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introdução

10 A ineficácia do processo de regulação da produção da cidade de São Paulo se coloca no sentido da reprodução das lógicas de segregação que se desenham na cidade Partindo de uma concepção da cidade neoliberal e do Estado como parte do processo de produção dessas segregações, se desenha, na realidade, uma legislação que cumpre seu papel na viabilização disso. ROLNIK, Raquel. A cidade e a lei: legislação, política urbana e território na cidade de São Paulo. 1997. 31 A cidade de São Paulo tem sua história marcada pela concentração de ri-

queza e poder. A legislação urbanística é ineficaz em regular os processos de pro-

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dução da cidade10, sendo assim causa e consequência da distribuição desigual de renda e de população no espaço. De acordo com Rolnik:

“A história dos usos da terra urbana é em parte a história da apropriação do espaço através tanto da ocupação real quanto da propriedade legal. Duas ques-

tões podem ser apontadas aqui: a raiz da noção de que o direito à terra está di-

retamente ligado a sua efetiva utilização, que remonta à própria ordem jurídica portuguesa, e a convivência entre um sistema oficial de concessão e um registro de terras virtual e acessível a poucos com a realidade de apossamento informal.

Essa contradição, que, como vimos, não representa um problema ou uma fonte de conflito até 1850, passou a ser o elemento fundamental de tensão urbana a partir dessa data até os nossos dias.” (ROLNIK, 1997. pág. 22) A partir da promulgação da Lei de Terras, há uma grande mudança na forma de apropriação da terra no Brasil, guardando consequências para o desenvolvi-

mento das cidades. Com isso, a única forma legal de posse de terras passa a ser a compra, que deve ser devidamente registrada. É bastante importante que se pense, entretanto, na mudança do papel da propriedade na sociedade neoliberal. Essa condição, a partir das novas modulações do neoliberalismo no Brasil, será melhor trabalhada em próximas etapas de pesquisa. Entretanto, é importante entender as consequências da promulgação da lei de terras, não apenas como estruturadora de

11 Aqui deve-se destacar a perspectiva já exposta de que a terra não é mais passível de ser acessada sem ser pela propriedade. Sendo, portanto, a possibilidade de acesso e ocupação da terra e dos espaços, necessariamente ligada a capacidade de compra dessas, evidenciando a monetarização da terra. 12 O processo de determinação do preço da terra deve ser entendido dentro de um a perspectiva histórica da formação dos núcleos urbanos, não apenas como pragmático relacionado ao espaço físico. Partindo da formação da cidade de São Paulo, inicialmente o núcleo urbano era ocupado por todas as classes sociais sem uma distinção socioespacial. A medida em que o núcleo se desenvolve, as regiões de várzea vão sendo ocupadas por cortiços, destinados às classes mais baixas. Com isso, as elites se deslocam para outras áreas da cidade. É nesse processo, inclusive, que se insere o processo de ocupação da região do Campos Elíseos. Ver: CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. “Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo”. São Paulo: Edusp/ Editora 34, 2000; BONDUKI, Nabil. “Origens da Habitação Social no Brasil”. São Paulo: Estação Liberdade / FAPESP, 1998.; VILLAÇA, F. (2000). Espaço intra-urbano no Brasil. São Paulo, Fapesp/Lincoln Institute/Nobel. 32 desigualdades que se mantém até os dias de hoje - em especial ao que diz respeito à desigualdade racial e aos processos de segregação socioespacial -, mas em sua relação com a irregularidade da condição fundiária que se impõe sobre todo terri-

tório brasileiro. Segundo Rolnik:

“Foram duas as implicações imediatas dessa mudança: a absolutização da pro-

priedade, ou seja, o reconhecimento do direito de acesso se desvincula da condi-

ção de efetiva ocupação, e sua monetarização, o que significa que a terra passou a adquirir plenamente o estatuto de mercadoria.” (ROLNIK, 1997. Pág. 23) Essa alteração representa uma séria mudança na forma como a terra é en-

carada e em quais são os indivíduos que podem adquiri-la11. A transformação da terra em propriedade guarda até hoje as consequências para o espaço urbano e, em especial, para a provisão de moradia para populações de baixa renda. A partir do momento que a terra se torna uma mercadoria, passam a existir critérios de valorização dessa, que distinguem quem pode ocupar cada porção do território, sendo destinadas aos mais pobres apenas as terras de menor valor e, portanto, com menos infraestrutura, ainda que uma série de outros fatores interfiram na de-

terminação desse valor, como localização, meio físico natural, entorno, etc12. Em paralelo, o valor da terra é sempre um entrave para o desenvolvimento de moradia para populações de baixa renda em regiões mais urbanizadas, impossibilitando a ocupação das regiões centrais.

