das alternativas visa formular caminhos para a inserção do literário nas séries que compõem o ensino fundamental e resgatar o prazer da leitura nos alunos, tão presente nos anos iniciais do ciclo I, fase em que a criança

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demonstra um fascínio pela leitura “que vai diminuindo na proporção inversa da escolarização da literatura”, como afirma Claudio Mello (2010, p. 178). Quanto ao referencial teórico, baseamo-nos nos conceitos de escolarização postulados por Magda Soares, no livro A escolarização da leitura literária: o jogo do livro infantil e juvenil (2006), e nos conceitos da leitura de literatura no contexto escolar, de Marisa Lajolo, com os livros Literatura: leitores & leitura, de 2001, e Do mundo da leitura para a leitura de mundo, de 2002, e Regina Zilberman, com os livros Leitura em crise na escola: as alternativas do professor, de 1982, A leitura e o ensino da literatura, de 1988, e A literatura infantil na escola, de 1998, como questionamento ao ensino centrado no uso sistemático do livro didático (ou apostilas da Secretaria de Estado da Educação), com atividades repetitivas e pouco criativas. Assim, os cinco métodos de ensino elaborados por Bordini e Aguiar (1993) e os contos de Luiz Vilela construíram, na prática, ferramentas que propiciaram ruptura e flexibilização do atual

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currículo do Estado de São Paulo ao promover, no âmbito da leitura e a partir da leitura literária, uma prática mais centrada nas necessidades dos discentes, pois constituíram instrumentos que auxiliaram o professor a promover a familiarização do aluno com o texto literário, e propiciou, ainda, condições para a construção do aluno como leitor. Isso porque reinventamos ― alunos e professor ― as práticas e o currículo, o que nos permitiu desenvolver, entre outros aspectos, o lúdico, a inventividade, a plasticidade e a criatividade. Esta pesquisa-ação promoveu, pois, práticas educacionais estruturadas por métodos de ensino que privilegiaram a adequação dos conteúdos veiculados pela proposta curricular e a recepção do texto literário para a formação de leitores. Nosso relato, na síntese que aqui apresentamos, procura seguir o passo a passo da aplicação dos métodos, refletindo rapidamente sobre os resultados alcançados.

1.

NOSSOS PROBLEMAS, NOSSOS CAMINHOS

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Pela análise dos últimos dados internacionais da avaliação do ensino

brasileiro,

como

o

PISA

(Programme

for

International Student Assessment)[2], e de dados nacionais, como o IDESP-2013, observa-se a ineficiência do ensino-aprendizagem no cenário educacional brasileiro[3]. Fundamentado nos eixos da leitura e da escrita como objeto das práticas a ser desenvolvidas em Língua Portuguesa, o país não consegue índices satisfatórios, o que ressalta a necessidade da inserção de novas práticas educacionais na tentativa de converter tal cenário assustador do nosso sistema educacional. Resultados como esses, nos últimos anos, têm levado teóricos, pedagogos e especialistas a pensarem em novos caminhos para melhorar a educação e a eficiência do ensino-aprendizagem; essas veredas podem ter seu enriquecimento no acesso à leitura e na promoção de uma escolarização da literatura mais adequada[4], em que o trabalho com o texto literário não seja feito somente pela consonância com “uma dada situação de

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comunicação – com base para o estudo de conteúdos, o desenvolvimento de habilidades e competências” (BRASIL, 2008, p. 46), como aponta e estrutura-se a Proposta Curricular do Estado de São Paulo e a Legislação do Estado de São Paulo (SÃO PAULO, 2010).[5] Dessa maneira, na tentativa de despertar o gosto pela leitura, formar leitores que priorizem a ação de ler e propor práticas que escolarizem o currículo e acresçam sentido ao ensino-aprendizagem dos alunos, buscou-se, através dos cinco métodos elaborados por Bordini e Aguiar, verificar como tais propostas podem ser válidas no processo de escolarização da literatura depois de quase trinta anos de sua elaboração, e como podem ser utilizados como ferramentas significativas para reverter o atual contexto educacional do qual a leitura faz parte ― ou, como seria mais adequado dizer, do qual a leitura é parte como discurso nos documentos oficiais, mas não se apresenta de modo efetivo na prática cotidiana de sala de aula.

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As atividades realizadas constituíram posturas e práticas diferenciadas, contemplando ensino-aprendizagem no qual o texto literário não priorize somente as tipologias textuais (SCHNEUWLY e DOLZ, 2004), voltadas para as “organizações internas básicas dos diferentes textos (narrar, relatar, prescrever, expor e argumentar)” (BRASIL, 2008, p. 46), mas represente práticas que veem no texto, particularmente, o literário, propiciando caminho(s) que auxilie(m) os alunos a se tornarem interlocutores por meio da reformulação argumentativa, da recepção da obra literária e da adoção de uma postura crítica quanto ao contexto posto. Cabe observar, ainda, que os cinco métodos foram planejados e aplicados através da consideração das carências dessa classe de alunos, bem como foi respeitado o contexto sóciohistórico dos discentes, para que a transformação dos mesmos, por meio de obras literárias, ocorresse de forma significativa e possibilitasse aprendizagem[6] no sentido mais amplo da palavra. A execução da pesquisa-ação nos permitiu constatar que a leitura

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dos contos literários, realizada no âmbito da teoria que a embasa, foi capaz de recuperar as trocas comunicativas e compartilhar as experiências de leitura, além de proporcionar aos alunos a elaboração de diversas tipologias textuais e aperfeiçoar sua competência comunicacional e social. Desta forma, as alternativas metodológicas foram aplicadas e realizadas, segundo as postulações de Bordini e Aguiar (1993), com o intuito de confirmar sua validade e atualizar seus procedimentos no processo de escolarização da literatura no que diz respeito à inserção de textos literários, no que hoje é denominado Ensino Fundamental II. Os contos de Luiz Vilela constituíram um material riquíssimo de apropriação, familiarização e meio para reflexão do real e, consequentemente, como leitura propiciadora de transformação histórico-social, devido às temáticas reais e similares às situações humanas e mundanas vivenciadas diariamente pelos alunos. Para que os alunos adquirissem essa postura, foram utilizados contos que em sua maioria[7] integram as antologias de

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Luiz Vilela destinadas ao público escolar, infantil ou juvenil, por privilegiar temáticas próximas ao cotidiano dos alunos. Esses contos tiveram publicação anterior nas coletâneas princeps do escritor. Cabe ressaltar que a leitura literária na escola foi concebida e priorizada pelo simples ato de ler, que, por sua vez, foi individual, já que a vivacidade da obra foi dada pelo leitor, pela interação mútua entre sujeito produtor e sujeito consumidor, sendo o leitor aquele que atualizou a leitura, aquele que ativou suas instâncias significativas, como propõe Jauss, no livro Estética da recepção e história da literatura (1989). Assim, o contato com o texto literário, na íntegra, por meio da leitura individual, dessacralizada, leitura despida de caráter impositivo ou

ideológico,

bem

como

de

qualquer

preocupação

conteudística, foi imprescindível. Nesse sentido, transformando o pressuposto da pesquisaação em um norte de replicação da Sequência Didática aqui exposta, para que o professor possa formar leitores, ele precisa

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ser, antes de tudo, um leitor, um apaixonado pela literatura, uma vez que compete ao profissional da educação criar diferentes “estratégias que levam à prática da leitura (desde a alfabetização ao domínio do texto) até a iniciação literária (desde a paráfrase até a análise mais crítica)” (COELHO, 2004, p. 9) ― o que só é possível a partir do repertório do professor, que seleciona e apresenta diversas opções aos seus alunos, assim como prepara metodologias, as repensa, as atualiza, as modifica, a partir do convívio no cotidiano da sala de aula. Adicionalmente,

novas

práticas

educacionais

são

necessárias, ou a retomada crítica de práticas exitosas anteriormente, para a solução dos problemas hoje existentes e para a promoção de um ensino flexibilizado e significativo, pensado e planejado a partir do conhecimento do contexto educacional e das transformações a serem obtidas pelo contato direto com o texto, a fim de que este não seja visto apenas como um mecanismo utilitário de compreensão da língua. Há que desengessar o currículo, há que transformar o espaço-tempo

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escolar, há que trabalhar com projetos, há que viver na sala de aula o prazer de ensinar para ser revivido o prazer de aprender.

2.

BORDINI

E

AGUIAR

E

AS

ALTERNATIVAS

METODOLÓGICAS

A

pesquisa-ação

buscou

apresentar

práticas

que

utilizaram e conceberam o texto literário como “algo que exprime o homem e depois atua na própria formação do homem” (SOARES, 1992, p. 75) pelo mecanismo de identificação e de recepção de tais obras. Para isso, privilegiamos caminhos que promoveram a dessacralização de tais práticas e formas de transmissão do conteúdo literário, ao ressaltar maneiras de propiciar ao aluno/leitor uma escolarização adequada do texto literário, a fim de efetuar em sua leitura a aprendizagem sobre literatura ― sua história, teoria e crítica ― e a aprendizagem por meio da literatura.

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Com isso, promoveu-se a escolarização da literatura como um processo de construção de sentidos, ao propormos alternativas metodológicas que visavam ampliar os parâmetros curriculares com a utilização de textos literários e nos possibilitaram, como docentes, práticas para flexibilizar o ensino, no sentido de um trabalho adequado com o texto literário, que “conduz mais eficazmente as práticas de leitura que ocorrem no contexto social e as atitudes e valores que correspondem ao ideal de leitor que se quer formar” (SOARES, 2006, p. 25), obedecendo “a critérios que preservem o literário, que propiciem à criança a vivência do literário, e não uma distorção ou uma caricatura dele” (SOARES, 2006, p. 42). Assim, a pesquisa-ação visou privilegiar o contato com a obra literária, a fim de conduzir os estudantes a perceberem, pelo contato com o texto literário, o reflexo de seus sentimentos, a manifestação ativa da cultura de nossa sociedade, percebendo, no literário, veículo que transmita um ser-estar no mundo, enfatizando a percepção de que “a leitura, como muitas coisas

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boas da vida, exige esforço e [...] o chamado prazer é uma construção que pressupõem treino, capacitação e acumulação” (AZEVEDO, 2004, p. 38). Nesse sentido, o primeiro método planejado foi o científico, por ter em sua fundamentação teórica a busca nas diversas áreas do conhecimento, nos dados concretos, por ser uma ciência da confirmação e da refutação de hipóteses, trabalhando com concepções, explicações pré-concebidas a serem confirmadas ou não pelo sujeito na sua relação com o objeto. Quanto ao segundo método, o criativo, associado a práticas artísticas, foi utilizado por conceber a criatividade como método lúdico que ultrapassa o puro saber e se converte em conhecimento, visto que propõe a apropriação e a transformação da realidade. Já o terceiro método, o recepcional, foi organizado por trabalhar a partir da recepção da obra pelo leitor, colocando em discussão o próprio conceito de literatura, e exigindo revisão

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sequencial e reformulação constante do horizonte de expectativa do aluno; o método se baseia nos postulados de Jauss, que defende que as concretizações de um texto se modificam constantemente, segundo a sociedade e as leituras feitas por cada sujeito histórico. Por estruturar-se em torno da linguagem, o quarto método, o comunicacional, visou exteriorizar o pensar, a partir da teoria comunicacional de Roman Jakobson, para quem a comunicação é constituída de atos comunicacionais que compreendem e assumem ordens hierárquicas diversificadas, determinando a intenção do interlocutor com o interlocutário. Por fim, nosso procedimento metodológico norteou-se pelas propostas do método semiológico, tendo por desiderato “transformar a aprendizagem numa prática cotidiana de intercâmbio e coexistência de valores diferenciados, que elegem a linguagem literária ou outras linguagens como veículo de circulação” (BORDINI; AGUIAR, 1993, p. 132).

66


3.

LUIZ VILELA CONTISTA E A LEITURA ESCOLAR

Mineiro de Ituiutaba, Luiz Vilela[8] — que aos 13 anos escreveu seus primeiros contos — nasceu em 31 de dezembro de 1942. O escritor conta, atualmente, com sete coletâneas de contos. Muitos desses contos estão redistribuídos em quinze antologias, das quais ao menos doze são, explicitamente, voltadas para o público do Ensino Fundamental, além de quatro novelas e cinco romances. Suas obras são reconhecidas por conter narrativas sempre “embasadas pelos grandes temas permanentes da cultura humana: a ética, o amor, a moral, o desejo, a civilização, o sagrado, o tempo” (RAUER, 2006, p. 289) ― e apresentam, como estratégia narrativa central, o diálogo. Desse modo, constrói um enunciado significativo que se revela na transmissão e na reflexão de valores; estes não buscam seu sentido na imposição da repressão à sociedade, nem se

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fundamentam no plano religioso ou na glorificação da violência entre os seres, mas se centram na valorização da solidariedade, da compaixão[9], do respeito, ou seja, dos valores que devem ser solidificados e repensados para a convivência harmoniosa entre os seres humanos. A utilização dos contos de Luiz Vilela representou a tentativa de o homem urbano se desdobrar dentro de suas aflições, complexidades, isolamentos, na busca de resolver-se, de se encontrar. Assim, ler as obras do escritor Luiz Vilela cumpriu diversos papéis no processo formativo de cada aluno como cidadão e no processo de formação dos alunos como leitores, por conter e sugerir “o arbitrário da significação, a fragilidade da aliança entre o ser e o nome e, no limite, a irredutibilidade e a permeabilidade de cada ser” (LAJOLO, 2001, p. 35), em definição apriorística, teórica, proposta pela estudiosa, que não se refere em específico à obra de Vilela, mas ao papel da literatura em geral no âmbito escolar.

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Em seus temas, em sua estrutura e em seu engenho com a escrita, Luiz Vilela mostrou-se o protagonista da trama que desenvolvemos: a formação de leitores dos anos finais do Ensino Fundamental do Estado de São Paulo; isso se deveu, em muito, à circunstância de que sua literatura é próxima aos anseios dos estudantes, à vivência, às suas existências cotidianas. Vejamos uma síntese dos pressupostos teóricos do trabalho desenvolvido ao longo do projeto. As atividades foram realizadas com os estudantes do 8º ano de uma escola pública do estado de São Paulo e evidenciaram como a proposta curricular pode ser ampliada sem se distanciar dos tópicos que a fundamentam, no que diz respeito ao ensino de língua portuguesa e literatura para o 8º ano do Ensino Fundamental II. Em outras palavras, cumprimos o que é prescrito pela Secretaria de Estado da Educação e adicionamos ao processo ensino-aprendizagem a leitura literária, o que propiciou ganhos expressivos para os alunos diante da

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experiência anterior sem a utilização de leitura literária nos moldes aqui expostos. A aplicação das alternativas metodológicas contou com um interlúdio sobre o autor em estudo, a fim de motivar os alunos a estabelecer um relacionamento amistoso entre eles e o tema em estudo, assim como para uma melhor apreensão do conteúdo proposto. Além disso, os alunos, motivados pelas diversas temáticas, puderam entrar em contato com vários contos do escritor Luiz Vilela, selecionados com o intuito de levar a literatura a cumprir seu papel social, por abordar o tema em estudo e desestabilizá-lo, questionando seus conhecimentos internalizados, e suscitando, por meio da investigação do e pelo texto, o aprimoramento de suas asserções, para confirmá-las ou modificá-las. A leitura proporcionou os alunos encontrarem-se na fragilidade da personagem, gerada pela familiaridade de incompreensão do mundo dos adultos, devido a suas aflições e

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infortúnios, levando-os a aprenderem desde cedo como sobreviver em um mundo nefário e cheio de ingratidão. Dessa maneira, o texto atualizado por meio da leitura dos alunos questionava a realidade vigente ao provocar, nas palavras genéricas sob o impacto da leitura literária proposta por um escritor cujo trabalho ficcional ou poético é quase sempre destinado ao público juvenil, “uma espécie de comunhão emocional que pressuponha prazer, grande identificação e, sempre, a liberdade para interpretar” (AZEVEDO, 2004, p. 45). A apreensão pelos alunos da estrutura dos diversos contos de Luiz Vilela em diálogo com o referente histórico do narrador e do aluno-leitor constituiu elemento indispensável do trabalho realizado, por ser matéria-prima capaz de fortificar os ânimos vividos pela realidade e propor novos caminhos, novas alternativas

na

busca

da

recuperação

de

valores

tão

imprescindíveis para a vida em coletividade, como o amor, a compaixão, o companheirismo, a solidariedade.

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Nessa perspectiva, a literatura cumpriu seu papel de ser uma prática “de transgressão, alimento para o imaginário e forma de interação com o outro, além de portar uma infinidade de sentidos e significados que todos os dias são descobertos e que devem ser sempre compartilhados” (FARIA apud SOUZA, 2004, p. 58). A sala foi utilizada como laboratório para a exploração das iniciativas investigativas dos alunos e pelo levantamento de hipóteses; a classe desempenhou seu papel de unir proposta curricular e ensino flexibilizado, além de possibilitar ao estudante expandir seus conhecimentos de maneira crítica e ativa; desse modo, atingimos o nível metacognitivo, ao ver o texto literário ser ferramenta capaz de vivificar experiências mundanas e superá-las, ampliá-las e materializá-las nos diversos gêneros textuais como elemento para se comunicar com o mundo. Os textos literários auxiliaram a prática de novas alternativas metodológicas de ensino por romper o imobilismo

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do professor frente à adoção das propostas e dos materiais de ensino, por oportunizar um ensino mais ativo e condizente com as

necessidades

reais

dos

alunos,

ampliando

seus

conhecimentos, seu poder de reflexão e sua capacidade de comunicar-se por meio de estruturas específicas, como a de alguns gêneros textuais. Assim, o trabalho com o texto literário como alternativa de escolarização coerente e condizente com a proposta curricular possibilitou a alteração e a expansão dos horizontes de expectativas dos leitores, por se opor às convenções e por nos levar a agir criticamente, ao romper a mediocridade em que a sociedade ― assim como o ensino ― está mergulhada. Ao final da aplicação dos cinco métodos, percebeu-se a importância do docente na promoção de um ensino mais humano e engajado histórica e socialmente, estando em sua autonomia o poder de transformar e viabilizar o acesso à leitura literária e mudar, de maneira impactante, o percurso acadêmico dos discentes, com a leitura de obras que revelam a expressão

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dos sentimentos vivenciados pelos alunos e desencadearam um diálogo entre leitor e texto para a constituição de sujeitos mais críticos e conscientes das vantagens que a leitura pode lhes proporcionar. Para verificar em detalhe os passos da sequência didática, o planejamento das aulas, o dia-a-dia do projeto na interação entre docente, aluno e sala de aula, consulte a dissertação de Karina Torres Machado, orientada pelo Prof. Dr. Rauer Ribeiro Rodrigues, disponível no Banco de Dissertações da UFMS ou na aba Fortuna Crítica do Blog do GP Luiz Vilela, em <http://www.4shared.com/office/YTjVr943ba/ KARINA_-_VERSO_DISSERTAO_RAUER.html>

(ver

MACHADO, 2015).

4.

CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE OS RESULTADOS

Com o objetivo de

74


i) incentivar hábitos de leitura por meio da introdução de textos literários do escritor Luiz Vilela; ii) escolarizar mais eficazmente o ensino de língua portuguesa do atual Ensino Fundamental do Estado de São Paulo; iii) formar estudantes mais reflexivos; iv) formar cidadãos menos passivos; v) promover o letramento; vi) promover a cidadania dos estudantes; e vii) formar leitores literários; considerando aspectos teóricos da formação do professor que incluem  a leitura de centenas de textos literários para formar um corpus a partir do qual se elege a leitura significativa para cada turma;  o diálogo que esses textos literários estabelecem, como corpus de análise literária no âmbito da narratologia e da historiografia literária, com concepções teóricas sobre a literatura e sobre o texto literário;

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 o estudo aprofundado das teorias sobre leitura, em especial as mais contemporâneas;  os

estudos

teóricos

brasileiros

sobre

a

escolarização da literatura;  os relatos de experiências didáticas em sala de aula com a leitura literária; foram realizadas atividades em sala de aula ― no âmbito do projeto que aqui se relata ― com os seguintes pressupostos: 1. a inserção de textos literários coerentes e próximos às vivências dos estudantes; 2. a utilização de alternativas metodológicas que pudessem

flexibilizar

e

diversificar

as

determinações do currículo; 3. o oferecimento de um ensino-aprendizagem mais significativo ao discente. Vejamos os resultados a partir da aplicação de cada um dos métodos.

MÉTODO CIENTÍFICO

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O método científico funcionou como uma excelente atividade, pois ativou no aluno, na sintética proposição de um estudioso do tema, “cenas suscitadas pelo texto, e as relacionou aos outros saberes estáveis que nelas estão instanciados” (GERHARDET,

2009,

p.

80).

Além

disso,

a

atividade

proporcionou ao professor “meios de compreender quais são e como se articulam os elementos e processos presentes nas cenas conceptuais reveladas nas respostas dos alunos” (GERHARDET, 2009, p. 80). Do modo complementar, o método, além de destacar a função “formadora da leitura, pois seu desenvolvimento incrementa no leitor a capacidade de compreender o mundo e investigá-lo”, simultaneamente, pôs “em tela de juízo o comportamento que promove obras e as considera boas, porque transmitem valores socialmente úteis” (ZILBERMAN, 1998, p. 30) ― ou seja, realizamos o que os estudos teóricos sobre escolarização e leitura apregoam.

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Com a aplicação do método científico e das produções finais entregues pelos alunos, vimos que o simples contato com o texto não gera a explosão do ato de ler, é preciso, antes de tudo, possuir as competências de leitura, ter a disposição e a intenção de ler. Essas atitudes foram ativadas e determinadas pela afinidade entre texto e leitor e geradas pela necessidade de exteriorizar seu pensamento, em processo conduzido, mediado, estimulado pelo professor e pelo convívio do debate dos contos entre todos os alunos. Os trabalhos apresentados a partir da leitura estimulada pelo método científico também evidenciaram que os discentes transpuseram o nível literal dos contos lidos, em movimento ascendente realizado pelos alunos, na prática de promover interação de componentes do texto ao conhecimento prévio para processar as informações.

MÉTODO CRIATIVO

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A prática do método criativo incitou a percepção das diferenças existentes entre as duas escritas: a literária e a não literária ― pois a primeira, além de apresentar uma realidade conhecida e vivida por todos, como a segunda empiricamente também é, traz, sobre a temática tratada, uma conclusão, uma reflexão a mais, de caráter do intrínseco ao humano em sua complexidade no mundo. A realização das atividades ofereceu aos alunos modelos e interpretações da realidade social, para poderem agir criticamente. Ao término da primeira análise, vimos que as pretensões das autoras Bordini e Aguiar (1993) na elaboração do método criativo continuam vigentes, já que os textos produzidos pelos alunos demonstraram, nos termos por elas preconizados, “eficácia expressiva”, “domínio técnico” e “inovação formal”, possibilitando aos alunos a supressão de uma falta, ou seja, a expressão individual que os revela e, de certo modo, os completa.

MÉTODO RECEPCIONAL

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Com a aplicação do método recepcional observamos como a leitura ressalta o desejo dos alunos de transpor normas e preceitos julgadores, deslocando-se para uma visão mais humanística e solidária: a necessidade de conceber novas oportunidades para a reconstrução de sua história e, acima de tudo, amar a si e ao próximo, como salientam as narrativas de Luiz Vilela utilizadas, pois, para o autor, o amor manifestado de todas as formas e por todos os seres é o coração de sua obra, como enfatiza Wania Majadas em obra que já mencionamos (MAJADAS, 2000). Nessa etapa, os textos produzidos pelos alunos souberam “[ser] persuasivas”, conforme prescrito na proposição dos métodos, “no apelo, na forma, na ilustração, no layout, na apresentação”, uma vez que os textos foram persistentes e incisivos, ao tomarem “consciência das alterações e aquisições, obtidas através da experiência com a literatura” (BORDINI; AGUIAR, 1993, p. 90).

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Ao examinar os textos elaborados pelos alunos no método recepcional vimos como relacionaram as várias leituras feitas ― notícias, reportagens, anúncios, manchetes, contos ― com o tema em estudo, e como assimilaram as concepções sociais e históricas que constituíam o referente de cada texto, assim como souberam expressar aquilo que lhes eram intrínsecos quanto à formação enquanto sujeitos. Tais produções mostram que os alunos reorganizaram ― conforme proposto pela estética da recepção ― seus “sistemas de referência, [aqueles sistemas que] o repertório do texto evoca” (ISER, 1996, p. 15) para uma assimilação das instruções dadas pelo autor, na tentativa de construir o sentido do texto, o que “requer do leitor atividades imaginativas e perceptivas, a fim de obrigá-lo a diferenciar suas próprias atitudes” (ISER, 1996, p. 16). As cenas criadas pelos estudantes, sempre nos termos teoricamente previstos, “relacionam o texto à realidade dos quadros de referência e, em consequência, nivelam com o mundo o que surgiu através do texto ficcional” (ISER, 1996, p. 35), a fim

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de enaltecer a fusão de diferentes horizontes que promovem a libertação para novas percepções. Tais percepções cognitivas foram ativadas graças à maestria da escrita do autor Luiz Vilela, que soube, por meio de narrativas breves, apresentar os dramas das existências dos homens, conduzindo seus leitores à reflexão pela harmonia textual de seus contos, narrativas que, por conterem princípios heterogêneos, apresentam alto “valor estético” (ISER, 1996, p. 43), o que possibilita, conforme teorizou Iser, a emancipação leitora. Constatou-se, ao final da análise da produção textual, que a fusão de horizontes de expectativas do autor, Luiz Vilela, ao expor o homem em sua fragilidade e isolamento em qualquer lugar em que ele esteja (MAJADAS, 2000), foi traduzida nos textos criados pelos alunos, o que, nas proposições de Bordini e Aguiar (1993, p. 83), consiste na “valorização das obras [...] na medida em que, em termos temáticos e formais, produzem alteração ou expansão do horizonte de expectativas do leitor por

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oporem-se às convenções conhecidas e aceitas [anteriormente] por ele”. Observamos, também, que o aluno adquiriu status de sujeito histórico ao relacionar e interagir com os demais, ao mobilizar conhecimentos internalizados e do senso comum para questionar a atuação de seu grupo e confrontar as ideias discutidas na sala de aula.

MÉTODO COMUNICACIONAL Quanto

ao

uso

do

método

comunicacional

na

escolarização do texto literário, percebemos que o aluno apreendeu a dimensão social implicada na esfera linguística e materializada nas funções da linguagem, sabendo desvinculá-la do estudo cristalizado do texto, a partir de nossa estratégia de propor ensino de literatura que resgate, nos termos da metodologia

proposta,

“o

lado

socializante

dos

fatos

comunicativos literários” (BORDINI; AGUIAR, 1993, p. 109).

83


Os trabalhos feitos apontaram que os alunos começaram a discernir as diferentes formas que os textos podem assumir, bem como fazer uso de uma linguagem mais apropriada, criando, assim, uma consciência artesanal um pouco mais crítica e preocupada, ao observar as particularidades solicitadas para a escrita, bem como as intenções dos processos comunicativos existentes na elaboração de um texto. As atividades realizadas possibilitaram aos estudantes encontrar as funções comunicacionais presentes em cada texto, dominar os gêneros utilizados e usá-los com desembaraço, assim como possibilitou a eles, na práxis, efetivarem a proposta teórica de “com maior agilidade, [efetivarem] a situação irreproduzível da comunicação verbal, em que realizamos, com o máximo de perfeição, o intuito discursivo que livremente concebemos” (BAKHTIN, 2003, p. 304). Ao término da atividade e das exposições dos diagramas (técnica de que nos valemos na ocasião), verificamos que a utilização do método comunicacional permitiu a projeção do

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aluno/leitor dentro do texto, agindo e refletindo sobre ele, ao mesmo tempo em que percebia suas tramas composicionais e o poder que tinha para modificá-las a partir de suas intenções e concepções históricas e sociais. Comunicar-se, nesse contexto, significou a implicação de uma existência social expressada a outro sujeito a partir de uma vivência real de cada aluno e do conjunto dos discentes.

MÉTODO SEMIOLÓGICO O ensino baseado no método semiológico desvencilha o estudo dos textos denominados clássicos, consagrados, pois compreende a sociedade como um conjunto de vozes, “atitude e ações, individualizadas e pessoalizadas, que, sem embargo, podem conviver mesmo na dissonância e nas contradições, alimentando-se justamente dos desvios” (BORDINI; AGUIAR, 1993, p. 132). Portanto, proporciona ao aluno a oportunidade de portar-se como sujeito social e identificar as ideologias observadas por ele em relação à leitura literária na escola.

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A conciliação de atividades curriculares que contemplam o método semiológico constituiu-se em uma prática importante por

possibilitar

ao

aluno

conhecer

e

expressar

sua

individualidade, ao passo que o ensinou a articular os signos para construir suas trocas linguísticas e seus vínculos sociais. Desta maneira, a alternativa metodológica aplicada em sala de aula rompeu os horizontes de expectativas dos alunos, ao possibilitar a reflexão cognitiva, por meio da obra literária, através da prática de leitura adotada pela escola e as relações que se originam da leitura individual coletivamente partilhada. São atos que denotam uma abordagem do ensino literário menos formal, que leva em consideração a experiência de vida, a história e a prática linguística dos alunos, cumprindo as exigências dos PCNs e ampliando a estreita proposta curricular padrão. A entrevista, as discussões realizadas, as atividades orais, a leitura dos contos e a produção textual permitiram que os alunos encontrassem, refletissem e formassem uma atitude

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semiológica, ao materializar no texto as intenções ideológicas transmitidas nas leituras e ao possibilitar ao leitor realizar o desiderato teoricamente proposto de “fazer parte de um mundo social mais complexo, no qual ele pode reconhecer-se como sujeito ativo do seu grupo social e não um mero observador” (BORDINI; AGUIAR, 1993, p. 135). Os trabalhos materializados nas atividades apresentadas no jornal, produto final do método semiológico, ressaltaram os ganhos significativos que a escolarização da literatura no ensino ― por intermédio do projeto que aqui se relata ― despertou, por promover a atitude criativa e social dos alunos, como sujeitos históricos e atuantes em sua realidade, que, por meio dos diversos gêneros textuais estudados, e, em especial, do contato estreito e continuado com o texto literário; em suma, o processo possibilitou aos discentes se reconhecerem como sujeitos, de modo que ganharam e impuseram suas próprias vozes, como sujeitos e como coletividade.

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Essa inserção do leitor e do texto na mesma esfera comunicativa permitiu a criação artística do discente e a ampliação de seus conhecimentos através da exposição dos textos literários, fontes para que “o real pudesse converter-se em objeto de capacitação e tornar-se visível” (CASSIRER, 1972, p. 22). Neste momento, percebemos que cabe ao professor evidenciar a leitura literária cotidiana como uma atividade que permita adquirir saberes, perceber e decifrar as relações existentes entre os textos, encontrar e posicionar-se ante as ideologias transmitidas, já que ler literatura acima de tudo é refletir, é pensar, é reescrever e encontrar no texto significados para a vida. No entanto, tal ação só será difundida se o docente tiver internalizado o ato concreto e diário da leitura literária, quer dizer, se o docente for apaixonado pela leitura, ser leitor assíduo de poemas, contos, novelas e romances, o que o faz, também, um leitor do mundo, possibilitando plena liberdade de acesso aos livros pelos alunos e ampla compreensão da

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importância da literatura no âmbito escolar e no futuro daqueles jovens cidadãos.

5.

OS MÉTODOS EM 2014

O contato com diversos contos de Luiz Vilela, permeados pelas teorias que embasaram cada alternativa metodológica e sua interligação com os conteúdos postulados na Proposta Curricular do 8 º ano do Ensino Fundamental do estado de São Paulo, mostraram as trocas de experiências ocasionadas pelo contato com o texto literário e os processos mobilizados pelos alunos para possibilitar a compreensão e a intertextualidade com os temas discutidos, para salientar a reflexão e a importância da inserção de textos literários em consonância com a proposta curricular ― e, se eventualmente for o caso, de modo complementar e para além do currículo mínimo padrão.

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A pesquisa-ação desenvolvida procurou apontar que a mudança de atitude no contexto educacional reside na figura e em iniciativas do professor, que, utilizando de sua autonomia, pode propiciar aos alunos uma proposta diversificada que atenda aos objetivos maiores do processo ensino-aprendizagem, que incite os alunos a agirem por meio do texto literário, a manifestarem seu posicionamento e suas reflexões em torno de uma temática. Por isso, o professor deve intervir assiduamente, dialogar, interagir com os discentes, apontar as melhorias necessárias, despertar sua reflexão, propor e planejar leituras diversas, citando livros lidos, promovendo debates, contando histórias, etc. ― o professor deve sempre ser um desafiador que permite ao seu aluno romper a cada dia com os horizontes de expectativa vigentes. O trabalho, baseado nos métodos, tentou unificar as incongruências que permeiam a leitura de literatura na escola, tendo a tarefa de “pensar a obra e o leitor e, com base nessa interação, propor meios de ação que coordenem esforços,

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solidarizem a participação nestes e considerem o principal interessado no processo: o aluno e suas necessidades enquanto leitor” (BORDINI; AGUIAR, 1993, p. 40-41). Desta forma, a educação que tenha por suporte uma metodologia que ofereça resultados positivos para o aluno e, também, para a unidade escolar, tem de considerar, no ato de aprender, as ações que envolvem aos discentes e suas necessidades, visando dar uma finalidade ao ensino, contendo em seus domínios posturas ideológicas diversas e soluções para as mais inusitadas situações sócio-históricas. Concluiu-se que o trabalho com métodos, em consonância ao prescrito pelas autoras das metodologias alternativas, “limita o autoritarismo do sistema educacional, por não depender de alvos pré-estabelecidos e imutáveis, e pressupõe uma atuação docente flexível, pois não permite a repetição rotineira de atividades” (BORDINI; AGUIAR, 1993, p. 42). Assim sendo, a inserção do texto literário, como forma de escolarização da literatura, nos termos dos conteúdos postulados

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pelos PNCs, propiciou flexibilizar a prática docente, indo muito além do ensino dos gêneros textuais, que tem enrijecido e apequenado a prática leitora, talvez por utilização mecânica e, com certeza, por esquivar-se do estudo cotidiano e intenso de textos literários ― como literatura e não instrumentalizados e operacionalizados para outros fins ― e, repetimos, por esquivarse do estudo cotidiano e intenso de textos literários de grandes autores, através de reflexão e de planejamento constantes que aprimorem as competências proporcionadas pelo ensino, dentro da esfera da transversalidade que permeia os gêneros discursivos, entre eles com peso maior, intenso e decisivo, o texto literário. As práticas desenvolvidas na pesquisa aprimoraram o conhecimento

dos

discentes

pelas

técnicas,

teorias

e

planejamento utilizados, o que fomentou uma escolarização literária

real

e

efetiva

da

turma,

conquistada

pela

disponibilidade do material de leitura, bem como pela escolha deste, e pela imersão em um ambiente de letramento, como

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postula Maria do Rosário Mortatti (2004, p. 107), a fim de romper a estrutura tradicionalista da escola, ao mostrar que é possível trabalhar com a literatura no ensino fundamental ― aliás, mais do que possível, necessário, o que urge se efetivar na sala de aula, para além dos discursos que enfatizam sua necessidade, mas não fazem da pregação uma ação cotidiana, reiterada, constante, imprescindível no dia a dia escolar. Portanto, consideramos que o gênero literário conto foi o elemento primordial deste trabalho, visto que permitiu realizar todas as assertivas mencionadas anteriormente e promover deleite na leitura literária e formação de leitores literários; importante também a seleção temática coerente com as necessidades dos alunos e adequada ao postulado nos PCNs para a faixa etária dos alunos. Para tanto, foi fundamental, no âmbito do gênero conto, e por suas características estilísticas e conteudísticas, trabalharmos com um único autor, Luiz Vilela. Esse conjunto de fatores motivou os alunos a lerem os textos literários, sem manifestar a cada nova atividade qualquer fastio

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ou descontentamento com a leitura, pois, por abranger as mais variadas temáticas, funcionou, para retomar uma definição de literatura, como uma espécie de “poliedro capaz de refletir as situações mais diversas de nossa vida real ou imaginária” (BOSI, 1998, p. 31) ― expressa pela voz do Prof. Rauer, em uma aula de nosso mestrado, assim é a obra de Luiz Vilela: um poliedro que refrata infinitas faces do humano. A experiência com o texto literário foi transformada em comunicação social a partir de uma postura receptiva das divergências impostas pela vida, uma vez que foi contemplada por meio de contação de histórias, rodas de leituras, leituras individualizadas,

dramatizações,

interações

participativas

fomentadas pelas estratégias de leitura, discussões e debates, resumos,

entrevistas,

produção

textual,

ilustrações,

intertextualidade, etc. O contato com o texto literário e a leitura individualizada que priorizou o tempo e a compreensão de cada aluno, levou-os à abrangência da diversidade dos textos e das obras, tirando-os

94


daquele mundo monocromático em que viviam por não estarem familiarizados com a leitura. Desta forma, as alternativas metodológicas aplicadas mostraram-se vigentes e passíveis de adaptações nos mais variados contextos, desde que haja vontade e disponibilidade docente, comprometendo-se com a ação de despertar a curiosidade nos alunos, bem como pela constatação da disponibilidade e da validade dos materiais a serem utilizados. Nesse sentido, é preciso primeiro que os profissionais adquiram o prazer e internalizem a importância de ler para que possam, em seguida, despertar o prazer e o gosto pela leitura. Somente reeducando os profissionais é que conseguiremos apontar aos alunos o que há de tão fantástico na leitura. Pressupondo tais ações, o trabalho baseado nas alternativas metodológicas pode tornar-se uma prática transformadora e enriquecedora ao conciliar o discernimento da atividade e da seleção literária coerente com a mediação do professor,

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propiciando caminhos para despertar o prazer de envolver-se na atividade proposta e formar o gosto de ler.

CONCLUSÃO

A pesquisa-ação aplicada apresentou uma prática flexibilizada e escolarizada do currículo, uma vez que a modalidade de pesquisa-ação concebida dentro do contexto educacional visou, nos termos teóricos do que é realizar uma pesquisa-ação, “minimizar os usos meramente burocráticos ou simbólicos e maximizar os usos realmente transformadores” (THIOLLENT, 2007, p. 81). Tínhamos sempre presente o objetivo de promover a participação dos sujeitos na busca de soluções aos seus problemas e reafirmar “o contato com as situações abertas ao diálogo com os interessados, na sua linguagem popular” (THIOLLENT, 2007, p. 81).

96


Assim, as atividades descritas evidenciam a necessidade de promover a escolarização literária no âmbito do atual currículo educacional com alternativas metodológicas capazes de explorar as situações problemas dos participantes de maneira real, abrangente e significativa, como as elaboradas por Bordini e Aguiar. Os métodos analisados motivaram o apreço pela leitura, porque propiciaram contato direto e instigante com o texto literário, transpuseram a mesmice diária e fragmentada imposta pelo uso do livro didático (ou pelas indefectíveis apostilas) e promoveram aos alunos um caminho de transformação, de reflexão crítica e de conhecimento. Nesse sentido, a escolha dos contos de Luiz Vilela foi essencial para o resultado que pretendíamos, por conterem em suas tramas narrativas a arte da brevidade, da forma, do diálogo, da exatidão, da escrita planejada e pensada ― e, em particular, o que se mostrou decisivo, pela temática que encenam, pelos dramas que revivem, pelos anseios que mobilizam, pelas ações

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enredadas ― enfim, pelo complexo literário que engendram na representação do ser humano de todos os tempos em um hic et nunc, um aqui e agora empático ao dos alunos, o que lhes proporcionou identidade com o texto lido e o meio de transformar a realidade constatada, além de atitude engajada e crítica no contexto de recepção das obras. O texto literário deve ser visto e utilizado como aliado educacional e social, por evidenciar, promover e gerar, em suas tramas narrativas pessoais e universais, uma identificação ímpar e de caráter atemporal. Para isso, o gosto literário deve ser evidenciado, primeiro, pelo professor, pois só ele, amando a leitura, conseguirá envolver seus alunos e conduzi-los ao mesmo caminho. O desenvolvimento das alternativas metodológicas confirmou ainda que o gosto literário está potencialmente presente nos alunos, escondido e sufocado na avalanche de conteúdos inoperantes e mal-sistematizados à qual são expostos diariamente. Desta maneira, cabe ao professor despertá-lo,

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resgatá-lo das entranhas em que foi emaranhado pelo currículo ou por práticas inadequadas, para trazê-lo ao imprescindível espaço que ele tem nas trocas de experiências que constituem o ser humano. Mais que um direito, como defende Antonio Candido (2011), constatamos ― com a realização do projeto aqui relatado ― que a literatura é uma necessidade, devendo ter papel preponderante no ensino, caso queiramos ensino que mereça grau de excelência, caso queiramos que nossas escolas cumpram o papel humanístico, social, educacional e histórico que delas esperamos.

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99


BORDINI, Maria da Glória; AGUIAR, Vera Teixeira de. Literatura: a formação do leitor, alternativas metodológicas. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1993. BOSI, Alfredo (Org.). O conto brasileiro contemporâneo. 8. ed. São Paulo: Cultrix, 1998. BRASIL. Proposta Curricular do Estado de São Paulo: Língua Portuguesa. Coord. Maria Inês Fini. São Paulo: SEE, 2008. CANDIDO, ANTONIO. O direito à literatura. In: ______. Vários escritos. 5. ed., corrigida pelo autor. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2011. p. 171-193. CASSIRER, Ernest. Linguagem e mito: uma contribuição ao problema dos nomes dos deuses. Trad. de J. Guinsburg e Miriam Schnaiderman. São Paulo: Perspectiva, 1972. COELHO, Nelly Novaes. Leitura: porta aberta para o saber. In: ______. Caminhos para a formação do leitor. Org. Renata Junqueira de Souza. São Paulo: DECL, 2004. DEWEY, John. Como pensamos: como se relaciona o pensamento reflexivo com o processo educativo - uma reexposição. Trad. e notas de Haydée de Camargo Campos. 2. ed. São Paulo: Nacional, 1953. GERHARDET, Ana Flávia Lopes Magela. A cognição situada e o conhecimento prévio em leitura e ensino. Ciências & Cognição; v.

100


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__________ Notas [1] Conforme Michel Thiollent, no livro Metodologia da pesquisa-ação: “um dos principais objetivos dessa proposta consiste em dar aos pesquisadores e grupos de participantes os meios de se tornarem capazes de responder com maior eficiência aos problemas da situação em que vivem, em particular sobre forma de diretrizes de ação transformadora” (THIOLLENT, 2007, p. 10).

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[2] Os dados do PISA (Programme for International Student Assessment) revelam que de 56 países avaliados, no quesito leitura, o Brasil ocupa a 54ª posição, ficando abaixo de países com alguma similaridade histórica com nosso país, como Chile, Costa Rica e México. Disponível em: < http://download.inep.gov.br/acoes_internacionais/pisa/resultados/2013/coun try_note_brazil_pisa_2012.pdf >, acesso em 05 ago. 2014. [3] O IDESP apontou uma diminuição de 0,7 percentuais nos anos finais do Ensino Fundamental, atingindo a média de 2,50, menor que a do ano anterior (2011), que foi de 2,57. Índices estes abaixo das metas projetadas pelo IDEB (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica) para o ano em análise – 5.1. Disponível em: < http://ideb.inep.gov.br/resultado/ >, acesso em 05 ago. 2014. [4] Sobre o processo de “escolarização adequada”, ver o artigo “A escolarização da literatura infanto-juvenil”, de Magda Soares (2006). [5] Na prática, as propostas apresentadas para modificar os PCNs, ou atualizá-los, na BNCC ficam muito aquém do desejável, e até mesmo pioram o quadro. Ao menos é o que se depreende do que foi divulgado até o momento. [6] O planejamento da pesquisa-ação desenvolvida teve como suporte teórico o livro de Bordini e Aguiar (1993); no entanto, não seguimos com rigidez as etapas, uma vez que “[h]á sempre um vaivém entre várias preocupações a serem adaptadas em função das circunstâncias e da dinâmica interna do grupo de pesquisadores”, como afirma Thiollent (2007, p. 51). [7] Os contos lidos em sala pelos alunos estão reproduzidos no anexo 1 de Torres (2015). [8] Outras informações a respeito de Luiz Vilela estão disponíveis no sítio do Grupo de Pesquisa Literatura e Vida: < http://gpluizvilela.blogspot.com/ >, acesso em 16 novembro 2016.

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[9] A propósito, em específico, da compaixão, ver Majadas (2000).

