Livro as gotas de ar frio que inundaram a grande lisboa nova versão actualizada

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AS «GOTAS DE AR FRIO» QUE INUNDARAM A GRANDE LISBOA Nova versão actualizada

Memórias das Cheias de Novembro de 1967. O Concelho de Oeiras.

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Ana Paula Teixeira Torres Investigadora do «Grupo Histórias de Vida» da Biblioteca Municipal de Algés.

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AS «GOTAS DE AR FRIO» QUE INUNDARAM A GRANDE LISBOA Nova versão actualizada

Memórias das Cheias de Novembro de 1967. O Concelho de Oeiras.

Ana Paula Teixeira Torres Investigadora do «Grupo Histórias de Vida» da Biblioteca Municipal de Algés.

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Ficha técnica: Título: AS «GOTAS DE AR FRIO» QUE INUNDARAM A GRANDE LISBOA. Memórias das Cheias de Novembro de 1967. O Concelho de Oeiras (Nova Versão actualizada). Foto da capa: Dafundo, Rua Direita, Foto de Ilídio Espada Teixeira, cedida por Foto ARTEBELA, Algés. Data: Fevereiro de 2018 Depósito Legal nº 434377/17 Copyright: apttorres21@gmail.com Edição Ebook

A autora não segue o acordo ortográfico.

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Nota prévia O presente trabalho, agora editado em Ebook, resultou de um aprofundamento da obra publicada com o mesmo nome, que foi apresentada no Auditório da Câmara Municipal de Oeiras, no dia 25 de Novembro de 2017. Esta nova versão, alargada e aprofundada, teve por base novos dados recolhidos entre Novembro de 2017 e Fevereiro de 2018, a partir da consulta de um novo arquivo (Arquivo da Secretaria Geral do Ministério de Administração Interna), de contactos em Alenquer, Quintas, Odivelas, e de reportagens publicadas na imprensa e divulgadas na Televisão, quando, 50 anos volvidos, se recordava a tragédia de Novembro de 2017.

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Dedicatória

Era ao cair da tarde – e havia mortos. Todos muito juntos, enlameados, compridos.

Eu sabia que tinha os mortos todos atrás de mim, indiferentes, quietos, não se importando absolutamente nada que lhes trocasse os nomes. Mas eu não queria cometer o mínimo erro, o mais pequeno deslize. “Se tu és João” – dizia para mim – “és João. E se o teu nome é Mário, o teu nome será Mário. E caso te chames Rosa, não te chamarei Lucília.” E teimava, teimava em ser exacto….

E os nomes dos mortos continuavam … Como um preito de homenagem. Como um choro.

Partindo deste comovente choro e preito de homenagem de Pedro Alvim, DEDICO este meu trabalho a todos os mortos da tragédia daqueles dias de Novembro de 1967. A todos aqueles a quem consegui dar um nome, graças ao rigor e dedicação daquele e de outros jornalistas e a todos aqueles que, não obstante o anonimato de corpos não identificados ou ainda por desenterrar, nunca serão esquecidos.

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Agradecimentos

Em primeiro lugar, à equipa que integrou o projecto «Histórias de Vida», que foi o ponto de partida para este trabalho, nele destacando a Clotilde Almeida Moreira, a Helena Vieira de Abreu, a Maria Amélia Teixeira, a Maria Sam Pedro Marques e o Paulo Gameiro Neves, aqueles que estiveram sempre presentes em todas as fases do projecto. À Ana Isabel Santos, a coordenadora das «Histórias de Vida» na Biblioteca Municipal de Algés que dinamizou e animou todas as sessões de trabalho durante dois anos. À Filipa Candeias, que a veio substituir e que agarrou o projecto com um entusiasmo como se nele tivesse estado desde o primeiro dia. Também me abriu pistas de investigação, pôs-me em contacto com arquivos fundamentais e trabalhou a revisão do texto com um rigor e um espírito científico que foram fundamentais para o seu enriquecimento. À Ana Isabel Araújo, que participou também na revisão deste trabalho, preocupando-se com a correcção linguística, sempre atenta ao léxico, à pontuação e às concordâncias. À Maria João Carvalho, que andou comigo a contar os mortos, a dar-lhes um nome, para que não se perdessem no esquecimento. A Ilídio Espada Teixeira, por ter cedido as suas fotografias para serem publicadas neste trabalho. A todos os meus familiares e amigos que, de uma maneira ou de outra, me apoiaram na realização desta tarefa, sobretudo na sua fase final que, por motivos de saúde, foi marcada por momentos surpreendentemente difíceis e dolorosos. Sem a sua rede de solidariedade, não teria sido possível acabar de escrever este livro.

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Fisicamente, habitamos um espaço, mas, sentimentalmente, somos habitados por uma memória. Memória que é a de um espaço e de um tempo, memória no interior da qual vivemos, como uma ilha entre dois mares; um que dizemos passado, outro que dizemos futuro. Podemos navegar no mar do passado próximo graças à memória pessoal que conservou a lembrança das suas rotas, mas para navegar no mar do passado remoto teremos de usar as memórias que o tempo acumulou, as memórias de um espaço continuamente transformado, tão fugidio como o próprio tempo.

José Saramago, O Caderno, Editorial Caminho, Lisboa, 2009

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ÍNDICE

Introdução -------------------------------------------------------------------------------------------------- 14 1. O mundo, o país e o município de Oeiras em Novembro de 1967 ------------------------ 16 2. Números e espaços da catástrofe ----------------------------------------------------------------- 22 2.1. A pluviosidade intensa. 2.2. Mortos, feridos e desalojados. Prejuízos materiais 2.3. Zonas mais afetadas 3. A Lisboa que se inunda ------------------------------------------------------------------------------- 27 4. Chuva, lama, destruição e morte no concelho de Oeiras ------------------------------------ 32 4.1. Oeiras e Ribeira da Laje 4.2. Barcarena e Fábrica da Pólvora 4.3. Linda-a-Velha e Carnaxide 4.4. Algés 4.5. Cruz Quebrada e Dafundo 4.6. Caxias, Paço de Arcos, Porto Salvo e Talaíde 4.7. Amadora 5. Outras localidades inundadas da Grande Lisboa ------------------------------------------------ 55 6. A explicação da tragédia na época. Da leitura oficial às leituras críticas ------------------ 70 7. Reflexão posterior. Factores que agravaram a tragédia -------------------------------------- 79 7.1. Ambientais e urbanísticos, gestão do território. 7. 2. Sociais – a pobreza que as cheias revelaram 8. Acção das instituições oficiais no apoio às vítimas da catástrofe --------------------------- 84 8.1. Autoridades governamentais, distritais e municipais. O silêncio de Salazar. 8.2. A Câmara Municipal de Oeiras e as instituições locais 8.3. Legião Portuguesa, Mocidade Portuguesa e Movimento Nacional Feminino 8.4. Forças militares e militarizadas 9. O apoio das corporações de Bombeiros ---------------------------------------------------------- 124

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10. As instituições católicas ----------------------------------------------------------------------------- 128 10.1. Cruz Vermelha Portuguesa, Santa Casa da Misericórdia, Caritas e Conferências de S. Vicente de Paulo 10.2. Centros Paroquiais - A Paróquia de Oeiras 10.3. Acção Católica Portuguesa e a Juventude Universitária Católica 11. A A solidariedade dos Estudantes e o incómodo do Governo. ----------------------------- 143 11.1 A JUC, as Associações de Estudantes e as brigadas de solidariedade 11.2. O papel das cheias na consciencialização política dos estudantes 11.3. O incómodo do Governo – desagrado e aproveitamento 12. Outros gestos de solidariedade -------------------------------------------------------------------- 167 12.1. Fundação Calouste Gulbenkian 12.2. Imprensa 12.3. Comunidade artística e outros grupos 13. As excepções: desumanidade e pilhagens ------------------------------------------------------ 170 14. Ecos da tragédia na Comunicação Social: Imprensa, Televisão e Rádio ----------------- 173 O travão da Censura 15. Solidariedade Internacional e ecos na imprensa estrangeira ------------------------------ 181 16. A resiliência das populações e das instituições atingidas pelas cheias. ------------------ 183 16.1. Resiliência e solidariedade das populações 16.2. Resiliência das instituições: o caso da Fundação Calouste Gulbenkian no restauro das obras em Lisboa e Oeiras 17. O recorrente problema das cheias na região de Oeiras. Como proteger o futuro? -- 190 Conclusão --------------------------------------------------------------------------------------------------- 195 Anexos ------------------------------------------------------------------------------------------------------- 203 1.Memórias das cheias no concelho de Oeiras - A voz de quem viveu e foi testemunha da tragédia ------------------------------------------ 204 2. Fotografias --------------------------------------------------------------------------------------------- 224 3. Lista de mortos confirmados nas várias localidades ----------------------------------------- 242 Bibliografia ------------------------------------------------------------------------------------------------- 271 13


Introdução A escolha do tema das inundações de Novembro de 1967, que se concretiza neste trabalho, teve a sua origem no projecto «Histórias de Vida» que se iniciou na Biblioteca Municipal de Algés, no ano de 2015 e que se tem prolongado, em diferentes iniciativas, até hoje. Neste projecto participaram vários munícipes do concelho que, em reuniões quinzenais, se juntavam para partilharem as suas histórias e memórias. Ao longo dos meses, o projecto ganhou uma dinâmica própria e das memórias individuais partiu-se à procura das memórias colectivas dos vários espaços da urbe de Algés, localidade onde vivia a maioria dos participantes. Num pequeno/grande salto saltámos para o domínio da história local, a construir memórias que já não eram só nossas, mas de todos e que fazem parte de um património cultural comum, através do qual reforçamos a nossa identidade. Sem grandes planos, deixámos que as memórias chegassem, soltas e espontâneas recuperadas pelo entusiasmo da partilha. Chegaram os cafés, os espaços de lazer, os bairros. Vimos fotografias de Algés de outros tempos e todos tinham uma história para contar. E, de entre todas as recordações, chegou-se à memória das inundações de Novembro de 1967 que tão dramaticamente tinham atingido Algés e outras localidades da Grande Lisboa. Percebemos que tínhamos descoberto um tema de estudo que seria interessante trabalhar. Por vários motivos: membros do grupo guardavam ainda recordações do acontecimento; conheciam vizinhos que, decerto, teriam histórias para contar; em Novembro de 2017, iria acontecer o seu 50º aniversário. Havia também uma circunstância estranha que não sabíamos explicar. As cheias de Novembro de 1967 tinham sido uma catástrofe imensa que aconteceu em Portugal. Segundo um estudo1, tinha sido a terceira maior que tinha havido no último milénio. Pior que aquelas cheias, só o terramoto de 1755 e o aluvião do Funchal em 1803. Apesar dessa dimensão catastrófica e das inundações terem provocado muito sofrimento nas várias localidades, continuavam a ser um tema estranhamente ausente das memórias do país. Um estranho silêncio para os estudiosos que trabalharam o tema das inundações: «A sua inscrição na memória pública é escassa»2; «Não há uma narrativa nacional sobre o acontecimento.»3 Como explicar esta ausência, este silêncio, esta não abordagem do tema? 1

REBELO, Fernando, Geografia Física e Riscos Naturais, cit. in Revista Sábado, Ainda há lá corpos enterrados, Maria Henrique Espada, 16 de Outubro de 2017, p. 45. 2 Francisco Costa, Miguel Cardina e António Baptista Vieira, Revista Sábado, Ainda há lá corpos enterrados, Maria Henrique Espada, 16 de Outubro de 2017, p. 48. 3 Miguel Cardina, SIC Notícias, reportagem Cheias de 1967 – 50 anos, 25 de Novembro 2017

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O historiador António Araújo4 avança uma explicação para este apagamento de um acontecimento tão trágico. Diz ele que: «Não se tem hoje a dimensão do que se passou. Isso foi abafado. Dada a escala, é extraordinário, por exemplo, que não haja um único livro publicado sobre as cheias de 1967». Na sua perspectiva, teria sido a atitude de desvalorização e cerceamento da informação sobre o acontecimento feito pelo Estado Novo que teria contribuído para que o tema não tenha sido até hoje objecto de um estudo mais abrangente, que aborde as várias dimensões daquele acontecimento, a acção dos seus vários intervenientes e que cruze informações recolhidas em arquivos com testemunhos de quem vivenciou aquela tragédia.

É, por isso, intenção deste trabalho retirar do esquecimento as inundações de Novembro de 1967. Se a lama que as águas trouxeram tudo envolveu, revolveu e sepultou, que da lama do esquecimento sejam retiradas as vítimas também. Para o conseguirmos fazer, usámos a seguinte metodologia: 1. Pesquisa na Internet de toda a informação disponível sobre aquelas inundações, qualquer que fosse o ângulo de observação do fenómeno, fotografias e vídeos incluídos. Tal pesquisa permitiu ficar com uma ideia geral sobre o acontecimento; 2. Registo de testemunhos de munícipes que tivessem recordações dessas cheias. Alguns desses registos tiveram lugar na Biblioteca Municipal de Algés, nas reuniões quinzenais do projecto «Histórias de Vida». Houve também registo de testemunhos de outros munícipes, em diferentes locais do concelho. Finalmente, recolheram-se testemunhos em obras impressas e em sites da Internet; 3. Pesquisa de jornais e de arquivos (Arquivo Histórico de Oeiras, Arquivo Gulbenkian, Arquivo Mário Soares, Arquivos da Torre do Tombo) em busca de dados que permitissem uma abordagem o mais abrangente possível do acontecimento; 4. Numa fase posterior, como é referido na «Nota prévia», consulta de um novo arquivo, o da SGMAI e recolha de novos dados a partir de contactos com as bibliotecas municipais de Alenquer, Odivelas e Vila Franca de Xira, de novos testemunhos de sobreviventes de Quintas e de reportagens publicadas na Imprensa e divulgadas na Televisão portuguesa; 5. Cruzamento de toda a informação recolhida e seu tratamento de forma objectiva. De entre a muita informação dispersa e parcelar que existe sobre o tema, reparámos que grande parte das abordagens tendem a ser ligeiramente maniqueístas e pouco objectivas, valorizando uns intervenientes e desvalorizando outros, partindo mais de posicionamentos ideológicos distintos do que apoiadas em dados precisos. Em sentido contrário, procurou-se, neste trabalho, a maior objectividade possível no tratamento da informação. 4

ARAÚJO, António, «Agir» As cheias de 1967 e o progressismo católico português, 21 de Junho de 2017, Malomil.

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Uma das preocupações da pesquisa realizada foi ainda a identificação dos mortos e a elaboração de listas com os seus nomes inseridos nas localidades a que pertenciam. O seu objectivo foi dar nome a todos os que perderam a vida naquelas inundações, para que não se percam, para sempre, no lodo do esquecimento. Por último, uma referência a uma questão de ordem formal que adoptámos para facilitar a abordagem do tema. Dado que, na imprensa da época, as cheias de 1967 são sempre referenciadas como «inundações», ao contrário de abordagens posteriores que as identificam como «cheias», optámos por simplificar e utilizar os dois conceitos como sinónimos um do outro. Na verdade, não o são e os especialistas explicam a diferença entre «cheia» e «inundação», mas como a abordagem feita por este trabalho não privilegia a meteorologia, mas o contexto sócio-político em que ocorreram as grandes chuvas de Novembro de 1967, optámos por esta simplificação.

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1. O mundo, o país e o município de Oeiras em Novembro de 1967 O Mundo Em 1967, a Guerra do Vietnam marcava as manchetes dos jornais nacionais e internacionais e noticiavam-se novas carnificinas como a batalha de Dak-to, que durou 23 dias, custando aos americanos 246 mortos e 860 feridos e aos norte-vietnamitas cerca de 4.000 vítimas. 5 A «Questão de Chipre» continuava a centrar as atenções da Europa e a ameaça de um conflito militar pairava sobre os Balcãs. A Turquia lançava um ultimato à Grécia, exigindo a retirada das tropas gregas da ilha. Temendo a invasão turca, Chipre decretava a mobilização geral. Dias depois, a Grécia aceitava todas as exigências turcas sobre Chipre e o Conselho de Segurança da ONU lançava um apelo aos países envolvido em conflito naquela ilha do Mediterrâneo Oriental, para que se abstivessem de quaisquer actos que pudessem agravar ainda mais a frágil situação no Mediterrâneo Oriental. O conflito israelo-palestiniano permanecia vivo e a dominar a cena internacional. No Reino Unido, dera-se a desvalorização da libra, que levara à inflação e a animadas discussões no Parlamento entre os Tories, na Oposição, e os Trabalhistas do Governo. Registava-se uma «corrida ao ouro» nos mercados de Londres e de Paris, na sequência da mesma desvalorização. O Diário de Notícias, de dia 26 de Novembro, anunciava uma Sexta-feira negra, na sequência de um recorde de vendas, no espaço de uma semana, de 300 toneladas de ouro, no valor de 144 milhões de libras, na moeda da época. A França despedia-se da sua aventura colonial, abandonando a sua última fortaleza em África (Mers-elKébir) e De Gaulle voltava a não aceitar a entrada da Grã-Bretanha no Mercado Comum. A Guerra Fria projectava-se no espaço, com os EUA e a URSS a competirem em avanços técnicos, procurando mostrar ao mundo e a si próprios a sua superioridade científica dos seus princípios ideológicos. A URSS adiantava-se: entre 1961 e 1963, o astronauta Yuri Gagarin tornava-se o primeiro homem a partir para o espaço; uma sonda soviética pousava na Lua; e Valentina Tereshkova surgia como a primeira mulher astronauta a aventurar-se para fora da órbita terrestre. Os EUA não desistiam de lutar pela supremacia do espaço, mas sofreram um grande revés quando, em Janeiro de 1967, um incêndio da nave Apollo 1 matou os astronautas Virgil Grissom, Edward White e Roger Chaffee. Em Abrll do mesmo ano, um acidente com a nave russa Soyuz-1 matou o astronauta Vladimir Komarov, seu único tripulante. Em 1960, nos laboratórios das grandes empresas tecnológicas chegavam também novas inovações, das que destacamos apenas duas, em áreas completamente diferentes, mas que viriam a ter consequências 5

Diário de Notícias, 23, 26 Novembro de 1967.

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para a vida dos cidadãos: o lançamento, pela IBM, do primeiro computador electrónico e o aparecimento, no mercado, da primeira pílula anticoncepcional. A ciência avançava, não obstante todos os instintos destruidores do homem. A medicina iniciava caminhos inimagináveis quando James Watson, prémio Nobel americano, criou, pela primeira vez na história da humanidade, «vida» num tubo de ensaio e quando, em Dezembro de 1967, o cirurgião sulafricano Christiaan Barnard fazia o primeiro transplante de coração humano. O primeiro paciente só sobreviveu 18 dias, mas um novo transplante, feito pouco tempo depois, teve um grande sucesso, dando ao segundo paciente mais um ano e sete meses de vida. A partir de então, seria possível a um ser humano viver com o coração de outro homem.

O País Na entrada dos anos 60, o país era ainda marcado pela figura tutelar e autoritária de António de Oliveira Salazar. Portugal continuava pobre, atrasado, com emigrantes a partir em busca de melhor vida, com baixos níveis de escolaridade e elevadas taxas de mortalidade infantil. Mantinha-se o regime nacionalista, de partido único, corporativo e autoritário do Estado Novo. A Guerra Colonial iniciada em 1961 e já anacrónica, depois dos ventos de libertação do pós-guerra, enfraquecia o país, isolando o regime internacionalmente e afastava dele uma juventude que crescia com vontade de mudança. Na relação com as colónias, a persistência em manter uma guerra, recusando o diálogo, fazia já antever cenários futuros de muito difícil resolução e com dolorosas consequências quer para os portugueses que voltavam, quer para as populações africanas que lutavam pela sua independência. Mas, não obstante a condenação internacional do regime por manter a guerra contra os movimentos de libertação em África, o contexto da Guerra Fria contribuiu para o reforço da posição de Portugal no interior da NATO, com a instalação do Comando da Área Ibero-Atlântica em Lisboa e a manutenção da Base das Lajes, nos Açores, de grande importância estratégica para os interesses americanos em relação à URSS. No período de 1959 a 1964, a Assembleia Nacional, que integrava exclusivamente deputados da União Nacional, debatia o II Plano de Fomento que iria marcar o arranque da industrialização do país, em detrimento da agricultura, mas ainda em moldes muito limitados e ainda espartilhado pelos ideais corporativistas, que continuavam a ser dominantes. Portugal iria então atravessar um período de forte incremento em termos de desenvolvimento e de crescimento económico, com o aumento dos investimentos públicos. No ano de 1967, quando o país se aproximava da catástrofe que se viria a abater sobre a Grande Lisboa, a imprensa, controlada pela Censura, continuava a traçar a imagem de um Portugal pacífico, em marcha 18


para o futuro. O Diário de Notícias6, de Novembro de 1967, dava-nos uma imagem do que ia acontecendo no país. Vários projectos urbanísticos de grandes dimensões apresentavam-se para a reordenação de Lisboa, inseridos no grande empreendimento que dava pelo nome de Lisboa no século XXI 7: uma nova praça equivalente ao Terreiro do Paço a construir no Alto do Parque Eduardo VII; uma praça monumental (Praça D. João I), no Martim Moniz; tapetes rolantes que ligariam aquele largo à Graça e à Pena, em substituição das velhas escadarias aí existentes. Previa-se ainda que, no século XXI, os eléctricos já não deveriam circular nas ruas de Lisboa. Em cartaz, nos teatros da capital, os lisboetas tinham à sua disposição peças de teatro e revistas. O Teatro Laura Alves tinha em cena «A Flor do Cacto», com Laura Alves e Paulo Renato, e O Maria Vitória «Pão, Pão…Queijo, Queijo». Nos cinemas, podia ver-se, no S. Jorge, «Como ganhar um milhão»; no Mundial, «O Incerto Amante»; no S. Luís, «Um homem para a eternidade»; no Éden, «Felizes para sempre», com Sophia Loren e Omar Sharif; no Monumental, «Cortina Rasgada», de Hitchcock, com Paul Newman e Julie Andrews. Anunciava-se um novo tipo de produção cinematográfica em Hollywood, com a chegada dos filmes psicadélicos. O primeiro, de Jack O´Connell, chamar-se-ia «A Revolução dos Hippies». O Diário de Notícias anunciava um espectáculo de gala, o «Ballet Romeu e Julieta», patrocinado por aquele jornal a favor da Cruz Vermelha, tendo como bailarinos Margot Fonteyn e Rudolf Nureyev. No Diário de Notícias, os leitores podiam seguir o final do folhetim «A rapariga vestida de branco», romance de Claude Jaunière, e, logo após o seu término, passariam a seguir «A Bela Aventureira», outro romance do mesmo autor. No Capitólio, realizava-se a primeira eliminatória do concurso de Música Pop 67/68, dinamizado por Vasco Morgado, para eleição dos três melhores conjuntos de ritmos modernos existentes o país. Inscreveram-se os «Os Complications», «Os Hippies», «Equipa 88» e «Some Sets». Este último grupo ganhou a primeira eliminatória. No desporto, o Diário de Notícias espanta-se com a audácia de um clube de futebol italiano querer comprar a grande estrela do futebol nacional. Comentava, indignado, Espantoso! Um «gang» de Nápoles propõe-se COMPRAR Eusébio para a Nápoles Futebol Clube». Em Sófia, realizava-se a Taça da Europa em futebol. A equipa portuguesa, alojada na Praça Lenine, integrava os seguintes jogadores: Américo, Manuel Rodrigues, Rui Rodrigues, José Carlos, Hilário, Jaime Graça, Pedras, José Augusto, Eusébio, Torres e Simões. Perdeu o jogo com a Bulgária por 1-0.

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Diário de Notícias de 20 a 24 de Novembro de 1967. Diário de Notícias de 21, 22 de Novembro de 1967.

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Os anúncios de procura de emprego requisitavam o serviço de alfaiates, apanhadeiras, aprendizas, aprendizes, cabeleireiras, caixeiros, canalizadores, carpinteiros, caseiros, casquinheiros, cinzeladores, cobradores, construtores, costureiras, cozinheiros, criadas, dactilógrafas, desenhadores, douradores, electricistas, empregadas, empregados, engomadeiras, estofadores, explicadores, fundidores, governantes, ladrilhadores, marceneiros, mecânicos, modistas, motoristas, mulheres- a-dias, operárias, operários, peleiros, pintores, porteiros, pracistas, professores, raparigas, rapazes, reformados, relojoeiros, senhoras, serralheiros, serventes, tipógrafos, torneiros, vendedores e viajantes. Não obstante esta imagem de um país sereno, o regime mantinha a PIDE, a sua polícia política, a Censura e a repressão contra qualquer oposição. Não havia liberdade de expressão, nem de associação ou de reunião. Os partidos políticos estavam proibidos à excepção da União Nacional que ocupava todos os órgãos do Poder. Os sindicatos não eram livres. Nas prisões, havia presos políticos, sobretudo de membros do Partido Comunista. A Oposição continuava a resistir ao regime8. Apesar de proibidos, registavam-se movimentos grevistas nas empresas de transporte de Lisboa e do Porto, por salários dignos e pela liberdade sindical; o Partido Comunista continuava a mobilizar a acção da PIDE; a L.U.A.R. (Liga da Unidade e Acção Revolucionária) iniciava a sua primeira «operação de guerrilha» com o assalto à delegação do Banco de Portugal, na Figueira da Foz; e as Associações de Estudantes agitavam a população estudantil com as suas reivindicações para desconforto do Governo.

O Município de Oeiras Em 1967, o concelho de Oeiras abrangia cinco freguesias: Barcarena, Oeiras, Carnaxide, Amadora e Paço de Arcos. Esta organização administrativa remontava a 1926 e iria manter-se até 1979, altura em que iria perder a Amadora, que se transformaria, então, num novo Município O Município era, no ano da catástrofe, presidido pelo arquitecto António Bernardo da Costa Cabral de Macedo. Eram vereadores Francisco Xavier Meireles Moreira Aranha (engenheiro de 65 anos, representante de Oeiras), Henrique Pádua de Carvalho (engenheiro de 47 anos, representante de Carnaxide), João Guimarães dos Santos Mattos (44 anos, representante da Amadora), Manuel Maria Leitão Vieira dos Santos (51 anos, representante da Damaia), Dr. Mário de Castro Arez (45 anos e representante de Paço de Arcos) e o Dr. Olívio José Alves Pereira da Silva (45 anos, representante de Barcarena).9

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RODRIGUES, António Simões (em colab.), História de Portugal em Datas, História de Portugal em Datas, Temas e Debates, Lta e Autores, 1996, p.370. 9 Reunião Extraordinária da Câmara Municipal de Oeiras de 27 de Novembro de 1967, C.M.O., p. 101.

