O gesto rasurante ou o resíduo de incerteza

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O GE STO R ASU R ANTE OU O R ESÍ DU O DE I NC E RTE Z A

A NA LU ÍSA FLOR ES UFRJ RIO DE JA NE I RO 2013



UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO ANA LUÍSA FLORES

O GESTO RASURANTE OU O RESÍDUO DE INCERTEZA

RIO DE JANEIRO 2013



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Ana Luísa Flores

O GESTO RASURANTE OU O RESÍDUO DE INCERTEZA

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Artes Visuais, Escola de Belas Artes, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Linguagens Visuais.

Orientadora: Profª. Drª. Livia Flores Lopes

Rio de Janeiro 2013


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Flores, Ana Luísa O gesto rasurante ou o resíduo de incerteza / Ana Luísa Flores. - Rio de Janeiro: UFRJ / EBA, 2013. xvi, 75 f. : il. ; 31 cm. Orientadora: Livia Flores Lopes Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Escola de Belas Artes, Programa de Pós-graduação em Artes Visuais, 2013. Referências bibliográficas: f. 87-89 1. artes visuais. 2. rasura. 3. infinito. 4. pluralidade. – Teses. I. Lopes, Livia Flores. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Escola de Belas Artes, Programa de Pós-graduação em Artes Visuais. III. Título.




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AGRADECIMENTOS Agradeço, em primeiro lugar, à Livia Flores, pelo estimado acompanhamento deste projeto (e de outros) com grande atenção e generosidade, pelas estimulantes sugestões de pesquisa e grande suporte enquanto orientadora. Ao Milton Machado, pelas incríveis aulas que acompanhei desde a graduação e continuam a reverberar em diversas inquietações do conhecimento, além do incentivo necessário para a conclusão desta pesquisa. Ao Marcelo Campos, pelas valiosas indicações em minha banca de qualificação. Ao Pablo, meu companheiro, pelo carinho, suporte e paciência durante o processo da escrita. Ao Paulo Henrique, meu irmão, pelas longas conversas, risadas e importantíssima interlocução filosófica. À minha mãe, pelas surpreendentes referências históricas e científicas. À meu pai, por me apresentar uma maravilhosa biblioteca virtual. Aos amigos do PPGAV com quem compartilhei excelentes conversas: Julia Pombo, Rafael Alonso, Gabriela Mureb, Isabel Carneiro, Ana Hupe, Carolina Cordeiro, Raquel Versieux, Luisa Vidal, Alvaro Seixas, Helio Branco, Jorge Soledar. Ao Ronaldo Auad, grande mestre, pelas Dialogias e amizade. À Ana Costa, pelas ótimas referências visuais. E à amiga Mayana Redin pelas agradáveis tardes videográficas de conversas, indicações literárias e simpatia. Este trabalho foi realizado com apoio da bolsa de estudos concedida pela CAPES.



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— O infinito, meu caro, não é grande coisa — é uma questão de literatura. O universo existe apenas no papel. Nenhuma ideia o apresenta. Nenhum sentido o mostra. Fala-se disso, e nada mais. — Mas a ciência, retorqui, usa... — A ciência! Só existem cientistas, meu caro, cientistas e momentos de cientistas. São homens... tateamentos, noites maldormidas, bocas amargas, uma excelente tarde lúcida. Sabes qual é a primeira hipótese de toda ciência, a ideia necessária de todo cientista? É que o mundo é mal conhecido. Sim. Ora, pensamos muitas vezes o contrário; há momentos em que tudo parece claro – onde tudo é pleno, tudo é sem problemas. Nesses momentos, não há mais ciência – ou, se quiseres, a ciência está realizada. Mas em outras horas nada é evidente, existem apenas lacunas, atos de fé, incertezas; só vemos cacos e irredutíveis objetos, por toda parte. Paul Valéry, Monsieur Teste



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RESUMO FLORES, Ana Luísa. O gesto rasurante ou o resíduo de incerteza. Rio de Janeiro: UFRJ/EBA, 2013. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Escola de Belas Artes, Programa de Pós-graduação em Artes Visuais, 2013. A partir de uma introdução etimológica do termo rasura, inicia-se o estudo sobre a noção de atrito entre intenção descritiva da palavra e a pluralidade irredutível do objeto a ser designado. Afastando-se da manifestação formal de ilegibilidade da palavra continuamente corrigida diante do desejo de tudo denominar, a noção de rasura passa então a constituir um estímulo deflagrador de especulações epistemológicas sobre as bases do saber humano. Percorrendo rápidas passagens entre arte, literatura, filosofia e ciência, é questionado o devir detetive que a princípio aspira a ampla compreensão dos fenômenos da experiência sensível, até a ideia de progresso científico que envolve a apreensão racional do mundo expresso em conceitos. São também confrontados os domínios entre finito e infinito, e sensibilidade e inteligibilidade. Ao abordar as conexões entre o finito e o sensível, é proposto o rascunho como manifestação visiva que se utiliza do inacabado para atingir ampla pluralidade representativa. A seguir, é apresentado o início da abstração pictórica como manifestação do desejo universalizante na arte. Por fim, é citada a aparição poética da multiplicidade do todo através de esquemas conceituais. Palavras-chave: Rasura. Infinito. Pluralidade.



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ABSTRACT FLORES, Ana Luísa. O gesto rasurante ou o resíduo de incerteza. Rio de Janeiro: UFRJ/EBA, 2013. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Escola de Belas Artes, Programa de Pós-graduação em Artes Visuais, 2013. Beginning from an etymological introduction of the word erasure, it is started a study on the conflict between the descriptive intention of written words and the irreducible plurality of objects to be named. Turning away from the formal expression of illegibility in a word continually adjusted towards the desire to denominate everything, the idea of erasure shall then constitute a triggering stimulus for theories about the epistemological basis of human knowledge. Going through brief passages between art, literature, philosophy and science, it is questioned the “detective attitude” that aims a broad understanding of visible phenomena, and the idea of scientific progress that involves the world’s rational apprehension, which is then converted in concepts. The text also seeks to relate thoughts between finite and infinite, and sensitivity and intelligibility. By addressing the connections among finite and sensitive, it is proposed that the draft is as a visible expression that deals with the unfinished appearance to achieve wide representational plurality. Then, it is proposed that the beginning of abstraction was a way to express the universalistic desire in art. Finally, it is said that the poetic manifestation of the whole can be achieved through conceptual schemes. Keywords: Erasure. Infinity. Plurality.



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LISTA DE FIGURAS Fig. 1 Kazimir Malevich, Esboço para Vitória Sobre o Sol, 1913. Fonte: Wikimedia Commons. ................................................................................................... 22 Fig. 2 Átomo gerando a sombra ao ser atravessado pelo laser. Fonte: Stenovec, 2012. ................................................................................................................ 25 Fig. 3 A sombra do átomo de itérbio. Fonte: Stenovec, 2012. ................................................................................................................ 25 Fig. 4 Frontispício de Ars Combinatoria, 1690, de Leibniz. Diagrama de combinações dos elementos (ar, terra, fogo, água) e suas conexões possíveis. Fonte: The Erwin Tomash Library. .......................................................................................... 36 Fig. 5 Albrecht Dürer, Desenhista representando mulher reclinada, 1525. Xilogravura presente na capa da primeira edição de Palomar, de Italo Calvino, em 1983. Fonte: Wikimedia Commons. ................................................................................................... 42 Fig. 6 Ana Luísa Flores, diagrama de coordenadas para Inclinação e Rotação, 2010. Fonte: Arquivo pessoal. .............................................................................................................. 45 Fig. 7 Ana Luísa Flores, fotografias de Inclinação e Rotação, 2010. Fonte: Arquivo pessoal. .............................................................................................................. 46 Fig. 8 Paolo Uccello, Cenas da vida monástica, afresco do Mosteiro de San Miniato al Monte, aprox. 1440. Fonte: Wikimedia Commons. ................................................................................................... 49 Fig. 9 Paolo Uccello, Apresentação de Maria no templo, afresco do Duomo di Prato, 1435. Fonte: Web Gallery of Art. ........................................................................................................ 49 Fig. 10 Ana Luísa Flores, esboço de projeto sem título, 2010. Fonte: Arquivo pessoal. .............................................................................................................. 52 Fig. 11 Ana Luísa Flores, fotografia de celular da bolha de nível apoiada sobre galhos encontrados, 2010. Fonte: Arquivo pessoal............................................................................. 52 Fig. 12 Julien Berthier, Il n’y a pas de hasard, 2005. Fonte: Website do artista. .......................................................................................................... 53 Fig. 13 Leonardo da Vinci, estudo para Santa Ana, a Virgem e o Menino, 1503. Fonte: Wikipaintings. ................................................................................................................. 56 Fig. 14 Leonardo da Vinci, Desastre Natural, 1517-18. Fonte: Wikipaintings. ................................................................................................................. 58 Fig. 15 Ana Luísa Flores, fotogramas do vídeo A Marca na Parede, 2011. Fonte: Arquivo pessoal. .............................................................................................................. 63


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Fig. 16 Kazimir Malevich, Composição com Monalisa, 1914. Fonte: Wikimedia Commons. ................................................................................................... 67 Fig. 17 Piero Manzoni, Achrome, 1960. Superfície com cloreto de cobalto. Fonte: Wikipaintings. ................................................................................................................. 71 Fig. 18 Piero Manzoni, Linea 7.200m, 1960. Fonte: Gagosian Gallery. ............................................................................................................ 72 Fig. 19 Ana Luísa Flores, Objetos Dinâmicos, 2006-2009. Fonte: Arquivo pessoal. .............................................................................................................. 81 Fig. 20 Ana Luísa Flores, fotogramas do vídeo Eidograma, 2010. Fonte: Arquivo pessoal. .............................................................................................................. 82 Fig. 21 Ana Luísa Flores, fotogramas do vídeo Registro de passagem: sandálias carimbo, 2010. Fonte: Arquivo pessoal. .............................................................................................................. 83 Fig. 22 Ana Luísa Flores, 1995: Memória e Matéria, 2011. Fonte: Arquivo pessoal. .............................................................................................................. 84 Fig. 23 Ana Luísa Flores, Nulla dies sine linea, 2010-2012. Fonte: Arquivo pessoal. .............................................................................................................. 85 Fig. 24 Ana Luísa Flores, Rasura, 2012. Fonte: Arquivo pessoal. .............................................................................................................. 86


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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................................................................... 17 I ...................................................................................................................................................... 17 II .................................................................................................................................................... 18 III ................................................................................................................................................... 19 IV ................................................................................................................................................... 22 DO ATOMISMO ÀS INCERTEZAS ................................................................................................ 25 A natureza das coisas ...................................................................................................................... 26 I ...................................................................................................................................................... 26 II .................................................................................................................................................... 28 Gênese do gesto ............................................................................................................................... 30 I ...................................................................................................................................................... 30 II .................................................................................................................................................... 31 Contendo o real ............................................................................................................................... 32 I ...................................................................................................................................................... 32 II .................................................................................................................................................... 36 Limites perceptivos ......................................................................................................................... 39 I ...................................................................................................................................................... 39 II .................................................................................................................................................... 42 III ................................................................................................................................................... 44 O FINITO E O SENSÍVEL: ESBOÇO............................................................................................... 47 I ...................................................................................................................................................... 47 II .................................................................................................................................................... 51 III ................................................................................................................................................... 54 Sobre marcas na parede: notas de trabalho ................................................................................. 61 O INFINITO E O INTELIGÍVEL: OBLITERAÇÃO ..................................................................... 65 I ...................................................................................................................................................... 65 II .................................................................................................................................................... 65 III ................................................................................................................................................... 66 IV ................................................................................................................................................... 69 Sobre objetos e conceitos................................................................................................................ 73 I ...................................................................................................................................................... 73 II .................................................................................................................................................... 74 CONCLUSÃO ...................................................................................................................................... 77 I ...................................................................................................................................................... 77 II .................................................................................................................................................... 80 REFERÊNCIAS .................................................................................................................................... 87 APÊNDICE ........................................................................................................................................... 91



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INTRODUÇÃO I Embora devidamente advertidos quanto aos riscos labirínticos de uma incursão etimológica, tomemos mesmo assim o percurso dos parentescos como possibilidade de estabelecer no caminho as aproximações que melhor nos convier. Borges nos lembra em um breve ensaio sobre os clássicos que as palavras estão sujeitas a metamorfoses imprevisíveis; que “saber que cálculo, em latim quer dizer pedrinha [...] não nos permite dominar os arcanos da álgebra”.1 Ainda assim, tal caminho parece tentador para o termo que nos motiva a investigação, já que sua significação usual está profundamente conectada com o veículo que possibilitou sua chegada a nós, a escrita. Logo chegaremos a nosso termo. Longe de tentarmos abarcar historicamente o processo de conservação das palavras, basta-nos por hora saber que a partir dos anos 1430 os experimentos de Johann Gutemberg lentamente comprometeriam a atividade dos escribas responsáveis pela manutenção e transmissão de textos latinos clássicos – atividade esta que durante a Idade Média fora delegada a monges copistas como penitência, exercício de humildade perante a tortuosa transcrição de textos pagãos, bem como um meio de aprendizado do latim.2 A curiosidade quanto ao teor dos versos de Virgílio ou Ovídio deveria ser suprimida, já que o foco seria a total atenção durante a duplicação do texto; mas podemos supor que um monge mais atento ao conteúdo de suas cópias facilmente seria tomado pela repulsa de ter em mãos um material literário ofensivo segundo os preceitos católicos. De qualquer forma, a atividade era assumida como exercício de polidez espiritual, assim como os golpes do açoite conferiam ao corpo degradado a possibilidade de redenção da alma.3 Durante pouco mais de um milênio as bibliotecas europeias estavam restritas aos mosteiros, resguardadas por bibliotecários que ao constatarem a deterioração de um volume ordenavam aos escribas que tais cópias fossem feitas. O grau de dificuldade deste empreendimento estava diretamente relacionado com a qualidade do material oferecido pelo bibliotecário. Ter a disposição régua, boas penas, suportes e pergaminhos impecavelmente preparados era uma bem-aventurança. No scriptorium monástico era comum a distribuição de pedra-pomes para a raspagem de pelos remanescentes do couro das vacas, ovelhas e cabras destinadas a virarem livros; também era Borges, 2007, p. 219. Greenblatt, 2012, p. 39. 3 Ibid., p. 94. 1 2


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oferecida uma mistura de leite, queijo e cal (o antepassado de nossas fitas corretivas) para a supressão de eventuais deslizes cometidos.4 E eis nosso ponto de interesse: a rasura cometida pelo monge. II Uma rápida consulta ao Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa nos confirma que a origem desta palavra, rasura, está no latim, o mesmo latim copiado pelos monges. 5 Encontramos também uma vasta gama de palavras-irmãs: abrasivo, arrasar, arrastar, raspar, raso, rasante, rascunho, rasgo, rasteiro, rastro. Todas pertencentes à família de atritos, desgastes e fricções contidas no verbo latino rādō. Uma nova consulta agora ao professor de Antônio Houaiss, Ernesto Faria: no Dicionário Escolar Latino-Português, encontramos os precursores clássicos, responsáveis pelas nuances contidas neste verbo.6 Lá estão, no verbete, Cícero, Virgílio, Lucrécio. Curioso lembrarmo-nos de que os esforços dos monges copistas foram responsáveis pela chegada a nosso tempo de boa parte destes autores; mas vez ou outra a escassez de pergaminhos (não por falta de matéria prima já que cabras havia em bom número, a questão era o laborioso processo de transformá-las em páginas) também os levou a apagar certas “baboseiras” pagãs para dar lugar a Evangelhos. Eis aqui outro procedimento pertencente a esta genealogia dos atritos verbais: o palimpsesto. Parece-nos que a rasura está localizada bem no front de batalha entre aquele que escreve e o suporte destinado a ser o receptáculo da inscrição. É uma alteração, uma remoção a força de uma palavra que se mostrou inadequada àquilo que se pretendia registrar. Esta é então eliminada, mas no lugar da “falsa” palavra fica a cicatriz de um gesto corretivo, obliterador. Um resto, um resíduo do erro. Aparenta ter caráter exclusivamente manual, já que com o advento da palavra impressa as rasuras deram lugar às erratas: correções tipográficas posteriores, anexadas ao final do volume, para não comprometer a elegância dos belos tipos torneados em prol da boa leitura. De todas as variações presentes no verbete de Ernesto Faria, talvez a significação mais curiosa seja aquela atribuída a Lucrécio: rādō atrelado à noção de polir, aperfeiçoar; ou ainda como “tocar de leve, costear, banhar”.7 Em meio a outras aparições deste termo relacionadas à

Greenblatt, 2012, p. 41-43. Houaiss, 2001, p. 2387. 6 Faria, 1962, p. 836. 7 Ibid. 4 5


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remoção como sentença final para o inadequado ou à tentativa de correção pelo ato violento, notamos que em Lucrécio a ideia é dotada de incrível leveza. Tomemos uma transcrição do livro V de Da Natureza, que nos parece fundamental para a assunção de certa positividade atribuída ao desgaste: Não creias que neste ponto eu tenha de deformar os fatos a meu favor por considerar que são mortais a terra e o fogo, por não duvidar de que perecem a água e os ventos e por ter dito que tudo nasce e cresce de novo. Primeiro, uma parte considerável da terra, abrasada pelo sol contínuo, batida frequentemente pela força dos pés, solta um nevoeiro de pó e nuvens voadoras que os fortes ventos dispersam por todo o ar. Também uma parte das glebas é diluída pelas chuvas e os rios roem as margens que vão raspando [radentia]. Depois, tudo aquilo que se alimenta e aumenta restitui a parte que recebeu. E, como parece fora de dúvida que ela é a mãe de todas as coisas e seu comum sepulcro, temos como consequência que a terra se gasta e, aumentando, recresce.8 [grifo nosso]

A leveza de Lucrécio reside justamente no sistema poético-filosófico que consiste numa concepção do mundo como pura descontinuidade. Adepto da doutrina atomista criada por Demócrito, e difundida por Epicuro, o poeta latino assume a tarefa de pensar que as bruscas metamorfoses da matéria sensível são inerentes à condição de aglomerados de partículas invisíveis, as “sementes das coisas”. Tudo se forma destas partículas, enquanto a morte ou o “fim” de um corpo seria a dispersão dessas pequeníssimas partes, que se recombinam para formar novas coisas. Lucrécio, naturalista, não encara a finitude com pesar. O atrito entre os átomos – ou, mais precisamente, o choque – que “desgasta” a matéria é justamente a possibilidade de aparição do novo. Lucrécio celebra a vida como intervalo finito, e plural. O primeiro capítulo tratará com maior atenção das concepções lucrecianas e suas possíveis relações com a produção de um corpus poético. III Tais ideias atomistas foram consideradas um escândalo não só em sua época, mas para toda a geração cristã que estava por vir. Para Lucrécio, a finitude da matéria sensível implica também a finitude da alma que a acompanha. Criticava veementemente a fé religiosa e os sacrifícios destinados ao panteão romano como princípio da infelicidade humana. Dado o “perigo” de seus escritos, assim como vários outros autores pagãos, permaneceu praticamente esquecido durante toda a Idade Média. Da Natureza voltou a circular pela Europa – mais especificamente, em Florença – apenas durante o Quattrocento, graças à descoberta que 8

Lucrécio, 1973, p. 108.