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Artigos completos A METÁFORA DO EU, NO CONTO O BURACO, DE LUIZ VILELA Elcione Ferreira Silva (CPTL/UFMS) Resumo: O conto O buraco é uma das peças que compõem a obra Tremor de terra, do escritor Luiz Vilela (2003).O objetivo deste artigo é apresentar como procede o processo metafórico, a partir do título da obra. A postura do narrador é fundamental para exemplificar o desenvolvimento do percurso metafórico.Tomamos, como suporte teórico: Paul Ricouer (2000) com a obra A metáfora Viva, assim como, o capítulo, Para uma pedagogia da metáfora de José Paulo Paes (1997). Palavras-chave: Metáfora; Narrador; Luiz Vilela. Introdução Propomos, neste artigo, uma leitura de como a metáfora é apresentada no conto O Buraco do autor, Luiz Vilela. Ao se construir uma leitura e interpretação da narrativa convém

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destacar alguns pontos de vistas já bastante referenciado ao longo dos estudos da metáfora. No processo de construção de leitura do conto, interessa primeiramente, contextualizar. Tomamos como ponto de partida apontamentos de diferentes autores que discorrem sobre esse tema. Aristóteles acreditava que a metáfora estava atribuída a competência da retórica e da poética. A definição de metáfora, para Aristóteles, “[...] consiste no transportar para uma coisa o nome de outra, ou do gênero para a espécie, ou da espécie para o gênero, ou da espécie de uma para a espécie de outra, ou por analogia” (ARISTÓTELES, 1996, cap. XXI, 1457b-6, p. 92). Aristóteles se reporta detidamente em cada passo de transposição da metáfora na obra arte poética, não vamos nos reportar a todos eles por entender que a citação acima da conta de exemplificar o pensamento de Aristóteles referente à metáfora. De acordo (Pound, 2006, p.32) “Literatura é linguagem carregada de significado ou simplesmente linguagem carregada de significado até o máximo grau possível”. Na obra A Metáfora Viva Paul Ricouer (2000) discute longamente sobre metáfora, inicia pela a retórica, mas adverte que não é para substituí-la pela semântica e esta pela

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hermenêutica, porém objetiva desenvolver o encadeamento sistemático dos pontos de vista sobre progressão da palavra à frase da frase ao discurso. O teórico divide a obra em oito estudos. Traz pontos de vista teóricos correspondentes, em que o grau de expressão contribui com a progressão do argumento de conjunto. Tanto para Aristóteles como em Fontanier, a metáfora encontra-se, no nível do desvio, transgressão de sentido que ultrapassaa denominação substantiva. Retoma-se, então, a noção de transgressão de sentido, mas esta precisa ser analisada à luz do uso, para definir se o desvio é comum (catacrese) ou inovador (metáfora). Portanto, “é necessário, então, ir da palavra ao discurso, pois apenas as condições próprias ao discurso podem distinguir o tropo-figura do tropo-catacrese e, no tropo-figura, o curso livre do curso forçado” (Ricoeur, 2000, p. 105). As metáforas quando analisadas no nível da palavra, como desvio, se está concebendo a linguagem de forma taxionômica e classificatória simplesmente, ou seja, conclui-se que a relaçãode referência se dá de forma linear e codificada, que as variantesde uso (como as metáforas) encontram-se no âmbito do desvio e não abrange a produção de significação.

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Compreender a metáfora na frase, como “forma constitutiva da linguagem”, implica em redirecionar a linguagem do aspecto classificatório para o da significação, “com a frase, a linguagem sai de si mesma, e a referência indica a transcendência da linguagem a si mesma” (RICOEUR, 2000, p. 120). A metáfora segundo (Ricoeur, 2000, p. 13-14) apresenta uma estratégia de discurso que, ao preservar e desenvolver a potência criadora da linguagem, preserva e desenvolve o poder heurístico desdobrado pela ficção. A metáfora é o processo retórico pelo qual o discurso libera o poder que algumas ficções têm de redescrever a realidade. Ligando dessa maneira ficção e redescrição, restituí a plenitude de sentido à descoberta de Aristóteles, na Poética. Há três níveis diferentes da enunciação metafórica segundo Ricouer (2000, p. 458), primeiro: tensão entre os termos do enunciado, segundo: tensão entre interpretação metafórica, terceiro: tensa entre é e não é. Se de fato a significação, sob sua própria forma elementar, está em busca de si mesma na dupla direção do sentido e da referência, a enunciação metafórica apenas leva à sua plenitude esse dinamismo

semântico.

A

enunciação

metafórica

opera

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simultaneamente sobre dois campos de referência. Essa dualidade explica a articulação, no símbolo, de dois níveis de significação. A significação primeira é relativa a um campo de referência conhecido: o domínio das entidades às quais podem ser atribuídos os próprios predicados considerados em sua significação estabelecida. A segunda, à qual se trata de fazer surgir, é relativa a um campo de referência para o qual não há significação direta, e para o qual, por conseqüência, não se pode proceder a uma descrição identificante por meio de predicados apropriados. O texto para Ricouer, é uma entidade complexa de discurso cujos caracteres não se reduzem aos da unidade de discurso ou frase. “Por texto não entendo somente nem principalmente a escritura, embora a escritura ponha por si mesma problemas originais que interessam diretamente ao destino da referência; mas entendo, prioritariamente, a produção do discurso como obra” (RICOEUR, 2000, p. 336). O texto assume o papel de um discurso que toma a forma da obra. A obra não se resume a mera junção de frases e discursos. A obra é singular na sua forma final, quer seja um poema ou uma prosa. A estrutura interna da obra revela seu

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sentido, seu campo semântico ocorre, ao mesmo tempo, uma referência a um mundo que cada obra na sua singularidade institui. Inquirir sobre a transição do significado de uma obra para o seu mundo, isto é a hermenêutica. Quanta o papel da imaginação Ricoeur afirma que na metáfora, aparece na medida em que sublinha a incongruência da predicação nova e o desvio de sentido ao nível das palavras pelas quais tentamos reduzir essa incongruência. Somos levados, então, a perceber uma nova congruência a partir das ruínas da que se fragmentou pelos golpes da impertinência semântica da anterior, tentando buscar um novo sentido fora do seu uso comum. Ricoeur vê nessa impertinência semântica algo ligado à semelhança na produção do sentido. O criador de metáforas gera a metáfora que aparece não apenas como desviante, mas como algo, no mínimo inquietante. A metáfora não é o enigma de uma predicação impertinente, mas é a própria solução do enigma. Segundo Ricoeur, há na metáfora uma inovação semântica e uma mutação por contiguidade ou semelhança. O que é preciso compreender é um modo de funcionamento da imaginação que preenche uma lacuna. Para que isso aconteça, é preciso conceber

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a imaginação no modo kantiano, como imaginação criadora, como esquematização de uma operação sintética. José Paulo Paes no capítulo Para uma pedagogia da metáfora (1997) pensa a questão a partir da observação da vida cotidiana. Não deixa também de trazer acepção Aristotélica de metáfora, como uma substituição de uma palavra de sentido próprio para uma palavra com sentido conotativo. Para Aristóteles a metáfora representa a forma mais essencial e distinta para o embelezamento da linguagem.Aristóteles introduz duas noções básicas para a descrição do funcionamento da metáfora. Em primeiro lugar, a noção de desvio do “sentido ordinário” das palavras como meio de dar elevação ao discurso; em segundo lugar, a noção de estranheza que tais desvios suscitam: “importa dar ao estilo um ar estrangeiro, uma vez que os homens admiram o que vem de longe e que a admiração causa prazer” (PAES, 1997, p. 15). Segundo Paes (1997, p.14): “[...] há uma alternância de presença e ausência a que se associam, concomitantemente, sensações de prazer e desprazer”, ou seja, a metáfora traz esta sensação de desprazer quando ocorre o primeiro contato do leitor com as expressões metafóricas causando certo estranhamento e

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é aí que acontece o desprazer quando a princípio não há compreensão de tal analogia. Já o prazer vem logo em seguida, pois é a identificação dos sentidos atribuídos aos nomes, é a compreensão se realizando, o entendimento da metáfora. Metáfora é ausência e presença, isto é, ausência remete ao desprazer, pois ocorre quando não se identifica o real sentido da palavra, quando apenas é reconhecido o sentido figurado, dando a impressão de que não há coerência entre a palavra com o resto da frase. E a presença é o contrário, é o reconhecimento do sentido, é a compreensão que nos remete ao prazer, por isso há uma alternância, ora se entende, ora não se entende. O processo metafórico no conto O buraco, de Luiz Vilela No conto O Buraco,

a metáfora é

apresentada

primeiramente pela palavra que denomina o nome do conto, visto que proporciona um estranhamento. É a partir dela que desabrocham várias outras imagens metafórica. A narrativa é conduzida por um ser, que tem a missão de contar sobre si mesmo. Faz com competência, pois não se afasta do seu compromisso na corporação dos relatos. Responsável por

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direcionar várias conexões que se relacionam, formando o todo da narrativa. O dono da voz arquiteta um mundo que tem vida em si mesmo. Norman Friedman (2002, p. 171-172), aponta algumas considerações quanto à posição do narrador: 1) Quem fala ao leitor? (autor na primeira pessoa ou na terceira pessoa, personagem na primeira ou ostensivamente ninguém?); 2) De que posição (ângulo) em relação à estória ele a conta [...]; 3) Que canais de informação o narrador usa para transmitir a estória ao leitor? (palavras, pensamentos, percepções e sentimentos do autor; ou palavras e ações do personagem; ou pensamentos, percepções e sentimentos do personagem: através de qual – ou de qual combinação – destas três possibilidades as informações sobre os estados mentais, cenário, situação e personagem vêm?); e 4) A que distância ele coloca o leitor da estória? (próximo, distante ou alternando?).

As cenas são organizadas por um narrador em primeira pessoa, denominado Zé, que comanda todo o processo narrativo, e assim direciona aparição das poucas personagens. A focalização interna permite ficar o mais perto possível da percepção subjetiva do protagonista: em um vaivém entre interior e o exterior. O eu apresentado faz parte integrante de um universo

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do qual ele imerge nem sempre de modo natural. A particularidade desse relato tem a ver com o status do acontecimento. Marcada por uma temporalidade. O narrador começa sua narração rememorando seus três anos de idade, pois é a partir desta idade que tem consciência do buraco, porém nessa fase o vê como brinquedo. O protagonista ressalta que esta é a lembrança mais remota que ele tem de si mesmo. Em um tom confessional, Zé reconstrói sua história – conflitos, incertezas, dispostas em ideias que se fazem, desfazemse, refazem-se. Narra várias fases de sua vida, da infância à vida adulta. E a cada ciclo narrado, o buraco está presente, ou seja, o buraco vai se transformando conforme a existência do narrador: Às vezes Mamãe me via cavando-o e dizia: “Meu filho, deixa esse brinquedo, vai brincar na rua com os outros meninos.” Mas, às vezes também, ela me via e não falava nada, não se importava, e de certo modo até parecia achar bom: “Assim ele não vai para longe”, dizia. Dizia, ainda, para os outros: “Ele gosta de brincar sozinho.” Eu gostava também de brincar com os outros meninos na rua: brincava de pequi, de bomba, de esconder, de bola, de soltar papagaio, de corrida, de biloca, de tudo. Mas às vezes eu deixava tudo isso e ia mexer com o buraco. Achava bom ficar ali,

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sozinho, longe de todo mundo. Até que chegava um ponto em que também me cansava do buraco, sentia-me triste, e tinha vontade de voltar para as pessoas, conversas, falar, ouvir.(VILELA, 2003, p.20)

A linguagem presente no conto é prenhe de metáforas, o título é providencial na criação de uma imagem metafórica magnífica. Portanto, é a partir do substantivo “buraco” que nos voltamos para tentar fazer uma leitura do processo metafórico, nesta narrativa. Arriscamos em dizer, que ele se estabelece, inicialmente, pela separação entre as ordens semiótica e semântica

que

evidenciam

alguns

traços

distintivos,

concernentes a questão da metáfora. Há o fenômeno de predicação, e de denominação. Diferenciar o semiótico do semântico implica uma nova organização do paradigmático e do sintagmático. A metáfora pode ser discutida nas relações de substituição; e no nível do discurso, a construção de sentido da metáfora depende das relações de sentido criadas entre as palavras do enunciado, que cria o todo significativo do discurso. A metáfora é uma figura de linguagem cujo princípio repousa numa relação de analogia (semelhança) entre o sentido

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de dois termos. No processo metafórico, traços semânticos usualmente atribuídos ao termo A são transferidos ao termo B. Sua forma linguística também pode variar. A mais simples é a metáfora que funciona como predicativo do sujeito. No conto de Luiz Vilela a metáfora produz efeito analógico: tem-se a palavra

“buraco” que de acordo com o

dicionário da Língua Portuguesa que dizer: “qualquer abertura num corpo; furo, orifício.“Cavidade natural ou artificial, onde habita um animal; cova, toca”. De acordo com a linguagem referencial uma das acepções é de que é uma “cavidade natura”. Esta definição é favorável a primeira percepção que o narrador tem do buraco, a de algo físico, externo: “De qualquer modo, uma coisa era certa: aquele buraco existia e era meu, inseparavelmente meu, tão meu que era como se ele estivesse ali, fora, mas dentro de mim” (VILELA, 2003, p. 20). O que era externo, espaço físico, ganha tonalidade interna. Mas chegava em casa, e bastava ficar um pouco isolado dos outros e em silêncio, que ele surgia dentro de mim, como serpente se erguendo no escuro. Isso me deixava tão desconsolado, que tinha vontade de morrer. Mas outras vezes, em situação idênticas, era eu mesmo que invocava sua lembrança como um último socorro, e

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então ficava contente por ele existir (VILELA, 2003, p. 21).

No discurso do narrador podemos observar uma analogia entre buraco e vazio. Metaforicamente, o vazio implica que o narrador estava isolado e em silêncio, vazio expressão metafórica que substitui “surgia dentro de mim” (termo metafórico para buraco). Ou seja, o buraco que ao mesmo tempo representa vazio, tristeza, medo, solidão, também acalenta, é refúgio. Consistindo assim, uma dualidade que nem tudo é só bom ou ruim. Essa postura é adotada pelo narrador em várias fases de transição por qual a personagem passa. O buraco, somente eu poderia enchê-lo. Porque a essa conclusão eu havia chegado: o buraco estava ali, e não adiantava querer ignorá-lo; o que eu tinha de fazer era enchê-lo. Foi o que tentei, já rapaz, e não pude: cada páde terra atirada dentro do buraco era como se fosse atirada dentro de minha boca. Eu não podia fazer aquilo, era como se eu estivesse me assassinando (VILELA, 2003, p. 20).

Neste trecho, percebemos que a personagem tenta se desvencilhar do buraco, mas chega à conclusão de que o buraco já é parte de si, tornando uno. Incompreendido por não aceitar

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ajuda: “disseram que eu era orgulhoso, que eu desprezava os outros ou que eu não me importava com eles, e até que os odiava” (VILELA, 2003, p.21). A visão que as outras personagens têm do narrador por não aceitar ajuda vai ao encontro da reflexão de Bakhtin, que é bastante esclarecedora:

Às vezes, saio de mim mesmo no plano dos valores, vivo no outro e para o outro, e então posso participar do ritmo, mas nele sou, de um ponto de vista ético, passivo para mim mesmo. Na vida, participo do cotidiano, dos costumes, da nação, da humanidade, do mundo terreno em toda parte, vivo aí os valores no outro e para o outro, eu revesti os valores do outro, e aí minha vida pode submeter-se a um ritmo (submeto-me lucidamente ao ritmo), aí minha vivência, minha tensão interna, minha palavra, tomam lugar no coro dos outros. Porém, no coro, meu canto não se dirige a mim, sou ativo só a respeito do outro e passivo ante à atitude do outro para comigo; estou ocupado em trocar dons e faço-o com desinteresse; sinto em mim o corpo e a alma do outro. (Quando a finalidade do movimento e do ato se encarna no outro ou então é coordenada com o ato do outro — durante um trabalho em comum, por exemplo —, também minha ação entra no ritmo que não criei para mim, mas do qual participo para o outro.) (BAKHTIN, 1997, p. 136).

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Nessa citação de Bakhtin fica claro que a visão do outro é como um espelho, isto é, eu sou aquilo que é filtrado pela visão do outro, muitas vezes, equivocadamente. O narrador mostra-se desinteressado com o julgamento do outro, e faz o que lhe convém. Sabendo que somente ele pode resolver a questão do vazio que cada vez torna-se maior, tenta tampar o buraco físico, cai nele e sente-se desconfortável no primeiro momento, mas depois se sente como se estivesse em casa. A partir da queda, a personagem começa o processo de metamorfose e se transforma em um tatu, chegando a caminhar de quatro, e a ter unhas enormes e o rosto (agora focinho) alongado. Roger Caillois (apud, Todorov) afirma que “todo o fantástico é uma ruptura da ordem reconhecida, uma irrupção do inadmissível no seio da inalterável legalidade cotidiana” (TODOROV, 2004, p.161). A personagem em estudo transita entre o mundo de pessoas reais vacilando entre uma explicação natural e uma explicação sobrenatural dos acontecimentos elencados. Há uma ruptura com a ordem estabelecida. De ser humano, passa a ser um animal. O texto do autor Luiz Vilela, dialoga com o conto “Metamorfose” de Franz Kafka. Kafka elege um narrador em

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terceira pessoa para contar as inquietações, de Gregor Samsa, depois de ser transformado em um inseto gigantesco. Diferente de Luiz Vilela, que optou por um narrador em primeira pessoa, que narra paulatinamente como se metamorfoseou em tatu. As personagens que fazem parte da trama do autor mineiro são apenas duas: a mãe do narrador e a noiva. São elas que sofrem com a transformação de Zé. Por outro lado, Zé busca essa transformação, o essencial, é o silêncio, a incomunicabilidade. Kafka inicia o conto pelo clímax. Segundo Ricardo Piglia em Teses sobre o conto (2004), Kafka conta com clareza a história secreta. Não faz, absolutamente, nenhum suspense quanto a transformação, de Gregor Samsa, em inseto. O mistério é revelado, logo, nas primeiras linhas: “Certa manhã, após um sono conturbado, Gregor Samsa acordou e viu-se em sua cama transformado num inseto monstruoso” (KAFKA, 2001, p. 11). No entanto, é sigiloso quanto a história visível. Na narrativa de Kafka, além do personagem central, há outros personagens que fazem parte da composição da novela. São denominadas de: pai, mãe, irmã, chefe, gerente. É por meio deles que Gregor irá perceber que só se tem valor quando se é útil, e, na atual condição de inseto, percebe que os conflitos

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existenciais são gritantes, impossibilitado de ir ao trabalhar, logo, não poderá mais ser o provedor daquela família, o bônus são as humilhações, advindas dos entes queridos. Portanto, ao perder sua autonomia passa a outro lugar social. Está a margem. O conto apresenta a visão de uma sociedade capitalista e individualista. Conceitos que na visão de Kafka corroem o ser, tornam-nos menores, mesquinhos e insignificantes. Podemos arriscar em afirmar que a metamorfose é a metáfora que desvela a condição humana em desumana. O paradoxo está, não, no inseto em que, Gregor se transformou, e, sim, nas atitudes dos humanos que dizem ser sua família. Cabe ressaltar, que tanto na obra de Luiz Vilela, quanto na narrativa de Kafka, temos seres metamorfoseados, seja, por vontade própria, ou, por força do acaso. Em Luiz Vilela, o personagem se permitiu mudar. Já em Kafka, a mudança gera conflito, e infortúnio. Em Kafka, o isolamento, o silêncio, a incomunicabilidade vem pela falta de escolha. Em Luiz Vilela isso é provocado, é opção. Os metamorfoseados não voltam a condição de antes, um porque não quer, e outro, por não poder. São textos que dialogam, entretanto, cada um com suas

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particularidades. Dois autores excepcionais, logicamente, que separados pelo tempo, porém, confrontados pelos leitores. O jogo entre real e fantástico se apóia, segundo Todorov (1981), essencialmente em uma vacilação do leitor que se identifica com a personagem principal referida a natureza de um acontecimento estranho. Retomando a discussão sobre o conto de Luiz Vilela, podemos considerar que o processo de metamorfose é semelhante

com

o

processo

metafórico

ambos

são

transformações que ressignificam algo que estava posto. A incomunicabilidade é o resultado do processo metafórico, o narrador sente-se solitário, mesmo convivendo com outras pessoas. Essa solidão também é consensual, às vezes, ele busca estar só, já que o silêncio faz-lhe bem. No entanto, é em silêncio que Zé começa a sentir a presença do outro, e perceber como a voz do outro é importante. Nos termos metafóricos a ausência e presença se completam. O não dito é mais importante que o dito. O narrador significa reinventando-se no silêncio e na solidão, o buraco, o vazio são preenchidos pela engenhosa forma que o narrador criou para dá sentido a vida:

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Maria era minha noiva. Eu não respondia, mesmo com ela. Então havia um silêncio, que eu percebia ser o da pessoa esperando ainda que chegasse lá em cima algum som de baixo; mas eu ficava bem quieto. Então o silêncio voltava a ser o de antes, a pessoa tinha ido embora. No começo esse silêncio era de um tipo, depois ficou de outro, (eu estava virando um especialista em silêncios, distinguia milhares de tipos diferentes). No começo era o silêncio de quem espera, apenas espera um som e depois pensa: “é ele não está aí mesmo não”. Mas depois quando ficaram sabendo que eu passava ali quase o dia inteiro, quando sempre me viam indo para ali, esse silêncio era o de quem espera desconfiando e pensando: “ele está aí, sei que está aí, e não quer responder” (VILELA, 2003, p. 24).

Zé percebe a ausência de significação na palavra. Para ele, o silêncio é forma primeira de sentido. As pessoas que convivem no mesmo espaço não possuem sensibilidade para perceber, isto segundo o narrador é porque as pessoas estão esvaziadas de silêncio. No horizonte do silêncio, como iminência de sentido, mesmo fora da linguagem, ele é dotado de significado. Nessa

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perspectiva, Orlandi (1997), compreende que estar em silêncio corresponde estar no sentido, pois as próprias palavras transpiram silêncio. Vale

ressaltar,

que

talvez,

a

imagem

metafórica

apresentada no conto, se aproxima de uma alegoria, pela forma que o processo metafórico é contemplado no conto.

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O REVELAR POÉTICO EM CLAUDIA ROQUETTE-PINTO Eloiza Fernanda Marani (CPTL/UFMS)

Resumo: Claudia Roquette-Pinto, embora tenha publicações significantes, ainda é uma escritora pouco conhecida nos meios acadêmicos. Entretanto, o estudo de sua poética revela uma autora que se apropria de recursos literários, como a metáfora, para sinalizar uma de suas principais características – a metapoesia –, através de assimilações e exaltações às simplicidades e insignificâncias do cotidiano, como jardins e insetos. Para isso, apresentaremos a análise do poema “Nada”, constituinte da obra Corola, no intuito de exemplificar, ilustrar e apontar o percurso trilhado pela autora na formação do constructo poético. Palavras-chave: Literatura Brasileira; Poesia Contemporânea; Metapoesia.

Introdução A constituição da identidade humana é pautada na palavra, recurso de suma importância também para as artes,

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mais especificamente a poesia, a qual depende exclusivamente da força e jogo das palavras para ganhar corpo e vida. Entretanto, para que a poesia se transforme em poema é necessário o trabalho árduo e difícil do artista para a transposição de ideias em concreto. A manipulação artística é executada pelo poeta, artesão que de fio a fio, palavra a palavra, vai metamorfoseando o abstrato em concreto, externando e dividindo com o leitor suas vivências e sentimentos emanados da poesia: [...] O poeta, no ato mesmo de fazer poema, expõe seu conceito de poesia, explicitando sua função catártica, ou seja, aquela de meio de vazão dos sentimentos, de alivio mesmo de sofrimentos. Fundem-se, em seus versos, a ideia de poema e vida e, paradoxalmente, a de representação da morte [...] É como se o poeta quisesse fazer um pacto com seu leitor, dandolhe uma chave do que entende por poesia naquele momento [...]. (WALTY; CURY, 1999, p. 16-17).

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Fazer poesia é falar das coisas, não como elas são, mas como as vemos e sentimos em um determinado instante, momento de inspiração. O poeta consegue enxergar além da realidade, pois seu ‘mundo’ aproxima-se do encanto e da magia. Na poesia, podemos visualizar e vivenciar os acontecimentos inimagináveis do mundo real, que só ganham vida na literatura. É este poder de dar vida às coisas que faz do poeta um criador que, mesmo preocupado com as formas, cores e sexo, da ênfase maior aos sentimentos internos e externos, pois adquire o perfil de manipulador do discurso. Autora de sete livros – Os dias gagos (1991), Saxífraga (1993), Zona de sombra (1997), Corola (2000), Margem de manobra (2005), Botoque e Jaguar: a origem do fogo (2009) e Entre lobo e cão (2014)

Claudia

Roquette-Pinto

versa

sobre

o

papel

imprescindível do escritor no ‘cosmos’ da poesia. A autora desfruta da utilização de jardins e todos os elementos da natureza que o compõem, como terra, água, luz e ar, os quais unidos exibem e estabelecem equilíbrio. O autor é quem

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consegue transitar entre o abstrato e o concreto e materializar em palavras o mundo, de maneira que chegue a ser humanizador, pois a literatura é a única arte que consegue definir intimamente o ser humano, consegue atingir o âmago do homem, sem deixar de ser arte. Considerando a importância da metalinguagem em estudos poéticos e a relevância de Claudia Roquette-Pinto no âmbito da literatura brasileira contemporânea, é objetivo deste trabalho esboçar a análise do poema “Nada” (2000, p. 23), pertencente a obra publicada Corola,

ressaltando em suas

composições a persistência da metapoesia que se instaura como reflexão sobre a linguagem, o ser e o tempo que o permeiam.

Do “Nada” ao contructo poético Na configuração das obras de poesia lançadas por Claudia Roquette-Pinto, segundo Marani (2015), há uma persistência em retratar em seus versos a preocupação com a forma e a maneira

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como a poesia é construída. Entretanto, caracteriza também temas que tratam da vida na sociedade. Uma poeta de imagens, cujas obras mencionam flores, folhagens, obras de arte, impessoalismo, feminilidade, violência, além da musicalidade presente em seus versos. Este trabalho tem por propósito debruçar-se sob a obra Corola (2000), penúltimo livro de poesia lançado por Claudia Roquette-Pinto, é composto por 48 poemas com temáticas diversificadas: amor; fracassos; críticas à sociedade; essência humana. Entretanto, o tema que mais se destaca e persiste é a Metapoesia. Corola, segundo o dicionário Aurélio da Língua Portuguesa (2010, p.590), “corola é o verticilo interno do perianto da flor quase sempre vistoso e de coloração viva. Cada segmento corolino é chamado de pétala, ou também, conhecida como “grinalda de flores”. A título de exemplo dos poemas que versam sobre a temática reiterante nesta obra, a metapoesia, destacamos o

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poema “Nada” (ROQUETTE-PINTO, 2000, p. 23), transcrito a seguir: NADA, além do som do riacho e do grilo, esfregando seu pedaço de lixa no ar estreito, alheio a outro som, quase inaudível, que o coração abafa, em disparate contra a paisagem, organizada e fria - apesar de um sol que desafia a pele a abandonar sua letargia e põe insetos em outros trajetos varando contra o rosto. Agora a nuvem se encosta no morro, cobre o olho impiedoso, pai do meu desconforto. Afago de asas, vento diminuto paro e flagro o que aflora (borboleta de Wordsworth, mas bem mais que meia hora), enquanto cascos se pisam no céu que hesita entre a chuva e a indiferença. Imóvel, vertiginosa, de fora a dentro me inclino (os clarões se aproximam) rede em riste

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sobre o rosto daquela flor - a única que existe.

Vejamos que o poema apresentado recebe como título a palavra “Nada”, que, ao mesmo tempo em que o nomeia, também, constitui-se como o verso de abertura. O primeiro verso é transcrito em letra maiúscula para destacar e reforçar uma de suas funções, que é nomeá-lo. A outra função imposta é simplesmente da inexistência:

NADA, além do som do riacho e do grilo, esfregando seu pedaço de lixa no ar estreito [...] (ROQUETTE-PINTO, 2000, p. 23)

A acepção do termo “Nada” como o ‘vazio’ de algo é revelada neste trecho, em que o eu lírico descreve sua percepção exterior dos acontecimentos que o cercam, no reconhecer de sons da natureza. Esses versos carregam a intenção de apontar o vazio interno do eu lírico, que se apresenta como narrador, pois relata

133


o que vê, imagens configuradas como retratos captados pelo seu olhar, um relato mimético, em que a arte imita a vida. A realidade factual é percebida pelo eu lírico através de sons e imagens da natureza, como a correnteza do riacho e o estridular do grilo, as imagens da “nuvem encostando-se no morro” e “insetos varando contra o rosto”. Entretanto, essas percepções só se completam por meio da audição e a da visão, que se encontram aguçados e sensíveis aos acontecimentos externos que cercam o eu lírico e, consequentemente, o fazem refletir sobre o que ouve, vê e sente, de tal forma que começa a explanar e compreender sua sensibilidade, que, a um olhar desatento, pode parecer normal, mas para um artista torna-se inusitado, os artistas são “míopes”, captam o imperceptível aos olhos do homem comum, mas sensível e essencial ao olhar do poeta. Os aspectos estruturais deste poema revelam a tessitura poética e significativa que envolve o eu lírico em uma busca pelo caminho do fazer poético. Esses aspectos compõem-se de rimas,

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sonoridade, ritmo e a seleção de palavras que embalam a procura poética. As rimas são soltas, ocasionando uma sonoridade e ritmo calmos, advindos da utilização de recursos de pontuações gráficas, dentre eles as vírgulas, travessões e parênteses. Muitas são empregadas no poema, as quais na leitura força-nos a uma pausa ligeira, ocasionando um ritmo lento e, necessariamente, reflexivo. O travessão, encontrado nos versos oito e vinte e seis, assinalam orações intercaladas, uma maneira de retomar e/ou enfatizar um tema já tratado ou que ainda será disposto no poema, além de retratar pausas mais longas e densas como se fossem partituras: [...] - apesar de um sol que desafia a pele[...] (v. 8) [...] - a única que existe. (v. 26) (ROQUETTE-PINTO, 2000, p. 23)

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No verso “- apesar de um sol que desafia a pele” o travessão aparece em contradição com o que foi dito no verso anterior “contra a paisagem, organizada e fria”, pois apesar dessa paisagem ser organizada e fria existe um sol que o ilumina e dá vida, esse sol é a metáfora de vida, a qual coloca o eu lírico diante de situações e paisagens que o forçam a refletir e caminhar para o processo da criação poética. Um dos recursos de pontuação utilizados neste poema é o uso de parênteses[1], os quais aparecem nos versos dezessete, dezoito e vinte e três transcritos a seguir: [...] (borboleta de Wordsworth, (v.17) mas bem mais que meia hora), [...] (v. 18) [...] (os clarões se aproximam) [...] (v. 23) (ROQUETTE-PINTO, 2000, p. 23)

Os parênteses parecem indicar uma notação, explicação e/ou intertextualidade literária. A utilização desse recurso, constantemente, pode explicitar e ressaltar algo de suma

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importância para a análise semântica de um texto. Uma das funções denominadas aos parênteses é referenciar um autor, uma obra, ou até mesmo, fragmentos de versos. A intertextualidade existente com outros autores situase na expressão contida dentro dos parênteses “borboleta de Wordsworth”, que remete ao poeta romântico inglês Willian Wordsworth[2] (1770-1850), mais especificamente ao poema “To a Butterfly”, transcrito abaixo na versão original e sua tradução: To a Butterfly[3]

A uma Borboleta

Stay near me—do not take thy flight! A little longer stay in sight! Much converse do I find in Thee, Historian of my Infancy! Float near me; do not yet depart! Dead times revive in thee: Thou bring'st, gay Creature as thou art! A solemn image to my heart, My Father's Family!

Fique perto de mim, não tome teu voo! Fique um pouco mais à vista! Eu encontro muito o oposto em ti, Historiadora da minha infância! Voe perto de mim; não parta ainda! Tempos mortos revivem em ti: Tu trouxeste, alegre criatura como és, Uma solene imagem ao meu coração, A família de meu Pai!

Oh! pleasant, pleasant were the days, The time, when in our childish plays My sister Emmeline and I Together chaced the Butterfly! A very hunter did I rush Upon the prey:—with leaps and springs I follow'd on from brake to bush; But She, God love her! feared to brush

Oh! Prazerosos, prazerosos foram aqueles dias O tempo, quanto em nossas pueris brincadeiras Minha irmã Emmeline e Eu Juntos caçamos a Borboleta! Como um verdadeiro caçador, lancei-me Sobre a presa; - com saltos e trotes Eu a segui da mata a moita; Mas ela, Deus a ame! temeu espalhar

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The dust from off its wings.

A poeira para fora de suas asas.

Como efeito de sentido velado e contido nesta intertextualidade

nota-se

a

apropriação

de

algumas

características do poema de Wordsworth para o poema de Roquette-Pinto. Em ambos há prevalência de imagens, referências à natureza e, sobretudo, ao processo criativo na “carpintaria” do poema. Nos dois poemas apresentados, “To a Butterfly” e “NADA”, o eu lírico descreve os caminhos percorridos e necessários para a construção poética, assim como podemos destacar nos trechos transcritos: [...] alheio a outro som, quase inaudível, que o coração abafa, em disparate contra a paisagem, organizada e fria [...] [...] (borboleta de Wordsworth, mas bem mais que meia hora), enquanto cascos se pisam no céu que hesita entre a chuva e a indiferença. [...]

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(ROQUETTE-PINTO, 2000, p. 23)

Fique perto de mim, não tome teu voo! Fique um pouco mais à vista! [...] [...] Como um verdadeiro caçador, lancei-me Sobre a presa; - com saltos e trotes [...] (WORDSWORTH, 1807)

No fragmento poético de Roquette-Pinto todo som “inaudível” apresentado no início do poema torna-se “chuva” em seu ápice. A chuva é símbolo universal da pureza, fertilidade e fecundidade, é o princípio criador da vida. Neste poema, o verbete chuva torna-se metáfora de produtividade/criatividade, ou seja, esse eu lírico transita entre o momento de “seca intelectual” para um momento chuvoso e criativo. Assim como também acontece no poema de Wordsworth, o eu lírico, de início, não possui o domínio completo na apreensão da poesia, suplicando para que não o deixe; em seu desfecho relata que se tornou um “verdadeiro caçador”, ou seja,

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fisga a todo momento a poesia “lançando-se sobre a presa, com saltos e trotes”. Nestes dois poemas, o eu lírico retrata a poesia por metáforas; a metáfora de Roquette-Pinto recai sob a palavra “Flor”, enquanto que a metáfora de Wordsworth incide sobre a palavra “borboleta”. O eu lírico de Roquette-Pinto alude ao momento da fruição de ideias para a versificação do poema em “mas bem mais que meia hora” e “os clarões se aproximam”, neste último torna-se notório o encontro, por completo, da poesia. Já o eu poético de Wordsworth rememora momentos familiares em uma profunda e complexa apreensão de conjecturas poéticas, nas quais se transformam em versos. Ambos os poemas revelam, através de imagens poéticas, o procedimento para construir o poema, do qual emana a poesia. Deste modo podemos afirmar que essa intertextualidade, empregada por Claudia Roquette-Pinto no poema “Nada”, vem

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reforçar o pensamento que persiste em todo o seu poema: traçar um caminho do fazer poético, a partir do encontro com a poesia. O aspecto antitético persiste por vários momentos como nas palavras som/inaudível (verso cinco); abafa/disparate (verso seis); cobre/olho (verso treze); fora/dentro (verso vinte e dois) e o par antitético sol/chuva (verso oito e verso vinte) que não se enquadram em um mesmo verso, mas constituem ambiguidade e divergência na construção significativa do poema, esses pares tem por objetivo causar uma certa “tensão” na construção do efeito de sentido que envolve o poema: a disparidade entre o encontrar da poesia e o concretizar da mesma. Nesse processo ao encontro da poesia, o eu lírico demonstra

momentos

necessários

na

de

solidificação

transformações do

percurso

intelectuais, poético.

Essa

metamorfose apresenta-se no fragmento a seguir: [...] Agora a nuvem se encosta no morro, cobre o olho impiedoso, pai do meu desconforto. [...]

141


(ROQUETTE-PINTO, 2000, p, 23)

Neste trecho a imagem da nuvem encostando-se no morro representa uma obscuridade/nebulosidade vivida pelo eu lírico. Nuvem remete a sentido de nebuloso, confuso, indefinido, tempestuoso. Sua forma de natureza irregular, instável e muitas vezes turva, reafirmam esse simbolismo de coisa oculta ou mal definida. Pode, também, representar tempos de transformações, como é o caso nesse poema, no qual o eu lírico passa por evoluções de uma letargia poética para um aflorar criativo. Ainda sobre esse fragmento, temos o uso do pronome possessivo “meu”, que põe o eu lírico no centro das ações e marca o início de um segundo momento deste poema. A primeira fase encontra-se entre o início do poema até o verso “pai do meu desconforto”, esta primeira etapa é a visualização e percepção exterior do eu lírico. A partir do uso desse pronome possessivo, o eu lírico começa a relatar assimilações subjetivas e insere-se no espaço poético.

142


Na segunda fase o eu lírico passa a relatar e transfigurar sua compreensão exterior em poesia, em um processo ‘de fora para dentro’, isto é, a partir de tudo o que viveu apreende e versifica em forma de poema. A aliteração na repetição dos fonemas f / fl / g e nas palavras “Afago”; “flagro” e “aflora”, tem por intuito criar uma sonoridade ao poema como podemos notar nos versos a seguir: [...] Afago de asas, vento diminuto paro e flagro o que aflora [...] (ROQUETTE-PINTO, 2000, p. 23)

Além da sonoridade, essa aliteração tem por intuito criar um efeito de sentido de confusão do eu lírico, pois esses fonemas remetem a uma dificuldade de pronúncia. É neste trecho, exatamente, que o eu lírico transita por uma desordem de ideias, pois caminha de uma letargia intelectual para uma avalanche de ideias, no encontro e compreensão de seu percorrer poético. Outro recurso estilístico que sobressalta nesta análise é a metáfora, a qual se torna mais envolvente e significativa pelo fato

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de ressoar na continuidade dos outros poemas que constituem a obra Corola. A metáfora mestre neste poema recai sob a palavra “Flor”, que irá aparecer ao final do poema no verso vinte e cinco e remete-se a poesia, mais especificamente, ao ato de fazer poesia: [...] sobre o rosto daquela flor - a única que existe. (ROQUETTE-PINTO, 2000, p. 23)

Torna-se notório que o eu lírico, do início ao meio do poema, transitou por momentos de “letargia” intelectual, no qual nada além dos sons exteriores lhe apreendiam, entretanto, do meio ao fim o eu lírico, a partir dos atos involuntários e pequenos da natureza, desperta seu “jardim” intelectual que começa a florir, resultando no “rosto daquela flor/ a única que existe.” O último verso, “a única que existe”, enfatiza a importância de cada ideia e cada minuto na ‘carpintaria’ poética, porque para os escritores o momento de produção é instigador e, ao mesmo tempo, sacrificante, vai muito além de apenas

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escrever, exerce uma função social, assim como relata a própria poeta Claudia Roquette-Pinto no trecho da entrevista concedida à Revista Plástico Bolha: O poeta tem uma função social? Acho que sim. A função do poeta é falar sobre os assuntos universais, mas se aprimorar enquanto instrumento de uma fala que vai tocar, vai varar os outros; mas isso é função de todo artista, não só do poeta. É uma função transformadora, do microcosmo para o macrocosmo. (ROQUETTE-PINTO, 2006, p. 2).

Por conseguinte, temos um eu lírico que busca nas coisas mais simples a essência da vida e da poesia, retratada por palavras que vão se apresentando na leitura, como o “som do riacho e do grilo”, “a nuvem que se encosta no morro”, o “céu que hesita entre a chuva e a indiferença”, entre outros. É notório visualizarmos essas paisagens de jardins e todos os elementos que o constituem, através da riqueza de detalhes utilizados pela poeta, os quais fazem toda a diferença na análise semântica do poema. As imagens nascentes deste poema

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dependem e completam-se através do recurso metafórico, que ao final se concretizará em uma única palavra, Flor, no intuito de demonstrar que o caminho do fazer poético é árduo e repleto de espinhos, mas o resultado torna-se belo e esplendoroso, assim como a flor, presentes nos versos: [...] enquanto cascos se pisam no céu que hesita entre a chuva e a indiferença. Imóvel, vertiginosa, de fora a dentro me inclino (os clarões se aproximam) rede em riste sobre o rosto daquela flor - a única que existe. (ROQUETTE-PINTO, 2000, p. 23)

O poema “Nada” consegue ilustrar com maestria a proposta de Claudia Roquette-Pinto na obra Corola, salientar as coisas insignificantes do cotidiano, como jardins e insetos, mas a metáfora predominante recai sobre a flor, na intenção de formar e constituir um jardim com todas suas pétalas, tornando-se um

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“jardim provável”, isto é, um poema completo que consiga atingir seu objetivo, que é tocar e emocionar seu leitor.

Considerações finais Todo o preciosismo, construído artesanalmente pelas mãos do artista, próximos à realidade humana, aproxima o mundo factual do fictício, servem e reforçam a importância sobre o que é fazer poesia, principalmente nos dias atuais. Isto posto, a poesia é o retrato da sociedade atuante, é produto do meio, e assim como essa sociedade é falha, a literatura, mais especificamente o poema, também apresenta labutas obscuras, mas que com muito suor e trabalho, seu artesão (poeta) vai conseguindo clareá-las. A utilização de aspectos do mundo real é, exatamente, o artífice mais utilizado por Claudia Roquette-Pinto, na intenção de ilustrar e formar um panorama sobre o percurso do encontrar com o concretizar a poesia.

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O poema de Claudia Roquette-Pinto, “Nada”, desde o título já subjaz a aparente inexistência de algo, o qual será encontrada e preenchida pelo processo de ‘artesania’ poética. O processo da construção poética, dita e vivida por Roquette-Pinto, é permeada de ambiguidades, divisões, embates, reflexões, solidão, adjetivos que se apresentam como respaldo e vida através das palavras, peça fundamental para sobrevivência do homem e primordial para a poesia.

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Referências: FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. 5ª Ed. Curitiba: Positivo, 2010. MARANI, Eloiza Fernanda. Fortuna crítica e Metapoesia em Claudia Roquette-Pinto. Três Lagoas, 2015, 300 fls. Dissertação (Mestrado – Estudos Literários) – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – UFMS. ROQUETTE-PINTO, Claudia. Corola. São Paulo: Ateliê Editorial, 2000, p. 23. VIRIATO, Lucas; MORAES, Marilena. Poesia é a tecnologia de ponta da língua. Plástico Bolha, Rio de Janeiro, setembro de 2006. WALTY; CURY, Ivete; Maria Zilda. Textos sobre textos: um estudo da metalinguagem. Belo Horizonte: Editora Dimensão, 1999. William Wordsworth. Wikipédia: a enciclopédia livre. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/William_Wordsworth>. Acesso em: 20 de Abril de 2014.

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Notas [1] O uso dos parênteses aparecem em vários poemas da obra Corola (2000), de Claudia Roquette-Pinto. [2] Willian Wordsworth (1770-1850) foi o maior poeta romântico inglês que, ao lado de Samuel Taylor Coleridge, ajudou a lançar o romantismo na literatura inglesa com a publicação conjunta, em 1798, das Lyrical Ballads (Baladas Líricas). [3] “To a Butterfly” é um poema lírico escrito por Willian Wordsworth. Foi publicado pela primeira vez na coletânea Poems, in Two Volumes de 1807.

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MODOS DE CONSTRUÇÃO DO NARRADOR CONTEMPORÂNEO: UMA ANÁLISE DE MONGÓLIA, DE BERNARDO CARVALHO Eloiza Fernanda Marani (CPTL/UFMS) Maisa Barbosa da Silva Cordeiro (CPTL/UFMS)

RESUMO: Este artigo tem como proposta analisar os modos de construção do narrador contemporâneo no romance Mongólia, de Bernardo Carvalho. Por meio do movimento de articulação de três narrações distintas para compor uma única diegése, a narrativa se destaca pelo mistério que envolve o encontro das vozes nela presentes. Trazendo à tona a ideia de que o narrador do romance contemporâneo não se propõe mais a partilhar aconselhamentos, Mongólia evidencia caminhos distintos pela busca da própria história. Desse modo, é objetivo deste trabalho entender de que modo o narrador é construído e de que modo o foco narrativo é articulado. Palavras-chave: Narrador contemporâneo; Romance; Mongólia; Bernardo Carvalho.