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Apesar de ser um município próspero, enfrentava vários os problemas. O da habitação era, na época, um dos que mais preocupava as autoridades municipais e a população do concelho. Uma grande massa populacional deslocava-se das zonas do interior para Lisboa e encontrando ali dificuldades de habitabilidade, deslocava-se para a periferia, ocupando vales e áreas pouco seguras nas margens de rios e ribeiras, onde cresciam os bairros de lata clandestinos feito pelos próprios ou alugados por empreiteiros com poucos escrúpulos. No concelho, existiriam, na altura, cerca de 12.000 pessoas a viver em barracas no concelho de Oeiras.10 Em Julho de 1967, o Notícias da Amadora11 dava conta do problema: Sejam a falta de terrenos, as dificuldades técnicas, burocráticas, legais, etc., enfim, tudo serve para emperrar uma máquina, que é fundamental na vida económica e social de qualquer nação. O jornal adiantava que, de todas as soluções, a que não poderia continuar a ser seguida, seria o recurso à insalubre barraca, construída clandestinamente e abusivamente em terreno alheio. Havia também problemas administrativos, com a centralização de serviços numa ou noutra localidade, prejudicando as outras que ficavam longe. Era o caso da Delegação Escolar de Oeiras cuja sede funcionava na Amadora, o que exigia que os munícipes de todos os outros lugares aí se tivessem de dirigir para tratar de todos os assuntos escolares como matrículas, exames, certificados, transferências, etc, numa época em que os transportes não eram tão disponíveis como hoje. 12 A localidade de Algés apresentava também vários problemas a carecerem de resolução e que eram apontados pelo Notícias da Amadora,13 e pelo jornal local, Ribamar14. Eram disso exemplo o atraso na urbanização do Parque Anjos e no início dos trabalhos da Praça D. Manuel I, um grande projecto urbanísticos a abranger toda a zona fronteira até à Praça de Touros. Estava previsto que tivesse um aterro de 7 metros na parte central para a circulação rodoviária e um plano horizontal de nível mais elevado do que os edifícios envolventes. Para Algés, também exigiam os seus moradores outras obras: a urgente construção de uma passagem subterrânea para a estação de caminho-de-ferro e para a praia; a ampliação do mercado; a resolução do problema do trânsito; o controlo das pastelarias que vendiam leite de má qualidade e que pouco se preocupavam da higiene dos produtos expostos, sem qualquer resguardo, ao fumo, ao pó e aos espirros das pessoas constipadas.15

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Notícias da Amadora, 8 de Julho de 1967, p.5. Ibidem. 12 Ribamar, 10 de Novembro de 1967, p.1. 13 Notícias da Amadora, 21 de Outubro de 1967, pp.1 e 8. 14 Ribamar, 30 de Abril de 1967, p.1. 15 Ribamar, 18 de Agosto de 1967, p.5. 11

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Outros problemas afectavam as outras localidades do concelho, tais como: Amadora, falta de transportes urbanos; Queijas, falta de luz eléctrica e de transportes; Linda-a-Pastora, falta de uma cabine telefónica e de instalações sanitárias públicas... Nos finais de Outubro, quase um mês antes da tragédia, realizou-se o I Encontro de Comerciantes e Indústrias do concelho,16 onde foram analisados e discutidos problemas das várias localidades do concelho. Nele esteve presente o vereador Santos Mattos, que assumiu as dificuldades do Município em conseguir satisfazer todas as necessidades dos munícipes. Disse:17 Todos sabemos que muitas outras barreiras e insuficiências aguardam solução municipal. Da mesma forma é sabido que, na generalidade, a administração municipal é acusada, de não acudir, a tempo, se não até de esquecer essas soluções. Apenas nem sempre se é capaz de pensar nas limitações orçamentais e funcionais dos municípios, mesmo que eles, como no caso de Oeiras, sejam considerados prósperos e ricos. Um município com as necessidades de um grande centro, pode ter um orçamento de 50 mil contos como é o de Oeiras que está de mãos atadas para realizar anualmente tudo quanto lhe competiria, muito menos para realizar quanto a Presidência e a Vereação desejariam e ainda muito menos do que anseiam os seus munícipes. No ano de 1967, havia aniversários a comemorar: a Sociedade Cruz Quebralense festejava o seu 87º aniversário; a Associação de Bombeiros Voluntários de Carnaxide, o seu 55º; e o Grupo Recreativo de Tercena, o seu 39º.18 Foi neste contexto que, a 25 de Novembro de 1967, chuvas torrenciais caíram sobre a Grande Lisboa espalhando o medo, o desespero, a destruição e a morte.

2. Números e espaços da catástrofe 2.1. A pluviosidade intensa. A chuva começou na sexta-feira. No sábado, dia 25 de Novembro, choveu durante todo o dia. A partir das 19 horas e até às 24h, a chuva aumentou para uma intensidade nunca vista, segundo a imprensa da época. Foram 5 horas de «chuvas rápidas», segundo os especialistas19. A estação meteorológica da Tapada da Ajuda registava 111 milímetros por metro quadrado (112,5 milímetros), o que correspondeu

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Notícias da Amadora, 28 de Outubro de 1967, p.1. Notícias da Amadora, 4 de Novembro de 1967, p.8. 18 Ribamar, 18 de Agosto, 24 de Setembro, 10 de Novembro de 1967. 19 RAMOS Catarina; REIS, Eusébio, As Cheias No Sul de Portugal em Diferentes Tipos de Bacias Hidrográficas, Finisterra - Revista de Geografia Portuguesa, XXXVI, Lisboa, 2001, p. 61-82. 17

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a cerca de 25% (1/5) da precipitação média anual, e a estação meteorológica da Gago Coutinho registava 115,6 mm de precipitação num período de apenas 24h. Choveu durante toda a noite de sábado, assolada por vento muito violento, atingindo a região da Grande Lisboa e os concelhos limítrofes do vale do Tejo. Dizia o Diário de Notícias, do dia seguinte, que as ruas passaram a riachos, a rios caudalosos, e que as praças se transformaram em lagos. Foi um dilúvio que se abateu sobre Lisboa e a sua zona circundante.20 Simultaneamente, as águas do Tejo subiram 4 metros e meio. As comunicações foram naturalmente afetadas. Na noite de sábado, começou a faltar a eletricidade e os telefones deixaram de funcionar. Houve cerca de 10.000 telefones avariados devido aos estragos nas estações telefónicas de Lisboa e arredores. 21 Segundo a revista Flama, teria havido uma eventual previsão da tragédia que viria a abater-se sobre a região de Lisboa, mas não houve qualquer alerta para a mesma: Hora imprecisa, mas tão fatídica! Aliás nos laboratórios em que se «mede», «pesa» e prevê o tempo, já o volume das chuvas se afigurava como prenúncio de um grande perigo. Os milímetros de chuva deixavam de ser um pormenor estatístico. Juntamente com circunstâncias várias, eram a denúncia viva (mas que ninguém fez conhecer) da desgraça que momentos depois se abateria sobre a vasta região de Lisboa. 22 Informações vindas dos serviços meteorológicos faziam referência a uma depressão que atingia o país numa área de 150 quilómetros sob o vale do Tejo, na direção do mar para o interior, inundando rios, ribeiras e riachos de toda essa vasta região. Os esgotos deixaram de ser capazes de escoar as águas acumuladas. Estas pressionaram os terrenos, derrubando muros e fazendo aluir enormes massas de terra que resultaram em violentos desabamentos de terrenos, que vieram engrossar as águas com uma lama espessa e destruidora. Em movimento, esta fez remover o calcetamento das ruas e das praças, irremediavelmente inundadas e intransitáveis. A paisagem era aterradora, feita de despojos encalhados, flutuantes ou levados por espessos rios de lama que arrastavam pedaços do solo, rochas, fragmentos de muros, telhados e paredes, partes inteiras de barracas e de outras habitações precárias, automóveis submersos, a boiar de rodas no ar ou amontoados uns sobre os outros (também os havia em cima de árvores), frigoríficos, mobiliário, cadáveres de pessoas e de animais. Todos esses detritos arrastados pela corrente iam provocando cada vez mais estragos ao embaterem contra as estruturas que encontravam pela frente e que acabavam por ceder perante aquela força arrasadora de água e de lama.

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Diário de Notícias, 26 de Novembro de 1967. Século Ilustrado 2 de Dezembro de 1967. 22 Flama, 1 de Dezembro 1967. 21

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A lama tudo cobria e envolvia, derrubando pontes, linhas de caminho-de-ferro, placas indicativas dos lugares, estradas, caminhos, portões, casas, automóveis. As comunicações por estrada e por comboio foram interrompidas. Em muitos lugares só se podia circular de barco. A tragédia foi imensa. Muitos apanhados naquela corrente afogaram-se ou tiveram que lutar pela vida. Naquela noite de medo, muitos gritos ecoavam no escuro, de gente que gritava por ajuda ou à procura dos seus. Muitos foram socorridos e muitos só a morte os calou.

2.2. Mortos, feridos e desalojados. Prejuízos materiais NUNCA FORAM TANTOS EM TÃO CURTO PRAZO O maior desastre motivado por causas naturais desde o terramoto de 1755 ? Assim o parece. De qualquer forma, bateu-se um macabro recorde. Segundo declarações feitas à Imprensa pelo prof. Arsénio Nunes, director do Instituto de Medicina Legal, jamais se verificara, ao longo dos 110 anos de existência desta instituição, a entrada de tão elevado número de cadáveres na morgue no espaço de 24 horas. 23

O Ministro do Interior, na noite dia 27, reuniu os jornalistas e apresentou-lhe a versão oficial da tragédia: 250 mortos; alguns feridos (quase todos sem gravidade); muitos desaparecidos; Loures e Vila Franca de Xira, os concelhos mais atingidos. Os dados oficiais começaram por sinalizar 250 vítimas mortais, mas esse número foi sendo atualizado pelos jornais, à medida que novos corpos iam sendo descobertos. Na sua edição de 28 de Novembro, o Diário de Notícias informava que o número de mortos subira para 316, distribuídos pelos seguintes concelhos: Vila Franca de Xira (131); Loures (90); Alenquer (53); Arruda dos Vinhos, Oeiras e Sintra (12 cada um). A 29 Novembro, o mesmo jornal fazia já referência a 427 mortos, pouco antes do governo ter imposto a cessação da contagem pública. No dia 5 de Dezembro, o jornal actualizava o número de mortos para 462, número que acabaria por ser o definitivo, segundo imposição do Governo. Por sua vez, O Século avançava com o número de 458 mortos na sua edição de 4 de Dezembro, assim distribuídos: 218 em Vila Franca de Xira; 125 em Loures; 54 em Alenquer; 33 em Oeiras; 13 em Arruda dos Vinhos; 12 em Sintra; e 3 em Sobral de Monte Agraço. Continuamos, 50 anos decorridos, a não conhecer os números exactos da tragédia. Há uma grande imprecisão relativamente ao número de mortos e desaparecidos. Se a contagem oficial peca por defeito, é possível que outros números avançados (700 mortos) pequem por excesso. Seguramente que o 23

O Século Ilustrado, 2 de Dezembro de 1967.

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número de mortos terá sido bastante superior a 500, dado que, segundo o Diário de Notícias, pessoas afogadas continuavam a aparecer, muitos dias depois, nas regiões inundadas e mantinha-se um número considerável de desaparecidos. As imagens recolhidas pelas reportagens da RTP e por jornais e revistas, naqueles dias fatídicos, revelam-nos todo o rosto da tragédia, para além do Portugal de então: bombeiros e soldados a transportarem mortos e feridos ao colo ou sobre portas de casa transformadas em macas; corpos de crianças; corpos colocados nos bancos das igrejas; homens de bonés rurais de ar perdido; mulheres com xailes pretos e lenços na cabeça em lágrimas. E muito, muito espanto e desespero. Os mortos eram transportados para os quartéis dos bombeiros, para as igrejas e quartéis militares. Eram alinhados, lavados com mangueiras para serem reconhecidos pelos familiares. O jornalista Joaquim Letria24 que assim os viu alinhados no quartel dos Bombeiros Voluntários de Odivelas, recorda que começavam por ser corpos indefinidos, estilo «estátuas de Pompeia», depois da erupção do Vesúvio. Depois de perderem a cor ocre da lama que os cobria, surgiam pessoas que os familiares aflitos identificavam. Os que eram reconhecidos eram levados pelos familiares para que se fizessem os funerais. Os que ficavam por identificar eram levados para a morgue do Hospital de S. José. Os Hospitais de S. José e de Santa Maria foram recebendo, durante toda noite de sábado e no domingo, as vítimas das cheias de Lisboa e dos arredores. Primeiro chegavam mortos e só depois os feridos, em pânico, a maioria em estado de choque ou sofrendo de hipotermia, devido à longa permanência dentro de água. Vinham feridos, com cortes e traumatismos provocados pela sua luta pela vida. Aqueles hospitais registaram 56 mortos, 15 deles não identificados e recolhidos no rio Jamor, em Caxias, Algés e Loures. Recorda Luísa Teixeira: Eu estava de serviço na urgência do Hospital de S. José, fiz vela que era como se chamava ao turno da noite, ainda hoje recordo os corpos cheios de lama, mães e pais agarrados aos filhos na tentativa de os proteger, não há palavras que possam descrever o horror .25 No dia 29, estavam depositados 144 corpos no Instituto de Medicina Legal. Daqueles, 34 estavam por identificar, sendo a maioria constituídas por crianças do sexo feminino e de tenra idade. Muitos corpos foram arrastados pela corrente e foram encontrados a muitos quilómetros de distância, muitos em cima de árvores. Outros terão sido arrastados até ao Tejo e levados pela corrente até ao oceano onde se terão perdido para sempre.

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Joaquim Letria, SIC Notícias, Reportagem Cheias de 1967 – 50 anos. 24 Novembro 2017 Comentário de Luísa Teixeira a propósito das cheias de 1967, Facebook Câmara Municipal de Lisboa, 28 de Novembro de 2014. 25

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Para além de centenas de mortos, ficaram desalojados milhares de pessoas (cerca de 1.100 pessoas) nos vários concelhos, tendo encontrado refúgio provisório nas sedes dos bombeiros, nos aquartelamentos do Exército, nos centros paroquiais, nos hospitais locais, em espaços improvisados cedidos por outras instituições e em casa de familiares e de vizinhos. Nos locais onde o número de mortos foi maior, as autoridades decidiram que haveria exéquias colectivas com dispensa de autópsias e que a organização dos funerais estaria a cargo dos municípios das regiões afectadas. 26 Os prejuízos materiais ascenderam aos 3 milhões de dólares, ao câmbio da época, que corresponderia, na atualidade, a muitos milhões de euros27. Para além das habitações, fábricas, lojas e outros espaços destruídos ou deteriorados, muitos automóveis ficaram danificados, sendo uma «imagem de marca» das cheias de 1967 as numerosas viaturas arrastadas e empoleiradas em habitações, árvores ou noutros automóveis, detritos sobre outros detritos. Os prejuízos para os seus proprietários foram imensos, porque as seguradoras não cobriam os danos. As oficinas estavam cheias e registaram-se situações em que alguns dos seus proprietários inflacionavam os custos, aproveitando o negócio que as cheias lhes ofereciam inesperadamente. Denunciando tal infame oportunismo, o Diário de Notícias apelava a que reduzissem as suas margens de lucro, comprometendo-se a publicar, nas suas páginas, o nome das firmas, oficinas e estações de serviço que praticassem preços moderados. 28 Também os sectores industrial e comercial foram afectados pela invasão das águas e da lama em fábricas, oficinas e estabelecimentos comerciais. Daqui resultaram elevados prejuízos na indústria com a inutilização ou deterioração de instalações e equipamentos e a consequente paralisação do trabalho, a inutilização de matérias-primas e produtos manufacturados, perda de moldes, desenhos e arquivos e atrasos nas encomendas. Também o comércio foi afectado com a inutilização ou deterioração de lojas e armazéns, destruição de mercadorias e paralisação da actividade.29 Na sequência dos danos acima apresentados, a Associação Industrial Portuguesa pediu ao Ministro da Economia que tomasse um conjunto de medidas que ajudassem os industriais afectados a fazer face à situação30: crédito às empresas; tratamento fiscal de excepção para as empresas atingidas no que se 26

Diário de Notícias, 27 de Novembro de 1967 , p.7. LARGO DOS CORREIOS, Portalegre, História das Cheias na região de Lisboa (António de Azevedo Coutinho), 30 de Novembro de 2013. 28 Diário de Notícias, 29 de Novembro de 1967, p.10. 29 Agradecimento da Associação Industrial Portuguesa, pelas providências tomadas pelo Governo para enfrentar os prejuízos causados no sector industrial, pelas inundações que assolaram a região de Lisboa, 1967. 30 Agradecimento da Associação Industrial Portuguesa, pelas providências tomadas pelo Governo para enfrentar os prejuízos causados no sector industrial, pelas inundações que assolaram a região de Lisboa, 1967. 27

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refere à contribuição industrial e aos impostos associados; importação de maquinaria com isenção de direitos de importação; dispensa do pagamento dos encargos sociais com os trabalhadores, etc. Alguns destes pedidos foram atendidas, como se poderá ver mais adiante.

2.3. Zonas mais afetadas

Fonte: https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/0/07/Lisboa-concelhos.png

As grandes cheias de Novembro de 1967 atingiram duramente toda a região da Grande Lisboa, nomeadamente os concelhos de Lisboa, Odivelas, Loures, Vila Franca de Xira, Alenquer e Oeiras, inundando rios, ribeiras e riachos. Naqueles concelhos, ficaram inundados os rios Jamor, Trancão, Costa, Alenquer, Grande da Pipa, Ossos, bem como as ribeiras de Algés, Carenque, Lage, Porto Salvo, Alcântara, Odivelas e Frielas.

3. A Lisboa que se inunda Conta o Século Ilustrado, de 2 de Dezembro, que, por volta das 19h e 30 minutos, um clarão rasgou o céu no centro da cidade acompanhado de um trovão prolongado e ensurdecedor: para as bandas do Governo Civil, em pleno Chiado, uma faísca marcava como que o começo do último e mais dramático acto da catástrofe. A cidade de Lisboa foi também atingida, apesar de a tragédia aí ter sido menos intensa. Mesmo assim, em muitos pontos da cidade, centenas de automóveis e autocarros ficaram bloqueados pelas águas, o trânsito foi interrompido ou totalmente desorganizado e a própria circulação ferroviária foi atingida, com comboios imobilizados.

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Como já se disse, a rede telefónica foi igualmente atingida, registando-se, segundo a Companhia de Telefones, cerca de dez mil avarias nas regiões de Lisboa e arredores. Dado o grande número de chamadas de emergência, pedidos de ajuda de gente aflita, aquela Companhia aconselhou as pessoas a usarem o telefone o menos possível, para evitar o congestionamento das linhas.31 Por sua vez, nos locais mais atingidos, as populações viveram momentos de pânico, bloqueadas em automóveis, autocarros, eléctricos e carruagens de comboios, em espaços públicos ou nas suas próprias casas, esperando ansiosamente serem resgatadas pelos bombeiros em barcos de borracha, depois de horas de grande angústia. A iluminação elétrica da cidade foi interrompida em várias zonas da cidade, entre as 23h e as 2h, tendose ouvido em vários locais o forte estrondo do rebentar dos fusíveis.32 A partir das 21h, muitos elétricos deixaram de circular em vários pontos da cidade, nomeadamente nos percursos entre Campo Grande e o Campo Pequeno, entre Santa Apolónia, Poço do Bispo, Cais do Sodré e a Avenida 24 de Julho. O mesmo aconteceu entre Algés e a Junqueira. Perante a forte chuvada e sem outras alternativas, os passageiros deixavam-se ficar no interior das carruagens, impotentes e assustados com a situação. A circulação ferroviária foi também atingida pela intempérie, nomeadamente nas estações do Rossio e de Santa Apolónia, com passageiros retidos nas carruagens, esperando a melhoria ou o fim da tormenta. No Campo Grande, o Monumento da Guerra Peninsular sobressaía de um imenso lago. Na Avenida da Liberdade, os transportes públicos paralisaram, os automóveis deixaram de poder circular e os barcos de borracha transformaram-se no único meio de locomoção. A Praça de Espanha foi uma das zonas mais afectadas da cidade de Lisboa, por ser o ponto de chegada das águas das chuvas vindas de vários lugares como a Avenida de Berna (que as recebe de outras áreas de Lisboa), a Avenida António Augusto de Aguiar e a actual Avenida Calouste Gulbenkian (que recebe águas de Campo de Ourique, Parque Eduardo VII e Bairro Azul). Rapidamente, aquela praça foi transformada num lago, com a água a alagar os terrenos onde a Fundação estava a construir o Museu e o edifício da Embaixada de Espanha, inundando a capela e o résdo-chão e quase atingindo o nível do primeiro andar. Segundo um documento do Arquivo Gulbenkian33, houve dois momentos dramáticos no local, quando ondas potentes e destruidoras se bateram sobre a área.

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Diário de Notícias de 28 Novembro de 1967, p.10. Diário de Notícias, 26 de Novembro de 1967. 33 Notas sobre as inundações das instalações da Fundação Calouste Gulbenkian confinantes com a Praça de Espanha e a Avenida de Berne, Arquivo Gulbenkian. 32

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A primeira onda de água atingiu a altura do 2º piso de um autocarro de 2 andares. Destruiu o muro de vedação do Parque Calouste Gulbenkian na esquina daquela com a Avenida de Berna, penetrando nos pisos inferiores da Sede e do Museu, em fase de construção. A segunda onda, vinda da Avenida de Berna, fez aumentar o volume das águas que inundou as instalações da Fundação, arrastando um carro que destruiu o vidro de uma montra do edifício nº 56 da Avenida de Berna e inundou a cave. No final da enxurrada, segundo o mesmo documento, a cota mais alta da água marcava 1,80 metros na Praça de Espanha e 2,20 metros na Avenida de Berna. O volume das águas no piso inferior da Sede, do Museu e do edifício nº 56, atingiu um valor próximo de 100.000 centímetros cúbicos. 34 Na Praça de Espanha, encontravam-se a Sede e o Museu da Fundação Calouste Gulbenkian que estavam a ser construídos na época e que, como já vimos, foram inundados e sofreram também avultados prejuízos com as inundações. Aqueles edifícios estavam inseridos no antigo parque de Santa Gertrudes, em Palhavã, que a Fundação tinha comprado com o objectivo de aí instalar um edifício moderno, funcional e monumental, que pudesse guardar a vasta colecção de arte de Calouste Gulbenkian e se tornasse, simultaneamente, um grande centro cultural da cidade de Lisboa. As obras tinham sido iniciadas no ano de 1962 e projectava-se a sua abertura em 1969, por alturas das comemorações do nascimento de Calouste Gulbenkian. A forte chuvada de Novembro de 1967 e a inundação da Avenida de Berna e da Praça de Espanha vieram pôr em causa essas intenções, inundando o Piso 1, que ficou completamente debaixo de água e cheio de lama, o que provocou danos imensos. Aí já estavam instalados, prontos para serem testados, sistemas de ar condicionado, a central telefónica e aparelhagem electrónica. A água atingiu 70 mil metros cúbicos, arrancando os tectos falsos e destruindo as canalizações, sendo necessário proceder ao seu escoamento. Os prejuízos atingiram os 35 mil contos (moeda da época) e implicaram o consequente adiamento das obras. Os danos abrangeram também as caves de um prédio que a Fundação detinha no nº 56 da Avenida de Berna onde, na altura, funcionavam vários serviços, nomeadamente as bibliotecas fixas e itinerantes. Aí, as águas e a lama destruíram todo o equipamento eléctrico e cerca de 250 mil livros que aguardavam para serem distribuídos por Portugal e as colónias. O prejuízo foi de cerca de 8 mil contos (moeda da época). José de Azeredo Perdigão, então Presidente da Fundação, recorda esses dias dramáticos: As inundações, em Lisboa, na bacia hidrográfica cuja zona central compreende o Largo Marquês de Sá da Bandeira, a Avenida de Berna e a Praça de Espanha, tiveram, também, para a Fundação, consequências verdadeiramente desastrosas.

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Ibidem.

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No prédio da Avenida de Berna, nº 56, as águas entraram nas caves, onde se encontravam armazenados mais de duzentos mil volumes e valioso material destinado à instalação de novas bibliotecas fixas e itinerantes, e, no rés-do-chão, onde funcionavam os escritórios de recepção, classificação e expedição dos livros, atingiram metro e meio acima do nível da rua e destruíram por completo tanto as coisas móveis, como as instalações fixas que ficaram submersas.35 Segundo O Século Ilustrado 36, um mês depois da tragédia, o balanço provisório apontava para 200 mil livros inutilizados no edifício nº 56 da Avenida de Berna. Na Praça de Espanha, segundo o Diário de Notícias, circulavam no final da tarde de sábado, um autocarro da Carris de dois andares, uma camioneta de Arboricultura, dois elétricos e vários automóveis. As pessoas encurraladas tinham como únicas alternativas abandonar o local a nado ou esperar que algum barco de borracha as fosse salvar. Os ocupantes da camioneta conseguiram alcançar o autocarro e todos os que aí se encontravam, cerca de 20 pessoas, refugiaram-se no piso superior para fugir às águas. Das janelas dos elétricos e do autocarro viam-se lenços brancos a acenar, em busca de auxílio. Chegada a noite e destruídas as baterias, deixou de haver luz e a escuridão e o pânico instalaram-se. As pessoas gritavam assustadas. Pelas 2h da madrugada, a água atingia cerca de dois metros de altura. 37 Foi Manuel Pereira, um carpinteiro residente na Rua Filipe da Mata, que as salvou no seu barco de borracha, fazendo contínuas viagens para resgatar todas as pessoas até à Avenida António de Aguiar, usando tábuas como remos. Foi depois substituído por outro homem. 38 Luis Filipe Assunção Silva foi um dos militares que estiveram nas operações de salvamento na Praça de Espanha. Recorda, muitos anos depois, esses acontecimentos: Lembro-me perfeitamente! Estava a cumprir o serviço militar no R.A.A.F. em Queluz onde foi pedida ajuda para a Praça de Espanha para retirar dos automóveis e dos autocarros que nesse tempo eram de 1º andar as pessoas que tinham ficado bloqueadas dentro deles. Foi uma longa noite de trabalho mas a missão foi cumprida!.....

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Campo de Ourique, tal como outras áreas de Lisboa, também se transformou num lago por onde só se circulava com barcos de borracha. Naquela localidade, mais precisamente entre a Rua de Campolide e a Estação do Rego, a meio da Rua Filipe da Mata e em zona camarária, existia o Bairro das Minhocas ou Bairro da Bélgica, um aglomerado de quase 200 barracas que se dispunham ao longo de um muro de cerca de 20 metros e que ficaram destruídas na sequência do desmoronamento de parte daquele muro. 35

PERDIGÃO, José de Azeredo, IV Relatório do Presidente, 1 de Janeiro de 1966 - 31 de Dezembro de 1968, Fundação Calouste Gulbenkian, p. 58. 36 O Século Ilustrado, 2 de Dezembro de 1967. 37 Diário de Notícias, 26 Novembro de 1967. 38 Diário de Notícias, 26 Novembro de 1967. 39 Comentário de Luís Filipe Siva a propósito das cheias de 1967, Facebook da Câmara Municipal de Lisboa, 26 de Novembro de 2014.

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Viviam aí cerca de 500 pessoas. Para além dos desalojados, deu-se a morte de uma criança de 7 anos. Foram socorridos, durante toda a madrugada, por Bombeiros Sapadores equipados com barcos pneumáticos e por homens-rãs. Tendo a intempérie ocorrido na noite de sábado, as salas de espetáculos de Lisboa estavam repletas de gente que nelas tinha procurado momentos de entretenimento. A violência das águas também não poupou os espectadores. No Teatro Vasco Santana, na então Feira Popular, no início do Campo Grande, viveram-se horas dramáticas com a torrente da água a invadir a Feira pelo portão e a entrar naquele teatro, invadindo o palco, a plateia, os camarins e outros espaços, momentos depois de a representação ter começado. Conta o Diário de Notícias que com a água até quase aos joelhos, descalços e meios despidos, os componentes da Companhia Teatro Estúdio de Lisboa e o público levantaram uma paliçada, tentando evitar que a água estragasse os apetrechos da peça e outro material daquela casa de espetáculos. Artistas do teatro, operários dos bastidores e público anónimo das plateias conjugaram os seus esforços numa bela demonstração de solidariedade perante o perigo das águas. 40 Recorda o Século Ilustrado que as águas começaram então a acumular-se na Avenida 24 de Julho, no Poço de Bispo, em Santa Apolónia (centenas de pessoas ficaram retidas nas carruagens dos comboios, porque a linha férrea ficou completamente submersa), no percurso entre a Junqueira e Algés, no Campo Grande, na Avenida da República e em Benfica, lugares que aquele órgão de comunicação identifica como os locais de costume.41 Em Benfica, que esteve durante horas isolada pelas águas, houve condutas de água que rebentaram e muros que se abateram sobre automóveis. O vale de Alcântara foi também rapidamente inundado pela corrente das águas que descia dos pontos altos da cidade, bem como da Serra de Monsanto, lançada em jorros para aquele local. 42 Por volta das 22 horas, já se viam eléctricos e automóveis imobilizados na via pública. Cerca da 1h da manhã, a zona ficou às escuras, depois um estrondo enorme dos fusíveis que rebentavam. O Éden Cinema (Rua do Alvito, nº 4, em Alcântara) era frequentado por operários da zona fabril e industrial de Alcântara. Decorria o segundo filme da sessão da noite, quando as águas invadiram o edifício, provocaram um curto-circuito e alagaram a plateia a uma altura de quase dois metros. Os espectadores da plateia foram obrigados a fugir para o 1º Balcão onde ficaram retidos até à 1h da madrugada, altura em que começaram a ser resgatados pelos bombeiros com a ajuda de um barco

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Diário de Notícias, 26 de novembro de 1967, p.8. Século Ilustrado 2 de Dezembro de 1967. 42 Diário de Notícias, 26 de Novembro de 1967, p. 8. 41

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pneumático. No total, foram salvas cerca de 200 pessoas. O cinema fechou 4 anos depois das inundações e as fábricas que lhe levavam o público também se mudaram para fora do centro da cidade. As Avenidas Infante Santo e 24 de Julho ficaram também inundadas, deixando os automóveis completamente submersos. Os trabalhadores que entravam ou saíam pelo porto de Lisboa para irem trabalhar ou no fim do turno de trabalho viram-se obrigados a atravessar a Av. 24 de Julho com água pela cintura, com cenas dramáticas provocadas pelas quedas. Na Avenida de Ceuta, transformada em mar, (…) águas lodosas, correndo em torrente fortíssima e violenta, tudo arrastavam e destruíam na sua marcha incontrolável, invadindo casas e estabelecimentos, bloqueando automóveis, isolando pessoas, muitas das quais estiveram seriamente ameaçadas de serem sorvidas pelos remoinhos que a espaços se notavam na corrente.43 Aí, como noutros locais da cidade, a corrente arrastava toda uma variedade de objectos como garrafas de gás butano, mesas de tabernas e toda uma imensa variedade de objectos. 44

4. Chuva, lama, destruição e morte no concelho de Oeiras O jornal de Algés, Ribamar45, iniciaria com estas cinco palavras, as notícias dos acontecimentos, no concelho de Oeiras: Surpresa – Assombro – Tragédia – Drama – Pavor.