Vale destacar que a promulgação da Lei de Terras data de 18 de setembro de 1850. Como foi elucidado por José de Souza Martins:

“Diante do esgotamento do escravismo e da inevitabilidade do trabalho livre, o Brasil decidiu, em 1850, pela cessação do tráfico negreiro, desse modo abreviando e condenando a escravidão. Optou pela imigração estrangeira, de trabalhadores livres. País continental, com abundância de terras incultas e um regime fundi-

ário de livre ocupação do solo, condenou-se, nesse ato, ao fim do latifúndio, e, consequentemente, da economia escravista que sobre ele florescerá, da sociedade aristocrática que dele se nutrira. Duas semanas depois, porém, o Brasil aprovou uma Lei de Terras que instituia um novo regime de propriedade em que a condição de proprietário não dependia apenas da condição de homem livre, mas também de pecúlio para a compra da terra, ainda que ao próprio Estado.” (MARTINS, 2010)

13 Aqui se coloca uma alteração na dinâmica vigente nas ruas. Como foi elucidado por Frehse: “Por fim, uma última regra possível de relacionamento social na rua no Brasil se insinua em abordagens da sociabilidade conflituosa ali: tensões com o poder público, pautado, por sua vez, em mecanismos de “institucionalização” (Frúgoli, 1995) e, mais recentemente, em políticas de “gentrificação” (Leite, 2004); e conflitos mais ou menos tácitos com “movimentações urbanas” supostamente excludentes (Frangella, 2009). Tais resultados interpretativos remetem à resistência como mediação simbólica da convivência social na rua. Esta é, pois, espaço de vínculos sociais de resistência.” (FREHSE, Fraya. A rua no Brasil em questão (etnográfica). Anuário Antropológico/ 2012-II, 2013: 99-129. São Paulo, 2012. Pág. 104) 14 ROLNIK, Raquel. A cidade e a lei: legislação, política urbana e território na cidade de São Paulo. 1997. Pág. 31 33 Esse processo marca um ponto de inflexão no crescimento urbano de São Paulo. Ainda no século XIX, os limites entre os diferentes grupos sociais eram claros e bem definidos, não havendo qualquer dimensão da relação senhor-escra-

vo que não fosse expressão de uma condição de dominação. A vida do escravo se circunscrevia dentro do território do senhor, “dominado pela força e violência

físicas, marcado por diferenças culturais e pela cor de sua pele e desumanizado por seu discurso etnocêntrico.” (ROLNIK, 1997. pág. 30-31) As relações de dominação não se limitavam ao âmbito da propriedade - da casa e da propriedade do corpo, da força de trabalho do escravo pelo senhor - mas se expandia para as sociabilidades do espaço público, da cidade. Começa a se desenhar, então, um processo que visa consolidar a rua como espaço de circula-

ção por excelência, proibindo-se a realização de outras atividades, especial por populações de baixa renda13. Em contraposição, a função da rua como o espaço de conflito, de diversidade começa a ser disputada pela população subalternizada.

Rolnik fala de um movimento de duplo sentido, retirando os “homens de bem” da mistura das ruas, a partir da criação de espaços exclusivos de encontro no interior das casas - as salas e escritórios - e fora delas - como os clubes, cafés e salões. Em contrapartida tem início o conflito entre a apropriação da rua como espaço de circulação e todos os demais usos que passam a ser automaticamente excluídos14 .