Introdução

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Mongólia, romance do carioca Bernardo Carvalho (2003), chama atenção devido ao modo particular por meio do qual é composto: a narrativa é construída a partir da junção de diários de dois narradores: o primeiro, o Ocidental, apelido que recebe dos Mongóis, povo com o qual tem contato durante a sua trajetória; e o segundo, o Desajustado, também classificação impelida pelos mongóis, que ironizam o fato de ele não se ajustar às regras. Por meio da seleção e organização de informações presentes nos diários dos dois, o diplomata aposentado direciona a narração, constituindo a narrativa por meio da articulação entre três vozes principais: a do narrador, o ex-diplomata, o Ocidental e o Desajustado. O escritor de Mongólia é nascido no Rio de Janeiro, na década de 1960. Em sua carreira, atuou como romancista e jornalista. Sua estreia na literatura foi em 1993 com o livro de contos Aberração. Já seu primeiro romance, Onze, foi publicado em 1995. No ano seguinte publica Os Bêbados e os sonâmbulos e,

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em 1999, As iniciais. As publicações permitem que Carvalho se firme como um dos mais importantes escritores da nova geração, principalmente, em 2002, quando o título Nove noites lhe rende o prêmio “Portugal Telecom de Literatura Brasileira”. Sua literatura tem como característica marcante a mistura de ficção e realidade,

o

que

contribui

para

a

verossimilhança,

principalmente, no que tange à descrição de lugares físicos. Mongólia, objeto de nosso estudo, conquista o prêmio da “Associação Paulista de Críticos de Artes” e, também, o “Prêmio Jabuti” de 2002. Carvalho lança, ainda, os títulos O sol se põe em São Paulo (2007), O filho da mãe (2009) e Reprodução (2013). Entre as publicações de Carvalho, Mongólia ganha destaque devido ao forte vínculo instituído entre ficção e realidade. Para tanto, em nossa análise, pautaremo-nos, prioritariamente, em Adorno (2003) e Benjamin (1994) para analisar a construção do narrador, e em Friedman (2002) e Leite (2002) para investigar de que modo o foco narrativo é desenvolvido.

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Entre conflitos e labirintos: a construção do narrador em Mongólia

O início da diegése de Mongólia é marcado pelas reflexões de um diplomata aposentado que, morando no Rio, começa a recompor os passos de um antigo subordinado com o qual, há tempos, não mantém relações. O interesse se dá por dois fatos: o recente assassinado do ex-funcionário, bem como a relação conflituosa que tiveram, e volta à tona devido à sua morte. O contexto conturbado que marca o fim da vida do antigo subordinado faz com que o diplomata elabore reflexões sobre si próprio, o que culmina com a lembrança da existência de antigos documentos do ex-funcionário em sua casa. Ao buscá-los, descobre dois diários. Em um deles, o Ocidental narra sua trajetória em terras mongóis na missão dada pelo antigo chefe: encontrar um rapaz brasileiro que desapareceu na Mongólia: “Virei a noite a ler os papéis, na verdade um diário que ele

154


escreveu na forma de carta (...)” (CARVALHO, 2003, p. 14). No outro, pertencente ao próprio rapaz, fotógrafo, o narrador descobre as motivações para a viagem empreendida por ele e que provocou em seu desaparecimento: “[...] É o começo da minha viagem. Meu objetivo é fotografar os tsaatan, criadores de rena que vivem isolados na fronteira com a Rússia, entre a taiga e as montanhas. Estão em vias de extinção” (CARVALHO, 2003, p. 39). Por meio da leitura dos manuscritos, o romance parece indicar a busca do narrador por si próprio, e, ao lado disso, reconstrói a trajetória labiríntica que leva os dois viajantes a revelarem suas próprias histórias. Nesse contexto, é por meio dos documentos encontrados que o narrador concretiza um desejo antigo: tornar-se escritor. A narrativa de Mongólia parece evidenciar o porquê das narrativas sempre terem seduzido o homem. Estas, por meio de uma abordagem simbólica ou direta, tratam da condição

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humana, seja em relação aos deuses, à natureza ou em relação aos próprios homens. Por meio da narrativa, é possível conhecer novos modos de realização de tarefas, organizações sociais e também diferentes lugares e pessoas, o que confere a narrativa um caráter utilitário: “[...] Essa utilidade pode consistir seja num ensinamento moral, seja numa sugestão prática, seja num provérbio ou numa norma de vida – de qualquer modo, o narrador é um homem que sabe dar conselhos” (BENJAMIM, 1994, p. 200). De fato, a atração do homem em relação à narrativa está associada, em boa parte, ao seu desejo de dominar o que desconhece. Nesse sentido, as histórias de cunho folclórico são as que melhor exemplificam essa questão. Nelas estão sempre presentes a ânsias do homem para decifrar problemas oriundos da relação com a natureza, questionamentos sobre o seu eu interior – existencial – ou exterior – social, entre outros. O narrador postulado por Benjamim (1994), contudo, é problematizado por Adorno (2003) em A posição do narrador no

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romance contemporâneo. Como defende Adorno (2003), o quadro intelectual em que nasce o romance se insere na era burguesa, momento em que se crê na razão, à luz do iluminismo, para expressão de soluções de conflitos da sociedade. Desse modo, as produções literárias refletiam tais crenças, tornando a partilha de experiências e vivências não tinha mais espaço. A frase inaugural do importante ensaio de Adorno (2003, p. 55) remete diretamente ao narrador benjaminiano: “Ela se caracteriza, hoje, por um paradoxo: não se pode mais narrar, embora a forma do romance exija a narração.”. Por meio da citação, Adorno elucida um conflito importante que paira sobre o narrador: como narrar, já que as experiências não são mais cambiáveis? O que narrar no romance, tendo em vista que este exige a narração? A leitura de Mongólia inicia-se com uma narrativa que, à primeira vista, irá nos remeter ao narrador benjaminiano: o diplomata aposentado teve uma carreira sólida, tendo em vista que permaneceu nela sua vida toda; como diplomata, viajou

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muito, motivo que faz com que pressuponhamos que tenha muitas experiências para partilhar. Aos poucos, suas reflexões acerca de sua própria vida vão emergindo, contudo, um homem com inúmeras incertezas sobre sua trajetória, seus desejos não concretizados e seu medo de se lançar para o novo: A literatura já não tem importância. Bastaria começar a escrever. Ninguém vai prestar atenção no que eu faço. Já não tenho nenhuma desculpa para a mais simples e evidente falta de vontade e de talento. O fato é que a notícia da sua morte me deixou ainda mais prostrado. Foi uma razão a mais para não sair. Não sou um homem especialmente corajoso, e os anos foram me deixando cada vez menos. (CARVALHO, 2003, p. 11).

O narrador do referido romance inicia suas reflexões elucubrando o fato de que não tem experiências, não tem uma vida marcada por aventuras ou por ações extraordinárias. Talvez por isso a fonte da narração do romance seja justamente as histórias de outrem, mais especificamente, de dois homens que

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empreenderam uma viagem rumo ao desconhecido e, nesse trajeto, tornaram-se possuidores de experiências: “‘Quem viaja tem muito que contar’, diz o povo, e com isso imagina o narrador como alguém que vem de longe”, decide cumprir o adiado plano de se tornar escritor: Não me resta muito a fazer senão protelar mais uma vez o projeto de escritor que venho adiando desde que entrei para o Itamaraty aos vinte e cinco anos, sendo agora, aos sessenta e nove, já não tenho nem mesmo a desculpa esfarrapada das obrigações do trabalho ou o pudor de me ver comparado com os verdadeiros escritores. (...) Foi pensando nisso que, de repente, lembrei que ainda deviam estar comigo as coisas que ele tinha deixado na embaixada de Pequim antes de voltar para Xangai e retomar as funções de vice-cônsul, não por muito tempo. (CARVALHO, 2003, p.11).

Se o narrador de Mongólia busca na experiência de outrem para construir a sua própria – tornar-se escritor –, os responsáveis pela escrita dos diários partem para viagem

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motivados por objetivos pré-definidos, porém, o que vem a tona, durante a leitura, é justamente a impressão de que, nesse processo, os dois acabam sendo desviados de seus objetivos iniciais e pouco a pouco são lançados para caminhos que fazem com que se encontrem . Entre desertos e caminhos labirínticos um se afasta (no caso do jovem), e o outro é afastado (no caso do estrangeiro)

do

seu

objetivo

inicial,

pois

dependem

exclusivamente dos outros para concretizarem seus destinos. A narrativa de Mongólia é organizada em três capítulos: no primeiro, ‘Pequim – Ullanbaatar’, o narrador empreende as reflexões acerca da morte do Ocidental e inicia a leitura dos diários encontrados. Por meio das leituras, começa-se a entender os motivos que tornam a relação entre eles conturbada: além da extrema diferença de opiniões entre eles, está o fato de que o diplomata o envia para uma missão e encontra resistência no cumprimento da ordem. Diante da negativa sem explicação do Ocidental, o diplomata expressa a ordem de modo taxativo. As

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motivações para a negativa são expressas somente no final no livro, o que faz com que a narrativa guarde certo ar de mistério. O narrador de Mongólia, portanto, encontra as reflexões de Ginzburg (2012, p. 200), quando defende que:

É comum encontrar na narrativa brasileira contemporânea a constituição de imagens da vida humana pautadas pela negatividade, em que as limitações e as dificuldades de personagens prevalecem com relação à possibilidade de controlar a própria existência e determinar seu sentido.

O diplomata pode, com efeito, ser percebido dessa forma, tendo em vista que desde o início da narrativa evidencia a ausência de coragem que permeou sua história. Se Benjamin defende incisivamente a morte do narrador devido ao isolamento dos homens uns dos outro, Adorno empreende importantes reflexões acerca da temática, quando aborda a posição do narrador no romance contemporâneo:

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Nesse processo, a própria alienação torna-se um meio estético para o romance. Pois quanto mais se alienam uns dos outros os homens, os indivíduos e as coletividades, tanto mais enigmáticos eles se tornam uns para os outros. O impulso característico do romance, a tentativa de decifrar o enigma da vida exterior, converte-se no esforço de captar a essência, que por sua vez aparece como algo assustador e duplamente estranho no contexto do estranhamento cotidiano imposto pelas convenções sociais. O momento antirealista do romance moderno, sua dimensão metafísica, amadurece em si mesmo pelo seu objeto real, uma sociedade em que os homens estão apartados uns dos outros e de si mesmos. Na transcendência estética reflete-se o desencantamento do mundo. (ADORNO, 2003, p. 58).

Com efeito, é justamente o caráter enigmático que envolve as relações expostas em Mongólia que parece validar a narrativa. O narrador mostra-se frustrado com sua própria trajetória, o que indica que está apartado de si mesmo; é somente ao final do romance que parece, de fato, ter concretizado algo válido, mas

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que, do mesmo modo, trata com certo desmerecimento: “[...] Escrevi este texto em sete dias, do dia seguinte ao enterro até ontem à noite, depois de mais de quarenta anos adiando o meu projeto de escritor. A bem dizer, não fiz mais do que transcrever e parafrasear os diários, e a ele acrescentar a minha opinião” (CARVALHO, 2003, p. 182). Se, para Adorno (2003), é por meio da busca da compreensão acerca da alienação dos homens que está a base do romance, e através do desejo de decifrar a vida exterior, para Benjamin: [...] “o sentido da vida” é o centro em tomo do qual se movimenta o romance. Mas essa questão não é outra coisa que a expressão da perplexidade do feito quando mergulhado na descrição dessa vida. Nesse caso, "o sentido da vida", e no outro, "a moral da história": essas duas palavras de ordem distinguem entre si o romance e a narrativa, permitindo-nos compreender o estatuto histórico completamente diferente de uma e outra forma. (1994, p. 14).

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Além de Benjamin e Adorno (2003), Bakhtin (2003) também analisa o modo como os sujeitos apreendem uns aos outros e de que modo isso se dá na construção estética. Com efeito, o narrador, por meio da leitura dos documentos, busca, o tempo todo, assimilar não somente a história que ambos narram, mas, sobretudo, procura entender o modo como pensam, como se comportam, como reagem às diversas adversidades. Um e outro são, também, alvo de críticas do diplomata que, por diversas vezes, repreende suas atitudes. Para Bakhtin, esse processo se dá pelo conceito de enformação da alma: como o ex-diplomata não consegue olhar para sua própria vida de modo a considerá-la relevante, busca fazê-lo por meio das vidas representadas nos documentos que tem em mãos. A enformação da alma, portanto, se revela por meio de uma vida alheia, por outra consciência. Assim, conseguimos enformar a alma de outra pessoa exatamente por nos encontrarmos no plano externo. Isso se manifesta através da

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“compreensão simpática que diz respeito ao ativismo de olhar para o outro de modo a tentar compreender seu mundo interior” (BAKHTIN, 2003, p 120). Bakhtin, portanto, nos conduz à reflexão de que é somente por meio de uma pré-disposição, diante do valor axiológico da vida do outro, que compreendemos não somente o outro, mas, também, a nós mesmos. É somente ao projetar nosso olhar ao outro que podemos, diante da totalidade da vida, constituí-lo. O conceito de enformação discutido por Bakhtin, portanto, leva-nos a entender de que modo construímos as relações com o outro, mas, também, como se efetua, na construção estética, a relação entre o narrador e as personagens, tendo em vista que o primeiro é responsável, em Mongólia, por desatar os nós que regem boa parte da narrativa. Ocorrida, majoritariamente, em Mongólia, a narrativa conduz o leitor pelo deserto no qual se desenvolve a diegése. Ao iniciar a leitura dos diários, o narrador deixa claro que as dificuldades que enfrentarão tanto o rapaz quanto o Ocidental

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serão extremamente desafiadoras. Por meio da articulação das vozes, portanto, o ex-diplomata permite entrever os percalços pelos quais ambos passaram, mas, também, as dificuldades inerentes ao próprio local, revelando um país com tradições bastante demarcadas. O que torna Mongólia ainda mais relevante, contudo, é o fato de os caminhos empreendidos pelas personagens promovem um encontro deles com suas próprias histórias.

Foco narrativo: a linguagem dialógica de Mongólia Se o ser humano, em sua história, sempre buscou nas narrativas maneiras para partilhar experiências, o advento do romance marcou o início da construção de uma nova forma de narrar, ou, ainda, inaugura possibilidades de distintas formas de narrar. Dentre essas transformações, hoje, no romance contemporâneo, é possível perceber que nem sempre a narrativa precisa conter um aconselhamento: por vezes, as narrativas se

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constituem na reflexão do sujeito sobre si próprio, em elucubrações acerca das relações sociais. Estruturalmente, em algumas obras, vislumbra-se a existência de um narrador, em outras, de mais de um narrador, como em Mongólia. Para Chiappini, apreende-se essas mudanças que: No decorrer da História [...] as histórias narradas pelos homens foram-se complicando, e o narrador foi mesmo progressivamente se ocultando, ou atrás de outros narradores, ou atrás dos fatos narrados, que parecem cada vez mais, com o desenvolvimento do romance, narrarem-se a si próprios; ou, mais recentemente, atrás de uma voz que nos fala, velando e desvelando, ao mesmo tempo, narrador e personagem, numa fusão que, se apresenta diretamente ao leitor, também os distancia, enquanto os dilui. (CHIAPPINI, 2002, p. 5-6).

O processo de velar e desvelar, por meio da fusão entre narrador e personagem fica bastante evidente em Mongólia: por meio das vozes de três narradores, a diegése apresenta, até certo

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ponto, três histórias distintas, mas que se cruzam e se encontram no desfecho da história. O narrador principal é um homem aposentado de 69 anos que vive sozinho no Rio de Janeiro. A tragicidade que circunda a morte de um ex-funcionário, o Ocidental, o conduz a voltar-se para sua própria trajetória, pessoal e profissional. Do mesmo modo, quando entende as motivações para o antigo subordinado ter se negado em um primeiro momento (tais motivações são esclarecidas ao leitor somente no desfecho da diegése) a percorrer a Mongólia em busca de um rapaz desaparecido, faz com que seu interesse pela intricada história aumente. A narrativa é construída in ultima res, quando a diegése começa a ser contada pelo final. O narrador é onisciente intruso, tendo em vista que, por meio dos diários a partir dos quais o narrador consta a história, ele tem acesso ao pensamento das personagens. Seguindo a classificação de Ligia Chiappini em O foco narrativo, o narrador “onisciente intruso”:

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[...] tem a liberdade de narrar à vontade, de colocar-se acima, ou, como que J. Pouillon, por trás, adotando um Ponto de Vista divino, como diria Sartre, para além dos limites de tempo e espaço. Pode também narrar da periferia dos acontecimentos ou do centro deles, ou ainda limitar-se e narrar como se estivesse de fora, ou de frente, podendo, ainda, mudar e adotar sucessivamente várias posições. Como canais de informação, predominam suas próprias palavras, pensamentos e percepções. Seu traço característico é a intrusão, ou seja, seus comentários sobre a vida, os costumes, os caracteres, a moral, que podem ou não estar entrosados com a história narrada [...]. (2002, p. 26-27)

Por ter acesso ao pensamento das personagens, é possível classificar a visão como “Visão por Trás”, a partir da classificação retomada por Chiappini a partir da obra de Jean Pouillon, tendo em vista que, desse modo, o narrador tem acesso ao pensamento e ao sentimento das personagens. A partir da morte do Ocidental, o narrador empreende uma série de reflexões acerca de sua carreira, que considera sem

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sucesso, e de seu desejo em tornar-se escritor. Vê nos documentos encontrados uma oportunidade para, enfim, cumprir seu desejo, “Se pelo menos pudesse me orgulhar de uma carreira de destaque, mas nem isso” (2003, p. 12). Diante do olhar negativo em relação à sua carreira, e da ausência de desculpas, tendo em vista a presente aposentadoria, também menciona que o impedimento de escrever é apenas falta de coragem. Sua decisão de escrever é novamente retomada ao final do livro, e, talvez por ter se revelado um homem sem muita coragem, minimiza a sua escrita. O ponto central da narrativa é justamente o acesso do narrador aos diários, o que valida não só o início de sua carreira como escritor, mas, também, sua autoridade para partilhar a história, tendo em vista que não é do narrador tradicional, benjaminiano, que visa à partilha de experiências, mas, sim, refletir sobre os caminhos labirínticos que marcaram não somente a diegése, mas, também, sua própria carreira como escritor.

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Isso clarifica as relações dialógicas que permeiam a construção da narrativa de Mongólia. Segundo Bakhtin (1986), os enunciados surgem como produtos da interação entre sujeitos socialmente, culturalmente e historicamente localizados. Diante disso, no contato com o outro, imprimimos, em nossos discursos, a carga social, cultural e histórica que irá nos constituir. Em consequência, nessa relação, nos deparamos, da mesma forma, com a carga social, cultural e história do outro. Assim: “reagimos àquelas (palavras) que despertam em nós ressonâncias ideológicas ou concernentes à vida.” (BAKHTIN, 1986, p. 95). Tal processo é constante e ininterrupto, produzimos discursos que respondem a outros discursos, e outros discursos surgirão reagindo aos nossos. Constatamos, então, que as relações dialógicas permeiam o surgimento de qualquer enunciado: pronunciamo-nos em resposta

a

algo,

e/ou

seremos

respondidos

ao

nos

pronunciarmos. Pensar sobre tal processo torna-se fulcral por que vai além da interação face a face ou momentânea. Do mesmo

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modo, as produções escritas são passíveis de tal processo dialógico: “[...] o discurso escrito é de certa maneira parte integrante de uma discussão ideológica em grande escala: ele responde a alguma coisa, refuta, confirma, antecipa as respostas e objeções potenciais, procura apoio, etc. (BAKHTIN, 1986)”. Concretizando a presença do dialogismo na obra, nota-se que o narrador se compara, em diversos momentos, com o Ocidental, tanto no que tange às ideias quanto no que diz respeito ao comportamento. Quando o diplomata aposentado está utilizando da própria voz para narrar, evidencia uma série de apontamentos e reflexões nessa perspectiva: Procurei ajudá-lo como pude, reconhecia nele alguma coisa de mim, achava que ainda era tempo de salvá-lo, mas até a minha paciência tinha limites. Faltavam dois anos para me aposentar. Cometi muitos erros na vida. Abandonei projetos pessoais pela segurança e pela comodidade que o Itamaraty me dava, não sem levar em troca parte da minha alma. Não tive coragem de assumir compromissos, não me arrisquei, e acabei só. Se pelo menos

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ainda pudesse me orgulhar de uma carreira de destaque, mas nem isso. (CARVALHO, 2003, p. 12).

A comparação é acentuada quando a própria carta-diário do Ocidental é tomada pelo narrador como uma resposta aos argumentos e ideias dele: quando o narrador insere, em algum momento da narrativa, recortes da carta-diário do Ocidental, faz questão de problematizar e refletir acerca das ideias e posicionamentos do mesmo. Outro momento que deixa a comparação evidente é o momento em que ele se previne do que possa encontrar no diário: “Não sei até que ponto posso confiar no que escreveu, já que ele mesmo, como acabei entendendo, não confiava nas próprias palavras. Seus olhos distorciam a realidade. Eu já sabia o que ele tinha visto na China, que não correspondia ao que eu via” (2003, p. 34). Em vista disso, o narrador não deixa de elucidar que considera seu modo de observar as relações sociais de forma mais crítica que o Ocidental. O narrador possui uma

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visão divergente, em relação à do Ocidental, no que diz respeito ao olhar sobre as cidades. Para revelar tal dissonância, o narrador principal cede a voz à personagem para, na sequência, contrariála, “o mais trágico e irônico de tudo isso é que as ‘belezas do Brasil’ não foram capazes de salvá-lo. Tivemos mais de uma discussão sobre a cultura na China. Ele acabava de chegar e já estava cheio de ideias. Eu estava acostumado.” (CARVALHO, 2003, p. 22). Dos donos dos diários encontrados, o narrador dialoga, principalmente, com o Ocidental, tendo em vista que é a partir de sua morte que se inicia a narrativa. Nessa perspectiva, a narrativa reafirma à defesa de Bakhtin (2003) para a importância da morte enquanto valor axiológico: é somente após a morte do Ocidental que o narrador se aventura a buscar os papéis há muito guardados. Em

Mongólia,

o

foco

narrativo

é

organizado

prioritariamente para articular três histórias distintas, a partir da voz de três narradores, mediados por um narrador principal, o

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ex-diplomata. Por ser o responsável em reger a narrativa, utilizase dos diários de modo a elucidar uma série de conflitos e dificuldades enfrentadas pelo Ocidental, principalmente, devido a sua visão de mundo bastante estereotipada, e que o impede diversas vezes de compreender a cultura mongol, e, no caso do diário do Desajustado, permite que se entrevejam as descrições dos espaços percorridos e de sua trajetória rumo às descobertas das histórias locais. As anotações dos diferentes viajantes estão presentes no livro. Para serem identificadas, o autor usou de artifício gráfico: cada narrativa tem um formato de fonte tipográfica diferente. Assim, as vozes do diplomata aposentado, do Ocidental e do fotógrafo são descritas no decorrer da trama narrativa de acordo com a seguinte ordem de apresentação: Times New Roman; Itálico e Arial. Esse recurso direciona os interlocutores para uma leitura dinamizada e ilustrativa. Além disso, é possível perceber distinções no estilo de escrita dos três: a do Ocidental é mais reflexiva, dialogal – pois se trata de uma carta; e a do fotógrafo

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se caracteriza pelos períodos mais curtos, objetivos, detalhados, pois se trata de um texto para uma revista. É pertinente destacar que o narrador não menciona, em nenhum momento, seu próprio nome e o nome dos outros dois narradores. Em relação a eles, refere-se somente por meio dos estereótipos que enfrentaram durante a viagem: um era o Ocidental, que necessita em diversos momentos comprovar sua honestidade; o outro era tratado como Desajustado, devido a sua impaciência para ter seus desejos atendidos e pela dificuldade de aceitar regras. As motivações para a viagem empreendida pelo fotógrafo são abordadas em tom de mistério durante boa parte da narrativa: inicialmente, percebe-se que foi escrever uma reportagem para uma publicação de turismo, contudo, aos poucos, nota-se que o interesse pela reconstrução de uma experiência religiosa, mística e sexual de um lama fugitivo do comunismo, além de nos revelar sua decepção com o Budismo:

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Autoritária e repressiva, a igreja budista, como a católica ou qualquer outra, pode ser moralista e hipócrita em extremo. Por que seriam diferentes do resto dos homens? Ao contrário do que se pensa, no budismo também há representação do inferno para os pecadores. Noutro templo de ErdeneZuu, deparo com uma pintura sobre um tecido roto. É uma tanka em que reconheço a mesma deusa vermelha sobre a qual uma guia passou horas discorrendo, no Museu de Belas Artes de UB, sem que eu tivesse lhe perguntado nada. É uma entidade demoníaca, com uma coroa e um colar de cinquenta crânios, que tenho a pachorra de contar. Tem o sexo exposto e entreaberto. Numa das mãos, traz o tampo de um crânio cheio de sangue, como uma cuia da qual ela bebe. Na outra, segura um cutelo. Com o pé direito pisa num corpo vermelho e com o pé esquerdo, num corpo negro. (CARVALHO, 2003, p. 59).

Por meio dos diários, o narrador também entrecruza informações obtidas, permitindo-nos desenvolver análises acerca das condições nas quais o rapaz desapareceu. Por meio disso, é possível se envolver na história como se tivesse

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participado e estabelecer um jogo entre informações reais e ficcionais, obtendo acesso aos sentimentos e pensamentos das personagens. Por meio dos documentos, o narrador identifica também algumas semelhanças no que tange ao modo de pensar entre eles: “O horror que o desaparecido demonstrava pela religião em seu diário vinha da desilusão e do descompasso que, em apenas três dias e sem maior conhecimento de causa, como de costume, o Ocidental também já podia confirmar.” (CARVALHO, 2003, p. 103). A confluência de pontos de vista entre os donos dos diários não é um dado aleatório: por meio dele, os caminhos percorridos, até então, em um labirinto se confluem e torna possível a compreensão da negativa inicial por parte do Ocidental para procurar o rapaz desaparecido: ele e o Desajustado são irmãos e, antes do encontro na Mongólia, o havia visto somente anos antes, na única vez em que procurou o

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pai. O Ocidental é fruto de uma relação passageira entre seu pai e sua mãe: Da janela, ao meu lado, Buruu Nomton [Desajustado] acompanha toda a cena em silêncio. Nossos olhares e, pela primeira vez, ele sorri. Como na primeira e única vez que o vi antes desta viagem, quando ele tinha apenas cinco anos e não podia entender quem eu era nem o que estava fazendo ali. (CARVALHO, 2003, p. 181).

Além desse encontro, que parece provocar um dos desfechos para a trama, o ex-diplomata também se encontra: finalmente se torna escritor, e, também, tem a oportunidade de devolver os diários à viúva, na missa de sétimo dia da morte do Ocidental.

Considerações finais Ao refletirmos acerca dos modos de construção do narrador em um romance contemporâneo, foi possível percorrer

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os caminhos por meio dos quais se constroem o narrador atualmente. É possível entrever que, para narrar, já não é possível exclusivamente veicular ensinamentos: o narrador, hoje, reflete as marcas da constituição do sujeito no século XXI: nem sempre dono de certezas e raramente transmissor de experiências. O foco narrativo contribui para elucidar essa questão, ao mostrar que o narrador, diversas vezes, precisa do auxílio de outros narradores e outras histórias para narrar a sua própria. Dentro dessa perspectiva, Mongólia se constrói justamente por meio da articulação de vozes distintas, tendo em vista que três narradores contribuem para a construção de uma única narrativa. Por fim, Mongólia é uma interessante reflexão acerca dos sujeitos em busca de si próprios, tendo em vista que nos permite construir a ideia de que precisamos, por vezes, percorrer caminhos impensados para encontrar nossa história, ou concretizar desejos antigos. Do mesmo modo, deixa clara a

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importância do narrador no romance contemporâneo, porém, construído de modo bastante distinto da apresentada pelo narrador benjaminiano.

Referências: ADORNO, Theodor. Posição do narrador no romance contemporâneo. In: Nota de Literatura I. Tradução de Jorge de Almeida. Duas Cidades; Ed. 34. São Paulo. 2003. p. 55-63. BAKHTIN, Mikhail Mikhailovich. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira, com a colaboração de Lucia Teixeira Wisnik e Carlos Henrique D. Chagas Cruz. 3. ed. São Paulo: Hucitec, 1986. BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. BENJAMIN, Walter. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre a literatura e história da cultura. Tradução Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 197-221. CARVALHO, Bernardo. Mongólia. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

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FRIEDMAN, Norman. O ponto de vista na ficção: o desenvolvimento de um conceito crítico. Tradução Fábio Fonseca de Melo. Revista USP, São Paulo, n.53, p.166-182, março/maio 2002. GINZBURG. O narrador na literatura brasileira contemporânea. Tintas. Quaderni di letterature iberiche e iberoamericane, 2 (2012), p. 199-221. Disponível em: < http://riviste.unimi.it/index.php/tintas >. Acesso em: 5 set. 2016. LEITE, Ligia Chiappini Moraes Leite. O foco narrativo. São Paulo: Àtica, 2002.

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A MORTE EM LUIZ VILELA: DO PRIVADO AO PÚBLICO Eunice Prudenciano de Souza (CPTL/UFMS) Resumo: O presente artigo discute a morte da privacidade na obra de Luiz Vilela, por meio de alguns contos que colocam em cena a questão da morte e a atitude dos seres humanos frente à tragicidade da vida. A reflexão sobre a respectiva temática vai aparecer em contos como “Vazio”, “Enquanto dura a festa” e “Velório”, de Tremor de Terra (1967), “Fazendo a barba”, de O fim de tudo (1973), “A cabeça”, de livro homônimo (2002), “Corpos” e “O que cada um disse”, de Você verá (2013). Nos primeiros contos, das coletâneas Tremor de Terra e O fim de tudo, as narrativas abordam a morte em âmbito mais privado, restritos ao círculo familiar e ao de amigos, enquanto os contos de A cabeça e Você verá ganham o espaço do público, das ruas e do mundo virtual, em que é perceptível a banalização da morte como um dos fenômenos da chamada sociedade contemporânea do espetáculo. De certo modo, as mídias sociais e as tecnologias contribuíram para que a solidão na hora da morte, antes restrita à esfera familiar, adquirisse os contornos do público. Os contos apontados, a nosso ver, retratam uma mudança de atitude do homem contemporâneo em relação à Morte. Para nossa discussão alicerçamo-nos em estudos históricos e sociológicos, como os de Ariès e Bauman.

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Palavras-chave: histórico; Luiz Vilela; morte; sociedade.

A temática da morte está presente em grande parte da obra de Luiz Vilela. Chamamos a atenção, em especial, para algumas narrativas curtas, em que o debate sobre a morte dá lugar para o desnudamento das relações humanas na sociedade contemporânea. Nos contos em questão, podemos perceber que não há apenas uma discussão filosófica sobre a morte e a falta de sentido dos atos ritualísticos; a temática surge como pretexto para outros questionamentos acerca das relações humanas, como a falta de sensibilidade, o egoísmo e as máscaras sociais, que levam a comportamentos preconcebidos. A reflexão sobre a temática da morte vai aparecer em alguns contos de Luiz Vilela, como “Vazio”, “Enquanto dura a festa” e “Velório”, de Tremor de Terra (1967), “Fazendo a barba”, de O fim de tudo (1973), “A cabeça”, de livro homônimo (2002), e “Corpos” e “O que cada um disse”, de Você verá (2013). Nos

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primeiros contos, das coletâneas Tremor de Terra e O fim de tudo, as narrativas abordam a morte em âmbito mais privado, restritos ao círculo familiar e ao de amigos, enquanto os contos de A cabeça e Você verá ganham o espaço do público, das ruas e do mundo virtual, em que é perceptível a banalização da morte como um dos fenômenos da chamada sociedade contemporânea “do espetáculo”. De certo modo, as mídias sociais e as tecnologias contribuíram para que a solidão na hora da morte, antes restrita à esfera familiar, adquirisse os contornos do público. Os contos apontados, a nosso ver, retratam uma mudança de atitude do homem contemporâneo em relação à Morte. O historiador Philippe Ariès, em História da morte no ocidente (1977), vê quatro momentos que marcaram atitudes diferenciadas do ser humano em relação à Morte: primeira idade média, em que não havia preocupação com o destino dos corpos, sendo enterrados em valas comuns; século XII ao XVIII, em que a percepção sobre a própria morte se altera, com início das sepulturas individuais e origem dos cemitérios; século das luzes,

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em que a percepção sobre a morte se torna mais dramática e o homem adquiri a dimensão de seu aniquilamento, são criados rituais e cultos aos mortos, com a presença inclusive das carpideiras nas cerimônias fúnebres; e, finalmente, a partir de 1950, em que a morte é separada do convívio íntimo e, além de indesejada, precisa ser ocultada. Assim, a partir da segunda metade do século XX, com o advento da sociedade industrial e crescimento das cidades, o indivíduo já não morre mais em casa, mas sim no hospital. Os sociólogos e historiadores da morte apontam, além da transferência da morte da casa para o hospital, a extinção do luto. Houve uma perceptível mudança no modo de se encarar a morte na sociedade moderna. Até o início do século XX, a morte de cada indivíduo constituía um evento público, sendo velado em casa, com visitas de familiares e amigos, ou daqueles que assim faziam por convenção. Seguia-se um considerável período de luto. Com a modernidade tardia,

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Nada mais anuncia ter acontecido alguma coisa na cidade: o antigo carro mortuário negro e prateado transformou-se numa limusine banal cinza, que passa despercebida no fluxo da circulação. A sociedade já não faz uma pausa: o desaparecimento de um indivíduo não mais lhe afeta a continuidade. Tudo se passa na cidade como se ninguém morresse mais. (ARIÈS, 1982, p. 613)

A nosso ver, o luto saiu de cena, cedendo lugar a uma visão banalizada da morte. Na chamada “sociedade do espetáculo”, busca-se pelo momento da morte, o que pode ser verificado pelas constantes viralizações de imagens de momentos trágicos. O individualismo desenfreado, ocasionado pelo capitalismo, o tempo escasso, a fluidez e a superficialidade das relações promovidas pelas mídias sociais, entre outros fatores, contribuíram para a mudança de atitude do homem contemporâneo frente à Morte. No conto “Fazendo a barba”, de O fim de tudo (1973), temos um narrador heterodiegético, que relata o trabalho de dois

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homens, um adolescente e um barbeiro, que barbeiam um defunto, morto durante a madrugada. A narrativa é sob o ponto de vista do garoto que acompanha espantado os procedimentos do barbeiro. Ao encostar a mão, o homem constata: “– Ele está quente ainda.” (VILELA, 1973, p. 53). O rapazinho, então, pergunta apreensivo “– Que hora que foi? (VILELA, 1973, p. 53). Somos informado que ele sempre fora rápido no serviço, “mas aquela hora

sua

rapidez

parecia

acompanhada

de

um

certo

nervosismo.” (VILELA, 1973, p. 54). Descontrolado, termina por derrubar o pincel de espuma. Ao perceber o constrangimento do garoto, o barbeiro pergunta se ele quer esperar fora do quarto, ao que ele nega. O barbeiro justifica seu oferecimento: “– A morte não é um espetáculo agradável para os jovens. Aliás, para ninguém.” (VILELA, 1973, p. 54). Na sequência, “Através da porta fechada vinha o murmúrio abafado de vozes rezando um terço.” (VILELA, 1973, p. 54). Percebe-se as ações ritualísticas que envolvem um funeral:

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o cuidado com o morto, as rezas, o terço. Em O homem diante da morte (1982), Ariès chama a atenção para os aspectos ritualísticos que envolviam os funerais até o início do século XX, podiam envolver toda a comunidade: a morte de um homem modificava solenemente o espaço e o tempo de um grupo social, podendo se estender a uma comunidade inteira, como, por exemplo, a uma aldeia.Fechavam-se as venezianas do quarto do agonizante, acendiam-se velas, punha-se água benta; a casa enchia-se de vizinhos e parentes, de amigos e sérios. O sino dobrava a finados na igreja de onde safa a pequena procissão que levava o Corpus Christi... (ARIÈS, 1982, p. 613)

Assim como o rapazinho, o barbeiro tem uma atitude diferenciada diante do morto:

O barbeiro afiava a navalha. No salão era conhecido seu estilo de afiar, acompanhando trechos alegres de música clássica que ele ia assobiando. Ali no quarto, ao lado de um

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morto, afiava num ritmo diferente, mais espaçado e lento; alguém poderia quase deduzir que em sua cabeça o barbeiro assobiava uma marcha fúnebre. (VILELA, 1973, p. 55).

Por tratar-se de momento triste, o homem muda seu ritmo de assobio (talvez em respeito ao morto, alguém que ele não conhece?). E o garoto então afirma: “– É tão esquisito [...] Deus me ajude a morrer com a barba feita – disse o rapazinho, que já tinha alguma barba. – Assim eles não têm de fazer ela depois de eu morto. É tão esquisito...”. (VILELA, 1973, p. 55). O barbeiro, no entanto, age com mais naturalidade, comentando “–Ele, nós, a morte, a vida; quê que não é esquisito?” (VILELA, 1973, p. 55). O acontecimento impulsiona os pensamentos do garoto sobre uma série de reflexões sobre a morte e os mistérios da vida:

– Será que ele está vendo a gente de algum lugar? [...] Olhou para o teto – o teto ainda de luz acesa – como se a alma do morto estivesse por ali observando-os; não viu nada, mas

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sentia como se ela estivesse por ali. [...].– Por que a gente morre? [...] – Por que será que a gente não acostuma com a morte? [...] – A gente não tem que morrer um dia? Todo mundo não morre? Então por que a gente não acostuma? (VILELA, 1973, p. 57).

A seguir, as vozes e os choros aumentam e o rapaz alegrase por estarem quase terminando o serviço, logo poderia respirar o ar fresco da manhã. De todos os contos analisados, “Fazendo a barba” é o único em que se percebe a reflexão sobre o ato de morrer e certa atitude de respeito e contemplação com o corpo do morto. Depois de cortar um fiozinho do bigode do morto, os dois ficam olhando para o corpo e o barbeiro constata: “– A morte é uma coisa muito estranha.” (VILELA, 1973, p. 57). Ao saírem para a rua, ainda impregnados pelo clima de morte, caminham longo tempo em silêncio, até que, à porta de um buteco, o barbeiro convida o rapazinho para tomarem “uma pinguinha”, dizendo “é bom para retemperar os nervos”

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(VILELA, 1973, p. 58). E permanece a ideia de que a vida continua; independente do morto, a roda da vida continua a girar. Em “Velório”, um narrador homodiegético relata alguns acontecimentos do velório do amigo Valico. Inicialmente cada amigo fala das qualidades de Valico e de como “um homem [daquele] é difícil de encontrar hoje em dia.” (VILELA, 1972, p. 82). O diálogo entre os quatro amigos do defunto é sempre bem humorado, deixando entrever o perfil de cada um deles. A hora do enterro se aproxima, mas o caixão não chega a tempo; depois de muita discussão com a funerária, não há outra alternativa a não ser transferir o enterro para o dia seguinte. Com o passar do tempo, as caras de tristeza vão sendo substituídas por cansaço e desolação, afinal era madrugada e todos queriam dormir. Os quatro amigos chegam à conclusão de que seria sacanagem com o morto deixá-lo sozinho, então decidem passar a noite em vigília. Para passar o tempo, enquanto esperam o dia amanhecer, resolvem jogar sete e meio. Em meio

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a um diálogo hilário, os amigos continuam a jogar e a beber cervejas e pinga, e o que era para ser um velório começa a se aproximar de uma animada noitada de jogos entre amigos. Ao final, eles acabam ferrando no sono e, quando acordam, o defunto já tinha sido levado. Indignado, o narrador afirma: “Sim senhor; a gente faz aquilo tudo, espera aquele tempo todo e ainda fazem o enterro sem a gente; sim senhor. Fiquei puto. — Fodase. (VILELA, 1972, p. 95). Em “Enquanto dura a festa” temos um relato em primeira pessoa de um rapaz diante da morte do próprio pai, seguido dos acontecimentos que envolvem seu funeral: “Na hora que ele morreu minha irmã veio gritando pela casa como se fosse o fim do mundo, acordei com o coração na garganta, quase que eu morro também.” (VILELA, 1972, p. 131). Já pelo título percebemos o olhar desse narrador sobre as atitudes das pessoas que participam desse momento, visto que “festa” não seria a denominação mais apropriada para o acontecido.

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Perplexo com a hipocrisia dos presentes no velório, reflete sobre comportamentos socialmente preestabelecidos: “‘Meus sentidos pêsames’ — os palhaços. Um chegou com a cara mais caprichada do mundo e na hora de me estender a mão: ‘meus parabéns’ — e nem deu pela coisa. Quase estourei numa risada.” (VILELA, 1972, p. 132). As pessoas sempre fazem o que esperam delas, muitas vezes sem a mínima reflexão sobre o ato em si. De dentro da história, o narrador ocupa a posição de quem não concorda com a teatralidade e os exageros que tomam os velórios. “É como uma festa, uma festa fúnebre em que em vez de rir todo mundo chora e se embriaga com lágrimas, enquanto piedosas mentiras são ditas à meia-voz por rostos falsamente compungidos; e no meio de tudo isso o morto: a causa, o pretexto, o ornamento.” (VILELA, 1972, p. 133). Podemos perceber, nos dois contos, que o funeral se torna mais importante que o próprio morto. Escondido em seu quarto, o narrador de “Enquanto dura a festa” repudia as normas e convenções sociais, pertence ao rol de narradores de Vilela que

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questionam a hipocrisia das relações de uma sociedade cada vez mais individualista. As ações sociais são organizadas por modelos pré-estabelecidos e os indivíduos revestem-se de máscaras para “atuarem” de acordo com o esperado a cada situação. Muitos dos que participaram dos funerais certamente prestaram condolências sinceras às famílias, mas grande parte dos presentes “[...] estavam lá apenas como figurantes de uma festa ensaiada, em que todos devem ‘entrar no clima’, ou seja, chorar, dar sentidos pêsames à família, elogiar o morto [...].” (CEREZOLI, 2012, p. 8). No conto “Vazio”, de Tremor de terra (1967), em que também predomina o diálogo, é encenado o enredo e um homem que volta mais cedo para casa e diz a sua mulher que não vai mais trabalhar (“hoje e sempre”). A esposa não o compreende e o homem, estirado em uma poltrona, calado e enigmático, não chega a explicar o porquê de sua decisão. Ao perceber que o marido não vai falar, a esposa se enfurece e lança contra ele um jarro, que o atinge no rosto acaba atingindo-o com um jarro no

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rosto, matando-o. A tragédia fica restrita ao âmbito familiar, não há testemunhas do incidente. No conto O que cada um disse, de Você verá (2013), também é encenada uma tragédia familiar. Conto inovador pela forma e conteúdo, traz vários fragmentos de entrevistas que formam um mosaico em relação à imagem do autor de um assassinato. O que fica subentendido é que um homem de classe média alta matara toda a família — a mulher e dois filhos — suicidando-se em seguida. Ao contrário de “Vazio”, não sabemos o motivo das ações do homem, temos apenas as especulações sobre as possíveis motivações para tal violência. Ou seja, enquanto em “Vazio” a narração é de dentro dos fatos, privado, em “O que cada um disse” só temos o externo, o público. Precisamos de vários depoimentos para tentar entender o perfil de um pai de família que toma uma atitude — aparentemente injustificada —, visto que era rico, tinha uma mulher bonita, filhos bonitos, bom emprego. No entanto, são

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conjecturas, nada é esclarecido, não chegamos a conhecer sua real motivação. O que vai ao encontro das ideias de Zymunt Bauman (2001) sobre a “modernidade líquida”, marcada por relações sociais fluídas e instáveis. Segundo o autor, vivemos em uma sociedade em que as relações não duram, o tempo pode ser superado pela velocidade e as tecnologias permitem conhecer o mundo em instantes. As noções de tempo e espaço já não são as mesmas e a velocidade passa a ser uma característica marcante da contemporaneidade. Em consequência, os vínculos sociais se tornam frágeis, líquidos, as pessoas não mais estreitam os laços. As mídias sociais permitem o conhecimento de muitas facetas do ser, mas não sua individualidade. As respostas dos entrevistados sobre o que teria motivado o ato separam-se por lacunas em branco, o que também podemos entender como espaços que nunca são preenchidos na busca pela identidade e pela compreensão dos acontecimentos. Seja pelo que afirma o dono da banca, o integrante da irmandade religiosa, o colega de trabalho, a empregada doméstica, o jardineiro ou o

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dono do restaurante frequentado pela família o que se pode concluir é que “A gente não conhece ninguém: essa é a conclusão que eu tiro. A gente não conhece ninguém. Às vezes nem a própria pessoa se conhece. Somos um bando de desconhecidos – uns para os outros e cada um para si mesmo.” (VILELA, 2013, p. 19). Em “A cabeça” há verdadeira banalização a respeito da violência e da morte. No meio da rua, uma cabeça torna-se objeto de observação e curiosidade dos passantes. Ninguém sabe como fora parar ali, e alguns populares — identificados como “um homem de terno e gravata”, “o da bicicleta”, “o baixote”, “o gordo”, “o barbicha”, “a moça”, “a ruiva”, “o preocupado” e “dois meninos” — se juntam para tecer comentários sobre o ocorrido. Esse conto nos obriga a citar uma das características marcantes de Vilela que é a força do diálogo na construção da narrativa. A originalidade reside no entrecho encenado, na profunda ironia dos diálogos, que surgem a respeito da

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motivação do crime e do que fazer com aquela cabeça. De certa forma, a predominância dos diálogos concretizados nas falas das personagens, delimitadas por aspas, aproxima a narrativa do texto dramático. O conto é construído quase que unicamente por diálogos, neutralizando-se a voz do narrador, que tem poucas intervenções, com o que se permite às personagens, como que serem apresentadas por suas intrusões e falas. Em meio a conjecturas de como e quando alguém viria tirar a cabeça dali, um personagem, “o preocupado”, nota que “[a] sorte é que ela não está fedendo”; ao que “o gordo” pergunta: “vocês já repararam que gente morta fede mais que bicho morto?...”; então “o de óculos” explica: “[d]eve ser porque gente é pior do que bicho”. Segue-se diálogo hilário sobre Deus e a existência, ao que um observador, não demarcado, conclui: “Deus uma cagada, o homem uma cagada, a vida uma cagada: tudo uma cagada.” (VILELA, 2002, p. 128). De repente, “a moça” grita, identificando a cabeça como sendo de Zuleide, uma frequentadora do salão. Segue diálogo

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tenso sobre violência contra a mulher e adultério. “‘Sou capaz de apostar um milhão’, disse o gordo. ‘A mulher estava chifrando o cara, e aí ele: sssp!...’” (VILELA, 2002, p. 129). Então “a ruiva” e “a moça” saem em defesa das mulheres e os homens, a maioria na rodinha, fazem observações depreciativas a respeito do sexo feminino. Para coroar o tom de deboche do diálogo, dois meninos, vestidos com camisetas de seus times, imaginam fazer uma bola da cabeça. O primeiro diz: “Dá vontade de correr e encher o pé” ; “Dá vontade de dar um balão”, o outro responde; ao que o primeiro acrescenta: “Aí eu corro lá pra frente e mato no peito” (VILELA, 2002, p. 132). Em vários momentos da narrativa, os populares se perguntam sobre o pipoqueiro e o picolezeiro, aproximando a cena de um momento de lazer e diversão. Há banalização da violência e da morte no conto. As perguntas feitas inicialmente pelo narrador, sobre a cabeça — “De quem era? Quem a pusera ali? Por quê?” —, ficam sem respostas. A cabeça continuará anônima e a vida de cada um dos

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curiosos seguira seu curso. Da crueza dos diálogos exala a brutalidade de um tempo em que a violência passou a ser traço característico dos centros urbanos, e, como tal, tratada com preocupante naturalidade pelos indivíduos. Cria-se uma atmosfera de horror e de humor, amalgamados pelo cenário cotidiano da vida na cidade. Sobre isso, Vilela mesmo afirma: “A realidade cotidiana brasileira é a matéria-prima da minha ficção” (VILELA, 1981). Tudo isso regado por ironia cortante. Em Luiz Vilela, a ironia é “vista como necessidade do mundo contemporâneo”, pois “espelha uma sociedade cética, produto da perda de seus valores e referências”, de modo que “[o] riso irônico liberta-se do sentimentalismo para ler a sociedade de modo inteligente e frio [...]” (PEREIRA, 2010, p. 46). O conto “Corpos”, de Você verá (2013), será marcado pela mesma banalização presente no conto “A cabeça”. O enredo é simples: dois homens, provavelmente diante do computador de uma sala com ar condicionado, conversam sobre fotos de um acidente aéreo, no qual morreram quase duzentas pessoas,

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postadas na rede virtual. O conto é totalmente em forma de diálogo, sem qualquer intromissão do narrador, dispensando inclusive os verbos dicendi. Pelas fotos, os dois personagens vão tecendo considerações sobre como poderia ter sido o acidente e quem seriam os passageiros. A atitude dos dois e o conteúdo do diálogo chamam atenção pela naturalidade com a qual discorrem sobre os corpos mutilados.