O concelho de Oeiras, marcado por várias linhas de água (Rio Jamor e Ribeiras de Algés, Barcarena, Porto Salvo, Lage e Ossos) que correm para o Rio Tejo, foi duramente atingido pela tremenda queda de água que se abateu sobre a região, não só nas suas zonas urbanas, como Oeiras, Algés, Dafundo, Cruz Quebrada, Caxias e Paço de Arcos, mas também nas zonas fundamentalmente rurais, como a Ribeira da Laje, Porto Salvo, Tercena, Murganhal, Valejas, Outurela e Pedreira Italiana. As ribeiras transbordaram e as águas e a lama invadiram os espaços como parques, jardins, praças, ruas e habitações, provocando vítimas mortais e feridos, e deixando sem alojamento muitas populações dos bairros pobres e degradados que habitavam nas zonas mais baixas, para além de muitas pessoas que viviam em caves. Registaram-se igualmente elevados prejuízos materiais. O concelho ficou também sem electricidade e sem abastecimento de água e viu alterada a circulação dos transportes ferroviários e rodoviários.

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Diário de Notícias, 26 de Novembro de 1967, p.8. Ibidem. 45 Ribamar, 30 de Novembro de 1967, p.1. 44

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Na linha do Estoril, após as chuvas intensas, nada circulava, nem automóveis nas estradas inundadas, nem comboios, devido aos danos provocados na via ferroviária, na sinalização, no comando eléctrico, nas agulhas e noutros materiais. Três dias depois, a circulação ferroviária ainda não estava completamente restabelecida em toda a linha. Em dois troços da mesma, as medidas de segurança impunham uma via única e marcha moderada. O último comboio a circular na linha do Estoril saiu do Cais do Sodré às 22h e 30 minutos, mas não chegou a Cascais, dado a linha estar cortada em vários locais do percurso.

4.1. Oeiras e Ribeira da Laje Na vila de Oeiras, o lugar da Ribeira da Laje e a zona do Jamor foram os mais atingidos, registando o maior número de mortos, feridos e desalojados, para além dos prejuízos materiais com a destruição de muros, postos telegráficos, carros esmagados e arrastados pelas águas, caves e casas inundadas. O rio Jamor transbordou, ultrapassando as suas margens, lançando torrentes de água, logo transformadas em lama, que submergiram automóveis, inundaram casas e puseram as populações em perigo. O rio arrastou ainda um número indeterminado de barracas, desalojando mais de uma centena de pessoas. Por todo o lado, boiavam objetos da mais diversa índole, como mobiliário, chaparia, alguidares, garrafas de gás, etc. 46 No concelho, cerca de 258 comerciantes sofreram danos nos seus estabelecimentos, equipamentos e mercadoria. Águas e lama destruíram muitas habitações, a maioria construída ilegalmente sobre a antiga ribeira, por populações vindas das zonas rurais e que desconheciam por completo as condições geográficas e hidrográficas do lugar. Aí várias pessoas encontraram a morte. Conta O Século na sua edição de 29 de Novembro: Maior tragédia deu-se na Ribeira da Laje, próximo de Oeiras, onde as águas convergindo dos montes abriram profunda clareira dentro da povoação, fazendo ruir cerca de 10 habitações, uma das quais foi arrastada pelas águas, tendo morrido afogados os seus locatários [pai, mãe e dois filhos menores]. (…) Pode afirmar-se que os habitantes da Ribeira da Laje viveram horas de verdadeiro terror. Ninguém se lembra, nesta região, de um temporal com tais proporções. Nesta emergência, verificou-se a tremenda necessidade de estradas e caminhos de acesso à Ribeira da Laje e a outras povoações, a construção de

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Diário de Notícias, 26 de Novembro de 1967, p.8.

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quartéis de bombeiros mais amplos e aumento do seu material e efectivos. Ribeira da Laje não tem iluminação, o que contribuiu para o pavor em que os seus habitantes viveram.47 Um factor que prejudicou a luta pela sobrevivência das gentes e acentuou o pânico que ali se viveu na noite de 25 para 26 de Novembro, foi a escuridão do local, por ainda não estar electrificada.48 A morte chegava, de repente, com uma chuva torrencial que inundava os espaços, uma lama que a todos imobilizava e fortes de rajadas de vento que agravavam a fúria dos elementos e enfraqueciam os gritos de pânico e os pedidos de auxílio. Sempre em escuridão total. Em Oeiras, na estação subterrânea da linha férrea, a água subiu a 30 centímetros de altura, formando um lençol de água. Conta o Diário de Lisboa que houve lava-pés, por causa da chuva e que muitas senhoras aflitas foram salvas por populares que as transportaram ao colo para fora do local.49 Os bombeiros de Oeiras acorreram durante várias horas a inundações que se verificaram em muitos pontos. (…). Na Rua Cândido dos Reis foi necessário salvar, de várias barracas aí existentes, pessoas que estavam em perigo, em número que ascendia a algumas dezenas, e que foram recolhidas na camarata da corporação dos voluntários.50 A parte baixa da vila de Oeiras foi também duramente atingida com a destruição do jardim e parque municipais, provocando também importantes danos na Estação Agronómica e nas instalações da Fundação Calouste Gulbenkian aí instaladas. O Palácio do Marquês de Pombal, classificado como monumento nacional, pertencia, à época, à Fundação Calouste Gulbenkian, bem como os seus jardins e terrenos adjacentes. Aquela fundação tinha adquirido aquele património com o objectivo de reunir e guardar num único espaço todas as obras de arte das colecções de Calouste Gulbenkian que, na altura da sua morte, se encontravam em Paris, Londres e Washington. Estando ainda em fase de construção as instalações definitivas que haveriam de funcionar, em Lisboa, na Avenida de Berna, junto à Praça de Espanha, o Palácio, pelo espaço e beleza arquitectónica que oferecia, era a solução ideal. Para o transporte das peças para o Palácio foram utilizados transportes aéreos, rodoviários, ferroviários e marítimos, conforme as necessidades de cada artefacto e sempre acompanhado por um engenheiro da Fundação. Após as necessárias obras de beneficiação do edifício (novas instalação eléctrica, aparelhagem de climatização e alarme para incêndios), foi aí instalado o Museu Gulbenkian que recebeu as colecções de arte do famoso mecenas arménio, onde se incluíam pinturas, iluminuras, porcelanas orientais, gravuras, tecidos, têxteis e escultura.

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O Século, 29 de Novembro de 1967. Notícias da Amadora, 2 de Dezembro, p.6. 49 Diário de Lisboa, cit in Cheias no Concelho de Oeiras, Recortes de jornais 1962 /2008, Vol. II, 2009. 50 O Século, 26 de Novembro de 1967, p.16. 48

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Em Julho de 1967, a Fundação instalara e inaugurara também, em Oeiras, o Instituto Gulbenkian de Ciência que englobava o Centro de Biologia que integrava quatro laboratórios (Microbiologia, Biologia Celular, Fisiologia e Farmacologia), um Biotério, salas de conferências e uma biblioteca. Na noite e madrugada dos dias 25 e 26 de Novembro de 1967, a água da Ribeira da Laje saiu do seu leito, inundou os jardins e parte do Palácio do Marquês de Pombal, derrubando muros pombalinos, arrancando os vasos de pedra e retorcendo ferros e gradeamentos com séculos de existência (Ver Fotos 9 a 13). Os estragos foram tão acentuados que o Presidente da Fundação Calouste Gulbenkian, lhe dedicou um capítulo no Relatório sobre o período de 1966 a 1968. Dizia, então, Azeredo Perdigão51: Em Oeiras, as águas da ribeira das Lajes, que atravessa a Quinta do Marquês de Pombal no sentido norte-sul e desagua na praia de Santo Amaro, devido ao assoreamento do seu leito a montante e jusante dos limites da propriedade que hoje pertence à Fundação, ao estrangulamento que a corrente sofreu por virtude da construção da estrada marginal no troço entre a referida praia e o Forte de Catalazete, à grande precipitação das chuvas em toda a respectiva bacia hidrográfica, e por último, à subida da maré e consequente retenção das águas da ribeira, impedindo a sua franca subida para o mar, em cerca de meia hora, depois de terem derrubado o robusto e alto muro que limitava a propriedade pelo lado da antiga estrada entre a vila de Oeiras e Carcavelos, invadiram os jardins, destruíram muros interiores e, quando o seu nível havia subido mais de seis metros em relação ao normal na época, atingiram a parede de duas casas-fortes do palácio, onde se encontravam depositadas várias obras de arte, e, depois de terem impelido para o interior os aparelhos climatizadores instalados junto das abóbodas dessas dependências, a cerca de três metros do solo, entraram nelas em cascata, acabando por as inundar por completo e por cobrir tudo que nelas se encontrava depositado. Quando, poucas horas depois, na manhã do dia 26, já as águas tinham começado a retirar, foi possível abrir, com todas as precauções, a porta blindada que dava acesso às referidas casas-fortes e nelas entrar com água e lama por cima dos joelhos, o espectáculo que se ofereceu a todos que a ele assistiram, entre os quais nos encontrávamos, foi indescritivelmente desolador. A emoção, porém, não evitou que, acto contínuo, fossem tomadas e postas em prática as medidas de urgência que as circunstâncias recomendavam. A inundação das casas-fortes do Palácio do Marquês de Pombal produziu prejuízos incalculáveis, (cerca de 10 mil contos, na moeda da época). As águas e a lama também cobriram totalmente os jardins do Palácio e muitas estátuas de mármore e vasos que os decoravam, deixando atrás de si um rasto desolador de destruição (ver foto da capa).

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PERDIGÃO, José de Azeredo, IV Relatório do Presidente, 1 de Janeiro de 1966 - 31 de Dezembro de 1968, Capítulo 7º, pp. pp. 55 e 56, Fundação Calouste Gulbenkian.

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Também as antigas adegas e o antigo celeiro do conjunto pombalino (transformadas em armazéns) foram inundados pelas águas e pela lama, destruindo o património da Fundação que aí se encontrava guardado. O Centro de Biologia foi igualmente atingido pelas águas que inundaram o rés-do-chão, a zona das caves e subcaves, danificando o Biotério, o Laboratório de Genética e o de Fisiologia Vegetais. Centenas de animais que se encontravam no Biotério morreram e muitos equipamentos técnicos especializados ficaram destruídos ou avariados.52 Em Santo Amaro de Oeiras, o Parque de Campismo que ficava junto do jardim foi inundado, bem como um estábulo, onde a água chegou a atingir 2 metros de altura, provocando a morte de dez cavalos que pertenciam, entre outros, aos cavaleiros tauromáquicos José Mestre Baptista e Frederico Cunha.53 Porto Salvo também foi duramente atingido pelo temporal. As águas inundaram os campos, muitas residências, instalações agrícolas e estabelecimentos comerciais.54

4.2. Barcarena e Fábrica da Pólvora Em Barcarena, a ribeira transbordou, atingindo duramente a fábrica, o bairro e a cooperativa dos seus trabalhadores. Segundo O Século Ilustrado, 55 os portões de ferro da Fábrica da Pólvora foram torcidos como arames, duas fontes foram destruídas, deu-se o aluimento de muralhas de protecção e registou-se a queda de dois eucaliptos que provocaram mais danos ao caírem sobre a oficina de fabrico de rastilhos. Águas e lama arrastaram tudo à sua passagem, fazendo ruir muros de suporte que, por sua vez, atingiam casas, inundando-as também, como aconteceu no caso do Bairro do Pessoal da Fábrica da Pólvora. Muitos automóveis foram arrastados para longe, sendo encontrados em cima de vedações. Houve também mortos a lamentar. Vasco Pereira, na época bombeiro de Barcarena, recorda o que aconteceu em Barcarena, junto à Fábrica da Pólvora: Umas das causas desta cheia grande foram os carros. Ali junto à Ribeira dos Ossos havia um sucateiro. Tinha ali muitos carros velhos. A cheia era muito grande e arrancou eucaliptos, ali da Fábrica da Pólvora. E um eucalipto grande destruiu as muralhas ali da quinta do senhor Brea [?] porque o eucalipto era muito forte e partiu as guardas da ponte para Leceia. O eucalipto não passava, ficou atravessado e depois com

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Apontamento Serviço de Projectos e Obras, Arquivo Gulbenkian, ref. Nº 4067/PO/67. O Século, 26 de Novembro de 1967, p.16. 54 O Século, 29 de Novembro de 1967, p.10. 55 O Século Ilustrado, 2 de Dezembro de 1967. 53

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o lixo que vinha, aqueles automóveis e aquele lixo todo, acumulou e encheu.

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No Bairro do Pessoal da Fábrica da Pólvora, ao pânico das águas e das lamas a invadirem as habitações juntou-se a escuridão da noite com a quebra da corrente eléctrica a partir das 23 h e durante várias horas. Muitos moradores foram recolhidos em casas de vizinhos ou agrupados em dependências daquele edifício. Outros, aventuraram-se, na noite escura, a salvar quem estava em perigo. Laura Santos Augusto57, na altura com 8 anos, filha de um operário da Fábrica e que vivia naquele Bairro, recorda o que, então, aconteceu: Nessa noite, tínhamos ido para casa de um vizinho, porque ninguém tinha televisão, poucos tinham televisão e nós tínhamos ido ver um programa, era uma peça de teatro ou uma coisa assim. E nem percebíamos o que estava a acontecer. Quando alguém se apercebeu que a água estava a chegar às casas, começaram a agitar-se para ajudar as pessoas. Depois, quando percebemos que algumas casas estavam a ser inundadas, os animais estavam a ser levados pela cheia, com a corrente, por uma questão de protecção, fomos levados para uma dependência da fábrica, onde estávamos juntos e a salvo. Era uma espécie de armazém. Já nem fomos a casa, fomos directamente para lá. Fomos os mais sortudos. Eu sei que fiquei mais de uma semana numa outra casa que estava a salvo da cheia, não tão próxima da ribeira de Barcarena, que era de um engenheiro da fábrica. Era uma casa lindíssima e fiquei lá com os filhos dele. Para mim, como criança, foi uma festa. Era uma brincadeira. Nunca tive a sensação de perigo, mas os meus pais contavam histórias dramáticas. Quando o meu pai queria ir ajudar, as pessoas diziam «Vai-te embora! Não vale a pena salvar coisas Podes ir com água, também!» É porque continuava o perigo! De um momento para o outro, aquilo podia ser tudo levado e as pessoas irem também n meio das águas. A minha casa ficou inundada, a água chegou quase ao colchão, as caves ficaram inundadas e os animais (cães, coelhos e galinhas) que estavam presos morreram. Depois, tivemos um subsídio da Cruz Vermelha. A Cruz Vermelha foi quem lá foi prestar auxílio. Eu recordo que a minha mobília de quarto foi comprada com o dinheiro do subsídio. Foram oito contos, ou uma coisa assim. A Igreja de Barcarena também não foi poupada. A muralha do adro desabou e causou elevados prejuízos na Cooperativa do Pessoal da Fábrica da Pólvora.

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Vasco Pereira, subchefe da Corporação dos Bombeiros Voluntários de Barcarena, na época das cheias. Testemunho registado por Helena Abreu. 57 Testemunho de Laura Augusto registado por Ana Paula Torres.

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Também no Lugar do Bico, todas as residências sofreram danos, ficando inabitáveis e perdendo, os seus moradores, quase total dos seus pertences. Todos os caminhos e ruas de Tercena ficaram bloqueados, havendo cerca de um metro de altura de lama e pedras em frente ao quartel dos Bombeiros naquela localidade. Muitas caves ficaram inundadas e o perigo ameaçou as populações.58

4.3. Linda-a-Velha e Carnaxide Linda-a-Velha Na região de Linda-a-Velha, naquela época, existiam três zonas militares 59 : o Quartel, actual Quartel 25 de Abril, a Rádio Naval (junto à actual Escola Secundária José Augusto Lucas) e o Forte do Carrascal/Paiol de Munições, actual Autoridade da Protecção Civil Nacional que servia de armazém de material militar explosivo pertencente ao Exército e que se destinava a ser enviado para África, a fim de ser usado na Guerra Colonial. Na madrugada de domingo, dia 26, por volta das 7h30, em pleno temporal, deu-se uma violenta explosão no Paiol das Munições que foi noticiada, com grande destaque, pelo Diário de Notícias, O Século e o Século Ilustrado. Segundo O Século60, o primeiro alarme tinha sido dado às 4 horas, quando se ouviram rebentar algumas munições. Às 6 horas e 30 minutos, acendeu-se um fogo no Forte. As chamas começaram no compartimento onde estavam armazenadas bombas de fumo. Dado o alarme, para o local dirigiram-se, então, 5 viaturas e 50 bombeiros das corporações de Carnaxide, Algés, Dafundo, Linda-a-Pastora e Lisboa. De início, a explosão foi atribuída a um curto-circuito, mas a verdadeira causa da mesma deveu-se à entrada da água no forte que atingiu certas quantidades de fósforo aí existente que se inflamou por reação química, pegando fogo a caixas de bombas de fumo e a detonadores. Dizia O Século, de 27 de Novembro61: Quanto às causas do fogo no paiol, soube-se, em contradição com a primeira hipótese de curto-circuito que, no local, não existe corrente eléctrica, já para evitar acidentes. Assim, apurou-se que, no paiol, houve uma inundação que atingiu cerca de um metro e meio de altura, tendo a água alcançado as granadas incendiárias de fósforo, o que provocou uma perigosa combinação química. 58

Diário de Notícias, 27 de Novembro de 1967. Ibidem. 60 O Século, 27 de Novembro de 1967. 61 O Século, 27 de Novembro de 1967. 59

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Não se registaram vítimas mortais, mas houve cerca de 12 (O Século62) a 16 (O Século Ilustrado63) feridos. Entre eles estavam bombeiros, um soldado motorista do Chefe do Estado-Maior, operários que trabalhavam na fábrica da Tofa e mulheres atingidas pelos estilhaços dos vidros da explosão em Carnaxide e Linda-a-Velha, tendo todos sido tratados no Hospital de S. José. Apenas uma parte do paiol explodiu. A estrutura do edifício principal permaneceu intacta, mas tudo o resto ficou destruído, com prejuízos a rondar os 30 mil contos, numa primeira avaliação. Segundo a imprensa da época, se o mesmo tivesse explodido na sua totalidade, os estragos teriam sido bem mais dramáticos, com muitas vítimas mortais, já que havia no local cerca de 6 toneladas de TNT.64 O general Moura dos Santos, então Governador Militar de Lisboa, encontrava-se no local, em visita ao Forte. Este foi, de imediato, evacuado, temendo-se que uma nova explosão, essa muito mais gravosa, pudesse vir a atingir os condicionamentos de trotil (explosivos destrutivos) que aí se depositavam.65 Como medida de segurança, o trânsito foi cortado na autoestrada por vários dias e foi montado um perímetro de segurança em torno do forte. Quase em simultâneo ao clarão rubro vivo da explosão, deu-se um brutal estrondo que foi ouvido a muitos quilómetros de distância, em Linda-a-Velha, Carnaxide, Algés, noutras localidades do concelho de Oeiras e até mesmo na margem sul do Tejo. Esse grande estrondo provocou um fortíssimo sopro, uma tremenda deslocação de ar, que partiu vidros das janelas das áreas circundantes e provocou uma «chuva» de pedras, terra e cascalho que caíram nas redondezas. A explosão semeou o pânico nas populações que, temendo uma segunda explosão, fugiu dos lugares próximos para Algés e até para Paço de Arcos, percorrendo a pé a distância até àquela localidade. A explosão produziu também avultados prejuízos nas fábricas vizinhas (Tofa, Fanta e Baterias Arga) e nas habitações pobres do Alto dos Barronhos (mais de 500 barracas onde viviam cerca de 3.000 pessoas) e em Romeiras (terrenos marginais da autoestrada, perto das fábricas já referidas). As populações que viviam naqueles locais tiveram que abandonar as suas habitações, fugindo da explosão e dos estilhaços do material da fábrica e de detritos projectados. Várias firmas de outras localidades foram também atingidas, nomeadamente 10 em Linda-a-Velha, 4 em Carnaxide e 1 em Santa Maria de Belém.66

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Ibidem. O Século Ilustrado, 2 de Dezembro de 1967. 64 Ibidem. 65 Diário de Notícias, Suplemento, 26 de Novembro de 1967. 66 Correspondência expelida pelo Presidente da Câmara Municipal de Oeiras ao Governador Militar de Lisboa, 5 de Janeiro de 1968. 63

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Viriato Pereira,67 que vivia, então, em Linda-a-Velha , recorda ter ouvido, na madrugada de sábado, dia 26, um grande estrondo, que depois veio a saber ter sido o do paiol, que lhe partiu os vidros da sua casa. Conta que, na noite após a explosão, a G.N.R. andou por Linda-a-Velha, a patrulhar as ruas a cavalo, não deixando entrar ninguém na localidade sem se identificar. Aqueles militares acompanhavam depois as pessoas a casa, dando indicações para que não divulgassem o que tinham visto. Apesar de só uma parte do Forte ter explodido, a Imprensa noticiou-o com um alarmismo que exagerou o desastre e contribuiu para o pânico que então se espalhou pelas povoações próximas. Vejamos, como O Século o apresentava nas primeiras páginas das suas 3ª, 4ª e 5ª tiragens do dia 26 de Novembro: A cidade foi desperta por um terrível ruído. O Forte fora pelos ares. A Igreja de Carnaxide abateu. Os vidros, numa vasta zona, voaram em estilhos. Receia-se que haja mortos e feridos. (3ª e 4ª tiragens).

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Foi pelos ares às 7 e 30 da manhã o Forte do Carrascal, em Linda-a-Velha (…) De repente, cerca das 7 e 30, um estrondo pavoroso despertou Lisboa, sacudiu como uma fúria uma vasta zona da cidade e dos arredores, desde a faixa ribeirinha de Pedrouços em diante e para o interior, até onde? Por toda a parte, vidraças voaram em estilhas, inúmeras barracas de pobres desabaram como castelos de cartas, a Igreja de Carnaxide veio a baixo. Concretamente, o que sucedeu? Fora pelos ares o paiol do Depósito Geral de Material de Transmissões, no Forte do Carrascal em Linda-a-Velha. (…) O pânico foi indiscritível, num breve lapso de tempo, segundos talvez, todos saíram para a rua, tal como se encontravam, em trajes menores, com um pobre agasalho apanhado à toa e atirado por cima dos ombros, que o tempo não dava para mais. Na auto-estrada, havia gente que comentava o sucedido e foi aí que a nossa reportagem parou. Ouvimos o Jacinto Alves Félix, de 15 anos. Segundo as suas declarações, estava agarrado aos arames que vedam o acesso ao forte, a ver o fumo do incêndio. E acrescenta: «De repente, caiu aos meus pés uma coisa que fez um barulho dos demónios! Não sei o que era, mas desatei a fugir, enquanto varias pessoas, que estavam próximas, se atiraram para o chão. Eu fugi … as pedras, juntamente com pedaços de ferro, quase me caíam em cima.» (…) Conversámos com infelizes que residem em pobres barracas de madeira, em Alto de Barronhos, a dois passos de Carrascal, onde se deu a explosão. (…) As pessoas com quem conversámos estavam, esta manhã, na auto-estrada, a distância do local do acontecimento. A Polícia Militar como medida de precaução (…) não as deixava regressar ao Alto dos Barronhos. Sabiam que as suas modestas casas tinham sido destruídas. (…) Mas faltavam-lhes saber do

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Viriato Pereira, testemunho recolhido por Maria Sampedro, Fevereiro de 2016. O Século, 26 de Novembro de 1967, 3ª e 4ª tiragens.