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Poggio Bracciolini, humanista florentino, fizera de um manuscrito adormecido em uma biblioteca monástica no norte da Europa; para um seleto grupo de homens italianos letrados do início do século XV, tornara-se uma espécie de hobby encontrar livros greco-romanos clássicos em bibliotecas remotas.9 O curioso é que o interesse de Poggio por tais textos pagãos baseava-se numa apreciação meramente morfológica dos belos versos em latim. Um humanista é, antes de tudo, um católico; e ideias atomistas são bastante divergentes do pensamento neoplatônico aceito pela Igreja Católica. Foi necessário algum tempo para que o sincretismo pagão-cristão fosse considerado legítimo nos círculos florentinos. Já ao final do século, pensadores como Pico della Mirandola e Marsílio Ficino tomaram toda a sorte de fábulas, epopeias e poesias mitológicas como construções imagéticas capazes de serem lidas sob a luz de um aspecto moralizante, supostamente capazes de convergência com o catolicismo.10 O entusiasmo desta liberdade para abraçar os antigos em completa sintonia com o ideal platônico-cristão contribuiu para a enorme proliferação e intelectualização do fazer artístico renascentista, bem como a adoção da pintura, arquitetura e escultura entre as atividades nobres da alma. Se podemos estabelecer um ponto de aproximação entre a teoria poética lucreciana e as ambições dos artistas renascentistas que atingiam o status de intelectuais, seria o direcionamento das atenções para um profundo interesse pelo conhecimento dos processos naturais de um mundo no qual o ser humano está inserido. Por um lado, o atomismo pressupõe que as coisas do mundo ativam a percepção humana: estamos cercados por corpos sensíveis, compostos de inúmeras partículas que se unem e se dissipam, emitindo simulacros velozes que nossos sentidos capturam como imagens. Para conhecer o mundo, é preciso estar atento à pluralidade que nos cerca. O erro é proveniente de um falso juízo que fazemos sobre o mundo ao redor. Por outro lado, o platonismo pressupõe que todo o juízo que se faz do mundo não está no mundo, e sim na potência de um espírito que, através dos olhos, banha os objetos de uma luminosidade do conhecimento; observar um corpo sensível é abstrair dele sua forma inteligível. 11 Mas foi justamente o sincretismo filosófico do Quattrocento que possibilitou leituras de ambas as vertentes filosóficas com tamanha liberdade – arbitrariedade, talvez – constituindo assim um campo fértil para o entusiasmo poético dos artistas, agora também homens de espírito elevado. Segundo André Chastel, Florença reunira no século XV Greenblatt, 2012, p. 21-27. Chastel, 2012, p. 141-144. 11 Parente, 1993, p. 12. 9

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pontos de vista extremamente diversos diante da ambição de realizar uma espécie de compêndio da cultura universal. Os círculos humanistas definiam a história humana em grande ciclos históricos, orgânicos, e acreditavam que sua época presenciava a conclusão de uma evolução universal das artes, atingindo a perfeição.12 Chastel indica que Ghiberti, em seu terceiro livro, defende a necessidade do artista ser portador de um conhecimento universal, enciclopédico; a lista de disciplinas apontadas seria enorme. Tal conhecimento amplamente diverso tornaria o artista um representante completo da cultura. Leonardo e as famosas discussões sobre o Paragone também sustentam o universalismo de recursos da pintura.13 Nesse contexto, um dos traçados possíveis sobre a questão da rasura partiria deste homem que deseja abarcar a totalidade do mundo através do conhecimento: sendo a natureza uma das motivações essenciais da cultura renascentista, haveria de se encontrar um modelo cosmológico capaz de reger a multiplicidade das coisas concretas. Chastel nos diz: O fato é que a pintura, sendo ciência – e inclusive ciência por excelência –, deve ser capaz de “demonstrações matemáticas”. [...] A insistência imperativa sobre o fundamento matemático do saber encontra sua justificativa derradeira no fato de que não existe pintura sem a posse da harmonia, não existe harmonia sem proportionalità, não existem relações mensuráveis sem a lei dos números. Mas, ao estreitar assim os termos para melhor assegurar a “dignidade das formas”, deparamos com um limite abstrato com que o espírito não se satisfaz. A harmonia que se trata de alcançar é a própria unidade da natureza, mas a matemática não passa de um aspecto da ótica. A pintura “universal” deve corresponder a uma ciência “total” da visão [...]. Para a pintura é essencial toda uma ordem de fenômenos, que inclui a evanescência dos objetos e as ilusões da vista.14

Se por um lado Paolo Uccello seria o pintor eternizado pelas anedotas de seu fanatismo por perspectiva, por outro lado Leonardo seria o homem que renunciara à definição unitária de representação, de acordo com a passagem citada acima. Para Leonardo, a conquista mental da natureza pressupõe também as pequenas oscilações inerentes à percepção. Um aspecto que atravessa grande parte de sua produção seria a abertura para a multiplicidade através de um certo despojamento da forma. A prática do desenho era de enorme importância para o pintor, que se refere positivamente ao exercício contínuo de esboços vagos, por permitirem o movimento das formas. A linha contínua de contorno fechado constituiria uma clausura da imagem, impossibilitando os sucessivos recomeços. Trataremos no segundo capítulo do rascunho como uma espécie de rasura em estado de Chastel, 2012, p. 152. Ibid., p. 158. 14 Ibid., p. 400-401. 12 13


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latência; o inconclusivo como potência que aglutina em si todas as possibilidades de configuração por vir. IV Apesar da polarização entre classicismos e romantismos que a História da Arte optou por realizar entre os objetos de seu estudo, podemos tatear entre as produções do modernismo artístico diversas texturas de um sentimento universalista, desejoso de saídas iluminadas para o impasse funcional que a era das técnicas colocara diante dos artistas. O diagnóstico que Arthur Danto fizera sobre a Era dos Manifestos16 nos remete ao desejo intrínseco das vanguardas de atrelar cada uma a sua própria produção uma essência filosófica de pureza, que excluiria portanto as vias seguidas pelos demais. Entre as tendências construtivas talvez estejam os manifestos mais categóricos quanto à especificidade; são enfáticos sobre a vontade de uma práxis racional da arte, coerente com o vertiginoso processo de transformação social do início do século XX. Seguindo a via do abstracionismo a partir de Malevich, temos a “certeza” de ter chegado à forma elementar capaz de se sobrepor ao conhecimento empírico da visão, assinalando a ascendência de um signo geométrico, o quadrado, que está “cheio da ausência de qualquer objeto”,17 e repleto de significação. É relevante notarmos que Malevich remete seu Quadrado Negro (1915) a um esboço realizado

Fig. 1 Kazimir Malevich, Esboço para Vitória Sobre o Sol, 1913. Fonte: Wikimedia Commons.15 Disponível em: <http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Malewitsch,_Vorhang.jpg>. Acesso em: 11 abr. 2013. 16 Danto, 2006, p. 33. 17 Scharf, 2000, p. 100. 15


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para a ópera futurista Vitória Sobre o Sol (1913), onde o quadrado seccionado na diagonal apresenta uma metade em branco, luminosa, e a outra metade eclipsada por um preenchimento negro.18 Seria lícito tomarmos tal exemplo como a obliteração da mimese pela assunção de um sentido não-retiniano da arte? A própria ideia de obliteração é importante para nossa pesquisa. O terceiro capítulo será dedicado ao questionamento das relações entre o infinito e o inteligível, e a relação entre os vocabulários formais com a busca de um grau zero da pintura.

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Foster; Krauss; Bois; Buchloh, 2007, p. 123-124.



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DO ATOMISMO ÀS INCERTEZAS Em julho de 2012 alguns jornais ao redor do mundo noticiaram que pesquisadores da Universidade Griffith, na Austrália, conseguiram realizar um fato inédito: fotografar a sombra de um átomo.19 Os cientistas utilizaram um campo elétrico para suspender um íon de itérbio em uma câmara de vácuo; este, a seguir, recebeu um feixe de laser. O átomo absorveu uma pequena porção da luz, e a sombra resultante foi ampliada por uma lente acoplada a um microscópio sendo então registrada por um sensor de câmera digital. Embora tal notícia não tenha recebido grandes atenções da mídia internacional, podemos experimentar uma sensação de estranhamento diante da imagem alaranjada com um ponto negro ao centro, disforme, pixelada. A princípio, a questão que este pequeno fragmento de itérbio – substância metálica da qual só temos alguma ideia após uma rápida verificação da tabela periódica – suscita é o fato de que as teorias científicas não dependem necessariamente de fenômenos observáveis, embora presumíveis. Desde a primeira sugestão que Leucipo de Mileto fizera sobre a constituição da matéria a partir de átomos, por volta do século V a.C., até o momento em que os jornais nos oferecem esta foto, a constituição do saber científico se emancipara do saber filosófico, voltando-se para uma prática experimental e teórica que recorre a próteses perceptivas quando busca formular imagens do que está além dos limites sensoriais humanos. Mas ainda assim, o que nos é dado a ver do íon de itérbio é justamente a sua ausência, já que se trata da sombra causada pela luz que este absorvera quando iluminado.

Fig. 2 Átomo gerando a sombra ao ser atravessado pelo laser. Fonte: Stenovec, 2012.

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Stenovec, 2012.

Fig. 3 A sombra do átomo de itérbio. Fonte: Stenovec, 2012.


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Poderíamos neste ponto evocar a relação mitológica da imagem com a ausência, lembrando que Plínio relata em sua Historia Naturalis a fábula da jovem filha de um oleiro chamado Dibutades que fizera um decalque, com carvão, da sombra do corpo de seu amado na parede para poder guardar a marca da presença física em seu quarto depois que ele partisse para uma viagem.20 Essa fábula sobre a invenção do desenho é bastante citada nos estudos sobre fotografia, aludindo ao regime de presentidade-memória em textos como os de Phillipe Dubois ou Rosalind Krauss. A filha de Dibutades é muitas vezes lembrada como a criadora do traço indicial, que se intensificou com o uso da fotografia. Este é um eixo de investigação bastante rico, mas por ora, voltemos aos átomos. A natureza das coisas I Se optamos por localizar em Lucrécio um ponto de apoio para nossas considerações a seguir, trata-se de uma escolha baseada no fato de que sua obra foi concebida entre aspirações poéticas e filosóficas. A estrutura morfológica herdada da poesia épica grega nos escapa na tradução brasileira em prosa, mas ainda assim é possível notar que suas imagens alegóricas de uma postura contemplativa perante os fenômenos naturais são de grande sofisticação. Tratamos de um dos dissidentes do pensamento metafísico, comprometido à sua maneira com o desejo de entendimento do mundo ao redor, propagando as ideias de Epicuro. O projeto de Da Natureza não visa expor o sistema atomista de forma rigorosa, e evita prolongar-se em termos técnicos que comprometam a fluência do desenvolvimento poético. Algumas breves considerações sobre esse sistema, entretanto, nos são válidas: a)

Toda a matéria que há no mundo é formada por partículas invisíveis, e indivisíveis. Tais partículas são de número infinito, e são eternas. Todas as coisas, sejam grãos de areia, seres humanos ou o próprio sol, se formam a partir destes pontos microscópicos, e quando morrem seus átomos se dispersam, para novamente se reagruparem em outras configurações. Portanto, mesmo as coisas que nos parecem mais estáveis tem uma duração

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Plínio apud Dubois, 1993, p. 117-118.


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finita que lhe é própria, de um intervalo temporal que pode muito bem escapar ao percepto humano.21 b)

A quantidade de partículas existentes é infinita, mas elas são limitadas quanto à forma e ao tamanho – assim como um sistema de escrita contém um determinado número de signos capazes de gerar as mais diversas combinações de palavras. Essas combinações, como a linguagem, obedecem a uma espécie de código, já que alguns átomos facilmente se conectam e outros se repelem.22

c)

Além dos átomos, existe o vazio que lhes possibilita a mobilidade; ambos necessitam um do outro. Lucrécio concebe toda a pluralidade da natureza como nada além do movimento da matéria (átomos) no espaço (vazio). A justa medida tanto da matéria como do espaço é dada pelo seu oposto; nada mais existe além disso.23

d)

“Nada se pode criar do nada”.24 Quando se diz que não há nada além de átomos e vazio, não há também ordem divina, responsável por gerenciar os encontros e desencontros da matéria. Se vemos que as coisas e os seres da natureza assumiram uma forma específica em detrimento de qualquer outra, foi o resultado de muitas eras de tentativa e erro, fracassos e sucessos. O governo das combinações se dá pelos encontros do acaso. “Nada portanto, volta ao nada; tudo volta, pela destruição, aos elementos da matéria”.25

e)

A duração da alma humana está restrita à duração do corpo. Não existe corpo sem alma, não existe alma sem corpo. E de tal suposição não percebemos o menor traço de infelicidade diante da finitude: Lucrécio dedica o terceiro livro a examinar a relação entre o espírito e o corpo, e conclui que se não há vida após a morte, não há necessidade de temor de punições

eternas

dos

deuses

além

da

vida.

As

religiões

são

indiscriminadamente cruéis ao preencher o homem de temor do sofrimento eterno. O propósito da vida estaria então ligado à ampliação do prazer. Não

Greenblatt, 2012, p. 157. Ibid., p. 158. 23 Ibid. 24 Lucrécio, 1973, p. 41. 25 Ibid., p. 42. 21 22


28

um prazer de excessos, mas o prazer de uma vida simples, sem dores e sem ilusão.26 II Diante desta breve apresentação de algumas ideias lucrecianas, podemos ter por um instante um sentimento de profunda conexão com todas as coisas existentes, das vivas às inanimadas; e ao observar a vertiginosa pluralidade de todos os nossos “irmãos” de matéria, devemos concordar com o princípio deleuziano da Natureza antes como uma soma, e não como um Todo possível de ser delineado em um conjunto que reúne toda a matéria em uma massa compacta.27 O que é essencial à Natureza é justamente o fato de que seus elementos só existem sob a condição de seres diversos, heterogêneos e separados uns dos outros; e se em algum momento se dissipam, é para dar lugar a novas coisas, sem nunca voltar a ser exatamente como eram. Ao pensar conceitos provenientes desta vertente naturalista do pensamento, Deleuze propõe uma torção da metafísica que delega à aparência das coisas o posto de um subproduto de menor qualidade, desvinculado de uma essência verdadeira. Se o ser humano está destinado, pelos limites de sua sensibilidade, a lidar com o mundo dos simulacros como a única forma possível de contato com as coisas ao redor, talvez tais ideias atomistas apresentadas por Lucrécio tenham seu valor pelo fato de que tentam lidar com a materialidade do mundo. Até a noção de vazio geralmente atrelada a uma instância negativa assume seu grau de concretude: trata-se do éter, o magna res. Durante o movimento, ou melhor, durante a “queda” neste meio espacial, os átomos estão sujeitos aos encontros ocasionados pelo clinamen, que pode ser entendido como acaso num sentido muito específico: é um movimento impossível de ser designado e que assinala a pluralidade irredutível de todos os encontros possíveis. Deleuze ressalta que dentro do método de Epicuro, o átomo é aquilo que só pode ser pensado, enquanto o objeto sensível é aquilo que só pode ser sentido. A impossibilidade de vermos ou sentirmos o átomo não se deve à imperfeição de nossos aparelhos perceptivos; é da natureza do átomo que ele seja destinado ao pensamento.28 Assim como os objetos sensíveis podem ser percebidos até o limite de um mínimo sensível, o átomo está atrelado a um mínimo Greenblatt, 2012, p. 163-166. Deleuze, 1974, p. 274. 28 Ibid., p. 275. 26 27


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pensável. E justamente o clinamen, que é o responsável pelo desvio dos átomos (desvios que causam as infinitas combinações), se dá num tempo rapidíssimo, muito menor que o menor tempo de que somos capazes de pensar. É aí que reside a incerteza. Analogamente, os simulacros são uma espécie de fluido que emana dos objetos sensíveis, formados por combinações muito específicas de átomos. Só percebemos os objetos através dessa virtualidade etérea que eles emitem. Tais emissões são também rápidas demais para nossos sentidos; não percebemos cada simulacro isoladamente, pois são mais rápidos que o mínimo de tempo sensível. O que chega a nós é a imagem, formada pela somatória de simulacros emitidos pelo objeto; e se eles constituem alguma unidade é pelo fato de que o objeto real os atualiza constantemente.29 Há ainda uma outra espécie de emanações, que seriam capazes de se desprender dos objetos, constituindo uma instância capaz de circular livremente, além de apresentar extrema inconstância nas imagens que formam. Trata-se de fantasmas, que são rápidos e tênues o suficiente para gerar as ilusões dos homens. Em um artigo de Luciano Lima, existe um breve esclarecimento que é interessante para nós quanto a questão do simulacro: O simulacro de Lucrécio busca bases científicas para a sua sustentação, enquanto o simulacro platônico só pode ser sustentado através do misticismo, da ideia de que existem dois mundos, duas dimensões de realidade. O infinito de que trata o pensamento mítico seria, para Lucrécio, o falso infinito, estando o verdadeiro infinito na diversidade e mutabilidade infinita das coisas naturais.30

Se é possível extrair daí um sentido de conexão com a contemporaneidade, talvez seja pela via dos simulacros atuais, relacionados ao fenômeno das virtualidades técnicas e aparatos de simulação espetaculares, onde a noção de uma “função” da imagem é praticamente dissolvida. Voltando a Deleuze: O Naturalismo, segundo Lucrécio, é o pensamento de uma soma infinita onde todos os elementos não se compõem ao mesmo tempo, mas, inversamente também, da sensação de compostos finitos que não se somam como tais uns com os outros. [...] O infinito é a determinação inteligível absoluta (perfeição) de uma soma que não compõe seus elementos em um todo. Mas o próprio finito é a determinação sensível absoluta (perfeição) de tudo aquilo que é composto. A pura positividade do finito é o objeto dos sentidos; a positividade do verdadeiro infinito, o objeto do pensamento. Nenhuma oposição entre esses dois pontos de vista, mas uma correlação. Lucrécio fixou por muito tempo as implicações do Naturalismo; a positividade da Natureza, o Naturalismo como filosofia da afirmação, o pluralismo 29 30

Deleuze, 1974, p. 281. Lima, [2009?], p. 5.