Na última década do século XIX, o lugar do poder municipal como legis-

lador das formas de ocupação da cidade começa a se delinear: primeiro, com o redesenho das ruas centrais, visando a melhorar a circulação; e, segundo, com a eliminação das formas de ocupação de baixa renda, cuja principal materialização está nos cortiços das áreas centrais.

“Com a proibição da instalação de cortiços, casas de operários e cubículos, proi-

biu-se genericamente a presença de pobres no centro da cidade, que no momento em estudo (década de 1890) era o principal objeto de investimentos através dos chamados ‘Planos de Melhoramento da Capital’. Esse tipo de intervenção no ter-

ritório ‘popular’ completava o projeto urbanístico municipal de construção de uma nova imagem pública para a cidade, aquela de um cenário limpo e ordenado

15 Essa questão é mais complexa do que o simples entendimento das políticas sanitaristas como formas de preservar a vida dos trabalhadores, mas também segundo o entendimento da rua como espaço civilizatório, de controle. Ver FOUCAULT, Michel. O poder psiquiátrico. São Paulo: Martins Fontes, 2006. 16 Aqui vale destacar que a legalidade não corresponde aos ricos e a ilegalidade não corresponde aos pobres. Rolnik afirma que: “Mais do que definir formas de apropriação do espaço permitidas ou proibidas, mais do que efetivamente regular o desenvolvimento de cidade, a legislação urbana atua como linha demarcatória, estabelecendo fronteiras de poder” (ROLNIK, 1999). Ver ROLNIK “Para além da lei”. 17 Coloca-se aqui uma contradição, visto que a região dos Campos Elíseos era uma das mais ricas da cidade, tendo sua paisagem marcada por grandes casarões de famílias ricas e tendo, inclusive, sido sede do Estado. Deve-se entender a diferença entre a vivência dos Campos Elísios e a forma como o bairro era representado. Como é ilustrado por Paulo César Garcez Marins: “As plantas e fotografias que figuram o bairro estão longe de demonstrar uma especialização social ou funcional radical, pois indicam, como visto, a presença de sequências de casas geminadas de tipo locatício e mesmo alguns exemplares de arquitetura industrial. Mas tais informações inscritas em imagens não lograram jamais contrastar a força dos discursos verbais que abordaram os Campos Elísios. O conjunto de textos que passam a ser examinados foi gerado entre 1895 e 1918, sendo constituído de publicações prioritariamente voltadas ao público externo à cidade. Em todos eles é marcante a caracterização do bairro como espaço residencial vinculado às elites locais, que paulatinamente sofreria concorrência de Higienópolis e da avenida Paulista.” (MARINS, Paulo César Garcez. Um lugar para as elites: os Campos Elísios de Glette e Northmann no ima 34 ficava.” (ROLNIK, 1997. pág. 37) É no fim do século XVIII que começam a aparecer também políticas sa-

nitaristas, que exercem um importante papel no sentido de preservação da vida da classe trabalhadora, entendida como motor de funcionamento da economia. Essas políticas foram pensadas também no sentido de garantir a produção do tra-

balhador assalariado e sua disciplinarização15. Passa a se desenhar um imaginário no qual as condições precárias de moradia seriam associadas a imoralidade e a doenças, num processo de demarcação de um território rejeitados pelo imaginário urbano de uma cidade sadia e bela. Essas demarcações se materializaram - e ainda se materializam - na legislação urbana de São Paulo, delimitando espaços de po-

breza, de insalubridade, de doenças e de imoralidade16 .

A lei, ao desenhar as áreas ricas da cidade, determinou também aquelas nas quais a pobreza poderia se instalar, num movimento, desde seu nascimento, cen-

trífugo, nos quais as bordas da zona urbana são permitidas aos pobres:

“A constituição de um mercado imobiliário dual, no qual os pobres estavam alo-

cados na periferia, começou com a proibição de instalar cortiços na zona central definida pelas posturas de 1886 e reiterada pelo Código Sanitário de 1894, que proibia terminantemente a construção de cortiços e permitia a construção de vilas operárias higiênicas fora da aglomeração urbana. A lei 498, de 1900, isentou de impostos municipais os proprietários que construíssem vilas operárias de acordo com o padrão municipal e fora do perímetro urbano, delimitado por esta lei.” (ROLNIK, 1997. pág. 47) Já se desenha, portanto, um espaço de disputa no centro da cidade. A região da Barra Funda/Campos Elíseos - sendo os Campos Elíseos a área de estudo deste projeto - foi no início do século XX, o território mais caracteristicamente negro de São Paulo - especialmente a Barra Funda -, sendo Berço samba paulista e sítio dos clãs africanos urbanos, nos cortiços e casinhas17 .