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paradeiro dos parentes. Não sabiam se estavam vivos (…) se estariam mortos ou se estavam entre os feridos da explosão. (5ª tiragem).69 Na sua edição de 27, no dia seguinte, O Século corrigia algumas das suas notícias do dia anterior70: Ao contrário do que a princípio se supôs, não houve perdas de vidas na brutal explosão do Forte do Carrascal ocorrida, ontem, cerca das 7h e 20m. No local, esteve a 5ª Companhia da GNR, dirigida pelo Comandante Armindo Pereira cuja intervenção seria, mais tarde, louvada pela Câmara de Oeiras pela sua acção intransigente e disciplinadora mas altamente compreensiva e dedicada para com a população.71 Após a explosão, na manhã de segunda-feira, dia 27, vários boatos começaram a circular entre as populações de Linda-a-Velha, Barcarena, Algés, Carnaxide, Caxias, Dafundo, Cruz Quebrada, Amadora e Queluz. Temia-se uma nova explosão no Paiol, outra na Fábrica da Pólvora de Barcarena e esperava-se a aproximação de um marmoto na costa portuguesa. Para a difusão daquele boato tinham contribuído o estado emocional das populações dos últimos dias, abalado pelo número de mortos e de desalojados e pelos danos materiais. Para tal, também teriam, naturalmente, contribuído as notícias da imprensa, como no caso do jornal O Século, 72que dedicara várias páginas ao assunto, com fotografias e notícias falsas e incompletas que, como já vimos, tiveram que ser desmentidas. Os boatos eram acompanhados por recomendações para as populações: as de Algés, Paço de Arcos e Oeiras deviam fugir para as praias; as de Caxias, Amadora e de outros locais, para as encostas. O pânico instalou-se: o telefone foi dramaticamente usado entre famílias para avisar do perigo e para os jornais a pedir a confirmação das notícias; escolas fecharam; o trabalho foi interrompido em fábricas e outros locais; patrões de várias empresas autorizaram os seus empregados a ir para casa; muitas pessoas abandonaram as suas habitações com bens de maior valor e de estimação; pessoas corriam pelas ruas, meio enlouquecidas, à procura de familiares. Devido a esse alarme, assistiu-se, então, a um verdadeiro êxodo populacional, vendo-se nas estradas milhares de carros, bicicletas, motocicletas, autocarros e até carroças pejadas de pessoas». Houve um engarrafamento de vários quilómetros.73 Só a informação, transmitida pela rádio e por megafones instalados em automóveis da P.S.P. e também numa viatura do Diário de Notícias, de que as notícias alarmistas não passavam de boatos e que a

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O Século, 26 de Novembro de 1967, 5ª Tiragem. O Século, 27 de Novembro de 1967. 71 Reunião da Câmara Municipal de Oeiras de 23 de Janeiro de 1968, Câmara Municipal de Oeiras, pp. 193 verso 72 O Século, 26 e 27 de Novembro de 1967. 73 O Século Ilustrado, 2 de Dezembro de 1967. 70

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situação estava segura é que deram algum sossego às populações, fazendo-as regressar a suas casas. Houve também um desmentido do Governo Militar de Lisboa que emitiu a seguinte nota oficiosa: Não há motivo para alarme. Não há nada a recear. As nossas brigadas preventivas estão no paiol de Carrascal apenas como medida de prevenção. Ontem, ainda saía fumo, com certa intensidade, do paiol; hoje, esse fumo é já inexistente. O que se diz sobre eventual explosão no Carrascal é boato inconsistente.74 A propósito, o Comando-Geral da Polícia de Segurança acrescentava uma informação nova e tendenciosa: Admite-se, nalguns sectores, que a difusão deste boato tenha sido fomentada pelo adversário [leia-se, o Partido Comunista Português]. No entanto não se realizou qualquer prisão, contrariamente ao que algumas agências noticiaram.75 Este Boletim do Comando-Geral da Polícia de Segurança era confidencial e assumia-se como um documento de difusão de informações e um órgão de informação com vista à acção psicológica. Dizia aquele órgão interno da Polícia, numa informação assinada por Adelino Barbieri Cardoso, Comandante Geral da Legião Portuguesa: 76 Em 25, por um golpe de diabólica sorte, o Rádio Portugal Livre (R.P.L). fez uma emissão praticamente destinada a levantar a ira popular chamando a atenção para as várias instalações militares existentes no país. Não é descabido atribuir a esta emissão o desenvolvimento do pânico no dia 27 quando desconhecidos falavam em várias zonas de Lisboa e arredores da iminente explosão de uma instalação de material de guerra adaptado à zona em que o terror se propagava. O facto de a explosão do Forte ter sido noticiada pela R. P. L., rádio clandestina do Partido Comunista Português, que operava partir de Bucareste, é revelador da importância que o mesmo teve na época, bem como do aproveitamento político que a Comando-Geral da Polícia de Segurança fez dessa mesma informação. Sendo o grande adversário do regime (usando a nomenclatura do Comando-Geral da Polícia de Segurança), o Partido Comunista Português distribuiu, clandestinamente, comunicados ao povo da região de Lisboa onde, para além de responsabilizar o regime pelos efeitos dramáticos das inundações e exigir subsídios, indemnizações e medidas profundas que dessem melhores condições de habitabilidade às populações, fazia referência à explosão do Forte. Aí se dizia: A explosão do Carrascal mostra também os grandes perigos que pendem sobre Lisboa, em consequência do armazenamento de [tamanha] quantidade de materiais explosivos e de guerra na periferia da cidade.77

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Diário de Notícias, 26 de Novembro de 1967, p.8. Boletim de Informação do Comando-Geral da Polícia de Segurança Pública (Confidencial), Ministério do Interior 76 Ibidem. 75

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É preciso exigir que não se repitam explosões como a do Carrascal, que os depósitos de armamento e as bases militares se afastem dos centros populacionais.78

4.4. Algés Até ao fim dos anos 20 do século passado, Algés destacava-se, no concelho de Oeiras, como um atractivo local de veraneio para a população de Lisboa que ali ia passear nas tardes de domingo, frequentando pavilhões luxuosos com cafés e locais de convívio. A praia de Algés era, então, considerada uma das mais elegantes, atraindo primeiro as famílias da aristocracia e da burguesia que, rapidamente, foram procurando outras praias com a chegada de famílias mais humildes. A construção da Avenida Marginal, na década de 1940, abriu caminho ao desenvolvimento do local com o afluxo de populações que procuravam habitação na periferia de Lisboa. Cresceu a urbanização e Algés transformou-se num centro populacional activo, marcado por um comércio dinâmico e pelo associativismo desportivo e cultural. O episódio das inundações de Novembro de 1967 está ainda marcado nas memórias das suas gentes que se disponibilizaram para as recordar na Biblioteca Municipal de Algés instalada no Palácio Ribamar, integradas no projecto «Histórias de Vida». Ali foram deixar o seu testemunho que iremos divulgar neste trabalho. Naqueles dias trágicos de Novembro de 1967, Algés sofreu momentos de muita angústia, provocados não só pelo grande temporal que se abateu sobre o local, mas também pelos efeitos da explosão do Forte do Carrascal. A acumulação das chuvas atingiu sobretudo a parte baixa desta localidade que, na noite de sábado para domingo, já estava completamente submersa, invadida pelas águas que caíam ininterruptamente desde sexta-feira e que se iam tornando cada vez mais enlameadas. Na madrugada de domingo, a paisagem era já desoladora com grande parte dos pavimentos destruídos e com os automóveis com água à altura dos vidros, impossibilitados de circular. Das zonas mais altas, continuavam a chegar rios de água e de lama, que arrastavam detritos de todo o tipo, restos de barracas, mobiliário, eletrodomésticos, botijas de gás, alguidares de plástico, cadáveres de animais domésticos. Junto à Praça de Touros, que se localizava no local, hoje ocupado por um parque de automóveis, a situação era particularmente catastrófica, com 15 automóveis a boiarem nas águas e que, arrastados 77

O PCP denuncia as responsabilidades do governo na catástrofe que envolveu a região de Lisboa e o país, Novembro de 1968. 78 A todo o povo da região de Lisboa! Avante na solidariedade às vítimas da tragédia de 25 de Novembro, 20 Dezembro de 1967 (DST- Documentos Souto Teixeira). Arquivo & Biblioteca da Fundação Mário Soares.

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pela corrente, ora se atiravam uns contra os outros, ora esbarravam nas paredes dos prédios, provocando um som aterrador que assustava as gentes. 79 Grande parte dos estabelecimentos comerciais da parte baixa daquela localidade foi invadida pelas águas e pela lama e, nos dias que se seguiram, os seus proprietários tiveram que deixar a secar, na via pública, o recheio das lojas. Só, dias depois, puderam voltar a iniciar a sua actividade comercial. Foi o que aconteceu na Rua Damião de Góis, onde a água subiu a 1,70 metros de altura, lançando para a rua grande parte do recheio das lojas, com grandes prejuízos para os seus proprietários. Para além da baixa de Algés, também os bairros pobres de Romeiras e de Santas Martas foram duramente atingidos. Naqueles locais viviam centenas de famílias em habitações precárias, que rapidamente foram destruídas pelo forte caudal de água e de lama, obrigando os seus moradores a fugirem para as zonas mais altas, para não se afogarem. Algumas das barracas de madeira onde viviam, não resistindo à pressão da corrente, foram arrancadas do solo e ficaram a boiar naquele mar de lama. Outras foram levadas pela própria corrente. Muitas famílias ficaram desalojadas. Relata O Século Ilustrado80 que duas barracas de madeira, uma das quais com cerca de seis metros de comprimento, foram arrastadas por uma distância de cerca de 40 metros. O jornal Ribamar81 conta, na única edição que dedicou às cheias: A água rebentou as paredes e invadiu assustadoramente as casas. Destroçou móveis, arrastou roupas e trens de cozinha, desfez dinheiro, fez uma amálgama dos géneros de mercearia, inutilizou centenas de aparelhos eléctricos de toda a espécie; os automóveis foram sacudidos como brinquedos entre muros ou passavam de ruas para quintais, levados no turbilhão das águas. De manhã, às dezenas, os automóveis eram montes de lama com as chapas torcidas. As ruas apresentavam um aspecto desolador. Para além das águas enlameadas, Algés viveu também o pânico provocado pela explosão do Forte do Carrascal ocorrido na madrugada de domingo, por volta das 7h30, em pleno temporal, como se disse. O fortíssimo sopro da explosão partiu vidros das janelas também de Algés e semeou o pânico na população que, no dia seguinte, temendo uma segunda explosão, fugiu dos lugares para a praia, na esperança que um espaço vazio as pudesse salvar. Helena Abreu 82, moradora em Algés, recorda esses momentos de incerteza e de angústia: Havia, no ar, uma sensação de insegurança e medo. (…) Antes de sairmos de casa começou a correr o boato de que iria haver outra explosão, muito maior do que a anterior, que teria efeitos devastadores. A palavra de ordem que as pessoas transmitiam umas às outras era “Para a praia, todos para a praia de Algés”. E via79

Diário de Notícias e O Século, 26 Novembro de 1967. O Século Ilustrado de 2 de Dezembro de 1967. 81 Ribamar, 30 de Novembro de 1967, p. 1. 82 Helena Abreu, depoimento na Biblioteca Municipal de Algés, 15 de Setembro de 2016. 80

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se a população toda em pânico a correr para a passagem aérea para a praia, ou a atravessar a linha do comboio, com crianças, velhos… numa vozearia enorme. Um pânico completamente irracional tinha-se espalhado. Também o jornal O Século 83narra o que aconteceu: Com esta medonha perspectiva, houve milhares de pessoas que abandonaram os seus lares, alguns vestindo apenas o que traziam no corpo. Como podiam, corriam para a praia de Algés, outros procuravam largos e praças situados próximo, e havia ainda outros que fugiam para longe. Foi o pânico. O boato foi maldosamente lançado no mercado de Algés, assim se afirma. E por mais que os bombeiros voluntários da localidade procurassem desmentir, não havia maneira de convencer a população. (…) Um carro da P.S.P. equipado com altifalantes, circulou nas ruas de Algés anunciando que o Comando da corporação avisava que eram destituídos de fundamento os boatos postos a circular (…). Só no fim da tarde de ontem [dia 27] é que tudo se acalmou. São vários os testemunhos de quem viveu e presenciou a tragédia. Alguns deixaram o seu registo oral na Biblioteca Municipal de Algés ao grupo de trabalho que, em 2017, se constituiu para recolher as histórias de vida de munícipes. A estes, se juntaram outros a partir de entrevistas feitas a outros munícipes. Os demais foram encontrados nas redes sociais. Estes testemunhos contam o que viveram, o que presenciaram e, naturalmente, exprimem emoções. Falam de água, de lama, das vítimas, dos desalojados, do terrível ruído da água a correr, do cheiro fétido de esgoto. Falam da morte, mas também da vida e da solidariedade de quem correu a prestar ajuda. Transcrevemos os mais significativos para que melhor possamos compreender a tragédia humana que se abateu sobre as zonas mais atingidas. Helena Abreu: Eu ainda morava com os meus pais na Rua Damião de Góis, em Algés, quando aconteceram as grandes cheias, no dia 25 de Novembro de 1967. (…) Lembro-me de ter chovido muito nessa tarde e de continuarem a cair grossas bátegas, sem cessar. Não sei quando nos demos conta de que a situação estava a tornar-se perigosa. Creio que foi tudo muito rápido. De repente, a Rua Damião de Góis era um rio e os carros iam arrastados na corrente para acabarem empilhados junto ao jardim ou à marginal. Não sei se havia iluminação pública a funcionar, creio que sim, caso contrário não veríamos os carros e a enxurrada. Muito depressa a água começou a subir nas caves e as pessoas tiveram de abandonar tudo e subir para os andares superiores. O Sr. Gama, da cervejaria, que vivia na cave do 42, resolveu ir salvar não sei que bens e por pouco não morreu. Foi o momento em que as janelas e as portas das traseiras rebentaram, pela pressão da água, e ele foi arrastado conseguindo sair por uma janela do lado da Damião de Góis.

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O Século, 28 de Novembro de 1967.

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No terreiro das traseiras, os carros boiavam em círculos. Tocavam-se levemente mas não chocavam. Era como se estivessem a brincar. Não havia saída por isso andavam vagando ao sabor das correntes. Entretanto as pessoas das casas de trás tiveram de subir para cima do telhado. (…) Era desesperante, ninguém sabia muito bem o que fazer. (…) No nosso prédio, a água chegou a entrar no rés-do-chão alto. No dia seguinte, tudo era desolação, lama e mau cheiro.84 Helena Abreu recorda-se também de ver os bombeiros a salvar pessoas que estavam em cima de um telhado e da sua aflição ao verem os carros que boiavam nas águas a serem empurradas pela corrente em direcção a um grupo de pessoas, entre as quais se encontrava o seu pai. Pensou, em pânico, que iam ser esmagadas e foi com espanto que viu um bombeiro a afastar os carros com um simples safanão.85 Manuela Barreto: A história foi-me contada pela minha mãe. Nós tínhamos uma vizinha (…).Acontece que no sítio onde ela trabalhava fizeram uma homenagem às pessoas que completavam 25 anos de serviço e ela foi homenageada na véspera, ou na ante-véspera do dia em que se deu as cheias. Ela estava muitíssimo feliz, e para ir à homenagem tirou umas joiazinhas que tinha, pô-las no quarto, eram as joias para levar à homenagem. Depois tirou-as no quarto, quando chegou a casa, a seguir à homenagem. E nesse dia começou ela a ver entrar a água. Segundo me disseram entrava água até pelas sanitas! Ela morava nessa altura na Rua Luís de Camões, nas caves. Quando se lembrou que as joias estavam no quarto, voltou a correr ao quarto para tirar as jóias, só que, a porta do quarto fechou-se. Ela começou aos gritos, a água a subir vertiginosamente, ela aos gritos, aos gritos, aos gritos e o marido acudiu. Tentou abrir a porta e ela só dizia: “Vai-te embora que eu estou perdida! Salva-te, salva-te, salva-te!” e ela morreu afogada lá dentro. Sei que mais tarde (…) que o marido, (…) tinha pesadelos horríveis com a cena que viveu.

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José António Leitão: Recordo-me que na cave do meu prédio (R . Luís de Camões nº 39, esquina com a Rua António Granjo) havia um ferro-velho (Sr. Américo , julgo) que cedia o espaço a um sem-abrigo (naquele tempo não se chamavam assim ) que morreu na cheia, esmagado por um guarda fato. Penso que não teve morte imediata, morreu passados uns dias. O que recordo perfeitamente foi estar com o meu pai à janela a ver automóveis levados pela corrente de lama, nessa sexta-feira ou sábado (…) Tinha nessa altura um Vauxhall Viva e resolvemos amarrá-lo a uma árvore. (…)

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Helena Abreu, depoimento na Biblioteca Municipal de Algés, 15 de Setembro de 2016. Helena Abreu, Registo áudio, Biblioteca Municipal de Algés, 15 de Setembro de 2016. 86 Manuela Barreto, testemunho recolhido por Helena Abreu, Maio de 2017. 85

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O carro lá foi amarrado com uns nós que eu tinha aprendido na Marinha e que eram muito eficazes. Mas a força da corrente era de tal ordem que o pára-choques (nessa época os carros tinham uns párachoques salientes e cromados) dobrou e o carro foi arrastado pelo mar de lama. O meu pai e eu tentámos segurá-lo mas não conseguimos. Valeu a ajuda de uns populares que, com água até à cintura, empurraram o carro contra um prédio da esquina (…) evitando que ele só parasse no fim da rua, onde já estavam empilhados uma dúzia deles! (…). Recordo também que nesse fim-de- semana houve uma explosão num paiol em Linda-a Velha e partiramse imensos vidros e montras em Algés. Algés parecia que tinha sido bombardeada! Foi realmente um fim-de-semana trágico em que morreu imensa gente nos arredores de Lisboa. A censura não deixou publicar toda a informação nos jornais e suavizou muito o número de mortos. Foi num Paris-Match que tive conhecimento de toda a extensão do drama. 87

José Nuno Pacheco Pereira, actualmente a viver no Brasil, também se recorda daqueles dias fatídicos e enviou a memória de episódios ocorridos em Algés 88: - Um amigo chamado Filipe (não me lembro do apelido) que morreu numa cave, em frente à antiga bomba de Gasolina [Rua Luís de Camões]. Morreu entalado entre o guarda-roupa e a parede. Não conseguiu sair a tempo. A água entrava pelas sanitas, por todo o lado e a maré estava cheia. - Um outro amigo, o Tó Leitão, cujos pais moravam na Rua Luís de Camões, quando viu a água começar a inundar a rua atou os puxadores do carro, com uma corda a uma árvore. No outro dia, de manhã só lá estavam os puxadores e o carro tinha ido na enchente.

A estes testemunhos, junta-se o de João Augusto Carriço Sant ‘Ana, Capitão da Marinha Mercante e Comandante do Quadro de Honra dos Bombeiros Voluntários de Matosinhos -Leça que, na época, se encontrava a bordo de um navio, a Norte das Canárias, como 2º piloto.89 [A] minha mulher aguardava a minha chegada, no Porto, em casa dos meus pais, tendo saído de Algés, dois dias antes, levando também meu filho com 2 anos de idade. Na casa de Algés, ficou somente a minha avó com 72 anos de idade. (…) Estava a tomar o pequeno-almoço, cerca das 7h 30 m (…), quando ouvi através da Emissora Nacional e do Rádio Clube Português, que tinha havido grandes inundações em Lisboa e arredores, que ocasionaram prejuízos nas habitações e vitimas entre a população. Como muitas vezes sucede com a

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José António Leitão, testemunho recolhido por Helena Abreu, Maio 2017. José Nuno Pacheco Pereira, Maceió, Brasil, testemunho recolhido por Helena Abreu, Maio 2017. 89 João Augusto Carriço Sant ‘Ana, testemunho recolhido por Helena Abreu, Maio 2017. 88

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maioria do ser humano, temos pena, mas pensamos sempre que só sucede aos outros e nós ficamos a salvo…mas não foi assim. Durante esse dia, a minha mulher foi informada, via telefone, (…) que a casa estava completamente inundada, a água tinha atingido cerca de 1,50 de altura, as portas estavam arrombadas pela lama e que os nossos haveres estavam todos contaminados (…), na maioria perdidos. A minha avó foi salva pelos Bombeiros, tendo sido evacuada para o 1º andar com um auxilio de um cabo, pois a força da corrente era fortíssima (…). O meu carro, que estava estacionado à porta, foi levado na enxurrada, “navegando” pela Rua Manuel de Arriaga abaixo, até que embateu numa árvore, afundando-se… O meu sogro ainda tentou derivá-lo para uma zona com menos água, mas não teve forças para o agarrar. Voltou a nado e agarrado às paredes da Manuel de Arriaga até à sua casa na Latino Coelho. (…) [A 30 de Novembro], chegado a Algés e, em frente à casa que habitava (…) nem queria acreditar no que via. Em frente ao portão de entrada observavam-se dois montes cuneiformes de terra enlameada, que tinha sido retirada do interior da habitação, portas da rua abertas, escancaradas pela força da enxurrada. Os móveis da sala de estar, quarto e casa de jantar cobertos de lama, gavetas abertas mostrando o seu conteúdo danificado pela lama. As roupas estavam todas em péssimo estado e mesmo que as lavassem, ficavam castanhas, cor de terra. Tinham-me desaparecido algumas coisas de algum valor, que considerei como saque. (…). Fiquei com a roupa que tinha a bordo e a minha mulher e o meu filho, com a roupa que tinham levado para o Porto, numa estadia de 10 dias mais ou menos. Foi um pesadelo, para mim, pois estava casado há dois anos e meio, e os bens que possuía e que muito me custaram a adquirir fruto do meu trabalho…foram por água abaixo!!

Isaac Santos: (…) ruiu metade do prédio. O corte aconteceu pelas escadas. O carro onde seguia o meu pai e a minha mãe, de boleia, foi arrastado contra muro e caiu ao rio quando a parte do prédio ruiu. Eles faleceram. O meu pai foi encontrado em Algés já a entrar no Tejo e a minha Mãe foi encontrada oito dias depois num caniçal em Carnaxide.

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Adelaide Barão: Eu também me lembro tão bem como se fosse hoje…! Tinha eu uns 8 anos e morava em Algés numas barracas perto dos Bombeiros Voluntários de Algés (…) A minha mãe deitou-nos a mim e 2 irmãos. Para nós não vermos o que se estava a passar… mas o barulho da chuva … dos trovões … das 90

Comentário de Isaac Santos a propósito das cheias de 1967, Facebook da Câmara Municipal de Lisboa, 1 Dezembro 2014.

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pessoas … era tanto … o que é que eu fiz, levantei-me e fui ver … só que era uma confusão … as pessoas a chorar (…) foi aterrador … no meio disto tudo a minha mãe viu-me … e levei uma tareia …!!.91

Conceição O’ Neil, que também vivia em Algés, recorda-se da tragédia que atingiu as pessoas que viviam nas barracas de Romeiras: Lembro-me de ver uma barraca de madeira, com gente dentro a gritar, que vinha intacta, empurrada pela lama pela Avenida dos Bombeiros Voluntários (……)92

Eugénia e Ezequiel Gameiro das Neves, então moradores em Algés, recordam alguns episódios dramáticos provocados pelas cheias naquela localidade: 93 Havia uma senhora que morava na Rua Luís de Camões e que fazia bordados para fora. Viu a casa a encher-se toda de água. Ficou com a sua roupa e a roupa dos vizinhos amigos, dos clientes toda encharcada. A senhora passou-se completamente. Foi para casa do vizinho. Ela foi depois para a França, para o pé do filho. Cegou pois ficou com o sistema nervoso alterado e nunca mais recuperou a visão. Paulo Gameiro das Neves, filho daquele casal e que na altura tinha 9 anos, recorda: Na segunda-feira, quando se esperava um novo arrebentamento [do Paiol], vimos as pessoas a descerem todas para a praia…..Houve indicação para ir para a praia. O meu pai tinha ido trabalhar. Eu e a minha mãe descemos pela Rua Pinheiro Chagas a pé. Havia pessoas que vinham de pijama e uma toda nua que vinha de Lindaa-Velha. Apanhámos um táxi em frente à Cristal para Campo de Ourique onde viviam os meus avós. Foi uma grande confusão. Havia muita gente dentro do táxi. 94

4.5. Cruz Quebrada e Dafundo Na Cruz Quebrada, a corrente vinda do Jamor foi vencendo todos os obstáculos, derrubando os muros e paredões que defendiam a linha férrea, atravessando as areias da praia e lançando-se no Tejo com toda a massa de detritos que trazia consigo. No rio Jamor, foram encontradas duas mulheres já mortas. Também o Dafundo foi duramente atingido pela catástrofe. A água inundou ruas e caves, vários carros foram arrastados pela forte corrente e a explosão do Forte partiu vidros em toda a área. A zona habitualmente mais atingida pelas cheias foi a área entre o Instituto Espanhol e o Aquário Vasco da Gama, uma habitual zona de cheias que fica abaixo do nível do Tejo. 91

Comentário de Adelaide Barão, a propósito das cheias de 1967, Facebook da Câmara Municipal de Lisboa, 26 novembro 2014. 92 Conceição O’ Neil, Registo áudio, Biblioteca Municipal de Algés, Maio de 2016. 93 Eugénia e Ezequiel e Gameiro das Neves, testemunhos recolhido por Paulo Gameiro das Neves, Maio 2016. 94 Paulo Gameiro das Neves, registo áudio, Maio de 2016.

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Elisabete Aguardela95, uma das testemunhas que participou no pojecto «Histórias de Vida» organizado pela Biblioteca Municipal de Algés, conta como aquela localidade era, sistematicamente, atingida sempre que a pluviosidade era intensa: Moro no Dafundo, ainda moro na mesma casa frente ao jardim do Aquário Vasco da Gama que é conhecido, até houve alguém que lhe chamou «A Veneza do Dafundo» devido às cheias que todos os anos periodicamente aconteciam lá. E houve uma vez ou duas em que o Dr. Isaltino de Morais andou a ver os estragos num bote de borracha porque não havia maneira, não havia hipótese de caminhar e até era bastante perigoso porque os bombeiros andavam com aqueles ganchos a levantar os tampos dos esgotos e as pessoas podiam ser engolidas. Elisabete Aguardela tem memória de várias cheias que atingiram o Dafundo, mas as de Novembro de 1967 foram particularmente traumáticas e, ainda hoje, 50 anos volvidos, se emociona ao recordá-las. No dia 21 de Novembro tinha dado à luz o seu filho, numa clínica em Lisboa e, dia 25, regressava de táxi, ao Dafundo, com o recém-nascido nos braços. Conta-nos, emocionada, como tudo aconteceu: 96 Eram cerca das 5 ou das 6 horas da tarde de dia 25 de Novembro de 1967. (…) quando chegámos ao Alto da Ajuda, o táxi começou a abrandar. Da janela pude aperceber-me do grande lençol de água que se espalhava por toda a via e que acabou por deixar o carro submerso até ao meio. Apanhei um enorme susto! (…) O táxi conseguiu continuar até ao Dafundo, onde moro ainda. Chovia imenso e também aqui havia imensa água na rua que os Bombeiros tentavam controlar. Durante a noite de dia 25 permaneceu em casa, de estores fechados, sem conseguir dormir com o barulho da chuva e os gritos dos bombeiros. Na madrugada de dia 26, ouviu um forte estrondo que destruiu os vidros das traseiras da casa. Continuava meia confusa, sem saber o que estava a acontecer, protegida pela família que a resguardava no quarto e não a deixava ver televisão nem ouvir radio. Elisabete Aguardela estranhava ver lama no corredor e ter que utilizar água fervida, mas ainda atordoada com o parto, não deu muita importância aquela estranha situação. Segunda-feira, o marido foi trabalhar e a mãe saiu, ficando apenas com o bebé e o pai que, doente do coração, estava de baixa. Foi na manhã dessa segunda-feira, dia 27, que teve verdadeira consciência da situação. Recorda os momentos dolorosos em que se apercebeu da realidade: Na segunda-feira, a minha mãe entra em casa coberta de lama e diz: «Vamos embora! Temos de fugir todos!».

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Elisabete Aguardela, vídeo Histórias de Vida e registo áudio na Biblioteca Municipal de Algés. Ibidem.

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Da rua, chegava o som de um megafone de Bombeiros a alertar as pessoas para saírem de casa e ouviam-se gritos por todo o lado. Esperava-se uma segunda explosão no Paiol de Linda-a-Velha e desta vez as casas podiam ruir. Devíamos fugir para a praia. Petrificada, já nem consegui cuidar do meu bebé. Teve que ser a minha mãe a fazê-lo. Vesti-me sem nenhuma atenção e peguei num saco onde pus fraldas e roupas. (…) Quando cheguei à rua, vi tudo coberto de lama e filas que se dirigiam para a praia, muitos ainda em pijama com animais e gaiolas que tentavam salvar, num ambiente sombrio e cinzento que lembrava um filme de guerra. Então, entrei em pânico. Na fuga para a praia de Algés, reparou que, em sentido contrário, ia uma vizinha por causa dos dois filhos pequenos que tinha deixado em casa. Vinha aos gritos por causa dos filhos. A imagem que eu tenho dela faz um contraste muito grande em relação aos outros que fugiam e ela vinha no sentido contrário, sozinha. Na confusão do trânsito, com automóveis a tentarem passar e pessoas a fugirem para a praia, vinha do lado de Cascais e na direcção de Lisboa, uma Station com um motorista que levava um ferido para o Hospital de São José. O meu pai deita a mão ao fecho, abre a porta, porque os carros quase não podiam arrancar, o trânsito era muito ….. e pediu : «Por amor de Deus, levem a minha filha e o meu neto que ela acabou de ter a criança e não pode estar aqui». Elisabete Aguardela seguiu com o filho no carro, enquanto o marido e os pais ficaram na praia de Algés. Mais à frente, uma senhora agarrou-se à maçaneta da porta e suplicou para entrar. Tinha consigo uma criança. Ambos estavam de pijama. O motorista hesitou, mas Elisabete Aguardela intercedeu por eles. Entraram e seguiram viagem. Esta família foi deixada em lugar seguro em Lisboa e Elisabete seguiu com o filho até junto ao Hospital de onde seguiu para casa de familiares. Voltou para Algés, no dia 28 e, apesar de já ter visto algumas reportagens na televisão, só então tomou conhecimento do significado da experiência traumática que acabara de viver: só quando voltei para casa é que tive a noção da extensão completa da tragédia que, claro, que tinha sido filtrada pelas notícias de então. Elisabete Aguardela recorda ainda outros casos dramáticos que aconteceram em Algés: Numa cave da Rua Luís de Camões, vivia uma senhora que era a mãe de um colega do meu irmão. A senhora ao tentar fugir, ao tentar subir as escadas, ficou ali porque a água que descia se misturava com aquela que lhe entrava pelas traseiras, então foi a morte dela.