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ligado à afirmação múltipla, o sensualismo ligado à alegria do diverso, a crítica prática de todas as mistificações.31

O que nos chama a atenção ao final desta exposição sobre Deleuze e Lucrécio, e de certa forma motivou grande parte da constituição de nossos estudos é proposição do infinito como uma soma que jamais atinge a totalidade; o infinito como matéria inteligível, do pensamento. Entretanto, por outro lado, o mundo da sensibilidade é onde nos relacionamos com a finitude das coisas, com a escala humana do tangível. A partir do momento em que o ser humano, desejoso de estabelecer uma linha que envolva o Universo em um aglomerado de conhecimento, se lança à tarefa de abarcar o infinito através de seus dotes sensíveis, temos aí uma operação – bem problemática, no entanto – que nos parece digna do campo das indagações da arte. Gênese do gesto I Dado o ambicioso projeto de reconciliar em sua pintura a fugacidade das sensações provocadas pela natureza e a ordenação humana da inteligência diante das coisas percebidas, Paul Cézanne se entrega ao exercício febril de um labor que se estende por toda sua vida. O engajamento passional do pintor francês é ao mesmo tempo a premissa para a realização de uma pintura capaz de influenciar a arte de todo o século subsequente, e aspecto constituinte de uma personalidade que o faz indócil, irascível. Não que seu comportamento colérico seja determinante para a apreensão de sua obra, e é importante deixarmos de lado os aspectos psicologizantes se pretendemos alcançar a essência íntima do trabalho de arte. Mas como nos diz Maurice Merleau-Ponty em seu significativo texto dedicado ao pintor, o empenho em alcançar a totalidade da experiência através da contingência corpórea ao qual o ser humano está submetido só permite à Cézanne “uma única emoção possível: o sentimento de estranheza, e, um único lirismo: o da existência sempre recomeçada”;32 “a verdade é que essa obra por fazer exigia essa vida”.33 O desejo de conferir concretude à sensação solicita a Cézanne uma metodologia rigorosa. Abandonara a ortodoxia impressionista da fusão ótica de tons puros para estabelecer sua própria palheta de dezoito cores. Pintara retratos, sim, mas a disponibilidade exigida pelas Deleuze, 1974, p. 286. Merleau-Ponty, 2004, p. 133. 33 Ibid., p. 136. 31 32


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longas sessões de estudo e observação talvez indicasse que as paisagens e naturezas-mortas seriam modelos mais assíduos. David Sylvester nos conta, inclusive, sobre o extremo controle que impusera a suas pequenas porções de natureza modulada, onde laranjas e maçãs eram calçadas com moedas para que lhe oferecessem uma melhor disposição.34 Pintara ao limite da exaustão um mesmo tema, uma paisagem familiar; e nos presenteara com uma série de belas pinturas da Mont Sainte-Victoire – da mesma montanha, pinturas completamente diferentes entre si. Ainda assim, questionara-se até o fim da vida quanto à legitimidade de seus esforços. A Dúvida de Cézanne reside na tentativa constante de apreensão do instante percebido. A fuga do visível é interminável, e essa busca incapaz de ser concluída talvez seja a própria textura que confere enorme vigor à sua obra. Esta hesitação do pintor calcada no desejo de eterna atualização do instante talvez nos sirva como imagem aproximada de um movimento rasurante que pretendemos alcançar, de alguma forma. Cézanne desejara abraçar a totalidade da experiência em sua obra, reduzindo seu gesto a um mínimo de elementos que repetidos continuamente ampliaram largamente as possibilidades da pintura. Tomemos sua hesitação quanto ao alcance de seus objetivos como a fagulha geradora de uma rasura em potencial. II O que é uma rasura? Já fizemos uma breve verificação etimológica durante a Introdução. Vimos que se relaciona com a ideia de fragmentação por raspagem, por esfregaço. Há a hipótese de que o gesto rasurante que imprime ilegibilidade a um texto seja de natureza subtrativa: ao se exercer movimento de repetição sobre uma superfície com inscrições, se deseja obliterar pouco a pouco o simbólico ali contido, restituindo ao suporte sua natureza primeira, corporal. Rasurar seria, de certa maneira, conceder novamente à matéria sua ausência de sentido. A raspagem que leva à dissolução do conteúdo aparenta ser de motivação passional, sutilmente violenta, se impondo de maneira ativa ao objeto rasurado. Uma vez eliminada da página a presença do signo verbal, podemos constatar que tal operação implica a geração de um resíduo. A todo processo de erosão corresponde um sedimento equivalente. Podemos até mesmo pensar na formação do pigmento utilizado em pintura como um “desgaste” da matéria sensível: produzir pigmentos não seria como transformar a matéria do mundo em pó para criar um elemento de virtualidade – a cor na 34

Sylvester, 2007, p. 109.


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pintura? Se a princípio tratamos o gesto rasurante como um ato de caráter subtrativo, precisamos agora constatar que o resultado de tal operação fragmentadora também forma um pó, um farelo amorfo, prova física do esforço empregado. Do documento escrito faz-se agora um objeto esfolado e sua limalha; nota-se que a descontinuidade da matéria enquanto forma sensível possui uma gênese pensável de origem comum. A rasura pode ser ausência, mas ausência de contiguidade. Se observarmos uma rasura do ponto de vista morfológico, esta nos remeterá de maneira muito mais direta a um processo aditivo, de aglutinação do gesto; gesto gerador de fragmentos heterogêneos, de uma soma de pequenas partículas que não se totalizam. A zona de indiscernibilidade como resultado de um labor manual condensa em si uma presença. O que impele o sujeito ao ataque, à eliminação da palavra anteriormente grafada? Infinitas são as possibilidades de entrada nesta questão. O domínio das palavras baseia-se desde suas origens numa certa eficácia representativa. Os códigos são contingentes, e modificam-se continuamente com o passar do tempo histórico. É inerente a qualquer signo, transformar-se. Acreditamos que a esta altura, as curiosas hipóteses atomistas possam constituir uma via de pensamento sobre o desejo inscritivo inerente à condição humana de preservar seus perceptos, ideias e memórias, sempre sujeitos a variações sutilíssimas: poderiam ser mudanças análogas ao clinamen, que assinala a virada menor que o mínimo de tempo pensável; ou poderiam ser como a emissão etérea de simulacros, menores que o mínimo de tempo sensível. A escala cognitiva e perceptiva humana precisaria encontrar uma maneira de lidar com o desejo de legitimação enciclopédica de conhecimento do Todo. Como conciliar esse desejo de totalidade com a pluralidade irredutível das séries causais, uma gama infinita de espécies que variam a todo instante? Contendo o real I O saber científico muitas vezes assume pelo método que lhe é próprio a atualização e revisão das certezas vindas de experimentos realizados em um contexto específico; isto quando se estabelece um regime de normas que asseguram que um determinado fenômeno possa ser repetido e provado em uma situação particular. Mas não ignoramos que dentro do largo conceito de ciência há aqueles saberes específicos capazes de lidar com o incerto, capazes


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de analisar sistemas de vertiginosa complexidade sem lhes negar a sofisticação das relações internas. De qualquer forma, qualquer empreendimento de indexação dos saberes humanos deve contar com atualizações, deve de antemão estar consciente de seu caráter não definitivo. O modelo enciclopédico com o qual estamos acostumados é derivado do ambicioso projeto iluminista da Encyclopédie, ou Dictionnaire raisonné des sciences, des arts et des métiers (1750-1772), organizada por Denis Diderot e Jean D’Alembert. Um misto de verbetes objetivos e proposições provocativas, o projeto é um compêndio de todo o saber humano até o século XVIII, em várias áreas: religião, ciência, artes. Por conta das críticas à Igreja e ao Estado atraiu condenação oficial; mas mesmo assim obteve enorme sucesso de vendas, já que todas as 4 mil coleções impressas se esgotaram.35 A Encyclopédie possibilitaria, pela primeira vez, o amplo acesso dos cidadãos comuns ao panorama geral do conhecimento científico e filosófico existente. Esta obra contém cerca de 70 mil verbetes dispostos em ordem alfabética – surgindo possivelmente daí a supremacia deste método de organização que adotamos para praticamente qualquer conjunto de informações textuais. Atualmente, com o vertiginoso crescimento do modelo de hipertexto que vincula as informações em uma rede não hierarquizada, e que se popularizou por conta dos meios de informação digital, é que talvez tenha sido substituído o critério alfabético. Mas, curiosamente, pouco menos de um século antes do lançamento da Encyclopédie, Leibniz propusera um sofisticado método enciclopédico: o método de ordenação dos saberes por ordem de descoberta. Leibniz se referia a seu desejado projeto da seguinte forma: Tenho pensado comigo muitas vezes que os homens poderiam ser muito mais felizes do que são, se aquilo que eles potencialmente têm, também o pudessem ter efetivamente, para que, assim que precisassem, pudessem usá-lo. Ora, a verdade é que nós mesmos não conhecemos nossas potencialidades; somos como um negociante que não faz o livro-caixa ou como uma biblioteca sem fichário. E também, do modo como agimos, talvez possamos ser úteis a nossos longínquos descendentes, nós próprios não colheremos os frutos de nossos trabalhos; vamos discutindo, vamos acumulando sem parar e raramente acabamos demonstrando algo ou fazemos disso um inventário; mal tiramos proveito de nossos estudos. E se assim continuarmos, deveremos cuidar para não ser atingidos por um mal incurável <e para que a ignorância não seja restaurada pela aversão ao estudo>, quando a exagerada quantidade de coisas e livros suprimir qualquer esperança de discernimento e o que é estável e útil for obscurecido pela massa de coisas sem valor.36

35 36

A Idade da Razão, 1992, p. 9. Leibniz, 2007a, p. 95.


34

Escrito em junho de 1679, o Consilium de Encyclopaedia nova conscribenda methodo inventoria (ou Projeto a respeito de uma nova Enciclopédia que deve ser redigida pelo método da descoberta) expressava o intuito de organizar os conhecimentos de tal forma que possibilitasse o crescimento orgânico do conjunto, à medida em que novas coisas fossem descobertas. Embora especifique de forma bastante precisa as categorias de conhecimento, bem como o método adequado de redação e medida de aplicação dos esquemas ilustrativos, a “ordenação dos conhecimentos pela ordem de sua descoberta”37 sugere apenas de forma implícita o caráter cronológico. Se uma “verdade” atual fosse, com o passar dos anos, colocada sob suspeita – ou até mesmo descartada como falsa – por novas descobertas, seria feita a correção do verbete antigo em uma nova edição, ou se preservaria intacto todo o conteúdo preexistente – apenas acrescentando ao final do último volume o novo saber, destacando a anulação da antiga verdade? De acordo com a descrição do projeto, parece-nos que a segunda alternativa se enquadra melhor aos desejos de Leibniz. A publicação brasileira deste texto acompanha artigo introdutório formulado pelos tradutores, onde se discute a importância de um novo método de ordenação do conhecimento para o homem barroco: é possível que tenha sido esta a época da aparição do conceito de progresso científico. Os circuitos eruditos do Renascimento acreditavam que todos os saberes possíveis já haviam sido descobertos durante a Antiguidade, e que a organização dos conteúdos se fazia necessária apenas para fins de ensino, de propagação. É do século XVII a vontade de ampliação do conhecimento, o desejo de substituir o método meramente didático por um método de que permitisse a descoberta de novas verdades – uma ars inveniendi.38 A princípio, Leibniz estabeleceu que as disciplinas desta enciclopédia deveriam começar por aquelas que se relacionam com os meios de invenção, ou seja, com aquilo que possibilita formular o juízo racional das novas verdades: a gramática, a álgebra. A seguir, a metafísica, já que Deus seria a origem das “primeiras verdades”: os labirintos do tempo, do lugar, dos átomos e do infinito. E por fim, as ciências da natureza: geometria, física, medicina. Seriam as “verdades contingentes”. Parece-nos que se trata de um modelo gradativo, da razão imutável e eterna, para os saberes mais “voláteis”, digamos assim. Este modelo nos leva a pensar a enciclopédia como um núcleo rígido e bordas difusas, uma interessante possibilidade para uma série infinita de desencadeamentos. Ou então como uma semirreta, onde um ponto estabelece o princípio racional, e segue por todo o conhecimento, sem fim. 37 38

Molina; Hoffmann, 2007, p. 82. Ibid, p. 82-83.


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Com este projeto, Leibniz acreditava que a visualização simultânea de diversos verbetes (assim como ocorre na disposição de dados em um gráfico ou uma tabela) permitisse que uma pessoa pudesse chegar a novas conclusões por meio da síntese, operando conexões entre os saberes dispostos lado a lado – não sendo mais o método analítico a única forma de compreensão de um corpo ou sistema. Leibniz relaciona a ars inveniendi com a combinatória, ou seja: enquanto a análise isola os objetos, fragmenta-os e observa todas as menores partes possíveis, a metodologia da síntese é capaz de gerar novos conhecimentos através da relação de um corpo com sua exterioridade: Encontro duas partes na arte da invenção, a combinatória e a analítica; a combinatória consiste na arte de inventar questões; a analítica consiste na arte de descobrir as soluções das questões. Frequentemente, contudo, acontece que as soluções de algumas questões têm mais relação com a combinatória do que com a analítica, [...] onde os meios a serem buscados estão fora da coisa. [...] Falando claramente, é analítica a investigação quando dividimos com exatidão a própria coisa em tantas partes com a máxima exatidão possível, observadas minuciosamente a posição, a relação, a forma das partes e as partes das partes. A arte sintética ou combinatória ocorre quando, para explicar uma realidade, assumimos outras coisas externas à coisa que deve ser explicada.39

Ou ainda: Ela (a arte das combinações) significa para mim tanto a ciência das formas ou das fórmulas como ainda das variações em geral; em uma palavra, ela é a especiosa universal ou a característica. De modo que ela trata do mesmo e do diverso, do semelhante e do dessemelhante; do absoluto e do relativo; assim como a matemática ordinária trata do uno e do múltiplo, do muito e do pouco, do todo e da parte.40

Se esse método possibilita que novas descobertas sejam feitas, seriam estas fruto de um desencadeamento lógico irreversível? Cada novo verbete acrescentado abre, por um lado, um leque de possibilidades. Mas será que evitaria a emergência de descobertas divergentes do já legitimado? Quais os limites do universalismo?

39 40

Leibniz apud Molina; Hoffmann, 2007, p. 90-91. Ibid, p. 92.


