Orégano...
Apesar da estranheza do pedido, a família dela aceitou que ele ficasse com as cinzas. Ela fora a primeira a ser cremada, e só o foi por que ele garantiu que esta era a vontade dela: “– Ela me disse – diversas vezes, aliás – que tudo em seu corpo que não pudesse ser doado, deveria ser cremado. E eu garanti que faria cumprir sua vontade". Assim foi feito. Ao ser constatada a morte cerebral, logo após o acidente, a irmã mais velha – na ausência dos pais já falecidos – assinou toda a documentação necessária, e foram doados rins, coração, córneas, pâncreas, etc. Todos sabiam que era isso que ela queria, mas a história da cremação foi uma surpresa. A família não teve trabalho algum neste sentido, ele fez questão de providenciar tudo. Ao final do processo, a família ficou até aliviada ao entregar as cinzas. Eles jamais admitiriam, mas ninguém queria ficar com a pequena urna onde estavam os restos mortais daquela que um dia fora a tão querida Ana. --Agora, dois anos depois, ele estava levando a urna consigo. Ia para o interior em busca de novos ares e nova vida. Já tinha a casa preparada – comprada quase um ano antes – e um grande salão alugado no centro, onde abriria enfim o seu próprio negócio.
Seu destino era a cidade de Garça, que
apesar do constante desenvolvimento, não estava nem perto do tamanho e da confusão de São Paulo. Ele havia comprado uma bela casa, talvez grande demais pra morar sozinho, e passou alguns meses cuidando de cada detalhe da mobília e
da decoração, dando especial atenção ao cômodo onde ele sabia que passaria a maior parte do seu tempo livre: um grande quarto que foi convertido numa aconchegante biblioteca. Há muito tempo ele queria abrir um negócio, mas não sabia exatamente de que tipo. Pensou em abrir uma sorveteria, já que o clima da cidade era bem quente na maior parte do ano, mas bastou uma curta caminhada ao redor da Paróquia de São Pedro Apóstolo pra fazê-lo desistir da ideia. Já havia sorveterias demais. Depois de muito pensar e caminhar pelos arredores, ele resolveu: abriria uma pizzaria! Assim decidido, passou os últimos três meses preparando as coisas. O salão tinha uma localização extremamente conveniente, ficava próximo de sua casa e bem na frente da paróquia, que era muito frequentada, não só pelos habitantes locais, como pelos moradores das cidades próximas. Seria perfeito! Ele estava agora chegando com suas poucas bagagens, após ter rompido os últimos laços com a sua antiga vida na capital, e não pode evitar uma pontada de orgulho ao passar na frente da pizzaria que abriria dali a dois dias. Parou o carro por instantes somente para observar o letreiro e a faixa que anunciava a inauguração agora tão próxima:
PIZZARIA DOM MATTEO Grande Inauguração sexta-feira 10/06. NÃO PERCAM!!!
Nas duas últimas semanas, dividido entre São Paulo e Garça, ele foi fazendo os acertos finais no salão, e divulgando a pizzaria. Foram distribuídos panfletos na saída da igreja e havia cartazes espalhados por toda a cidade, estavam todos ansiosos pela inauguração. --Mateus havia contratado três pessoas para ajudá-lo, mas já nos primeiros minutos, percebeu que isso não seria suficiente. A pizzaria ficou lotada. Os funcionários, com a permissão do dono, chamaram amigos e familiares às pressas pra ajudar. Foram necessárias mais sete pessoas, ninguém esperava tamanho sucesso. Aos poucos as opções do cardápio aumentaram, assim como os funcionários e os clientes. No início, ele mesmo fazia as pizzas, mas depois teve que dividir esta tarefa entre dois de seus funcionários. Agora, só havia uma pizza que Mateus continuava fazendo, era a especialidade da casa, composta de atum, catupiry, azeitonas e orégano. Ele fazia questão de prepará-la numa cozinha separada, longe das vistas dos clientes e mesmo dos funcionários, que estranhavam, mas não questionavam o chefe. --A pizza foi ficando cada vez mais famosa, e aura de mistério só fazia aumentar a curiosidade de todos, não eram raros os que diziam que aquela era a melhor pizza da casa. Muitos pediram para conhecer a cozinha onde era feita a deliciosa e misteriosa pizza e não encontraram nada de anormal. Sempre que questionavam qual era o segredo daquela pizza tão saborosa, ele respondia: “ – É o orégano. Ele é muito especial.” Clientes, concorrentes e funcionários tentavam reproduzir a pizza, mas ninguém nunca conseguiu, por mais que tentassem nunca
ficava igual. Foram oferecidas altas somas em dinheiro para que ele revelasse o segredo, porém ele sempre dizia a mesma coisa: “– Não há segredo algum além do orégano.” Sua casa chegou a ser invadida, pois criou-se o mito de que ele escondia a receita em sua biblioteca, porém os cinco arruaceiros que arrombaram a casa, não encontraram nada além de livros comuns, havia alguns raros, é verdade, mas nada de especial, nada de receitas. --Os meses foram se passando, sempre com a pizzaria cheia. Um dia, Mateus simplesmente fechou sua cozinha e riscou do cardápio a pizza tão famosa, saiu mais cedo deixando a pizzaria a cargo dos funcionários, estava abatido e disse que precisava descansar. Houve alguns protestos por parte dos clientes e dos funcionários, e ele respondeu tristemente: “– Não posso mais fazer esta pizza. Meu orégano acabou”. --Ao chegar em casa, ele trancou-se na biblioteca, separou alguns livros e os levou para uma mesa junto à janela. Aqueles livros eram especiais pra ele. Eram especiais porque tinham sido presente dela. Ele precisava ver os livros, tocá-los, precisava sentir que ela ainda estava por perto de alguma forma. Ele se sentou, abraçou alguns daqueles livros e pensou com um sorriso que mesmo ela estando morta há alguns anos, tinha conquistado uma cidade inteira. Uma cidade que nunca a conheceria, mas que a tinha devorado.