Do lado direito, aquela casa de loiças na Damião de Góis, moravam aí os meus tios e o meu primo. A casa encheu-se rapidamente. O meu tio e o filho ensinaram a minha tia a flutuar para tentar sair pela 51


janela. Mas também havia o perigo de abrir a janela. Então ficaram a flutuar até a coisa acalmar. Estavam quase a tocar no tecto, [mas sobreviveram]. Depois daqueles trágicos acontecimentos, Elisabete Aguardela, como todas as vítimas das cheias, regressaram à normalidade, mas o trauma marcá-la-ia para sempre. As noites começaram a ser difíceis de suportar e, meses depois, passou a sofrer de alergia nervosa quando escurecia (coçava até fazer sangue). Um ano depois das cheias, viveu o terramoto. Os sintomas continuavam, bem como a angústia de todas as noites. Cinco anos depois das cheias, sentiu necessidade de pedir ajuda e recorreu à psiquiatria. Foi então que se apercebeu que não tinha sido a única a sofrer traumas na sequência daqueles acontecimentos. Soube que, três anos passados após as cheias de Novembro, havia ainda gente traumatizada a fazer terapia. A angústia permaneceu durante anos e, ainda hoje, lhe custa recordar aqueles acontecimentos. Os meus pais envelheceram muito nesse dia. (…) Eu vi a barba do meu pai, que naqueles dois dias não fez a barba, de preta começar a ficar ponteada de branco. Eu, se não visse, não acreditava que acontecesse em tão pouco tempo um fenómeno daqueles.

4.6. Caxias, Paço de Arcos, Porto Salvo e Talaíde Caxias, outra localidade do concelho de Oeiras, foi também duramente atingida pelas cheias, com vítimas mortais a assinalar. O muro da muralha da Avenida Marginal ruiu, originando grandes lagos que rapidamente submergiram carros. Caxias viveu… uma noite pavorosa, atingida pela tromba de água. Dir-se-ia que não era o caudal de uma enxurrada violenta, mas que o mar galgara a povoação e ameaçava submergir tudo num inferno de água e lama (…). O caudal da Ribeira de Barcarena ultrapassou tudo, destruiu tudo na sua passagem. Automóveis desapareceram no mar, levados na enxurrada como simples brinquedos de papel. Outros apareceram pendurados sobre muros e vedações. A tragédia avolumou-se quando a luz eléctrica faltou, mergulhando nas trevas dos que gritavam por socorro. (…) Viveram-se horas dramáticas. A escuridão era total, a ampliar o avassalador rugir da massa de água e os gritos de desespero. O esforço abnegado de muitos populares e dos bombeiros de Paço de Arcos evitou que o desastre se consumasse em maior tragédia.97 Uma das situações mais dramáticas ocorreu na Rua Croft de Moura, numa cave (4-A) onde vivia uma família de quatro pessoas (pai, mãe, filho e avó). As águas começaram a subir na habitação a partir das 23 horas. Contam as testemunhas que o casal de moradores subiu ao rés-do-chão para ajudar outros 97

O Século, 27 de Novembro de 1967, p.9.

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moradores. Tempo depois, António Catarino Carvalho desceu à cave para resgatar a mãe e o filho com cerca de 3 anos. Ficaram os três prisioneiros das águas devido ao desmoronamento do muro do quintal e nem os militares da Escola de Electromecânica, nem os Bombeiros de Paço de Arcos os conseguiram salvar. Acabariam por morrer, soterrados na lama. Os seus corpos só foram retirados às 3 horas da madrugada. 98 A zona da Cartuxa, ao Lagoal, foi marcada pela desolação. Laveiras foi duramente invadida pelas águas, esventrando casas, derrubando muros e postes de alta tensão. Durante horas não houve luz nem telefones. A população mais pobre fugiu das barracas e refugiou-se na igreja de Laveiras. As crianças foram recolhidas em várias casas. As águas invadiram o restaurante Cartuxo e puseram em perigo as pessoas que viviam na cave. Elas acabaram por ser salvas pelo proprietário Francisco Lima Agostinho, que acabou por ser arrastado, conseguindo salvar-se depois de ter aguardado por ajuda agarrado a uma árvore durante uma hora e com água pelo pescoço. Os prejuízos foram consideráveis.99 Em Paço de Arcos, houve também perdas humanas e muitos estragos materiais provocados pela corrente de água e de lama que inundou a parte baixa daquela localidade. Muitos carros ficaram danificados e foram arrastados para o Tejo. Noutros casos, foram erguidos até aos ramos das árvores onde ficaram suspensos. 100 A rua Costa Pinto, uma das artérias principais daquela vila, ficou completamente inundada pelas águas e lama, ficando intransitável. Como consequência, os estabelecimentos comerciais aí localizados, como a Casa Dany, a Casa João, a Sapataria Remédios e a Casa Severino Seco, entre outros, sofreram elevados prejuízos.101 Josefina Vieira, hoje prestes a fazer 98 anos, recorda que toda aquela zona ficou inundada e que teve que sair pelo telhado da casa onde estava a residir, na altura, juntamente com a filha adolescente:102 Como o meu marido estava a fazer melhoramentos na nossa casa, nós estávamos a morar em casa de uma tia do meu marido, no Pátio dos Vieiras, junto ao Largo S. João. E isso ficou tudo inundado. Foram as cheias grandes. Passava ali uma ribeira, no caminho perpendicular à Rua Costa Pinto que nós gostávamos de ir ver. A ribeira passava a descoberto. Tinha um gradeamento e a gente ia ver as águas passarem. A água arrombou a porta da casa, ainda tivemos água a um metro e tal, morreu a criação porque nós tínhamos lá criação.

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Diário de Notícias, 26 de novembro 1967, p. 9. O Século, 27 de Novembro de 1967, p.9. 100 O Século, 28 de Novembro de 1967, p.9. 101 Notícias da Amadora, 2 de Dezembro de 1967, p.4. 102 Josefina Vieira, testemunho recolhido por Ana Paula Torres, em Setembro de 1967. 99

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Foi então que um rapaz que ainda é vivo, o Luís António Baptista nos foi buscar a mim e à minha filha que tinha uns 14 ou 15 anos. Fez um buraco no telhado e puxou-me a mim e à minha filha. Recorda também que, na segunda-feira, quando começou a circular o boato de que iria haver uma nova explosão no paiol do Carrascal, a filha e as colegas fugiram do cabeleireiro Elvirinha (só quase atendia senhoras importante de Lisboa e de Cascais) onde trabalhavam, para se refugiarem na praia, de onde regressaram depois de verem que nada tinha acontecido. Em Porto Salvo, as águas inundaram as habitações, as instalações agrícolas, os estabelecimentos comerciais e os campos. Muitos animais morreram com prejuízos imensos para os lavradores da zona. Em Talaíde, no «Bairro da Pia à Porta» (expressão literal, já que algumas das suas modestas casas tinham pequenas instalações exteriores com essas funções – ver Foto 7) ficou também inundado, com a água a atingir um metro e meio de altura. Daquele e de outros bairros era proprietário Fernando Sabido, que alugava aquelas modestas habitações a gente com poucos recursos. Detinha também grandes propriedades, o que o transformava numa espécie de cacique do lugar de Talaíde, amado por uns e odiado por outros. Uma testemunha

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que, na época, residia no local, recorda que os moradores que ali viviam viram

muitos dos seus parcos haveres danificados com a invasão das águas , mas que tiveram dificuldade na obtenção de ajuda. Conta que o bairro foi visitado por uma equipa da Cruz Vermelha Portuguesa que procurava inventariar os danos sofridos no sentido de mobilizar a ajuda necessária aos moradores que aí residiam. Contudo, recorda que tal solicitação foi rejeitada por Fernando Sabido, que lhes teria dito que que as pessoas que ali moravam eram pessoas de posses, que não precisavam de ajuda e que, se dela viessem a necessitar, seria dele que a iriam receber. A única coisa que aquele proprietário permitiu que os moradores recebessem foram cobertores. Apesar desse aviso, aquele morador recorda que se deslocou à delegação da Cruz Vermelha Portuguesa, na zona das Janelas Verdes, em Lisboa, a pedir um fogão, mas que não obteve qualquer ajuda.

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Não quis ser identificado, por reserva da sua vida privada.

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4.7. Amadora Esta localidade foi duramente atingida. Os bombeiros receberam mais de 400 pedidos de socorro. Dezenas de estabelecimentos como farmácias, laboratórios, lojas e armazéns de víveres foram severamente atingidos pelas águas e pela lama. Na Amadora, as zonas mais atingidas foram as do Bairro da Porcalhota, Vendas Novas e Reboleira, locais onde se registou o rebentamento de condutas. O nível das águas chegou a atingir 2 metros de altura na zona da Porcalhota. Também aí faltou a corrente elétrica. Mais para o lado da Falagueira, na Quinta da Laje e na Pedreira do Aires, os bairros de barracas que aí se encontravam ficaram bloqueados pelas águas e lamas que se acumulavam, semeando o pânico entre os seus moradores.104

5. Outras localidades inundadas da Grande Lisboa Nas imediações do concelho de Oeiras, Carcavelos foi a localidade menos atingida, à excepção da zona do Bairro das Marianas onde, na parte mais baixa, corre a Ribeira com o mesmo nome. No outro extremo da localidade, onde corre a Ribeira de Sassoeiros, os prejuízos também foram consideráveis, sobretudo no mercado municipal, perdendo os vendedores a maior parte dos seus artigos de comércio. Recorda Fernanda Silva: Pois eu tinha quase 4 anos mas recordo bem a água que corria dentro da minha casa parecendo um rio de lama, meio metro de altura…vivia nessa altura, numa vivenda com uma estrutura sólida, num bairro de vivendas – todas sofreram danos – na Rebelva/Carcavelos. Com tanta chuva, as terras da grande quinta do Conde Margaride (Rana) tornaram-se num rio de lama e desabaram sobre o bairro… se não fosse a solidez da construção daquelas vivendas seriam completamente arrasadas… a minha mãe conta que a água era tanta que rebentou a porta da cozinha e o meu pai só teve tempo e rasgo de pensamento para ir abrir a porta principal da vivenda, senão teriam morrido mais 4 pessoas…lembro bem de ver brinquedos a navegar e a desaparecer… 105

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O Século, 26 de Novembro de 1967. Comentário de Fernanda Silva a propósito das inundações de 1967, Facebook da Câmara Municipal de Lisboa, 26 Novembro 2014. 105

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Sintra e Queluz Também a zona entre Lisboa e Sintra foi duramente atingida devido ao facto de os rios e ribeiras terem acumulado grande quantidade de água que transbordou dos seus leitos, destruindo muros, árvores e arrastando pequenas habitações. Miguel Castelo: Na memória, tenho o relato do meu Pai sobre estas cheias. [Recordo, ter-me dito] que, a caminho da base aérea de Sintra, ia sendo literalmente sugado por uma conduta de água que tinha ficado sem a tampa pela força das águas, gerando um gigantesco redemoinho em sua volta. Se não se tivesse apercebido do ruído estranho da água a ser sugada, e se [não se tivesse] desviado, teria sido mais uma das vítimas daquela catástrofe.106 A fúria das águas atingiu também Queluz, provocando estragos nos jardins do Palácio e na zona urbana, nomeadamente a queda do prédio de quatro andares, na Avenida Elias Garcia, próximo do rio Jamor. Esses dias são recordados dramaticamente por O Século Ilustrado: 107 Em Queluz, a ribeira do Jamor em fúria fez viver uma noite apavorante aos seus habitantes. (…) Na Avenida Elias Garcia, todo o lado direito de um prédio de quatro pisos se desmoronou como um castelo de cartas. Houve mortos a lamentar. Contam outras testemunhas: Foi nesta noite trágica que desmoronou um prédio em Queluz, situado junto aos arcos e rente à ribeira do Jamor. A estrutura foi levada pela corrente. Várias pessoas afogadas, entre elas, uma colega do liceu que vivia nesse edifício. Naquela noite, a enxurrada de lama levou consigo os sonhos de uma menina de onze anos. Foi angustiante continuar a passar diariamente por aquele local e ver um cenário de destruição, mas não havia alternativa, só havia aquele caminho. Ainda hoje são visíveis restos do prédio, obstinadamente agarrados ao prédio contíguo, como se, naquela noite, tivesse tentado que o outro lhe “deitasse a mão”… As cheias de 67 fizeram muitas vítimas, mas, na minha ainda tenra idade, o que me transtornou, o que me chocou sinceramente, o que me causou angústia e sonhos aflitivos, foi a morte estúpida, anormal e absurda da Cecília…108

Lembro-me do sábado todo a chover. Da água a entrar por frestas de janelas mais expostas. De ser chuva forte e de ouvir qualquer coisa de meu Pai sobre a inevitabilidade de haver inundações. (…) Não 106

Comentário de Miguel Castelo a propósito das cheias de 1967, Facebook da Câmara Municipal de Lisboa, 26 novembro 2014. 107 O Século Ilustrado, 2 de Dezembro de 1967. 108 Pezinhos na Areia, Balada do Mar Salgado Memórias e Afectos.

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tivemos consciência da gravidade da coisa, vivendo como vivíamos num sítio alto e inclinado, onde a água escoava rapidamente. Na manhã de Domingo, 39 anos contados até hoje, lá saí com o meu Pai, ambos ainda alheados das consequências da chuva intensa e persistente da véspera. É a um certo ponto do trajeto que, olhando para longe, diviso uma série de lençóis brancos alinhados. Nada disse. Mas recordo-me de me ter parecido que o meu Pai (…) não tinha dado por tal. Acho que só quando passámos por um magote de atiçados comentadores da desgraça, que apontavam para o monte e para o vale, ele se deu conta. Mas também nada disse. Só mais tarde tivemos noção do que realmente acontecera.109

José Maria Florêncio, na época bombeiro de Barcarena, recorda também aqueles momentos dramáticos110: Lembro-me que foi tão aflitivo, aquilo. Ao pé do palácio de Queluz, o palácio estava todo rodeado de cadáveres. (…) O rio que passa em Queluz, esse é que vai dar à ribeira do Jamor. (…) Nessa ribeira é que houve muitos mortos. Aqui não.

Odivelas, Quinta do Silvado, Olival Basto, Póvoa de Santo Adrião, Pontinha, Bairros da Urmeira e de Santa Maria. Odivelas, na época integrada no concelho de Loures, foi uma das zonas mais atingidas pelas cheias de 1967, com um elevado número de mortos e de desaparecidos, a maioria dos quais crianças. Na escuridão da noite, as águas empurradas pelo vento ameaçavam fazer ruir todas as estruturas que encontravam pela frente. Destruíram sobretudo as habitações pobres, barracas toscas de madeira, construídas junto à Ribeira de Odivelas ou nas encostas das elevações vizinhas. Muitas dessas habitações foram arrastadas pelas águas e pela lama. A Calçada de Carriche ficou completamente alagada, abatendo à entrada de Odivelas. A Ribeira tornou-se rio. Os jornalistas iam chegando às zonas sinistradas como podiam e deixaram-nos registo da aflição das populações. Eis alguns exemplos 111:

Cada habitante da zona que encontrávamos é uma história nova que sabemos: «Durante várias horas um homem esteve agarrado a um poste de electricidade. Gritava, a princípio com muita força, para o fim já fracamente. Pedia que lhe dessem uma corda, que o acudissem. A água ia subindo, cobriu-lhe a 109

MCV, BIC Laranja, 26 de Novembro de 2006. José Maria Florêncio, testemunho recolhido por Helena Abreu, Maio 2017. 111 O Século, 27 de Novembro de 196. 110

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princípio os pés subiu depois até à cintura. O homem não parava de gritar, e todos o vimos erguer muito os braços quando a água lhe chegou o pescoço. Mas não a tapar-lhe a cabeça; antes disso, o poste desabou, e o homem lá desapareceu, arrastado pela água, sempre a gritar. Já não o distinguíamos, mas ainda se ouvia gritar.»

Eram às centenas, domingo de manhã, as pessoas que serpenteavam na lama por entre barracões destruídos e veículos atolados, uns e outros cobertos pelo mesmo castanho húmido que revestia a região toda. Pela Calçada de Carriche, ao longo do Bairro de Olival Basto, corria ainda, ameaçador, um espesso rio de água turva. Depois, até Odivelas, a estrada só se distinguia do resto da paisagem devido à abundância de carros entre os destroços que a juncavam, destroços tão inesperados, como bidões de gasóleo e cadáveres de animais, além de pedregulhos, tábuas e caniços, pneus e rodas de carroças… 112

«Às 23 horas, abri a porta e entrou-me em casa um porco, apavorado. Os animais também morreram, às centenas, e os que se salvaram erravam pelos campos, cheios de medo.» (…) as brigadas de socorro iam-nos descobrindo [mortos] um após outro, a uma cadência alarmante. Semienterrados na lama, jaziam cadáveres de crianças (sobretudo), mulheres e homens velhos e homens novos. (…) Foi uma noite intensa povoada pelos gritos, pelas correrias e o desespero das gentes que, tomadas de pânico, procuravam por todos os processos salvar a vida, enquanto o céu desprendia, ininterruptamente, uma cascata poderosa de chuva. 113

Naquela localidade, no lugar onde hoje se situa a IC17, existia à época, um grande bairro de lata com barracas em lusalite que se dispunham nas margens do rio da Costa, o rio de Odivelas. Muitas delas foram destruídas pelas cheias e outras houve, de madeira, que foram levadas pela corrente114. Na Quinta do Silvado, situada na margem direita daquele rio e terra de gente modesta, a tragédia foi imensa, tendo aí famílias inteiras perdido a vida. No Pátio do Silvado, morreram mais de 100 pessoas.115 Recorda Valdemar Esteves: O primeiro pedido de socorro foi às 21h e 10m (dia 25). As casas ficaram todas submersas. Só se viam partes do telhado. Faz de conta que era o mar. Só se podia andar de barco. Aquele quartel estava para ser inaugurado como o quartel novo dos bombeiros mas, na altura, [quem o inaugurou foram] os mortos [estendidos] lá no chão, para as famílias irem fazer o reconhecimento.116 112

O Século Ilustrado, 2 de Dezembro de 1967. O Século Ilustrado, 2 de Dezembro de 1967. 114 SIC Notícias- Cheias de 1967 – 50 anos, 25 de Novembro de 2017. 115 Diário de Notícias, 28 de Novembro de 1967, p.9. 116 Depoimento de Valdemar Esteves in Vídeo Miguel Ferreira. 113

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A zona das hortas foi toda alagada pelo rio. As hortas ficaram submersas. No domingo, as pessoas andavam todas murchas, quase não falavam com aquela desgraça. Muita gente morta, muita gente morta. 117 Entre elas, estava uma família que residia no Pátio de João Pequeno. Era constituída por um casal e 7 filhos. Morreram três filhos e os outros foram salvos pelo pai. Maria José Garcia, a filha mais velha, com 17 anos (Foto 24), contava ao repórter do Diário de Notícias como tudo acontecera118: Só eu não estava em casa. Era meia-noite e a minha irmã Francisca ainda estudava. Ia fazer exame para admissão na Companhia dos Telefones. Chovia. Pouco depois, deitou-se. A certa altura, a água começou a entrar e a subir. O pai assustou-se e como a água fosse cada vez mais e já não houvesse para onde fugir, transportou a mãe e os meus irmãos para o telhado. (…). Foi então que se deu o pior. O pai reparou que a poucos metros havia um telhado mais alto, oferecendo melhores condições para salvar a família. E começou, a nado, a transportá-la. Começou pela Francisca, que, por ser a mais velha, poderia segurar os mais novos, o Abílio e o Francisco José. Voltou para buscar os restantes. Foi nessa altura que ruiu a casa e a água levou os meus três irmãos, ali mesmo à vista de todos. O Pai ainda nadou à procura deles, mas estava escuro. Nunca mais apareceram. Por fim, o Pai começou a salvar os outros, mas em que condições. Calcule (…) que se agarrou aos fios da electricidade. Por sorte, não havia corrente. Senão, teria morrido também.

No Olival Basto, as águas chegaram a atingir dois a três metros em vários locais, provocando inundações em dezenas de casas. Por ali passava um rio vindo da serra de Sintra e que desaguava no Tejo, na zona de Sacavém. Dado estar na época assoreado, transbordou logo com as primeiras chuvadas, galgou muros, cortou a estrada que ligava Olival Basto a Lisboa e foi destruindo tudo à sua passagem. Também aí faltou a luz elétrica, o que mais agravou o pânico das populações. No caudal da água, foram arrastados pela via pública candeeiros de iluminação pública e cabines telefónicas arrancadas dos seus alicerces pela corrente das águas, assim como automóveis, alfaias agrícolas e corpos de animais afogados (gado e animais domésticos). Na actualidade, a memória daquelas cheias leva a população a encontrar formas de se proteger. Nos dias de grande pluviosidade, os automóveis são levados para as zonas mais altas e as tampas das tarjetas são retiradas para que a água possa escoar livremente. Igualmente, Póvoa de Santo Adrião foi uma das freguesias mais atingidas. Muitas casas desapareceram e muitos tiveram que se refugiar nos telhados das casas que resistiam. Num externato da zona chamado 117 118

Depoimento de Fernando Cunha in Vídeo Miguel Ferreira. Diário de Notícias, Suplemento, 28 de Novembro de 1967, p.9.

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Caravela de Portugal, 60 crianças foram salvas por Fuzileiros da Marinha de Guerra com a ajuda de cinco barcos de borracha. Os Bairros da Urmeira e de Santa Maria, na Pontinha, que estavam encostados ao rio foram destruídos pelas cheias, registando grande número de mortos e de feridos. Alguns corpos foram encontrados a mais de um quilómetro do lugar onde viviam.

Loures e Frielas Loures foi particularmente atingida. A equipa do Diário de Notícias

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levou cinco horas a lá chegar,

vinda de Lisboa. Dias depois, calculava-se que 50 mil contos (moeda da época) não chegariam para a reconstrução. Na zona de Frielas (várzea de Loures), as estradas e os caminhos desde Olival Basto até Cabeço de Montachique, uma área de cerca de vinte quilómetros, ficaram completamente atolados na lama. No concelho de Loures e, particularmente, na localidade de Fanhões, a violência das águas atingiu também os cemitérios, desenterrando os mortos sepultados há não muito tempo, espalhando o horror e um cheiro nauseabundo na área. Manuel Júlio dos Santos120, a criança da fotografia 15, tinha na época 10 anos. Vivia com a mãe e uma irmã de 6 anos em Ponte de Frielas, numa casa baixa. A mãe e a irmã dormiam na mesma cama no piso de baixo e o Manuel num pequeno sótão onde mal se podia pôr em pé. O rapaz trabalhava numa carpintaria onde apanhava aparas de madeira, a 2 tostões por dia. Na noite trágica de 25 de Novembro, foram salvos por um acaso. Emília, de 6 anos, acordou durante a noite para ir à casa de banho e quando colocou os pés no chão verificou a água lhe chegava aos joelhos. Acordou a mãe e rapidamente se refugiram no sótão onde dormia o Manuel. Minutos depois, uma onda de lama irrompeu pela casa e destruiu as escadas de acesso ao sótão, isolando-os. Aí ficaram até serem socorridos, a ouvir os gritos aflitos de Bárbara, a vizinha entrevada, que morria afogada na casa em frente.

119 120

Diário de Notícias, 26 de Novembro de 1967. Expresso, Cheias de 1967, reportagem de Joana Pereira Bastos, 11 de Novembro 2017, pp.24 a 32.

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Alenquer

Esta localidade, na época com cerca de cinco mil habitantes, englobava uma parte alta, habitacional, e outra baixa, comercial e industrial. As águas, vindas do alto do concelho, foram derrubando todos os obstáculos que encontraram pela frente, inundando a zona baixa daquele lugar. Segundo o Diário de Notícias121, a Ponte de Barnabé foi a primeira a ser derrubada, logo seguida pela Ponte das Águas e pela Fábrica de Cartão e Papel da Ota que ficou completamente destruída. A partir de então, a corrente de água ganhou velocidade e invadiu a povoação. Na zona baixa, as águas chegaram a ultrapassar os 3 metros de altura. Os habitantes de Alenquer recordam o que então aconteceu numa tabuleta que assinala, na rua Triana, o nível a que chegaram as águas naquela inundação (3,07 metros), como se pode ver nas imagens abaixo.

Nível da água da inundação de Novembro de 2017 na Rua Triana (3,07 metros), em Alenquer. Fonte: Fotos de Ana Paula Torres

121

Diário de Notícias, 27, 28 e 29 de Novembro de 1967.

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Naquele lugar, as caves e as habitações de rés-de-chão ficaram inundadas e nenhum estabelecimento comercial escapou à destruição. A fúria das águas e da lama invadiu farmácias, ourivesarias, padarias e estabelecimentos comerciais inutilizando os artigos expostos. O quartel dos bombeiros foi igualmente atingido, com 7 carros submersos, impedidos de socorrer as populações, bem como o cinema local, que ficou com a plateia completamente destruída. No Banco Fonseca e Burnay, o relógio parou nas 3h 05m, altura em que as águas atingiram os 3 metros de altura. O caos instalou-se naquela agência bancária, com a lama a envolver secretárias, ficheiros, carimbos, livros de cheques e todo o tipo de documentos. No Mercado Municipal, a água destruiu legumes, frutas, hortaliças, as carnes armazenadas nos talhos aí existentes e muitos equipamentos.122 Também o Matadouro Municipal, onde as águas subiram a mais de 3 metros, sofreu grandes estragos, ficando destruídos géneros alimentares, equipamentos e documentação. Há a referir também a morte de vários animais, por afogamento.123 As cheias provocaram igualmente danos imensos em fábricas e outros locais de produção: a fábrica de moagem perdeu duas toneladas de farinha; num aviário morreram 6 mil galinhas; a fábrica de papel da Ota ficou com muito material destruído. Na Fábrica de Cartão e Papel da Ota, (…) a água começou a invadir o edifício e a exercer uma pressão crescente sobre o pavimento e as paredes. O pavimento acabou por ceder e, na derrocada, arrancou máquinas, derrubou as paredes e arrastou tudo na sua frente! A todo o comprimento, cerca de 30 metros de edifício (…), estruturas anexas e equipamentos fabris foram levadas pela água. As bobines de papel de grandes dimensões, as máquinas com toneladas de peso os cilindros das calandras «pesando cada um mais de mil quilos» [segundo a Verdade, jornal da região], navegando em conjunto com os destroços do edifício, abalaram, em fúria, rio abaixo, deixando, atrás de si, um rasto de destruição difícil de imaginar.124 Com toda esta aglomeração de detritos, os rios de lama que inundavam todos os espaços provocavam vítimas mortais e destruição. Ao hospital da localidade iam chegando mortos e feridos. O Diário de Notícias, de dia 28, testemunha a ocorrência de 53 mortos e de 2 desaparecidos. Os investigadores que estudaram o fenómeno das cheias em Alenquer, na obra A noite mais longa. História e Memória da cheia de 25-26 de Novembro de 1967, identificaram 47 mortos e calculam que o número de mortos teria oscilado, naquela localidade, entre 50 a 62. 122

RAPOSO, Raquel; LOURENÇO, José Leitão; SANTOS, Alberto, A NOITE MAIS LONGA história e memória da cheia de 25-26 de Novembro de 1967, Alencultura editorial, Alenquer, 2017, p. 120. 123 Ibidem. 124 Idem, p. 127

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A partir das várias fontes consultadas, identificámos 49 vítimas mortais, entre as quais as da família Massano que perdeu 5 familiares. Maria Lúcia Massano, uma das sobreviventes, que perdeu o marido e os seus 4 filhos de 12, 6, 4 e 2 anos, contava, na época, ao Diário de Notícias125: Quando me apercebi que chovia muito e comecei a ouvir estrondos na rua, fui acordar o meu marido. Em casa só eu estava acordada. Os meninos dormiam. Sempre juntos, eu e o meu marido fomos buscar os meninos. Pegámos nos três mais pequenos ao colo pois a água rapidamente subiu. Andámos sempre juntos, sempre juntos. De repente, deu-se a derrocada do muro do quintal. Nessa altura a água chegava até ao pescoço. Depois não sei o que aconteceu. Lembro-me de que os meninos me saíram dos braços. Nunca mais os vi. Só acordei aqui no hospital. Na sequência daqueles acontecimentos, a vila ficou sem água, luz e pão. Segundo o Diário de Notícias, de dia 29 de Novembro, calculava-se um prejuízo de cerca de 117 mil contos (moeda da época). Mário Sampaio, um dos sobreviventes, conta como escapou da morte naquela noite trágica 126: Em 1967, vivíamos na Rua de Triana. Tínhamos um estabelecimento de venda ao público e tínhamos, mais abaixo, um armazém de revenda. [Quando foram avisados da cheia, já perto da meia noite, ele e a mulher reagiram]. Eu e a Rosa calcámos uns botins de borracha e corremos lá abaixo ao armazém (…). (…) havia muita mercadoria, em lotes, no chão. Então, a primeira coisa foi tentar pôr toda a mercadoria em cima dos balcões. [Depois, com ajuda de amigos, começaram a levar a roupa para a casa de um vizinho, no primeiro andar. Aí ficaram todos, à excepção de Mário que ficou no armazém.] Fiquei lá dentro e a água cada vez ia subindo mais! Às tantas, aquilo foi subindo tanto que eu já não tinha hipótese de fazer mais nada, e comecei a trepar pelas prateleiras. (…) Fui subindo pelos degraus das prateleiras, conforme a água ia subindo. E, quando vi que água ia subindo desmedidamente, tentei mergulhar para sair de casa. Mas, quando fiz o mergulho, havia tanta mercadoria envolvida, que não consegui sair! Pronto! Vi que ia ali ficar! Voltei para trás! Voltei, subi, tirei a mercadoria que estava no cimo da prateleira do meio e ali fiquei. Mas a água era tanta que a prateleira caiu para cima da outra! O que é que eu faço? Fui para a última prateleira que estava cheia de camisas de noite (…). Entretanto, como já estava todo molhado, atirei tudo para dentro de água, e (…) despi-me, vesti duas camisas de noite, de senhora, e fiquei ali até morrer. 125

Diário de Noticias, 29 de Novembro de 1967. Memória de Mário Sampaio in RAPOSO, Raquel; LOURENÇO, José Leitão; SANTOS, Alberto, A NOITE MAIS LONGA história e memória da cheia de 25-26 de Novembro de 1967, Alencultura editorial, Alenquer, 2017, p9. 201 a 205. 126

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(…) Entretanto, eu batia no tecto porque sabia que a minha mulher estava no primeiro andar e gritava: - Façam um buraco! Façam um buraco, porque eu vou aqui morrer! E nada acontecia! E quando estava já quase a desfalecer, eu disse: - Eu dou tudo o que tenho aos pobres! (…) Mas depois, eu já estava a prometer: - Vou a Fátima a pé!... A água, finalmente, começou a descer e Mário, que não era cristão praticante, foi a Fátima a pé!

