Malabares de memórias

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UMA VIAGEM PELAS RUAS


Produção Ana Luisa Moreira Orientação Ernane Rabelo Material produzido para a disciplina de Jornalismo Literário Comunicação Social Universidade Federal de Viçosa 2014


Poesia nua Poesia crua Da doce arte de viver

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SUMÁRIO

PREFÁCIO...................................................................................................... 3 IMPRESSÕES................................................................................................. 4 LONGA JORNADA....................................................................................... 8 VIDA DE ARTISTA.......................................................................................13

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PREFÁCIO “Olhem para o céu, há um desejo premente pela manhã que nasce diante de vocês. A história, apesar da sua dor lancinante, jamais pode deixar de ser vivida, e se enfrentada com coragem, dispensa ser revivida. Olhem para o dia que nasce diante de vocês. Façam com que o sonho renasça”. ANGELOU, Maya.

Andamos pelas ruas, não os vemos, nem escutamos, são meros espectros da vida urba-

na, assim como milhares de pessoas que passam por nós todos os dias. A frase de Maya Angelou pincela as histórias a serem contadas neste livro. Observações do cotidiano de pessoas que passam por nós todos os dias e não as notamos. Com o objetivo de conhecer ainda mais o universo do objeto de estudo, a estudante de Comunicação Social, Ana Luisa Moreira, fez pesquisas e acompanhou algumas horas da vida dos personagens.

A curiosidade levou a interessante história de Javier Eduardo Surhoff, 21 anos, personagem central desta reportagem. Ele veio do Chile para o Brasil, se aventurando por geleiras, desertos, pelo calor do Mato Grosso do Sul, pelas praias do Rio de Janeiro, e pelas serras de Minas Gerais, construindo sua nova vida: de artista de rua. Outros personagens, também irão completar a formação da perspectiva da autora sobre essa forma de viver.

Estes, também chamados de saltimbancos, procuram mostrar sua arte para o público, transformam a rua em palco teatral. Podemos definir como arte de rua, contorcionismos, truques com animais, truques com cartas, danças, recitais de poesia, apresentações de música, estátuas vivas, palhaços, artes circenses, entre outros, que tem como objetivo primário ganhar dinheiro entretendo pessoas. Ao conhecer suas histórias de vida, espero que mude as visões a respeito destes seres, tão humanos quanto o resto da sociedade.

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IMPRESSÕES

Um, dois, três clavas de malabares para o alto! Pelo barulho que faziam no chão, quando

o jovem não conseguia pega-los, eram de plástico.

É final de setembro, o sol esta brilhando intensamente no céu de quase meio dia na

cidade do interior de Minas Gerais, Viçosa. Faz tanto calor que esquenta o asfalto, os sorvetes derretem em instantes e gostas de suor escorrem constantemente pela face.

Trânsito é caótico como em uma grande cidade. Motos, carros, ônibus, ciclistas e pedes-

tres atravessam a avenida com intenção de chegar a sua casa, trabalho ou faculdade. É sempre essa encantadora e atordoante bagunça de gente. Passam, Joãos, Josés, Joaquins, Manueis. O menino moreno, da pele queimada do sol, poderia ter qualquer um desses nomes.

Um tanto desajeitado, com um nariz de palhaço, rosto mal pintado e cabelo negro ba-

gunçado escondido embaixo do chapéu de pano preto. A calça jeans desbotada vinha até metade da canela, e a velha blusa xadrez rasgada estava faltando botões. Os chinelos desgastados calçavam os pés magros e sujos.

O jovem saltimbanco tentava divertir, por três minutos, aqueles param a sua frente, não

porque eles escolheram vê-lo, mas pelo fato do semáforo ter fechado.

***

São denominados saltimbancos aqueles que se apresentam em lugares públicos, tanto

em praças, estações de metro, ônibus ou semáforos. Levam sua arte para entreter e divulgar. Em Viçosa a circense é uma das mais populares. Entretanto, por aqui, já se passou de tudo: estátuas, sanfoneiros, dançarinos e artesãos.