A região central de São Paulo aparece como epicentro de um processo repe-

tido infinitas vezes ao longo da história da cidade, que sistematiza o movimento de um mercado que se alimenta da valorização das localidades capazes de gerar as maiores densidades e intensidades de ocupação e, ao mesmo tempo, de valoriza-

imagem 10: linhas de transporte Fonte: produção própria ção dos espaços diferenciados ou exclusivos18. O centro cumpre ambos os papéis; constitui uma região privilegiada com relação ao restante da cidade por tratar-se do ponto de maior mobilidade da metrópole, com a presença de um sistema rodo-

metroferroviário interligado, possibilitando o acesso a qualquer ponto da cidade. É também uma região com grande oferta de empregos19, concentrando uma ampla gama de possibilidades de trabalho em diferentes áreas e para diferentes tipos e graus de especialização.

ginário urbano de São Paulo. Retirado de “São Paulo, os estrangeiros e a construção das cidades. Editora Alameda. São Paulo, 2011. Pág. 224) 18 ROLNIK, Raquel. A cidade e a lei: legislação, política urbana e território na cidade de São Paulo. 1997.É importante destacar também - ainda que não seja objetivo fim dessa pesquisa, o processo de periferização e de expansão da malha urbana realizado e produzito pelo Programa Minha Casa Minha Vida, entendendo a centralidade do preço da terra na “escolha” dos terrenos para a construção dos empreendimentos do MCMV. Sobre o tema, existe ampla produção recente, da qual destaco CAMARGO, Camila Moreno de. Minha Casa Minha Vida Entidade: entre os direitos, as urgências e os negócios/ Camila Moreno de CAMARGO; orientadora Cibele Saliba RIZEK. São Carlos, 2016. 19 “Há dinamismo socioeconômico e político nas zonas centrais do município, pois não só predomina miséria, pobreza e marginalização. Nesse sentido, basta mencionar os 700 mil empregos 35 A partir desses elementos, a região dos Campos Elíseos, por sua localização estratégica e pela histórica disputa que se coloca em suas terras, foi escolhida como elemento de estudo das transformações das relações urbanas que se dão nesse espaço, entendido como espaço de conflito entre diferentes interesses e que é disputado por diferentes agentes.

O bairro Campos Elíseos, localizado no distrito de Santa Cecília, na região central da cidade, teve sua ocupação inicial marcada pela presença de casarões de fazendeiros de café, sendo o primeiro bairro planejado de São Paulo, cuja origem remonta à inauguração da São Paulo Railway. A origem do bairro se dá ainda ao século XIX:

“Em 1879, dois Alemães, Glette e Nothman compram a antiga Chácara do Capão Redondo (e desde que se tomou propriedade do Visconde de Mauá – Chácara Mauá) e, despendendo cem contos de réis, abriram ali ruas largas e alamedas ar-

formais e informais, os 3,8 milhões de pedestres diários nos distritos da Sé e da República ou os 2 milhões de passageiros que são canalizados diariamente para esses locais através de 294 linhas de ônibus e dezessete estações metroferroviárias.” (KOWARICK, 2016) 20 O Terminal Rodoviário da Luz foi inaugurado em 1961 e desativado em 1988, transformado em um centro comercial, que foi demolido em 2007. A construção sempre foi muito criticada, tanto por sua localização na região central da cidade, como por seu estilo arquitetônico, colorido e chamativo. 21 Ver Flávio Villaça “A responsabilidade das elites e a decadência do centro do Rio e de São Paulo”. Ainda que antigo, o texto traz alguns elementos importantes para a discussão do processo de decadência da região central. 36 borizadas. Tendo vendido grandes lotes apenas para famílias abastadas da capi-