Vila Franca de Xira. Castanheira do Ribatejo. Lugar de Quintas Vila Franca de Xira foi o concelho que mais vítimas mortais sofreu com as cheias de Novembro de 1967. Aí perderam a vida, segundo as fontes consultadas para este trabalho, cerca de 194 pessoas, nas localidades de Alverca, Alhandra, Castanheira do Ribatejo e Quintas.

Em Alhandra, a actriz Maria João Luís perdeu cerca de 30 familiares que viviam em zona de Lezíria. Tinha 5 anos quando a tragédia se deu. Durante anos, bloqueou as memórias do acontecimento e dos dias seguintes. Depois, as imagens do passado doloroso foram chegando. 50 anos depois, recorda os dias que se seguiram127: Pessoas que entravam em casa aos gritos, a chorarem e a dizerem que grande parte da minha família tinha ficado debaixo de água. A minha avó, tios meus, muitas primas, muitos primos. Tenho a memória da dor que aquilo foi e que se prolongou ao longo de muito, muito, muito tempo. Tenho a ideia de ver o meu pai sentado no sofá durante dois a três dias, com a cabeça entre as mãos. Cada vez que passava pela sala, ele estava na mesma posição e sempre que alguém entrava em casa era para dizer: «Olha morreu o teu irmão!»; «Morreu a tua prima!».

Por seu lado, a zona de Castanheira do Ribatejo e o lugar de Quintas foram as áreas da Grande Lisboa e, particularmente do concelho de Vila Franca de Xira, mais dramaticamente atingidas pelas inundações de Novembro de 1967. Quintas, pequena aldeia, situada num vale junto à encosta de um monte, próxima de Castanheira do Ribatejo e lugar de gente pobre, foi praticamente destruída pela tremenda tromba de água que sobre ela se abateu, com as águas do rio Grande da Pipa a inundarem as suas margens, semeando a morte e a destruição, transformando-a num pântano e necrópole de famílias inteiras.

127

RTP1, O Tempo que faz, Reportagem de Helena Matos, 24 Novembro 2017

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É incalculável o número dos que aí morreram. O jornalista Joaquim Letria, que esteve no local nesses dias fatídicos, contou 89 mortos. O Diário de Notícias avançou com o número de 90 para um universo de 156 habitantes e O Século assegurou que foram mais de metade dos seus 200 habitantes. Hoje, calculase que o número de mortos tenha rondado a centena, entre os já identificados e os por identificar. Morreram famílias inteiras. Era uma terra de primos, com relações familiares múltiplas, como uma grande família. Os sobreviventes perderam dezenas de familiares, entre pais, filhos, tios e primos. Foi considerada a aldeia mártir das cheias de Novembro de 1967. Segundo o historiador António Araújo, quando os bombeiros chegavam às casas onde havia mortos, olhavam impressionados para as mãos marcadas de lama nas paredes, sinais de uma tentativa desesperada, mas infrutífera, para alcançar o telhado das habitações.128 São vários os testemunhos da tragédia de Castanheira do Ribatejo e de Quintas. Passamos a transcrever alguns dos mais significativos:

Adelina Santos: Não há palavras, nem imagens, que descrevam esta autêntica catástrofe. Vi corpos desfilarem em macas, corpos transportados em escadas. Vi rostos com a máscara do pavor, homens e mulheres, crianças e jovens. Vi famílias inteiras que marcaram encontro com a morte. Morava em Castanheira do Ribatejo; Toda a noite, eu, os meus pais e os meus vizinhos ouvimos gritos. O meu vizinho Frederico e o meu pai foram buscar um casal e 2 meninas acima do telhado da casa, presos por uma corda um ao outro. A força da corrente era tal que sentiram coisas a bater-lhes no corpo e a escuridão era total. Depois, lembro-me de se emprestar roupa seca e de esperar o amanhecer. Os gritos que ouvimos eram das populações das quintas do vale do Carregado da Castanheira. No adro da igreja havia, pelo menos, 7 urnas. Nelas, estavam colegas que tinham andado comigo na primária. Na segunda-feira, quando fui para o ciclo em Vila Franca, a professora de Moral não deu aula porque estava na morgue improvisada de uma igreja a lavar os corpos que vinham do lugar das Quintas, Cadafais, Castanheira, Vala do Carregado e eram trazidas pelos funcionários da TUDOR e da METAL, duas fábricas que encerraram para que os seus funcionários fossem prestar ajuda. No lugar das Quintas, onde fui com o meu pai, alguns dias após a tragédia, marcou-me até hoje ver as impressões das mãos espalmadas em lama no teto das casas. Tinha 10 anos e não esqueci e por todos e para todos que haja uma oração, um pensamento de carinho por tanta dor (…).

129

128

ARAÚJO, António, «Agir» As cheias de 1967 e o progressismo católico português, 21 de Junho de 2017, Malomil Comentário de Adelina Santos a propósito das cheias de 1967, Facebook da Câmara Municipal de Lisboa, 26 Novembro 2014. 129

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Os bombeiros Iam às casas, tiravam os corpos, punham-nos no chafariz amontoados, como se fossem sacos de batatas. E dali levavam-nos para Vila Franca»,

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nos camiões da Câmara, para serem

preparados para os funerais.

Um a um, os cadáveres retirados das casas ou resgatados das águas foram sendo alinhados, todos muito juntos, no largo da aldeia para serem lavados da lama. Famílias inteiras deitadas lado a lado em cima dos escombros, no meio de caniços e raízes de árvores arrancadas ao chão.131

A escola primária de Quintas também não escapou à fúria das águas. Dela ficou uma ruína. Maria Manuel Prazeres Pereira, de 65 anos, era aí professora, há trinta e três. Naquela noite fatídica, perdeu o marido, a nora, uma afilhada e muitos dos seus alunos e ex-alunos. Com grande coragem, conseguiu sobreviver. O Século conta-nos dois episódios de coragem que envolvem aquela professora e o seu neto, de apenas 12 anos: 132 Aquela senhora encontrava-se com familiares na sala de jantar, quando foi surpreendida pela tragédia. Segundo nos contou, a água não demorou mais de 3 minutos a inundar toda a residência. Foi a nado que conseguiu sair da sala onde estava e, como entretanto a luz se apagasse, não soube da sorte dos que a acompanhavam. Sem perder a coragem, nadou em direcção à porta da rua por onde conseguiu sair. Fora, agarrou-se primeiramente a um tronco de uma árvore e depois a uma laranjeira por onde começou a subir. Depois de ter atingido o cimo da árvore, ali permaneceu ao frio e à chuva durante 6 horas. Um seu neto, Rui Manuel Garcia Pereira (…), deu igualmente provas de possuir uma grande força de vontade e muita coragem. Ao contrário da avó, não conseguiu sair de casa, tendo ficado preso dentro de um compartimento onde a água subiu acerca de 12 centímetros do tecto, deixando apenas, e mal, o espaço suficiente para pôr a cabeça de fora e respirar. Com os pés apoiados num móvel, nadando por vezes, agarrando-se ao que podia, aguentou-se durante muito tempo (…). [Segurou também] a prima Maria Angélica, doze anos mais velha (…), enquanto ele próprio ia respirando com muita dificuldade. Com a água já a descer muito lentamente, pôde então assentar definitivamente os pés num móvel e largar a Maria Angélica. Infelizmente a luta fora vã; tinha morrido entretanto, sem que o Rui Pereira tivesse dado por isso.

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Pública, de 23-XI-1997, p. 48 in ARAÚJO, António, As cheias de 1967 e o progressismo católico português, 21 de julho de 2017. 131 Expresso, Cheias de 1967, Reportagem de Joana Pereira Bastos, 11 Novembro 2017, pp. 24 a 32. 132 O Século, 28 de Novembro de 1967, p. 7.

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Maria Luísa Fajardo133, na época com 13 anos, perdeu 25 familiares: os avós, a irmã, tios e primos. Recorda que a sua irmã, Maria Teresa da Conceição Silva, de 14 anos, foi a primeira a chegar morta a Vila Franca de Xira, completamente nua e com um relógio no pulso, parado nas 1h e 50 minutos. A violência das águas ter-lhe-ia arrancado toda a roupa do corpo e só o relógio, preso ao pulso, escapou. Nesse dia, a sua mãe perdeu os pais e uma filha. Ficou de rastos a vida toda.

Os irmãos Luísa Fajardo e Ernestino Silva com a fotografia dos avós (José Pires Monteiro Duarte e Teresa da Conceição) e da irmã mais velha (Maria Teresa da Conceição Silva, de14 anos) que perderam a vida nas inundações de 1967. Fonte: Fotos de Ana Paula Torres

Actualmente com 63 anos, Luísa Fajardo sente a missão de não deixar que aquele drama colectivo caia no esquecimento. É a voz da terra e a voz dos que partiram naquele dia fatídico. Juntamente com outro vizinho que sobreviveu, está empenhada na recolha dos nomes de todas as vítimas, mesmo daqueles que estão por identificar. É a nossa forma de dar nome e dignidade àqueles que perdemos. Conta o Diário de Notícias 134 que centenas de pessoas se incorporaram nos funerais das vítimas. Os de Quintas foram os mais tristes, pela sua dimensão. Foram 100 funerais que partiram, no dia 28, de Vila Franca de Xira para o cemitério de Castanheira do Ribatejo: Seguiam em cortejos que, de tão numerosos,

133 134

SIC Notícias, Cheias de 1967 – 50 anos, 25 de Novembro de 2017 Diário de Notícias, 29 de Novembro de 1967, p.8.

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pareciam uma espécie de movimento perpétuo de homens, mulheres e crianças vestidas de luto, caminhando em passo cadenciado ao longo das estradas que levavam aos cemitérios.135 No próprio cemitério, fez-se o reconhecimento de muitos corpos. Em cada urna, colocou-se um papel com o nome e um número. Após a identificação possível de todos os corpos, teve lugar uma cerimónia religiosa. Helena Roseta, que também esteve presente no local, integrada nas brigadas de solidariedade enquanto estudante da JUC, recorda: O choque maior para mim foi ver passar os enterros seguidos e vermos nos jornais muito poucos mortos. Foi na altura que eu decidi na minha vida fazer uma opção. Houve uma consciência política que despertou»136. Diz Luísa Fajardo137que o negro permaneceu na aldeia durante muitos anos. Oito ou dez, pelo menos, tanto nos homens como nas mulheres. Conforme o tempo passava, maior era a saudade. Nós a querer fazer a nossa vida, a casar, a ter filhos, a ter netos, a querer compartilhar isso e a não ter com quem. Ninguém conseguiu ultrapassar, nem mesmo ao fim de 50 anos. Aquela testemunha recorda ainda que a várzea de Quintas (Foto 26), que se estendia à frente da rua mais vitimada pelas inundações (hoje, Rua 26 de Novembro de 1967), tinha plantações de vinha e de árvores de fruto que foram todas arrancadas pela raíz. Na madrugada de dia 26, aos olhos da então jovem Luísa, a várzea oferecia uma imagem de uma rara beleza, parecia um mar de prata com o brilho do orvalho da manhã sobre o mar imenso de lama que a cobria. Muitos anos mais tarde, em Novembro de 1996, foi erguida em Quintas, pela Junta de Freguesia de Castanheira do Ribatejo, a «Memoração toponímica» que abaixo de apresenta, em memória daqueles que ali perderam as suas vidas. Aí se pode ler:

Fonte Fotos de Ana Paula Torres 135

RTP1, O Tempo que faz, Reportagem de Helena Matos, 24 Novembro 2017 Depoimentos no programa televisivo Depois do Adeus, RTP, 17-II-2008 in ARAÚJO, António «Agir» As cheias de 1967 e o progressismo católico português, 21 de Julho de 2017, Malomil 137 Expresso, Cheias de 1967, Reportagem de Joana Pereira Bastos, 11 Novembro 2017, pp. 24 a 32. 136

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Na madrugada de 26 de Novembro de 1967 uma tromba de água de invulgar violência assolou toda a região de Lisboa. As cheias e as enxurradas consequentes subiram o caudal do Rio Grande da Pipa ao nível do primeiro andar no Largo das Quintas. Aqui pereceram tragicamente neste lugar de Quintas mais de cem pessoas. À sua memória aqui fica perpetuado o preito da nossa homenagem. J.F.C.R. Novembro 1996

Hoje, 50 anos decorridos, apesar das prudentes disposições e indicações contrárias por parte das autoridades municipais, toda a parte baixa de Quintas continua habitada. Algumas das casas inundadas foram recuperadas e acrescentadas com um andar superior. É o caso da habitação onde morreram muitos membros da família de Salustiano da Costa Mascote e que se pode ver na Foto 31.

Na margem sul Registaram-se também inundações nas zonas baixas de localidades na margem sul do Tejo como Almada, Barreiro, Costa da Caparica, Porto Brandão, Cova da Piedade, Trafaria, Torre da Caparica, Quinta de S. António, Laranjeiro e Feijó. A zona mais atingida foi a Trafaria, que sofreu enormes danos devido às fortes correntes de água e de lama que destruíram barracas de gente pobre, arrastrando os seus despojos pelas áreas circundantes. Cerca de 100 pessoas ficaram desalojadas.138 Rui Diniz, que então vivia junto ao quartel dos bombeiros da Trafaria, recorda esses dias dramáticos: Neste dia, perto das 20 horas, tocava a sirene dos B. V. da Trafaria para a chamada do pessoal. Eu tinha 16 anos, morava junto ao quartel, fui dos primeiros a chegar e a sair na viatura. Passei uma noite inesquecível. Cerca das 23 horas, já o salão do quartel estava cheio com [muitas pessoas] por terem perdido as suas habitações na zona do ribeiro. Fomos solicitados várias vezes pelas autoridades para recolher corpos que boiavam no rio. 139

138

O Século Ilustrado, 2 de Dezembro de 1967. Comentário de Rui Dinis propósito das cheias de 1967, Facebook da Câmara Municipal de Lisboa, 27 de Novembro de 2014. 139

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6. A explicação da tragédia. Da leitura oficial às leituras críticas A leitura do regime Na época, o imenso drama provocado pelas grandes cheias de 1967 provocou diversas leituras do fenómeno. A leitura oficial do mesmo, veiculada pela imprensa mais ligada ao regime salazarista, atribuía a culpa do fenómeno às causas naturais que escapavam à vontade dos homens e que, por si só, tinham provocado todo o sofrimento das populações. Era um discurso fatalista que diminuía o Homem perante as forças da Natureza, ao mesmo tempo que enaltecia a habitual solidariedade dos portugueses, que se disponibilizavam para apoiar os que tinham perdido tudo, ajudando nos bairros, recolhendo géneros alimentares e outros bens, fazendo peditórios e organizando subscrições públicas para acudir a quem necessitava de ajuda. A Nação sofrera a tragédia e a Nação, unida em bloco, prestava auxílio. Era um discurso que tendia a esvaziar de significado político a imensa dimensão da catástrofe e as suas consequências. Nessa imprensa mais ligada ao regime, como o Diário da Manhã, louvava-se a imensa «cadeia de solidariedade humana» que correra a prestar auxílio, «sem distinção de classes» e com imenso significado simbólico pois representava «a vitória do homem, que a natureza tinha esmagado». 140 Também o Boletim do Grupo dos Amigos de Lisboa exaltava os gestos de solidariedade humana que tinha unido as gentes na luta contra a tragédia141: Muita gente ficou sem os seus haveres, mesmo sem nenhuns, nem sequer com o tecto a que se abrigava, mas se algum conceito proveitoso é possível extrair de tamanha e tão impiedosa calamidade, assinale-se o movimento de solidariedade humana, que se formou em favor das populações atingidas. Desde as múltiplas subscrições, de fundos e de artigos de auxílio, até à prestação individual de socorros e de assistência moral, pode dizer-se que esse movimento teve uma grandeza igual à grandeza da tragédia. (…) Não se pode dizer mal dum povo que assim procede na hora da desdita. Assinalemos, pois, que houve uma grande calamidade pública, mas houve também um expressivo e eloquente movimento de solidariedade nacional.

140

Diário da Manhã cit. in A Gazeta de Miraflores, http://gazetademiraflores.blogspot.pt/2012/10/as-cheias-denovembro-de-1967-em-alges.html. 141 OLISIPO, Boletim do Grupo Amigos de Lisboa N.º 120-ANO XXX-Outubro/ Dezembro 1967.

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Diário de Notícias Também o Diário de Notícias, reflectindo sobre a tragédia num artigo intitulado «Autópsia» de um Fenómeno, na sua edição de 5 de Dezembro, apontava como naturais as causas da tragédia, mas alargava a explicação do fenómeno a outras situações. No que se refere ao fenómeno atmosférico verificado, a região de Lisboa não teria sido vítima de uma tromba de água, mas do choque entre uma depressão que, estacionária desde o dia 20 sobre a região da Madeira, se tinha deslocado, a partir de dia 24, em direcção à região de Lisboa, chocando com um sistema frontal que precedia uma massa de ar polar, de origem marítima. O choque dos dois sistemas teria produzido uma queda da pressão atmosférica com a queda de grande precipitação, levando à catástrofe que atingiu Lisboa e arredores. Para além daquela extraordinária coincidência de factores adversos, o Diário de Notícias apontava para outras causas, relacionadas com má gestão do território. Dizia aquele jornal, na sua edição de 27 de Novembro: Perante a gravidade dos acontecimentos que ocorreram nas últimas 48 horas em Lisboa, perante as cheias que se verificaram, uma vez mais, em toda a cidade baixa e, particularmente, até nalgumas das zonas de norte – portanto, afastadas do Tejo e em cotas muito mais elevadas do que a sua margem -, ocorre-nos perguntar se não estará alguma coisa profundamente errada no sistema de esgotos da capital. O jornal identificava alguns dos possíveis problemas que afectavam negativamente aquele sistema de esgotos, nomeadamente a falta de grandes colectores que drenassem a água da cidade; e a prioridade dada às obras públicas valorizando a construção das grandes avenidas e prédios luxuosos, em detrimento das infraestruturas de escoamento da água da cidade. Já na época, esse facto era denunciado por alguma imprensa. O Diário de Notícias esboçava ainda uma interpretação mais social do fenómeno, mas para se manter dentro dos limites permitidos pela Censura, destacava a ligação entre o Estado e a Nação na superação da tragédia:142 Não ousamos considerar a tragédia como específica prevenção ou particular castigo. Poupou os que mais seguramente vivem, quase apenas vitimando gentes humildes, destruindo casebres, utensílios de trabalhadores, roupas e móveis de pobres. Foi uma tragédia! O Estado interveio paternalmente. Enterrou os mortos com devoção e cuidará dos vivos devotamente. A Nação sem Estado nem caravana seria. O Estado sem Nação não passa de hipótese absurda. 142

O Diário de Notícias, 5 de Dezembro de 1967.

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O Século O Século não apresentou nenhuma análise particular em relação às inundações e às suas consequências, mas, numa pequena nota, não deixou de fazer referência às velhas habitações, leia-se, as mais pobres, os bairros de barracas, como as que mais sofreram com a intempérie o que, naturalmente, o leva à conclusão que teriam sido as classes mais humildes as que mais sofreram com a tragédia de Novembro de 1967.143

Flama A revista Flama foi um dos meios de comunicação que, na época, assumiu uma das posições mais críticas sobre a tragédia, realçando a desigualdade social que estaria na base da desigual consequência das cheias nos vários bairros da região de Lisboa. A revista destacou o facto de a tragédia ter ocorrido sobretudo nas zonas pobres dos bairros suburbanos da zona de Lisboa, qualificando eufemisticamente a pobreza com expressões como casas modestas com tectos humildes que começavam a meter água que não resistiram à intempérie, em contraste com a Lisboa mais abastada que seguia para o cinema ou refastelava-se na poltrona caseira, assistindo ao famigerado folhetim «Gente Nova», à espera de mais uma aventura do «Santo». 144

Comércio do Funchal O Comércio do Funchal foi talvez a publicação legal que mais ousou desafiar a Censura, apontando as causas sociais que teriam reforçado a dimensão trágica daqueles dias. Dizia: 145 Nós não diríamos: foram as cheias, foi a chuva. Talvez seja mais justo afirmar: foi a miséria, miséria que a nossa sociedade não neutralizou, quem provocou a maioria das mortes. Até na morte é triste ser-se miserável. Sobretudo quando se morre por o ser. (…) Na realidade, a água foi muita. Foi sem sombra de dúvida a grande culpada da catástrofe, mas se as «casas» (barracas) fossem verdadeiras casas teriam sido arrastadas pelas águas? Este jornal era, pelas suas posições críticas, um dos alvos habituais do regime, estando muitas vezes, suspenso por vários meses.

143

O Século, 26 de Novembro de 1967. Flama, 1 de Dezembro de 1967. 145 Comércio de Funchal, 10 Dezembro de 1967. 144

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Em Julho de 1968, em correspondência enviada ao Subsecretário de Estado da Presidência do Conselho, a Censura alertava: O Semanário «Comércio do Funchal» exerce uma acção de doutrinação política que se estende para lá do território do Funchal e se julga dirigir-se sobretudo a leitores de certos círculos do Continente.146 A Censura não se enganava porque a grande maioria dos leitores daquele jornal não estava concentrada na Madeira, mas dispersa por todo o país. Integrava todos aqueles que se opunham ao regime do Estado Novo. Era lido pelos oposicionistas de diferentes sectores e pelos estudantes mais politizados, que nele procuravam informação que sabiam não poder encontrar na imprensa mais controlada pelo regime. Era esta a realidade em 1967 e assim continuaria até à queda do Estado Novo, em Abril de 1974. O jornal tinha assinantes e a autora deste trabalho era um deles, recebendo o jornal em casa. A Censura tinha razão. O Comércio do Funchal tratava temáticas proibidas e deixava sementes de contestação nos seus leitores.

O Solidariedade Estudantil O Solidariedade Estudantil, publicação da Associação de Estudantes do Instituto Superior Técnico (ver 11. 2) era outra das vozes mais críticas que denunciava as causas sociais da tragédia de Novembro. Segundo aquele jornal, a dimensão dramática do desastre, com grande número de perdas humanas e materiais, bem como o enorme contingente de desalojados, devia-se sobretudo a condições sociais, económicas e administrativas bem concretas. Salientavam, entre outras: as insuficiêncientes condições em que viviam grande parte das populações em bairros e lata com precárias habitações como barracas, casebres e até grutas; uma quase total ausência de sistemas de segurança e de socorro; uma previdência social muito incipiente, incapaz de organizar o apoio às vítimas; uma ausência de medidas para a estabilização das terras e para a protecção face ao aluimento das mesmas; insuficientes redes de escoamento das águas; ausência de medidas para combater inundações; inexistência de medidas para prevenção de epidemias.147 O Solidariedade Estudantil criticava também aquilo a que chamou «mobilização moral» feita de votos de pesar e de solidariedade, de subscrições ou de doação de créditos que não resolviam, no imediato, os problemas das populações que exigiam, antes, uma ajuda imediata e efectiva no terreno, o que não aconteceu. 148 146

Censura do jornal Comércio do Funchal, Arquivo Oliveira Salazar, Correspondência, Presidência do Conselho, ATT. 147 O Solidariedade Estudantil nº 2, de 5 de Dezembro de 196. 148

Solidariedade Estudantil, nº 1, 4 de Dezembro de 1967, citado por DUARTE, Marta Benamor, Foi Apenas Um Começo. A Crise Académica de 1969 na história do movimento estudantil dos anos Sessenta e da luta contra o

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Caderno de Reflexão da J.U.C. A J.U.C, habituada a questionar-se perante a vida a partir de textos religiosos, decidiu dedicar o nº 1 dos seus Cadernos de Reflexão ao tema das inundações de Novembro de 1967, procurando uma explicação que permitisse aos seus membros alcançar um «visão global do problema», ou seja, «uma procura das causas». Assinava aquele Caderno, António Cavaco, João Duarte Cunha, Lenicha Salema (Helena Roseta) e Pedro Roseta. Reforçando a sua análise à tragédia então verificada, o texto incluía entrevistas aos arquitectos Gonçalo Ribeiro Teles e Nuno Portas.

149

Identificado o «agente directo» que tinha feito desencadear os acontecimentos dramáticos de Novembro (as grandes chuvadas), o Caderno150 centrou a sua atenção nos espaços mais atingidos (as habitações das pessoas) e relacionou umas e outras «com causas estruturais que já podiam ter tido resolução». Apontou, depois, dois tipos de causas fundamentais que teriam contribuído para aumentar a carga dramática daquelas inundações: «causas económicas e demográficas» e «deficiências de ordem educacional». Relativamente às primeiras, podia ler-se naquele Caderno de Reflexão151: Ora, parece-nos dever ser considerado o baixo nível de vida das populações daquelas regiões como uma das causas da extensão que tomou o sinistro 25 de Novembro. Em primeiro lugar, porque tal nível explica em parte o tipo de habitação utilizado (nomeadamente as barracas); em segundo lugar porque a quase inexistência, entre a população aí fixada, de pessoas trabalhando no sector terciário, em especial com formação universitária, facilita a falta de vida própria nas localidades, reduzidas à condição de «dormitórios» de uma população flutuante. Esta ideia era reforçada pelo arquitecto Nuno Portas, entrevistado naquele texto, com o apoio de dados estatísticos, retirados dos Censos152. «Por efeito do encarecimento constante do custo do alojamento na cidade de Lisboa – a que não são estranhas a especulação dos terrenos e a destruição da capital constituída pelas demolições – os indivíduos com menores créditos são forçados a irem habitar nos aglomerados suburbanos (…). Desenvolve-se, por consequência, um processo de «segregação» em zonas habitacionais por motivos Estado Novo, Dissertação de mestrado em História Contemporânea (séc. XX), Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, 1997, p.174. 149 Caderno de Reflexão, nº 1, Editado pelas Direcções Gerais da J.U.C., p.7 150 Ibidem. 151 Ibidem. 152 Ibidem.