Estes artistas fazem parte da história não só do município, mas do mundo em si. Desde

tempos antigos a presença deles é notada. Na Grécia, os homéricos eram poetas e músicos que percorriam as regiões gregas cantando suas lendas e tradições. Na idade média, os conhecidos trovadores surgiam com suas obras literárias, em versos líricos. Sua missão envolvia principalmente os reis e o clero, mas além deles existiam os poetas da plebe, ou mais conhecidos como bobos da corte, com suas brincadeiras, mimicas, acrobacias e malabarismos.

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Outros artistas que surgiram das ruas foram os cantores de jazz. Isolados nos becos dos

Estados Unidos, os negros começaram movimentos populares marcados pelo ritmo do jazz. Onde os trabalhadores negros com suas sanfonas e clarinetas se reunião para tocar nas ruas.

A arte de circo encontrada pelas ruas da cidade formou-se durante o império romano.

No Brasil chegou junto com as companhias europeias, se apresentando em locais públicos, onde estariam mais perto do cotidiano, posteriormente retornaram a se apresentar no picadeiro.

***

Três minutos de semáforo fechado são suficientes para fazer uma boa ou péssima apre-

sentação. Como se ainda estivesse aprendendo o garoto algumas vezes derruba as claves no chão antes do fim da apresentação.

Frustrado por não alcançar o objetivo final, mas ainda com um sorriso no rosto. “Tenho

vergonha de pedir dinheiro quando erro, mas não errei tantas vezes, posso ver se consigo alguma moeda”. Comenta com seu amigo que carrega facões velhos, que provavelmente não cortam mais. O sotaque estrangeiro típico do espanhol latino misturado com português se destaca em meio aos barulhos da avenida.

Alguns segundos antes de o sinal abrir aquele cruzamento vira uma verdadeira bagunça,

pedestres apressados não esperam sua vez, carros, ônibus e motos vêm de cima, de baixo, dos lados, indo para todos os caminhos. Ele se direciona aos carros. Retirando o chapéu suado da sua cabeça e percorre entre os veículos para recolher dinheiro.

“Vai lá Feijão, é sua vez de tentar algo novo” grita o menino do sotaque estrangeiro.

Com jeito tipicamente carioca, vestindo short largo, camisa preta, tênis de skatista, e um boné verde aba reta, o mulato do cabelo preto breu bate os três facões antes de começar a jogá-los para o alto. O barulho ao tilintar era de ferro, exigindo uma habilidade maior de equilíbrio.

***

O garoto carioca de 19 anos, cognominado de feijão não leva esse apelido por ser mulato, refere-se mais a seu cheiro característico de alguém que vive nas ruas e não tem um lugar para

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tomar banho constantemente.

Morou sete anos no Rio de Janeiro, outros dez em Vitória capital do Espírito Santo.

Contudo a vida o levou a voltar pro Rio, em busca de algo que ele não descobriu ainda o que é. Aos dezessete anos começou a viver nas ruas se sustentando com o dinheiro das suas apresentações. Em Viçosa chegou há um mês. Trouxe suas tochas e facões para fazer apresentações. Apresenta-se em vários lugares para não manter a rotina e as pessoas cansarem de dar dinheiro.

Malandro, não sente medo das ruas, fez dela seu lar. “Eu vivo por ai, pela cidade, cada

dia num lugar” é o que responde se alguém pergunta onde encontrá-lo. Já sofreu ataques e roubos de outros moradores de rua. Assim aprendeu a dormir com o dinheiro nos bolsos. “Na rua ou você conhece pessoas boas ou ruins. Aquelas que querem te ajudar ou te roubar. Se encontra amigos, você encontra segurança e compartilha o espaço. Você aprende a ver quem é boa pessoa e traz pro seu lado.”