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Fig. 4 Frontispício de Ars Combinatoria, 1690, de Leibniz. Diagrama de combinações dos elementos (ar, terra, fogo, água) e suas conexões possíveis. Fonte: The Erwin Tomash Library.41

II Para Leibniz, a realidade é constituída por tipos de substâncias, das quais podemos encontrar um panorama em seu texto A Monadologia. A grosso modo, seus princípios parecem considerar um Universo onde a imperfeição é aquilo que se diferencia da perfeição divina. Todas as essências possíveis teriam sido concebidas por Deus; tais essências, as mônadas, são indivisíveis, “sem portas nem janelas”42, e formam tudo que existe, do mundo inanimado à alma. As mônadas seriam regidas de acordo com a harmonia do Criador, que diante de todo o espectro de mundos possíveis, escolhe o melhor para que exista. Chama-se incompossibilidade a relação do mundo atual, o escolhido, com os outros mundos que, embora possíveis, são inexistentes. Deleuze nos apresenta o conceito leibniziano de um mundo onde cada indivíduo possa expressar o conjunto de um único Universo possível, mesmo que só uma parte se apresente claramente. Seriam compossíveis todas as “séries convergentes e prolongáveis que constituem um mundo”,43 e todas as “mônadas que expressam o mesmo mundo”.44 Todos os Disponível em: <http://www.cbi.umn.edu/hostedpublications/Tomash/index.htm>. Acesso em: 28 abr. 2013. Leibniz, 2007b, n.1. 43 Deleuze, 1991, p. 94. 44 Ibid. 41 42


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acontecimentos de um mesmo mundo devem ser coerentes entre si; são singularidades que se relacionam em um conjunto de séries causais. Supondo que pudéssemos estabelecer duas singularidades aparentemente próximas, mas que se contradissessem, tais não poderiam pertencer ao mesmo mundo. Seriam divergentes, incompossíveis. O foco para nossa pesquisa aqui é considerar que a teoria das relações em Leibniz não pressupõe que uma substância seja impossível em si mesma. O que evita que todos os possíveis presentes em Deus venham a coexistir simultaneamente em um único mundo é da ordem de relações de mútuo impedimento, e não de uma contradição interna de cada possibilidade tomada isoladamente.45 Mesmo sob o risco de uma constatação redundante, nos parece cabível expressar em termos diretos que cada possibilidade por si só é sempre verossímil; seriam como fragmentos de realidade latentes, que só não conquistam o direito de existência por impedimentos externos, por conta de outras realidades já vigentes. Deleuze inclusive faz questão de trazer para sua discussão leibniziana outro campo dos saberes onde os mundos divergentes pudessem todos coexistir paralelamente; e nos remete à literatura fantástica de Borges. O conto O Jardim de Veredas que se Bifurcam (1941)46 foi escolhido por Deleuze como um dos “locais” onde se realiza a coexistência de mundos paralelos. Na narrativa, o filósofo chinês Ts’ui Pen consegue, através de um complexo romance (concebido ao longo de treze anos, mas que não chegou a ser concluído dada a morte do personagem), arquitetar um sistema infinito de tempos possíveis coexistentes – que podem muito bem existir paralelamente, sem que um interfira no outro; ou podem em um dado momento confluir em uma série única, se expandindo infinitamente em desencadeamentos que se entrecruzam. Se em Leibniz a coexistência de séries divergentes não procede, em Borges (Deleuze chega a chamá-lo de discípulo de Leibniz47) percebemos o desejo de tornar a incompossibilidade compossível, pelo menos no domínio da ficção. A adoção desta interpretação do regime relacional em Leibniz partiu de um artigo de Edgar Marques, publicado em 2006. O autor se dispõe a investigar se o sistema das incompossibilidades se estabelece como um axioma do filósofo, ou se é resultado de uma motivação estrutural inerente à própria arquitetônica teórica. Para tanto, Marques propõe uma estratégia de reconstrução diante da hipótese de se pensar as substâncias independentemente do mundo a qual pertencem – e deixa claro que se trata apenas de um recurso metodológico. Expõe, inclusive, em uma nota, que fora objetado em uma apresentação oral, diante da premissa leibniziana de que cada substância já expressa em si a totalidade do mundo a qual pertence (e assim como já o expusemos através de Deleuze), e que não faria sentido pensar qualquer separação. Entretanto, o argumento de Marques se apresenta esclarecedor para nossos objetivos aqui neste estudo. Não pretendemos nos aprofundar sistematicamente no pensamento de Leibniz, pelo menos não neste texto. Sendo assim, o caminho para se pensar que todas as possibilidades não se “concretizam” simultaneamente apenas por causa da rede de relações e não por uma inconsistência interna nos parece bastante interessante. Marques, 2006, p. 156. 46 Borges, 2007, p. 80-93. 47 Deleuze, 1991, p. 97. 45


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Localizamos ainda outro inesperado encontro entre filósofo e o escritor. Em um de seus contos mais famosos, A Biblioteca de Babel (1941)48, Borges nos apresenta um sistema arquitetônico do qual não podemos ter noção dos limites. Apenas sabemos que na estrutura modular de salas hexagonais, todas organizadas internamente e conectadas da mesma maneira, existem abundantes volumes uniformemente distribuídos, cujos dizeres até o momento se mostram praticamente inacessíveis. Os habitantes desta biblioteca optam pelos meios mais diversos de lidar com o desmesurado tamanho do lugar e seus livros de conteúdo enigmático. Há aqueles mais céticos, que “repudiam o supersticioso e vão costume de procurar sentido nos livros e equiparam isso à busca do sentido nos sonhos ou nas linhas caóticas das mãos”. 49 Houve o tempo do entusiasmo, quando se descobriu que todo o conhecimento do mundo estava na biblioteca, já que não havia sequer um tomo repetido e que todos eles eram exemplares únicos de todas as combinações possíveis de um determinado número de caracteres; bastaria achar os volumes que fizessem algum sentido. Chegara logo mais o período do descontentamento: após muitas buscas e algumas baixas, foi aceito que era praticamente impossível encontrar algo esclarecedor, mesmo que estivesse ali, em algum lugar. Borges no fornece uma única certeza: “[...] deduziu-se que a Biblioteca é total e que suas prateleiras registram todas as possíveis combinações dos vinte e tantos símbolos ortográficos (número, ainda que vastíssimo, não infinito), ou seja, tudo o que é dado expressar: em todos os idiomas.”50 Fato é que, em Leibniz, uma preocupação bastante semelhante sobre o número de enunciados possíveis é esboçada. Qual não fora nossa surpresa durante a leitura da já citada introdução ao Consilium diante do seguinte recorte textual dos tradutores: Quando os caracteres são letras e essas letras representam grandezas, temos a álgebra; se as letras representam conceitos, temos a silogística; e se elas representam palavras, temos a criptografia. [...] Leibniz faz uma observação interessante sobre a evolução do conhecimento humano. Como o alfabeto tem 24 letras, Leibniz encontra que o número de palavras (com ou sem sentido) não pode ultrapassar [(2433- 24) / 23] e encontra como limite superior para o número de enunciados possíveis 10 elevado a 7.300.000.000.000. Sendo assim, conclui Leibniz, se a humanidade perdurasse um tempo suficiente “não se diria mais nada, que já não tivesse sido dito”.51

Borges, 2007, p. 69-79. Ibid., p. 72. 50 Ibid., p. 73. 51 Molina; Hoffmann, 2007, p. 92. 48 49


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Podemos presumir que, a partir deste ponto, a ideia de infinito assume sentidos sutilmente diferentes: o primeiro seria o infinito atual, da simultaneidade de todo o existente, incapaz de ser abordado pelo ser humano senão através dos esquemas lógicos da inteligência. Outro tipo de infinito seria uma espécie de “falso” infinito – ou melhor, algo que tenha limites estabelecidos (portanto, finito) para além da escala perceptiva humana. Tratamos do imenso e do minúsculo, dos corpos que escapam a qualquer tipo de antropomorfismo. Como lidar com tais escalas? Limites perceptivos I Voltemo-nos agora para outra via de pensamento também situada no século XVII. É curiosíssimo revisitar textos filosóficos e científicos de uma era profundamente otimista quanto à glória da razão humana; a crescente fermentação intelectual estimulava os homens a não só compreender o mundo, mas também transformá-lo. Se neste contexto histórico as proposições de Newton desmantelaram a arquitetônica do cosmo cristão, faltaria muito pouco para que no século seguinte o aperfeiçoamento de aparatos como o microscópio e o telescópio revelassem aos olhos uma parcela a mais da complexidade dos astros e de minúsculos corpos do nosso mundo. A partir deste de momento, há de se lidar com o fato de que um reles inseto comporta também uma estrutura bastante complexa, a seu modo. Para nosso olhar contemporâneo, portador de toda a carga de ascensões e declínios do conhecimento, quebras de paradigma, descontentamentos civilizatórios e tudo mais, o tom de determinados escritos da Era Moderna assume interesse por nos parecer quase ficcional, tal como nas narrativas fantásticas de Calvino, Borges, Cortázar. As cosmologias nos são inacreditáveis, justamente pelo fato de conter tamanha fé sobre a certeza de seus fundamentos. Ao examinarmos os escritos de Blaise Pascal, por exemplo, notamos a profunda convicção que o filósofo-matemático deposita sobre a potência do intelecto humano. Diante da natureza, o homem não passaria de um mísero e frágil animal, talvez um dos mais vulneráveis diante da profusão de fenômenos da Terra. Se existe algum diferencial entre o homem e seu meio de vida, é o fato de ser um animal pensante, sendo esta a única qualidade para dignificar sua espécie. Entende-se por pensamento algo muito específico: é da ordem do inteligível, a atividade cognitiva do espírito que não depende das contingências sensíveis. A constituição da razão estaria acima de qualquer fragilidade corpórea. Pascal diria que um ser


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humano desprovido de seus dotes sensoriais e em débil condição ainda assim possuiria sua grandeza pelo fato de estar consciente de si mesmo. As teorias pascalianas pressupõem dois tipos de raciocínio: aquele de tipo geométrico e outro, o sutil. Como já dito, o que rege os raciocínios é o espírito, responsável por abstrair do mundo as formas representativas com as quais constrói o entendimento. O raciocínio geométrico seria aquele fundado em princípios certeiros, evidentes porque são fruto de uma concatenação mental espacializante. Somos capazes de visualizar porções de espaço simultaneamente, medi-las e compará-las, habituando nossa visão a estes modelos mais claros. Já o raciocínio de tipo sutil se comporta de maneira oposta. Esta última categoria se ocupa dos juízos mais numerosos, e quase imperceptíveis; quase sempre configuram uma nuance estreita para as quais o espírito deve estar atento. É notável o sentimento de pequenez humana, ainda que corpórea, no texto O Homem perante a Natureza.52 Trata-se de um fragmento dedicado a refletir brevemente sobre quais seriam os limites do conhecimento. Pascal parte da premissa de que o homem, ciente de si mesmo, passa a comparar seu próprio corpo com as outras porções de matéria que o cerca. A partir daí, coloca-se a contemplar a Natureza em sua plenitude; e jamais se esquecendo de que a própria Terra não passa de “um ponto insignificante na rota dos outros astros que se espalham pelo firmamento”. 53 Este recorte se relaciona com suas indagações acerca da veracidade dos conceitos científicos, necessariamente dependentes da condição humana e sua estrutura de racionalidade. Pascal investiga qual seria o ponto de inflexão da razão perante a vastidão do Universo. O homem estaria “condenado” a uma posição de assombrosa desproporção quando se compara à realidade ao redor; a própria ciência deve ter noção de sua abrangência. O humano limita-se a existir entre dois abismos, o “infinitamente grande” e o “infinitamente pequeno”. A desproporcionalidade rege as conexões possíveis entre o domínio humano, finito, e a imensidão da Natureza, infinita; atesta, portanto, que não há acesso ao meio das essências das coisas físicas. Pascal não determina que os limites do conhecimento impeçam o progresso científico, já que “todas as ciências são infinitas na amplitude de suas investigações”;54 mas critica a “presunção” de qualquer cientista que ambicione alcançar o princípio das coisas,

Fragmento 72 do livro Pensamentos; publicado em português pela Revista Carbono. Pascal, 2012. Pascal, op. cit. 54 Ibid. 52 53


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julgando-se capaz de estabelecer uma medida proporcional à sua inteligibilidade. Cabe ao homem contemplar o intervalo entre o nada e o infinito: Quero, porém, apresentar-lhe outro prodígio igualmente assombroso, colhido nas coisas mais delicadas que conhece. Eis uma lêndea, que na pequenez de seu corpo contém partes incomparavelmente menores, pernas com articulações, veias nessas pernas, sangue nessas veias, humores neste sangue, gotas nesses humores, vapores nestas gotas; dividindo-se essas últimas coisas esgotar-se-ão suas capacidades de concepção, do homem, e estaremos portanto ante o último objeto a que pode chegar nosso discurso. Talvez imagine, então, seja essa a menor coisa da natureza. Quero mostrar-lhe, porém, dentro dela um novo abismo. Quero pintar-lhe não somente o universo visível mas também a imensidade concebível da natureza dentro desta parcela de átomo. Aí existe uma infinidade de universos, cada qual com o seu firmamento, seus planetas, sua terra em iguais proporções às do mundo visível; e nessa terra há animais e neles essas lêndeas onde voltará a encontrar o que nas primeiras observou. Deparará assim, por toda parte, sem cessar, infindavelmente, com a mesma coisa, e perder-se-á nessas maravilhas tão assombrosas na sua pequenez quanto às outras na sua magnitude. Pois como não se admirar de que nosso corpo, antes imperceptível no universo, imperceptível no todo, se torne um colosso, um mundo, ou melhor, um todo em relação ao nada a que se pode chegar?55

Situamo-nos assim em um vasto oceano de meios termos. Nossos sentidos precisam lidar com a situação dada de que na falta de luz não enxergamos; mas o excesso nos ofusca. Os sons demasiado agudos nos escapam, assim como os demasiado graves também são inaudíveis. Os extremos para nós ou são inacessíveis, ou nos prejudicam de alguma forma; não podemos conviver com o que há além dos abismos. E se Pascal define o homem como um “caniço pensante”, mesmo que a razão encontre inúmeros fundamentos para a expansão do conhecimento, deve-se assumir que as causas primeiras não estão disponíveis ao entendimento racional – deve-se então alcançar tais princípios por outras vias. Tomemos nós então, neste ponto, novamente um desvio para o universo dos devires literários. Existe um personagem específico de quem devemos nos lembrar pelos anseios de equiparar intelectualmente a complexidade do minúsculo e do imenso, rigorosamente dedicado à contemplação do mundo. Personagem este que fora batizado por seu criador com o nome de um conhecido telescópio, por uma escolha bastante precisa. Concentremo-nos agora no método rigoroso do senhor Palomar.

55

Pascal, 2012.


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Fig. 5 Albrecht Dürer, Desenhista representando mulher reclinada, 1525. Xilogravura presente na capa da primeira edição de Palomar, de Italo Calvino, em 1983. Fonte: Wikimedia Commons.56

II Publicado em 1983, Palomar de Italo Calvino obedece a um sistema de distribuição temática, com subdivisões em pequenos textos concisos. A precisão arquitetônica na construção do livro é bastante sutil à primeira vista; mas ao final da leitura, Calvino nos revela este dado que retrospectivamente faz todo o sentido. O senhor Palomar segue um percurso que parte de considerações mundanas de natureza visual, formal; são divagações descritivas. Atravessa, a seguir, ponderações culturais, inerentes aos campos da linguagem e dos signos. E por fim, chega a especulações cosmológicas, com o formato de meditações, de divagações ontológicas sobre o tempo e o infinito. Ao longo do texto notamos os anseios do senhor Palomar de sistematizar o caos do mundo através de classificações que, embora provenientes de um homem-telescópio que acredita no distanciamento como possibilidade de análise, acabam por assumir maior semelhança com as imagens de um caleidoscópio, dada a multiplicação infinita de aspectos que cada categoria organizacional pode assumir. Para o senhor Palomar as bases do saber estão na observação atenta dos acontecimentos que o cerca. Ele se vê rodeado pela pluralidade desarmônica das coisas, e seu projeto classificatório parece impossível se levarmos em conta que o caráter detalhado de suas ponderações é incongruente com um conhecimento abrangente do mundo empírico. Eis uma narrativa literária que percorre dualidades: ora simplicidade dos objetos eleitos para a observação, ora minúcia das análises; ora plenitude, ora precisão.

Disponível em: <http://commons.wikimedia.org/wiki/File%3AAlbrecht_D%C3%BCrer__Draughtsman_Drawing_a_Recumbent_Woman_-_WGA7261.jpg>. Acesso em: 2 mai. 2013. 56


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Notamos um aspecto sutilmente cômico no princípio racional do senhor Palomar. O mergulho nas especificidades de cada ínfima questão do real o leva a mais dúvidas do que certezas; e o panorama ao final de cada reflexão é muito mais amplo do que aquele que o levara a desenvolver uma ou outra linha de raciocínio. Em um momento do texto, Palomar decide observar as estrelas. Não é profundo conhecedor dos astros, mas por esmero com a atividade escolhida, traz uma carta astronômica que o guie. Porém, a tal carta não lhe é de grande serventia, por não saber como orientar-se por ela devidamente. Ao longo desta passagem, Calvino gradativamente introduz elementos desviantes para que a localização das estrelas se dificulte: há o escuro da noite que atrapalha a leitura da carta, há a lanterna que ofusca os olhos, há a miopia, há o próprio movimento do céu. Após várias tentativas e nenhuma certeza de haver encontrado alguma constelação, o desajeitado senhor passa a especulações mais genéricas. A incompreensão da gramática astronômica transforma a abóbada celeste em um imenso plano achatado e incompreensível: É esta a geometria exata dos espaços siderais a que tantas vezes o senhor Palomar sentiu necessidade de recorrer para desprender-se da Terra, lugar de complicações supérfluas e de aproximações confusas? Encontrando-se efetivamente em presença do céu estrelado, parece que tudo lhe foge. Até mesmo ao que se acreditava mais sensível, à pequenez de nosso mundo em relação às distâncias incomensuráveis, não reage diretamente. O firmamento é algo que está lá em cima mas do qual não se pode extrair nenhuma ideia de dimensões ou distância. Se corpos luminosos estão prenhes de incerteza, só resta confiar na escuridão, nas regiões desertas do céu. Que pode ser mais estável que o nada? Contudo, não se pode, nem mesmo do nada, estar cem por cento seguro.57

Se a visão é a instância sensível eleita pelo personagem como a via principal de conhecimento do mundo, é preciso considerar que no projeto paralelo de Calvino, Seis propostas para o próximo milênio (1988), a visibilidade foi também citada como uma das qualidades que a literatura deve cultivar em suas produções. Ambas as obras – ficcional e teórica – revelam o desejo do autor de atingir a complexidade das imagens no exercício da expressão verbal. Talvez seja através desta virada, desta torção, que Calvino manifeste sua maestria literária. As propostas foram escritas para uma apresentação em Havard, e foram publicadas postumamente. A “visibilidade” seria o tema da quarta conferência. Neste capítulo/seminário, Calvino inicia pela Divina Comédia de Dante como obra onde existe estreita relação entre a construção da imagem visual e da imagem verbal. As imagens seriam, em Dante, a 57

Calvino, 1994, p. 43-44.