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económicos, acabando as camadas populares de menores recursos por se concentrarem predominantemente em zonas de cintura. Crescimento da População urbana e suburbana de Lisboa 1950

1960

% Crescimento

Lisboa (cidade)

790. 434

817.326

9,3

Aglomerado suburbano (Concelhos de Cascais, Loures, Oeiras, Sintra, Almada, Moita, Seixal

346, 118

534.716

4,5

e freguesias de outros lugares) Fonte: IX e X Recenseamentos Gerais da População, cit. in Caderno de Reflexão, nº 1, Editado pelas Direcções Gerais da J.U.C., p.7

Relativamente ao outro tipo de causas apontado, as «Deficiências de ordem educacional», podia lerse153: Finalmente, por detrás do baixo nível económico e agravando as consequências do afluxo migratório à região, surge a falta de qualificação da mão-de-obra aí existente. Em primeiro lugar, porque isto impede a ascensão a melhores posições económicas; em segundo lugar, porque, por falta de campanhas de educação de base e deficiências de informação, desconhecem a forma de actuar face às novas condições do meio para que migraram e ignoram os perigos de construir e habitar em certas zonas, bem como os cuidados a ter no campo sanitário (…). Relativamente à acção de apoio das autoridades logo após a tragédia, o Caderno de Reflexão reconhecia a importância dos inquéritos realizados, que considerava como «úteis e necessários» para uma acção concertada, mas receava que da investigação não se avançasse logo para o apoio imediato às populações. Criticava ainda a pesada máquina administrativa do regime e lamentava que as autoridades, nos momentos imediatos à tragédia, não tivessem criado «centros de socorro e auxílio pelo menos ao nível da freguesia».154

Avante! Naturalmente, o jornal clandestino Avante!, do Partido Comunista Português surgia como outra das vozes críticas, relacionando a tragédia de dia 25 com o desinteresse ambiental do Governo e com a sua ineficaz política de habitação, marcada por um fraco investimento na construção de casas, obrigando as

153 154

Caderno de Reflexão, nº 1, Editado pelas Direcções Gerais da J.U.C., p.8 Caderno de Reflexão, nº 1, Editado pelas Direcções Gerais da J.U.C., p.7

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populações a construírem as suas próprias barracas, muitas vezes em zonas impróprias para serem urbanizadas. Dizia, o Avante, no seu número de Dezembro daquele ano:155 As inundações que na noite de 25 de Novembro assolaram a região de Lisboa, provocando a morte e a destruição numa vasta área, não teriam originado semelhante tragédia se o governo se tivesse preocupado em resolver o problema da habitação para os trabalhadores, se tivesse cuidado da regulamentação dos rios e da defesa das populações ribeirinhas, se tivesse tomado as medidas de emergência que as circunstâncias impunham. Nessa perspectiva, o Avante denunciava o drama social revelado pelos números da tragédia, ou seja, a miséria das populações como um dos factores que tinha contribuído para o número tão elevado de vítimas e para a distribuição geográfica das vítimas: Porque não foram destruídos pelas chuvas diluvianas os bairros residenciais de Lisboa, mas sim os bairros da Urmeira, Olival Basto, Pombais da Pontinha, Quinta do Silvado, Odivelas e outros? Porque nestes bairros se acumulavam milhares de trabalhadores sem possibilidades económicas para pagar elevadas rendas e que se viram forçadas a construir as suas próprias barracas de lata (…). Os bairros arrasados encontravam-se situados em zonas baixas, circundadas de colinas, facilmente inundáveis, construídos de tábuas e latas que a chuva diluviana arrastou como frágeis barcos sem leme. Aquele jornal, como resposta à crise, apelava à mobilização das populações, dirigindo-se sobretudo aos operários, aos camponeses, à juventude e aos democratas para que, tomando consciência política da situação do país, se organizassem a fim de prestarem apoio às zonas mais atingidas pela intempérie.156 Não temos conhecimento de uma participação organizada do próprio Partido Comunista no apoio às vítimas. Aparentemente, limitou-se a denunciar a situação de miséria em que vivia parte da população e da crítica ao regime da ditadura que, para além de incompetente, desprezava o sofrimento dos mais pobres.

Portugal Socialista Este jornal clandestino, ligado à Acção Socialista Portuguesa em 1967 (em 1973, iria surgir como Órgão Central do Partido Socialista) fez também referência às inundações de 1967, denunciando a miséria das populações como uma dos factores que teria reforçado o drama da tragédia então verificada:

155

Avante!, Série VI – Nº386 Dezembro de 1967 ACCORNERO, Guya, Efervescência Estudantil. Estudantes, acção contenciosa e processo político no final do Estado Novo (1956-1974). 156

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As catástrofes naturais são quase sempre imprevisíveis e, em larga medida, inelutáveis. Mas, por vezes, põem em realce erros que vêm de longe – até crimes! – que são imputáveis aos homens, porque são o resultado directo de uma política retrógrada, feita em detrimento das classes desfavorecidas. Foi o que aconteceu na região de Lisboa na noite de 25 de Novembro último! Duas horas de chuva torrencial provocaram «468 mortos oficialmente confessados» (cerca de um milhar segundo é voz corrente). Ora as zonas atingidas não foram os bairros «visíveis» de Lisboa: foram os bairros de lata, que estão escondidos, as construções clandestinas, sem condições de segurança e de salubridade, as barracas, os tugúrios em áreas sem esgotos e sem infraestruturas, onde se alberga em condições de miséria e de promiscuidade incríveis, grande parte da população trabalhadora da capital. 157

Ribamar e Notícias da Amadora

Fonte: Ribamar, semanário de Algés

Os jornais Ribamar e Notícias da Amadora, do concelho de Oeiras, davam também testemunho da tragédia que se abatera sobre as populações. O Ribamar, de Algés, para além das cinco palavras com que anunciava os tristes acontecimentos, não se afastava muito da posição oficial marcada pelo fatalismo de uma Natureza que fora cruel com as populações do concelho e de outras áreas da Grande Lisboa.

157

Portugal Socialista, 1 de Dezembro de 1967.

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Fonte: Censura 16 - Inéditos do Arquivo de Censura do Notícias da Amadora (1958-1974), Nº 26, 30 de Outubro de 2003, Arquivo & Biblioteca da Fundação Mário Soares.

O Notícias da Amadora,

158

publicado no mês a seguir à tragédia, dava mais informações sobre os

acontecimentos e assumia uma posição mais crítica face aos mesmos, denunciando o problema da habitação, nomeadamente a existência de barracas, como um factor que, por si só, teria contribuído para tornar ainda mais dramática a tragédia que se abateu sobre as populações. Do excerto que se segue, como se pode ver na 1ª imagem que o acompanha, a palavra «barraca» aparece sempre riscada pela Censura. Neste momento em que ainda não se apagaram os efeitos nem os ecos da tragédia da noite de 25 para 26 de Novembro, um problema ressalta como pungente: o da habitação. A acção destruidora das águas não escolheu nem tipos de habitação, nem locais, nem homens. E se muitos casos são dolorosos, um é o mais pela sua natureza e pela natureza económica das pessoas que nela habitam: a BARRACA. Mais uma vez o problema se põe e mais uma vez são as instituições oficiais e particulares locais levadas a não resolver o problema (…), mas a atamancá-lo. (…) O problema da habitação está directamente ligado com ao problema da flutuação das populações e ao seu êxodo das terras interiores.

158

Censura 16 - Inéditos do Arquivo de Censura do Notícias da Amadora (1958-1974), Nº 26, 30 de Outubro de 2003, Arquivo & Biblioteca da Fundação Mário Soares.

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O problema da barraca (…) não pode ser resolvido ao nível local porque envolve premissas intransponíveis (…) de carácter técnico, económico e social. Já, no ano anterior, aquele jornal tinha alertado para o problema da habitação num artigo totalmente vetado pela Censura, como também podemos ver na 2ª imagem acima. Nesse artigo, o jornal dizia159: O problema habitacional na nossa terra, encontra-se ainda longe de uma solução razoável. (…) Não só a maioria dos portugueses não possui casa condigna, como se vê obrigada a pagar rendas que encontram muito acima do que lhes permite o seu orçamento privado. E isto que se passa nos centros urbanos pode, em certos aspectos, ser também observado nas pequenas vilas e cidades e até nas zonas rurais. (…) Há também, os variadíssimos casos de bairros inteiros (quase pequenas cidades) desconfortáveis barracas; estes plantados, sobretudo, na periferia das grandes cidades.

7. Reflexão posterior. Factores que agravaram a tragédia 7.1. Ambientais e urbanísticos, gestão do território Muitos anos depois das cheias de 1967 e sempre que se aproxima o seu aniversário, especialistas voltam a reflectir sobre a tragédia e a apresentar razões justificativas da mesma. Os factores meteorológicos são, naturalmente, a primeira de todas as causas. Em 1968, Ilídio Amaral, em Finisterra - Revista Portuguesa de Geografia, resumia o que então aconteceu e dá-nos os valores reais da precipitação que, na época, se abateu sobre a região de Lisboa:160 As inundações resultaram de quedas de águas brutais resultantes de um sistema depressionário formado na região do arquipélago da Madeira e que, desde 24 de Novembro, se começou a deslocar para nordeste em direcção a Lisboa. Aos efeitos deste sistema juntou-se os de um sistema frontal que precedia uma massa de ar polar, de trajecto marítimo, transportada na circulação de um anticiclone centrado a norte dos Açores, deslocando-se com vento forte ou muito forte. Ao atingir a zona da Grande Lisboa, a depressão provocou uma queda da pressão atmosférica com a queda de grande precipitação e que teve intensidade máxima das 19h (dia 25) à 1h (dia 26).

159

Censura 16 - Inéditos do Arquivo de Censura do Notícias da Amadora (1958-1974), nº 35, 29 de Julho de 2004 Arquivo & Biblioteca da Fundação Mário Soares. 160 AMARAL, Ilídio, As inundações de 25/26 de Novembro de 1967 na região de Lisboa, Finisterra – Revista Portuguesa de Geografia, vol. III,N.5, Lisboa, 1968, p.80-84.

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Níveis de Pluviosidade Horário Localidades Aeroporto

19h (dia 25) à 1h (dia 26)

10h (dia 25) às 10h (dia 26)

77,5mm

109,4mm

Monte Estoril

129,7 mm

S. João do Tojal (Loures)

115, 3 mm

158,7mm158,7mm 1/5 da precipitação média anual 131,9mm

Em 2001, Catarina Ramos, na mesma revista de Geografia, avançava com novas explicações para aquele fenómeno. 161 A autora identificava e distinguia dois tipos de cheias, as «Cheias Progressivas» e as «Cheias rápidas». As primeiras corresponderiam a longos períodos de chuvas abundantes que podiam durar semanas, mas que não se revelavam um perigo para as populações. As segundas, pelo contrário, por serem causadas por chuvas fortes e concentradas em curtos espaços de tempo, eram consideradas perigosas e morítiferas. Eram identificadas como «gotas de ar frio» por serem trazidas por depressões que provinham de invasões de ar frio (polar ou ártico) em altitude que se estendiam até às zonas subtropicais. Segundo aquela investigadora, integravam-se nessa classificação as cheias de 1967 (região de LisboaLoures), 1983 (região Lisboa-Cascais) e 1997 (Alentejo e Algarve). A explicação meteorológica não é, contudo, a única explicação que é dada para compreender o que aconteceu em Novembro de 1967. Todos os especialistas que têm estudado o assunto convergem para um conjunto de factores que terão contribuído para a dimensão dramática daquelas cheias. Seguem-se as causas mais apontadas, algumas delas já apresentadas nos anos seguintes à catástrofe:

162

- Coincidência da chuva intensa entre os dias 25 e 26 de Novembro, com a preia-mar do rio Tejo; - Áreas reduzidas das bacias hidrográficas da região de Lisboa; - Destruição anterior de grande parte da vegetação natural das regiões (matas e matos);

161

RAMOS Catarina; REIS, Eusébio, As Cheias No Sul de Portugal em Diferentes Tipos de Bacias Hidrográficas, Finisterra - Revista de Geografia Portuguesa, XXXVI, Lisboa, 2001, p. 61-82. 162 AMARAL, Ilídio, As inundações de 25/26 de Novembro de 1967 na região de Lisboa, Finisterra – Revista Portuguesa de Geografia, vol. III,N.5, Lisboa, 1968, p.80-8; DIAS, J. Alveirinho, Casos de Estudo. As cheias de Novembro de 1967 em Lisboa in Geologia Ambiental; DESTAK, População teme uma cheia do Jamor "muitíssimo" pior do que a de 1967, Margarida Novo, 2010; LARGO DOS CORREIOS, PORTALEGRE, História das Cheias na região de Lisboa (António M. de Azevedo Coutinho), 30 de Novembro de 2013; METEOPT.COM, Fórum de Meteorologia, 26 de Novembro de 2007; VENTURA, José Eduardo, Áreas urbanas, uso do solo e protecção ambiental, Centro de Estudos de Geografia e Planeamento Regional/FCSH/UNL, VI Congresso de Geografia Portuguesa, Lisboa, 17 a 20 Outubro de 2007.

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- Abandono de terrenos de agricultura; - Forte crescimento populacional na região de Lisboa, grande parte proveniente do mundo rural e de baixos recursos que ocupava espaços que desconhecia; - Ocupação desordenada dos solos pelas populações em lugares desadequados, como encostas em zonas de várzeas ou no fundo dos vales e depressões em lugares propícios à agricultura, mas onde ocorriam inundações e deslizamento de terras; -Construção de muitos edifícios em zonas impróprias, muitas sobre as linhas de água; - Proliferação de habitações clandestinas, de casas muito pobres, de má construção e inadequadas para enfrentar intempéries; -Promotores imobiliários preocupados com o negócio e que ignoravam ou desvalorizavam os condicionalismos ambientais; - Construção de muros, sebes e aterros transversais às linhas de água, que passaram a comportar-se como diques; - Alteração dos solos em virtude de uma densa ocupação urbana. Terrenos anteriormente com um bom escoamento de águas, tornaram-se quase impermeabilizados com as construções e pavimentação das ruas; - Sistemas de drenagem fluvial mal dimensionados e com deficiente manutenção; - Desvio de riachos e de ribeiras também entubados e, em grande parte, subterrâneos; - Canalização de certos troços das ribeiras, sem garantia de escoamento; - Falta de limpeza de rios e ribeiras e acumulação de lixos de natureza diversa em zonas de cheias habituais e em pedreiras; - Ocupação de caves para habitação e para o comércio, rapidamente inundadas quando as águas atingiam alguns metros de altura; - Impacto de detritos de grandes dimensões arrastados pela corrente de água e de lama, que destruíram outras estruturas; - Insuficientes esgotos urbanos; - Estradas mal delineadas; - Resposta desadequada das autoridades que, após as cheias, apenas se preocupavam em restabelecer a normalidade e a produzir legislação para ultrapassar a situação, mas que nem sempre era posta em prática. Tendencialmente, seguia-se um período de apatia com o abrandamento das medidas que pudessem evitar a repetição da catástrofe, sobretudo as estruturais que, apesar de legisladas, não eram aplicadas; - Os interesses locais que tendiam a não respeitar a legislação em vigor, avançando com projectos de urbanização e obras nem sempre no cumprimento das normas estabelecidas. 81


Conhecendo esta deficiente realidade ambiental, vários especialistas, entre os quais o arquitecto Gonçalo Ribeiro Telles, tinham já alertado os poderes públicos e a opinião pública em geral para a possibilidade de poderem vir a ocorrer situações de grande tragédia nas zonas mais sensíveis. Em 1972, no programa televisivo TV Rural, aquele arquitecto voltou a alertar para o mesmo perigo163: Nós temos que fugir de urbanizar extensões muito grandes, extensões muito amplas nas zonas com grandes declives porque estamos a criar condições de velocidade de escoamento das águas de tal forma violenta e grande que, nos pontos críticos, quando chegarem aos esgotos e aos vales afluem grandes caudais ao mesmo tempo que provocam evidentemente a inundação nesses vales. Suponhamos ainda que esses vales estão, por sua vez construídos também e, então, encontramos agora na zona da ribeira, na zona do rio que era a zona por onde se fazia mais o escoamento, a drenagem e menos a infiltração, a construção humana a comportar-se como diques que rebentam e que provocam a retenção das águas nesse vale. Foi exactamente isto que se passou em 1967, no Olival Basto. E continuava então: As águas que correm nos rios e ribeiros são provenientes da chuva. A chuva cai sobre a cidade e cai sobre o campo. A cidade e o campo são construções do Homem. A sua construção ou é sábia e positiva em benefício da comunidade ou profundamente negativa e em benefício apenas de alguns. Os portugueses que vivem (…) principalmente no sul, em que as quedas pluviométricas são irregulares e não muito abundantes, necessitaram sempre de construir uma paisagem em que a retenção das águas é sempre um motivo constante. Havia que reter para tirar o maior proveito dessa água e não conduzi-la o mais rapidamente possível para os rios grandes e depois para o oceano. (…) A retenção da água faz-se hoje em grandes albufeiras e faz-se também de uma forma agora menos visível pela infiltração que (…) irá alimentar as nascentes e que irá, eventualmente, mais tarde, correr nos rios, mas depois de ter um longo caminho. Se nós destruirmos esse longo caminho da água na nossa paisagem, nós estamos a criar de facto um problema de destruição dessa paisagem e a provocar a vitória das forças antagónicas da Natureza. O que se passou de facto na inundação [Novembro de 1967] é, em grande parte, a obra negativa do Homem.

163

Arquitecto Gonçalo Ribeiro Telles, Há só uma Terra, TV Rural, 1972 https://www.youtube.com/watch?v=sH0pI3Om1uk

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Se a mesma queda pluviométrica que se verificou em 67, se verificar nos nossos dias podemos ter a certeza, como não se emendou a mão a esse sentido negativo de construção da paisagem, podemos ter a certeza que as consequências hoje serão mais nefastas do que foram então. Talvez morra menos gente, porque pode ser que a queda pluviométrica seja de dia e seja numa altura em que população esteja mais alertada, agora a destruição física da paisagem será com certeza mais violenta.

7.2. Sociais – a pobreza que as cheias revelaram Os dados registados da pluviosidade revelaram uma surpreendente contradição entre as zonas onde ela ocorreu com maior intensidade e aquelas onde os efeitos sobre as populações foram mais dramáticos. Segundo o Relatório que José de Azeredo Perdigão apresentou à Fundação Gulbenkian sobre a avaliação dos estragos provocados pelas cheias, as chuvadas que ocorreram sobre grande parte das zonas afectadas da Grande Lisboa tiveram um frequência provável de uma vez em vinte e cinco anos [provocou a morte de centenas de pessoas, desalojou milhares, para além de imensos prejuízos materiais] e as de igual duração que ocorreram no Monte Estoril tiveram a frequência provável de uma vez em cem anos, [apenas aí se registando danos ligeiros].164 Em Oeiras, a zona da Ribeira da Laje foi um dos lugares mais atingido pela tragédia, habitado por populações que viviam em barracas construídas junto a perigosas zonas de cheias, gente pobre vinda das zonas rurais que desconhecia completamente o perigo da zona geográfica que ocupava. Para além disso, era uma população vítima da especulação de quem arrendava, naqueles espaços, aquelas modestas habitações. O Padre Fernando Martins, então, pároco de Oeiras, recorda ainda hoje a pobreza das suas gentes, umas a viverem em barracas, outras em grutas nas ribanceiras encostadas ao cemitério. Helena Abreu, moradora em Algés, que acompanhou a mãe vicentina no socorro às populações desalojadas em vários espaços em Algés (Palácio Anjos), no Dafundo (pavilhão desportivo do ISE) e, em Lisboa, recorda a imagem que lhe ficou das pessoas que viram as suas barracas serem destruídas pela fúria da água e da lama: Lembro-me do espectáculo desolador das pessoas que lá dormiam, da pobreza, da distribuição de roupas, da tal sopa servida em malgas. 165 Como já fizemos referência na rubrica anterior, só alguma imprensa da época (Flama, Comércio do Funchal, Notícias da Amadora), jornais universitários (Solidariedade Estudantil, Cadernos de Reflexão da 164

IV Relatório do Presidente, 1 de Janeiro de 1966 - 31 de Dezembro de 1968, José de Azeredo Perdigão, Fundação Calouste Gulbenkian, p. 63 165 Helena Abreu, depoimento na Biblioteca Municipal de Algés, 15 de Setembro de 2016

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JUC) e a imprensa clandestina (Avante e Portugal Socialista) é que apontaram a pobreza das populações como um dos factores que teria contribuído para aumentar a dimensão da tragédia desencadeada por aquela tremenda queda de água.

8. A acção das instituições oficiais no apoio às vítimas da catástrofe 8.1. Autoridades governamentais, distritais e municipais. O silêncio de Salazar Surpreendido pela violência das águas e da lama e pelos desastres humanitários que estavam a provocar, numa primeira fase, o regime ficou apático e impotente. Não teve a capacidade de resposta que as circunstâncias exigiam. É verdade que, a partir do dia 26 de Novembro, se sucederam reuniões governamentais, comunicados à imprensa, reuniões das direcções das instituições oficiais, visitas dos ministros e outras personalidades aos concelhos mais atingidos, discursos de promessas de auxílio, mas faltou a acção concentrada e imediata de serviços que interviessem, no imediato, naquela situação de catástrofe. Faltaram acções imediatas de alerta, de socorro e de salvamento. Rapidamente se comprovou que nem Governo nem Câmaras Municipais estavam preparadas para fazer face à situação de catástrofe que se veio a desenvolver de uma forma muito rápida. Os socorros oficiais revelaram-se demorados e claramente insuficientes, incapazes para ajudar a minorar o sofrimento das populações. Durante os primeiros dias, aquelas contaram, no terreno, quase exclusivamente com o auxílio das várias corporações de bombeiros, de alguns contingentes militares, dos estudantes, de gente anónima e de si própria. Só depois chegaram as autoridades.

Antes de analisarmos as medidas tomadas pelas mesmas, convém perceber a situação do país na época, em termos da assistência às populações que assentava, sobretudo, numa lógica assistencialista descontínua e pontual. A Constituição Portuguesa de 1933, o texto constitucional do Estado Novo, não incluía o «direito» à assistência pública, apesar de atribuir ao Estado um papel coordenador das actividades sociais na defesa da saúde pública, da família e na melhoria das condições de vida das classes sociais mais desfavorecidas. Não havia um Estado Social, nem a consciência de que o Estado era responsável pelos seus cidadãos.166

166

PIMENTEL, Irene Flunser, A assistência social e familiar do Estado Novo nos anos 30 e 40, Análise Social, vol. XXXIV (151-152), 1999 (2.º-3.º), 479

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De 1937 até ao fim da Segunda Guerra Mundial, o regime ensaiou algumas reformas dos serviços de assistência às populações, mas que ficaram sempre muito limitadas, em termos de eficácia, pelos princípios corporativistas que continuavam a marcar a ideologia do Salazarismo. Diz Irene Pimentel que a assistência social foi reorganizada em 1945 com a criação de um enorme aparelho burocrático que integrava, no âmbito do Subsecretariado de Estado da Assistência Social, uma infindável quantidade de serviços, na proporção oposta à escassa assistência prestada167. Continua, aquela historiadora: A assistência caberia, assim, em primeiro lugar, ao espírito caridoso dos Portugueses e à iniciativa particular e só depois ao Estado. Reconhecia-se o pioneirismo de Beveridge ao proclamar na Grã-Bretanha, em 1942, «o escândalo da miséria» e ao rever as políticas utopistas da filantropia do século XIX, mas lembrava-se que a indispensável assistência pública não podia «suprir a assistência particular» nem impossibilitar a beneficência individual. O mais sensato num país onde (…) a miséria não tinha atingido «o grau verificado em outros países» e onde o povo se contentava com pouco, apesar do baixo nível de vida, seria «procurar modificar a mentalidade tradicional» e tornar a assistência «mais assente no dever de todos» do que «no direito dos pobres».168 A verdade é que, entre os anos 30 e o início dos anos 60, a ideologia corporativista continuou a marcar a forma de os cidadãos (integrados em corporações) receberem ajuda do Estado, não obstante ter havido tentativas de caminhar para um sistema mais abrangente, coordenando assistência e previdência social. A partir dos anos 50, as organizações do Estado Novo responsáveis pela assistência social passaram a ser o Instituto de Assistência à Família (1955), o Ministério das Corporações e Previdência Social (1956) e o Ministério da Saúde e Assistência (criado em 1958, mas apenas estruturado em 1971, incorporando o Subsecretariado de Estado da Assistência Social). 169 Enfim, um sistema confuso, muito burocrático e pouco eficaz, que continuava a impor a visão anacrónica do corporativismo àqueles que aspiravam já a uma segurança social mais universal. O Welfare State só viria a emergir no novo Portugal democrático, depois de 1974.170

A primeira reação do regime aos acontecimentos provocados pelas cheias aconteceu logo no dia 26, com uma comunicação à Imprensa, informando que o Chefe do Estado estava a acompanhar a situação

167

PIMENTEL, Irene Flunser, A assistência social e familiar do Estado Novo nos anos 30 e 40, Análise Social, vol. XXXIV (151-152), 1999 (2.º-3.º), 481. 168 Ibidem. 169 PIMENTEL, Irene Flunser, A assistência social e familiar do Estado Novo nos anos 30 e 40, Análise Social, vol. XXXIV (151-152), 1999 (2.º-3.º), 504 170 PIMENTEL, Irene Flunser, A assistência social e familiar do Estado Novo nos anos 30 e 40, Análise Social, vol. XXXIV (151-152), 1999 (2.º-3.º), 508

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e de que estaria prevista a visita do Presidente da República, Almirante Américo Tomás, aos lugares mais atingidos pelas mesmas.171 Nesse mesmo dia, os jornalistas receberam uma comunicação de Santos Júnior172, Ministro do Interior, a informar que lamentava os acontecimentos trágicos que se tinham verificado e que confirmava os concelhos de Loures, Vila Franca de Xira, Oeiras, Alenquer, Arruda dos Vinhos e Sintra como os mais atingidos pela intempérie. Nessa comunicação, o ministro avançou com a primeira versão oficial da tragédia: 250 mortos, alguns feridos (a maioria de pequena gravidade) e muitos desaparecidos. O ministro fez ainda referência à explosão no Forte do Carrascal, em Linda-a-Velha, afirmando que apenas provocara feridos ligeiros e danos materiais, sossegando as populações para perigos futuros, dada as providências tomadas pelas autoridades militares e pela GNR. O ministro comprometeu-se também a ajudar as vítimas da tragédia em nome do Governo, prontificando-se a usar todos os recursos e meios existentes com esse propósito, e deu testemunho do apoio já prestado aos sinistrados pelos bombeiros, pelo Exército, pela Polícia, GNR e Legião Portuguesa, bem como por outras instituições. 173

Ainda no dia 26, realizou-se uma reunião interministerial no Ministério do Interior, que juntou os Ministros do Interior, das Corporações e da Saúde, o Governador Civil de Lisboa, o Director-Geral da Assistência e os Presidentes dos Municípios de Alenquer, Arruda dos Vinhos, Cascais, Oeiras, Sintra, Sobral de Monte Agraço e Vila Franca de Xira. 174 Seguir-se-iam outras reuniões do mesmo tipo, no mês de Dezembro, com os mesmos ministros e os Directores-Gerais dos Serviços de Urbanização, da Assistência e da Previdência e Habitações Económicas, sobretudo para tratar do problema relacionado com o realojamento das populações que tinham ficado sem habitação.175 No dia 27 de Novembro, várias autoridades visitaram os concelhos mais atingidos. Como tinha sido anunciado, Américo Tomás esteve nos concelhos de Loures, Vila Franca de Xira e Alenquer, acompanhado pelo Ministro do Interior, pelo Comandante da GNR, pelo Presidente da Câmara de Loures e por outras autoridades concelhias. Nesse mesmo dia, uma comitiva constituída por outros dignitários, entre os quais os ministros do Interior e da Saúde (Neto de Carvalho), o Governador Civil de Lisboa (António Osório Vaz), os Comandantes Gerais da PSP e da GNR (Generais Fernando de Oliveira e Pereira de Castro,

171

Diário de Notícias, Suplemento, 26 Nov, p.1 Ibidem. 173 Diário de Notícias, 27 Novembro, p.7. 174 O Século, 27 de Novembro de 1967, p. 7. 175 O Século, 5 de Dezembro de 1967, p.10. 172

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respectivamente) e o Director do Albergue de Mendicidade (Capitão António Cascais) visitou Odivelas, Olival de Basto, Loures, Vila Franca de Xira e Alenquer. Foi pedido um inquérito a todos os presidentes das Juntas de Freguesia das regiões sinistradas a fim de fazerem um balanço da catástrofe, identificarem as necessidades mais prementes e encontrarem soluções imediatas no que dizia respeito ao realojamento dos que tinham ficado sem habitação. Esse inquérito visava igualmente conhecer os danos sofridos pelas empresas em cada região. Mais à frente, no tópico 8.2., poder-se-á ver um exemplar de um desses inquéritos. No apoio às vítimas das inundações, o Governo pôs em acção as várias instituições do Estado Corporativo, nomeadamente as Caixas de Previdência e Abono de Família das Indústrias do Distrito de Lisboa e que incluíam as instituições que se seguem: 176 Indústrias da Marcenaria, Carpintaria e Serração de Madeiras; Marinha Mercante; Pessoal da Companhia Caminhos de Ferro de Lisboa; Pessoal dos Transportes Automóveis; Profissionais do Comércio; Indústria Vidreira; Indústria Cerâmica; Indústria Hoteleira Tipógrafos e Ofícios correlativos; Pessoal da Indústria e Comércio de Produtos Químicos e Farmacêuticos; Pessoal da Panificação, Moagem e Massas Alimentares. Por despacho ministerial de dia 27, foi decidido que as instituições de Previdência deveriam proceder à organização de processos referentes aos benefícios a conceder aos seus beneficiários, nomeadamente a concessão de auxílios extraordinários às situações de maior necessidade, recorrendo aos Fundos de Assistência de que dispunham. No caso dos beneficiários da Previdência Social que tivessem ficado com as suas habitações destruídas pela intempérie, deveriam ser tomadas medidas para um rápido realojamento dos mesmos, o que poderia passar ou pela atribuição imediata das casas de renda económica disponíveis ou pelo apoio à construção de novas habitações. Foram também enviadas directivas aos Directores das Caixas de Comércio e da Indústria para que organizassem, em conjunto, um sistema de apoio às vítimas das inundações. Desta acção resultou, nas semanas a seguir aos acontecimentos, a instalação de postos informativos nos lugares de maior densidade populacional (Alenquer, Algés, Alhandra, Carregado, Loures, Odivelas, Sacavém, Vila Franca de Xira) e postos itinerantes, através de camiões-tipo furgonetas nos outros locais. Procedeu-se também à instrução de processos para atribuição dos subsídios de alojamento provisório. A esses postos informativos caberiam as seguintes tarefas: elaboração de impressos para habilitação dos subsídios de assistência e de alojamento provisório; recolha de pedidos de auxílio apresentados

176

Actuação das Instituições de Previdência para auxílio às vítimas das inundações de 25 de Novembro de 1967. Relatório, 1968, Direcção- Geral de Previdência e Habitação Económica.