“Olha esse aqui: as tripas. Que coisa mais horrorosa...” “O cara era gordo; ele morreu segurando a barriga...” “É...” “Coitado... Será que ele já caiu com a barriga aberta assim, por causa da pressão da queda, ou será que foi depois que o avião caiu?”. [...] “Está parecendo barriga de porco; é igual quando meu tio matava porco, lá na fazenda, aquela tripaiada em cima da mesa da madeira.” (VILELA, 2013, p. 85).

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Este é o tom, em certo momento um deles diz: “Tinha uma moça muito bonita, eu vi no jornal. Acho que ela estava viajando para participar de um concurso de miss”. (VILELA, 2013, p. 88), ao que ele passa a querer encontrá-las entre os corpos. O que indica que, antes de verem as fotos, se informaram sobre a tragédia. Ao passarem pela imagem de um corpo feminino, um deles acredita ver a calcinha de uma das vítimas. Em meio à conversa, percebemos algumas falas que indicam medo ou reflexão sobre a morte. “Sei lá, poxa. Não sei nem quero saber. Só espero que isso nunca aconteça comigo.” (VILELA, 2013, p. 85). “A gente fica pensando, né? A gente fica pensando: o sujeito está lá, curtindo a sua Coca e comendo o seu sanduíche, ou então recostado na poltrona, feliz da vida, olhando, pela janelinha, o céu azul lá fora, a aeromoça passando...” “Não é mais aeromoça: agora é comissária; comissária de bordo” “Tudo tranquilo, tudo perfeito. E de repente um barulho, o susto, o pavor, o desespero, a

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gritaria. E então o estrondo, a dor, e pronto, mais nada, acabou-se tudo, fim.” (VILELA, 2013, p. 90). “E que, quando o nosso dia chegar, tenhamos uma morte tranquila.” (VILELA, 2013, p. 91).

Ao refletirem sobre a morte, as personagens parecem compreender que a fatalidade da existência é a única certeza que permeia a vida humana. Reconhecem a inevitabilidade: “E que, quando o nosso dia chegar, tenhamos uma morte tranquila.” (VILELA, 2013, p. 91). A aparente falta de sentido da morte faz com que

reflitam sobre o fenômeno. O que nos leva a pensar se a naturalidade com a qual tentam ver os corpos não seria uma forma de lidar com um assunto ainda tão assustador como a morte. Afinal, quando rimos de algumas situações elas parecem se tornar menos complicadas ou assustadoras. Um deles conclui que não gostaria de ter de passar de modo tão trágico pela morte, enquanto o outro se indaga sobre a falta de respeito da exposição das fotos pela internet para, logo em seguida, constatando: “’Não há mais nada proibido. A internet mostra tudo: de gente

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transando a gente morrendo, de gente matando a gente nascendo. Tudo’”. (VILELA, 2013, p. 91). Com a internet, consolidou-se o fim da privacidade. Zygmunt Bauman, em Medo líquido (2009), coloca o medo da morte como um dos principais que permeiam a sociedade atual. Segundo o estudioso, é próprio das culturas humanas encontrar estratégias que tornem a vida suportável com a consciência da morte. E, na modernidade líquida, a banalização do inevitável surge como uma dessas estratégias, visto que a morte, principalmente em decorrência do aumento da violência e da vida atribulada, é encenada cotidianamente, tornando-se um evento banal. As mídias e o mundo virtual contribuem para a propagação desta ideia. No contexto de medo e incertezas da modernidade, os vínculos sociais tornaram-se frágeis. De acordo com Bauman, a fluidez e a fragilidade das relações humanas acabam sendo uma espécie de ensaio rotineiro da experiência da morte, devido à sua facilidade de rompimento.

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Segundo Elioenai Ferreira, em "Nunca mais”: a morte nos contos de Luiz Vilela, a morte “representa o desconhecido. O fim do homem. É a única experiência do homem que ele não pode compartilhar com o outro, depois que a tem, ou que o outro possa compartilhar com ele, para minimizar seu medo.” (2008, p. 13).

Podemos dizer que os contos das últimas coletâneas, “O que cada um disse”, “A cabeça” e “Corpos”, são verdadeiros retratos da contemporaneidade, são perpassados pela fluidez e pela fragilidade das relações sociais do mundo atual. A nosso ver, a banalização da violência e da morte desses contos pode ser uma resposta à condição imposta pelas relações da modernidade líquida e pelo medo gerado pela consciência da fragilidade da vida e da escassez de segurança, a despeito das tentativas infrutíferas do homem pela manutenção do controle.

Referências:

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ARIÈS, Philippe. História da morte no Ocidente: da Idade Média aos nossos dias. Trad. Priscila Viana de Siqueira. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1977. ARIÈS, Philippe. O Homem Diante da Morte. Trad. Luiza Ribeiro. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1982. BAUMAN, Zygmunt. Medo líquido. Trad. Carlos Alberto Medeiros .Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008. BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Trad. Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.

FERREIRA, Elioenai Padilha. "Nunca mais”: a morte nos contos de Luiz Vilela. 2008. 130 p. Mestrado. Universidade Federal do Paraná – Letras. Orientadora: Raquel Illescas Bueno. A REPRESENTAÇÃO DA MULHER EM A DANÇA DOS CABELOS, DE CARLOS HERCULANO LOPES Lydyane de Almeida Menzotti Silva (CPTL/UFMS) Ricardo Magalhães Bulhões (CPTL/UFMS)

Resumo: A partir da análise do romance A dança dos cabelos, pretendemos examinar a representação da mulher nesta obra de Carlos Herculano Lopes. O romance em que a trajetória das três personagens principais, que se chamam Isaura, é narrada em

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primeira pessoa gramatical e apresenta grande penetração na psicologia feminina, é memorialista. Essas narradoras analisam, descrevem e comentam o que se passa na vida da família, o que é muito significativo para a análise proposta, visto que traz à tona o espaço de submissão que acompanha o sujeito feminino desde sua infância. Julgamos necessário, apresentar a representação do espaço na obra, já que este contribuí de forma significativa para análise como um todo. Palavras-chave: Romance; Representação; Espaço; Mulher. Introdução Entendemos que todo o ser humano desempenha uma função em uma determinada comunidade como sujeitos, assim formando juntos uma comunidade discursiva. Esse discurso é visto como interlocução que os sujeitos estabelecem entre si e compartilham questionamentos que variam nas diversas comunidades, situadas em tempos e espaços particulares. Assim, segundo Antonio Candido (2000), quando tratamos do discurso literário também lidamos com o discurso de um dada sociedade.

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Tratamos de uma lembrança que também une essa comunidade discursiva enquanto voz que se manifesta sobre o texto. Ademais, esse discurso mesmo que possa ser analisado como um objeto exclusivo de si, constitui também um diálogo com outros textos e comunidades discursivas, desencadeando um conjunto de associações diversas. O discurso literário de que aqui se fala é levado à comunidade por meio do escritor que “não é apenas o indivíduo capaz de exprimir a sua originalidade [...] mas alguém desempenhado um papel social” (CANDIDO, 2000, p. 67). Os indivíduos são influenciados pelas obras que leem e no mesmo sentido influenciam a sociedade por meio das leituras e das interpretações que fazem delas. Assim, a literatura não toma a obra literária em si, nem como mero reflexo da estrutura social, mas a considera numa relação dialética “A literatura é, pois, um sistema vivo de obras, agindo umas sobre as outras e sobre os leitores; e só vive na medida em que estes a vivem, decifrando-a, aceitando-a, deformando-a. (CANDIDO, 2000, p. 68).

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Na mesma ótica, em suas análises sobre a prosa narrativa de Virginia Woolf e Marcel Proust no início do século XX, Erich Auerbach (2013) já assinalava, considerando os escritores contemporâneos da sua época, que tudo depende da posição do escritor diante da realidade e do mundo que representa. Segundo Auerbach (2013, p. 483), “[...] a intenção de aproximação da realidade autêntica e objetiva mediante impressões subjetivas, obtidas por diferentes pessoas, em diferentes instantes, é essencial para o processo moderno que estamos considerando”. Para o estudioso, “[...] mantém-se sempre um eu narrativo, embora não se trate de um escritor que observa de fora, mas uma personagem subjetiva enredada na ação, que a perpassa com o especial sabor da sua essência” (AUERBACH, 2013, p. 483). Isto posto, a partir da análise do romance A dança dos cabelos (2001), de Carlos Herculano Lopes, pretendemos ponderar a representação do espaço da mulher na sociedade. O romance em que a trajetória das três personagens principais, que

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se chamam Isaura, é narrada na primeira pessoa gramatical e apresenta grande penetração na psicologia feminina, é memorialista.

Essas

narradoras

analisam,

descrevem

e

comentam o que se passa na vida da família, o que é muito significativo para a análise proposta, visto que traz à tona o espaço de submissão que acompanha o sujeito feminino desde sua infância. Embora são de gerações diferentes, têm características e atitudes semelhantes, capaz de confundir o leitor, já que a narração autodiegética alterna entre as Isauras.

O autor

Adentrar no universo romanesco de Carlos Herculano de Oliveira Lopes sem conhecer alguns momentos de sua trajetória seria um percurso incompleto para compreensão da análise aqui proposta. De início, para elucidamos a questão que norteou essa

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parte da pesquisa, quem é o autor de O último conhaque, e para respondermos a esse questionamento, trazemos a sua própria fala em uma entrevista à Jovino Machado[1] em 20 de agosto de 2009:

Nasci em Coluna, no Vale do Rio Doce, MG, em 1956. Ao 12 anos vim para Belo Horizonte, onde comecei a estudar no Colégio Arnaldo. Ali li um livro, Tropas e boiadas, do goiano Hugo de Carvalho Ramos, que me incentivou a escrever. Pensei: Se ele escreveu histórias assim, posso escrever também, pois nosso universo é o mesmo. Desde então não parei mais. Fiz um vestibular para veterinária, não passei, e acabei me formando em jornalismo. Hoje estou com 12 livros publicados, e ano que vem pretendo lançar um novo livro de crônicas, das que publico todas as sextas-feiras no Estado de Minas, e também um outro romance, Poltrona 27, que já está no prelo.[2] (MACHADO, 2009).

Esse é Carlos Herculano Lopes, e como ele mesmo revela desde pequeno a literatura tem feito parte da sua vida. Ao se

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descrever como jornalista, ilustra, e talvez justifique a linguagem concisa e objetiva usada em suas obras. Tanto a literatura como o jornalismo tem feito parte da vida do autor, sempre interligadas. Para ele o “jornalismo é irmão da literatura porque abre a porta para conhecer pessoas, viajar.” Além de jornalista e escritor ele também é cronista. Desde 2002 escreve crônicas no jornal onde trabalha e isso lhe tem rendido vários livros de crônicas. Outro incentivo do escritor foi sua Mãe Iracema Viana de Alencar que é professora e o presenteou com as coleções de Monteiro Lobato, publicações da revista curiosidades e livros de José Mauro de Vasconcelos. Sua professora Semirames Alcântara também contribuiu para esse ingresso à literatura, pois foi ela quem lhe deu acesso a biblioteca do grupo escolar Heroína Torres, onde estudava. Carlos Herculano viveu uma infância cheia de emoções. Na Fazenda São Joaquim onde morava ele estava em meio ao verde e aos animais, pegava passarinhos, nadava nos rios e tinha

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muito contato com a natureza. As emoções também eram devido as brigas que presenciava na cidade, que era muito violenta, e das pessoas que eram socorridas na farmácia de seu pai, Herculano de Oliveira Lopes. Ainda em Coluna Carlos Herculano iniciou seu processo de criação. Entre os 11 e 12 anos começou a escrever o livro “O estilingue: Histórias de um menino” que só foi publicado em 2012 pela editora UFMG, conforme confirmamos em entrevista[3] do autor no Portal Diário do Aço[4] em 10 de Julho de 2012 à Polliane Torres: DIÁRIO DO AÇO - Você começou a escrever ainda criança. Como era esse processo? CARLOS HERCULANO – Meu interesse começou entre 11 e 12 anos. Naquela época, na cidade de Coluna, comecei escrever um livrinho chamado “O Estilingue”. Escrevia à mão contando a minha vida na cidade pequena, isolada de tudo. Lá não tinha luz nem estrada. Era um lugarejo pequeno, atrasado e ao mesmo tempo cheio de encantamentos. Fui criado em uma pequena fazenda, meu pai era farmacêutico prático e minha mãe professora,

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ela me incentivava a ler. Cheguei em BH em 69 e terminei o livrinho em 1970. Fiz curso de datilografia, datilografei o livro e guardei. Nunca parei de escrever. Estudei no Colégio Arnaldo, onde escrevei meu primeiro livro “O Sol nas Paredes”, aos 18 anos. Sempre me interessei pela literatura. Mas o sonho do meu pai era que eu fosse médico. (TORRES, 2012)

Como notamos no enxerto anterior, sua primeira obra escrita já revela seu apego e boa relação com sua terra. Em 1972, dois anos após terminar de escrever “O estilingue”, Carlos Herculano continua seus estudos no Colégio Promove, em Belo Horizonte. Ali começa a vender curiós que trazia de Coluna e então compra sua primeira máquina de escrever. Quatro anos mais tarde, já estudando jornalismo na Fafi/BH, publica seus primeiros contos em algumas revistas e jornais. Nesse período também faz estágio no Jornal de Minas e no Jornal de Casa, ambos em Belo Horizonte. Após terminar o curso é convidado por Carlos Felipe para trabalhar no jornal Estado de Minas. Ali, faz amizade com os escritores Roberto Drummond, André

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Carvalho, Jorge Fernando dos Santos, Wander Piroli, Geraldo Magalhães, dentre outros. Carlos Herculano Lopes fez grandes parcerias que o ajudou a crescer na carreira, seja pela amizade ou pelo profissionalismo. Lançou seu primeiro livro de contos O sol nas paredes por conta em 1980. Em entrevista[5] ao programa do Jô Soares exibida pela rede de televisão Globo em 03 de julho de 2008 o autor afirma que saia nas ruas e nos bares de Belo Horizonte e outras cidades para vender seu livro. Já com Memórias da sede, seu segundo livro de contos, ganha o prêmio de Literatura Cidade de Belo Horizonte em 1982 e não precisa mais sair para vender seus livros. Com seu primeiro romance em 1984, A dança dos cabelos, também vence o Prêmio Guimarães Rosa e o Prêmio Ley Sarney (1987). Sobre a escrita de A dança dos cabelos (2001) o autor agrega na entrevista à Jovino Machado: Na minha imodesta opinião o seu livro A Dança dos Cabelos é uma obra prima. Foi mais

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prazer ou mais sofrimento na hora de compor a obra? Você acredita em inspiração? Muito obrigado pela "obra prima", embora eu ache que o livro está bem aquém disso. Escrevi A dança dos cabelos quando eu estava com 24 anos, e só consegui publicá-lo aos 29, por interferência de Afonso Borges, que me apresentou a Rose Marie Muraro, que o lançou no Rio, na Editora Espaço e Tempo. Com ele venci os prêmios Guimarães Rosa, em 1984, e Lei Sarney, como autor revelação de 1987. Atualmente o livro está na 10 edição, na Editora Record. (MACHADO, 2009).

Em 2002 Carlos Herculano assumiu uma coluna de crônicas na qual publica duas por semana no jornal onde trabalha. Isso lhe rendeu vários livros dos quais se destacam O pescador de latinhas, publicado em 2001 pela Record, Entre BH e Texas (ano). Análise

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O precursor dos estudos da Topoanálise, na literatura foi Gaston Bachelard, sendo mais tarde Borges Filho quem amplia seus estudos sobre o espaço. Segundo Bachelard (1978), esse conceito seria o estudo psicológico sistemático dos locais de nossa vida íntima mediante à análise literária. Em A poética do espaço (1978), Bachelard faz um estudo fenomenológico em que observa as experiências sensoriais provocadas pela necessidade de abrigar-se do ser humano em algum espaço físico ou psicológico. São vários os elementos que indicam a interioridade, sendo necessário observar os grandes e pequenos espaços, macro e micro, quanto às suas descrições e luminosidade, “aqui o espaço é tudo” (BACHELARD, 1978, p. 205).

De acordo

Bachelard (1978), é pelo espaço e no espaço que o ser humano se encontra na intimidade, há um jogo entre o espaço exterior e o interior; um jogo sem equilíbrio trazendo as mais diversas sensações humanas: Nosso objetivo está claro agora: é necessário mostrar que a casa é um dos maiores poderes

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de integração para os pensamentos, as lembranças e os sonhos do homem. Nessa integração, o princípio que faz a ligação é o devaneio. O passado, o presente e o futuro dão à casa dinamismos diferentes, dinamismos que frequentemente intervém, às vezes se opondo, às vezes estimulando-se um ao outro. A casa, na vida do homem, afasta contingências, multiplica seus conselhos de continuidade. Sem ela, o homem seria um ser disperso. Ela mantém o homem através das tempestades do céu e das tempestades da vida. Ela é corpo e alma. É o primeiro mundo do ser humano (BACHELARD, 1978, p.201).

Gaston Bachelard (1978) tece considerações sobre como o espaço físico pode afigurar-se na mente humana. O espaço fechado e reduzido pode representar um canto de acolhimento. Em A dança dos cabelos (2001), ao contrário, a casa não acolhe, porém oprime, silencia, causa melancolia e o atormenta as protagonistas. Trata-se do topos da marca da violência. As personagens não se sentem felizes no espaço da casa, pois nela sofrem todo tipo de violência, tanto física como psicológica. O

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espaço da casa, é a representação do papel submisso da mulher, ao longo das três gerações. Embora a Isaura filha sai da casa da sua mãe e vai morar em outro lugar, diferentes das duas Isauras que vivem toda suas vidas ali, notamos a sua ligação com o passado e o sentimento de não pertencimento àquele lugar em que ela vai em busca de paz. Bachelard (1978, p.200) salienta a importância que o espaço da casa tem: “Pois a casa é nosso canto do mundo. Ela é, como se diz frequentemente nosso primeiro universo. É um verdadeiro cosmos”. Assim sendo, a Isaura filha sente a necessidade de voltar para casa. Por mais que seja um espaço em que lhe traz lembranças ruins, solidão e angústia, ali ela terá contato com suas raízes e sua história por meio das memórias e volta a procura de sua identidade. A casa da lembrança se torna psicologicamente complexa. A seus abrigos de solidão se associam o quarto e a sala em que reinaram os seres dominantes. A casa natal é uma casa habitada. Os valores de intimidade aí se dispersam, não se tornam estáveis, passam por

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dialéticas. Quantas narrativas de infância — se as narrativas de infância fossem sinceras — nos diriam que a criança, por falta de seu próprio quarto, vai aboletar-se em seu canto! (...) As casas sucessivas em que habitamos mais tarde tomaram banais os nossos gestos. Mas ficamos surpreendidos quando voltamos à velha casa, depois de décadas de odisséia, com que os gestos mais hábeis, os gestos primeiros fiquem vivos, perfeitos para sempre. Em suma, a casa natal inscreveu em nós a hierarquia das diversas funções de habitar. Somos o diagrama das funções de habitar aquela casa e todas as outras não são mais que variações de um tema fundamental. A palavra hábito é uma palavra usada demais para explicar essa ligação apaixonada de nosso corpo que não esquece a casa inolvidável. (BACHELARD, 1978, p. 206).

Sob essa perspectiva, percebemos a importância do espaço da casa em A dança dos cabelos, onde acontece as ações dos personagens e representa a submissão das Isauras. Este espaço tem uma grande representação na obra, pois mesmo as Isauras tendo vidas massacradas e infelizes é na casa em que de certo modo sabem de sua sina e fica ali a cumprir o destino.

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Ainda sobre o espaço, Ozíris Borges Filho (2008, p. 1) esboça em Espaço e literatura: introdução à topoanálise[6] que o espaço tem várias funções dentro da obra: “a criação do espaço dentro do texto literário serve a variados propósitos e seria tarefa ingrata e fracassada separar e classificar todos eles”. Desta forma, fizemos um recorte entre os tipos de espaços citado por Borges Filho e citaremos apenas os que se relacionam com a obra aqui analisada. Em A dança dos cabelos, os espaços que compõem a obra têm

a

função

de

situar

as

personagens

no

contexto

socioeconômico e psicológico, influenciar, representar os sentimentos vividos pelas personagens e antecipar a narrativa. A função de situar as personagens no contexto socioeconômico fica notório em quase todo o romance. Temos várias passagens na qual podemos confirmar essa função, como a seguir: Eu não quero mais esta fazenda com todos os alqueires e aguadas e boiadas que já perdi a conta. Não preciso mais de poder político;

222


também já que não me interessa ser reconhecido pelas pessoas como o filho mais velho de Manoel Túlio, seguidor de sua obra “para fazer de Santa Marta a mais bela cidade do Vale”. (LOPES, 2001, p. 21).

No excerto, são citados nomes e locais em que situam as personagens geograficamente já indicando ao leitor qual o lugar em que acontece a trama. O espaço desta história é bem especificado: Santa Marta. A referência a cidade enquanto espaço que contextualiza esta história requer algumas considerações, ela surge carregada de um valor simbólico primordial. No entanto, em todo decorrer da obra, também percebemos o espaço psicológico em que as personagens se encontram:

Mesmo sabendo que aos poucos eu apodreço e que em breve não serei mais que um monte de ossos em uma cova qualquer onde talvez nasçam umas margaridas ou em alguma manhã venham pousar os canários, e, por mais definitiva que seja esta certeza, pelo fascínio

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cada vez mais forte que em mim exercem as águas cujo canto, em horas de calmaria, se mistura ao das acauãs que tornaram o voar ao redor da minha janela, eu ainda insisto em desvendar o obscuro de certas coisas que aconteceram e ainda acontecem. E me pergunto sobre o porquê dos carneiros: eles eram muitos, vinham nunca se soube de onde, mas apareciam nas tardes de maio quando eu era criança. (LOPES, 2001, p. 9).

Deste modo, notamos no trecho acima um espaço interno de angústia em que a personagem sabendo que a morte se aproxima recuperará lembranças de sua vida afim de tentar entender o porquê de algumas coisas que aconteceram. Essa angústia de Isaura que representa as três mulheres, também é notada em relação a sua condição de submissão, o eixo temático mais forte da obra, e sendo tão grande, esse sentimento, que acreditam que só por meio da morte se libertarão, uma vez que tanto a Isaura mãe como a avó suicidam, e que há fortes indícios que a filha também cometerá o mesmo ato. Por exemplo, no

224


trecho que se apresenta abaixo, percebemos na descrição do espaço indícios de um sentimento de liberdade aproximando:

E ouço o canto de um passarinho e o estalar de folhas ao vento. Tenho como companhia as borboletas verdes e as sempre-vivas que em noites de geadas costumam consolar estas pedras, em uma das quais agora estou assentada. E, com os olhos em outros horizontes, penso em minha mãe e em minha avó, que também aqui, com certeza, já estiveram. (LOPES, 2001, p. 70).

Além desde trecho, há outros no romance em que presumem que a Isaura filha se libertará de toda opressão, angústia e sentimento de remorso em ter matado um homem para vingar a morte de seu irmão, que foi imposta pelo seu pai como obrigação a cumprir. Notemos como as passagens “canto de um passarinho” e “estalar de folhas ao vento” transmitem uma sensação de alívio e de paz, ou seja, esse excerto também é um exemplo de representação dos sentimentos da personagem

225


por meio do espaço físico. Através deste espaço descrito é possível situar e identificar o espaço psicológico, pois segundo Borges Filho (2008, p.1), “muitas vezes, mesmo antes de qualquer ação, é possível prever quais serão as atitudes da personagem, pois essas ações já foram indiciadas no espaço que a mesma ocupa”. O romance apresenta o sujeito feminino que tem a tristeza e o sofrimento por destino, revelando, neste sentido, uma visão determinista da vida e uma postura passiva diante dos acontecimentos. Pode-se dizer que a mulher se apresenta sufocado pela sua condição, na medida em que é apresentada pelas narradoras como um corpo cansado e sofrido ou seja, sempre submisso, que sugere uma relação com a questão de gênero: Mas essa situação, ao poucos, e não consigo explicar como, foi sendo substituída por uma nova força que me impelia a encarar o homem que, à minha frente, com as mãos estendidas, esperava que eu beijasse. Ordem essa que quase obedeci, pois cheguei a tocar em uma delas.

226


Mas de repente – e só aí percebi a minha coragem – eu me paralisei como um animal assustado. Senti que um gosto amargo subia pela minha garganta, e tive a certeza que o odiava, e era necessário que eu vivesse, e enfrentasse tudo, para assim alimentar o meu ódio e planejar a minha vingança (LOPES, 2001, p. 31-32) grifos nossos.

O trecho acima, traz a condição da mulher na sociedade, notamos ainda que o termo grifado indica a subserviência da personagem diante das atitudes que lhe eram impostas, traduzindo o pensamento machista da época. A submissão e esse lugar menor destinado à mulher podem ser percebidos ainda quando as narradoras relatam seus afares domésticos excessivos e desprezo sexual: “Eu não gosto, nunca gostei de você, que jamais me completou como homem” (LOPES, 2001, p. 21). Como podemos observar, através narração de Isaura filha, há um desejo de abertura em relação ao lugar ocupado pela mulher na sociedade, ela deseja trilhar novos caminhos. Nesse sentido, a personagem começa a lutar por vencer a sina das

227


mulheres de sua família, mas isso não acontece totalmente, pois ela está presa ao espaço passado, o da sua infância e ela volta para esse espaço. Dentre os espaços apresentados no romance casa, como já dito, mostrar-se, a nosso ver, como o de maior importância. Pois, será nela, e por meio dela, que toda a ação se desenvolverá. De acordo com os estudos da Topoanálise, trata-se de um cenário, pois é um espaço construído pelo homem. A casa encontra-se localizada na pequena cidade fictícia de Santa Marta, microespaço, e que faz referência à Coluna, cidade natal do autor Carlos Herculano Lopes, ambas situada no interior de Minas Gerais. A cidade de Santa Marta é recorrente nas obras de Lopes como em Poltrona 27, O estilingue: história de um menino e O último conhaque.

Considerações finais

228


Como toda obra de arte, a literatura está inserida em um contexto social bem determinado, expressando as peculiaridades de um tempo, de uma dada sociedade. Tomando como base a ideia de que a literatura expressa o espírito de uma época, reforçando-o ou contestando-o, pode-se dizer que a obra de Carlos Herculano Lopes manifesta as tensões do século XIX e início do século XX – indicadas pelas pistas contextuais no romance - inspiradas pela fragmentação do sujeito. Como lembra Candido (2000, p.30): “A obra depende estritamente do artista e das condições sociais que determinam a sua posição”. Considerando essas manifestações do mundo exterior nas obras do autor, podemos dizer como as condições sociais transparecem nas obras literárias; a condição humana se reflete nas obras em personagens, como num jogo de espelhos. Com base nos estudos da Topoanálise, e, a propagação das discussões que envolvem espaço e sociedade, nossa proposta foi lançar um texto reflexivo abrangendo essa relação e os efeitos de sentido dela decorrentes na representação da mulher.

229


Acreditamos que a categoria do espaço no romance analisado estão intimamente ligadas aos processos de identificação das protagonistas e estes, que por sua vez estão conectados a aspectos sociais, históricos e também psicológicos que constroem o enredo. Destarte, encontramos no romance de Carlos Herculano exemplos de resistência ideológica, que servem de instrumento de reflexão, crítica, valorização e desconstrução da imagem da mulher desenvolvida mediante a ótica masculina. O desencontro entre personagem e espaço busca se resolver pela memória. É por seu meio que temos a compreensão da representação da mulher no romance. As personagens buscam resgatar impressões por meio do espaço. A memória não reconstrói os espaços, mas os representa da forma como são lembrados, e as lembranças se constitui uma (re)criação.

Referências

230


AUERBACH, Erich. Mimesis. São Paulo: Perspectiva, 2013. BACHELARD, Gaston, A filosofia do não - A poética do espaço; seleção de textos de José Américo Motta Pessanha; traduções de Joaquim José Moura Ramos . . . (et al.). — São Paulo: Abril Cultural, 1978. BORGES FILHO, Ozíris. Espaço e literatura: introdução à topoanálise. XI Congresso Internacional da ABRALIC - Tessituras, Interações, Convergências, São Paulo, 2008. CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade: estudos de teoria e história literária. 8 ed. São Paulo: T. A. Queiroz, 2000 LOPES, Carlos Herculano. A dança dos cabelos. 10. ed. Rio de Janeiro: Record, 2001. __________. O último conhaque. Rio de Janeiro: Record, 1995. __________. O estilingue: Histórias de um menino. Belo Horizonte: UFMG, 2012. __________. O vestido. São Paulo: Geração Editorial, 2009. __________. Poltrona 27. Rio de Janeiro: Record, 2011.

231


__________. Sombras de Julho. 3. ed. São Paulo: Atual, 1994.

__________ Notas [1] Jovino Machado é poeta. Nasceu em Formiga- MG em 1963 e vive em Belo Horizonte. Publicou 15 livros de poemas. Tem poemas publicados no Suplemento Literário de Minas Gerais, Revista Poesia Sempre, Jornal Rascunho, Jornal Cândido, entre outras publicações. Publicou poemas e entrevistas com personalidades do teatro, do cinema e da literatura no no portal www.cronopios.com.br, na revista eletrônica GERMINA - REVISTA DE LITERATURA & ARTE e no blog Blog do jovino machado - UOL Blog. Informações disponíveis em http://www.mallarmargens.com/2015/10/4poemas-de-jovino-machado_31.html [2] http://jojomachado.zip.net/arch2009-08-01_2009-08-31.html acesso em 3007-2015 às 08:49 [3] Disponível em http://diariodoaco.com.br/noticias.aspx?cd=64876 acesso em 11-08-2015 [4] Portal Diário do Aço é um jornal de Ipatinga-MG [5] Disponível em http://globoplay.globo.com/v/850770/ Acesso em 20-032015

232


[6] DisponĂ­vel em: http://www.abralic.org.br/eventos/cong2008/AnaisOnline/simposios/pdf/067 /OZIRIS_FILHO.pdf

233


IDENTIDADE: UMA BUSCA EM O ÚLTIMO CONHAQUE DE CARLOS HERCULANO LOPES Lydyane de Almeida Menzotti Silva (CPTL/UFMS) Ricardo Magalhães Bulhões (CPTL/UFMS)

Resumo: A globalização, os avanços da era tecnológica do mundo contemporâneo e o trauma de momentos históricos sociais, como a ditadura no Brasil, têm provocado sentimentos de rupturas, fragmentação do indivíduo e tensão na sociedade. Não é difícil perceber que esses sentimentos tenham se refletido nas artes, e a literatura enquanto arte tem produzido essas impressões por meio da palavra. No romance O último conhaque, do escritor mineiro Carlos Herculano Lopes, o protagonista recupera antigas lembranças que têm como cenário uma paisagem tipicamente rural em Santa Marta. Trata-se de um texto que narra a história desse homem desenraizado e atormentado pelas memórias de sua infância e que representa a metáfora do ser deslocado, em busca de identidade. Nos ancoramos em autores como Antonio Candido (2000), Benjamin (1994), Hall (2006), Ginzburg (2012), entre outros. Palavras-chave: Contemporâneo.

Memória;

Identidade;

Social;

Busca;

234


Introdução Moderno”, “pós-moderno” ou “contemporâneo”? Qual desses conceitos encaixa o romance O último conhaque? Não queremos aqui fazer nenhuma rotulação, no entanto, é necessário abordarmos um termo para nos referir às produções literárias do autor Carlos Herculano Lopes. Sabemos que esses termos se situam numa determinada época questões de ordens estéticas, sociais e culturais. Há quem faça referências à pósmoderno, por exemplo, como sinônimo de contemporâneo, outros não. Preferimos adotar o termo contemporâneo, por entendermos que compreende todo o período após o Modernismo – e aqui citamos enquanto movimento cultural na primeira metade do século XX – aos dias de hoje. Mas, o que é contemporâneo? E, a partir disso o que significa ser literatura na contemporaneidade? Para responder às essas questões apoiamos em Giorgio Aganbem (2010), o qual fundamenta suas reflexões

235


em

Roland

Barthes

a

respeito

das

“Considerações

intempestivas”, de Nietzsche, bem como em Karl Eric Shøllhammer (2009), entre outros. Citando Roland Barthes, Giorgio Aganbem (2009, p.58) diz que “O contemporâneo é intempestivo”, ou seja, não existe tempo, dado numa desconexão e dissociação com o tempo presente, pois o verdadeiro contemporâneo é aquele que, graças a uma diferença, uma defasagem ou um anacronismo, é capaz de captar seu tempo e enxergá-lo. Dessa forma, Aganbem (2009) considera o contemporâneo como uma relação única com o próprio tempo em que se aproxima e se distancia ao mesmo tempo. Aganbem (2009) salienta: Pertence verdadeiramente a seu tempo, é verdadeiramente contemporâneo, aquele que não coincide perfeitamente com este, nem está adequado às suas pretensões e é, portanto, nesse sentido, inatual; mas exatamente por isso, exatamente através desse deslocamento e desse anacronismo, ele é capaz, mais do que outros, de perceber e apreender o seu tempo (AGAMBEN, 2009, p. 58-9).

236


Como descrito por Aganbem (2009), não se prender a um tempo é ser capaz de oscilar entre passado, presente e futuro. Quanto ao passado, mesmo que não tenha participação plena, olhar e avaliar aquele momento ou até mesmo pensar o que ainda poderá vir. O crítico exemplifica com a poesia de Osip Mendel Stan, intitulada O século, para refletir sobre a relação anacrônica

entre

tempo

e

poeta;

o

poeta,

enquanto

contemporâneo, um ser com as vértebras fraturadas em um paralelismo “entre o tempo – e as vértebras – da criatura e o tempo – e as vértebras – do século.” (AGAMBEN, 2009, p. 61). Assim, ao mesmo tempo em que o poeta se aproxima do seu tempo ele se distancia dele, fratura esse tempo e deixa “espaços” a serem preenchidos pelo leitor. Sob a mesma ótica de Nietzsche e Barthes, Shøllhammer (2009) ratifica que essa visão no escuro é a condição de ser contemporâneo ao seu próprio tempo, sendo capaz de enxergar às luzes, mas também às trevas; saber ver esse escuro. Assim, a

237


literatura contemporânea não será, impreterivelmente, a que retrata o seu tempo atual, mas aquela que seja capaz de orientarse no “[...] escuro e, a partir daí, ter coragem de reconhecer e de se comprometer com um presente com o qual não é possível coincidir” (SHØLLHAMMER, 2009, p.10). Situando a questão em outros termos, o autor diz que é típico da prosa contemporânea tanto a presença dos que querem a história “bem contada”, os que prezam pela transitividade da comunicação, quanto os “chatos herméticos”, os que se fecham na intransitividade da própria criação: “O essencial é observar que essa escrita se guia por uma ambição de eficiência e pelo desejo de chegar a alcançar uma determinada realidade em vez de se propor como uma mera pressa ou alvoroço temporal” (SHØLLHAMMER, 2009, p. 11). Neste sentido, o “alvoroço temporal” e a insistência do tempo presente em vários escritores, mais recente da geração, transparece uma preocupação pela criação da própria presença, ou seja, a dificuldade presente é lidar com a urgência e a

238


velocidade de tudo que acontece e que os escritores contemporâneos têm em se relacionar com a realidade histórica “[...] estando consciente, entretanto, da impossibilidade de captála

na

sua

especificidade

atual,

em

seu

presente”

(SHØLLHAMMER, 2009, p. 10). As novas tecnologias criam caminhos para que a exposição seja mais rápida, por exemplo os blogs que facilitam a divulgação dos textos literários, fazendo que o mercado tradicional de divulgação seja driblado. Dentre os escritores que utilizaram esse método de divulgação acelerado, primeiramente antes de seguir o modo tradicional, Karl Erick Shøllhammer (2009) cita: Ana Paula Maia, Daniel Galera, Ana Maria Gonçalves e Clarah Averbuck. Como consequências dessa urgência e rapidez, entre os escritores contemporâneos, nos vemos diante de uma literatura de formas complexas, fragmentadas, curtas e cada vez mais híbrida. Shøllhammer (2009), salienta:

239


De modo geral, percebe-se, nos escritores da geração mais recente, a intuição de uma impossibilidade, algo que estaria impedindo-os de intervir e recuperar a aliança com a atualidade e que coloca o desafio de reinventar as formas históricas do realismo literário numa literatura que lida com os problemas do país e que expõe as questões mais vulneráveis do crime, da violência, da corrupção e da miséria (SHØLLHAMMER, 2009, p. 14).

Diante dos estudos de Shøllhammer (2009), podemos perceber as características que aproximam a produção literária brasileira, no período de 1960 ao presente, como: interesse pelo regionalismo, realismo, intimismo existencial e psicológico, experimentalismo linguístico, metaliteratura e reinvenção das formas históricas. Salientamos que essas manifestações que se configuram dentro de um novo tipo de realismo não se refere ao realismo do século IXX, mas nota-se em tais manifestações uma grande procura de referencialidade.

240


Outras características atribuídas às narrativas brasileiras contemporâneas é elucidada por Jaime Ginzburg (2012a) sustentando que as obras desse período são pautadas pela negatividade e a recorrência de narradores descentrados. O descentramento, de acordo o crítico “seria compreendido como um conjunto de forças voltadas contra a exclusão social, política e econômica” (GINZBURG, 2012a, p.201). E adiante, acrescenta que “parte da produção literária decidiu confrontar com vigor as tradições conservadoras no país, em favor de perspectivas renovadoras” (Idem, p.201). Desse modo, partindo dessas concepções analisamos O último conhaque (1995), do escritor, mineiro, Carlos Herculano Lopes identificando de que forma o autor apresenta a busca identitária da personagem Nando, bem como a sociedade é retratada, descrevendo seus vários aspectos. O último conhaque (1995) possui como tema central da narrativa a busca da personagem principal por algo com que possa lembrar - se do rosto do seu pai. Uma fotografia, uma carta

241


ou até mesmo o contato com a casa de sua infância, onde a personagem consiga se identificar de modo mais completo e dar fim aos seus anseios, evidenciados em meio as lembranças que procura há muitos anos. Essa busca – que a nosso ver está intimamente

identificação

da

personagem e nos indica um sujeito deslocado – leva-nos

a

considerar

ligada

que

o

aos

processos

espaço

de

configurado

por meio da

linguagem é revelado, especialmente, mediante as percepções dessa personagem pelo narrador, a focalização, em um tempo na qual vigora as lembranças da infância e não do presente. Além disso, acreditamos que ao ressaltarmos a obra como produto de uma comunidade discursiva, seja possível esboçarmos um paralelo entre os pontos observados nas obras com aqueles que

permeiam

a

noção

de

identidade na

contemporaneidade.

Análise

242


No atual contexto, inseridos no processo de globalização, as diversas sociedades culturais estão sendo sucessivamente modificadas, assumindo concepções deslocadas e fragmentadas. Isso, porque a velocidade com que as coisas acontecem, as mudanças e os avanços tecnológicos acabam influenciando o modo de pensar de cada sujeito e, consequentemente, seu modo de agir. No romance O último conhaque, presenciamos como essas concepções deslocadas e fragmentadas aparecem no texto, ou na forma lenta como é narrada, seja na estrutura da obra (capítulos com apenas um parágrafo), seja na própria fragmentação e deslocamento do protagonista, ou na ruptura da sucessão temporal. Em Seis propostas para o próximo milênio, Ítalo Calvino (1998) assinala que a rapidez que a sociedade percorria acabaria influenciando a literatura através da relação do tempo físico com o mental:

243


A rapidez e a concisão do estilo agradam porque apresentam à alma uma turba de ideias simultâneas, ou cuja sucessão é tão rápida que parecem simultâneas, e fazem a alma ondular numa tal abundância de pensamento, imagens ou sensações espirituais, que cia ou não consegue abraçá-las todas de uma vez nem inteiramente a cada uma, ou não tem tempo de permanecer ociosa e desprovida de sensações (CALVINO, 1998, p.55).

Semelhantemente à ideia de Calvino (1998), Stuart Hall (2006) na obra A Identidade cultural na pós-modernidade, versa as considerações a respeito das consequências que as rupturas e tensões

têm

provocado

na

humanidade,

resultado

da

globalização, seus avanços e da era tecnológica do século XX e XXI:

Que impacto tem a última fase da globalização sobre as identidades nacionais? Uma de suas características principais é a "compressão espaço-tempo", a aceleração dos processos globais, de forma que se sente que o mundo é menor e as distâncias mais curtas, que os

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eventos em um determinado lugar têm um impacto imediato sobre pessoas e lugares situados a uma grande distância. (HALL, 2006, p. 18-19).

Percebemos que esse sentimento de ruptura tenha se refletido nas artes, e a literatura enquanto arte tem produzido essas impressões mediante a palavra.

Hall (2006) faz uma

reflexão que aborda a noção de identidade, em vista do contexto histórico contemporâneo e procura avaliar a possível existência de uma crise de identidade nesse momento. Segundo o teórico, o sujeito pós-moderno é um sujeito fragmentado, composto não só de uma identidade, mas de várias, que muitas vezes se contradizem: A identidade, nessa concepção sociológica, preenche o espaço entre o "interior" e o "exterior"— entre o mundo pessoal e o mundo público. O fato de que projetamos a "nós próprios" nessas identidades culturais, ao mesmo tempo que internalizamos seus significados e valores, tornando- os "parte de nós", contribui para alinhar nossos

245


sentimentos subjetivos com os lugares objetivos que ocupamos no mundo social e cultural. (HALL, 2006, p.2).