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manifestação direta da inspiração divina; por outro lado, na literatura contemporânea, o processo de construção do texto passa por procedimentos do imaginário relacionados à interioridade individual. A oposição caracteriza a imagem renascentista neoplatônica como comunicação com o universo, e a imagem contemporânea atrelada à noção psicanalítica, fruto de concepções mais “particulares”, digamos assim.58 Diante da questão posta sobre a escolha de uma ou outra via da imaginação, novamente se apresenta sua veia dual: Calvino se diz adepto do “repertório do potencial, do hipotético, de tudo quanto não é, nem foi e talvez não seja, mas que poderia ter sido.” 59 Salienta também que tanto o artista como o cientista recorrem a sistemas associativos imagéticos em momentos decisivos, quando é preciso optar pelas diversas formas do possível e do impossível. Calvino conclui sua exposição sobre a visibilidade com uma bonita tarefa para o escritor – que podemos tomar aqui como tarefa também para o artista: que ambicione “o infinito de sua imaginação” assim como “o infinito da contingência experimentável”.60 Se a vida humana é pontuada por sua finitude e se define entre nascimento e morte, ainda assim a experiência pode se estender para além destes limites. Calvino considera vão o esforço para “fugir à vertigem do inumerável”.61 Sejam realidades, sejam fantasias, a experiência criativa surge do mesmo substrato verbal: a enorme pluralidade contida na concatenação de caracteres, sílabas, linhas equipara-se ao comportamento das dunas de um deserto. Os mesmos grãos de areia de um terreno vastíssimo, sempre iguais e sempre diferentes, entregues aos movimentos provocados pelo vento. III Um breve interlúdio: embora tenhamos optado desde o início deste projeto por dissertar a respeito de considerações especulativas que caminham paralelamente à produção de trabalhos artísticos – e não necessariamente realizar descrições de objetos, operação vista frequentemente com cautela pela tendência a empobrecer a constelação de significados que um trabalho de arte permite – arriscaremos aqui a apresentação de um experimento realizado em 2010, mas que não foi levado muito adiante. Permanece, por hora, no rol de projetos adormecidos, para, quem sabe, um dia ser retomado.

Calvino, 1990, p.103-104. Ibid., p. 106. 60 Ibid., p. 113. 61 Ibid. 58 59


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Trata-se de 10 fotografias circulares que registram 10 imagens vistas por um caleidoscópio posicionado em diferentes ângulos de rotação e de inclinação. Para a captação dos padrões visuais formados pelo caleidoscópio em posicionamentos precisos foi desenvolvida uma estrutura onde é possível determinar as coordenadas de angulação a cada movimento. A principal caraterística de um caleidoscópio, responsável pelo fascínio que este brinquedo proporciona, é que cada imagem gerada não se repete jamais. É o resultado de uma única configuração dos pequenos fragmentos de vidro em um momento específico, totalmente efêmero e incapaz de ser recriado. Para um instrumento de arranjo caótico, foi desenvolvido um projeto rigoroso no sentido de gerar coordenadas precisas de localização para cada instante que a câmera fotográfica se encarregou de congelar e fixar no papel. A atividade de estabelecer coordenadas (na matemática, geografia, física) destina-se a determinar uma localização espacial precisa, permitindo que um ponto ou um momento seja retomado, seja encontrado. Permite a criação de parâmetros e medidas. Entretanto, mesmo que o caleidoscópio anexado à engenhoca seja reposicionado nos ângulos previamente definidos, as imagens nunca serão as mesmas da sequência de 10 fotografias. Não há retorno possível. O engavetamento deste projeto justificou-se na época da realização pela insuficiência das fotografias em abarcar o contexto do experimento. Mas constitui ainda um desejo latente, bem aos modos especulativos do senhor Palomar.

Fig. 6 Ana Luísa Flores, diagrama de coordenadas para Inclinação e Rotação, 2010. Fonte: Arquivo pessoal.


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Fig. 7 Ana Luísa Flores, fotografias de Inclinação e Rotação, 2010. Fonte: Arquivo pessoal.


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O FINITO E O SENSÍVEL: ESBOÇO I Já que fizemos menção aos valores da visibilidade de Calvino no trecho em que tratamos dos limites perceptivos de projetos universalistas, parece ser uma boa conexão lembrarmo-nos aqui, rapidamente, daquela noção das imagens dantescas enquanto fruto de inspiração divina, para iniciarmos este capítulo. Podemos começar por especulações sobre o contexto onde se disseminou esta noção de que a alma do artista está em harmonia com a alma universal. Assim como a expansão cultural florentina durante o século XV é norteada pelo elogio à Antiguidade, também é importante destacar que neste período as disciplinas do trivium (gramática, lógica e retórica) assumem enorme importância nos estudos de circuitos intelectuais não necessariamente ligados à Igreja. Logicamente, as novas aspirações da atividade artística acompanhariam esta ascensão dos estudos humanistas. Passa a ser oportuno o questionamento comparativo de atividades que não foram previamente abordadas pelo vocabulário escolástico.62 Qual seria o estatuto da arquitetura? E da pintura? Um dos fundamentos da teoria artística renascentista parte das possíveis analogias entre os já estabelecidos parâmetros da retórica, e da eloquência discursiva. Mas há também a linha legitimadora que equipara as artes do desenho com o rigor da estrutura matemática – assim, as artes se elevam ao estatuto de uma ciência. Alberti seria um dos defensores desta aspiração artístico-científica: escreve em seu tratado De pictura sobre seu desejo de “que o pintor seja um conhecedor, tanto quanto possível, de todas as artes liberais, mas antes de tudo que ele seja versado em geometria”. 63 Alberti fundamenta seus anseios em uma ousada abordagem de Aristóteles, lido através de Cícero, onde as noções de ars e natura são reapresentadas da seguinte forma: Aristóteles

Alberti

62 63

Chastel, 2012, p. 157. Alberti apud Chastel, op. cit., p. 158.

ars

studium

natura

ingenium

studium

inventio elocutio

inventio

Rudimenta

elocutio

Pictura

ingenium

Pictor


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A designação Rudimenta (algo como “primeiros estudos” 64 ) aborda justamente a codificação geométrica do espaço pictórico. Em Alberti a perspectiva é colocada no patamar do primordial, na gênese do regime de criação de imagens visuais. E se há ainda outro fundamento tomado de Aristóteles (de que o artista deve interrogar a natureza), trata-se de uma adaptação bastante idiossincrática do que seria a mimese: o que se deve observar do mundo natural é a coerência interna de seus corpos, perfeitos porque nada se pode tirar ou acrescentar sem que haja prejuízo. Impossível contestar o tipo de representação mimética ilusionista, que “copia” o mundo tal como um espelho; mas de acordo com André Chastel, entende-se mimese como conceito muito mais amplo.65 O elogio para o artista que se iguala à natureza se justifica por interpretações muito vagas; poderia ser sim pelo ilusionismo, mas poderia também destacar a obediência às regras de harmonia universal, ou ao justo emprego de formas imaginárias provenientes de inspiração divina. Mesmo que o elogio à perspectiva tenha suas justificativas metafísicas (pois trata-se de ótica, que fundamenta através de demonstrações matemáticas a manifestação da luz divina geradora do milagre da visão), a abordagem de Alberti em seus textos seria de um viés mais prático, apresentando os artifícios construtivos aplicados ao plano pictórico. O procedimento albertiano consiste em abordar a pintura como um plano de intersecção que atravessa a pirâmide construída a partir de um único ponto de fuga. A seguir, seriam definidos o tamanho do objeto a ser representado e a distância do plano de visão, para a adequada distribuição dos elementos na pintura. Este modelo parece ter se popularizado bem mais do que a perspectiva axial de inúmeros pontos de vista, bastante usada no século anterior por Giotto. Entretanto, a escolha sobre a aplicação deste novo código representativo por parte dos artistas é um pouco mais complexa, já que cada um o explorara de acordo com seus próprios anseios. Se Donatello empregou a nova técnica em seus relevos, não dispunha de tanta ortodoxia quanto Paolo Uccello; estraria mais interessado na nova ferramenta para atingir efeitos visuais específicos do que obedecer literalmente o esquema. Encontramos esta ácida anedota transcrita no estudo de Chastel:

64 65

Faria, 1962, p. 873. Chastel, 2012, p. 160.


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Donatello dizia seguidamente a Uccello, quando lhe mostrava amavelmente coroas heráldicas ou bolas de 72 faces e pontas de diamantes, aparas enroladas em volta de um bastão e outros desenhos curiosos de perspectiva: “Paolo, a perspectiva obriga-o a trocar o certo pelo incerto. Essas coisas todas só servem para quem trabalha com marchetaria”.66

A História da Arte talvez não tenha sido muito gentil com Uccello, que fora eternizado de maneira tão caricata. E podemos supor aqui que seu acentuado interesse pelos esquemas geométricos se alinham bem mais a aspirações poéticas de um mundo fantástico do que ao compromisso representativo do real. Observando seus trabalhos, é notável o caráter altamente estilizado que favorece muito mais ao tom fabular e ao estranhamento. Será que as motivações de Uccello passam pelo desejo de capturar o espaço empírico de maneira prática?

Fig. 8 Paolo Uccello, Cenas da vida monástica, afresco do Mosteiro de San Miniato al Monte, aprox. 1440. Fonte: Wikimedia Commons.67

Fig. 9 Paolo Uccello, Apresentação de Maria no templo, afresco do Duomo di Prato, 1435. Fonte: Web Gallery of Art.68

Uma certa implicância de Vasari transparece em considerações que vão desde a origem de seu apelido (“Paolo sempre teve em casa pássaros, cães, gatos e muitos tipos de animais que, incapaz de alimentar e manter vivos, eternizava em seus desenhos”;69 daí, Paolo degli Uccelli, ou Paolo dos pássaros) a críticas quanto ao uso arbitrário da cor – um exemplo seria a menção aos afrescos do Mosteiro de San Miniato al Monte onde Uccello opta por Vasari apud Chastel, 2012, p. 397. Disponível em: <http://commons.wikimedia.org/wiki/File%3APaolo_uccello%2C_affreschi_san_miniato _al_monte_01.jpg>. Acesso em: 14 mai. 2013. 68 Disponível em: <http://www.wga.hu/art/u/uccello/2prato/04prato.jpg>. Acesso em: 14 mai. 2013. 69 Vasari apud [Paolo Uccello], c1968, p. 2. 66 67


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campos em azul, construções multicolores, ou cidades em vermelho (“e nisso faltou, pois as coisas que se tingem de pedra não podem e não devem ser tintas em outra cor”70). Não dispomos de boas imagens deste trabalho, mas observando outro afresco aproximadamente da mesma época, podemos ter uma ideia do que desagradara Vasari. O que nos parece relevante notar na produção de Uccello é o prenúncio de aspirações de ter o espaço real reorganizado pela consciência, e cuja missão consiste em unificar o princípio racional e o sensível. Argan nos lembra que a tradição figurativa italiana toma como partida a totalidade do ambiente para daí extrair a íntima compreensão dos objetos particulares;71 falaremos no próximo capítulo sobre possíveis herdeiros deste desejo no século XX. Por ora, sentimo-nos tentados a retornar ao senhor Palomar de Calvino. Há este capítulo incrivelmente próximo de nossa abordagem, O modelo dos modelos. Neste recorte, Calvino explica qual era a metodologia de Palomar pra tentar entender o que se passa. Vamos a ela. O senhor Palomar acreditava que para entender a realidade era preciso partir de um modelo perfeito, concebido na mente, lógico e harmônico, e depois deveria ver se este belo modelo se aplicava à realidade. Para começar esse projeto, é preciso ter primeiro um axioma, mas já que o senhor Palomar não é matemático nem lógico, não possui o aparato de conhecimento que o permita chegar a esses axiomas. Então ele passa de forma mais livre e recreativa à segunda etapa que lhe é mais agradável: a dedução. Quanto à indução, achava que era parcial. Durante a maior parte do tempo, ele ficaria imerso em seu desenho perfeito. Enquanto isso, a realidade só se adequava ao modelo mediante cortes, compressões, fraturas e distorções – e acabara se tornando irrelevante. Em alguns momentos, a monstruosidade do ambiente real o chamava a atenção, e ele se lembrava de que era preciso ajustar lá e cá a fim de conseguir aproximar o real do ideal. Por conta disso, suas regras foram se modificando: agora seu procedimento era o de conceber um amontoado de modelos, para através de exclusões e combinações tentar atingir um que se adaptasse melhor ao que de fato ele via no mundo. Cabe lembrar que esse procedimento todo era meramente imaginário, porque o senhor Palomar não era pessoa capaz de realizar qualquer intervenção; “dessas coisas ocupavam-se habitualmente pessoas muito diferentes dele, que julgam sua funcionalidade segundo outros critérios: como instrumentos de poder, sobretudo, mais que segundo os

70 71

Vasari apud [Paolo Uccello], c1968, p. 5. Argan, 1992, p. 504.


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princípios ou as consequências na vida das pessoas”.72 É aí que o senhor Palomar começa a perceber que, já que abomina estas imposições de poder, é preciso rever seus desejos de modelização. Compreende que aquilo que realmente conta é o sutil movimento das sociedades que proliferam apesar dos modelos; são os hábitos, os costumes, os valores sociais contingentes. Restaria então encontrar uma nova maneira de sistematizar a crítica a esses abusos de poder e os danos à sociedade... Mas e se daí decorre um novo modelo? A esta altura, o senhor Palomar decide que as coisas devem permanecer fluidas, verificadas caso a caso, entre escolhas e exclusões, entre opinar ou se calar. II Mais uma vez surge o desejo de expor um experimento plástico realizado. Mais uma vez, um trabalho que não chegou às vias de fato, não recebeu a primorosa formalização necessária ao circuito institucional de exposições de arte. O que ocorre é que ao longo do processo de elaboração das especulações aqui apresentadas, as ideias parecem estar em estado de ebulição, e tais esboços imagéticos pairam ao redor dos temas que vamos explorando. Parece-nos plausível que este seja um espaço possível para que estas ideias venham a existir de alguma maneira, porque algumas vezes o trabalho não realizado representa uma espécie de incômodo, de pedra no sapato – no bom sentido. É claro que mesmo trabalhos expostos e já formalizados de alguma maneira não cessam nunca de reverberar novas possibilidades, novas indagações, novas constelações de sentido. Mas, paralelamente ao desenvolvimento da presente dissertação, é crescente o interesse por estes resíduos engavetados, ou estes “abjetos” visuais, para usar uma terminologia aplicada por Hal Foster. O que se segue é o desejo de profanação dos instrumentos de medida; como induzí-los ao erro? Réguas, relógios, compassos, microscópios só funcionam a partir de premissas estabelecidas de que qualquer objeto no mundo permanece imutável e passivo diante das “condições normais de temperatura e pressão”. O projeto citado anteriormente já possuía um pouco deste tom. Já neste aqui, acredita-se que uma bolha de nível que não possui outro destino possível além de eternamente apontar para o plano sobre a qual se apoia, impassível. O desejo era de enganá-la, proporcionando-lhe falsas bases de precária estabilidade, onde sua incorreta indicação de planaridade se originasse de um punhado de objetos caoticamente amontoados – em situações cotidianas encontradas, ao invés de construídas. 72

Calvino, 1994, p. 99.


52

Fig. 10 Ana Luísa Flores, esboço de projeto sem título, 2010. Fonte: Arquivo pessoal.

Fig. 11 Ana Luísa Flores, fotografia de celular da bolha de nível apoiada sobre galhos encontrados, 2010. Fonte: Arquivo pessoal.


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Inegável que este experimento é herdeiro das profanações dadaístas, tal como o famoso Trois Stoppages Étalon (1913-14) de Marcel Duchamp. Mas recentemente se deu o encontro ao longo da flânerie virtual com o trabalho do francês Julien Berthier, que tomaremos a liberdade de apresentar aqui como uma possível referência. Há este trabalho em particular, Il n’y a pas de hasard (2005), onde o artista confeccionou um instrumento de medida de tamanho completamente aleatório, que não obedece a nenhum sistema específico; e a seguir perambulou por diversas locações no Canadá em busca de objetos construídos que se encaixassem na sua medida.

Fig. 12 Julien Berthier, Il n’y a pas de hasard, 2005. Fonte: Website do artista.73

73

Disponível em: <http://www.julienberthier.org/article/il-n-y-a-pas-de-hasard.html>. Acesso em: 14 mai. 2013.