A pouco tempo conheceu o jovem estrangeiro e com ele às vezes divide o palco, eles

se ajudam enfrentando a batalha pelos trocados. Apesar disso, cada um leva uma vida em todo lugar que moram, e seus destinos muito provavelmente não irão se cruzar novamente. ***

“O que estão servindo de janta hoje?” pergunta o estrangeiro mal vestido a moça que

cuida do restaurante. Nenhuma resposta é ouvida. Ele passa pelas cadeiras e mesas organizadas em fileiras, chegando até a bancada cheia de refratários de alumínios onde são colocadas as refeições. O olhar da mulher acompanha incessante cada passo do rapaz através do estabelecimento. Não que seu pensamento fosse necessariamente de que ele pudesse roubar comida, se importava mais com o que os clientes iriam achar ao entrar alguém todo sujo e mal vestido no lugar onde muitas pessoas iriam jantar.

Na dúvida sobre onde o que iria jantar, e com alguns trocados recebidos, a fome foi

contida com pastel de queijo, um suco de maracujá e outro de laranja, na lanchonete da esquina. Conhecida por vender a famosa vitamina dos Silvas por apenas um real.

De longe se nota que sua alimentação não é muito saudável e regular. O rosto fino e cor-

po esquelético transparecem a falta de nutrientes. Almoço e janta nos restaurantes depende do dinheiro ganho no dia. Em Viçosa não é um grande problema, afinal os restaurantes oferecem refeições a baixo custo, mas a vida de um saltimbanco o leva para os mais diversos lugares, e nunca se sabe o que vai esperar por eles lá.

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tomar banho constantemente.

Morou sete anos no Rio de Janeiro, outros dez em Vitória capital do Espírito Santo.

Contudo a vida o levou a voltar pro Rio, em busca de algo que ele não descobriu ainda o que é. Aos dezessete anos começou a viver nas ruas se sustentando com o dinheiro das suas apresentações. Em Viçosa chegou há um mês. Trouxe suas tochas e facões para fazer apresentações. Apresenta-se em vários lugares para não manter a rotina e as pessoas cansarem de dar dinheiro.

Malandro, não sente medo das ruas, fez dela seu lar. “Eu vivo por ai, pela cidade, cada

dia num lugar” é o que responde se alguém pergunta onde encontrá-lo. Já sofreu ataques e roubos de outros moradores de rua. Assim aprendeu a dormir com o dinheiro nos bolsos. “Na rua ou você conhece pessoas boas ou ruins. Aquelas que querem te ajudar ou te roubar. Se encontra amigos, você encontra segurança e compartilha o espaço. Você aprende a ver quem é boa pessoa e traz pro seu lado.”

A pouco tempo conheceu o jovem estrangeiro e com ele às vezes divide o palco, eles

se ajudam enfrentando a batalha pelos trocados. Apesar disso, cada um leva uma vida em todo lugar que moram, e seus destinos muito provavelmente não irão se cruzar novamente. ***

“O que estão servindo de janta hoje?” pergunta o estrangeiro mal vestido a moça que

cuida do restaurante. Nenhuma resposta é ouvida. Ele passa pelas cadeiras e mesas organizadas em fileiras, chegando até a bancada cheia de refratários de alumínios onde são colocadas as refeições. O olhar da mulher acompanha incessante cada passo do rapaz através do estabelecimento. Não que seu pensamento fosse necessariamente de que ele pudesse roubar comida, se importava mais com o que os clientes iriam achar ao entrar alguém todo sujo e mal vestido no lugar onde muitas pessoas iriam jantar.

Na dúvida sobre onde o que iria jantar, e com alguns trocados recebidos, a fome foi

contida com pastel de queijo, um suco de maracujá e outro de laranja, na lanchonete da esquina. Conhecida por vender a famosa vitamina dos Silvas por apenas um real.