Tais ponderações nos mostra o efeito deslocador da globalização nas identidades centradas e fechadas de uma cultura nacional. Esse efeito altera as identidades fixas, tornando-as diversas. É nesse deslocamento que surge a compreensão de culturas híbridas, entre a tradição e a tradução[1], como um dos diversos tipos de identidades destes tempos de modernidade. Conforme explicita Stuart Hall (2006) no fragmento, todo meio de representação de arte se traduz na exposição do tempo e espaço. É nesse sentido, que a tradução cultural se configura, uma vez que o sujeito se desloca no tempo e espaço. Hall (2006) define como tradução cultural, o processo de transação entre novos e antigos costumes culturais, vivenciado por pessoas que migraram de sua terra natal. As pessoas perdem completamente suas originais identidades por não assimilarem a nova cultura

246


que tem diante si. No entanto, precisam dialogar com as duas realidades distintas:

Este conceito descreve aquelas formações de identidade que atravessam e intersectam as fronteiras naturais, compostas por pessoas que foram dispersadas para sempre de sua terra natal. Essas pessoas retêm fortes vínculos com seus lugares de origem e suas tradições, mas sem a ilusão de um retorno ao passado. Elas são obrigadas a negociar com as novas culturas em que vivem, sem simplesmente serem assimiladas por elas e sem perder completamente suas identidades. Elas carregam os traços das culturas, das tradições, das linguagens e das histórias particulares pelas quais foram marcadas. A diferença é que elas não são e nunca serão unificadas no velho sentido, porque elas são, irrevogavelmente, o produto de várias histórias e culturas interconectadas, pertencem a uma e, ao mesmo tempo, a várias "casas" (e não a uma "casa" particular). As pessoas pertencentes a essas culturas híbridas têm sitio obrigadas a renunciar ao sonho ou à ambição de redescobrir qualquer tipo de pureza cultural "perdida" ou de absolutismo étnico (HALL, 2006, p.24).

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De acordo com o pensamento exposto por Hall (2006), as identidades culturais em transformação são o resultado do encontro entre diferentes tradições culturais do mundo globalizado. Em O último conhaque pela narração, notamos essa construção identitária da personagem principal quando pela primeira vez tem contato com outra cultura, “À cidade de São Paulo que passaria também a ser sua” (LOPES, 1995, p. 89), estabelecendo o contato com as duas culturas: a rural[2] (Santa Marta) com a Urbana (São Paulo). Na passagem abaixo, é descrito o momento em que Juarez, companheiro de sua tia Ruth, lhe apresenta São Paulo, como é costume de quem mora na capital, mostrar a cidade aos do interior:

E, uma vez, de motocicleta, o levou ao Jardim Zoológico e, na volta, de tardezinha, passaram no Monumento aos Bandeirantes e no Parque do Ibirapuera. Lá, ele lhe comprou um churro recheado com doce de leite e lhe disse, também saboreando um: “É comida

248


uruguaia.” E ele, que nunca havia ouvido falar em churro, muito menos em Uruguai, achou aquele petisco gostoso. (LOPES, 1995, p.89)

São lugares diferentes, antes não visto, as mais variadas comidas “É um misto” (LOPES, 1995, p.88), e outros costumes. Nesse processo, de adaptação cultural que aqui citamos é o que Hall (2006) chama de hibridismo e a não adaptação da nova cultura se dá a tradução cultural. Na memória há um movimento que vai do presente em direção ao passado. Segundo Jeanne Marie Gagnebin (2006), de Platão aos escritores do século XX: “[...] a memória dos homens se constrói entre esses dois pólos: o da transmissão oral viva, mas frágil e efêmera, e o da conservação pela escrita, inscrição que talvez perdure por mais tempo, mas que desenha o vulto da ausência” (GAGNEBIN, 2006, p.11). A modalidade de expressão da recordação do protagonista de O último conhaque é por meio das cartas de sua mãe, “Ela em todas as cartas que escrevia” (LOPES, 1995, p.7) e também oral, quando Maria Lucena visita o

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filho uma única vez em São Paulo “lhe fora contado por sua mãe quando ela esteve visitando-o em São Paulo” (Idem, p. 19) narrada na terceira pessoa gramatical. Temos acesso à memória de Nando por intermédio do narrador. Assim, como nesses trechos, há outros no romance, nos indicando que foram poucos os contados de Maria Lucas com seu filho. Percebemos, que toda a história de sua família, ele só tem conhecimento na única vez que sua mãe o vista em São Paulo. De algum modo Nando sente falta dessa tradição de passar as histórias dos antepassados de geração em geração. O protagonista tem acesso restrito às memórias de seus pais. No romance O último conhaque, como o protagonista perde o vínculo (primeiro o pai, depois a terra natal e seguinte a mãe) com tudo aquilo que lhe possa transmitir experiências e conhecimentos tradicionais de sua geração, como resultado se torna um sujeito deslocado, em busca das referências que perdeu na infância: “não saíra de sua cabeça durante todos esses anos, nos quais, por culpa dele, não pôde voltar a sua terra natal e nem

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rever com frequência seu único ponto de referência” (LOPES, 1995, p. 25). Em O último conhaque o protagonista volta ao tempo por via da memória e o romance se desenvolve nesse jogo do “ontem” e do “hoje”, do “lá” e “cá”, que segundo Benjamin (1994, p. 229-30) “A história é objeto de uma construção cujo lugar não é o tempo homogêneo e vazio, mas um tempo saturado de ‘agoras’”. O tempo saturado de “agoras” é repleto do hoje, isto é, cheio de pontos descontínuos do passado que formam um todo. Como consequência desses pontos descontínuos, Benjamin assinala que o homem da era moderna não só fala como não sabe escutar. Em uma passagem de sua obra, o teórico aponta justamente o tédio como estado de ânimo propício para a recepção da narração:

Se o sono é o ponto mais alto da distensão física, o tédio é o ponto mais alto da distensão psíquica. O tédio é o pássaro de sonho que choca os ovos da experiência. O

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menor sussurro nas folhagens o assusta. Seus ninhos – as 71 atividades intimamente relacionadas ao tédio – já se extinguiram na cidade e estão em vias de extinção no campo. Com isso, desaparece o dom de ouvir, e desaparece a comunidade dos ouvintes. Contar histórias sempre foi a arte de contá-las de novo, e ela se perde quando as histórias não são mais conservadas, ela se perde porque ninguém mais fia ou tece enquanto ouve a história. Quanto mais o ouvinte se esquece de si mesmo, mais profundamente se grava nele o que é ouvido (BENJAMIN, 1994b, p. 204-5).

Talvez esta questão de que aborda Benjamin possa ser percebida mais especificamente em função da interiorização que ela provoca, mantendo-se num campo individual e afastado dos conselhos e do senso prático das narrativas, os quais carregam a sabedoria. Nesse sentido, ainda o autor esboça sobre o romance e a imprensa que neste ponto parece haver uma ameaça ao desaparecimento do narrador, dando uma impressão de que um seria, de certa forma, extensão do outro. Assim, o que vemos é o

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desligamento de um passado que se perde nas comunidades ouvintes. A memória intercala o passado no presente, “condensa também, numa intuição única, momentos múltiplos da duração, e assim, por sua dupla operação, faz que de fato percebamos a matéria em nós, enquanto de direito a percebemos nela” (BERGSON, 1999, p. 77). Por duração, Bergson (2006) compreende como a continuação de um passado pela lembrança. São os “pedaços” do passado em imagens que constitui a duração da memória. É essa relação que permeia nosso trabalho, em razão do protagonista perceber por meio da matéria física (seu corpo, a casa, as cartas, a poltrona, a bebida...), o espaço físico e psicológico em que se encontra. Logo no início do romance podemos confirmar isto quando o narrador nos apresenta a chegada do protagonista, em Santa Marta, para o enterro da sua mãe: Assim que entrou no antigo quarto e viu suas coisas no mesmo lugar, como há

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tantos anos havia deixado, sentiu que seu coração - embora tenha se preparado muito" para aquele dia - começou a bater acelerado, de um jeito estranho, como há tempos não acontecia. [...] Mas, contrariando a sua vontade, ele estava ali, na Santa Marta de sua infância, e achava que ela iria entender, embora pedisse tanto para que ele não viesse, revestida de razões que só agora, mesmo sendo recémchegado, ele começava a compreender, quando sensações há muito esquecidas de novo rodeavam o seu coração! (LOPES, 1995, p.7-8, grifos nossos).

Dessa forma, quando olhamos para a obra percebemos que o protagonista, de alguma forma, exterioriza os sentimentos: “As lágrimas foram saindo, tudo girou à sua volta, recostou-se na parede, fechou os olhos e procurou não pensar em nada” (LOPES, 1995, p. 7), a uma reelaboração do passado no presente. Ele “prolonga o passado no presente” (BERGSON, 1999, p.247), e “é do presente que parte o apelo ao qual a lembrança responde, e é dos elementos sensório-motores da ação presente que a lembrança retira o calor que lhe confere vida” (Idem, p. 179). Em

254


outras palavras, para Bergson (1999), a lembrança é “a representação de um objeto ausente” (Idem, p.80). Exemplo disso é percebido nas páginas do romance, quando o narrador começa a revelar o verdadeiro motivo que levou Nando a ficar “há tantos anos” fora de Santa Marta: Também para ele várias coisas já podiam estar mortas. Mortas e enterradas, em covas profundas de preferência. E, se conseguisse, talvez fosse um homem mais feliz e não estivesse ali sozinho, no dia do enterro de sua mãe, pensando não só nela, mas também e por quê?, em Rodrigo Lima, o assassino de seu pai, que não saíra de sua cabeça, durante todos esses anos, nos quais, por culpa dele, não pôde voltar à sua terra e nem rever com mais frequência seu único ponto de referência, sua mãe, e que em todas as cartas que trocaram, anos após anos – e foram dezenas -, ela sempre repetia: “ Não volte, meu filho, não volte.” (LOPES, 1995, p. 25) E, mais uma vez, quis poder ver ao menos por um instante, o rosto de seu pai, que, apesar de tão presente, permanecia uma imagem nebulosa em sua memória, e esta era, desde a sua chegada, a única razão de sua

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permanência naquela casa, pois esperava encontrar, ao abrir as gavetas, pelo menos uma foto que lhe revelasse por inteiro a face daquela pessoa tão amada mas igualmente desconhecida para o frágil coração de seu filho. (LOPES, 1995, p. 128)

Pelo trechos expostos, observamos como a lembrança de Nando se dá pelo “objeto ausente”, no caso seu pai. A busca por esse objeto ao longo do romance se torna cada vez mais comprometedora. Ao longo da obra, entre uma e outra dose de conhaque, seu estado melancólico vai aumentando e cada vez mais encurralando-o dentro da casa. O trecho, a seguir, nos remete a situação de abatimento da personagem Nando: “[...] ele se dirigiu a um bar, o primeiro que viu, e comprou uns maços de cigarro, dois dropes de hortelã, um litro de conhaque e três latas de salsichas” (LOPES, 1995, p.10), os substantivos “bar”, “maços de cigarros”, “dropes de hortelã”, “litro de conhaque” e “três latas de salsichas” nos remete a mais descrição decadente de

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Nando. No segundo dia, após o enterro, ao acordar com ressaca, Nando bebe novamente. Entre uma bebida e outra, a personagem vai lembrando de momentos passados e a partir dessas narrações é que temos conhecimento do passado das personagens. Essa ação se repete todos os dias enquanto a personagem está na cidade, como forma de conter o sofrimento pela morte de sua mãe e das lembranças do assassinato de seu pai, “E naquela noite, entre a realidade, o sonho e a bebida, algumas imagens, muito antigas, voltaram a sua cabeça [...] viu seu pai caído, os olhos parados e fixos nele” (LOPES, 1995, p.33). Isso se segue em todo o romance, observemos esta passagem adiante: E tomava um café atrás do outro. Fumava sem parar, sorria de um jeito estranho, e quase chorou quando perguntou a Maria Tereza, que só o ouvia e já havia parado de roer as unhas: “Como posso ir se ainda não procurei nada: um retrato, uma carta ou alguma coisa que possa me mostrar quem foi meu pai” (LOPES, 1995, p. 75-6).

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Pelo excerto anterior, ressaltamos que a personagem há anos busca lembrar-se da feição do rosto de seu pai, e sua volta para Santa Marta é a tentativa de alcançar seu objetivo.

A

memória passa a ser sua aliada, nesta busca metaforizada, como a busca pela identidade. Conforme Jaques Le Goff (2003), “A memória é um elemento essencial do que se costuma chamar identidade, individual ou coletiva, cujas buscas são uma das atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades de hoje, na febre e na angústia” (Idem, p.477). Ainda, o crítico coloca ao lado da memória a amnésia e explica o seguinte: Ainda é mais evidente que as perturbações da memória, que, ao lado da amnésia, se podem manifestar também no nível da linguagem na afasia, devem em numerosos casos esclarecerse se também à luz das ciências sociais. Por outro lado, num nível metafórico, mas significativo, a amnésia é não só uma perturbação no indivíduo, que envolve perturbações mais ou menos graves da presença da personalidade, mas também a falta

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ou a perda, voluntária ou involuntária, da memória coletiva nos povos e nas nações que pode determinar perturbações graves da identidade coletiva (LE GOFF, 2003, 367).

Tais considerações de Le Goff (2003), demonstra que a amnésia pode tanto ser espontânea como pode ser forjada. O esquecimento de Nando, por vezes é provocado pelo uso em excesso do álcool e pelo trauma. Ele em vários momentos do romance se mostra apreciador de conhaque: “O conhaque Presidente, pois não tinha o Macieira que sempre foi o seu preferido” (LOPES, 1995, p.12) e as consequências inebriador: “Que tempos”, o homem pensa, ajeita-se melhor na poltrona e sente que o conhaque, como sempre, começa a fazer efeito. E se vê, então depois de tantas horas, chegando a São Paulo, em uma rodoviária imensa” (Idem, p.87) Benjamin (1989), também, atribui o involuntário e voluntária à a memória. A diferença entre ambas consiste na relação do presente e experiências passadas. A memória

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voluntária é o resgate da conservação do passado, enquanto a memória involuntária é de forma espontânea. Como exemplo de memória involuntária Benjamin (1989, p.135), traz sua análise de O tempo pedido de Proust em que o sabor da madeleine associado ao chá desperta no indivíduo um fragmento de memória, o qual conscientemente o indivíduo é incapaz de resgatar: “Se, mais do que qualquer outra lembrança, o privilégio confortar é próprio do reconhecer um perfume, é talvez porque embota profundamente a consciência do fluxo do tempo. Um odor desfaz anos inteiros no odor que ele lembra” (Idem, p.135). No trecho abaixo, como a memória (história da arma) contrapõe à amnésia (não se lembra do rosto do pai) no romance: E não parou por aí: “Você sabe que, fora umas poucas vezes (não quis contar a história da arma) – e uma delas foi quando fomos a Valadares porque eu estava doente -, quase não me lembro dele, a não ser morto, sujo de sangue e estendido ali em cima daquela mesa.” (LOPES, 1995, p. 75-76) Grifo nosso

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Desse modo, como posto até aqui, o protagonista de O último conhaque perde o vínculo com sua tradição. Ele, em toda a trama está em busca de suas referências perdidas na infância, uma vez que seu pai foi morto quando tinha apenas 12 anos e após esse fato é tirado de sua terra e de perto de sua mãe. Ao chegar a uma nova cultura (São Paulo) ele é obrigado a adaptarse com esse novo modo de vivência, mas por não se identificar com a nova cultura que lhe é imposta, ele volta à sua terra natal e começa, então, uma busca por resgatar suas tradições. Essa busca se dá mediante a memória, ora voluntária, ora involuntária. O que reconhecemos é esse sujeito fragmentado em busca

de uma

identidade, representado

por

meio

do

protagonista do romance e que a nosso ver representa um sociedade como todo.

Considerações finais

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Antonio Candido (2000) mostra que o momento histórico refletido nas obras literárias muito mais do que se lê nas linhas: as marcas de um tempo social estão impregnadas nas obras; e adiante o autor acrescenta que a teoria literária se posta nas fronteiras com outras disciplinas. Em O último conhaque, a violência, a vingança e a disputa de terras, assim como a recorrência da narração por meio de memórias ocupa um espaço privilegiado no discurso narrativo e os operadores da narrativa, em especial narrador/focalização, espaço e tempo, dos quais são elementos fundamentais na construção da memória e pela busca de identidade da personagem. O romance é constituído pela trama de Nando, tendo o panorama para as ações o estado de Minas Gerais. Destaca-se por ser o único romance do autor heterodiegético (não é personagem da história que relata), sendo os demais, autodiegéticos (relata a história da qual participa). Os acontecimentos se passam em

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Minas Gerais, numa cidade fictícia por nome de Santa Marta, cenário esse em que o autor viveu até os doze anos, e ainda frequentemente tem contato, como já dito antes, se refere a Coluna, cidade natal de Lopes. O título, segundo Reis e Lopes (1988, p.97) “constitui um elemento fundamental de identificação da narrativa. Elemento marcado por excelência, o título não é, naturalmente, exclusivo da narrativa literária, nem dos textos literários”. O título da obra “O último conhaque, nos salta a mente qual o motivo de ser o último. Sabemos que o adjetivo “último” se configura por ser o que se situa depois de todos os demais, numa sequência ou do que sobrou dentre todos os que havia. É certo que haverá outros conhaques antes do último de certa forma é o prenúncio da morte. A personagem tem consciência da morte, assim como foi com o seu pai “E, assentado na poltrona, dando fortes tragadas e observando a fumaça dissolver-se, pensou: “Tudo, como de resto, tem esse mesmo destino” (LOPES, 1995, p. 85).

263


Estruturalmente, o texto inicia-se por uma espécie de epígrafe introdutória: “E o temor dos cegos passa por mim, até o esquecimento, até o fim, até a incompreensão...” Natan Alterman. As palavras chaves da epígrafe, também será as do romance: esquecimento e incompreensão.

Ao decorrer da

narrativa vamos perceber que o esquecimento está em antítese com o lembrar. O jogo do esquecer e lembrar desencadeará a ação das personagens: “Onde, depois de quase trinta anos, ele se encontra e está recordando tudo isto enquanto o melhor seria esquecer” (LOPES, 1995, p. 17). A antítese é a figura que marca o conflito dramático, diferença entre dois termos, colocando-os em oposição; o romance, por sua vez, instaura um jogo de forças contrárias em que lembrar/esquecer, passado/futuro, rural/urbano, entrelaçam se na composição dos enredos, sendo as forças que movem as personagens. A estilização desse jogo de forças seria o processo de figurativização, isto é, tornar concretos, por meio de figuras, os temas que compõem o pano de fundo do romance; é como se

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a antítese fosse a base, o alicerce da narrativa, que vai sendo construída no trabalho da enunciação, da escritura do enredo. Em harmonia com Reis e Lopes (1988, p.211-2) “a intriga corresponde a um plano de organização macroestrutural do texto narrativo e caracteriza-se pela apresentação dos eventos segundo

determinadas

estratégias

discursivas

especificamente”, ou seja, a opção textual e estrutural que o autor faz em contar a história desta ou daquela forma, cria um efeito de sentido possível na interpretação da obra. Em O último conhaque, o romance é narrado em vinte e nove capítulos não nomeados. Cada capítulo tem apenas um parágrafo e isso dá um ritmo lento na narrativa. O efeito disso é uma leitura, às vezes, atormentada, pois bruscamente muda de relato. Por vezes, o narrador está relatando o momento presente da diegese e subitamente recua no tempo, ora para o passado e ora para um futuro, e por falta de parágrafos e por vezes pontos finais, isso requer uma atenção a mais do leitor. Nesse sentido, essa opção de Lopes em estruturar a narrativa dessa forma, nos sugere que

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todo o romance necessita de velocidade, seja na forma narrada, no tempo e até mesmo nas personagens que angustiam por um desfecho.

Referências: AGANBEM, Giorgio. O que é contemporâneo? In O que é Contemporâneo e outros ensaios. Chapecó: Editora Argos, 2009 BENJAMIN, Walter. Experiência e Pobreza. In: ___. Magia e Técnica, Arte e Política. Obras Escolhidas I. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994a. ________. O Narrador – considerações sobre a obra de Nicolai Leskov. In: ___. Magia e Técnica, Arte e Política. Obras Escolhidas I. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994b. BERGSON, H. Matéria e memória. Ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. São Paulo. Martins Fontes, Tradução de Paulo Neves. ([1896] 1999). CALVINO, Ítalo, Seis propostas para o próximo milênio. Companhia das Letras, 1990. 1ª ed. Tradução Ivo Barroso.

266


CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade: estudos de teoria e história literária. 8 ed. São Paulo: T. A. Queiroz, 2000 GINZBURG, Jaime. Literatura, violência e melancolia. Campinas, São Paulo: Autores associados, 2012. GINZBURG, Jaime. Tese de livre docência https://joaocamillopenna.files.wordpress.com/2015/03/tese-delivre-docencia-jaime-ginzburg-a_copy.pdf HALL, Stuart. A identidade cultura na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP&A, 2006. LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas, UNICAMP, 1990. LOPES, Carlos Herculano. O último conhaque. 1 ed. Rio de Janeiro: Editora Record, 1995. REIS, Carlos; LOPES, Ana Cristina M. Dicionário de narratologia. 4. ed. Coimbra: Almedina, 1988. __________ Notas

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[1] O conceito usado se refere ao de tradição abordado por Stuart Hall (2006) como práticas culturais repetidas que implicam numa continuidade do passado. Outro terno que Hall (2006) usa em usa obra é o de “raízes” para estabelecer essas práticas que são passadas de geração à geração. No entanto, salientamos que o ato de perder o vínculo com a sua tradição e se dispersar da sua terra natal, Hall (2006) chama de Tradução que do latim, significando "transferir"; "transportar entre fronteiras". Esses conceitos serão retomados no decorrer no trabalho. [2] Caracterizamos a cidade de Santa Marta como rural por se tratar de uma cidade de interior com características campestre, pastoril. Essas descrições serão notadas no decorrer do nosso trabalho.

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POR TODA A VIDA: "MEMÓRIA DA BIBLIOTECA" DE LUIZ VILELA Lucas Rodrigues Neves (CPTL/UFMS)

Resumo: Com o trabalho proposto, pretendemos desenvolver um estudo onomástico das personagens do conto "Por toda a vida", do escritor mineiro Luiz Vilela, que está presente em sua obra inicial, Tremor de Terra (1967). Acreditamos que a nomenclatura das personagens não ocorre de forma aleatória, constituindo-se em signos dispostos de significado, o que o torna primordial na construção do texto. Ao pensarmos no texto ficcional como uma estrutura, descrevemos os efeitos de sentido dos contos, nos quais as personagens são nomeadas de forma a compor um todo significativo com a cena. Tal estudo nos propicia um modo de aproximação do fazer poético do escritor. Para embasar teoricamente o estudo, vamos nos valer, inicialmente, do seguinte referencial: de Ana Maria Machado, Recado do nome; de Leyla Perrone-Moisés, Mutações da Literatura no Século XXI; de Antonio Candido e Anatol Rosenfeld, A Personagem de Ficção; de Autran Dourado, Personagem, Composição, Estrutura; e de Nelson Oliver, Dicionário de nomes. Palavras-chave: Tremor de Terra; Personagens; Onomástica.

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Com o intuito verificar a simbologia dos nomes das personagens no conto Por toda a vida, de Luiz Vilela, elegemos obras que se dedicaram a verificação dos nomes próprios e dos nomes de personagens nas produções literárias. Desse modo, a presente pesquisa será norteada pelos estudos de Ana Maria Machado, em Recado do Nome, Leitura de Guimarães Rosa à luz de suas personagens (1976), de Nelson Oliver, em Dicionário de Nomes, todos os nomes do mundo (2010), e o ensaio de Leyla PerroneMoisés, Mutações da literatura no século XXI (2016) - que não é um ensaio que aborda diretamente o trabalho onomástico, mas mostra como a "memória" das leituras do autor pode influenciar em suas escolhas ao compor um texto literário. Pensando na contribuição do nome ao texto literário, Antônio Houaiss (1976), no prefácio à obra de Ana Maria Machado, fala sobre o poder que o autor de ficção tem ao designar um nome à personagem. Dessa forma o filólogo se

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refere ao demiurgo como nominador e as personagens como nominadas. O crítico chega à conclusão de que se na vida real quem elege um nome para uma criança o faz com alguma motivação, não há motivos para que seja diferente na ficção. Ou seja, para o escritor a escolha é motivada pelo significado que o nome carrega, de tal modo que o nome influenciará a trajetória da personagem na diegese. E cabe ao escritor desenvolver essa engenhosa tarefa. Engenhosa porque não podemos pensar em uma narrativa como se ela não fosse uma estrutura que funciona em conjunto, para lembrarmos o pensamento de Autran Dourado (1973). E para que a personagem funcione dentro de um determinado enredo, suas características devem contribuir e colaborar com a narrativa, formando um conjunto homogêneo quanto à significação. E, dessa forma, que o leitor perceba que o trabalho do autor surtiu efeito com a escolha do nome das personagens. E essa contribuição do nome é também lembrada por Autran Dourado em seu estudo sobre a personagem, no qual o

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crítico lembra que a grande força da personagem é ser substantiva, é ter um nome que dê substância ao indivíduo atuante. Nas palavras do crítico o manejo com a personagemsubstantiva é que permite ao autor tratá-lo objetivamente ao transitar pela unidade que é o texto: O personagem como substantivo, ou em linguagem abstrata - a sua unicidade, é que permite ao romancista tratá-lo objetivamente, plasticamente, colocá-lo no romance e movimentá-lo, utilizá-lo conforme, e dentro da estrutura narrativa. (DOURADO, 1973, p. 106).

A escolha do nome provém do autor, que, possivelmente, tem motivação para fazê-lo. Mas a escolha e a função do nome no texto nem sempre aparecerá às claras para o leitor. Ao se deleitar com a ficção talvez o leitor não perceba o cuidado com a escolha do nome. O que torna importante o trabalho de investigação com prioridade na onomástica.

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Anatol Rosenfeld, no ensaio Literatura e personagem, 1961, mostra a atuação da personagem no texto de ficção. O ensaísta demonstra como a sintaxe do texto, a escolha da oração, é que transforma a personagem em um ser ficcional. Entender a personagem como um ser ficcional, o texto literário como uma estrutura, e compreender o pensamento de Antonio Houaiss de que o escritor não dá nome a personagem sem alguma motivação, implica que o nome destinado ao personagem pode ter significação na construção do texto, como veremos no ensaio de Ana Maria Machado sobre os nomes nas obras de Guimarães Rosa. Ana Maria Machado, em Recado do Nome, Leitura de Guimarães Rosa à luz de suas personagens (1976), demarca a importância do nome das personagens no todo significativo da narrativa rosiana: Quando falamos em examinar o papel que desempenha o nome próprio na narrativa de Guimarães Rosa, não pretendemos com isso

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elaborar ou estabelecer uma ampla teoria do nome próprio, nem mesmo de suas possíveis funções dentro do romance ou do conto em geral. Estamos tratando de um texto específico, o de Guimarães Rosa, e, mais do que uma teoria abstrata sobre o nome próprio, interessa estudar a prática do autor, examinar a relação entre o sistema onomástico e a estruturação da narrativa em sua obra. (MACHADO, 1976, p. 23).

Como alerta a ensaísta na citação acima, os estudos sobre os nomes na obra de Guimarães Rosa tratam do texto do próprio autor. Precisaremos, portanto, adaptar a metodologia da autora para que possamos estudar o texto de Luiz Vilela. A leitura de Recado do nome mostra que, em Guimarães Rosa, "os Nomes formam um sistema global de significação" (MACHADO, 1976, p. 194), além de ter como função inicial questionar o próprio texto, ou seja, a composição do nome próprio é feita de forma a funcionar na construção do texto literário: " A análise do nome próprio em Guimarães Rosa mostra

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que ele desempenha um papel importante na própria geração do texto, no engendramento dos sintagmas, na produção da página escrita, no ato de fazer a obra" (MACHADO, 1976, p.194). O nome das personagens em Rosa, segundo Ana Maria Machado, vai além: "ele guarda dentro de si, sob um aspecto latente, uma profusão de semas que vão se manifestando aqui e ali, através do texto." (MACHADO, 1976, p.195). A ensaísta mostra que além do nome como unidade suas partes também são significativas para a composição da personagem e para a construção da narrativa. Os semas, isolados ou combinados, se encontram e se articulam, formam significados, como explica Ana Maria Machado: Mas ao mesmo tempo, como se trata de um sistema global e plenamente articulado, a cada instante o resto do texto, em seu conjunto e em suas diversas partes, incide sobre o Nome e, por sua vez, vai lançando luzes diferentes e novas que revelam outras cores nos semas que nele estão presentes. Os significantes se correspondem, se atraem, se encadeiam, tecendo os significados com seu movimento permanente. (MACHADO, 1976, p. 202).

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Outra questão que a autora aborda no ensaio é o caráter estilístico da escolha dos nomes na obra de João Guimarães Rosa, isto é, a escolha do nome para uma personagem evita páginas e mais

páginas

descritivas

e,

quando

evocada

alguma

característica da personagem, o leitor percebe de qual personagem se trata. Ainda na questão estilística, a ensaísta percebe que nas obras estudadas os nomes são plurais, eles têm, no texto, plurisignificância: Essa pluralidade, aliás, ligada à necessidade de releitura, está explicitada pelo próprio Guimarães Rosa em diversas passagens de sua obra. Mas talvez em nenhum momento de maneira tão clara quanto em Tutaméia (terceiras estórias), imediatamente posterior às Primeiras estórias e deixando lacunas das Segundas. (MACHADO, 1976, p. 194)

A pluralidade do nome vem de sua composição, da significação dos semas, para utilizarmos um termo dos

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linguistas. Mas o que a ensaísta vê na obra de Guimarães Rosa é o funcionamento da estrutura narrativa em decorrência do nome. Ana Maria Machado percebe que a composição do nome da personagem está intimamente ligada à composição do texto, e o funcionamento do texto como um mecanismo estrutural. Algumas vezes o próprio texto traz o significado do nome, e isso pode ser percebido pela análise de sua composição, é como retrata Ana Maria ao comentar sobre O recado do morro, de Guimarães Rosa. Esse recado tem que chegar a seu destino, o destinatário da mensagem é o vaqueiro Pedro Orósio e a predestinação já estava marcada, claramente, em seu Nome e na dispersão do mesmo pelo texto:

A quem poderia o morro falar, se não àquele que é seu homólogo, que é pedra, montanha, terra? A quem é Pedro como pedra, Orósio como soma de oros ('montanha') e ósio ('escolhido'). E para que não se pense que seu sobrenome poderia ser meramente uma distorção de Osório, por metátese, o autor faz questão de fazer referência, na mesma novela, à localidade

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de Osório de Almeida (UP 29). Pedro é também apresentado como uma espécie de novo Anteu, que recebe força da Terra quando a toca com seu pé descalço, filho e prolongamento que é da Terra. A relação entre Pedro, seu pé e o chão é insistentemente acentuada, na multiplicação do Nome do vaqueiro por seus apelidos, muitas vezes em associação a outro tema que o acompanha, o do boi, animal ligado à própria sobrevivência econômica do vaqueiro, o que, além disso, corresponde perfeitamente em relação isomórfica às qualidades que marcam o destinatário do recado pela narrativa afora: tamanho, solidez, simplicidade. (MACHADO, 1976, p. 110).

No fragmento citado, Ana Maria Machado demonstra como o Nome e seus diversos significados estão funcionando em conjunto na estrutura narrativa, mais, é o funcionamento deles que dá origem ao texto. Para o estudo da personagem Pedro Orósio, de Recado do morro, a ensaísta busca o significado do nome, primeiro, na etimologia (Pedro = pedra) para, então, perceber o funcionamento do texto. E para solidificar a pesquisa,

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o texto de Guimarães Rosa reforça o significado encontrado pela estudiosa. Por outro lado, é certo que nem todo texto literário trará o significado dos nomes das personagens explícitos na narrativa, como ocorre em Recado do morro, ou entregue pelo narrador, ou pelo ponto de vista de alguma personagem. Dessa forma, é inevitável que durante o nosso trabalho estejamos com um manual que trate pontualmente a origem dos nomes. O Dicionário de Nomes, 2010, de Nelson Oliver, aparece como um aliado indispensável à pesquisa. O dicionário de Nelson Oliver é resultado de 15 anos de pesquisa, coleta de dados e organização das informações obtidas. O jornalista desenvolve um trabalho que vai além do que simplesmente descobrir a origem de nomes próprios. As quarenta primeiras páginas do livro trata sobre a origem do uso do nome, os motivos para o uso, as transformações dos nomes ao longo do tempo, as questões territoriais e geográficas, além das questões políticas. Um dos aspectos que nos prende, também, ao trabalho de Nelson Oliver

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é o prefácio da obra, intitulado "A influência do nome sobre a pessoa", no qual o pesquisador demarca a relevância do nome, segue um trecho: Nomen, omen ("Nome, augúrio"): a máxima de Plauto indica a importância dada à escolha do nome pelas civilizações tradicionais, cientes de que incorpora e transmite ao seu portador as qualidades fonéticas, semânticas, culturais e espirituais a ele associadas. No Ocidente - onde a inconsciência e os modismos formam a base da nomeação - tal assertiva é rejeitada como mera crendice sem fundamentação científica. Mas, ainda assim, a influência do nome na personalidade recebe atenção da psicologia no estudo da construção da identidade do indivíduo. (OLIVER, 2010, p. 7).

A influência do nome sobre a pessoa é demonstrado por Oliver a partir de estudiosos que se dedicaram a reconhecer transtornos causados pela escolha errada do nome: Para a psicóloga Elaine Pedreira Rabinovich, doutora em psicologia social pela USP e que investigou os sistemas de nomeação de 1989 a

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1996,' o nome influencia as dinâmicas sociais, culturais e familiares. Se seu nome é uma homenagem a alguém, ele está vinculado à história dessa família'. (OLIVER, 2010, p.7).

Ainda sobre os transtornos causados pela escolha do nome, Nelson Oliver recorre ao pesquisador francês Françoise Bonifaix: Françoise Bonifaix, pesquisador francês e autor do livro Le traumatisme du prénom ( O trauma dos nomes próprios), enumera as crises da infância, adolescência e maturidade derivadas de prenomes ou sobrenomes incomuns, sugerindo que o conhecimento da história do próprio nome revela-se um fator de fortalecimento da identidade e superação das crises. (OLIVER, 2010, p.7).

Segundo Oliver, é a partir do nome, e o reconhecimento deste através da linguagem, que a criança começa a desenvolver um padrão mental, geralmente estimulado pela voz da mãe: Somente quando as atividades conscientes específicas, coordenadas e expressas por meio

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dos símbolos existentes no nome, estimulam as células cerebrais a responderem a esses símbolos, a criança começa a desenvolver um padrão mental. Esse padrão é reconhecido como personalidade e reflete as qualidades da inteligência expressas pelo nome. (OLIVER, 1976, p.8) .

A influência do nome sobre a pessoa não só dá inicio ao processo de desenvolvimento intelectual, como a carga pragmática proveniente do nome acompanhará o indivíduo por toda a vida. Nelson Oliver mostra em seu dicionário alguns exemplos de nomes esdrúxulos, inconvenientes e, muitas vezes, inconscientes escolhidos pelos pais para os filhos. O autor lembra que o individuo, ao ser nomeado, se transforma no nome, o que pode causar dificuldades ao longo da vida: As doenças nada mais são do que o corpo refletindo as características contraditórias da mente, pois a mente controla o corpo. Assim, a resposta para a pergunta "O que se encontra em um nome?" é: "Nada." Mas a resposta para a pergunta "O que se encontra em seu nome?"

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é: "Você." Notaram a diferença? O Nada e o Ser? Notaram também como é importante a escolha do nome de seu filho? Por isso você deve evitar principalmente nomes dúbios, complicados ou de significados vazios como Neuda ("nós não sabemos") ,ou Saionara ("adeus; até logo") [...] Vale também assinalar a tentativa de registro de um Akuma ("demônio"), no Japão, e de um Brfxxccxxmnpcccclllmmnprxvclmnckssqlbb11 116 que uma família sueca tentou dar ao filho, em 1996. Para o bem das crianças envolvidas, o registro de tais barbaridades foi rejeitado pelas cortes de seus países. (OLIVER, 2010, p. 8-9).

O prefácio de Nelson Oliver se aproxima do ponto de vista de Antônio Houaiss. Ambos chegam a conclusão de que a escolha do nome para um indivíduo não é de forma alguma aleatória. Oliver prova que o nome é construído por características que compõem uma significação e Antônio Houaiss e Ana Maria Machado mostram como essa significação funciona dentro da estrutura narrativa. Nesse contexto, o Dicionário de nomes ajudará na busca pelo significado dos nomes

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e a obra de Ana Maria Machado nos auxiliará, de forma modelar, na leitura dos nomes e sua significação no conto de Vilela. Nomear um personagem é tão importante quanto nomear um ser real. Quando o nome tem substância, ele ganha vida dentro e fora da ficção e, em determinadas situações, a personagem foge do alcance do escritor. Vide Sherlock Holmes, o detetive inglês que desvenda misteriosos crimes. Talvez Sherlock Holmes seja mais conhecido do que seu criador, Sir Arthur de Conan Doyle (1859-1930), porque a personagem ganhou vida, extrapolou fronteiras a ponto de causar dúvida se é um ser real ou fictício. Podemos dizer que a personagem, que saiu da literatura para o cinema, ganhou vida em todo o mundo, tornando-se substantiva. É com o apoio dos teóricos citados neste texto que tentaremos adentrar ao processo de nomeação das personagens de Por toda a vida, conto de Tremor de terra. Luiz Vilela não foge a tal preceito ao longo de sua produção literária. Construir e nomear personagens pensando no efeito de sentido na trama

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narrativa é uma das tônicas, a nosso ver, da ficção do autor mineiro. Nenhum escritor produz sem que antes tenha sido leitor. Tal afirmação serve de guia para que possamos nos aproximar do processo de criação de um texto literário. O termo "memória da biblioteca", que está no título deste trabalho, encontra-se no ensaio de Leyla Perrone-Moisés, Mutações da literatura no século XXI, e nos ajuda a compreender melhor como as influências das leituras atuam no processo criativo do escritor. Buscamos no trabalho da ensaísta caminhos para nos aproximarmos do processo de criação do conto Por toda a vida, de Luiz Vilela. A ensaísta deixa claro no ensaio que os escritores dispõem de alguns artifícios para conectar uma história à outra, como, citação, alusão, pastiche ou paródia. Por hora, para que possamos desenvolver uma leitura do conto de Vilela, parece oportuno usarmos o termo "memória da biblioteca". Em Por toda a vida, Vilela conta a história de um carpinteiro e uma moça filha de pequenos comerciantes, ambos de família

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pobre, que resolvem se casar. Com três filhos e com dificuldades financeiras, João e Inês permanecem juntos mesmo com as tempestivas crises e opiniões familiares. À medida que a situação financeira melhora, a relação entre o casal faz o movimento contrário. João, agora bem-sucedido, dá pouca importância ao casamento, ao passo que Inês segue devota ao matrimônio. O trabalho do autor com o nome das personagens é decisivo para a construção e significação da narrativa. Os nomes escolhidos pelo autor influenciam diretamente na ação das personagens. A significação do texto é decorrente do conjunto de "memórias", as memórias do autor, as memórias do texto e as memórias do leitor. O que possivelmente ocorre neste conto é a influência de uma outra história em sua criação, a história de Santa Inês parece ser colaborativa para a construção do conto de Luiz Vilela. Devemos perceber que essa influência não tira a originalidade da história construída por Luiz Vilela, seu trabalho característico com a linguagem está presente, o que garante a autonomia do

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texto. A aproximação entre a narrativa de Vilela e sua influência é sensível, percebida, primeiro, pela escolha dos nomes das personagens, o que dá subsídios para a investigação inicial. O nome da personagem central da obra é Inês, que, no conto, faz referência à Santa Inês, protetora da família. João, o marido, e Joana, a mãe, são as outras personagens que formam o núcleo da narrativa com Inês. Por sinal, a recorrência de nome de santidades é visível na obra de Vilela. A mesma Santa Inês é protetora de Epifânio Carvalho, personagem do romance Graça, 1989. O processo de nomeação de Luiz Vilela, neste conto, consiste em fazer a trajetória da personagem ser influenciada pelo nome que ela recebe, como explica Nelson Oliver em seu Dicionário de nomes, todos os nomes do mundo, 2010. Inês faz jus ao nome que carrega e à Santa protetora. Como disposto no dicionário de Nelson Oliver, ao tratar da influência do nome sobre a pessoa, fica evidente a influência do nome sobre Inês. O

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estreitamento entre o nome e o comportamento da personagem torna-se coerente neste conto. Luiz Vilela constrói a narrativa utilizando-se do nome da personagem principal, Inês, e a história de Santa Inês, para adentrar o leitor na personalidade da personagem. O enredo ganha força com a associação entre o nome, sua história e seu significado; no dicionário de Oliver o nome Inês, e sua variante Agnes, significa "pura, casta", (OLIVER, p. 309). Não por coincidência, ainda com base na pesquisa feita ao dicionário, na Inglaterra, entre os séculos XII e XVI, Inês e Jonh (João) eram os nomes mais comuns do período. Para que possamos compreender a ligação entre os nomes, é necessário uma breve pesquisa à história de Santa Inês, que ocorreu em Roma entre os anos 304 - 317. Ligeiramente idêntica à história de Santa Inês, a trajetória de Inês, do conto de Luiz Vilela, é marcada pelo sofrimento com a promessa de remissão ao final. A conhecida história da Santa serve como base para a leitura do conto Por toda a vida. Inês, que viria a ser

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santificada, aos treze anos foi preterida pelo filho do prefeito de Roma, Fúlvio. Por rejeitar o casamento, Inês foi torturada. Para ela, todo sofrimento era válido em nome de sua devoção a Jesus. No conto de Vilela, o papel de carrasco cabe a Joana, ela condena o casamento da filha com João por ele ser pobre. A antipatia de Joana é resultado do reflexo que ela vê no jovem rapaz, a família de Joana também é pobre. João é para Joana um espelho no qual ela se vê, o que também podemos buscar explicação com relação ao nome dos dois. Nas histórias bíblicas, o nome Joana era usado tanto para homens quanto para mulheres. Joana, segundo o novo testamento, foi uma das primeiras pessoas a seguir Jesus, junto aos apóstolos e Maria Madalena. Apesar da influência da narrativa de Santa Inês na criação do conto, a história de Vilela é contada no século XX, com uma linguagem que é característica do autor mineiro. Caso o leitor não se atente aos nomes das personagens, não haverá prejuízo à leitura; mas para um estudo que pretende perceber o processo

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de criação do autor é essencial que todos os aspectos da narrativa sejam observados. Para finalizar, precisamos trazer à tona, mais uma vez, a questão da aproximação entre o texto literário e a narrativa de Santa Inês; e uma afirmação da ensaísta Leyla Perrone-Moisés pode nos auxiliar, quando diz: "Nenhum texto é inédito, pois para ser escritor o indivíduo precisa ser, antes, leitor". Encontramos esta afirmação no livro Mutações da literatura no século XXI, no capítulo em que trata da metaficção e da intertextualidade, a ensaísta evidencia o não ineditismo em textos clássicos, uma tendência seguida em obras publicadas no final do século XX e inicio do século XXI. E as características dos textos desse período é a retomada do tema de forma satírica, questionadora e crítica, como é encontrada em Tremor de terra. Em Por toda a vida o fio que conduz o leitor às referências é o nome das personagens. E, ao compararmos a Inês de Vilela com a Santa, vemos um paradoxo entre as duas homônimas: a personagem de Vilela aceita a submissão à figura masculina, já a

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Santa prefere entrar para a história, tornando-se símbolo de luta e resistência. Quando Vilela escolhe Inês para ser o nome da personagem principal do conto e indica que o nome foi escolhido devido à fé em Santa Inês, toda a carga pragmática que incide do nome da Santa recai sobre a personagem; essa "bagagem" que acompanha o nome amplia a leitura do conto, sobretudo amplia a composição da personagem. O destino da personagem, assim como o da Santa, é o sofrimento e a espera da remissão. Perceber o trabalho onomástico de Luiz Vilela em "Por toda a vida" requer uma busca de significados dos nomes além do dicionário de nomes, requer uma pequena procura em sua "memória da biblioteca". A memória das leituras de outros textos que colaboram para a construção de uma nova narrativa. O que facilita a percepção dessa memória é a marca discursiva presente no texto: " A mãe, cansada de falar, entregou a filha à Santa Inês, que era a sua santa protetora." (VILELA, 1972, p.35). A partir desse primeiro fragmento é que podemos conectar uma história

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à outra para percebermos como o significado do nome colabora para o todo significativo do texto. Por fim, é a partir dessas marcas discursivas que evocam outras narrativas que percebemos as "memórias" que o autor aciona para a construção de seu texto. O estreitamento entre as narrativas pode ampliar as possibilidades de leitura do texto artístico. A propósito, nosso estudo nada mais é do que uma proposta de leitura para o conto de Vilela, não a única e nem a definitiva.

Referências: BULCÃO, Clóvis. Personagens da literatura brasileira. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005. FERRAZ, Salma. Dicionário de personagens da obra de José Saramago. Blumenau: Edifurb, 2012. MACHADO, Ana M. Recado do nome: leitura de Guimarães Rosa à luz do nome de seus personagens. 3.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003.