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III Chegamos ao ponto de expor com maior clareza o objetivo almejado neste capítulo. Citamos o desenvolvimento de um sistema geométrico capaz de organizar a experiência sensível, e o decorrente desmoronamento do real em um rígido esquema abstrato. Mas há ainda caminhos traçados também no Renascimento que ambicionavam outro tipo de compreensão do objeto sensível sem encerrá-lo com rigidez. Vamos agora explorar artistas capazes de lidar com a harmonia matemática de maneira mais espontânea. Uma das heranças do neoplatonismo florentino, segundo Chastel, é a noção do desenho como organização da pluralidade de objetos sensíveis que a inteligência se encarrega de redistribuir em imagens. Trata-se de mais uma formulação deduzida das leituras humanistas de Aristóteles. É incrível que os florentinos tenham assumido que o valor atribuído à natureza e à experiência culminaria na fusão entre forma e ideia. Não havia a impressão de contradição.74 Está em Alberti uma nova definição do desenho, “pautado menos pelo objeto em si do que no discrimen ou película ideal que encerra o volume”.75 Nestes termos, o desenho unifica totalmente a forma plástica, o contorno linear e definição da inteligência. Se expusemos o lado rígido da doutrina geométrica de Alberti, podemos mostrar agora o desejo de fluidez: Nós pintores queremos, por meio dos movimentos do corpo, mostrar os movimentos da alma [...] Convém, portanto, que os pintores tenham conhecimento perfeito dos movimentos do corpo e os aprendam da natureza de modo a imitar, por difícil que seja, os múltiplos movimentos da alma. Quem acreditaria, sem ter tentado, o quanto é difícil representar um rosto que ri sem o tornar mais triste que alegre? E quem poderia, sem grande estudo, expressar rostos em que a boca, o queixo, os olhos, as faces, a fronte se unissem no riso e nas lágrimas? Assim, é preciso aprender da natureza, procurando os aspectos mais fugidios das coisas e os que levam um espectador mais a imaginar que a ver.76

Algumas inovações técnicas que surgiram no final do século XV proporcionaram uma pequena revolução no entendimento do desenho. A invenção de novos tipos de papéis, bastões

de

giz

e

outros

materiais

facilitaram

a

execução

de

desenhos

mais

descompromissados. Os cadernos de desenho do século anterior eram mais como cartilhas de modelos normativos que deveriam ser consultados antes da realização dos projetos pictóricos. Agora, proliferam os estudos sobre a vitalidade dos corpos para melhor compreender os Chastel, 2012, p. 419. Ibid. 76 Alberti apud Chastel, op. cit., p. 402. 74 75


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movimentos. Realizar diversos esboços é útil não só a título de estudo, mas também como formalização de signos mnemônicos capazes de estimular na imaginação os gestos animados dos seres desenhados. Leonardo é a mais célebre figura deste momento que se manifesta a favor do desenho inclusive como procedimento legítimo e portador de uma problemática própria. Sua prática é totalmente contrária a um puro mecanicismo material, que concentra e divide a realidade em tipos. É enfático defensor do desenho como análise dos objetos em suas mínimas vibrações e entende o registro gráfico como descoberta do eixo emanador da figura em vez de contorno rígido que aprisiona a imagem. O traçado intelectual não está nas linhas visíveis do objeto; é “menos percebido pelo olho do que pensado pelo espírito.”77 Portanto, o invólucro preciso é mal visto por Leonardo, e critica os desenhistas que valorizam os mínimos traçados do lápis. Para ele, figuras de uma bonita e rígida forma não possuem o moto mentale. Tais desenhistas são incapazes de mover ligeiramente uma forma para um lado ou outro, temendo perder o traço definitivamente conquistado. Assim, a qualidade do signo gráfico reside justamente na confusão, no esboço. É o traçado impreciso que Leonardo elogia, já que este permite as retificações sucessivas que conferem vitalidade à imagem e acompanham as nuances do próprio desencadeamento do pensar: Você nunca viu os poetas compondo? Não se incomodam de traçar uma bonita escrita e não hesitam em apagar certos versos para melhor refazê-los. Ó pintor, trace então sumariamente os elementos das figuras e esforce-se mais nos movimentos apropriados à vida interior dos seres que você coloca em cena, do que na beleza ou perfeição do detalhe.78

Curioso único elogio à atividade do poeta, já que seu Trattato della Pittura contém muito mais frequentes as comparações diminutivas do reino das palavras quando confrontadas com a pintura. A vantagem do esboço difuso é a mesma das manchas na parede, cinzas na lareira, ou as nuvens que Leonardo gosta de observar. Ele aconselha a contemplação de tais situações a fim de estimular o espírito inventivo, “pois as coisas confusas excitam o espírito para novas criações”;79 “essas paredes de materiais misturados atuam como um som de sino, cujos badalos podem evocar todos os nomes, todas as palavras que quisermos”.80

Leonardo apud Bergson, 2006, p. 270-271. Leonardo apud Chastel, 2012, p. 421. 79 Ibid, p. 422. 80 Ibid. 77 78


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Fig. 13 Leonardo da Vinci, estudo para Santa Ana, a Virgem e o Menino, 1503. Fonte: Wikipaintings.81

Uma abordagem de Chastel em seus estudos sobre o Renascimento que é de grande valia para nosso desenvolvimento aqui diz respeito ao gênio inventivo que não necessariamente conclui seus projetos. Se os rascunhos e esboços atingiram grau de importância por conter a potência criadora, os projetos grandiosos encomendados pela Igreja e outros mecenas assumiam na etapa de confecção um caráter bastante enfadonho ou cansativo. Diversos artistas, como Rafael, não hesitaram em delegar largas parcelas da execução aos aprendizes, mas o mesmo não ocorreu com Leonardo ou Michelangelo. Alguns projetos não finalizados ou abandonados dos quais hoje se conhece apenas fragmentos não deixaram de exercer enorme influência sobre os artistas posteriores.82 Como poderia um projeto inacabado ainda assim deter enorme valor? É evidente que o ideal de beleza como suprema concatenação entre forma plástica, inventividade e conexão com a natureza pressupõe uma execução precisa do trabalho Disponível em: <http://www.wikipaintings.org/en/leonardo-da-vinci/study-of-st-anne-mary-and-the-christchild>. Acesso em: 16 mai. 2013. 82 Chastel, 2012, p. 423-424. 81


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artístico. O próprio Leonardo que durante a fase de criação valoriza o componimento inculto das manchas como recurso criativo passa na fase seguinte ao meticuloso manejo das formas. Utiliza finas camadas de cor, passagens sutis, sfumato. O comprometimento intenso com a perfeição da imagem logicamente implica dúvidas, lentidão, abandonos.83 Mas não é de nosso interesse suposições psicologizantes. Há outras vias para se compreender um certo gosto pelo inacabado. Chastel recorre a uma passagem de Vasari onde o historiador compara a Cantoria de Luca della Robbia e a de Donatello: [a obra de Luca] embora desenhada e executada com cuidado, é tão lisa e bem acabada que o olho, a distância, mal a percebe, diferentemente da de Donatello, que está de certa forma esboçada. É no que os artistas devem prestar muita atenção: a experiência ensina que pinturas ou esculturas ou quaisquer outras obras de arte, vistas de longe, têm mais força e efeito se estiverem amplamente esboçadas que acabadas. Afora a distância, contribui para isso o fato de que, no esboço, o artista não raro, tomado pela inspiração [furor dell’arte], expressa o seu pensamento em alguns traços, às vezes só vindo a enfraquecê-lo com o esforço e a aplicação, como aqueles que não sabem parar quando trabalham.84

Vasari segue com seu argumento ao ponto de justificar, mas de maneira não muito clara, que existem sucessos artísticos consideráveis tanto acabados como inacabados. Uma hipótese levantada é a de que esta defesa do inconcluso foi formulada para legitimar as esculturas dos escravos de Michelangelo, recentemente instaladas no jardim Bodoli, além de algumas outras esculturas que conservaram em algumas partes apenas leves sugestões da forma esboçada. São inclusive, bastante numerosos os estudos sobre a questão do inacabado em Michelangelo, mas não pretendemos abordá-los aqui exaustivamente. De fato, o escultor abandonara incompletos alguns trabalhos, mas há outros em que o recurso do rascunho parece ter sido aplicado como efeito plástico intencional. Contrastam com um Davi ou a Pietà de definidíssima precisão. Podemos expor também uma abordagem que apela à “metafísica da arte”: voltamos àquela noção de encontro da alma do artista com a alma do mundo. Se o aspecto non finito de algumas obras de arte pode ser elogiado, é pela aproximação do difuso com a pluralidade cósmica irredutível. A riqueza do indistinto se aproxima bem mais do infinito universal, assim como as evanescências da perspectiva atmosférica de Leonardo fundem no horizonte das paisagens o céu e a terra. Há aí uma sugestão cosmológica. 83 84

Chastel, 2012, p. 425. Vasari apud Chastel, op. cit., p. 425-426.


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O crescente interesse de Leonardo pelas desordens da natureza está presente em seus desenhos e anotações sobre cataclismos, tempestades e todo tipo de caos observável. Estão também em diversas passagens de seu Trattato della Pittura definições provenientes de seus estudos sobre o acidentes naturais, embate de águas e rochas, fenômenos atmosféricos, comportamento das luzes e sombras. O conjunto de suas considerações é surpreendentemente abrangente. Podemos encontrar um desejo semelhante ao De rerum natura de Lucrécio, mas com a fundamental diferença de que a tentativa de compreensão de todas as coisas passa antes pela estruturação de um eixo geral comum a todo o universo.85

Fig. 14 Leonardo da Vinci, Desastre Natural, 1517-18. Fonte: Wikipaintings.86

Leonardo parece ter sido leitor atento de Ovídio, profundamente preocupado em suas reflexões científicas e artísticas com as transformações da matéria. Se interessa por investigar sob que aspectos a natureza permanece além do intervalo finito da vida humana. Transcreve em diversas anotações de seus cadernos fragmentos sobre a constante mutação dos corpos visíveis; como exemplo, há em um tratado sobre a mecânica das águas a seguinte conclusão: “Col tempo ogni cosa va variando” [Com o tempo, todas as coisas variam].87 E justamente

Chastel, 2012, p. 524. Disponível em: <http://www.wikipaintings.org/en/leonardo-da-vinci/natural-disaster>. Acesso em: 16 mai. 2013. 87 Leonardo apud Chastel, op. cit., p. 527. 85 86


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deste interesse brotam algumas de suas discordâncias em relação ao sistema neoplatônico vigente em sua época. As novas leituras renascentistas permitiram retomar a correspondência entre o macrocosmo e o microcosmo, que permaneceram secundárias durante boa parte da Idade Média. Os florentinos observam com encantamento que as metamorfoses da natureza são comparáveis às mudanças do corpo humano, e deduzem daí uma incrível analogia entre o homem e o universo. Até mesmo Ficino recorre a uma espécie de animismo para repaginar suas leituras platônicas. Defende que as manifestações de vida na terra são resultado de forças provenientes do incansável movimento dos quatro elementos, que se recombinam gerando toda a diversidade dos fenômenos. Leonardo compartilha deste pensamento com o filósofo, mas discorda sobre a origem do sistema: para o artista, não há atrás do palco cósmico uma ordem absoluta regendo os movimentos, não há equilíbrio total.88 Para Leonardo os esquemas matemáticos, emanações luminosas e a animação dos corpos são provenientes da maravilha universal, e é essencial que a arte pressuponha essas características. Mas seu deslumbramento cosmológico problematiza as crenças correntes sobre o destino da alma humana. Se cada ser vivo, o calor, a luz e demais fenômenos se relacionam intimamente na escala cósmica, parece estranho que seja o homem o centro do universo. Não queremos supor aqui que Leonardo se diferencie radicalmente das doutrinas vigentes em sua época, longe disso. Ele não chega a afirmar categoricamente, apenas sugere suas desconfianças sobre a centralidade humana. Para um artista de amplos interesses e curiosidade investigativa que envolve a pluralidade de ocorrências do mundo visível, nada mais natural que colocar constantemente as normas sob suspeita. Para concluir este capítulo podemos deduzir que diante do desejo de delinear as percepções da realidade há de se supor que qualquer metodologia enclausurante resulte insuficiente. Como nos disse Deleuze sobre o naturalismo lucreciano, percebemos os corpos enquanto “compostos finitos que não se somam como tais uns com os outros”.89 Logo, a “pura positividade do finito é o objeto dos sentidos”. 90 A compreensão da imagem como representação do real não passa por processos mentais? Há sim este primeiro instante perceptivo, mas o desenho como representação depende das sínteses da inteligência. Torna-se problemática a própria noção de puro ilusionismo mecânico. Chastel, 2012, p. 528-530. Deleuze, 1974, p. 286. 90 Ibid. 88 89


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Há ainda em Deleuze e Guattari uma bonita atribuição para os desejos desmesurados na arte, entre as formas de pensamento humano: O que define o pensamento, as três grandes formas do pensamento, a arte, a ciência e a filosofia, é sempre enfrentar o caos, traçar um plano, esboçar um plano sobre o caos. Mas a filosofia quer salvar o infinito, dando-lhe consistência: ela traça um plano de imanência, que leva até o infinito acontecimentos ou conceitos consistentes, sob a ação de personagens conceituais. A ciência, ao contrário, renuncia ao infinito para ganhar a referência: ela traça um plano de coordenadas somente indefinidas, que define sempre estados de coisas, funções ou proposições referenciais, sob a ação de observadores parciais. A arte quer criar um finito que restitua o infinito: traça um plano de composição que carrega por sua vez monumentos ou sensações compostas, sob a ação de figuras estéticas.91

Como não assumir que os esboços e projetos em arte sejam meios de armazenar através do inconcluso a multiplicidade desses pequenos finitos compostos? A precariedade, o abandono, o gesto trêmulo, a dúvida ou o difuso talvez sejam de alguma maneira mais eficientes no momento de conciliar as percepções do espectro sensível que nos está disponível. Pelo menos para um sujeito preocupado em se relacionar com o imediatismo das formas a seu redor.

91

Deleuze; Guattari, 1992, p. 253.


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Sobre marcas na parede: notas de trabalho Notas de trabalho enviadas a Ronaldo Auad,92 no dia 1o de abril de 2012. Acredito que uma característica inerente a toda e qualquer materialização de objeto artístico reside nos desdobramentos inimagináveis de vão desde a vaga ideia para um trabalho, passando pelo processo de feitura até o contato deste com o mundo. A Marca na Parede surgiu a partir de um estímulo verbal, durante as aulas do mestrado em Linguagens Visuais. Desilha era o curso, ministrado por Livia Flores; a proposta consistia na investigação da natureza insular do campus universitário. A cada semana, uma palavra servia como enigma a ser “solucionado” em forma de trabalho artístico, pensamento plástico, ou simples ideia. O 4º tema proposto foi A Ponte. O entendimento da noção de ponte como passagem de um ponto a outro levou à concepção do vídeo A Marca na Parede. O vídeo mostra a transformação da leitura silenciosa e focada deste conto de Virginia Woolf a uma condição de desfoque e dispersão, com a gradual perda de foco da imagem e aumento dos ruídos do ambiente. A proposta é de lidar com a dissolução da informação contida no livro pelo excesso de estímulos externos. Esta passagem exemplifica o porquê da escolha deste conto específico: Quero pensar com calma, em paz, espaçosamente, nunca ser interrompida, nunca ter de me levantar da cadeira, deslizar à vontade de uma coisa para outra, sem nenhuma sensação de hostilidade, nem obstáculo. Quero mergulhar cada vez mais fundo, longe da superfície, com seus fatos isolados, indisputáveis. Firmar-me bem, deixar-me agarrar a primeira ideia que passa […].93

Curioso como várias questões suscitadas pelo trabalho não foram de fato elaboradas de forma racional durante o processo de execução deste vídeo. Para filmá-lo, fomos eu e Rodrigo (amigo responsável pela captação das imagens e edição do vídeo) a uma avenida movimentada de Volta Redonda abundante em ruídos sonoros e visuais, caracterizando um ambiente hostil ao exercício da leitura. Se eu já não conhecesse este conto, acredito que seria extremamente difícil aproveitá-lo e obter qualquer tipo de compreensão ao lê-lo pela primeira vez neste lugar. O tempo de duração do vídeo é de fato o tempo exato que levei no processo de leitura. Artista visual, professor e pesquisador do Instituto de Ciências Humanas e Letras da Universidade Federal de Alfenas [UNIFAL-MG]. Mestre em Ciência da Arte pela Universidade Federal Fluminense [UFF]. 93 Woolf, 2005, p. 107. 92


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Entretanto, tal informação não está disponível ao espectador que assiste ao vídeo; o som ambiente que ganha presença aos poucos poderia ter sido colado à imagem por meio dos recursos de edição, captado em outro lugar e outro momento. O plano fechado que expõe unicamente a imagem do livro não denuncia o contexto espacial em que o trabalho acontece, não comprova a conexão direta entre som e imagem. A Marca na Parede se desdobra no tempo em função do ato de ler. A leitura possui seu tempo próprio, um tempo dilatado, muito sutil, inerente à compreensão da palavra escrita, do exercício literário. É um tempo em descompasso com o tempo da mídia videográfica, de ação fragmentada, do movimento brusco. Pude observar a impaciência dos espectadores ao lidar com esse trabalho; as pessoas são confrontadas com a imagem de um livro onde o texto não se faz legível, mas o tempo da leitura se impõe à observação. Até mesmo o dispositivo utilizado como suporte da exibição deste trabalho traz suas questões. Ao monitor de vídeo destinado a exibir a imagem do livro está acoplado um par de fones de ouvido, que logo denunciam a existência de algum tipo de informação sonora no trabalho. Entretanto, o espectador logo se desorienta, porque A Marca na Parede inicia em silêncio absoluto. É necessário aguardar, se submeter ao tempo do trabalho para que haja qualquer estímulo sonoro. Observei que algumas pessoas logo buscavam operar o dispositivo, tentando ajustar o controle de volume ou verificando a conexão dos plugues de áudio. Percebi então, quão incômodo pode ser esse descompasso temporal de atividades distintas: a leitura – intimista, demorada e silenciosa – e o vídeo – dinâmico, brusco, ativo. Link para o vídeo: http://vimeo.com/41026814


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Fig. 15 Ana Luísa Flores, fotogramas do vídeo A Marca na Parede, 2011. Fonte: Arquivo pessoal.