De longe se nota que sua alimentação não é muito saudável e regular. O rosto fino e cor-

po esquelético transparecem a falta de nutrientes. Almoço e janta nos restaurantes depende do dinheiro ganho no dia. Em Viçosa não é um grande problema, afinal os restaurantes oferecem refeições a baixo custo, mas a vida de um saltimbanco o leva para os mais diversos lugares, e nunca se sabe o que vai esperar por eles lá.

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LONGA JORNADA

Ao lado das gélidas Cordilheiras dos Andes no Chile, Javier Eduardo Surhoff nasceu

na cidade de Santiago no dia 29 de março de 1993. Tornou-se mais um dos cinco milhões de habitantes que vivem no vale central chileno e o segundo filho de Ana Maria Saavendra.

Dois anos antes seu irmão Bruno Surhoff veio para agraciar a vida de sua mãe. Pouco

tempo de casada com Júlio Eduardo Surhoff, homem por quem se apaixonou perdidamente, ela já tinha quase trinta anos quando ganhou Bruno. Depois das loucuras da adolescência e dos desvarios dos vinte anos, a vida acalmou. Três anos depois de Javier, não suficiente com dois meninos levados, Ana Maria deu luz a uma menina, Ana Surhoff. Para ela vida ficou mais doce. ***

Quando completou 18 anos acabando o ciclo de delírios que o ensino médio pode ofere-

cer a um adolescente com um pouco ou nada de juízo, Javier foi cursar Aeronáutica na Universidade Técnica Federico Santa Maria. Quatro anos depois tranca o curso para poder viajar por rumos incertos.

“Eu decidi que vou para o Brasil de bicicleta”, comentou durante o jantar com sua

família. “Como você vai pra lá, não tem dinheiro, tá maluco, não sabe fazer nada”, todos falavam como se fosse impossível o garoto realizar aquele sonho. “É meu sonho! Ele fica lá encima, mas tá lá, você pode pegar com o tempo. Você vai subindo, vai subindo até que alcança”, e assim ele decidiu partir no dia 3 de janeiro.

Junto com ele embarcou na viagem seu irmão, duas bicicletas, mochilas com dinheiro,

barraca, algumas blusas e roupas de frio. Bruno tem cabelos pretos e fisionomia muito parecida com a de Javier, mas ao contrario dele não tem mais o rosto de um jovem que acabou de sair da adolescência.

Seguiram rumo pela costa chilena, a primeira parada foi em Valparaíso, uma comuna

paradisíaca, declarada patrimônio cultural da humanidade pela Unesco. Com estadia breve, sem aproveitar suas belezas, dormiram na cidade e partiram de carona no dia seguinte. Parando em cidadezinhas pelo caminho até chegar em La Serena no dia quinze de janeiro. ***

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La Serena é uma pequena cidade na costa do Chile, e ao lado da Cordilheira dos Andes.

Pertence ao chamado Valle del Elqui. As belas praias contrastam com a fria neve que cobre as montanhas. O clima frio favorece o cultivo de uvas para a produção dos famosos vinhos chilenos. Javier e Bruno chegaram na época de colheita. Um produtor disse que tinha trabalho para corte de uvas. Foi à oportunidade de ganhar dinheiro para mais algum tempo.

Todos os dias às sete horas da manhã é hora de acordar e começar a trabalhar. Tarefas

árduas no frio das manhãs de La Serena. Tempo passando devagar como se congelasse junto com o frio. A espera, pelas duas horas da tarde quando o sol aqueceria seu corpo e ele estaria livre do trabalhado, demorava a passar. Estava com raiva de seu irmão. Não queria trabalhar, não foi pra isso que decidiu viajar. “Não quero viajar trabalhando deste jeito”, dizia para Bruno todos os dias. Foi assim até meados de fevereiro.

Quando terminaram o trabalho, conseguiram juntar uma boa quantidade de dinheiro,

foram beber num bar como se estivessem de férias com os amigos. Passando por uma rua da cidade viram um malabarista. Um pensamento conjugado surgiu: “Porque não comprar uma clave, caso a gente precise de dinheiro faremos malabarismos!”.