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OLIVER, Nelson. Dicionário de nomes. Rio de Janeiro: BestBolso, 2010. PERRONE-MOISÉS, Leyla. Mutações da Literatura no século XXI. 1ªed. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. TODOROV, Tzevetan. As estruturas da narrativa. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Perspectiva, 2013. VILELA, Luiz. Tremor de terra. 3ª edição. Rio de Janeiro: Edições Gernasa, 1972.

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ASPECTOS ELUSIVOS EM CONTOS DE A CABEÇA, DE LUIZ VILELA Marcos Rogério Heck Dorneles (CPTL/UFMS) Eunice Prudenciano de Souza (CPTL/UFMS)

Resumo: Artigo sobre contos do livro A cabeça, de Luiz Vilela, com destaque para análise e interpretação dos elementos constitutivos, e para a percepção de aspectos elusivos na criação da narrativa literária. Como objetivos principais da atividade situam-se o levantamento dos procedimentos recorrentes na produção desse livro, a percepção de camadas textuais que não se encontram evidentes na superfície de alguns contos e a associação dessa escrita a uma visão de mundo. O artigo foi realizado por meio da leitura de contos do autor, e de textos das teorias narrativas, da recepção crítica e dos estudos filosóficos. Derivam da pesquisa também o registro de temas, tensões e intertextos dispostos nas estruturas narrativas. Palavras-chave: Conto. Literatura. Luiz Vilela.

Introdução:

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“Uma folhinha seca, soltando-se do galho da árvore ali perto, veio a cair sobre a cabeça: como se – poderia ter pensado um dos presentes – como se fosse uma homenagem da natureza ao morto desconhecido.” Luiz Vilela.

O escritor mineiro Luiz Vilela perfaz cinco décadas de produção literária, em que se desdobram formas compositivas peculiares ao gênero narrativo, como a elaboração de cinco romances, de quatro novelas, de sete livros de contos e de diversas antologias. Dessas modalidades narrativas, destacamos, neste estudo, as suas narrativas curtas [Tremor de terra (1967); No bar (1968); Tarde da noite (1970); O fim de tudo (1973); Lindas pernas (1979); Você verá (2013)], mais especificamente, o volume de contos A cabeça (2002). Vilela iniciou sua publicação literária já com alguns parâmetros composicionais bem delineados, configurando-se como uma expressão ficcional brasileira nos seus primeiros livros. Em Tremor de terra, Vilela recebeu o Prêmio

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Nacional de Ficção, e, na obra O fim de tudo, foi distinguido com o Prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro (Blogue GPLV, 2016). No Brasil, entre o intuito, a tentativa e o acerto, alguns modernistas já precediam Luiz Vilela na busca por determinados traços literários, como, por exemplo, Manuel Bandeira, em alguns poemas curtos. No entanto, além de dialogar com obras de escritores brasileiros de gerações anteriores, tais quais, Fernando Sabino, Rubem Braga e Graciliano Ramos, Vilela estabeleceu diálogos pontuais ou permanentes com narrativas curtas da literatura universal, como as de Anton Tchekhov, James Joyce, Franz Kafka e Ernest Hemingway. Assim que, nesses mais de cinquenta anos de escrita, Luiz Vilela sedimentou um horizonte literário que levou a cabo a posição de se desenvolver certos processos criacionais peculiares, como a efetivação de uma dicção coloquial e de uma concisão da escrita. A primeira narrativa curta da coletânea Tremor de terra (2003), “Confissão”, expressa a tentativa de se alcançar uma

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criação literária estabelecida na brevidade narrativa e na proximidade junto à linguagem cotidiana, ao se instituir pela predominância quase

completa de diálogos entre

dois

personagens. No conto, ocorre a confissão de um adolescente a um padre, da qual sobrevém ao sacramento de expiação e exposição dos pecados de um personagem a audiência e manipulação realizada pelo outro. Maria Luiza Ramos salienta a feição dramática da disposição textual de “Confissão”, pelo fato de não haver a presença explícita do narrador (“autor”) no decorrer do conto (RAMOS, 1969, p. 172): “Da primeira à última palavra, o discurso direto empresta à narrativa caráter dramático que elimina a pessoa do autor e, de certa forma, a própria narrativa – se considerada do ponto de vista tradicional, em que alguém tem algo a comunicar a um auditório.”. Já Lígia Chiappini Moraes Leite, ao discorrer sobre o modo dramático no gênero narrativo, pontua (1985, p.59): “E do narrador, só vem a notação final da cena: ‘Ato de contrição’”. Não obstante as considerações de Ramos e Leite, acrescentamos a presença e a

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escolha do título também como participação do narrador no texto. O terceiro livro de contos (1970), Tarde da noite, publicado em 1970, desfruta o caminho trilhado pelas obras anteriores, ao, muitas vezes, transpor um limiar movediço das fronteiras entre a percepção da matéria corrente da vida e a colocação em prática dos recursos artísticos da narrativa literária. Na época do lançamento do livro, Hélio Pólvora discorreu sobre essa árdua realização:

Vilela é bom, fora de série, quando põe gente conversando, amando e sofrendo, interrogando o seu destino ou libertando o seu instinto, gente que sem o saber se expõe a julgamento pelos seus instantes decisivos, reveladores. A história não se arma, não denuncia o seu vínculo com a literatura nem fica na faixa do imaginado que seria possível; a história surge em andamento, no ponto exato em que se confunde com os fatos da vida. É como se, desvendado de súbito um palco, e percebidos de relance alguns detalhes importantes à compreensão exata do quadro que se vai configurar, as revelações se precipitassem

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sem interferência do autor. O autor não manobra as suas criações. Elas estão em liberdade para agir conforme o seu caráter e condicionamentos. (PÓLVORA, 1970, p.2)

Embora diverso da estética da predominância do apagamento da figura do narrador, o conto “Françoise”, dessa coletânea, notabiliza-se pela concretização de algumas condições e efeitos para a criação artística propostas por James Joyce (VIZIOLLI, 1991). Dentre elas, a busca de uma transformação na situação das personagens que passe quase despercebida pelo leitor, e que se complete num processo de desvelamento da narrativa. No conto, enquanto aguarda o seu ônibus na rodoviária, o narrador-personagem estabelece contato com a personagem Françoise, e se intriga se encanta com sua curiosa espontaneidade. Ao término da leitura, completa-se o processo de efetivação de uma revelação inesperada, completando o circuito de três fases da chamada epifania (segundo a aplicação de Joyce para narrativas): apresentação da imagem estética;

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conhecimento inicial de uma consonância das partes; e descoberta da individualidade do objeto. Após esse preâmbulo, em que pontuamos alguns momentos e tópicos da produção literária de Luiz Vilela, propomos, neste artigo, o estudo de aspectos elusivos na sua criação ficcional por meio da expressão de recursos adotados e da confirmação de uma determinada visão de mundo no livro A cabeça (2002).

Recepção crítica: Dentre alguns estudos realizados sobre o livro A cabeça, salientamos as proposições indicadas por Augusto Massi (2002), Gil Roberto Negreiros (2010), Rinaldo de Fernandes (2012), Antonio Belon (2007); Nízia Villaça (2004) e de Rauer Ribeiro Rodrigues (2006). O crítico e editor Augusto Massi, junto às orelhas do livro, destaca o lançamento imediato às tensões e aos episódios na

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narrativa (realizado nesse caso pela predominância dos diálogos e pela dispensa de componentes prescindíveis à fatura textual); a constituição de um clima de inquietação (por meio da recorrência à configuração aflitiva das relações entre os personagens); a seleção de grupos sociais medianos; e a construção de um tom irônico:

Uma das estratégias de risco é enredar o leitor rapidamente, lançá-lo no redemoinho dos acontecimentos, deixá-lo rente aos personagens: somos vizinhos, sentamos na mesa mais próxima, ouvimos a conversa do quarto ao lado, estamos nos arredores da situação. O horizonte ficcional foi reduzido. A atmosfera é de discreto acossamento. Diálogo e ideologia avizinham-se no espaço provisório de um bar, de um hospital, de um escritório. Outro aspecto que aproxima todas as histórias é o recorte social, projetando insidiosamente a truculência esclarecida da classe média brasileira. O lirismo desencantado dos contos de O fim de tudo (1973) ou do romance O inferno é aqui mesmo (1979), foram substituídos por uma dicção quase convencional, mas sutilmente

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flexibilizada pelo tom de divertimento, escárnio e ironia. (MASSI, 2002, p. l.)

Já o linguista Gil Roberto Negreiros (2010) salienta a busca pelo efeito de sentido realizado pela “ilusão do oral”, em especial, no conto “Freiras em férias”. Nesse conto, Negreiros aponta a fragmentação do enunciado (ocorrida por gracejos e trocadilhos); os usos informais da linguagem; e os processos de negociação (em função das disputas das freiras por espaço e poder). O pesquisador Rinaldo de Fernandes (2012) situa as cinco vertentes principais do conto brasileiro do século XXI (a da violência ou brutalidade no espaço público e urbano; a das relações privadas; a das narrativas fantásticas; a dos relatos rurais; e a das obras metaficcionais) e exemplifica o conto “A cabeça” como representante da primeira vertente. Além disso, Fernandes estabelece como ponto coincidente entre as vertentes (2012): “[...] o olhar cruel e irônico sobre as situações configuradas.”. De outra parte, acrescentamos que a produção

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contística de Vilela transita pelas duas primeiras vertentes apontadas por Fernandes. Antonio Belon (2007), por outro lado, sinaliza a impossibilidade de se narrar conforme os parâmetros antigos de transmissão da experiência, apontados por Walter Benjamin (1994). Segundo Belon, no conto “A cabeça”: As falas do narrador, como didascálias, fazem indicações dramáticas, essenciais no desenvolvimento do texto. Uma narrativa pronta para uma representação teatral. A cena urbana, todavia, revive a banalidade de um cotidiano de violência, morte e, sobretudo, indiferença: de histórias para se contar, ou não, nas conversas de rua, amiudadas e rotineiras. (BELON, 2007)

Assim, por meio da utilização do recurso dos diálogos, a construção do conto ganha contornos de dramatização nas atuações dos personagens, e transporta para a cena desenvolvida o impacto narrativo.

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Num estudo acerca dos desdobramentos da estética da crueldade nos âmbitos dos meios de comunicação, expressões culturais e textos literários, a pesquisadora Nízia Villaça (2004), realça sobre o conto “A cabeça” os tópicos de desqualificação generalizada; de radicalização semântica do conto “Uma vela para Dario”, de Dalton Trevisan; do rebaixamento do humano; e da técnica da inversão da figura divina. Pesquisa de grande fôlego (2006), nos estudos realizados por Rauer Ribeiro Rodrigues sobre a produção contística de Luiz Vilela, é dividida a criação literária do escritor mineiro em dois momentos: anterior e posterior à publicação da coletânea A cabeça (2002). No trabalho são apontados traços inerentes ao livro A cabeça, com destaque para o riso literário, e para os procedimentos textuais e mecanismos enunciativos [estruturas semióticas]. Rauer salienta as diversas tonalidades do riso literário nessa obra (2006, p.117): “Chistes, piadas, certo tom de comédia, caricaturas, o grotesco, a sátira, enfim, o riso literário

304


não é só uma das características marcantes do volume como se apresenta em gradações e nuances as mais diversas.”.

Elementos constitutivos: Conforme mencionado anteriormente nas proposições de parte da recepção crítica, o conjunto de temas que caracterizam o livro A cabeça transita pelos conflitos manifestos e latentes em porções da população brasileira, em especial, em diversos estratos da classe média. A inflexão das nuances se configura na assimilação e transformação da linguagem cotidiana e da dicção coloquial, e na elasticidade do gracejo, da ironia e da irrisão. A coletânea é constituída de dez narrativas curtas: “Mosca morta”, “Luxo”, “Calor”, “Más notícias”, “Freiras em férias”, “Suzy”, “Catástrofe”, “A porta está aberta”, “Rua da amargura”, “A cabeça”. São enfeixadas pela similaridade e proximidade de recursos e procedimentos caros aos propósitos de efetivação da

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concisão da escrita e de elaboração da tensão entre as personagens. Encarregado de desempenhar a intermediação entre o texto e a personagem, a figura do narrador nos contos ocorre tanto por meio da utilização de narrador heterodiegético (“Mosca morta”), como pelo uso de narrador homodiegético (“Más notícias”) e autodiegético (“Suzy). E, de forma mais radical, está o conto “Catástrofe”, que se efetiva pela proposição de desvanecimento do esboço tradicional de narrador, mediante a predominância dos diálogos. A exposição da escrita se faz valer através de narrações em 1ª pessoa do singular (“Freiras em férias”), pelo emprego da 3ª pessoa do singular (“Calor”), e, também, por intermédio da 1ª e da 3ª pessoa (“Luxo). Já a focalização oscila entre a adoção do prisma externo ao discurso narrativo, e a utilização de uma perspectiva em que o ato de focalização ocorre por meio das personagens, como em “Más notícias”:

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Vinda de dentro, Beth surge na porta interna do escritório. Ela percebe logo o clima – fúnebre. Fúnebre seria a palavra exata nos dois sentidos: literal e metafórico. [...] Olho para o cartaz na parede, Maca sorrindo, esbanjando confiança e simpatia; mas, por um momento, é como se eu, algum tempo depois, estivesse vendo aquele cartaz num muro qualquer da cidade, ele já desbotado, rasgado e sujo – o melancólico cartaz de um candidato que não se elegeu. (VILELA, 2002, p.41, 45, grifos nossos).

Em função das regulações estipuladas para essa coletânea de contos e da produção de efeitos a ser alcançada; as personagens não

são

configuradas

num alto

grau de

complexidade quanto ao contraste entre modo pensar e modo de agir e quanto à oposição entre dimensão profissional e dimensão pessoal. Em alguns contos são denominados os nomes das personagens e é atribuída a função social delas (“Más notícias” – José Tagliari ‘Macarrão’, fazendeiro, candidato a prefeito; Tim, chefe de gabinete; Elizabeth, esposa do candidato. “Freiras em férias” – as religiosas Romilda; Blandina; e Maria Imaculada). Em

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outros, porém, os aspectos físicos predominam na sinalização das personagens (“A cabeça” – um homem de terno e gravata; o crioulo; o da bicicleta; um baixote; um gordo; um que morava no bairro (preocupado); um de óculos; um magrinho, de barbicha, com bíblia debaixo do braço; uma moça; uma ruiva com o cabelo encaracolado; um rapaz do boné; a velinha; um menino; o amigo do menino). No entanto, apesar do perfilhamento da maior parte das personagens a tipos e estereótipos, a força dos papeis desempenhados se evidencia pela tensão constante entre o conflito de interesses ou de percepções, não permitindo um afrouxar

da

articulação

narrativa.

Assim,

sensações

e

sentimentos como medo, apreensão, excitação, dor, mal-estar, desgosto, afeto proporcionam o embate entre as personagens. A dimensão temporal configurada nos contos tende a manter dois parâmetros no decorrer do livro: a proximidade da duração entre o plano diegético e a expansão do texto no plano do discurso narrativo (por meio do recurso dos diálogos, buscase criar um efeito de concomitância da cena dialogada); a

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disposição da ordem dos acontecimentos em que na maioria das vezes ocorre uma narrativa in media res: (o começo do discurso narrativo se dá com a exposição de um evento disposto já no desenvolvimento da diegese). A relação da ordem entre os acontecimentos da diegese e a distribuição deles na narrativa literária apresenta-se muito próxima da equivalência nos contos, exceto pela presença de algumas analepses e raras prolepses. De outra parte, a relação da duração sofre o influxo maior de intrusões na correspondência entre os planos da diegese e do discurso, por conta da existência de sumários no decorrer dos contos. Entretanto, o caso mais próximo da paridade entre planos (isocronia) é o do conto “Catástrofe”, em que prepondera a cena pelo emprego dos diálogos entre as personagens Mimi e Artur. O espaço predominante em quase todas as narrativas é o espaço urbano, nos âmbitos privado e público, em que se conforma a caracterização das personagens e a disputa por pedaços de poder. As exceções ficam por conta do conto “Más

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notícias” (com a referência às atividades da zona rural), e do conto “A porta está aberta” (decorrido em locais silvestres e rurais). Contudo, a circunscrição dos espaços se efetiva na seleção de lugares menores, interatuando na composição das personagens. Respectivamente: bar; escritório; quarto de hospital; gabinete político; pousada e hotel; apartamento residencial; casa; estrada, rio e vendinha; quarto e sala de uma casa, oficina e rua; rua de uma grande cidade. Nesse sentido, a contenção espacial leva à criação de atmosferas nos contos que exprimem ambientes de: desprezo, afronta, angústia e submissão (“Mosca morta”); avareza, indiferença e indignação (“Luxo”); intimidade, excitação, malícia e ruptura (“Calor”); soturnidade, conspiração, esperteza, alegria (“Más notícias”); voluptuosidade, rivalidade, desobediência (“Freiras

em

férias”);

vulnerabilidade,

agressividade,

manipulação e excitação, ameaça, receio, alívio (“Suzy”); mancomunação, controle, domínio, revolta (“Catástrofe”); inquietação, perplexidade e libertação (“A porta está aberta”);

310


tristeza, manipulação, conflito e irrisão (“Rua da amargura”); perplexidade, intriga, zombaria, conturbação, conflito, desdém, jocosidade (“A cabeça”). Ademais da grande importância da definição dos lugares para construção das tramas, no quesito espacial o arranjo da ambientação propicia maneiras diferentes de levar a cabo a configuração das personagens e a disposição discursiva das narrativas. No livro A cabeça, encontramos as três modalidades de ambientação: franca, reflexa e dissimulada. A modalidade franca ocorre em boa parte dos contos em que há uma preponderância

do

papel

do

narrador,

principalmente,

heterodiegético. A ambientação reflexa situa-se em momentos que se faz mais necessária a troca da visão sobre as ações das histórias para reforçar a construção de um determinado ambiente: Ele, de peito nu, afastou o lençol; depois empurrou um pouco a cueca e...

311


– Ôp! – cobriu rápido; - o passarinho querendo fugir... Ela riu. – Aqui – ele mostrou: - o corte vai daqui até aqui... Ela ficou olhando – as tiras de esparadrapo sobre a gaze, a pele vermelha de merthiolate. – É grande, não é? – ele disse. Ela balançou a cabeça, concordando. Voltou então a sentar-se. Os dois calados. Uma tosse lá no fim do corredor. – Fui te mostrar uma coisa – ele disse, – e você acabou vendo outra... – Eu? – ela disse. – Eu não vi nada. – Não? – Você cobriu! (VILELA, 2002, p.41, 45, grifos nossos).

Nos fragmentos acima do conto “Calor”, a construção do ambiente de malícia, curiosidade e intimidade é reforçada por meio da troca da visão do narrador para a visão da personagem (“ela”, Daniela).

Já a ambientação oblíqua ou dissimulada

ocorre, por exemplo, por intermédio de ações realizadas pelas

312


personagens. Para ilustrar, encontramos em trechos de “Suzy”; a disposição da construção de um ambiente de manipulação e excitação: “Garotinha sim; você é uma garotinha.” “Não sou.” “É sim: garotinha. ” “Não sou!”. Ela bateu o pé no chão. “Não sou ! Quer ver? Quer?” Em poucos segundos, rápida, ela subiu na mesinha do centro e, sem qualquer hesitação, tirou a saia, depois a blusa, depois a calcinha – depois ainda a fita, que ela atirou para o alto – e ficou, santo Deus, nua, nuazinha ali, na minha frente, diante dos meus olhos. “Sou?”, ela perguntou, mudando o tom de voz. (VILELA, 2002, p. 80-81, grifos nossos).

O nível da linguagem nos contos cumpre um papel de bastante

destaque

na

criação

literária.

Desta

feita,

a

proeminência contrastiva das figuras retóricas e das locuções

313


estereotipadas associadas à elaboração do cômico reforçam o horizonte impactante das histórias. Nesse veio, a utilização de ironias

(p.

44),

trocadilhos

(p.51),

aliterações

(p.

89),

paronomásias (p. 53, título), piadas (p. 20, p. 74 e p. 102) e expressões idiomáticas (p.100 e p. 131) reforçam a significação das narrativas. Além disso, o registro de intertextos nos contos permite leituras em outras camadas textuais. Dentre os exemplos de intertextualidades, destacamos: “Antigo testamento” (“Mosca morta”); piada (“Luxo”); Catão (“Más notícias”); novela Corações apaixonados e revista Playboy (‘Freiras em férias”); piadas (“Suzy”); Patet exitus, piada, (“A porta está aberta”); mitologia cristã (“Rua da amargura”); a cabeça decapitada, Bíblia (“A cabeça”).

Aspectos elusivos: Percorrendo um percurso impreciso, os vocábulos “elusivo” e “eludir” situam-se numa etimologia ampla que se

314


estende do idioma latim às línguas inglesa e francesa. O Aurélio (2004) indica a origem do adjetivo “elusivo” a uma ascendência inglesa, advinda do termo elusive; e estabelece como primeira acepção as seguintes informações sobre a palavra: “1.Que tende a escapulir, a furtar-se (em geral por meio de argúcia); que se mostra arisco, esquivo, evasivo.”. Já Antônio Houaiss (2009) acrescenta a procedência francesa ao termo, élusif; e define como primeira acepção o direcionamento a seguir: “que tende a esgueirar-se ou esquivar-se habilmente.”. Por outro lado, ambos os filólogos estabelecem como origem do vocábulo “eludir” a proveniência em latim, eludere. Antônio Martinez de Rezende e Sandra Braga Bianchet, em Dicionário do latim essencial (2005, p.120), sugerem os seguintes sentidos empregados para essa palavra: “Evitar, esquivar-se de, aparar um golpe. Zombar, ridicularizar, divertir-se. Frustrar, enganar.”. Na coletânea de contos A cabeça, os aspectos elusivos se dão por corte (concisão narrativa), por esquiva (visão de mundo), e por ocultamento (apagamento do narrador). Para evidenciar

315


tais aspectos selecionamos passagens da narrativa curta “A cabeça”, e adotamos alguns procedimentos utilizados pelo método paragramático proposto por Julia Kristeva (1974); que foram utilizados pela teórica na análise de parte de Os cantos de Maldoror (2005), de Conde de Lautréamont [Isidore Ducasse]. Sobre essa possibilidade analítica e interpretativa, Leyla PerroneMoisés discorre: [...] Kristeva propõe o método paragramático, que permitirá recolher no texto gramas escriturais (que dialogam no interior do próprio texto) e os gramas leiturais (que dialogam com gramas de outros textos) [...] a produção textual ocorre, não de um modo gramatical (submissão ás leis do código), mas de modo paragramático (abertura do código e pluralização dos sentidos pela fricção dos gramas no interior do texto, ou com outros gramas, situados em outros textos). Estabelecese então uma verdadeira rede de sentidos, que se espraia para além de cada texto, recobrindo todo conjunto dos enunciados poéticos (a literatura, segundo a terminologia tradicional),

316


em permanente produção de sentidos novos. (PERRONE-MOISÉS, 1978, p. 63, grifos nossos).

Para realizar tal intento, além de coletar mostras linguísticas

de

textos

literários,

Kristeva

dialoga

com

proposições caras aos estudos matemáticos, como a teoria dos conjuntos, o axioma da escolha e teorema da escolha. Essa opção possibilita trazer elementos próprios à notação literária (ironia, paradoxo, negatividade) para um sistema de representação ou designação convencional. Nesse caminho, a produção literária ganha um contorno diverso ao adotar, por exemplo, denominações que abarcam a contradição humana, como “conjuntos vazios” e “somas disjuntivas”. Independentemente do afã matemático dessa proposta (KRISTEVA, 1974), salientamos o proveito das divisões denominadas

gramas

escriturais

(fonéticos;

sêmicos;

sintagmáticos) e gramas leiturais (o texto estranho enquanto reminiscência; o texto estranho enquanto citação). Conforme Kristeva (1974), os gramas escriturais podem ser divididos em

317


três subgramas: fonéticos; sêmicos; e sintagmáticos. Já os gramas leituras

se

distribuem

em:

texto

estranho

enquanto

reminiscência; e texto estranho enquanto citação. Na produção contística de Luiz Vilela a pluralização dos sentidos se dá nos âmbitos do silêncio, do impacto, da ironia, do intertexto, da contradição e do humor. No conto “A cabeça” é possível detectar essa realização paragramática. No texto, o narrador pontua a aviltante presença de uma cabeça de uma mulher no chão da rua e, paralelamente à exposição desse disparate, dá-se o desfilar de uma absurda sequência de diálogos e comentários despropositados e inoportunos entre mais de uma dezena de personagens. Assim, de forma breve e instantânea, Vilela nos coloca diante do sutil tormento da vida diária. Análoga à proposta de Julia Kristeva (1974, p.102), destacamos apenas os gramas escriturais, separando um fragmento do conto, e estabelecendo a convenção da divisão em duas classes, no caso: a físis (classe H– a matéria) e o lógos (classe H1 – a inteligibilidade):

318


Uma folhinha seca (A), soltando-se do galho da árvore (B) ali perto, veio a cair sobre a cabeça (C): como se – poderia ter pensado (D) um dos presentes – como se fosse uma homenagem (E) da natureza ao morto desconhecido (F). (VILELA, 2002, p.128).

No fragmento acima, destacamos como fricção dos gramas escriturais fonéticos a recorrência sonora (eco, ruído, rumor) que perpassa a condução da frase: o fonema /s/ (‘seca’; ‘soltando-se’; ‘sobre’; ‘cabeça’; ‘se’; ‘pensado’; ‘dos’; ‘presentes’; ‘se’; ‘fosse’; ‘desconhecido’). Nessa proposição a repercussão fonética se estende pode apresentar alguns horizontes, dentre eles: o vento brando, a brisa suave, alheia ao desarrazoado que se instaura; e, como desdobramento disso, a moderação da (pela) figura do narrador. Quanto à fricção dos gramas escriturais sêmicos,

apontamos

traços

semânticos

de

algo

ínfimo

(‘folhinha’); de ausência ou carência de vida (‘seca’); de contiguidade (‘galho’); e de extremidade superior, de centro (‘cabeça’). E, por outro lado, delineamentos semânticos de

319


reflexão e de crítica (‘pensado’); de cortesia e consideração (‘homenagem’);

e

de

alguém

incógnito,

ignorado

(‘desconhecido’). A correlação nessa situação se dá por vínculo recíproco entre os conjuntos A, B e C; e, entre os conjuntos D, E e F, ocorre como uma absurda “improbabilidade’. Já a movimentação dos gramas escriturais sintagmáticos reverbera num processo de ação contínua (em A, B, e C), ao passo que (em D, E e F) a sequência sintagmática se dá por repetição e desencontro. Isto é, ao nível frásico, os gramas sintagmáticos se reproduzem à semelhança da disposição semântica.

Considerações finais: Este artigo buscou efetuar uma proposta de análise e interpretação dos contos do livro A cabeça, de Luiz Vilela, e, separadamente, o conto homônimo ao título da obra. Como meta principal apontou-se alguns aspectos que permitem associar a produção contística de Vilela ao paradigma de uma arte elusiva,

320


ou seja, uma prática literária de concisão narrativa e de primor ao pequeno detalhe. Nesse sentido, foram indicadas: a importância da oscilação do tipo de narrador e o apagamento do narrador; a acuidade da alternância da pessoa verbal e da focalização; a relevância da tensão e do conflito para a composição das personagens; a proeminência na dimensão temporal da manipulação das relações de ordem e duração; o destaque do entrecruzamento entre espaço, atmosfera e ambientação,dentre outras particularidades. Por fim, este trabalhou intentou realizar um diálogo com as proposições da semanálise para o exame de obras literárias. Nesse viés, o estudo de um pequeno fragmento possibilitou a identificação da reverberação de uma poética de um escritor num pequeno trecho narrativo. Além disso, a escolha do conto em questão deixa entrever a perplexidade que gera a sucessão ininterrupta do bulício diário das engrenagens da vida

321


contemporânea. Cabeça sobre o asfalto, uma história sem percurso.

Referências: BELON, Antônio. “O narrador em ‘A cabeça’, de Luiz Vilela”. Anais V Colóquio Internacional Marx Engels novembro/2007. Disponível em http://www.unicamp.br/cemarx/anais_v_coloquio_arquivos/arq uivos/comunicacoes/gt6/sessao2/Antonio_Belon.pdf BENJAMIN, Walter. “O narrador: considerações sobre a obra de Nicolai Lesklov”. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. 7. ed. São Paulo: Brasiliense,1994. FERNANDES, Rinaldo de. O conto brasileiro do séc. XXI. In: Revista Graphos, vol. 14, n° 1, 2012 | UFPB/PPGL. P.173-188. FERREIRA, A. B. H. Novo Dicionário Eletrônico Aurélio. São Paulo: Positivo, 2004. HOUAISS, Antônio. Dicionário eletrônico da língua portuguesa. São Paulo: Objetiva, 2009.

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324


TREVISAN, Dalton. Cemitério de elefantes. Rio de Janeiro. Editora Civilização Brasileira, 1964.

325


20 ANOS DE AMÉLIA: 20 DE SUBMISSÃO E RESISTÊNCIA

Maria do Socorro Pereira Soares Rodrigues do Carmo (CPTL/UFMS)

Resumo: Este trabalho tem por objetivo explicitar como se dá a construção da personagem Amélia no conto “Vinte anos de Amélia”, que integra a coletânea Eu choro do palhaço (1989), da escritora mineira contemporânea Alciene Ribeiro Leite. No conto, temos o espaço patriarcal da personagem feminina totalmente submissa ao homem que, após vinte longos anos de matrimônio e total submissão, resolve libertar-se. A narrativa é estruturada pelo tempo psicológico, pois é através das memórias de Amélia que o narrador onisciente relata os fatos, descrevendo uma mulher submissa, que desempenha, com zelo e determinação, o papel de dona de casa, mãe e esposa. Amélia leva uma vida de servidão, imposta pelo casamento, cumprindo o seu papel social e assim fazendo jus ao juramento de subserviência que professara ao marido e à sociedade durante a realização pública do matrimônio. Com o passar do tempo, a personagem começa a refletir sobre a sua vida e o que fizera dela. Após as reflexões, a personagem surge com um novo olhar sobre si mesma, frente à realidade opressora em que vive. O enredo do conto nos apresenta a mulher contemporânea e sua resistência à submissão, que lhe foi imposta por normas e regras sociais

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oriundas do sistema patriarcal. Deste modo, o conto nos permite observar uma mudança na condição feminina: da absoluta submissão à possibilidade de um novo reposicionamento, condizente com as reorganizações sociais do mundo contemporâneo. Temos no conto a configuração de um grande problema social presente nos tempos contemporâneos. A metodologia utilizada foi revisão bibliográfica e como aporte teórico, utilizamo-nos dos pensamentos de Alfredo Bosi, Simone de Beauvoir, Stuart Hall, Rose Marie Muraro, dentre outros. Palavras-chave: Feminismo; Resistência; Sociedade.

Introdução

Do sistema patriarcal advém o papel delegado à mulher de submissão ao homem. O legado deixara à figura feminina a incumbência da servidão à família e a sociedade, princípios ditados por um contexto social machista. Sobre o predomínio da figura masculina sobre a mulher, a autora Simone de Beauvoir (2009) traz as seguintes considerações na obra O segundo sexo: “Foi a atividade do macho que, criando valores, constituiu a

327


existência, ela própria, como valor, venceu as forças confusas da vida, escravizou a Natureza e a Mulher” (BEAUVOIR, 2009, p.83). O homem desde sempre viu a mulher como um ser que pudesse possuir e atribuiu valores ao feminino para que pudesse continuar submetendo a mulher ao seu domínio. Essa concepção se perpetuou através dos séculos. É fato que os direitos entre homens e mulheres sempre foram díspares, sendo que o papel de submissão do feminino está arraigado culturalmente a um quadro patriarcal machista, porém essa concepção de ser submisso e servil tem mudado, de acordo com Stuart Hall, em sua obra A identidade cultural na Pósmodernidade (2014): “um tipo diferente de mudança estrutural está transformando as sociedades modernas no final do século XX” (HALL, 2006, p. 9). Essas transformações foram mais acentuadas a partir do final do século XX, pois a mulher já não aceita o fardo histórico, determinado pelo sistema, e oferecendo resistência ao papel de submissão, que lhe fora imposto.

328


As transformações culturais trouxeram a possibilidade de novos

horizontes

para

a

mulher,

que

tem

buscado,

incansavelmente, uma nova identidade pessoal. Nessa busca, a mulher

tem

se

questionado

sobre

o

papel

que

vem

desempenhando na sociedade, em que o feminino é sempre frágil, servil e submisso. A mulher contemporânea apresenta resistência ao patriarcado, buscando por transformações sociais em que possa exercer e ver seus direitos respeitados, não por ser o sexo frágil que o legado lhe impôs, mas sim pelo papel decisivo que desempenha perante a família e a sociedade.

A autora e sua obra Considero a literatura uma queda de braço com a vida. São muitos os seus objetivos, mas dos mais importantes é a denuncia. Não soluciona certas condições opressoras do homem, que tanto podem ser de ordem moral ou material.

329


Pode ser clava e pode ser escudo, pois mostrando a opressão, está defendendo, e defesa implícita em ataque também.cultura dos povos; é o retrato escrito de um determinado momento da evolução histórica da sociedade, ao refletir usos e costumes vigentes sob o trato ficcional. Atua como expressão cultural e extrai conteúdos dos atos Humanos; preserva então dialeticamente a [...] Aspiro suscitar perguntas e reflexões, raiva, ternura e principalmente diálogo (LEITE, 1979, p. 7-8).

Nascida em Ituiutaba, Minas Gerais, no ano de 1939, Alciene Ribeiro Leite tem presença marcante na literatura contemporânea, como também no circuito literário de Minas Gerais nas décadas de 80 e 90. Sua presença se faz notória na literatura contemporânea pela profundidade de suas obras que retratam a problemática social, pois

apresenta temáticas

expressivas para o contexto social da década de 70, como

330


repressão e o feminismo. Eu choro do Palhaço, de 1978, publicado pela editora Comunicação é a sua primeira coletânea de contos, foi premiado com o Galeão Coutinho, da União Brasileira de Escritores, como o melhor livro de contos de 1978. Seu primeiro livro infanto-juvenil, Filho de Pinguço, de 1983, ganhou o prêmio Coleção do Pinto.

Vinte anos de Amélia – da submissão a resistência Temos como proposta analisar o conto Vinte anos de Amélia, da Coletânea Eu choro do Palhaço (1978), segundo o modelo de submissão que a personagem apresenta no enredo enquanto mulher, esposa e mãe, durante os vinte anos de matrimônio em que sempre desempenhara com esmero e dedicação o seu legado servil, junto ao marido, filhos e a sociedade e, posteriormente, a transformação desse modelo de submissão em resistência. Encontramos no dicionário Aurélio a seguinte definição para o verbete Amélia: “Bras. Pop. Mulher que aceita toda

331


sorte de privações e/ou vexames sem reclamar, por amor a seu homem" (FERREIRA, 2010, p.39), na definição encontrada no “Aurélio” confirmamos o papel de Amélia no conto: aquela que faz tudo para agradar os seus. Pela voz do narrador onisciente constatamos que a focalização da obra é totalmente feita sob a perspectiva da mulher, prevalecendo o uso

do discurso indireto livre,

permitindo assim um maior contato com os pensamentos e anseios da personagem. O enredo do conto é a comemoração dos vinte anos de aniversário de casamento de Amélia,

momento no qual a

personagem faz uma profunda reflexão sobre tudo que até então vivera, principalmente a obediência ao marido infiel e conclui que tivera uma vida somente de sujeição e, a partir dessa constatação,

a personagem muda seu modo de ver a vida,

oferecendo resistência a tudo que até então vivera, decidindo pelo formato de uma nova mulher.

332


Vinte anos. Humilhações, lágrimas, dores. Somos transitórios, cumprimos um destino traçado. Sua cruz. Agora anda mais acomodado, negócios grandes, colesterol alto, caseiro. Cansado de aventuras, decadente, discreto? (LEITE, 1978, p.92).

Temos como hipótese que a personagem, ao refletir sobre sua condição feminina consegue enxergar que, ao desempenhar o papel de esposa submissa esqueceu-se de si mesma, anulandose enquanto mulher e também enquanto Ser, e, ao constatar essa realidade angustia-se decidindo por mudar suas ações, oferecendo resistência a esse padrão comportamental

que

norteara sua existência até então. A mudança começa a ser desvendado a partir da saída dos últimos convidados

que

estavam na festa que o casal dera em razão da comemoração dos vinte anos de matrimônio. No conto, não há revelação dos nomes das personagens, o narrador apenas os denomina de homem, mulher ou marido, esposa.

333


Quanto a não nomeação das personagens nas obras, Câmara Cascudo (2004) esclarece que: “[…] O nome é a essência da coisa, da entidade denominada” (CASCUDO, 2004, p. 658). O nome é o modo pelo qual identificamos alguém, é a personalização do sujeito, porém, no conto analisado, troca-se o nome pelo gênero homem – mulher. A individualidade do sujeito não acontece, o que

confirma, nessa narrativa

a

desvalorização do papel feminino nas estruturas sociais, em que a mulher não é respeitada enquanto pessoa. Quanto ao fato do homem também não ser nomeado, o autor, ao fazer essa omissão, revela-nos o intuito de representar o modelo das relações conjugais de meados do século XX, trazendo a realidade de um casal qualquer, nos tempos atuais. Quanto à ausência do nome referente à personagem feminina na narrativa, entendemos que o narrador, ao optar pela não nomeação, tem o intuito de nos levar a refletir sobre o situação da mulher

nos dias atuais, as omissões dos seus

companheiros, a ausência de respeito quanto ao papel feminino,

334


a servidão a que são impostas no seu dia a dia, e que, mesmo diante do anonimato, essas mulheres tem oferecido resistência aos abusos sociais dos quais tem sido vítima. No fragmento inicial do conto já constatamos o papel da dependência ao qual a mulher é acometida na história, corroborando com o conceito do feminino na sociedade patriarcal, “ a mulher seja submissa a seu marido, respeitando-o, amando-o, na pobreza ou na riqueza, na saúde ou na doença”(LEITE, 1978, p. 92), e assim Amélia procedeu nas duas décadas de matrimônio.

As mulheres sejam submissas ao seu marido, como ao Senhor; porque o marido é o cabeça da mulher, como também Cristo é o cabeça da igreja, sendo este mesmo o salvador do corpo. Como, porém, a igreja está sujeita a Cristo, assim também as mulheres sejam em tudo submissas ao marido (BÍBLIA, Efésios, 5, 2224).

335


Como podemos constatar na passagem em Efésios, a Bíblia apresenta a postura da mulher servil ao marido e Amélia, assim também o faz, até então, em respeito ao juramento que fizera no dia do casamento. Na única fala da personagem na história, que é identificada (apenas no título do conto) pela alcunha de Amélia, constatamos que esta é uma esposa subserviente, comprometida com o papel doméstico e com o marido, seu Senhor : “ -- Pode ir bem, ponho um pouco de ordem aqui primeiro” ( LEITE, 1978, p. 92). Amélia responde ao convite do esposo como sempre fora amável e doce ao seu chamado. A servidão de Amélia representa a imagem eternizada da boa esposa, como na canção do sambista Ataulfo Alves, na década de 60, “Ai que saudades da Amélia”: Ai meu Deus que saudade da Amélia Aquilo sim é que era mulher As vezes passava fome ao meu lado E achava bonito não ter o que comer E quando me via contrariado dizia Meu filho o que se há de fazer (ALVES, 1968)

336


Como na melodia acima em que o homem tem saudades da mulher que o agrada até diante do extremo de “não ter o que comer” , assim também Amélia agradava ao seu Senhor antes de si mesma. Percebemos no conto – Vinte anos de Amélia - o reflexo dessa cultura do servir, como na melodia “Ai que saudades da Amélia, onde o que importa ao homem é que a mulher lhe seja subserviente. “Amélias” tem a função de cuidar do lar, filhos e marido, sem reclamar. O narrador deixa clara a o papel de servidão de Amélia ao aludir que, antes de dormir, ela “precisa” deixar a sala organizada, mesmo que o marido a tenha chamado, e que ele já tenha ido dormir, Amélia não pode ir, sem antes deixar a sala impecável “ Ajeitou copos na pia, esvaziou cinzeiros, juntou pratos e garrafas” (LEITE, 1978, 92). O esposo poderia ajudar na arrumação, no entanto, vai descansar, enquanto que a esposa faz tudo sozinha.

337


Amélia cumpre o seu legado, ou seja, dona de casa atenta e amável para com os seus, uma vez que

dependente

financeiramente do cônjuge. Para o homem, os encargos da mulher no lar são cômodos, uma vez que ele dificultava a inserção dela no mercado de trabalho remunerado, mantendoa dependente. Impedindo-a de trabalhar, a mulher não teria liberdade e autonomia, o que faria com que ela se mantivesse submissa. Segundo relata Muraro na obra A mulher no terceiro milênio (1982), é a partir da dependência econômica do marido que a mulher se sente inferior, e esse sentimento é traduzido em dependência psicológica em relação ao homem, daí a necessidade de agradá-lo, Amélia demonstrava sua gratidão, zelando da casa e da família. A estrutura social à qual Amélia pertence a fez refém “dessa condição de subjugo, que mesmo com as situações nada agradáveis da rotina do casamento, ela foi se deixando levar: “Primeiro foi a conquista do pão de cada dia igual nas privações,

338


logo as escapadas do marido, morte do romantismo. Madrugadas de espera, mentira, abraço, perdão “(LEITE, 1979, p.92). No decorrer dos anos de união, a vida da personagem foi se tornando cada vez mais angustiante, das dificuldades financeiras no início do casamento à superação das traições do marido;

com isso,

o romantismo, um dos alicerces do

relacionamento conjugal se perde, e restara somente o perdão às mentiras. O casamento segue,

pois, comprometera-se,

durante o ato público das núpcias , ser uma mulher submissa. O contexto patriarcal, no qual Amélia está inserida, é o reflexo de modelos em que a mulher não se divorcia, suporta todos os conflitos em prol da imagem da família feliz. Após o término da festa, a personagem começa a refletir sobre a sua união: quantas lágrimas perdidas nas madrugadas em que aguardava a chegada do marido, as dores sentidas em cada traição que sofrera, porém o narrador, nesse momento, indicia, de forma velada, que a personagem poderá mudar o comportamento

servil.

Diante

do

enunciado

“somos

339


transitórios” entendemos que somos passíveis de mudanças em nossa existência, no nosso modo de sentir e agir, e que, dessa maneira, podemos resistir a tudo aquilo que nos afronta e nos oprime. Amélia, ao começar a retirar a sujeira que os convidados haviam deixado na sala, ouve o chamado do marido para ir deitar-se com ele, mas não o atende apenas responde que irá organizar o cômodo primeiro, ao negar o pronto atendimento ao marido a personagem opta em realizar

seus desejos –

experimentar uma dose – pois lembra-se de que nada bebera durante toda a festa, visto que estava envolvida na tarefa de receber bem os convidados. Na atitude tomada por Amélia – responder ao marido que podia ir dormir sem ela pois que ela ia primeiro fazer outra coisa, temos uma mulher dizendo não ao chamado do seu Senhor, colocando-se como senhora de suas ações, tendo o seu eu como prioridade.

Com essa atitude, Amélia passa a oferecer

resistência a vida servil e submissa que a conduzira até então,

340


dando prioridade a si mesma, às suas vontades. Torna-se, nesse momento, dona de si. A personagem começa paralelamente ao prazer de saborear uma dose, a fazer uma reflexão sobre a sua existência, concluindo: os filhos cresceram, não precisavam mais dos seus atentos cuidados, sentindo-se descartável e nesse meditar, reconhece que eles evoluíram, enquanto ela apenas os servira, esquecendo-se de si mesma:

Filhos crescidos, aprovados no vestibular, curtindo um som eletrônico que, estafada, já não pode suportar. Não tem muito o que dizer. Enquanto evoluíam ela cuidou do resto, a tempo e a hora. Nove meses, a gestação, o tempo de convívio mais estreito. Logo três homens estranhos na casa (LEITE, 1978, p. 92).

As reflexões fazem com que Amélia comece a enxergar a vida sobre um novo ângulo. O papel de mãe zelosa já não se fazia mais necessário, afinal, os filhos estavam criados não dependiam

341


mais de seus cuidados, e o esposo, ao qual servira tão prontamente já nem mais se importava com ela, pois, nem mais se importava com o modo como ela se vestia: “Jamais usara um assim [vestido]. Com os anos e o dinheiro, o recato imposto pelo marido afrouxara. Como se o cuidado de antes não tivesse mais razão de ser (LEITE, 1979, p.93). Amélia, ao observar que o marido não se importara com o vestido desnudo que ela usara durante a festa, atenta-se à mensagem implícita nesse gesto, o desinteresse dele por sua pessoa. Essa constatação faz com que ela sinta-se ainda mais encorajada a mudar mesmo lembrandose de que naquela manhã, como em outras ocasiões refizera os votos: “Vez ou outra , sem rótulo de fé, entra num templo. Como naquela manhã. Na intimidade da igreja refez os votos de renuncia, dever e submissão perante o marido, dono e Senhor” (LEITE, 1979, p.92). A esposa, mesmo tendo refeito seus votos de renuncia naquela manhã, sente-se encorajada a resistir à submissão e tornar-se dona de si.