tal, apuraram cerca de oitocentos contos de réis depois de vendidos os lotes. Assim nascia o bairro dos Campos Elísios, Champs Elysées paulistano, que marcaria o nascimento do modelo de bairro aristocrático, exclusivamente residencial e de alta renda.” (ROLNIK, 1999) Ao longo de sua história, o bairro abrigou importantes famílias, dentre as quais se destaca a de Elias Antonio Pacheco Chaves, cuja residência - Palacete Elias Chaves - viria a ser, depois de 1907 com a morte do patriarca, a moradia dos presidentes da Província de São Paulo, então se chamando Palácio dos Campos Elíseos.

A decadência do bairro tem início entre os anos 1950 e 1960, dentre outros fatores, devido à instalação da Estação Rodoviária20, em 1961, abrindo espaço para o estabelecimento de comércios de toda ordem. Esse processo contribuiu para a desvalorização da região dos Campos Elíseos, que por um longo período deixou de ser de interesse do mercado imobiliário, sendo então aberta a possibi-

lidade de sua ocupação por parte de populações de baixa renda. A saída da sede do poder municipal do bairro, devido ao incêndio em 1967, fazendo com que esse fosse transferido para o Palácio dos Bandeirantes, no Morumbi, também se coloca como importante elemento de desvalorização da área.

Existem diferentes autores que buscam analisar o processo de desvalori-

zação da região central, bem como seu aparente abandono por parte das elites. Villaça, por exemplo, defende a tese de que a decadência da região central das cidades tem íntima relação com o abandono dessa região por parte das elites, que deixa de usar o centro de São Paulo, tanto como lazer como comércio, como pode ser observado pela retirada de alguns tipos de estabelecimento da região21. Villaça afirma que:

“A vitalidade depende dos empregos, do comércio, dos serviços. Estes, por sua vez, sustentam a vitalidade imobiliária. O espelho da chamada ‘decadência’ ou

22 Essa afirmação se coloca mais com relação aos edifícios comerciais e de escritório que, pelo momento no qual foram construídos, não respondem a algumas das demandas que são colocadas pelos avanços da tecnologia e pelo discurso de securitização das dinâmicas urbanas. 23 A palavra nasceu como corolário de “criminalização” e classes perigosas para justificar a intervenção pública por meios de Operações Urbanas ou Parcerias Público Privadas. 24 “Na Aurora, a Boca de Lixo; nas imediações da General Jardim, a Boca de Luxo, com seus stripteases; na República, os travestis, que segundo consta, também atendem os hotéis de luxo da Ipiranga; na Sé, os trombadinhas; e, ao lado dos consertos da Sala São Paulo, na Júlio Prestes, a desumanidade da Cracolândia, agora mal controlada, pois os consumidores se espalham por pontos próximos. A erradicação deste local é uma grande bobagem política e social; revela um espírito higienista, segregador, que lembra as ações da política sanitarista da década de 1910.” (KOWARICK, Lúcio. Viver em risco. Sobre vulnerabilidade socioeconômica e civil. Editora 34. São Paulo, 2009. Pág. 120) 25 O Programa de Braços Abertos, iniciado em 2014 pela prefeitura, durante a gestão de Fernando Haddad, é focado na redução de danos, oferecendo 3 refeições diárias, trabalho - com o pagamento de R$15 ao dia -, tratamento e uma vaga em um quarto de hotel para cerca de 400 moradores da Cracolândia que antes habitavam 178 barracos de madeira montados na rua. Informações retiradas de reportagem do Jornal El País, de 2016. 37 biliária. Abandonados pelas elites eles sofrem uma desvalorização imobiliária acentuada e os grandes investimentos imobiliários, os enormes arranha-céus de escritórios típicos das décadas de 50 e 60, não mais são construídos no centro.” (VILLAÇA, 1997) Vale destacar aqui que há sim grande disponibilidade de empregos, comér-

cios e serviços no centro “velho” da capital paulista, mas que muitos deles já não atendem mais às elites22 que perdem o interesse para que sejam feitos grandes in-

vestimentos privados na região. Vale destacar que a necessidade de investimento não se limita ao setor privado, considerando a demanda pela manutenção da infra-

estrutura existente - construída em outra época - bem como as questões ligadas à preservação do patrimônio presente na região.