“Irmã? Poderia comprar bolinhas e claves para nós praticarmos malabarismo?”.

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A vasta cadeia montanhosa dos Andes é a maior do mundo em comprimento. Seu pico

mais alto possui quase seis mil e quinhentos metros. Seus sete mil quilômetros se estendem pela costa ocidental da América do Sul, percorrendo a Venezuela, Colômbia, Equador, Peru, Bolívia, Chile, até acabar na Patagônia, região da Argentina. Sendo a cinco mil quilômetros correspondem a fronteira que divide o Chile da Argentina.

Acreditam que provavelmente encontro de placas tectônicas originou gradativamente a

região montanhosa, formando esplêndidas paisagens naturais e vistas de tirar o fôlego, atraindo turistas de todo mundo.

***

20 de fevereiro de 2014 eram por volta de cinco horas da manhã quando Javier e Bruno

levantaram e começaram a organizar suas coisas. O sol não tinha nascido e o silêncio predominava na fazenda onde estavam acampados. Tudo arrumado partiram cruzar a Cordilheira dos Andes.

Fazia muito frio, não estavam nem no começo. A última parada era Ruanta. O acosta-

mento sumia conforme progrediam. Quase oito da manhã e começaram a subir. A cada passo ia ficando mais vazio. Javier ia se sentindo sozinho no mundo, mesmo com seu irmão ao lado. “Não deve haver mais ninguém do outro lado” já estava acreditando que não conseguiria continuar, estava cansado e ventava muito. Seu irmão estava puto porque ele quisera esta viagem e queria desistir. “Não! Vamos continuar!” disse Bruno.

O momento de desistir era aquele, porém em meio ao nada, apareceu um caminhão com

mineradores atrás de ouro e deram carona aos meninos. Conseguiram assim chegar até a polícia de fronteira. Esta é responsável pelo controle de pessoas que passam pelas fronteiras dos países. Um documento deve ser feito para serem liberados.

“Nós queremos chegar do outro lado” disse Javier ao guarda que os liberaria. “Vocês

tem que estar preparados, não só com barracas, precisam de suprimentos, roupas para frio extremo, não posso deixar vocês passarem, já é tarde! O tempo pode fechar” comenta o guarda, ainda não acreditando que dois jovens totalmente despreparados queriam atravessar a cordilheira.

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Ventava gelado, na mochila somente umas roupas de frio, porque foram trocando, ven-

dendo conforme viajavam. Cinco horas da madrugada eles liberaram os papeis. Começaram pedalar sobre o chão de pedra, com vento e uma subida incessante. Por duas horas eles subiram, desistindo e voltando para a polícia.

Ali não passa ônibus, em média vinte carros por dia cruzam a fronteira. A solução que

tinham era esperar por alguma carona. Assim fizeram até surgir uma caminhonete que pudesse levar as bicicletas deles também. De principio o motorista recusou dar carona aos meninos, mas o policial o convenceu que eles eram pessoas do bem e precisavam de ajuda. Algumas horas de carro, 4750 metros de altura, ar rarefeito e baixa pressão atmosférica, e chegaram a San Juan na Argentina.

***

A moeda Argentina está desvalorizada com relação aos pesos chilenos. O que favoreceu

a estadia dos garotos em Hotéis, de San Juan até San Pedro do Atacama, de volta ao Chile.

San Pedro é localizada na fronteira chilena com a Bolívia. Seu clima frio é uma pecu-

liaridade que se deve a sua altitude ser mais de dois mil e quatrocentos metros. Conhecida assim por ser um oásis no meio do Atacama, considerado o mais alto e árido deserto do mundo.

Cidade turística com poucos habitantes, Javier não conseguia dinheiro com malabares.