342


A condição de dona de casa servil, legado do patriarcado social ao qual a mulher fora submetida, entra em ruínas a partir do momento em que Amélia se permite experimentar uma bebida, esse ato é uma oposição ao sistema, pois, mulher subordinada não segue seus anseios, mas ela se deu ao prazer do desfrute, satisfez seus desejos – e a partir dessa rebeldia, Amélia encoraja-se a pensar sobre sua vida e, após refletir “ O pássaro bateu asas no peito” (LEITE, 1978, p. 94),

se alforria do

servilismo, que jurara em razão do matrimônio. A libertação da servidão ao patriarcado, começara. Amélia refaz em seu imaginário a sua trajetória, ou seja, a criação dos filhos, o ser esposa e mulher na sociedade da qual faz parte. Nesse momento, ao se permitir uma tomar uma bebida, brinda ao nascimento de uma nova mulher, a mulher que se resigna com a vida insignificante que a conduzira e, ao se ver refletida no espelho de sua sala,

gosta do que vê

questionando-se: ainda havia amor pelo marido, depois de tantos anos de angústias e sofrimentos? Tivera uma vida de

343


submissão e, ao chegar a essa conclusão, a personagem é tomada por um sentimento de descontentamento com o seu eu, pois, de acordo com Hall: “Dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas” (HALL, 2006, p. 13). Amélia é acometida por um conflito: de um lado o modo submisso que conduzira sua vida até então, sem prazer, apenas servindo como jurara durante a cerimônia do casamento; e, do outro, a mulher que se descobre, cansada de servir, resistindo, querendo uma nova vida, alçar novos voos: Teima em não ceder. Não se integra ao presente. Desde manhã vinha assim, sem motivo. A igreja cedo, uma pálida reação. Aquilo outra vez. Mal estar aflorando num bater de asas do ninho, o coração igual ave cativa querendo alçar vôo. O pássaro bateu asas no peito. No gole seguinte, um gosto de descoberta. Dos limites restritos aos seus passos, da supérflua peça que era. Agora com criados, um adorno fora de moda (LEITE, 1978, p. 93-94).

344


A angústia que antes consumia Amélia desaparece, assim como um pássaro que bate asas e muda de rumo, Amélia dá um novo significado a sua vida, nasce uma nova mulher, uma mulher que tem luz própria e se valoriza. O novo Eu de Amélia, que agora transgride a vida servil, leva à exteriorização de desejos, como o anseio em tomar uma dose, mesmo que realizara a vontade sozinha, é a partir dessa ação que ela sente-se forte para libertar-se para sempre das amarras as quais até então vivera: [...] Olha ao redor. Pela primeira vez em muitos anos se viu só. Mas não sozinha, solitária, que a solidão comungava com ela estreitamente. Gostou de estar só. O de agora é um sós consigo mesma, com seu nariz. Sua identidade. A bebida tem sabor total. Como o sucesso nos comerciais de cigarros.

345


Reconcilia-se com a vida, quase sem ver que andavam brigadas. Vinte anos, dia seguindo dia, sem se projetar em nada. Acessório de lavar, passar, cozinhar. Mero receptáculo para as crises de paixão do marido. Máquina reprodutora de perdões pulsantes. Serviu, serviu, serviu. Só. Deixara-se anular como pessoa (LEITE, 1978, p. 93).

Fora até então apenas acessório no seu lar - lavando, passando e cozinhando, perfeita dona de casa, anulara o seu Eu em prol da família e estes já não precisavam mais de seus cuidados. Ao chegar a conclusão de que apenas vivera para o outro

Amélia percebe que está só,

porém é um sozinho

prazeroso onde existe uma identidade: uma mulher que responde por si mesma, que diz não quando lhe convém. A libertação de Amélia é o resultado da reflexão que fizera: vinte anos se passaram e durante todos esses anos ela só não servira a si, pois, o legado ao qual estava sucumbida permitia que ela fosse, apenas, esposa, mãe e mulher. Ao optar pela

346


resistência passa a ser uma nova mulher, reconcilia-se com a vida e recupera sua identidade. Ao espelho, há um sorriso de pilhéria no rosto. Ela é a causa. As mãos pelos seios, maiores que o desejável; quadris cheinhos, num inicio de barriga. Seu hoje. O pássaro bateu asas no peito. No gole seguinte, um gosto de descoberta. Dos limites restritos aos seus passos, da supérflua peça que era. Agora com criados, um adorno fora de moda (LEITE, 1978, p.94).

Amélia ao rejeitar o legado que vivera durante tantos anos descobre em si uma mulher que se aceita e se admira, não importando se o corpo dessa mulher está um pouco fora do padrão ou não, o que importa nesse momento é o amor que surge por si, pelos prazeres mais simples que a vida oferece como um simples sorriso frente ao espelho de aceitação do seu Eu. Gesto simples que por muito tempo andara esquecido.

347


Conclusão

Assim como Amélia, que resiste à submissão, assim tem feito muitas mulheres nos dias atuais. São esposas e mães que trabalham fora, são independentes financeiramente dos seus companheiros e não aceitam mais as regras impostas por essa estrutura social machista, que reduz a mulher a um mero objeto. A mulher contemporânea faz de sua autonomia um verdadeiro escudo para a sua liberdade. Amélia não tinha autonomia financeira, no entanto, não consegue continuar vivendo de forma submissa, pois percebe que a angústia que sente vem de um legado de servidão e passividade e que, ao praticar seu primeiro ato de rebeldia – tomar uma dose – se liberta das amarras e gosta da sensação que a liberdade lhe proporciona. Na obra Literatura e resistência (2008), Bosi define a resistência como uma oposição a uma “força de vontade que resiste a outra força, exterior ao sujeito. Resistir é opor a força

348


própria à força alheia” (BOSI, 2008, p. 118). De acordo com a definição de Bosi, percebemos que Amélia fizera a opção pela mudança no seu modo de viver em oposição ao sistema ao qual estava sucumbida, fazendo com que o entusiasmo pela vida que agora descobrira fosse muito mais pujante que a servidão que atribuía ao seu senhor. Amélia, após vinte anos de clausura e submissão, adota a resistência como afronta ao Sistema patriarcal, que até então lhe delegara um papel secundário enquanto mulher, a submissão feminina a impedia de ser dona do seu Eu e, ao reagir ao sistema, busca por uma igualdade de espaço numa sociedade moralista, em que o machismo continua predominando,

apesar do

feminismo ter atrelado árduas lutas contra esse legado.

Referências: ALVES, Ataulfo. Ai que saudades da Amélia. In: ALVES, Ataulfo. Leva meu samba. Rio de Janeiro: Warner Music, 1968. Faixa 3. 1. Disco de vinil.

349


FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa: edição histórica 100 anos. Curitiba: Positivo Livros, 2010. Bíblia: BÍBLIA SAGRADA: a Bíblia da mulher. Efésios. Rio de Janeiro: Sociedade Bíblica do Brasil, 2014. cap. 5, p. 1901-1902. BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. Trad. Sérgio Milliet. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009. 2v. BOSI, Alfredo. Literatura e resistência. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. CASCUDO, Luís da Câmara. O nome tem poder. In: ______. Civilização e cultura. São Paulo: Global, 2004. p. 658-667. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: Lamparina, 2014. LEITE, Alciene Ribeiro. Vinte anos de Amélia. In: ______. Eu choro do palhaço. Belo Horizonte: Comunicação, 1978. MURARO, Rose Marie. A mulher no terceiro milênio: uma história da mulher através dos tempos e suas perspectivas para o futuro. 2. ed. Rio de Janeiro, RJ: Rosas dos Ventos, 1992.

350


351


IMPLICATURAS E MÁXIMAS CONVERSACIONAIS: REGRAS INERENTES AO FUNCIONAMENTO DA CONVERSAÇÃO Maria Izabel Gerstemberger de Oliveira (PG/IFMS) Nayra Modesto dos Santos Nunes (PG/IFMS)

Resumo: O presente trabalho visa discorrer sobre os campos linguísticos: Semântica e Pragmática, mais especificamente, com foco na visão teórica das Implicaturas e Máximas conversacionais. O objetivo consiste em evidenciar as regras inerentes ao funcionamento da conversação. O aporte teórico da pesquisa está ancorado em autores como Araújo (2007), Cançado (2005), Crystal (1985), Fiorin (2010), Grice (1975), Oliveira e Basso (2014), entre outros. Assim, pretende-se, sobretudo, refletir acerca das funções exercidas pelos elementos que constituem a linguagem, na construção do seu significado – Implicaturas e o Princípio de Cooperação, mediante as Máximas conversacionais. Logo, dispomos apresentar as regras que regem a conversação. Para tanto, foram analisadas algumas situações da conversação cotidiana. Os resultados apontam que esses processos Semânticos e Pragmáticos, dentre vários outros, contribuem para a produção da interação e para que o falante atinja os seus propósitos comunicativos.

352


Palavras-chave: Implicaturas; Conversação.

Máximas

conversacionais;

Introdução O presente trabalho visa discorrer sobre os campos da linguística, a Semântica e a Pragmática, com foco na visão teórica das Implicaturas e das Máximas Conversacionais. Deste modo, por tratar-se de um estudo linguístico elencamos algumas concepções de língua e linguagem, porém as definições variam de acordo com a postura teórica que o linguísta adota, ou seja, não são absolutas. Butler defende que a “Linguagem é

sobre tudo,

instrumento de interação social entre seres humanos” (BUTLER, 2003, p. 2) – (Tradução nossa), e atua a propósito da comunicação,

como

princípio

para

a

manutenção

de

relações sociais. De modo igual, “a explicação da linguagem passa pelo uso e interação” (FOLEY E VAN VALIN 1984, p. 9).

353


Em conformidade, para Nuyts (1992), a comunicação é uma forma de construir efeitos de sentido sobre o outro, exemplificados por fatores do cotidiano como os atos de: brigar, convencer, conhecer, solicitar, entre outros recursos empregados na interação social diária. Assim, a função da linguagem é atuar como produto da interação, no ponto de troca entre falante e ouvinte, na qual a língua é usada para alcançar os seus objetivos e propósitos comunicativos. Vertentes da semântica e pragmática Alguns pesquisadores defendem uma distinção para as vertentes da semântica e pragmática, contudo nas palavras de Inês Lacerda Araújo justificamos a união desses dois campos linguísticos. A autora enfatiza que “semântica e

pragmática são

diferentes domínios da linguística, o que não implica defender que uma ou outra basta para dar conta da linguagem.” Isto

354


posto, cabe salientar que apesar de terem funções distintas, são campos que se dispõem, dado que, “a linguagem é constituída por aspectos semânticos e pragmáticos, os quais se imbricam e dependem um do outro” (ARAÚJO, 2007, p. 1). Em continuidade, a autora destaca que a “semântica e pragmática significar

são algo

complementares pela

linguagem,

e

imprescindíveis

e para

a

para

comunicação

linguística.” Assim, “[...] não há porque defender a semântica em detrimento

da

pragmática, nem

esta

em

detrimento

daquela” (ARAÚJO, 2007, p. 2-3). Como exemplificação de que a semântica e a pragmática se completam, cabe frisar que para identificarmos à pragmática devemos

encontrar em primeiro plano o

seu

significado

semântico. Vejamos os exemplos:

1.

Pedro abotoou o paletó.

355


Do ponto de vista semântico, observa-se que a sentença informa: Pedro fechou os botões do paletó. Por outro lado, no que se refere à pragmática, a sentença consagrada pelo uso comunica: Pedro morreu! O mesmo processo acontece em:

2.

João bateu as botas.

Nota-se

sobre o

enfoque semântico, que a

sentença

esclarece: João pegou os sapatos (botas) e bateu um no outro. Em se tratando da pragmática, determinada pelo uso, a sentença adverte: João morreu! Conforme as exemplificações, podemos constatar que os domínios da semântica e pragmática embora tenham funções distintas, unidas, corroboram para a interpretação textual em situação de comunicação, isto é, dependendo do contexto em que as sentenças forem proferidas resultarão em uma compreensão, ora mais voltada para o campo semântico, ora para o pragmático.

356


Semântica: a investigação do significado

A semântica é um ramo da linguística, conceituada por Márcia Cançado como estudo do significado das línguas, das palavras e sentenças. Assim, “[...] o semanticista procura descrever o conhecimento semântico que o falante tem de sua língua” (CANÇADO, 2005, p.15-6), ou seja, a semântica lida com a interpretação do sistema linguístico. Em contrapartida, para a autora, “a semântica não pode ser estudada somente como a interpretação de um sistema abstrato, mas também [...] como um sistema que interage com outros sistemas no processo da comunicação e expressão dos pensamentos humanos” (CANÇADO, 2005, p. 19). Em decorrência, frisa que: O significado vai além do sentido do que é dito, para tanto [...] fica claro que nem sempre o sistema semântico é o único responsável pelo

357


significado: ao contrário, em várias situações, o sistema semântico tem o seu significado alterado por outros sistemas cognitivos para uma compreensão final do significado. Por exemplo, vem sendo explorado por alguns estudiosos que alguns aspectos do significado são explicados em termos de teorias da ação, ou seja, dentro do domínio de uma teoria da pragmática (CANÇADO, 2005, p.17).

Ainda de acordo com a autora, as propriedades que a semântica engloba são as relações: I. de implicação como hiponímia, acarretamento, pressuposição e implicatura conversacional; II. de paráfrase e de sinonímia; III. de contradição e de antonímia; IV. de anomalia e de adequação; V. de ambiguidade e de vagueza; VI. dos protótipos e das metáforas; VII. dos papéis temáticos; VIII. dos atos de fala2 (CANÇADO, 2005, p. 20).

Conforme apresentado, as teorias sobre o estudo do significado linguístico divergem com relação à ênfase em diversos aspectos e atuam em várias interfaces distintas, com

358


inúmeras aplicações. Deste modo, Ferrazeri Júnior e Basso (2013) ressaltam que existe uma ampla gama de teorias semânticas e vertentes teóricas, quer dizer, que nos é permitido várias formas de escrever o significado, por meio das várias semânticas, dentre elas, a Argumentativa, a Cognitiva, a Computacional,

a

Protótipos, a Semântica

Cultural, a da e

Enunciação, a dos

Psicolinguística

Experimental, a

Semântica Formal e Lexical.3 Pragmática: a averiguação do uso Por

ser

uma área

heterogênea,

a

pragmática permite caracterizar muitas pesquisas em estudos linguísticos,

como

sendo

de domínio

pragmático. Consequentemente adquiri então, várias acepções. Victória Wilson ressalta que “há várias definições de ‘usos’, assim como há inúmeras para o termo ‘pragmática’”. Segundo a autora, “a competência pragmática [...] é aquela que contempla o conhecimento das condições de uso da língua”.

359


Assim, a pragmática “busca observar as condições de uso da língua em situações reais de comunicação, [...] considerando as relações entre forma e função, entre os fatores gramaticais e sociais” (WILSON, 2009, p. 88). Consoante, a

pesquisadora

Márcia Cançado destaca

que “a pragmática estuda os usos situados da língua e lida com certos tipos de efeitos intencionais” (CANÇADO, 2005, p. 18). Dado que, para entender uma sentença precisamos entender também a intenção do falante ao proferir determinada sentença para determinado ouvinte, em determinado contexto, haja vista que todos esses aspectos a pragmática leva em conta. Com tais características, prossegue: A pragmática é o estudo da linguagem do ponto de vista de seus usuários, particularmente das escolhas que eles fazem, das restrições que eles encontram ao usar a linguagem em interações sociais, e dos efeitos que o uso da linguagem, por parte desses usuários, tem sobre os outros participantes no ato da comunicação (CRYSTAL, 1985, p. 240).

360


Outra definição para a pragmática, apresentada por Joana P. Pinto, na qual postula a pragmática “como a ciência do uso linguístico” (PINTO, 2006, p. 47). Englobando, assim, os fatores determinantes da linguagem, língua, fala e a produção social. A autora aborda três correntes da pragmática, sendo: o pragmatismo americano, os estudos de atos de fala e os estudos da comunicação. O pragmatismo americano, influenciado pelos estudos semiológicos de William James, que se debruçou em pesquisar sobre a tríade pragmática e representar a relação entre signo, objeto e interpretante (PINTO, 2006, p. 51). Referente aos estudos de atos de fala, sob o crédito dos trabalhos

de

J. L.

possibilidade de uma

Austin visava refletir teoria

que

explicasse

sobre

a

questões,

exclamações e sentenças que expressam comandos, desejos e concessões (PINTO, 2006, p. 57). Já os estudos da comunicação, com preocupação firmada nas relações sociais, de classe, de gênero, de raça e de cultura,

361


presentes nas

atividades linguísticas. Caracteriza-se

como híbrido, por ser formado a partir da junção de termos pertencentes aos grupos apresentados anteriormente (PINTO, 2006, p. 61). Outra perspectiva teórica da pragmática é apresentada por Moeschler, quando aponta que existem três domínios de fatos linguísticos; que exigem a introdução de uma dimensão pragmática nos estudos linguísticos: os fatos de enunciação, inferência e de instrução. Conforme se apresenta:

I. A enunciação: tida como ato de produzir enunciados, que são as realizações linguísticas concreta, subdivide-se pelos campos: Dêiticos, Enunciados performativos, Uso de conectores, Certas negações e Advérbios de enunciação. II. A inferência: que investiga como certos enunciados têm a propriedade de implicar outros, que se diferencia a pragmática pela: significação, frase e enunciado. III. A instrução: uma espécie de treino para interpretar as chamadas palavras do discurso4 (MOESCHLER apud FIORIN, 2010, p. 167).

362


De acordo com os conceitos teóricos apresentados na busca de descrever a pragmática, salientamos que atrelada ao contexto comunicacional, a pragmática atua diariamente em diálogos comunicativos, na qual os interactantes as proferem pela linguagem; e através desses caminhos linguísticos, pela averiguação do uso, representam um campo extremamente necessário para compreensão e interação. Implicaturas Formuladas pelo filósofo Herbert Paul Grice (1975), as Implicaturas atuam com o objetivo de explicar como em contextos específicos o falante consegue transmitir uma informação além do literalmente dito. Sublinha sobre o conceito de Implicaturas, quando profere: Entender as implicaturas é entender todo um quadro em cujo centro há uma teoria sobre o

363


que é uma conversação, sobre, como funcionam os comportamentos racional e comunicativo e sobre os diferentes tipos de significado com os quais lidamos. Tanto o comportamento racional quanto a existência são os pilares das implicaturas (OLIVEIRA & BASSO, 2014, p. 39).

Para Leão (2013, p.70) quando o que é dito não é suficiente para que se deduza o sentido da fala do locutor, o interlocutor acredita que há algo mais implicado e tenta chegar a essa informação por conta própria para compreender o que o locutor está querendo transmitir. A esse processo de interpretação, que o interlocutor faz para entender o “algo” a mais, é conceituado como implicaturas. Grice (1975) apud (Wilson 2009, p. 90) distinguiu dois tipos

de

implicaturas:

as

convencionais

e

as

conversacionais. As convencionais são as implicaturas cuja significação é gerada internamente, isto é, dentro do sistema linguístico.

Assim, partimos

da

observação

apenas

pela

364


estrutura da sentença, por estar aprisionada ao significado literal. Exemplo: 3.

Apesar de ser desorganizada, ela chega no horário.

No exemplo exposto, tem-se o emprego de uma locução conjuntiva “apesar de”, o que provoca as relações de sentido entre as orações, mediante a relação de concessão depreende-se o seu significado, neste caso, literalmente descrito na frase. Por outro lado, as implicaturas conversacionais estão mais ligadas ao

contexto extralinguístico,

uma

vez

que se

observa além da estrutura, sua composição extralinguística, depreendidas por meio da decodificação. Considere então o diálogo: (04)

O

A: Você vai à balada hoje com a gente? B: Estou com dor de cabeça.

segmento

acima

reúne

fatores

linguísticos

e

extralinguísticos, dado que a resposta obtida, a princípio parece

365


inadequada, mas pela óptica das implicaturas conversacionais subtendemos

que

B

não

queria

dizer “não” explicitamente, talvez

sair

e recusando-se a

por

questões

de

polidez optou por usar a implicatura, sustentando o mesmo efeito negativo.5

Princípio da cooperação: conversacionais, de Grice

as

máximas

Elaborado por Grice (1975), o Princípio da Cooperação tem como finalidade proporcionar uma transmissão eficaz da informação entre os participantes do ato comunicativo, o locutor e o interlocutor. Quando estes participantes se dispõem a estabelecer uma interação verbal, geralmente irão cooperar para que a comunicação suceda de forma apropriada. De acordo com Grice (1975), numa situação de diálogo, os interlocutores assumem de maneira implícita um contrato conversacional, uma espécie de conjunto de normas que regem a

366


conversação. A regra geral desse contrato, o autor denomina Princípio Cooperativo e suas respectivas sub-regras nomeia como as máximas

de

qualidade, quantidade,

relação

e

modo. Cabe frisar que, segundo o autor, esses fatores estão presentes, em geral, numa conversação bem-sucedida. Por conseguinte, o Princípio da Cooperação sugere que na interação,

os

participantes façam suas

contribuições

conversacionais da mesma maneira que ela for solicitada, no estágio em que ela acontecer, e de acordo com o propósito ou direção da troca verbal, na qual o participante se encontra. Logo, no Princípio da Cooperação, juntamente com as máximas

conversacionais

Paul Grice desenvolveu

quatro

grandes categorias: 1. Quantidade: corresponde à quantidade de informação a ser transmitida. É preciso regular a quantidade de informação, para que ela não seja nem mais nem menos que o necessário. Têm-se, portanto as seguintes máximas:

367


i. Faça sua contribuição tão informativa quanto necessária, apenas o requerido. ii. Não faça sua contribuição mais informativa que o necessário. 2. Qualidade: faça com que sua contribuição seja verdadeira. Apresenta duas máximas mais específicas: i. Não diga o que considerar ser falso. ii. Não diga nada que não possa fornecer evidência adequada. 3. Relação: há uma única máxima: i. Seja relevante, isto é, só se pode dizer o que é essencial. 4. Modo: corresponde a “como” aquilo que se diz deve ser dito. O autor recomenda ser claro: i. Evite ambiguidades. ii. Evite obscuridade de expressão. iii. Seja breve (evite digressões desnecessárias). iv. Seja ordenado (fale pausadamente, respeitando os turnos 6 conversacionais) (GRICE, 1975, p. 45-6).

Na

conversação,

por desenvolver-se de

forma

espontânea, pode ser que aconteça um embate entre algumas

368


dessas máximas, acarretando no favorecimento de alguma dessas categorias conversacionais – em especial. Quando o interlocutor detectar, por meio do locutor, descumprimento de alguma das máximas conversacionais, deve-se

esforçar

a

fim

de

discernir

a

causa

do

descumprimento. Nessas ocasiões, tem-se uma implicatura conversacional. Paul Grice presume que expectativas ou pressupostos específicos associados a algumas das máximas descritas anteriormente, possuem no mínimo, seus análogos na esfera das transações que não são trocas conversacionais, listando, assim, um análogo para cada categoria:

1. Quantidade: se você está ajudando-me a consertar um carro, espero que sua contribuição não seja mais nem menos que o requerido. Se, por exemplo, em uma determinada etapa, eu precisar de quatro parafusos, eu espero que você me dê quatro, ao invés de dois ou seis.

369


2. Qualidade: espero que suas contribuições sejam autênticas e não falsas, adulteradas. Se eu precisar de açúcar como ingrediente em um bolo que você está ajudando-me a fazer, eu não espero que você me dê o sal; se eu precisar de uma colher, espero uma colher de verdade, e não uma de brincadeira, feita de borracha. 3. Relação: eu espero que a contribuição de um parceiro seja adequada às necessidades imediatas em cada estágio da negociação; se eu estou misturando os ingredientes para um bolo, eu não espero ser ajudado por um bom livro de receitas (embora isso possa ser apropriado em uma fase anterior). 4. Modo: espero que um parceiro deixe claro qual contribuição ele está fazendo e execute sua performance com uma razoável agilidade (GRICE, 1975, p. 47).

Segundo o autor mencionado,

essas

analogias são

consideradas fundamentais, em razão de serem determinadas pelo

Princípio

da

cooperação,

para

cada

máxima

conversacional, posto que, na interação, o modo de conduta dos participantes acontece

de

acordo

com

os

princípios

370


determinantes,

isto

é,

pela

troca

comunicativa por

ser

desenvolvida de forma empírica.

Conclusão Neste estudo, respaldado nas vertentes da linguística, semântica e pragmática, procuramos explicar as funções exercidas pelos elementos que constituem a linguagem na construção do seu significado – implicaturas: convencionais e conversacionais, também, as

máximas

conversacionais de: qualidade, quantidade, relação e modo. Concluímos ressaltando que estes processos semânticos e pragmáticos, dentre vários outros, contribuem para a produção da interação e para que o falante atinja os seus propósitos comunicativos. Visto que, no presente trabalho foi possível observar por meio da teoria de Grice, que existem regras que regem a conversação.

371


Assim, mediante este estudo almejamos contribuir para uma

reflexão

sobre estes

campos linguísticos, com

amplos

intuito

de

e

diversificados fomentar novas

indagações, bem como, outras colocações sobre o tema em questão.

Referências: ARAÚJO, Inês Lacerda. Por uma concepção semânticopragmática da linguagem. Revista Virtual de Estudos da Linguagem - ReVEL. V. 5, n. 8, março de 2007. ISSN 1678-8931. Disponível em: http://www.revel.inf.br/files/artigos/revel_8_por_uma_conc epcao_semantico_pragmatica_da_linguagem.pdf Acesso em: 10/2015. BUTLER, C. Functionalist Approaches to Language. In:______. Structure and Function: Guide to Three Major Structural-Functionalist Theories. Part I Approaches to Simple Clause. Amsterdam/Philadelphia: John Benjamins, 2003. CANÇADO, Márcia. Manual de semântica: noções básicas e exercícios. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005.

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tirinhas. Work.Pap.Linguíst.Florianópolis, jan./mar, 2013. Disponível em: <file:///C:/Users/J&N/Downloads/29736109173-1-PB%20(2).pdf> Acesso em: 13/ 2015. NUYTS, J. Aspects of a cognitive-pragmatic theory of language: On cognition, functionalism, and grammar. Amsterdam: J. Benjamins. 1992. OLIVEIRA, Roberta Pires de; BASSO, Renato Miguel. Arquitetura da conversação: teoria das implicaturas. São Paulo: Parábola, 2014.  PINTO, Joana Plaza. Pragmática. In: MUSSALIM, Fernanda; BENTES, Ana Christina. (Orgs.) Introdução à linguística: domínios e fronteiras, v. 2, 5. Ed. São Paulo: Cortez, 2006. WILSON, Victoria. Motivações pragmáticas. In: MARTELOTTA, Mário Eduardo. Manual de linguística. São Paulo: Contexto, 2009.

374


UMA LEITURA DE “MULHER EM RECESSO”, DE ALCIENE RIBEIRO LEITE Natália Tano Portela (CPTL/UFMS) Resumo: Dentre 449 trabalhos concorrentes, "Mulher em Recesso", de Alciene Ribeiro Leite, foi um dos dez contos indicados para publicação na coletânea 8º Concurso de Contos Luiz Vilela (1999). O conto, narrado em terceira pessoa, descreve um dia da vida da personagem “mulher” com seus afazeres domésticos. Este trabalho pretende uma leitura desse conto a partir da construção da personagem feminina, tendo por objetivo demonstrar sua tomada de consciência e consequente mudança comportamental. Palavras-chave: Alciene Ribeiro Leite; conto; feminismo.

A MULHER E SUA OBRA

De forma geral, pequena (ou nula) é a importância da biografia dos escritores nos estudos literários quando da leitura,

375


análise e interpretação de suas obras. Neste caso, porém, considerando os poucos dados disponíveis a respeito da vida de Alciene Maria Ribeiro Leite de Oliveira, doravante dita Alciene Ribeiro, e a trajetória pouco comum de seu percurso na literatura, consideramos necessário que sejam dedicadas algumas linhas à sua história. Nascida em 22 de novembro de 1939 na zona rural de Ituiutaba, MG, Alciene Ribeiro mudou-se com a família para a cidade aos oito anos de idade, tendo, assim, oportunidade de começar a estudar. No entanto, não concluiu o ginásio – correspondente aos últimos quatro anos do segundo ciclo do Ensino Fundamental atual – durante a adolescência. Abandonou os estudos e começou a trabalhar como caixa de loja no comércio da cidade. Antes de completar 20 anos de idade, casou-se com um jovem advogado em início de carreira política, passando a ter uma intensa vida social e política. Quando seu primogênito entrou em idade escolar, decidiu voltar a estudar: concluiu o curso ginasial aos 29 anos e o Curso Normal aos 32. Em seguida,

376


ingressou no curso de licenciatura em História, que concluiu em 1976, aos 37 anos de idade. No mesmo ano, começou a publicar textos no “Suplemento Literário” do jornal Minas Gerais, periódico oficial do estado. No ano seguinte, seu conto “Vinte anos de Amélia” foi selecionado para compor a antologia de contos marginais Queda de Braço, organizada por Glauco Mattoso e Nilto Maciel, marcando a estreia de Alciene Ribeiro em livros. O mesmo conto integraria também o primeiro livro de contos de Alciene Ribeiro Eu Choro do Palhaço, ganhador do “Prêmio Galeão Coutinho” pela União Brasileira de Escritores de São Paulo como melhor livro de contos de 1978. Segundo Constância Lima Duarte, o prêmio “abriu-lhe as portas do mundo literário” (DUARTE, 2010, p. 37). Ainda que a escritora não se declare publicamente como uma mulher feminista[1], a produção literária de Alciene Ribeiro é marcada por tratar do papel da mulher, sendo as relações de gênero temática constante em sua obra. Neste trabalho, procuraremos analisar o conto “Mulher em Recesso”, publicado

377


na década de 1990 na antologia 8º Concurso de Contos Luiz Vilela. Para tanto, será realizado um paralelo entre a protagonista desse conto e a de “Vinte Anos de Amélia”, publicado primeiramente na década de 1970. Cremos que as diferenças entre as personagens

quanto

ao

papel

da

mulher

dentro

do

relacionamento conjugal podem ser relacionadas com a evolução do movimento feminista no Brasil.

A MULHER EM MOVIMENTO

Considerando o feminismo de maneira ampla, como “todo gesto ou ação que resulte em protesto contra a opressão e a discriminação da mulher” (DUARTE, 2003, p. 152), pode-se afirmar que o movimento feminista teve seu início no início do século XIX, com a busca pelo direito básico de aprender a ler e a escrever. Antes de a abertura de escolas públicas femininas ser autorizada legalmente, em 1827, as poucas opções para que

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mulheres pudessem estudar residiam em poucos conventos que guardavam as meninas para o casamento, algumas escolas particulares e o ensino individualizado. Os levantes feministas no Brasil, nessa chamada “primeira onda”, tiveram sua gênese em escritos europeus importados e traduzidos. Por volta de 1870, durante a “segunda onda”, percebe-se um grande número de jornais e revistas “de feição nitidamente feminista” (DUARTE, 2003, p. 156). Também é dessa época que surgem os primeiros relatos de brasileiras fazendo cursos universitários. No entanto, ainda que a imprensa feminista cuidasse de bendizer tais feitos, a imprensa masculina, majoritária, se manifestava ridicularizando essas mulheres. Na “terceira onda”, no início do século XX, o movimento feminista coloca em pauta o direito ao sufrágio, ao curso superior e à ampliação das possíveis áreas de atuação para a mulher no trabalho. Durante a década de 1920, além do estabelecimento de um feminismo burguês, emergiu um movimento anarcofeminista, que propunha “a emancipação da mulher nos

379


diferentes planos da vida social, a instrução da classe operária e uma nova sociedade libertária” (DUARTE, 2003, p. 160). Durante a década de 1970 surge a “quarta onda”. Em 1975 o “8 de Março” é declarado Dia Internacional da Mulher pela ONU. Durante essa onda, debateu-se – além dos direitos trabalhistas, da discriminação do sexo e do posicionamento político em relação à ditatura militar e à censura – a sexualidade, o direito ao prazer e ao aborto. “Nosso corpo nos pertence” era o grande mote, que recuperava, após mais de sessenta anos, as inflamadas discussões que socialistas e anarquistas do início do século XX haviam promovido sobre a sexualidade. O planejamento familiar e o controle da natalidade passam a ser pensados como integrantes das políticas públicas. E a tecnologia anticoncepcional torna-se o grande aliado do feminismo, ao permitir à mulher igualar-se ao homem no que toca à desvinculação entre sexo e maternidade, sexo e amor, sexo e compromisso. (DUARTE, 2003, p. 165)

A partir da década de 1990, a revolução sexual passa a ser assimilada à vida cotidiana. No estágio atual das discussões sobre gênero, no consenso da crítica feminista, não se está

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vivendo mais um tempo em que a mulher, para poder se fazer reconhecer, precisa “arrombar” portas. É verdade que hoje ela luta pela preservação de seu espaço e pelo reconhecimento de que as questões de gênero ultrapassam traços biológicos e envolvem construções sociais, histórias e culturais. No entanto, já foi traçada uma caminhada que permite à mulher se situar politicamente no universo (ALVES; SILVA, 2012, p. 2).

A MULHER EM RECESSO

No conto “Mulher em Recesso”, narrado em terceira pessoa, são apresentados flashes de um dia na vida da personagem principal, referida como “mulher”: Seis horas; Sete horas; Oito horas; Nove horas; Dez horas; Onze horas, Meio-dia; Treze horas; Quatorze horas; Quinze horas; Dezesseis horas; Dezessete horas; Ave-Maria; Dezenove horas; Jornal Nacional;

381


Vinte e uma horas; Vinte e duas horas; Vinte e três horas; Meianoite. O conto narra o dia de uma mulher casada que, após ter tido um sonho aparentemente erótico com um “músico e pintor”, ocupa-se das tarefas domésticas, tem malogrado um encontro com o homem do sonho e, depois disso, passa a se ocupar consigo mesmo. “Ela merece” (LEITE, 1999, p. 29). O marido da protagonista é retratado como grosseiro, quase grotesco: Apressa o café, que o marido sorverá entre sopros, o mau humor dos bem-amanhecidos no vinco da testa, nenhum cumprimento, a intimidade da noite dissolvida nas últimas brumas. [...] Tateia a fechadura da porta, que o homem, gordo e peludo sob a ducha, não se digna a abrir. [...] A mulher alisa o lençol onde o homem se espojara em gozos e roncos suados. (LEITE, 1999, p. 25)

É possível perceber que mesmo a representação do marido é feita de forma indireta a partir das ações da mulher, reforçando o papel dela na narrativa.

382


Nos trechos que apresentam as primeiras horas do período

matutino

desse

dia

da

mulher,

observamos

constantemente suas ações relacionadas ao universo doméstico: atende o relógio que grita; cuida de cerrar portas; apressa o café; alisa o lençol. O horário das “Nove horas”, porém, é dedicado à mulher: a casa pronta é comparada à própria mulher, que revive uma cena anterior à diegese, quando teria combinado com o artista de se encontrarem. A mulher, então, retira duas garrafas de vinho e as coloca na geladeira, em preparação para o encontro. “Onze horas”, a mulher recebe um vendedor de enciclopédias, que a mulher, paleta de pintor, compara com o artista. No entanto, “abre mão de transgredir em holocausto ao sonho” (LEITE, 1999, p. 27) e, posteriormente, leva os filhos para a escola. Nesse momento, “Meio-dia”, há uma segunda grande volta ao passado por parte da mulher, que rememora quando, anos antes, a aliança acorrentou Cinderela no anular com promessas de felicidade fundida nos dezoito quilates. Continua lá, em morno dormitar. Mas a alegria insossa da mulher quer o acre doce do vinho de plantão na Consul, o suave defumado do

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queijo provolone. Branco ou tinto, combinado com parmesão ou gorgonzola, decida-o o pintor. São apenas adornos, pretexto para a história deles ultrapassar o prefácio. (LEITE, 1999, p. 27)

No período vespertino, a mulher, bela da tarde, aguarda a ligação do artista às “Quatorze horas” para se encontrarem em seu atelier. À medida em que o tempo passa, “Quinze horas”, “os ponteiros do tempo retinem o perigo de pane ao seu vôo pirata” (LEITE, 1999, p. 28). “Dezesseis horas” e o envinagrar passa a se tornar uma possibilidade real, a mulher decepciona-se e começa a recolher os cacos da ousadia. “Dezessete horas”, e “[a]quela que busca crianças na escola dobra-se à aposentadoria do azul e branco. Ela é mera personagem de ficção” (LEITE, 1999, p. 29). Nos dois flashes seguintes, “Ave-Maria” e “Dezenove horas”, há o momento de maior tensão em relação à mudança de comportamento da mulher. Depois de perceber malogrados seus planos, “belisca nacos do sonho travestido em queijo defumado” e coloca as crianças na cama “mais cedo, por favor. Ela merece.”

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(LEITE, 1999, p. 29). Em seguida, passa um perfume e veste a “camisola mais sensual” (LEITE, 1999, p. 29). Durante o “Jornal Nacional”, “[a] voz na casa, paredes, alisa os ombros da mulher, apalpa, devassa ângulos e pelos.” (LEITE, 1999, p. 29). O músico-pintor, desta vez presente em fantasia, “tarda, mas não falta”. As horas seguintes são retratadas com a mulher deitada, assistindo à TV, sem preocupações. “Nunca fora tão bela” (LEITE, 1999, p. 30). À “Meia-noite”, o marido chega e “nem vê a bem-aventurança adormecida” (LEITE, 1999, p. 30). Diferente da mulher protagonista do conto “Vinte Anos de Amélia”, que se percebe em situação de submissão na relação conjugal e resolve ganhar a rua, a mulher de “Mulher em Recesso” parece pertencer a um outro mundo, posterior àquele. Apesar da tomada de consciência da personagem deste conto, caracterizado pela percepção do que poderia ser e subsequente mudança de atitude, a mulher de “Mulher em Recesso” desde o começo do conto já apresenta um grau de liberdade pela

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manutenção de um “segredo já polido” (LEITE, 1999, p. 25). Ademais, mesmo antes da diegese a mulher faz planos para um encontro, ainda que “casto – não sabe de maiores ousadias” (LEITE, 1999, p. 26). A constante diminuição da participação da mulher nos afazeres do lar somada ao aumento de sua (pre)ocupação consigo mesma, nesse caso, é indicativa de um alinhamento entre forma e conteúdo: a construção narrativa aponta para a libertação da mulher que será revelada ao leitor ao longo do conto, ainda que já disposta em momento pré-diegético. A mulher do conto “Mulher em Recesso” não tem sua caracterização feita de forma polar em relação à(s) figura(s) masculina(s). O marido, o artista, o vendedor de enciclopédias aparecem

na

narrativa

como

meros

figurantes:

suas

interferências são de ordem secundária. Em seu recesso, recolhido, a mulher é “mera personagem de ficção”, sua própria artista e também “bem-aventurança”.

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REFERÊNCIAS

ALVES, Carla Rosane da Silva Tavares; SILVA, Dânae Rasie da. Clarissa: reflexões sobre a personagem feminina no contexto romanesco de Erico Verissimo. Linguasagem, n. 20, 2012, p. 1-12. Disponível em: <http://www.letras.ufscar.br/linguasagem/ edicao20/artigos/artigo_008.pdf>. Acesso em: 17 jan. 2017. DUARTE, Constancia Lima (org.). Dicionário biobibliográfico de escritores mineiros. Belo Horizonte : Autêntica Editora, 2010. p. 3738. DUARTE, Constancia Lima. Feminismo e literatura no Brasil. Estudos Avançados, v. 17, n. 49, 2003. p. 151-172. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/eav/issue/view/738>. Acesso em: 17 jan. 2017. LEITE, Alciene Ribeiro. Mulher em Recesso. In: NEPOMUCENO, Luis André et al. 8º Concurso de Contos Luiz Vilela. Ituiutaba, MG: Fundação Cultural de Ituiutaba, 1999. p. 25-30.

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__________

Notas [1] Constancia Lima Duarte (2003, p. 151) aponta que, no Brasil, há uma forte resistência em torno da palavra “feminismo”. Segundo ela, “[p]rovavelmente, por receio de serem rejeitadas ou de ficarem “mal vistas”, muitas de nossas escritoras, intelectuais, e a brasileira de modo geral, passaram enfaticamente a recusar tal título.”

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ACERVO LITERÁRIO E FORTUNA CRÍTICA: UMA AMOSTRA DAS ENTREVISTAS E DEPOIMENTOS DE LUIZ VILELA

Rodrigo Andrade Pereira (CPTL/UFMS) Resumo: Ao debruçarmos sobre as entrevistas e depoimentos do escritor mineiro Luiz Vilela, percebemos a necessidade de analisarmos as “faces” construídas pelo escritor diante de seus interlocutores. Estabelecida importância e o lugar da entrevista e do depoimento diante do acervo literário do escritor, até para podermos lidar não com todos, mas apenas com os mais significativos, nos debruçaremos neste artigo em uma pequena amostragem das entrevistas e depoimentos de Luiz Vilela, algumas delas já publicadas, sendo uma ainda em arquivo digital. Tais entrevistas e depoimentos, juntando-se à outras, e são inúmeras, consistirá em uma parte do acervo literário do escritor. Palavras-chave: Acervo Literário; Luiz Vilela, Entrevistas, Depoimentos.

INTRODUÇÃO:

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Diante da oportunidade de nos debruçarmos sobre o acervo pessoal e literário do escritor mineiro Luiz Vilela, nos deparamos com uma material, que ao nosso ver, riquíssimo e que ilumina de maneira consistente, a compreensão da obra do escritor: suas entrevistas e depoimentos. Para a sociologia, e mais especificamente, para o sociólogo Erving Goffman, em seu livro A representação do eu na vida cotidiana, o ser humano, sempre que está diante de outros, expressa a si mesmo e por sua voz esses indivíduos (interlocutores), são impressionados e influenciados, por ele. Segundo o sociólogo, o indivíduo tem duas maneiras de se expressar: primeiro pelo uso proposital de símbolos verbais para veicular a informação que ele e os outros sabem estar ligadas

a

esses

símbolos,

o

que

Goffman

chama

de

“Comunicação Tradicional”. A outra forma, e mais ampla, compreende uma gama de ações que os outros deduzem que foram levadas a criar um efeito por outras razões diferentes da informação assim transmitida. Diz Goffman que “o indivíduo

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evidentemente transmite informação falsa intencionalmente por meio de ambos tipos de comunicação, o primeiro fraude, o segundo dissimulação”. (Goffman, p. 14) Erving Goffman ainda afirma que vivemos de inferências e, portanto, estamos o tempo todo regulando a conduta dos outros, e por meio dessas inferências projetamos a nossa personalidade, sob prismas sutilmente diferentes, variando conforme o(s) interlocutor(es). O sociólogo, diante desses prismas de personalidade, afirma que o indivíduo, implícita ou explicitamente, dá a entender que possui certas características sociais, e que vai usá-las, em diferentes ocasiões, de diferentes formas, provocando diferentes efeitos diante desse interlocutor. Tais características podemos chamar de face pública, e não máscaras, como se costuma usar, pois são características inerentes ao ser humano, por vezes usada naturalmente, ou por vezes sutilmente dissimuladas. O estudioso explica que em determinadas situações de interação, o indivíduo cria “fantasias” nas quais ocorrem

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situações de exposição, em menor ou em maior grau. “Contamse e repetem-se anedotas do passado – reais, enfeitadas, ou inventadas – pormenorizando rupturas que de fato ocorreram, quase ocorreram ou que ocorreriam e foram admiravelmente solucionadas”. A face pública do escritor, ao nosso ver, se encaixa perfeitamente em tal definição, pois o tempo todo, seja em entrevistas e depoimentos, ou em sua obra ficcional, ele “cria fantasias”, pois é delas que se estrutura a sua ars poética. É

nessas

interações,

sobretudo

em

entrevistas

e

depoimentos, que o escritor se vale de inúmeros recursos, incluindo “narrativas”, mas ficcionais ou não, para construir uma face ficcional, característica, segundo Goffman, inerente à qualquer ser humano, diante dos seus interlocutores, a fim de “vender” o seu produto e fazer com que o leitor “embarque” cada vez mais em suas histórias ficcionais, impulsionado pelo prazer criado ao ouvi-lo falar de seus livros, de sua obra, de seu projeto ficcional. Por isso é instigante, e se faz necessário, percebermos e analisarmos essas “faces” construídas pelo

392


escritor, e no nosso caso, Luiz Vilela, diante de seus interlocutores. Estabelecida importância e o lugar da entrevista e do depoimento diante do acervo literário do escritor, até para podermos lidar não com todos, mas apenas com os mais significativos, nos debruçaremos neste artigo em uma pequena amostragem das entrevistas e depoimentos de Luiz Vilela, algumas delas já publicadas, sendo uma ainda em arquivo digital. Tais entrevistas e depoimentos, juntando-se à outras, e são inúmeras, consistirá em uma parte do acervo literário do escritor e, pretendemos assim, preencher uma lacuna em sua fortuna crítica, com a catalogação e análise desse importante material.