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O INFINITO E O INTELIGÍVEL: OBLITERAÇÃO I Antes de iniciarmos nossas especulações sobre as obliterações, arriscaremos uma rápida apresentação sobre o ciclo de vida de uma estrela. Primeiro, é preciso que haja poeira e gás dispersos, pairando pelo espaço. Ao longo do tempo cósmico que nos escapa, esses átomos se aglutinam e formam densas nuvens que eventualmente entram em colapso por conta de sua própria gravidade. Se segue um intenso aquecimento, e desta grande fornalha nasce uma jovem estrela luminosa. Esta segue sua vida de bilhões de anos queimando suas reservas de hidrogênio em uma condição de incrível estabilidade até o ponto em que a baixa do estoque provoque um ligeiro colapso interno. O núcleo se contrai, gerando calor e luz intensos. As camadas exteriores se expandem. Neste momento se torna uma gigante vermelha, não lhe restando tempo muito maior de vida. Pequenas estrelas como o nosso Sol chegam ao fim de maneira serena. Após a máxima expansão, a estrela lança suas camadas externas no espaço, deixando o núcleo exposto, envolto em um anel de “fumaça”, formando nebulosas planetárias. As grandes estrelas morrem com uma enorme explosão. Temos então as supernovas. E estas imensas explosões cósmicas podem gerar descendentes incríveis: estrelas de nêutrons supercompactas que emanam feixes de radiação pelo espaço, ou buracos negros de assombrosa densidade atrativa. E é incrível que a explosão de supernovas libere no espaço a matéria que se reconstitui em novos sistemas celestes, matéria essa que tomamos emprestado para constituir nossos próprios corpos orgânicos. Se por um lado o resíduo das grandes estrelas é o mesmo que nos permite ter um solo e um corpo, por outro as estrelas pequenas nos fornecem o calor e luz sem os quais não conseguimos nos manter. Tenhamos em mente este panorama dos regimes energéticos antes de seguir adiante. II Quando no capítulo anterior chegamos ao ponto de sugerir o inacabado como realização sensível de uma forma largamente inclusiva, assumimos que há aí também uma sensação de desconfiança sobre a amplitude deste gesto. Os traços livres e cambiantes de um desenho esboçado são de fato menos categóricos no confinamento de uma suposta totalidade da forma. Mas e se empurrarmos essa dedução ao extremo? Um contorno rebuscado seria


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limitado? Um gesto simples e fluido, mais abrangente? Chegaríamos ao ponto de assumir então que a imobilidade do não-gesto é o que há de mais hábil para lidar com o desejo de tudo expressar. Não desejamos aqui prosseguir com um argumento de reductio ad absurdum, mas sim indicar o apelo metodológico a partir de uma economia do gesto universal presente em considerações de Malevich sobre a nova arte. A opção de iniciarmos pelas vias suprematistas visa investigar a gênese desta “simples expressão econômica do ato enérgico”. 94 Verificaremos o que pode existir além da representação mimética do mundo visível. Será que podemos encontrar em Malevich pistas sobre o infinito manifesto em esquemas inteligíveis, gerados a partir de outra lógica de indagações sobre a experiência do real? Se a manifestação representativa do mundo visível em objeto artístico se torna inviável quando almeja o colossal, será possível que haja um caminho para o universalismo por entre as formas concebidas na mente? À primeira vista, este parece ter sido o caminho seguido pelas vanguardas construtivas do início do século XX. Podemos dividir a questão em duas partes. Primeiro, podemos investigar uma espécie de condensação do gesto em um objeto. A que ponto uma construção pode abarcar em um corpo objetual mínimo a densidade de intenção poética? A seguir, trataremos da amplitude (ou falência) dos diagramas arquitetados a fim de alcançar algum tipo de universalidade das linguagens ou dos sentidos. III Após um período formativo em que Malevich desenvolveu pinturas impressionistas, fauves e cubistas, o artista russo passa a colaborar com o circuito de poetas interessados em explorar a linguagem como mídia opaca – os criadores da poesia zaum. Tratava-se de realizar experimentos onde as palavras de uso comum eram levadas à condição de estranhamento, para reativá-las como matéria poética não servil ao utilitarismo representativo. Malevich se interessava por levar o zaum para a pintura e realizou trabalhos com colagens, onde fragmentos de jornais e objetos reais são utilizados em conjunto com planos pictóricos de cor uniforme. Em Composição com Monalisa (1914), por exemplo, há a inscrição “eclipse parcial”, além de um fragmento de Gioconda com um X vermelho sobre o rosto e um prenúncio de seu célebre quadrado negro. Uma novidade desta fase cubofuturista é o entendimento destes fragmentos arranjados sobre o plano pictórico antes como uma soma, e não como dissolução. 94

Maliévitch, 2007, p. 27.


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Fig. 16 Kazimir Malevich, Composição com Monalisa, 1914. Fonte: Wikimedia Commons.95

No texto Dos novos sistemas na arte, Malevich explica seu entendimento do cubismo como uma enorme conquista no sentido da não-objetividade, mas faz ressalvas sobre as motivações cubistas de representação: O cubistas foram conduzidos pela naturalidade e passaram a construir os objetos de maneira que todos os lados fossem visíveis. Até certo grau, foi possível igualar suas construções a um desenho técnico interessante – com planos, volumes, cortes e projeções. Cada um desses planos do automóvel, que é a máquina mais compreensível para nós, tornava-se incompreensível nos desenhos técnicos do engenheiro. O mesmo ocorreu com os cubistas, uma vez que o objeto representado na tela se tornara incompreensível para muitos, pois o espectador não podia captar a unidade das formas no total. Mas esse ponto de vista não persistiu e logo o movimento puramente pictórico tomou seu caminho criativo, recusando todos os objetos como tais. Revelou-se que a força não estava em transmitir a plenitude do objeto e que, ao contrário, a pulverização e a decomposição de seus elementos constitutivos tinham sido tão necessárias como os contrastes pictóricos. [...] A consciência cubista conseguiu superar a primeira interpretação lógica do objeto compreendida como deslocamento, alcançada por meio de novas sínteses [...] até que sua construção alcançasse a tensão necessária das condições harmônicas e dinâmicas. Em vista disso, a primeira hipótese do cubismo sobre a interpretação plena do objeto foi anulada por uma nova síntese lógica: a revelação dentro do espaço dos diferentes tempos do objeto ocorrerá somente para construir sobre a

Disponível em: <http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Malevich,_Composition_with_Mona_Lisa.jpg>. Acesso em: 24 mai. 2013. 95


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superfície a variedade de unidades em uma nova assimetria cubista da unidade.96 [grifo nosso]

Para Malevich, o valor do empreendimento está no fato de que a pulverização analítica do objeto leva diretamente à fatura pictórica em sua manifestação “absoluta”, enquanto unicidade da atividade criativa e continuidade do plano pictórico. Plano este que agora não se limita ao formato da tela; trata-se de um plano concebido mentalmente, o mesmo (e único) que abriga suas diversas formas suprematistas. É intrigante que o pensamento do artista se fundamente pela lógica da criação artística enquanto atividade soberana de conjugação perceptiva, racional e intuitiva, regida por uma espécie de “lei do menor esforço”. O pintor deve conciliar no quadro os vetores energéticos sem a pretensão de interromper o fluxo contínuo da natureza, e não deve aspirar nenhum tipo de beleza eterna. A superioridade do gesto criativo não se estabelece por um procedimento de fixação perceptiva. Essa legitimidade das formas criadas se dá através da economia energética do corpo, que expressa em um gesto mínimo a “superação técnica intuitiva do movimento infinito da natureza”.97 Mais intrigante ainda é a crítica ao racionalismo puro, apontado por Malevich como busca de conforto estático, contrário a essa apreensão do fluxo natural ilimitado. Entretanto, as formas eleitas como matrizes do suprematismo (quadrado, círculo e cruz negros) são obviamente geométricas, oriundas da ciência mais lógica, racional e abstrata produzida pelo ser humano: a matemática. Surpreendentemente, Malevich confere um sentido místico para a geometria, transformando os elementos criados com seu gesto econômico em formas icônicas de enorme densidade espiritual. Seus escritos visam afirmar categoricamente o suprematismo como “único futuro possível” para a atividade pictórica, mas na mesma medida são obscuros quanto à fundamentação filosófica de suas escolhas. Também é relevante notarmos que nas obras anteriores à plenitude do Quadrado Negro (1915) – por exemplo, as já citadas Composição com Monalisa (1914) e Esboço para Vitória sobre o Sol (1913)98 – a ideia de eclipse é fundamental. O procedimento que leva à nãoobjetividade pretendida por Malevich se concretiza não por remoção do objeto, mas por um ocultamento aditivo, uma sobreposição. O pigmento preto é antes uma cortina, depositada sobre a janela ilusionista. Alguns críticos russos na época da primeira exibição de telas suprematistas compararam o quadrado a um campo vazio – e se já se falasse regularmente em Maliévitch, 2007, p. 45-46. Ibid., p. 41. 98 Ver Fig. 1. 96 97


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“buracos negros” na física, para eles este provavelmente teria sido um.99 Mas a ideia de buraco implica profundidade, quando o desejo de Malevich é justamente o contrário. No que se refere à pintura, a densidade absoluta do quadrado está totalmente no plano. Passados alguns anos de experimentos pictóricos suprematistas, Malevich chega a sua formulação mais radical: Composição Suprematista: Branco sobre Branco (1918). Parece-nos que à maneira das mutações estelares, a densidade pictórica provoca um colapso interno responsável pela pulverização da forma no Universo. Seriam os vestígios do quadrado como uma anã branca imersa numa imensidão igualmente branca? De qualquer forma, este seria o primeiro monocromo da História da Arte. IV Cerca de quarenta anos mais tarde, a abordagem destes campos plenos na arte já é bastante diferente. Piero Manzoni, que abandonara a carreira no direito para estudar arte, aproxima-se em 1956 do grupo Arte Nuclerare, fundado como alternativa às investidas racionalizantes da Bauhaus de Max Bill. Embora seus trabalhos se aproximem mais da ironia dadá, sua produção textual permeia a ambígua oscilação entre aspirações transcendentes e um ácido ceticismo sobre a função da atividade artística. Sejam os textos dotados de sarcasmo em maior ou menor medida, estão presentes considerações que problematizam os polos entre a materialidade física e as determinações de um espaço discursivo tautológico, brutalmente desencarnado. De acordo com Jaleh Mansoor, em artigo sobre Manzoni publicado na revista October, o discurso sobre a produção artística europeia do pós-guerra incluiu a preocupação sobre as relações entre contingência física da matéria e a atuação do artista na “configuração” deste substrato em obra de arte.100 O trabalho de Manzoni portanto reflete questões oriundas deste panorama de pensamento. Suas experiências com os Achrome trazem à tona preocupações sobre a heterogeneidade irredutível da matéria, postas de lado em parte das produções formais modernistas.

Albert Einstein fizera a apresentação de sua Teoria da Relatividade Geral em 1915 – mesmo ano da exposição 0.10 em São Petersburgo, repleta de signos suprematistas. Um mês após a publicação de Einstein, o físico alemão Karl Schwarzschild concluiu que estas equações levariam a um incrível prognóstico: uma determinada região do espaço poderia se tornar vertiginosamente distorcida, excluindo-se ao comportamento do Universo exterior. Isto é o que hoje chamamos de buracos negros. O próprio Einstein não chegou a utilizar esse termo, embora a relatividade geral permita calcular aquilo que ocorre dentro destas regiões. 100 Mansoor, 2001, p. 28. 99


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Sob um olhar apressado, seus Achrome podem parecer alinhados com o esquema modernista dos monocromos, pertencentes à linhagem da pureza. Os primeiros Achrome eram resultado de superfícies texturadas embebidas em gesso ou sulfato de cálcio, posteriormente deixadas para secar sem interferências. O material rústico, cru, é transformado em trabalho por si só, emergindo através de um procedimento autossuficiente. A partir deste ponto, já é possível desconfiar desses trabalhos como manifestação de pureza modernista autoral. Os Achrome posteriores passam a se constituir a partir de superfícies organizadas sob o axiomático grid da pintura, contendo objetos também embebidos em sulfato de cálcio e colados ordenadamente sobre o quadro. A evidência cáustica de sua objetualidade acaba por colocar estes trabalhos no meio do caminho entre monocromos e ready-mades – o que se complexifica mais ainda com suas produções finais. Os últimos Achrome chegaram a conter substâncias fosforescentes ou cloreto de cobalto, capazes de mudar de cor em função da iluminação ou com a passagem do tempo. Estas variações tonais de campos acromáticos, por paradoxais que sejam, podem indicar um tipo de auto-evidência bastante peculiar. Mostrando o poder autossuficiente regenerativo dos elementos, Manzoni alinha a mutação material que se emancipa de autoria no campo de discussão sobre a espetacularização, em voga nesta época. Estes trabalhos se modificarão independentemente de serem vistos ou não. Seus escritos se referem a esta autonomia do trabalho como pura existência da matéria convertida em energia dinâmica; basta-lhe que exista. Para Manzoni, assim como para toda uma geração artística subsequente, é incoerente que ainda perdurem problemas de composição, de representação ou de expressão na pintura: [...] uma superfície de ilimitadas possibilidades está agora reduzida a uma espécie de recipiente no qual as cores inaturais, significados artificiais são enfiados e comprimidos. Por que não, ao contrário, esvaziar esse recipiente? Por que não liberar a superfície? Por que não tentar descobrir o significado ilimitado de um espaço total de uma luz pura e absoluta? Aludir, exprimir, representar são, hoje, problemas inexistentes [...], seja quando se trata da representação de um objeto, de um fato, de uma ideia, de um fenômeno dinâmico, ou não; um quadro só vale na medida em que é, ser total; não precisa dizer nada; apenas ser; duas cores combinadas ou duas tonalidades de uma mesma cor já têm uma relação estranha ao significado da superfície, única ilimitada, absolutamente dinâmica; a infinitude é rigorosamente monocromática, ou melhor ainda, de cor alguma (e no fundo uma monocromia, na falta de qualquer relação de cor, não se tornaria ela também incolor?).101

101

Manzoni, 2006, p. 50-51.


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Fig. 17 Piero Manzoni, Achrome, 1960. Superfície com cloreto de cobalto. Fonte: Wikipaintings.102

Nosso principal interesse aqui sobre o trabalho de Manzoni é entender a torção desta superfície de aparente plenitude homogênea que a história da pintura dotara de pureza metafísica. Se para Malevich a obliteração do objeto se justificava pelo seu encobrimento com pigmento negro (realizando pinturas que, embora não representativas, preservam a “cortina virtual” da tinta), em Manzoni ocorre justamente o contrário: designar um espaço como acromático não envolve encobrimento aditivo, e sim uma brusca remoção, um apagamento, um esvaziamento da virtualidade representativa que abre espaço para a pura presença da matéria. Mas não é apenas nos Achrome que se manifesta a preocupação de Manzoni com o conceito de infinito, liberto dos limites físicos do objeto. Para o artista, “esta superfície indefinida (unicamente viva), se não pode ser infinita na contingência material da obra, é, todavia, indefinível, repetível ao infinito sem solução de continuidade”.103 Nas Linhas de Manzoni, realizadas entre 1959 e 1961, bobinas de papel recebem a marcação contínua de um único traço, cujo comprimento pode variar entre 1,76m e 7.200m. Fica claro que nas bobinas de maior extensão torna-se impossível que o trabalho seja apreendido como simultaneidade Disponível em: <http://www.wikipaintings.org/en/piero-manzoni/achrome-1960-3>. Acesso em: 25 mai. 2013. 103 Manzoni, 2006, p. 52. 102


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perceptiva, e resta a um pretenso expectador que se contente com a sugestão métrica indicada no trabalho. Não demorou muito para que Manzoni passasse a exibir estas linhas lacradas em um recipiente cilíndrico com as especificações técnicas impressas em uma etiqueta externa, o que nos leva rumo à desaparição do objeto de arte enquanto instância visiva. Em julho de 1960, Piero Manzoni realizou uma linha de 7.200 metros de comprimento em uma fábrica de jornal em Herning, na Dinamarca. A linha foi lacrada dentro de um recipiente cilíndrico de chumbo e enterrada nos jardins do Museu de Arte de Herning. Esta foi a primeira de uma série de imensas linhas semelhantes depositadas em várias cidades do mundo, cujo comprimento somado se iguala ao da circunferência da Terra. A realização plena de suas especulações sobre o incomensurável ocorre com a Base do Mundo [Socle du monde, socle magique n.3 de Piero Manzoni, 1961, Hommage à Galileo] construída em 1961, também em Herning. Trata-se da ampliação máxima de suas Bases Mágicas, que transformam instantaneamente qualquer pessoa que fique de pé sobre uma delas em obra de arte. A diferença crucial da Base do Mundo é que esta está de cabeça para baixo, e portanto, sustentando o mundo inteiro assim como o Atlas mitológico. Chegamos portanto, à conclusão de que o trabalho de arte que deseja condensar a vertiginosa pluralidade do diverso, deve pulverizar suas fronteiras físicas contingentes para se confundir conceitualmente com o mundo.