Partiram rapidamente dali para a Bolívia

***

Entre caronas, pedaladas, e ônibus chegaram a Santa Cruz de la Sierra, segunda maior

cidade da Bolívia. Faz fronteira com o Brasil e tem parte da Amazônia em seu território. Para muitos um paraíso tropical. Para Javier foi, oficialmente, o início da sua jornada como artista de rua. Pouco dinheiro acabou aumentando a necessidade de se praticar malabarismo.

Carros buzinavam, eles eram horríveis, estavam nervosos e tímidos. Mas não se impor-

taram, semáforos viraram palco de suas apresentações. Ganhavam pouco, e mal dava pra comer. Assombrados pela dor da fome, dormindo sobre a luz da lua e acordando sendo beijado pelo sol, ou pela chuva. Aprenderam a pedir esmolas e comidas. “Oi moça, tudo bem? Estou na rua,

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queria saber se não tem algo que possa dar pra gente. Tenho muita fome. Você pode dar?”. Assim um amigo ensinou a eles como pedir em restaurantes alimentos que sobram todos os dias. Depois de uns dias embarcaram no trem rumo à fronteira da Bolívia com o Brasil.

***

Saindo da Bolívia, assim que chega no Mato Grosso do Sul a primeira cidade que se

encontra é Corumba. Munícipio pertencente à região dos pantanais sul-mato-grossenses. Tem uma população mediana, em torno de cem mil habitantes.

Quando os irmãos chegaram o calor era insuportável. Não sabiam falar português, e o

dinheiro não dava para ficar em nenhum hotel. Quando a noite caiu prenderam as bicicletas e dormiram na rua.

Amanheceu. Javier se deu conta que tinham roubado seus pertences. Desesperado saiu

pela cidade tendo a esperança de que ia encontrar a mochila, mas só encontrou algumas coisas jogadas no chão. Neste momento ele aprendeu que não se deve confiar em todas as pessoas que encontram, e mais importante ainda precisa saber onde dormir.

Era final de março sob um calor de quase 40 graus e sem rumo certo. Queria ir embora

imediatamente, pegou a bicicleta chamou Bruno e partiram. Quando anoiteceu param em uma fazenda, pediram por abrigo e comida. Seguiriam viagem no outro dia pela manhã.

***

Durante uns dias foram dormindo em fazendas. Até conseguirem uma carona para Lo-

rena no interior de São Paulo. Agora estava mais perto do Rio de Janeiro, um dos destinos os quais gostariam de chegar.

Pela Rodovia Dutra de Lorena até o Rio de Janeiro são 247 quilômetros. Aproximada-

mente duas horas e meia de carro, e dez horas de bicicleta. Os meninos não arrumaram carona, o jeito era pedalar vários quilômetros até o Rio. Sem pressa de chegar acampavam nas estradas.

***

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Com sua população de 13 milhões de habitantes Rio de Janeiro é a cidade dos grandes

poetas, compositores, músicos e atores. Já foi capital da colônia e sede do Império até o início do século XX. Famoso pelas praias exuberantes, pela garota de Ipanema, pelo Cristo Redentor no morro Corcovado e pelo Pão de Açúcar. Palco de revoluções históricas, e das belezas naturais. Por ano passam quase dois milhões estrangeiros, sendo o ano novo e o carnaval os feriados que mais atraem pessoas. Seu charme envolvente que contagiou o mundo, e lhe rendeu o apelido de Cidade Maravilhosa.

No dia 20 de abril de 2014, a previsão do tempo dizia que o dia era de sol, com máx-

ima de vinte e oito e mínima de vinte e três graus. Os irmãos chegaram. Procuraram o lugar onde iriam ficar.

Bruno conheceu Victor pela internet um pouco antes de chegarem ao Rio. “Estamos

viajando de malabares, precisamos de um lugar para ficar” ele contava para novo amigo. O rapaz morava em uma kitnet pequena e bonita com outro moço chamado Cláudio. Por lá os viajantes ficaram por quinze dias.