Desde o início dos anos 2000, com o projeto Nova Luz, durante a gestão de José Serra na prefeitura de São Paulo, o poder público tem feito diversos esforços de revitalização do chamado centro velho da cidade de São Paulo, lançando mão de Projetos de Intervenção Urbana e Parcerias Público Privadas, numa tentativa de reacender o interesse do capital privado na região, com políticas que expul-

sam os moradores de baixa renda da área, acirrando o cenário de conflito. Essas tentativas vêm exatamente no sentido de fazer com que o centro velho volte a ser atrativo para o capital privado.

Com o início da ocupação da chamada Cracolândia23 no início dos anos 2000, o parcialmente calculado abandono social da região da Luz aprofundou sua desvalorização, fazendo com que a capacidade de negociação dos especuladores fosse fortalecida e possibilitando a aquisição de terrenos no centro da cidade a preços relativamente baixos.

As iniciativas para acabar com a Cracolândia - em especial pela gestão de João Dória, atual governador do estado de São Paulo, na prefeitura - se relacio-

nam em parte com uma retomada das chamadas políticas higienistas24, contradi-

toriamente acompanhadas com o desmonte de políticas de redução de danos, em especial do Programa de Braços Abertos25. Esse cenário se acirra ainda mais com as propostas de Parcerias Público Privadas, com a criação de Operações Urbanas e Projetos de Intervenção Urbana (PIU) por parte da Prefeitura. Com isso, além

26 Em entrevista, Rui coloca a necessidade de se entender os usuários de drogas como “sem lugar”, como uma população que é indesejável em todos os espaços da cidade. O usuário de droga não pode estar na periferia, nem no centro, nem em espaço nenhum da cidade, se desenhando como uma população em constante movimento e tendo na rua a única possibilidade de existir. 27 Ainda que hajam movimentos, ocupações e disputas que se colocam nas demais regiões. 28 Relação desse processo com o que é descrito em HARVEY, David. From managerialism to entrepreneurialism: the transformation in urban governance in late capitalism. Geografiska Annaler. Series B, Human Geography, Vol. 71, No. 1, The Roots of Geographical Change: 1973 to the Present. (1989), pp. 3-17. O foco da gestão urbana está na geração de lucro e valorização imobiliária e não na otimização das dinâmicas urbanas, de forma bastante simplificada. 38 manda do mercado pela valorização imobiliária a partir da retirada de populações “indesejáveis”26 .

De acordo com Maricato, a região central:

“Trata-se do único lugar da cidade onde os interesses de todas as partes (mercado imobiliário, Prefeitura, Câmara Municipal, comerciantes locais, movimentos de luta por moradia, moradores de cortiços, moradores de favelas, recicladores, am-

bulantes, moradores de rua, dependentes químicos e outros) estão muito claros, e os pobres não estão aceitando passivamente a expulsão.” (MARICATO, 2015, p. 57) No centro de São Paulo foi deflagrada uma guerra de classes, que ganha ain-

da mais força se comparada ao restante da cidade27, que acompanha o acirramento do processo de especulação colocado no país como um todo.

A partir disso, é importante que se coloque a regularização fundiária como um instrumento capaz de garantir a permanência de grupos sociais em áreas de valorização imobiliária. A regularização também é usada - ou era, antes da mu-

dança na legislação - como garantia da realização de obras de infraestrutura nas regiões periféricas, possibilitando uma melhora na qualidade de vida dos ocupan-

tes. Coloca-se portanto uma contraposição entre os processos de regularização fundiária pautados na permanência de populações marginalizadas e os territórios que são palco de OUCs, PPPs e PIUs, que tem em si a demanda pela realização de despejos e remoções para que se alcance a valorização imobiliária28 .

No cenário de recente aprovação da lei federal nº13.465/2017, que reestru-

tura toda a política fundiária no Brasil, flexibilizando processos de regularização fundiária, os espaços destinados às diferentes populações se mostram como um importante tema de discussão, principalmente se considerando o papel histórico que a regularização teve como instrumento de resistência.