ACERVOS LITERÁRIOS

Sobre a importância da preservação das memórias do escritor encontradas nesses arquivos, a professora da UFRGS

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Maria Luiza Ritzel Remédios, em seu artigo “O empreendimento autobiográfico”, ao analisar os acervos literários de Josué Guimarães e Érico Veríssimo, afirma que “o ato de criação literária não é somente pensado, ou impelido pelo inconsciente, é também produto de uma conjuntura sócio histórica sob o influxo

de

pressões

econômicas

e

tradições

culturais”

(REMÉDIOS, 2004, p. 280). Ela diz ainda que a obra literária possui um sujeito-autor mergulhado na linguagem, que lhe possibilita não só expressar seus sentimentos e ideias, mas também, através da memória, através dos seus guardados, sobretudo literários, voltar ao passado, projetar-se ao futuro pela imaginação e dialogar consigo mesmo, através do cruzamento do seu discurso, enquanto autor, com sua obra, enquanto ficcionista. Remédios aponta que Nas histórias de vida, o sujeito-autor em constante diálogo, mergulha na linguagem por meio da qual expressa suas ideias e sentimentos, mas também define sua identidade e o valor artístico do texto criado a

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partir da relação eu-outro que atesta a ficcionalidade das expressões do eu. (REMÉDIOS, 2004, p. 280).

Ela ressalta a importância das fontes literárias, sobretudo aquelas guardadas pelo próprio autor, pois fornecem o suporte material que dá permanência ao tempo e às condições espaciais. Esse material, segundo ela, utilizado pelo artista (lembranças, sonhos, histórias particulares ou coletivas, escritos próprios ou alheios, entrevistas, correspondências e/ou depoimentos), pertence às fases, ora de gestação e de produção da obra literária, ora de retorno por parte do público, especializado ou não, da recepção da própria obra, tudo isso aponta para condições de vida e de criação de determinado autor.

ENTREVISTAS E DEPOIMENTOS

O professor Rauer Ribeiro Rodrigues, em seu artigo “Fortuna Crítica: Proposta para um Taxonomia” (RAUER, 2013,

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p. 23-37), assim define o depoimento: “texto de redação do escritor ou elaborado a partir de fala do escritor, no qual ele trata de sua obra, de sua vida, de sua época ou da literatura em geral” e entrevista: “diálogo em forma de pergunta e resposta, às vezes apresentado como narrativa, em que o autor estudado responde a perguntas”. (RAUER, 2013, p. 32). Poucos estudiosos insistem em considerar a entrevista como resultado de técnicas elaboradas de coleta e difusão de informações. Valorizada por escritores como Borges, Ricardo Piglia, Silviano Santiago e Gabriel Garcia Marques, a entrevista chega a ser considerada, conforme depoimentos desse último, como a “fada madrinha”, o “gênero mestre” que abastece todos os outros gêneros. Muitos escritores veem a entrevista com receio, pois consideram muitos entrevistadores despreparados para tal. Antes da década de 70, o acesso ao escritor era realizado predominantemente através das correspondências, depois de 70, com a popularização da entrevista, esse acesso se tornou mais

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intenso. A entrevista passou a ser considerada como instância privilegiada de intervenção do intelectual no campo da cultura. Trata-se do lugar onde se constrói sua assinatura, sua imagem, onde se amplifica sua fala, se propagam suas ideias e se assumem posições na arena conflitiva da política, do mercado de bens simbólicos e até análises da própria obra. Segundo a professora Rachel Lima, A entrevista é a maneira pela qual o artista pode burlar o mercado. O diálogo do leitor brasileiro com a obra, sobretudo com a ficção contemporânea, é praticamente inexistente. Ele pode ser, quando muito, levado a ler os clássicos, ou os grandes autores modernistas. Mas ler um autor contemporâneo é coisa rara: o leitor não tem dinheiro, e ao mesmo tempo a nossa cultura é uma cultura que tende a ser oral e não escrita. A entrevista, para mim, tem importância, porque você pode tornar explícito o que está implícito na realização artística. Sendo entrevistado, posso passar uma mensagem que será escutada, assumida por pessoas que nunca me viram e nunca me leram e possivelmente nunca lerão livros meus.

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Então, a entrevista, qualquer que seja o meio, tem uma função social enorme no Brasil (LIMA, 2011, p. 37 e 38).

Lima acrescenta, citando Silviano Santiago, que “A entrevista, segundo Santiago, pode ser vista como um lugar para se questionar as visões dicotômicas que opõem subjetividade e objetividade, história privada e pública, memória individual e coletiva” (LIMA, 2011, p. 39). Entrevistas e depoimentos são também peças ficcionais, na medida em que o autor constrói uma autoimagem simbólica que condiz com a visão que tem de si mesmo e do mundo, que corresponde a uma visão particular entre as muitas visões possíveis sobre aquele autor. Segundo Pauliane Amaral, em entrevistas e depoimentos, o escritor estabelece um pacto autobiográfico, em que o autor propõe um discurso sobre si, focalizando sua história individual, em particular a história de sua personalidade, e é nesse ponto, ao nosso

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ver, crermos ver essa personalidade refletida em sua obra. Uma realização particular desse discurso, na qual a resposta a pergunta ‘quem sou eu’, consiste uma narrativa que diz como ‘me tornei assim’ (AMARAL, 2013 p. 119).

Ainda segundo Amaral, “a imagem do autor que surge da reunião de textos (ficção, fortuna crítica, ensaios, escritos íntimos, prefácios, etc.) também exerce influência sobre a leitura do romance autobiográfico, dilatando a fruição do leitor”. (AMARAL, 2013, p. 121). Nosso objetivo é ver essa imagem do autor produzida por ele mesmo em entrevistas e depoimentos, e de como essa imagem produzida importa na compreensão da sua obra. Segundo Marques, em suas entrevistas, montando um arquivo pessoal, por exemplo, o escritor alimenta sua imagem autoral, podendo fetichizar sua assinatura, tarefa em que haverão de se consorciar também pesquisadores, críticos e arcontes de arquivos literários (MARQUES, 2012, p. 85). Uma via de mão dupla une obra e vida, autor e escritor, num jogo

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recíproco de influências e contaminações. Em seus arquivos pessoais, os escritores passam a abrigar também os rastros de sua atividade escriturária. Em entrevistas e depoimentos, o escritor cria narrativas possíveis de uma história da sua formação literária, já acontecida, ou ainda por acontecer.

ENTREVISTAS E DEPOIMENTOS

No começo de sua carreira Luiz Vilela concedeu algumas entrevistas, mas foram poucas, sempre em decorrência da ocasião de lançamentos de seus livros.Eram entrevistas curtas, de respostas curtas, sempre indo “direto ao ponto”. Nos últimos anos essas entrevistas ocorreram com mais frequência e as respostas foram ficando cada vez maiores, sempre com algumas digressões, pequenas histórias que ele conta para exemplificar uma ideia. No blog do grupo de pesquisa GPLV podemos encontrar duas entrevistas em vídeo, uma para a TV Senado e

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outra para TV Câmara. No blog, há também apenas um depoimento de Vilela, dado à Miguel Sanchez Neto. Um dos nossos trabalhos é alimentar o blog com todas as entrevistas de Vilela, separando-as assim em entrevistas televisionadas, publicadas em revistas e/ou jornais e as que ainda se encontram apenas em meios digitais, bem como os depoimentos. Nesse artigo nos ateremos à três entrevistas, a que foi concedida à TV Câmara, em meio televisionado, a outra que se encontra no livro Um escritor na biblioteca publicado pelo Governo do Estado do Paraná, pela Biblioteca de Curitiba e uma das mais recentes, concedida ao blog da Editora Saraiva por ocasião do lançamento do livro Você Verá. Tais entrevistas, juntamente com as demais, consistirão uma parte importante do acervo literário, e a análise delas nos permitirão observar uma faceta do escritor, enquanto homem e enquanto produtor do texto literário. A entrevista dada à Inimá Nunes, para o programa Sintonia da TV Câmara, em 2005, trata sobretudo da véspera de

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publicação da novela Bóris e Dóris e do romance Perdição, e por ocasião da participação de Vilela no Café Literário da Feira do Livro em Brasília. Inimá começa a conversa com Vilela abordando o fato dos artistas, no modo geral, morarem no eixo Rio-São Paulo, mas para um escritor há a possibilidade de morar em uma cidadezinha do interior, e pergunta a Vilela como ele se sente morando e escrevendo no interior e se não sente falta dos aspectos culturais que uma cidade grande pode oferecer. Vilela responde que não sente falta, que Ituiutaba é excelente para escrever, e supre as necessidades culturais sempre que é chamado para uma palestra nas capitais. Em seguida, o entrevistador fala do livro O inferno é aqui mesmo, decorrente da experiência de Vilela como jornalista no Jornal da Tarde. Vilela frisa o fato de nessa época nesse jornal ter uma “geração brilhante de mineiros” e sempre havia “o mineiro da semana”, fato retratado ficticiamente no conto “Um rapaz chamado Ismael”, da coletânea O fim de tudo, recentemente reeditada pela Editora Record.

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Vilela, ao comentar sobre o romance, disse que o mesmo lhe causou alguns problemas pelo fato de retratarem “pessoas reais”, o que desagradou a muitos. Ressaltou a falácia de alguns críticos que diziam que o inferno do título era O Jornal da Tarde ou até mesmo a cidade de São Paulo. Luiz Vilela afirma que o título é uma metáfora para a condição humana. Na segunda parte da entrevista Vilela é questionado por Inimá quanto à sua preferência em escrever, contos, novelas ou romances? Vilela disse que gosta dos três e que não se considera um contista, um novelista ou um romancista, mas afirma “sou um ficcionista”. Inimá Nunes relembra que nos anos 70 e 80 Vilela fez muito sucesso com contos para jovens e em seguida conversam sobre a fronteira nos gêneros, e Vilela afirma que o conto é o gênero mais difícil de escrever e que deve ser algo o mais sintético possível e foi convidado a trabalhar no jornal por ter um estilo jornalístico e ressalta a influência da escrita de Graciliano Ramos em sua obra, sobretudo no estilo sintético de escrever.

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Quando questionado sobre quais concelhos ele poderia dar um escritor que queira ser contista, Vilela recomenda apenas que escreva e leia muito, sobretudo leia muito bons contistas. O entrevistador relembra, em seguida, de uma entrevista que fez com o escritor há dez anos, e que Vilela dizia que relia os seus contos em voz alta, em pé, deitado e andando. Vilela disse que ainda continua fazendo isso, lendo, de diversas formas, aquilo que escreveu para ele mesmo, sobretudo os diálogos. Por fim, na terceira e última parte da entrevista, Vilela comenta a sua participação no Programa de Escritores nos EUA, onde foi muito proveitoso, pois foi lá, com bastante tempo para escrever que ele terminou o seu primeiro romance Os Novos. E por fim, afirma não ter interesse pela literatura fantástica e nem pelos romances históricos, e afirma “Tudo o que escrevo é muito ligado à minha realidade e das pessoas que me rodeiam.”, mas enfatiza que “a realidade é um trampolim para a ficção”. Em 2012, o jornal “Cândido” da Biblioteca Pública do Paraná realizou uma série de entrevistas em formato de “bate-

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papo” intituladas de “Um escritor na biblioteca”, em novembro deste ano foi a vez de Luiz Vilela, mediada pelo escritor Miguel Sanches Neto. O “bate-papo” foi dividido em várias partes temáticas. A entrevista, como as outras dessa série, abordando a primeira biblioteca, que para Vilela foi a da sua casa, pois, segundo ele, todos em sua casa liam muito, mas cada um tinha seus interesses de leitura, portanto era uma biblioteca diversificada, o que só confirma a quantidade e qualidade de leitura que Vilela teve na infância. Dessa quantidade de leituras nasceu a vontade de escrever, como diz ele “de contar as próprias histórias”, assim, no início, compara a sua escrita com a de escritores que admira, até descobrir sua própria voz. Relata que quando menino brincava com uns bonecos, criando mundo e histórias para ele, hoje, segundo Vilela, “a literatura é minha brincadeira de adulto”.

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Estreou na literatura aos 14 anos com a publicação de contos nos jornais de Ituiutaba, e segundo ele, suas primeiras e maiores influências foram Dalton Trevisan e Hemingway. Com a mudança para Belo Horizonte conheceu Os Novos e então houve a criação da revista Estória, que segundo o autor, era considerada pelos críticos norte-americanos como uma das melhores revistas literárias da América Latina. Também nesse período publica em uma editora modesta, a “grafiquinha” com “g” minúsculo, o seu primeiro livro, e com este, Tremor de Terra, ganha o Prêmio Nacional de Ficção. A conversa passa a tratar da experiência de Vilela no Jornal da Tarde, que o inspirou a escrever o romance O inferno é aqui mesmo, romance que foi muito criticado, por se tratar, na visão dos críticos, de uma “vingança pessoal”. Um dado interessante, revelado por Vilela, é que quando foi trabalhar no jornal, já havia ali muitos mineiros, e falavam que sempre havia o “mineiro da semana”. Sobre Inferno é aqui mesmo, Vilela afirma que “em termos simbólicos, que [o inferno do título] é o inferno

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da condição humana, do relacionamento das pessoas, da solidão, da falta de amor”, um pré-conceito contra o livro, de gente que leu superficialmente o livro ou só leu o título, segundo Vilela, fato que também ocorreu com Os Novos. Quando questionado sobre o seu método de escrever, Luiz Vilela é categórico, como em todas as suas entrevistas: “eu realmente não fico pensando sobre meu trabalho como escritor” e afirma ainda que se observarmos bem e compararmos os primeiros contos com os últimos “há uma mesma linha de narração, de palavras, de textos, de construção”. O tópico seguinte foi sobre o romance recém-publicado Perdição, que, conta Luiz Vilela, partiu de um convite para escrever um conto sobre um dos doze apóstolos, e que de conto virou novela e de novela virou romance, como bem disse ele “histórias que puxaram outras histórias”, procedimento, ao nosso ver, recorrente na obra de Vilela. Volta a falar sobre as leituras que o formaram escritor, de Shakespeare a Dalton Trevisan, que ao ler o escritor curitibano

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pensou: “esse cara escrevediferente de todo mundo que eu li até agora”, por isso, segundo Vilela, os primeiros contos foram fortemente influenciados por Trevisan. Comenta, por fim, que prefere escrever à noite, depois da meia-noite, pois não gosta de escrever com barulho e que não tem tempo para ler os contemporâneos, apesar de receber muitos livros. Em uma das suas últimas entrevistas, para o blog da Editora Saraiva, por conta do lançamento da coletânea Você Verá, Vilela nos entrega uma entrevista curta, mas uma das mais elucidativas quanto aos temas e procedimentos narrativos presentes em sua obra. O jornalista Zaqueu Fogaça é feliz em apontar e fazer as perguntas certas sobre os temas recorrentes na obra de Vilela e principalmente nesse último livro. Observa que Vilela usa a simplicidade do vocabulário e a arguta observação do cotidiano como “matéria para cristalizar sua prosa”. Aponta também para o fato de a maioria das narrativas do livro ser de encontros cotidianos e inesperados.

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Vilela diz que os contos de Você Verá, foram escritos ao longo de dez anos, logo após a publicação do livro A cabeça, seu penúltimo livro de contos, e que ao longo desse período, publicou a novela Bóris e Dóris e o romance Perdição. Questionado sobre a escolha do gênero, pergunta recorrente feita a ele, sobre a fronteira dos gêneros, até pelo fato dele transitar pelos três, o conto, a novela e o romance, Vilela responde que “o gênero é sempre definido no início do trabalho”, mas há casos em que há uma mudança, como foi o caso do romance Perdição, cujo procedimento já foi apontado por Vilela na entrevista analisada acima. O escritor Luiz Vilela afirma que parte sempre de uma ideia para começar a escrever, sem ela, afirma ele, não se consegue fazer nada, e à medida que a narrativa avança, outras ideias vão surgindo, às vezes anulando a ideia original, “é imprevisível”, diz ele. Quando

questionado

por

Fogaça

sobre

a

forte

aproximação dos diálogos com a oralidade, e de como Vilela

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consegue obter a verossimilhança neles, o escritor afirma que parte sempre da observação da realidade e depois tem um árduo trabalho de depuração e lapidação. E por fim, Fogaça observa à Vilela que nas narrativas do livro sempre há um confronto entre o presente e o passado, e Vilela arremata: “O mundo está em constante movimento e isso provoca mudanças nas vidas das pessoas, com várias consequências”, um tema, segundo o escritor, recorrente em sua obra, desde o primeiro conto publicado quando tinha 14 anos. Vilela possui inúmeras outras entrevistas e depoimentos, que analisaremos em outros artigos e na tese final de doutorado, sendo essas três apenas uma pequena amostragem do pensamento do escritor, de sua trajetória contada por ele, muitas vezes, segundo Goffmann, criando performances de si mesmo, é verdade, mas, ao nosso ver, revelando, mesmo que parcamente, alguns aspectos de sua escrita e de como vê o mundo e a literatura.

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Referências: AMARAL, Pauliane. A função-autor no roman à clef : Um estudo sobre personagem e narrador em O inferno é aqui mesmo, de Luiz Vilela. Campo

Grande, 2013, 177 fls. (Dissertação de Mestrado, Estudo de Linguagens) — CCHS / UFMS. Orientador: Rauer Ribeiro Rodrigues

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POJO, Eliana Campos; RIBEIRO, Joyce Otânia Seixas; SOUSA, Rosângela do Socorro Nogueira de (Orgs.). A Pesquisa no Baixo Tocantins: Contribuições Teórico-Metodológicas. Curitiba: CRV, 2013. REMÉDIOS, Maria Luiza Ritzel Remédios. O empreendimento autobiográfico. In: As pedras e o arco – fontes primárias, teoria e história da literatura. ZILBERMAN, Regina. (org.) Belo Horizonte, Editora UFMG, 2004. VILELA, Luiz. Um escritor na biblioteca: Luiz Vilela. Curitiba: Cândido – Jornal da Biblioteca Pública do Paraná; n. 16, p. 5 – 9, nov. 2012. Entrevista concedida a Miguel Sanches Neto. VILELA, Luiz. Entrevista. TV Câmara, 2005. (Entrevista a Inimá Simões, "Sintonia", em 19 set. 2005). VILELA,

Luiz.

Entrevista. www.saraivaconteudo.com.br/entrevistas. Março de 2014. (acesso em 15/06/2016).

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O NIILISMO EM “AXILAS E OUTRAS HISTÓRIAS INDECOROSAS”, À LUZ DO PENSIERO DEBOLE Ronaldo Vinagre Franjotti (CPTL/UFMS) Resumo: A presente comunicação visa discutir o volume de contos “Axilas e outras histórias indecorosas”, do carioca Rubem Fonseca, especificamente no que tange ao aspecto do niilismo presente na obra, correlacionando-o com a obra do filósofo italiano Gianni Vattimo. O principal conceito da obra do pensador italiano é a noção de pensiero debole (pensamento fraco/débil). A nomenclatura peculiar se refere a um enfraquecimento do pensamento, e da própria noção de finalidade da filosofia na contemporaneidade. Esse enfraquecimento das noções absolutas da verdade filosófica é uma marca da flexibilidade moral e ideológica do século XX, quando, a partir do materialismo histórico, dentre outras correntes, decretou-se a morte da metafísica. Esse arcabouço teórico pode iluminar a supracitada obra de Fonseca pois ela, em sua pluralidade existencial e moral, propõe justamente essa aniquilação da verdade como conceito absoluto, elegendo novos conceitos ou mesmo recuperando valores agora desprezados. Palavras-chave: Niilismo; Pensiero Debole; Rubem Fonseca; Gianni Vattimo; Conto.

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Introdução O século XX foi marcado por vários eventos grandiosos, houve duas grandes guerras e centenas de conflitos menores que marcaram violentamente sua passagem. No campo da Literatura e da Filosofia não foi diferente. Enquanto na Filosofia todos os sistemas metafísicos entram em crise, Nietzsche proclama a morte de Deus e Heidegger o fim da Metafísica e da Filosofia, a Literatura, assim como as artes plásticas, recebe um sopro de inovação na forma e no conteúdo. É fácil perceber essa relação histórica quando apresentamos autores como Dostoiévski, indissociável da Rússia pós-marxismo, e Rubem Fonseca, impensável sem a liberdade pós-ditadura no Brasil. Durante esse amplo recorte, no campo da Filosofia, os grandes expoentes que nortearam as reflexões e embasam a proposta de Vattimo, segundo Rossano Pecoraro (2005, p. 9), são Nietzsche, Heidegger, Gadamer e Dilthey e, através da leitura de

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suas produções, Vattimo interpreta a história da metafísica como um progressivo enfraquecimento do Ser, logo, de suas noções de verdade. Vattimo nomeia esse conceito como pensiero debole, Pecoraro (2005, p. 10) defende que a melhor tradução para a expressão seria pensamento fraco, visto que os termos “frágil” e “débil” possuem uma carga pejorativa indissociável que não condiz com o conceito-chave. Sendo assim, optou-se pela escolha de Pecoraro visto ser ele um dos grandes pesquisadores e divulgadores da obra do filósofo italiano (sua obra de referência possui posfácio do próprio Vattimo). Rubem Fonseca é um dos escritores mais festejados pela academia, e um dos mais prolíficos, vem produzindo contos desde os anos 60 e seu primeiro romance saiu em 1973. A grande marca de sua obra é definida por Schnaiderman (1994, p. 774) como um conjunto polifônico de cultura e barbárie. Seguindo essa tradição de chocar os leitores e a sociedade em geral (talvez não mais seus leitores, habituados já), Rubem lança em 2011 o volume de contos Axilas e outras histórias indecorosas. Mesmo

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se a cultura que os narradores de Rubem exalam em seus contos contrasta com sua barbárie, pode-se vê-la como um reflexo da sociedade brasileira pós-moderna e esse aspecto, pretende-se demonstrar, revela uma postura niilista. Como há no volume escolhido para análise treze contos, optou-se por um recorte de apenas seis histórias a fim de não se ultrapassarem os limites propostos a esse artigo. Portanto, os títulos escolhidos são: Sapatos, Bebezinho lindo, Intolerância, O ensino da Gramática Confiteor e Amar seu semelhante. Outro fator decisivo no recorte dos contos foi a leitura do trabalho de Alana Vizentin. A estudiosa dissertou sobre esse volume e dividiu as narrativas em grupos a fim de melhor classificar e analisar suas especifidades. Os contos selecionados para análise neste artigo compõe o que Vizentin (2013, P. 70) chamou de “narrativas de exclusão e intolerância”. São narrativas que apresentam personagens marginais e casos de intolerância, temas facilmente relacionáveis com o niilismo onipresente na pós-modernidade.

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Desenvolvimento O primeiro conto a ser analisado é “Sapatos”, narrado em primeira pessoa de forma linear. O narrador não diz seu nome mas fornece dados suficientes para que se compreenda quem ele é onde ele se insere na sociedade brasileira contemporânea, tratase de um excluído, um pobre e desdentado rapaz que não consegue arranjar emprego devido a sua má aparência: Não está fácil arranjar emprego. Topo fazer qualquer coisa, mas sei que tenho problemas, como esse dente faltando na frente, um buraco feio que sei que causa uma impressão ruim. As pessoas que conheço perderam dentes lá de trás da boca, eu fui perder logo o da frente. (FONSECA, 2011, p. 09)

Os excluídos representam uma grande parcela de personagens de Rubem Fonseca, dentre eles, podemos citar o célebre narrador do conto “O cobrador”, de um volume homônimo de contos. O que diferencia personagens como o

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cobrador do narrador de “Sapatos” é que este não apela para a violência enquanto aquele se revolta contra a sociedade e empreende uma jornada assassina. Para pensar o niilismo, há de se partir das quatro categorias de niilismo que Deleuze classifica a partir da obra de Nietzsche: negativo, reativo, passivo e ativo. Esses narradores anônimos e excluídos de Fonseca dividem-se em duas categorias, aqueles que optam por erigir-se à categoria de seus novos ídolos, tomando o lugar deixado pela morte de Deus e da metafísica, seriam niilistas reativos, já aqueles que se esvaziam da vontade de poder e sucumbem ao sistema vazio e sem sentido são niilistas passivos. O cobrador é reativo, ele se torna seu próprio Deus, juiz, júri e executor da sociedade que o excluí. O narrador de “Sapatos” é passivo, apesar de sua indignação frente as injustiças desse mundo, topa jogar o jogo que lhe é imposto. Ele acredita que, apesar da péssima aparência, se conseguisse belos sapatos e não sorrisse, conseguiria um emprego. Sua chance aparece quando a mãe, uma simples doméstica, surge com um lindo par

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de sapatos de couro, importados. Ela alega que eles machucavam muito os pés de seu patrão e que ele lhe dera o calçado quando ela falou da necessidade do filho. Dá-se então uma espécie de mini-epopeia do narrador para fazer com que os sapatos lhe sirvam. Assim como ao dono original, eles lhe apertam os dedos e machucam-lhe os pés. (FONSECA, 2011, p.10-11). O desfecho da narrativa é agridoce, o que se pode configurar quase como uma exceção visto que as narrativas de Rubem Fonseca – em sua maioria – possuem amargos e chocantes finais, o narrador consegue usar os sapatos e é admitido em uma vaga de emprego. No entanto, no dia seguinte, é levado à delegacia onde encontra a mãe e o patrão. Ela mentira, roubara o calçado. Apesar do tenso e agressivo diálogo que se processa (FONSECA, 2011, p. 13), que Vizentin (2013, p. 74) descreve como uma sequência de elementos simbólicos que visam narrar a relação de poder existente, ao notar que o narrador “amansara” os sapatos, que, de fato, machucavam os pés do patrão, este se sente tocado de alguma forma, abandona a

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queixa, deixa os sapatos com o narrador e recontrata a senhora. Vale ressaltar que se tudo “termina bem”, isso se deve à benevolência do patrão, o narrador encarna perfeitamente o niilista passivo, nada espera, nada sofre, apenas sobrevive em meio à margem. Na narrativa “Bebezinho Lindo”, a trama é narrada em primeira pessoa e, apesar de anônima, de pronto se vê que a narradora encarna um estereótipo: a mãe. Essa mãe, como se pode dizer do estereótipo mãe/mulher em nossa sociedade patriarcal, assume uma postura niilista negativa no início do enredo. Seu sonho de ser mãe e dona de casa, grande motor metafísico de sua vontade de potência, desmorona quando o primeiro e único filho que terá nasce com problemas de saúde (pela descrição física e associação ao aspecto rechonchudo, deduz-se que ele tem síndrome de Down). Ela então é abandonada pelo marido que vê na mulher a raiz do mal e se isenta de responsabilidade: “Quando Dudu nasceu e Gabriel soube do seu problema de saúde, disse que o menino tinha

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herdado aquela doença de mim, na família dele todos eram saudáveis e eu tinha uma irmã doente.” (FONSECA, 2011, p. 18). Mãe e filho ficam entregues à própria sorte, ainda assim, na medida do possível, ela tenta acalentar o sonho de se casar novamente e constituir família, uma típica postura niilista negativa. No entanto, a realidade se impõe, nenhum pretendente a aceita ao saber do filho problemático e eles terminam sós. Frustrada, ela passa da postura negativa a uma postura niilista passiva: contenta-se em admirar o aspecto aparentemente sadio do menino bochechudo – um bebezinho lindo. Infelizmente, a realidade objetiva se impõe novamente: As mudanças sofridas por Dudu eram desanimadoras. Cada vez falava mais alto, mais nervoso. Quando fez trinta anos era um homem gordo, careca, feio. Eu também ficara feia, cadavérica, não tingia mais meus cabelos que haviam ficado completamente brancos. (FONSECA, 2011, p. 20)

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Além das mudanças supracitadas, Dudu se torna, em parte devido à rejeição da mãe, em parte por conta do esquecimento

da

sociedade,

paulatinamente

violento

e

desagradável. A relação entre os dois ganha contornos trágicos e certo dia, durante um ato de agressividade de Dudu, a narradora o esfaqueia. Apesar da brutalidade e aparente monstruosidade do crime da narradora, conforme assinala Vizentin (2013, p. 76), “o desatino da mãe que assassina o próprio filho é construído de tal maneira que não choca o leitor”. Assim como não choca o final da narrativa quando, após a tragédia, a mãe retoma sua postura niilista negativa, imerge de novo no sonho de sua maternidade:

Lavei meu rosto na pia, enquanto Dudu continuava caído, sem respirar, uma poça de sangue em volta do seu peito. Depois de enxugar as mãos e o rosto fui até o quarto, abri a gaveta e peguei uma foto do Dudu, o bebezinho mais bonito do mundo. Fiquei olhando para a foto, longamente, enquanto meus olhos se enchiam de lágrimas. (FONSECA, 2011, p. 21)

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O terceiro conto a ser comentado é “Intolerância”, novamente tem-se aqui um narrador anônimo de primeira pessoa. Em poucas palavras, trata-se de um sociopata que encarna o estereótipo do machista. Ele narra suas desventuras amorosas e descreve como começou a “se livrar” das companheiras que não lhe agradavam mais – assassinando-as. Podemos ver nele um niilista reativo pois ele, na ausência de qualquer preceito moralizador (Deus), coloca-se como centro de sua existência e acaba por tornar-se seu único parâmetro moral. A primeira parceira que padece em suas mãos é Gisleine, o nome curiosamente grafado é uma clara menção à classe social da moça e do próprio narrador, excluídos. Ao descrevê-la (FONSECA, 2011, p. 108), o narrador apela para seus defeitos – ver telenovelas, querer sexo ao acordar e não cuidar da própria forma física – como forma de justificar sua atitude. Nesse novo sistema moral erigido por ele, as mulheres

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são mercadorias, tanto que ele cria um padrão para a seleção das futuras candidatas:

Então resolvi arranjar outra dona, eu não sou exigente, ela tinha que ter bunda bonita, magra, peito pequeno e bons dentes, podia ser feia, beleza não põe mesa, dizia o meu avô, e ele sabia das coisas, podia ser burra, eu também não sou lá muito inteligente, podia até ser analfabeta – não analfabeta não podia ser. (FONSECA, 2011, p. 109)

O anseio niilista reativo do narrador só pode ser preenchido caso ele encontre uma moça que corresponda ao molde preestabelecido, ele encontra: Daiana. Infelizmente, a nova amada repete em tudo os moldes da primeira companheira, o que pode ser visto como uma massificação do feminino e que podemos relacionar ao fato da maioria das pessoas se enquadrarem na categoria de niilistas passivos – elas simplesmente anda ao sabor da maré, consumindo o que a propaganda sugere e pensando o que a mídia expõe. Incapaz de

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se relacionar verdadeiramente com a nova amada, o narrador a assassina também. Os crimes não são notados e o narrador não é punido, mais um sinal da massificação niilista da sociedade pósmoderna, o que Hanna Arendt chamou de banalidade do mal – a trivialização da violência. Na

quarta

narrativa

selecionada,

“O

ensino

de

Gramática”, vê-se um outro lugar-comum nos contos de Rubem Fonseca, a narrativa por meio de um diálogo/discussão. Trata-se de um casal que discute temas aparentemente aleatórios até chegar a uma grande revelação. A discussão começa quando um dos personagens pergunta o porquê da aparente tristeza do cônjuge. Diante de uma resposta evasiva, a conversa começa a ficar tensa e passa pela gramática da língua portuguesa, usada como arma de ofensa, e por uma avaliação da vida sexual do casal (FONSECA, 2011, p. 85-86). Com o enfraquecimento das verdades metafísicas, as pessoas precisam erigir novos valores e conceitos a partir de sua experiência a fim de se tornarem, como diria Nietzsche, super-

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homens, intérpretes de sua realidade. Nesse conto vemos que a relação amorosa, desgastada em seu tradicional valor metafísico, dá lugar a um vazio sufocante que permeia a discussão e que vai crescendo até seu ápice quando um dos personagens ameaça abandonar a relação. Vattimo (2016, p. 26) defende a noção de que a verdade é uma construção subjetiva, não pode ser fruto de um consenso, por isso a importância de um pensamento fraco segundo o qual não se procure exercer esse poder de verdade sobre o outro. Uma espécia de construção coletiva de niilismo ativo. É o que ocorre com o casal após a revelação de que um deles está com câncer de pulmão. Eles deixam de lado duas verdades e se unem ternamente:

Então deixa de ficar triste. Tenho uma razão. Já estou com câncer. Jura? Juro. Pulmão. O cigarro. Meu amor, vou cuidar de você. Mas antes me ensina gramática. (FONSECA, 2011, p. 87)

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A quinta história possui um nome em latim “Confiteor”, confissão, tanto o significado do título (que remete a um sacramento) quanto o fato da língua ser o latim, idioma oficial do catolicismo até hoje,

sugerem uma ligação com a Igreja

católica. É apenas mais uma tirada irônica do narrador, novamente um anônimo na primeira pessoa, trata-se de um advogado que decide confessar suas taras sexuais e o estranho rumo que suas relações tomaram.

Enquanto fodíamos, dei um tapa na cara de Camila. Confesso que não gostei, na verdade quase brochei. Ao escrever esta confissão faço uma pausa aqui. Brochei ou broxei? Confesso que a nova ortografia me confunde um pouco. Por exemplo: o trema, quando se deve usá-lo? E o acento diferencial? Pêra pera, péla pela, pára para, pêlo pelo, pólo pólo. Se alguém me perguntar aonde vou por um troço e eu responder “vou pô-lo aqui” as pessoas vão me entender? Só se eu estiver em Portugal. E o acento circunflexo? E o acento agudo? Estou tergiversando, eu sei, mas esse é um problema que sempre me ataca quando escrevo, extravio-

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me em rodeios inúteis. Onde eu estava mesmo? A confissão, sim sim, a minha confissão. Aliás, que tipo de confissão é a minha? (FONSECA, 2011, p. 194)

É fácil perceber a fragilidade mental do narrador através do trecho acima, ele oscila entre revelar seu segredo e tergiversa sempre que pode para escapar a esse fado.

Camila

foi

a

primeira amante do narrador que “pediu para apanhar”, iniciando-lhe assim no sadismo. O narrador é provocativo ao banalizar sua relação sadomasoquista e lembra a máxima de Nelson Rodrigues: “Nem toda mulher gosta de apanhar, só as normais”. Novamente tem-se no narrador um niilista reativo, especificamente alguém que idolatra o hedonismo. Contrariado no início da relação com Camila, via com estranheza a necessidade da moça de ser sodomizada, o narrador vai “pegando gosto pela coisa” e as relações adquirem cada vez mais violência e prazer. Para o niilista reativo não há limites ao que se pode fazer em prol do que dá sentido à sua existência,

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Nietzsche dizia que o ser humano, se encontrar sentido, se torna capaz de suportar qualquer sofrimento, físico ou moral. A torpeza do sexo atinge seu grau máximo, não por acaso, quando o prazer também o faz: Certas ocasiões eu batia nela com tal violência que Camila tinha que permanecer na minha casa, pois ficava com o rosto inchado. Então passei a bater no corpo de Camila, e um dia – se isto aqui é uma confissão eu tenho que falar a verdade -, um dia bati com tanta violência que lhe quebrei uma costela. Estão chocados? Então preparem-se para o que vem agora, a minha descoberta do Orgasmo Máximo. Como ocorreu? Foi no dia em que eu matei Camila durante a cópula: enquanto ela agonizava, morrendo estrangulada por mim, eu gozei com um imensurável ardor. Claro que algum tempo depois, quando passou o meu longo gozo, percebi que tinha um problema sério de logística para resolver: como livrar-me do cadáver. Qual foi a solução que encontrei? Jogando-o no mar. Desistam, não vou ensinar a ninguém o meu macete, o certo é que o corpo de Camila jamais foi encontrado. (FONSECA, 2011, p. 198)

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Novamente em um conto, como vimos em “Intolerância”, por exemplo, tem-se a massificação da figura feminina, a mulher se torna um mero objeto que, quebrado/morto, deve ser dispensado com o devido cuidado para evitar problemas com a polícia. Essa ausência moral e insensibilidade do narrador derivam diretamente de seu niilismo reativo que elegeu o próprio prazer sexual como único ídolo a ser cultuado. A barbárie dissolvida no linguajar acadêmico do advogado criminalista se atenua assim como o horror de seus crimes frente ao intenso prazer que ele alcança com a prática do sadismo: Aliás, que tipo de confissão é a minha? A jurídica? No direito romano (já contei que sou advogado? Sou criminalista, mas depois eu falo sobre isso), a confessio in judicio ocorria quando o réu confessava a autoria do crime, sendo que o processo não chegava a se instaurar para o julgamento da actio pelo judex, bastava a confissão para que o réu fosse executado, ele condenara a si mesmo: confessus pro iudicato est, qui quadammodo sua setentia damnatur. Ou a minha confissão é

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religiosa: o sacramento (FONSECA, 2011, p. 194)

da

penitência?

Por isso o narrador não encontra nem punição nem arrependimento, preso à malha do prazer e enredado em seu niilismo ele parte em busca de novas vítimas que sofrem o mesmo destino trágico de Camila. O último conto analisado possui um título que parece remeter ao niilista negativo, aquele que se apoia em uma religião para negar a realidade em busca de uma compensação futura ou extraterrena: “Amar seu semelhante”. Trata-se de uma ironia brutal, ou bárbara para usar a expressão de Schnaiderman, visto que ela remete ao princípio cristão do amor ao próximo mas é a narrativa de um sujeito que se descreve como um infeliz (FONSECA, 2011, p. 187) mas que se torna paulatinamente um cruel misantropo – que é aliás nome de outro conto no livro, a misantropia pode também ser considerada um tema recorrente na obra de Rubem Fonseca.

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Esse conto foi escolhido para última análise pois uma interessante mudança se opera em seu narrador anônimo de primeira pessoa, ele começa como um niilista passivo e, à medida que vai abraçando a misantropia e a violência, se transfigura em um niilista reativo. Se o niilista passivo, aquele que é desprovido da vontade de potência nietzschiana, flerta com a morte e o suicídio, o niilista reativo, aquele que na ausência de um preceito metafísico busca erigir em seu ego um novo ídolo, flerta com o autoritarismo e a violência, o assassínio. Os problemas desse infeliz e passivo niilista começam quando as pessoas insistem em lhe repetir as mesmas queixas e histórias, sempre. Enquanto o narrador se presta ao papel de niilista passivo, nada muda, no entanto, as repetições exageradas e o conteúdo das narrativas que recebe, sempre cheias de preconceito e dor – um espelho do vazio niilista que assola a sociedade massificada pós-moderna – faz nascer nele uma aversão cada vez maior e mais irracional em relação à humanidade. Vizentin (2013, p. 91) assinala que essa narrativa

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possui um forte caráter político e moral, que ela mostra como na sociedade atual predominam a introversão e o narcisismo, aspectos que, vê-se na narrativa, compõe a faceta desse narrador enquanto niilista reativo. Após matar um dos contadores de caso que o atormentavam, o narrador deixa seu aspecto passivo e constrói para si uma personalidade reativa, passa a se enxergar como um “vingador social” (VIZENTIN, 2013, p. 90), o conto se encerra quando ele encontra numa praça deserta, à noite, outra figura execrável, um vizinho misógino. O prazer descrito pelo narrador é perceptível em seu discurso e mostra como ele está satisfeito com seu novo papel, dir-se-ia lúbrico de vontade de potência: Sempre dou uma volta pela praça durante a noite. Ela está sempre deserta e isso em agrada. Mas nesta noite vai me agradar mais ainda. Quem eu encontro na praça, sentado num dos bancos? O meu vizinho que sempre que me encontra afirma que viver com uma mulher burra é pior do que viver com uma mulher feia. Sentei-me ao lado dele. Ele me reconheceu.

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“Sabe de uma coisa” ele começou a me dizer, “viver com uma mulher burra...” Fiquei olhando fascinado para o pescoço dele. Magro, raquítico, um apertão mais forte quebrava-lhe as vértebras cervicais. Quantas são mesmo? Sete. Conta de mentiroso? (p. 190)

Conclusão Toda obra literária representa, sob algum aspecto, um paradoxo, é uma ruptura e um reflexo ao mesmo tempo. O próprio Rubem expõe discute essa noção por meio de um dos narradores do livro, o narrador do conto que dá título ao volume, “Axilas”: Sei que alguém gostaria de me perguntar: você fala de cu e boceta, mas usa axila em vez de sovaco. Porque? A resposta é muito simples. Cu e boceta tem a obscenidade fáustica, que ainda resiste ao uso e abuso desses termos nos dias atuais. Mas sovaco é uma palavra vulgar, de uma trivialidade reles e fosca. (p. 27).

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Ao mesmo tempo em que as narrativas apresentadas ao longo do volume são chocantes, tanto no vocabulário duro e grosseiro quanto na riqueza sádica de detalhes mórbidos, elas são um reflexo dessa sociedade intensamente massificada e niilista na qual se inserem. Eis aí onde se insere o projeto filosófico de Vattimo (2016, p. 84), ele denuncia a ausência do sábio (seja ele um filósofo ou teólogo) que domina as causas primeiras e serve de guia para a sociedade como mote para entendermos a desintegração dos valores eternos que antes regiam o ocidente. O problema é que, se tomarmos os contos analisados nesse volume de Rubem Fonseca, ao que parece, predominam na sociedade brasileira atual apenas os três primeiros tipos de niilista: negativo, reativo e passivo. Como assinala Vattimo (2016, p. 8), “Deus está morto, mas a notícia ainda não chegou a todos. (…) a metafísica acabou, mas não é possível superá-la”. No que concerne ao Brasil, tão distante fisicamente e culturalmente da Europa secularista, essa assertiva parece ainda mais verdadeira. Eis então a razão do niilismo

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negativo ainda ser tão presente em nossa cultura, aqui ainda predominam igrejas cristãs, por mais que o catolicismo perca forças dia a dia, e o pentecostalismo grassa em meio à população excluída. Além do mal do niilismo negativo, a vertente mais alienante das quatro propostas por Nietzsche, há também uma presença cada vez maior do niilismo passivo. É fácil percebê-lo, por exemplo, quando o assunto é a desilusão política da nação. Após o fim da ditadura militar, em 1986, o país passou por um processo de abertura intelectual e social, modesto mas marcante, que gerou certa euforia até idos de 2010, quando a crise econômica e o desgoverno da nação voltaram a ficar evidentes. A despeito dos escândalos de corrupção cada vez maiores, o brasileiro se sente alheio e incapaz de tecer qualquer reação ao males sociais que o afligem, apenas aguarda seu destino trágico como a narradora de “Bebezinho lindo”. A maioria dos personagens do volume escolhido, não apenas dos contos em questão, se enquadram na categoria dos

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niilistas reativos. São seres que, na ausência de um guia metafísico para a vida, erigem outros ídolos em lugar do Deus cristão. Geralmente, eles optam, como o narrador do conto “Intolerância”, por seguir a economia de mercado como práxis para a vida – ele enxerga as mulheres como “produtos” a serem consumidos e descartados. Ainda assim, em se tratando de convívio social, há ainda um perigo maior que se pode adivinhar pela quase onipresença da violência nas narrativas que se espelham na atualidade: a de cada vez mais formarem-se niilistas reativos que, cegados pelo consumismo egocentrista, se tornem sociopatas intolerantes, como alguns dos personagens analisados neste artigo. Para que se consumasse de fato o projeto do pensamento fraco, não como uma simples relativização de ideais mas como Vattimo (2016, p.98) afirma “uma ética explicitamente construída em torno da finitude”, é necessário um homem além do bem e do mal, um niilista ativo, um intérprete de sua realidade. Porém, enquanto a educação for um valor acessível apenas a uma

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pequena parcela da população, enquanto não houver políticas públicas que promovam de fato a popularização do saber hoje restrito à academia, não haverá niilistas ativos.

Referências: FONSECA, Rubem. Axilas e outras histórias indecorosas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011. PECORARO, Rossano. Niilismo e pós modernidade: (introdução ao “pensamento fraco” de Gianni Vattimo). Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio: São Paulo: Loyola, 2005. SCHNAIDERMAN, Boris. Vozes de barbárie, vozes de cultura: uma leitura dos contos de Rubem Fonseca. In: FONSECA, Rubem. Contos reunidos. Companhia das Letras, 1994, p.773-777. VATTIMO, Gianni. Adeus à verdade. Petrópolis, RJ: Vozes, 2016. VIZENTIN, Alana. Os dissonantes mundos de Rubem Fonseca em Axilas e outras histórias indecorosas. - Porto Alegre, 2013. 148f. Diss. (Mestrado) – Faculdade de Letras, Pós-Graduação em Letras, PUCRS, 2013. Disponível em:

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<http://repositorio.pucrs.br/dspace/bitstream/10923/4132/1/0004 48603-Texto%2bCompleto-0.pdf>.

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Terminou-se de preparar estes Anais do 7º Seminário do GPLV e 2º Seminário de Linguística em 14 de abril de 2017, tendo sido disponibilizado no site dos Anais do GPLV e divulgado no site do GPLV na mesma data. A responsabilidade de cada artigo, no que se refere ao teor, à formatação e à revisão do texto, é do(s) autor(es) do mesmo.

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