Começaram a trabalhar de malabarismo em diversos pontos, venderam as bicicletas.

O dinheiro já rendia, e conseguiram alugar uma kitnet para os dois por três meses. “Já tem um tempo que estou aqui, vou seguir viagem!”, diz Javier. Assim, Bruno voltou a morar com Victor e Cláudio e separando de seu irmão.

VIDA DE ARTISTA

Sozinho no Terminal Rodoviário Novo Rio, localizada na Avenida Francisco Bicalho,

perto da ponte Rio-Niterói, comprou sua passagem. Com dezenove reais, mais uma hora e meia de viagem e desembarcaria em Petrópolis.

A cidade imperial nasceu do sonho de Dom Pedro Primeiro, que ali construiu um castelo

para passar suas férias. Para um malabares o custo de vida ali é muito caro, hotéis e comida da alta gastronomia. Sem dinheiro Javier dormiu na rua por duas semanas.

Sem rumo e solitário, resolveu que iria se aventurar por Minas Gerais. Passou por Juiz

de Fora, Barbacena chegando a Conselheiro Lafaite onde conheceu uma pessoa especial que o ajudaria.

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Fernanda apareceu quando ele estava fazendo malabarismos em um sinal de Lafaiete.

“Vamos para Viçosa, lá você vai gastar menos dinheiro, pode ficar em uma república, é barato! E pode ganhar um dinheiro bom por lá também”. Ela lhe contou durante uma conversa. Ofereceu carona e ele aceitou. Era dia vinte e quatro de setembro quando ele pisou em solo viçosense, um dia depois do início da primavera.

***

Pequeno município da zona da mata possui 76.745 habitantes fixos, mais os quase

quinze mil estudantes. Tipicamente universitária, onde prédios nascem a todos os instantes. Viçosa começou a ter semáforos em agosto de 2011, sem eles o único espaço para malabaristas ou outros artistas atuarem era o Calçadão. Um local onde todos passam, sejam a procura de algo, ou apenas para chegar do outro lado. Um local para ser visto.

Atualmente quem for lá, vai avistar um senhor, sentado em um banco carregando nas

mãos um objeto vermelho, sua sanfona, ele toca pro povo dançar. Quando passar, sempre vai se deparar com a arte. Artesões montam suas coisas ali mesmo no chão. Tem pulseira, brinco, cordão, bolsa, objetos decorativos, e muita história pra contar.

Javier ficou amigo de muitos artesões aqui na cidade. Assim que chegou encontrou abri-

go pelo tempo que precisar, um Sítio todo alternativo localizado no Bairro Violeira. No local moravam: um casal, formado por uma estudante com um eletricista, um músico de rua, e dois artesões, um deles se chamado Alexandre, que dorme com jovem estrangeiro na sala.

***

Barba por fazer, usando a mesma roupa a semana inteira, fisionomia mal cuidada espe-

lhando visivelmente a falta de um dente. Falar manso de quem leva a vida na extrema tranquilidade e não quer saber de nada.

Alexandre é pai de seis filhas com quatro mulheres diferentes em Vila Velha no Espírito

Santo, cidade onde nasceu e morou a maior parte da vida. Com vinte e oito anos, há oito anos entrou na vida alternativa de viagens, artesanato e morador de rua.

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Ele não nasceu nas vias públicas. Morar nelas foi fato da inconsequência dos seus atos.

No seu passado já se alistou como soldado do exército, acabou expulso, em 2006, por participar e criar uma festa dentro do quartel da Vila Velha Vigésimo Batalhão de Fuzilaria. Tentou abrir um restaurante na praia de Marataisis. Negócio dando certo, mas a diversão e falta de juízo falava mais alto, não soube administrar dinheiro acabou.

Na cruel vida em que se encontra, sofreu com ataques de roubo, tentativas de assassina-

tos, fome, noites frias. Sua vida nas ruas também o levou para diferentes lugares pelo sudeste do Brasil. Conheceu Viçosa existem nove anos, por acaso, mas não ficou até voltar em maio de 2014.