Fig. 18 Piero Manzoni, Linea 7.200m, 1960. Fonte: Gagosian Gallery.104 Disponível em: <http://www.gagosian.com/exhibitions/january-24-2009--manzoni/exhibition-images>. Acesso em: 28 mai. 2013. 104


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Sobre objetos e conceitos [...] me falam de um sistema planetário invisível no qual elétrons gravitam ao redor do núcleo. Explicam-me este mundo com uma imagem. Então percebo que vocês chegaram à poesia: nunca poderei conhecer. Tenho tempo para me indignar? Vocês já mudaram de teoria. Assim, a ciência que deveria me ensinar tudo acaba em hipótese, a lucidez sombria culmina em metáfora, a incerteza se resolve em obra de arte. Que necessidade havia de tanto esforço? Albert Camus, O Mito de Sísifo

I Vamos iniciar esta última parte de nosso estudo apresentando um curioso vídeo concebido por Derek Muller para a série Veritasium de filmes sobre ciência, que visam questionar crenças populares sobre como o mundo funciona. Muller possui PhD pela Universidade de Sydney e realizou pesquisa sobre a efetividade educacional de plataformas multimídia sobre ciências. Em World’s Roundest Object! (2013), Muller se depara com a esfera pretensamente mais perfeita na Terra. Feita a partir de Silício-28, este objeto foi criado pelo Avogadro Project para ajudar a resolver um antigo problema sobre as unidades de medida: a imprecisão do quilograma.105 Segundo Muller, o primeiro nome que o quilograma teve foi grave, proposto em 1973 por uma comissão francesa que incluiu o aristocrata Lavoisier. O uso deste nome durou pouco: com a Revolução Francesa, Lavoisier foi executado e o grave abandonado. Entretanto, a concepção desta unidade como “um decímetro cúbico de água à temperatura de fusão do gelo” foi mantida sob novo nome: o quilograma. Preservada a definição, foi confeccionado o International Prototype Kilogram (IPK), um cilindro de platina com a mesma massa deste volume de água. Este cilindro têm sido responsável pela concepção de quilograma que temos hoje. Mas Muller ressalta quão problemático pode ser uma unidade de medida dependente de um objeto físico: sucessivas avaliações revelaram que o IPK não mantém sua massa estável, nem em comparação com outros 40 cilindros semelhantes cunhados sob as mesmas condições. Todos os cilindros se tornaram diferentes entre si.106

105 106

World’s roundest object!, 2013. Ibid.


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Diante deste problema gerado pela contingência física do IPK, iniciou-se o Avogadro Project, uma colaboração internacional entre laboratórios na Alemanha, Itália, Bélgica, Japão, Austrália e EUA. O objetivo deste projeto é eliminar a dependência do quilograma de um objeto físico. Atualmente, o número de Avogadro ( ou {NA} ) é definido em função do quilograma. Essa constante é igual ao número de átomos presentes em 12 gramas de Carbono-12. Historicamente, o Carbono-12 foi escolhido como substância de referência porque sua massa atômica podia ser medida de maneira bastante precisa. Inversamente, o quilograma poderia ser determinado como a massa de {NA}*1000/12 átomos de Carbono-12. O projeto visa inverter decisivamente esta relação, para que o quilograma seja definido pela constante de Avogadro, e não o contrário. E é aí que a esfera perfeita entra em cena. A escolha do silício como matéria-prima se justifica pela sua estabilidade e estrutura cristalina, permitindo que haja grande precisão no cálculo da massa a partir do parâmetro volumétrico. Logo, este cálculo para uma esfera “perfeita” é bastante certeiro. Embora ainda haja um objeto físico envolvido na definição do quilograma, trata-se de uma espécie de “objeto conceitual”, capaz de ser reconstruído a partir desta nova definição do quilograma que o cientistas acreditam que entrará em vigor até o ano 2040. II Impressionante como mais uma vez nos aproximamos do nonsense dadaísta, até mesmo nos domínios da ciência. Já citamos rapidamente o trabalho Trois Stoppages Étalon (1913-14) de Marcel Duchamp, mas a esta altura faz-se necessário referenciar o trabalho mais adequadamente. É amplamente conhecido que em 1913 Duchamp se frustra com o universo da pintura e começa a trabalhar como bibliotecário para obter seu sustento, período em que se interessa por especulações epistemológicas além de trabalhar em seu Grande Vidro. Duchamp estuda matemática e física, impulsionado pelas impressionantes descobertas desta época. Interessa-se especialmente pelo trabalho de Henri Poincaré – matemático que por volta de 1880 pesquisou a inadequação da mecânica clássica para a compreensão de sistemas dinâmicos não-lineares, e detectou que o funcionamento destes sistemas caóticos são conduzidos por movimentos aleatórios. Poincaré declarara que o regime de leis que governa a matéria foi criado a partir da cognição humana e não deve constituir uma verdade absoluta – cabe à ciência estabelecer


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relações para ampliar a realidade cognoscível, não mais que isso. Em suma, o cientista afirma que todas as informações quantificáveis e qualificáveis referentes a quaisquer fenômenos só podem ser medidas em relação a outros dados também qualificados e quantificados. Refletindo a influência destes estudos, Duchamp se dedica às manifestações do acaso como meio de desarticular uma visão mecanicista do mundo. Fica claro para Duchamp que na arte, assim como na ciência, entrara em vigor uma espécie de determinismo institucional responsável pela legitimação (ou não) de algumas obras em detrimento de outras, que se apoiam antes em uma carga histórica e cultural que em algum tipo de valor intrínseco. Sobre realização do trabalho Trois Stoppages Étalon (1913-14), sabemos de cor como foi feito. São cortados três segmentos de barbante, todos com 1 metro de comprimento. Duchamp solta os três barbantes da mesma altura: a 1 metro do chão. E da configuração formal que cada barbante assumiu ao cair, foram confeccionadas três réguas diferentes, posteriormente acondicionadas em um estojo. Tais réguas foram frequentemente utilizadas na confecção de outros trabalhos. O conjunto de trabalhos produzidos Duchamp aborda de diversas maneiras essa fratura determinista dos campos do saber. Ele complexificou, borrou a linha que separava o campo das artes e das ciências. Mas se a própria noção de obra de arte é colocada sob suspeita, assim como os conceitos “irrevogáveis” da ciência, por que ainda produzi-las? Mesmo que sejam objetos (produzidos ou escolhidos, tanto faz) de aparente banalidade estética, ainda assim estão presentes, foram concebidos e apresentados como tais em sua frágil contingência física. Se podem ser expressos por conceitos, qual é a necessidade de sua presença? Uma das grandes questões que o meio das imagens proporciona é justamente a irredutível proliferação de sentidos que não se esgotam nem mesmo mediante um postulado axiomático. Ao se tentar conferir visualidade a um conceito, se multiplicam de forma assombrosa os possíveis significados que obviamente escapam do mero desejo ilustrativo. Há sempre algo que resiste. E se a incerteza deixou de ser um elemento refreador para as ciências contemporâneas, o que dizer sobre as artes?



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CONCLUSÃO Ah, tem uma repetição, que sempre outras vezes em minha vida acontece. Eu atravesso as coisas – e no meio da travessia não vejo! – só estava era entretido na ideia dos lugares de saída e de chegada. Assaz o senhor sabe: a gente quer passar um rio a nado, e passa; mas vai dar na outra banda é num ponto muito mais embaixo, bem diverso do primeiro em que se pensou. Viver nem não é muito perigoso? João Guimarães Rosa, Grande sertão: veredas

I Assim como nesta passagem de Riobaldo, personagem de Guimarães Rosa, constatamos ao final do estudo que os desdobramentos possíveis para a ideia de gesto rasurante enquanto eterna atualização obliterativa da imagem nos conduziu a proposições inesperadas. Talvez seja adequado revelar neste momento as motivações que levaram a tais desencadeamentos de pensamento. Os questionamentos que acompanharam o início de minha produção como artista surgiram da inclinação para o desenho e a gravura. A abundância de códigos visuais provenientes de toda parte foram o primeiro combustível para um grande volume de produção gráfica. A escolha do desenho nesta fase inicial é designada pela urgência de materialização que este meio proporciona, possibilitando uma extensa produção em pequenos formatos, descompromissados, repletos de rasuras e promíscuos nos agrupamentos referenciais. Era de interesse, sobretudo, que a urgência mesmo levada ao limite da rapidez jamais eliminava a condição física de execução sucessiva – feita instante a instante no tempo – onde até uma ideia ou percepção previamente concebida era passível de alterações durante o processo do fazer. Logo, as principais inquietações se manifestavam sobre uma certa lógica interna do desenho, inerente a sua condição de índice – responsável pelo entendimento de um processo de marca, de inscrição. Também era de interesse a temporalidade envolvida no processo: o desenho se revelara uma operação de síntese, oscilando entre hesitação e urgência, inquietude e precisão. Tais questionamentos foram descendentes diretos da pesquisa plástica. Eram indagações recorrentes durante o processo que materializou trabalhos em meios diversos, mas ligados sempre a este mesmo problema de natureza indicial. Era curioso constatar que o desenho se situava num lugar intermediário no tempo: entre a pintura como um


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procedimento “sedimentado, no sentido da duração”,107 e a fotografia, que opera de maneira simultânea, pelo golpe de corte temporal. Mesmo que a execução demande destreza e precisão por parte do executor, o tempo envolvido no processo parece atravessar as linhas geradas não apenas pelo intelecto, mas também pelos acidentes geográficos da superfície, pelas mudanças de humor, pelo acaso. A pesquisa teórica pretendia, a princípio, voltar-se para a investigação deste método de captação de percepções e ideias que apesar de proporcionar visualidade ao que não tem a priori um corpo, não formula um objeto inerte, tampouco imparcial, dada a contiguidade física com o praticante. Apesar do eixo teórico planejado ter um aspecto marcadamente formal, já havia um difuso interesse por implicações epistemológicas que permitissem a ampliação desta ideia de registro. Em Objetos Dinâmicos (2006-2009), os desenhos executados em sua relação com o cotidiano e o entorno se sucedem em páginas de cadernos de anotações, funcionando como diários de inscrição. Entretanto, revelam nas rasuras e sobreposições uma violação da ordem cronológica típica dos diários. O tempo não está na ordem sucessiva de inscrições colocadas página a página, e sim nas camadas que se sobrepõem aleatoriamente, ora deixando páginas em branco, ora acumulando informações umas sobre as outras. Estes livros estiveram em constante mutação, e a relação com o vivido presentificou-se de forma alternativa à divisão racional do tempo em instantes sucessivos. Havia então um caráter expressivo bastante forte, relacionado à ideia de traço autoral de um sujeito que muda de opinião constantemente sobre a veracidade ou a legitimidade do registro que ele mesmo fizera. A partir deste momento, começaram a ser formulados projetos para a realização de trabalhos que colocassem em xeque a ideia de índice como documento verídico, que problematizassem a noção de um regime legitimador das marcas da realidade capturadas a esmo, sob um conjunto de postulados pretensamente científicos. No vídeo Eidograma (2010), o desenho ressurge como a preocupação de decalcar sobre uma superfície transparente contornos que marquem o posicionamento assumido por objetos arremessados aleatoriamente sob este plano. Delineados como num processo cartográfico, os objetos são arremessados e registrados diversas vezes. A repetição deste mesmo gesto torna visível a infinita multiplicidade de configurações que podem surgir deste procedimento. Trata-se de um mesmo experimento que, repetido várias vezes, gera sempre

107

Pasta, 2007, p. 81-87.


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algo diferente, como os metros de Duchamp. São desta época também os experimentos engavetados, citados ao longo do texto. A partir destas experiências começa a surgir também o interesse sobre o absurdo contido no registro total, e a própria falência de um projeto levado a cabo até suas últimas consequências. O trabalho Registro de passagem - sandálias carimbo (2010) também explora um recurso de demarcação contínua. Para o vídeo, foram confeccionadas sandálias com setas de borracha no solado. Elas são calçadas, e ao pisar sobre um tinteiro e depois caminhar sobre uma folha de papel colocada no chão, registra-se um vetor direcional do percurso. O procedimento é repetido várias vezes, e pouco a pouco os vetores impressos vão se sobrepondo e gerando uma rasura onde o caminho percorrido torna-se cada vez mais impreciso, até o ponto de uma saturação intensa sobre o papel. Neste ponto, a ideia de obliteração começa a assumir um interesse crescente, e os diários são retomados como suporte para experiências onde ações supostamente reveladoras ou intensificadoras paradoxalmente levam a um resultado oposto, de apagamento ou oclusão. Em 1995: memória e matéria (2011), todas as páginas do diário do ano de 1995 (época em que tinha 11/12 anos de idade) foram removidas, rasgadas, trituradas e novamente configuradas em folhas de papel. Este procedimento gerou 23 fragmentos. Apesar de ainda conterem marcas de escrita e rastros da antiga configuração, curiosamente se transformam numa matéria compactada, onde as páginas de 365 dias se condensam em poucos pedaços. A matéria densa se torna ilegível. Já o trabalho Nulla dies sine linea (2010-2012) consiste na reprodução de minha agenda de compromissos do ano de 2009; porém todas as 324 páginas são impressas em folhas transparentes. Trata-se da tentativa de explorar a transparência não pelo aspecto revelador mas como meio de obstrução, já que o texto de duas paginas é visível por ambos os lados da folha - o que dificulta a leitura e funde os dias vividos. Logo, torna-se claro o interesse por procedimentos que evidenciem uma espécie de fracasso da organização, ou de um detalhismo que resulta ineficaz pelo excesso. A rasura como conceito originário do desenho se amplia para dúvidas epistemológicas sobre o eterno acúmulo de enunciados, que se aproxima mais de uma estrutura de Palomar do que de uma totalidade esclarecedora ou eficaz. Surge também, embora de forma mais difusa, o interesse sobre o desperdício, como a postura de Sísifo que contempla o desmoronamento de seu intenso labor. O trabalho Rasura (2012) também continha, durante o processo de


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experimentação, um pouco deste interesse. Este trabalho surgiu da proposta de se pensar os carretéis como depósitos de uma noção mental, a linha, que conceitualmente não possui matéria, não possui corpo. Entretanto, o acúmulo das linhas é capaz de gerar uma matéria amorfa, uma poça negra. O interesse era justamente sobre essa formação de materialidade inutilizada a partir de uma representação gráfica abstrata. II Esta breve apresentação de alguns trabalhos realizados simultaneamente à configuração dos interesses teóricos despontados durante a pesquisa talvez apresente suas lacunas. Mas parece-nos que a própria pesquisa trata justamente disso: destes fios finíssimos e invisíveis que conectam todas as coisas e todos os interesses, e terminam por gerar uma nuvem amorfa de conhecimento com a qual temos que lidar de alguma maneira. Trata-se de estabelecer um equilíbrio, mesmo que precário. Localizar-se entre oscilações de um desejo utópico, por vezes ingênuo, de buscar as “sementes das coisas”, e um pessimismo niilista que abandona o projeto rasurado com a convicção de que tudo está imerso em um mar de relativismo. É necessário aos campos de conhecimento ter em vista o tamanho desmesurado destes novelos de informação – e que esta massa amorfa é resultado da própria estrutura cognitiva humana, que nos permitiu criar complexas gramáticas para imprimir algum sentido no mundo. Se é possível assumir a vertigem com alguma positividade, talvez seja pela própria assunção dos pequenos fragmentos de significação criados nas relações entre os corpos finitos que atualizam a infinita pluralidade do diverso.


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Fig. 19 Ana Luísa Flores, Objetos Dinâmicos, 2006-2009. Fonte: Arquivo pessoal.


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Fig. 20 Ana LuĂ­sa Flores, fotogramas do vĂ­deo Eidograma, 2010. Fonte: Arquivo pessoal.


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Fig. 21 Ana Luísa Flores, fotogramas do vídeo Registro de passagem: sandálias carimbo, 2010. Fonte: Arquivo pessoal.


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Fig. 22 Ana Luísa Flores, 1995: Memória e Matéria, 2011. Fonte: Arquivo pessoal.


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Fig. 23 Ana LuĂ­sa Flores, Nulla dies sine linea, 2010-2012. Fonte: Arquivo pessoal.


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Fig. 24 Ana LuĂ­sa Flores, Rasura, 2012. Fonte: Arquivo pessoal.


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APÊNDICE De amarelo saturno a bílis negra Concebido simultaneamente à pesquisa teórica, o livro é um projeto visual que inclui recortes textuais, imagens apropriadas, fotos e desenhos. Trata-se de uma de espécie de narrativa sobre o obscurecimento dos saberes. O livro lida com a gradação de cores (do amarelo fluorescente ao preto) relacionada ao anoitecer das certezas científicas. O trabalho se desenvolve a partir da invenção do “amarelo saturno” pela fábrica de pigmentos fluorescentes Day Glo. Curiosamente, o primeiro amarelo neon é uma mistura de colírio com tinta branca. Os fragmentos problematizam a ideia do “olho lâmpada” iluminista, onde a razão humana confere significado às coisas do mundo. Há uma relação com as cores fluorescentes, utilizadas em realces (como as canetas marca-texto) supostamente capazes de gerar conhecimento (enlightenment). É questionado se este realce não seria responsável por bloquear, ofuscar, apagar as coisas. Outra curiosidade sobre este pigmento é que o nome “amarelo saturno” foi criado pela Day Glo para o amarelo fluorescente porque a atmosfera de Saturno é amarelada. Entretanto, Saturno é o deus associado aos humores melancólicos, à reclusão. Na teoria dos humores de Hipócrates, a melancolia (humor saturnino) é associada ao excesso de “bílis negra” no organismo.


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