Desde o início das discussões sobre reforma urbana e direito à cidade no Brasil, a questão fundiária apareceu no bojo dessas temáticas, entendida como ponto central para a democratização do acesso à cidade e a direitos básicos. Po-

29 De acordo com o levantamento feito em Iniciação Científica feita previamente pela bolsista, com a implantação da 13.465 não houve uma grande alteração no tempo de realização dos processos de regularização fundiária, como era esperado à princípio. Ainda que se esperasse uma desburocratização dos processos, pautado em um programa de regularização fundiária em massa, pouco mudou com relação ao tempo dos processos e ao número de processos concluídos em um determinado período. Ver GONÇALVES, Ana Luiza. Regularização Fundiária e remoções: políticas públicas em São Paulo e a formulação da lei nº 13.465/2017. Relatório científico ao CNPq. Orientação Prof. Cibele Saliba Rizek, 2018-2019. 39 No entanto, “políticas de solo voltadas para dar suporte a programas de promoção habitacional raramente escaparam do binômio desapropriação/localização periférica, muitas vezes através de operações de conversão de solo rural em urbano.” (ROLNIK, CYMBALISTA, NAKANO, 2013). As políticas fundiárias no Brasil acabam por se tornar o principal mecanis-

mo de transferência da arrecadação tributária aos proprietários de casas e terrenos, dada a ausência de impostos significativos sobre a propriedade imobiliária que marca a política fundiária no país.

“A combinação destas condições é o conhecido quadro de ausência de políticas fundiárias redistributivas ou de ampliação de acesso à terra para moradia popu-

lar a nível federal bem como conteúdo do planejamento e gestão locais. Este qua-

dro permaneceu inalterado, tendo sido impactado nos anos 80, pela falência do BNH e queda no nível de investimentos no setor, e, do ponto de vista político, pelo movimento pela redemocratização do país, no qual os movimentos sociais urba-

nos constituíram parte de sua base popular.” (ROLNIK, CYMBALISTA, NAKANO, 2013) A regularização fundiária no Brasil é - ou era, antes da mudança de legis-

lação - um processo demorado e burocratizado, além de muito oneroso, o que dificultava sua realização, em especial para populações em situação de vulnerabi-

lidade social29. A nova legislação descarta muitas dessas burocracias, mas não de forma adequada, abolindo mecanismos importantes ao invés de otimizar os pro-

cessos, reduzindo a segurança de posse dos ocupantes, prejudicando os processos que visam garantir a preservação ou recuperação ambiental e tirando a prioridade da regularização de interesse social, que ficam igualados aos de interesse especí-

fico, beneficiando a iniciativa privada.

A questão da informalidade e da irregularidade não deixam de ser centrais para o poder público. A ordem jurídica formal ou estatal nunca está totalmente ausente, se colocando, no mínimo, como mediadora de negociações que são esta-

belecidas e entre moradores/ocupantes desses espaços de informalidade. Da mes-

ma forma, nos espaços ditos “formais”, construídos de acordo com a legislação urbanística, acontecem uma série de transgressões, que são consequência de sua

30 ROLNIK, Raquel. Para além da lei. 1999. 31 Informações encontradas no mapeamento participativo, realizado pelo LabCidade, Laboratório de pesquisa da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP. 40 própria atratividade e valorização que essas regiões têm30 .

“Mais uma vez aqui é necessário um matiz: a condição de irregularidade não se refere a uma configuração espacial, mas a múltiplas. Assim não se pode falar de irregularidade como se fosse um atributo intrínseco de um espaço urbano, como sua topografia ou a composição de seu solo. Não somente porque existem, na própria ordem jurídicourbanística, muitos tipos de irregularidade, mas também porque as normas jurídicas podem ter, na prática, diferentes significados para os atores sociais, dependendo das condições políticas e culturais prevalentes. Assim, embora tanto as favelas como as casas populares autoconstruídas na periferia se encontrem no mesmo vasto campo da irregularidade, construir sem licença é hoje considerado muito menos ilícito do que morar em favelas.” (ROLNIK, 1999) A partir desses elementos passa a ser importante compreender como as transformações urbanas contemporâneas redesenham a cidade e como se inter-

relacionam com os processos de intervenção urbana tal como os processos de re-

gularização fundiária, por exemplo. O mesmo vale para o entendimento de como a esfera legal se entrelaça com os processos de transformação e de produção da cidade.