Depois de tanto tempo na rua conseguiu um lugar pra ficar. Gasta 150 reais, incluindo

comida, aluguel, luz e água. Cansado de dormir na sala está terminando de construir seu quarto em um paiol que existe fora da casa do sítio. Javier o ajudou a cortar os bambus e arrumar o local.

***

Em Viçosa Javier tornou-se amigo de muitas pessoas. Assim como em todo lugar que

ele passa. Enquanto comia seu pastel de sempre ele conversa com Santiago. Um menino de baixa estatura, braços fortes, olhos verdes e cabelos loiros contrastando com a pele dourada de sol.

O garoto com sotaque espanhol carregava na mochila desgastada, cinco claves coloridas

e pesadas. Vestia uma calça jeans escura e uma blusa branca, suada por estar o dia todo fora de casa. Dizia que blusa branca era o segredo para as pessoas não acharem que você era sujo.

Veio da Colômbia para fazer intercambio em dança no começo de setembro. Ganha

dinheiro para ajudar no seu sustento com a arte de rua. Dança, acrobacia e malabarismo fazem parte do seu repertório. Começou cedo, trabalhou em um circo por três anos, mas onde trabalhava era infeliz, o circo só queria ganhar dinheiro, desistiu de ter um chefe. Sozinho ele era seu próprio patrão.

Sua paixão pelo picadeiro não morreu, o Circodellia reacendeu as chamas desse amor.

Trabalhou com eles por dois anos e viajou pela Colômbia. Conheceu sua namorada brasileira estudante da Universidade Federal de Viçosa no circo colombiano, enquanto ela estava fazendo

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um intercambio. Juntos eles formavam um casal de acrobatas.

Sua personalidade revoltada não gosta que fechem a janela pensando que ele é ladrão.

Mas não se abate facilmente, acredita que seu trabalho seja bom independente do que os outros pensem. Gosta de aplausos, diz ser a parte mais gratificante. Um dia desses recebeu uma nota de cem reais de um motorista e cem de outro.

Nunca morou na rua, ao contrário da maioria. Para ele este lugar só representa palco

livre, onde ele expressa a felicidade. Ensinou alguns truques para Javier, e se apresentaram juntos alguns minutos. Mas ele estuda e só trabalha aos sábados de manhã com outro estrangeiro.

***

Javier, como tantos outros, está de passagem, sua estadia é breve. Mais rápida que a de

muitos estudantes que entram e saem todo ano dessa singular cidade universitária. Diferentes deles, o jovem malabares não parece ter um rumo determinado, é alguém que vaga por diferentes lugares. Voltará para o Chile do mesmo jeito que chegou ao Brasil, de cidade em cidade. Coração aperta de saudade, mas a vontade de explorar é cada vez maior.

Em momentos de dor o uso de drogas, em momentos de felicidade também. Talvez

nem ele saiba se suportou tudo isso na realidade ou na fantasia de quem enxerga o mundo sob outras perspectivas. Tentando se esconder no que imagina ser um universo melhor. Para estes artistas a rua ensina, mas também judia. A espera por algo arde dentro deles. Queima porque aguardam serem vistos, mas não são.

Garoto tem sonhos de uma criança, seu conhecimento sobre as maldades do mundo

são ainda inocentes. Em cada canto vê o lado bom. Aprendeu muito durante suas aventuras, porém tem muito que conhecer. Para ele a rua foi uma forma de autoconhecimento, de saber aproveitar cada dia como se fosse o último, de ser desafiado a todo instante e de ser livre. Vestido de palhaço se contenta com sorriso sincero da criança que o vê pela janela do carro. Agora, diz que mundo afora ele vai! Voando como um pássaro, sem medo do que vai encontrar pelo caminho. Fim.

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Por todo o azul da AmĂŠrica do Sul


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