Na região dos Campos Elíseos, entender como a dinâmica do capital imo-

biliário constrói novos campos de disputa se mostra como central para a compre-

ensão, inclusive, do destino dessa área, marcada, nos últimos anos, pela monu-

mental presença da Cracolândia - localizada nas chamadas quadra 36, 37 e 38, no quadrilátero entre as ruas: a Avenida Rio Branco, a Rua Helvétia, a Alameda Cleveland e a Alameda Glete -, sendo hoje ativo financeiro em si e palco de uma série de projetos que sinalizam o grande interesse do poder público e do mercado imobiliário na área, através de remoções, por parte dos governos municipal e es-

tadual, e de projetos de intervenção como a PPP Casa Paulista do Centro e o PIU do Hospital Pérola Byington. O território, habitado por população de baixa renda, apresenta grande número de cortiços, pensões, ocupações, além de ser demarcada como Zona Especial de Interesse Social (ZEIS)31 .

32 Foi elaborado um novo Plano Diretor Estratégico, em 2014 - lei nº 16.050/2014 -, durante a gestão de Fernando Haddad na prefeitura que estabelece as orientações de desenvolvimento e crescimento de São Paulo, estando em vigor até 2030. 41 Com a implementação do Estatuto da cidade, as formas de intervenção do Estado na cidade começam a se alterar, prevendo, inclusive a criação de Planos Diretores municipais. Em São Paulo, essas mudanças se dão principalmente com o Plano Diretor Estratégico de 2002, na gestão de Marta Suplicy32 e com a lei nº 14.917, de 7 de maio de 2009, que diz respeito às Concessões Urbanísticas. O art. 1º da lei dispõe:

“Art. 1º A concessão urbanística constitui instrumento de intervenção urbana es-

trutural destinado à realização de urbanização ou de reurbanização de parte do território municipal a ser objeto de requalificação da infra-estrutura urbana e de reordenamento do espaço urbano com base em projeto urbanístico específico em área de operação urbana ou área de intervenção urbana para atendimento de ob-

jetivos, diretrizes e prioridades estabelecidas na lei do plano diretor estratégico.” (Lei estadual nº 14.917/2009. Disponível em: https://www.prefeitura.sp.gov.br/ cidade/secretarias/upload/infraestrutura/sp_obras/arquivos/concessaourbanisti-

ca_lei_14917_07_05_09.pdf ) Ao longo do período recente - desde 2010 - houveram muitas mudanças nas formas de intervenção urbana no município de São Paulo, passando pelas Concessões Urbanísticas, Operações Urbanas e Projetos de Intervenção Urbana (PIUs), com grandes complexidades nas transições entre elas. Esses instrumentos de intervenção urbana serão trabalhados de forma mais aprofundada nas próximas etapas de pesquisa, buscando levantar os elementos comuns e dissonantes nas diretrizes de intervenção na região central, além de uma relação entre a estrutura dos instrumentos e a potencial redução no caráter de resistência dos processos de regularização fundiária vinculados a eles.

Sem entrar, nesse momento, no mérito desses instrumentos, o que se propõe no âmbito dessa etapa de pesquisa é discutir as formas de intervenção do Poder Público nessas áreas, de acordo com os instrumentos legais de intervenção urbana que são colocadas e se considerando a possibilidade de intervenções de caráter privado, como é o caso das Operações Urbanas, das Parcerias Público Privadas e dos Projetos de Intervenção Urbana.

Com relação à redução do caráter de resistência dos processos de regulari-

cesso de pesquisa, uma fragmentação com relação ao restante dos dados, aspecto este que será corrigido nas próximas etapas de pesquisa, a partir do cruzamento entre as questões referentes aos instrumentos de intervenção urbana, as remoções e reintegrações de posse, as ações do movimentos sociais e os processos de regu-

larização fundiária em curso nos Campos Elíseos.

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