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pelos beneficiários; conjugação dos pedidos com os resultados dos inquéritos realizados pela Direcção Geral de Assistência; atribuição dos subsídios.177 No dia 28 de Novembro, voltou a reunir-se o Conselho de Ministros, presidido por Salazar, onde foram dadas informações sobre os acontecimentos e as medidas que estavam a ser tomadas pelos ministros envolvidos no plano de apoio às vítimas. Nos últimos dias de Novembro, registou-se uma nova ronda de visitas pelos concelhos mais atingidos pelas cheias, com a participação de Américo Tomás e de vários ministros, para estabelecerem contactos com os Presidentes dos municípios atingidos, a fim de concretizarem a ajuda a conceder aos mesmos. Por seu lado, o Ministério da Saúde e Assistência interveio no sentido de concentrar todas as operações de auxílio às vítimas nas Câmaras Municipais, sobretudo aquelas que se revestiam de um carácter urgente e imediato.178 Nesse auxílio passavam também a contar com o Instituto de Assistência à Família e a Santa Casa da Misericórdia. Assistiu-se também à movimentação dos Governadores Civis e dos Presidentes das Câmaras que se deslocaram às zonas atingidas. Foi o caso do Governador Civil de Setúbal e do Presidente da Câmara Municipal de Almada, que visitaram a zona da Trafaria, levando ajuda aos desalojados em géneros e em dinheiro. Decidiram também acelerar o processo para concurso de ampliação do bairro social da Trafaria com mais 25 casas. O concelho de Oeiras foi visitado pelo Governador Civil de Lisboa, no dia 2 de Dezembro, para observar os danos e se inteirar do modo como estava a ser prestada a ajuda às populações. Visitou Algés, Carnaxide, Linda-a-Velha e Oeiras. Voltou ao concelho no dia 13, desta vez acompanhado pelo Ministro do Interior. Na companhia do Presidente da Câmara e dos vereadores, percorreram Algés, Caxias e Oeiras, as zonas mais atingidas pela intempérie.179 Foram concedidos, por vários ministérios, apoios imediatos em ajudas pecuniárias às populações vítimas das inundações, que foram canalizados para as Câmaras Municipais dos concelhos atingidos, para que estas procedessem à sua distribuição pelos sinistrados. As Câmaras Municipais das regiões inundadas tinham já realizado, nos dias a seguir à catástrofe, sessões extraordinárias no sentido de prestarem uma ajuda imediata às populações atingidas pelas cheias. Foi o caso da Câmara Municipal de Oeiras, que convocou uma reunião extraordinária dos seus corpos dirigentes para o dia 27 de Novembro para se ocupar da situação e a que voltaremos a fazer referência. 177

Actuação das Instituições de Previdência para auxílio às vítimas das inundações de 25 de Novembro de 1967. Relatório, 1968 , Direcção- Geral de Previdência e Habitação Económica. 178 O Século, 3 de Dezembro de 1967, p.12. 179 Novidades, 3 de Dezembro de 1967, O Século, 14 de Dezembro de 1967 cit. in Cheias no Concelho de Oeiras 1962/2008, Vol. II, CMO.

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Após a tomada de consciência do número crescente de mortos que as operações de resgate das equipas de salvamento iam revelando, as autoridades tomaram medidas de urgência sanitária com o enterro de pessoas e animais, a maior parte das vezes sem as formalidades habituais. No caso dos animais mortos (vacas, carneiros, galinhas, burros, cavalos e outros), pensou-se ainda na hipótese de serem levados para Santarém para serem transformados em buano, mas tal não chegou a acontecer por não haver condições naquela cidade para o fazer. Dada a possibilidade de haver rupturas de algumas condutas da água para o abastecimento público e da água ter aparecido turva no Depósito de Campo de Ourique, a Direcção Geral de Saúde alertou as populações, aconselhando-as a adoptar as seguintes medidas de protecção: ferver toda a água de consumo para fins alimentares durante 15 a 20 minutos; não consumir vegetais crus provenientes das zonas inundadas; vacinar-se contra o tifo; enterrar os mortos longe dos cursos de água, de poços ou de fontes. 180 Na sequência daqueles avisos, a água engarrafada esgotou-se rapidamente. Entre os dias 13 e 15 de Dezembro, a Direcção Geral de Saúde lançou novos apelos à vacinação da população das zonas sinistradas. Seria a segunda dose das vacinas contra o tifo para quem já tinha sido vacinada nos primeiros dias, aconselhando-se os que ainda não tinham sido vacinados a fazerem-no, então, pela primeira vez. 181 Após as visitas realizadas e feitos os inquéritos à situação das áreas sinistradas, os Ministros do Interior e da Economia apresentaram, a 9 de Dezembro, e separadamente, balanços da tragédia e traçaram planos de futuro, enviando para os jornais notas oficiosas sobre o assunto: Dizia o Ministro do Interior:182 O temporal que se desencadeou em 25 e 26 do passado mês de Novembro, numa vasta área do distrito de Lisboa, provocou graves consequências, que o Governo, pelos ministérios competentes e seus respectivos serviços, as Câmaras Municipais, as Juntas de Freguesia e demais entidades locais tem enfrentado, mobilizando todos os meios disponíveis, incluindo os do Exército, da Marinha e da Força Aérea e de outras instituições como a Cruz Vermelha, a Caritas, o Movimento Nacional Feminino, a Legião Portuguesa, a Mocidade Portuguesa, os Escuteiros, a Misericórdia de Lisboa e outras obras particulares de assistência e aproveitando todas as boas vontades, designadamente as de estudantes que espontaneamente se apresentaram para, em trabalho disciplinado e coordenado, contribuir para a solução dos problemas mais urgentes. (sublinhado da autora).183

180

Diário de Notícias, 28 de Novembro de 1967, p.10. O Século, 11 de Dezembro de 1967. 182 O Século, 9 de Dezembro de 1967, pp.1 e 10. 183 Note-se esta referência, no discurso do ministro, ao carácter espontâneo da ajuda dos estudantes, ocultandose o que realmente aconteceu, que foi a sua participação organizada a partir das Associações de Estudantes. Vide capítulo 11. 181

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A área atingida é muito vasta e somente a violência do fenómeno de carácter excepcional, registado nas horas dramáticas da noite de 25 para 26 de Novembro, poderá explicar cabalmente a grandeza dos prejuízos causados. (…) Há, ainda, pequenas casas e barracas que foram totalmente destruídas em número que se pode considerar diminuto em relação ao total. A nota governamental passava, então, a identificar, numa primeira fase, as forças que intervieram no apoio às vítimas (note-se o sentido da expressão sublinhada que visava escamotear a forma organizada e não espontânea como os estudantes participam no apoio às vítimas a partir das suas estruturas associativas) e, numa segunda fase, a referir as providências que foram tomadas pelas entidades oficiais e outras particulares: Na noite da catástrofe: Acção imediata de apoio das Corporações de Bombeiros Voluntários, das Câmaras Municipais, Forças Armadas, Forças de Segurança, Paróquias, colectividades e voluntários em operações de salvamento; Dia 26: realojamento SOS dos desalojados em casas de família, em instalações das Câmaras, do Exército, da Infantaria, da Marinha e da Força Aérea; Dias a seguir à catástrofe: Fase de coordenação, que teve logo início no dia 26 com a uma reunião extraordinária do Conselho de Ministros. Por sua vez, o Ministro da Economia184, para além de um balanço semelhante, avançou com as medidas criadas e a criar para auxilio aos agentes económicos atingidos pela intempérie. Em primeiro lugar, destacou a criação de um Serviço de Apoio à Actividade económica na zona devastada junto do Gabinete do Ministro, a que os municípios, as organizações agrícolas, industriais e comerciais, para além de todos os empresários, se deveriam dirigir para apresentarem os danos sofridos na sequência das inundações, com vista a solicitarem ajuda económica. Caberia a esse serviço recolher todos os pedidos solicitados e coordenar a acção de todas as secções do Ministério da Economia para atender às suas necessidades. O Ministro informou, ainda, que seriam concedidos benefícios fiscais e aduaneiros às empresas afectadas, bem como créditos e empréstimos às empresas agrícolas, comerciais e industriais, a definir em cada situação. Por fim, comunicou que o Estado iria comparticipar com verbas próprias para as obras de reabilitação económica das zonas mais atingidas pela tormenta e que, como medida imediata, o seu Ministério disponibilizava 250 mil contos para dar início a essas obras. Num quadro que mais abaixo se apresenta, estão registados os diferentes apoios concedidos aos sinistrados pelas instituições oficiais, nomeadamente pelos Ministérios da Economia, do Interior, das 184

O Século, 10 de Dezembro de 1967, p.1.

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Obras Públicas, da Saúde e Assistência, das Corporações e Previdência Social; pelas Instituições de Previdência Social; e pelas Câmaras Municipais dos concelhos atingidos: 185

Ministério da Economia

952.150$00 em subsídios/não reembolsáveis e 254.200$00 em empréstimos/reembolsáveis Criou uma Comissão de Apoio aos Sinistrados aos comerciantes de Cascais e Lisboa. com a função de conceder subsídios e empréstimos aos comerciantes e população 9 mil contos a 186 comerciantes de Lisboa. atingida pela catástrofe. 6 mil contos de subsídios a 37 comerciantes de Paralelamente, a Inspecção-Geral das Cascais e a 91 comerciantes de Oeiras. Actividades Económicas dirigiu um aviso, a partir da imprensa, a todos os comerciantes 3 mil contos em subsídios e empréstimos a 97 afectados pelas inundações para se dirigirem sinistrados dos concelhos de Alenquer, Loures às respectivas Câmaras Municipais a fim de se Alhandra, Oeiras e Vila Franca de Xira. candidatarem aquele auxílio económico. 186

Ministério do Interior Ministério das Obras Públicas

Apoio à construção desalojados.

de

casas

para

os

Ministério das Corporações e Previdência Social

Apoio à construção de casas para os desalojados. Apoio à construção de casas para os desalojados oriundos dos bairros de barracas.

(Direcção Geral da Previdência e Habitações Económicas)

Realojamento de famílias nos bairros de casas de renda económica nos Olivais.

Ministério da Saúde e Assistência

Utilização da verba do Fundo de Socorro Social para o auxílio às vítimas

185

Actuação das Instituições de Previdência para auxílio às vítimas das inundações de 25 de Novembro de 1967. Relatório, 1968, Direcção- Geral de Previdência e Habitação Económica. 186

Diário da Manhã, 10 de Dezembro de 1967, Lisboa, in Cheias no Concelho de Oeiras 1962/2008 A Voz, 22 de Dezembro de 1967, in Cheias no Concelho de Oeiras 1962/2008, Vol. II, CMO.

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Fundo de Assistência da Caixa Sindical da Previdência dos Profissionais do Comércio e da Indústria

Caixas de Comércio e da Indústria Postos informativos Fixos Ver fotografia do Posto Fixo que funcionava em Algés (Foto 35)

Caixas de Comércio e da Indústria Postos informativos Itinerantes

Instituições da Previdência Social

Caixa Geral de Depósitos, Crédito e Previdência

Câmaras Municipais dos concelhos atingidos

Encargo de 5.519.560$00 para a construção de 100 casas desmontáveis para alojamento provisório das vítimas das inundações. Metade daquelas habitações foram atribuídas a beneficiários dessa instituição, a outra parte, a não beneficiários. Beneficiários Odivelas 197 Alhandra 167 Algés 145 Vila F. de Xira 109 Carregado 105 Loures 87 Alenquer 85 Sacavém 83 Beneficiários Posto Móvel 1 - 122 Posto Móvel 2 - 117 Posto Móvel 3 - 219 Subsídios de assistência – 13.636.419$00 (2.819 beneficiários) Subsídios de Alojamento - 1.956.600$00 (923 beneficiários) Atribuição de móveis para as habitações (não contabilizados) Atribuição de uma verba, cujo valor desconhecemos para auxiliar os sinistrados. 187

Distribuição dos subsídios e empréstimos fornecidos pelas instituições oficiais e pela Cruz Vermelha Portuguesa. Organização da ajuda às populações atingidas, instalando casas pré-fabricadas provisórias e construindo casas mais duradouras. Distribuição de agasalhos e roupas.

Não sabemos se os apoios das instituições oficiais foram suficientes para acudir a todos os necessitados. Provavelmente, não o foram. Abaixo transcrevemos pedidos de auxílio de dois sinistrados, um de 187

Diário de Notícias, 26 de Novembro de 1967 a 20 de Janeiro de 1968.

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Odivelas e outro de Loures, que solicitaram apoio para ultrapassar os danos sofrido e poderem iniciar novas vidas. Manuel dos Santos (Casal das Andorinhas, Odivelas)188: Fui uma das vítimas das inundações ocorridas na tenebrosa noite de 25 de Novembro do ano passado onde residia em Odivelas com a minha esposa. A residência onde habitávamos ficou parcialmente destruída perdendo todos os nossos haveres, escapando-se apenas a roupa que trazíamos no corpo (…). Fui socorrido pela Cruz Vermelha Portuguesa na importância de 8 contos para cobrir parte dos meus prejuízos sofridos. Dirigo-me ao Exmo Sr. Ministro do Interior para que Sua Excelência interceda junto das Entidades Oficiais que intervêm na construção de bairros e casas para serem distribuídos às vítimas das inundações apelando à sua generosidade no sentido de interceder para que me seja concedida uma moradia onde possa viver com desafogo. O pedido não foi satisfeito e o caso foi arquivado por não haver informação da Misericórdia de Lisboa sobre Manuel dos Santos. A mulher veio a faleceu na cheia, na sequência de ferimentos. Joaquim Marques Rosado (Freguesia de S. João do Tojal, Loures)189: Vieram a minha casa diversos senhores e senhoras a fazer inquéritos da Assistência à Família, Cruz Vermelha, Movimento Nacional Feminino, etc. Até à data tenho recebido algumas cartas dizendo-me que em virtude de haver uma campanha organizada por essa repartição a favor dos sinistrados, o dinheiro será enviado para essa secção. (…) Estou farto de pedir auxílio para todos os lados e em vez de me ajudarem mandam-me de um lado para o outro. Escrevi para a Presidência do Concelho, mandaram-me ir à Assistência à Família. Desta mandaram-me ir à Santa Casa da Misericórdia, desta para a Assistência. Escrevi ao Rádio Clube Português, mandaram-me ir ao Governador Civil, no Governo Civil mandaram-me escrever a Vossa Excelência. Peço-lhe que não me mande para outro lado. Já lhe tinha sido atribuído um subsídio de 500$00, manifestamente insuficiente. O caso passou a ser estudado pela C.V. P. para saber se o queixoso poderia receber mais auxílio. Para além dos vários apoios concedidos às vítimas das cheias, as autoridades mobilizaram-se para a construção de bairros e habitações que pudessem alojar as populações que tinham ficado desalojadas, com fundos dos ministérios do Interior, das Obras Públicas e das Corporações e Previdência Social, das Caixas de Previdência, das Câmaras Municipais e de particulares. 188

Governo Civil de Lisboa, Inundações 25/26 de Novembro de 1967, Pasta Pedidos de Auxílio, 3902, Arquivo do SGMAI 189 Governo Civil de Lisboa, Inundações 25/26 de Novembro de 1967, Pasta Pedidos de Auxílio, 3902, Arquivo do SGMAI

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Grande parte dessas habitações eram casas pré-fabricadas, com um carácter provisório, ainda longe de serem casas de qualidade, apesar de oferecerem melhores condições que as habitações destruídas, desprovidas de condições mínimas de saneamento básico. Em Odivelas, por exemplo, foi construído o Bairro do Bom Sucesso, também conhecido como o Bairro dos Sinistrados onde se alojaram famílias que tinham ficado sem habitação e, em Oeiras, como poderemos ver mais adiante, construíram-se bairros em Leceia e Cacilhas com casas ao estilo Câmara Municipal de Oeiras. Mais tarde, as populações desses bairros seriam encaminhadas para outras habitações já definitivas, integradas em bairros sociais de que são exemplo os vários Bairros Gulbenkian construídos em Alenquer, Arruda dos Vinhos, Quintas, Odivelas, Santarém, e noutras localidades, com o apoio daquela instituição benemérita. Vem a propósito deste alojamento dos sinistrados, um episódio que ocorreu em Odivelas, na época concelho de Loures, menos de três anos após as cheias, mais precisamente na noite de 11 para 12 de Maio de 1970190. Os desalojados que residiam nas casas pré-fabricadas do Bairro do Bom Sucesso tinham já sido realojados no Bairro Gulbenkian, construído pelo Ministério das Obras Públicas com fundos daquela Fundação, tendo ficadas desocupadas 48 das 50 habitações do bairro dos desalojados. Foi então que teve lugar uma nova noite dramática, no dia 8 de Maio, marcada por rajadas de ventos ciclónicos que destruíram parte das barracas da Serra da Luz, semeando o pânico entre os seus habitantes. Sabendo que as casas do Bairro dos Sinistrados se encontravam desocupadas há cerca de três meses, 48 famílias das barracas (entre 400 a 600 pessoas), atingidas pelos ventos fortes, ocuparam aquelas habitações, na noite de 11 para 12 de Maio. Diziam os ocupantes: Fui para a Serra da Luz, arranjei lá uma barraquinha. Claro, aquilo ali chovia, era a mesma coisa que estar debaixo duma oliveira – chuva, vento, bicharada e currais de gado ali ao pé da gente (…). Tinha a cozinha e um quarto. Cinco filhos ali a viver tudo a monte Os maiores dormiam na cozinha e eu dormia no quarto com os mais pequenos. Depois, quando houve aquele vendaval, cheguei à noite a casa, aquilo já não tinha metade das telas em cima e então vim para aqui.191

190

BARBOSA, Ana; ALVES, Francisco; AZEVEDO, José; LOBO, Margarida; VILLAS-BOAS, Pedro, OCUPAÇÃO do Bairro do Bom Sucesso em Odivelas, por 48 famílias de barracas, Afrontamento, Porto, 1972. 191 Idem, p. 39.

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(…) nós nunca tínhamos tido uma casa assim. Ali à mão estava todo o conforto, água para lavarmos as crianças, luz. E nós não tínhamos casa. O vento deitou tudo abaixo. E inquéritos e mais inquéritos às voltas; há anos que respondo a inquéritos, mas os meus meninos não podiam dormir mais ao relento.192

As autoridades reagiram negativamente à ocupação das casas e a Câmara Municipal de Loures mandou arrancar torneiras, desligar a água e cortar o acesso à electricidade nas casas ocupadas. A Federação da Caixa de Previdência e Abono de Família do Comércio do Distrito de Lisboa, a organização corporativa que era proprietária das casas, intentou então uma acção judicial contra as famílias ocupantes e as mesmas acabaram por ser condenados à restituição das mesmas. A questão arrastou-se durante um ano e acabou por se resolver quando os ocupantes conseguiram do Ministro das Corporações, Baltasar Rebelo de Sousa, autorização para permanecerem nas casas, mediante o pagamento de uma renda e pagamento das despesas do tribunal, em prestações. A falta de apoio a estas populações por parte das autoridades, nomeadamente da Caixa de Previdência que, poucos anos antes, tinha prestado auxílio aos sinistrados levanta-nos algumas questões. Porque se mobilizaram as autoridades para apoiar os sinistrados de Novembro de 1967 e não o fizeram também com os de 1970, em circunstâncias igualmente trágicas? Pelo carácter ilegal da «ocupação»? E porquê se as casas estavam desocupadas? Porque avançar com os tribunais, mandar fechar a água e a luz a gente sem tecto? A resposta parece estar no contexto em que o episódio ocorreu que era substancialmente diferente, pela sua dimensão, relativamente ao de Novembro de 1967. O episódio ficou limitado no espaço daquela localidade e não recebeu a solidariedade geral. Os Bombeiros Voluntários de Odivelas forneceram água aos moradores que tinham ficado privados dela, houve uma concentração de cerca de dezenas de pessoas junto ao bairro manifestando a sua solidariedade, mas pouco mais. Os jornais apenas transmitiram a posição oficial, denunciando a ocupação ilegal e só os estudantes da AEIST193 e o Comércio do Funchal194 compreenderam a situação dramática que tinha estado na origem daquela ocupação ilegal. Dizia, então, o Comércio do Funchal195: Esta atitude das 48 famílias é um facto novo entre nós. As pessoas ousaram tomar aquilo que lhes era devido, isto é, perante a lentidão verificada na resolução dos seus problemas, as vítimas souberam conscientemente defender os seus direitos. 192

Idem, p. 18. Comunicado da AEISTL, Binómio, 12 de Junho de 1970 in BARBOSA, Ana; ALVES, Francisco; AZEVEDO, José; LOBO, Margarida; VILLAS-BOAS, Pedro, OCUPAÇÃO do Bairro do Bom Sucesso em Odivelas, por 48 famílias de barracas, Afrontamento, Porto, 1972, pp. 26 a 30. 194 Comércio do Funchal, 12 de Julho de 1970 in BARBOSA, Ana; ALVES, Francisco; AZEVEDO, José; LOBO, Margarida; VILLAS-BOAS, Pedro, OCUPAÇÃO do Bairro do Bom Sucesso em Odivelas, por 48 famílias de barracas, Afrontamento, Porto, 1972, pp. 30 e 31. 193

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O silêncio de Salazar Estava anunciado, para o dia 30 de Novembro, um discurso de Salazar ao país. Criou-se, entre partidários e opositores uma certa expectativa. Com uma personalidade muito singular que o afastava das multidões e da teatralidade própria dos ditadores, Salazar aparecia pouco e discursava ainda menos. Daí que este discurso, que iria acontecer num contexto muito particular, após recente visita de Franco Nogueira, seu Ministro dos Negócios Estrangeiros aos E.U.A. (país que se opunha à política colonial portuguesa) e, sobretudo, cinco dias após a tragédia que vitimara tantos portugueses, tivesse atraído a atenção de tantos. Pelo menos em relação às vítimas das inundações que, pelos dados oficiais, no dia anterior ao discurso, já ultrapassavam as 400, esperava-se uma palavra de circunstância do Presidente do Conselho de Ministros que governava o país. Puro engano! Salazar discursou na Biblioteca da Assembleia Nacional, igual a si próprio, indiferente às gentes que governava. Em ponto algum do discurso foi feita referência aos acontecimentos dramáticos que se tinham dado poucos dias antes. Como vimos, o Presidente da República e alguns ministros tinham visitado os lugares atingidos e, passada a desorientação inicial, tinham começado a tomar medidas. O Presidente do Conselho, ao invés, a figura tutelar e mais importante do regime, permaneceu silencioso, como se o assunto não fosse verdadeiramente importante. Do chefe do Governo não consta nenhuma declaração, nenhum voto de pesar ou de solidariedade para com as vítimas, nenhuma visita a qualquer bairro inundado. Salazar que, anos antes, decretara luto nacional pela morte de Hitler, ficou indiferente à solicitação de alguns órgãos de imprensa para que fosse decretado luto nacional perante a tragédia em que tantos portugueses tinham perdido a vida. Permaneceu em silêncio, desvalorizando os acontecimentos, talvez na ideia de que tudo o que não é mencionado não tem existência. Mais importante que o drama das pessoas que tinham perdido familiares, perdido as suas casas e os seus haveres, era a imagem de um país que pretendia salvaguardar: um Portugal sereno, sem dramas nem conflitos sociais. Do mesmo modo, a imprensa afecta ao regime esqueceu as fotos dos bairros alagados, dos mortos, as entrevistas aos desalojados e a comoção dos relatos da tragédia. Curvou-se ao ditador e, nalguns casos, prestou-lhe homenagem. O seu discurso foi considerado p´lo O Século196 como histórico e um modelo de bem pensar e bem falar, ao abordar de «forma tão clara» a «missão civilizadora» que Portugal estava a 195

Ibidem.

196

O Século, 1 de Dezembro de 1967, p.1.

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desenvolver em África. Foi, aliás, esse o tema do discurso, a repetição do que já tinha dito em 1965, «combatemos sem espectáculo e sem alianças, orgulhosamente sós». Mas Salazar sabia porque o fazia. Faltou-lhe a humanidade e a coragem política para homenagear os mortos, mas enviou um cartão ao director da Censura. Com a sua letra, recomendava197: «Sr. Director, Portugal está vivendo uma catástrofe, já houve demasiados problemas para a população e convém que essa não seja mais amargurada com notícias sobre este assunto.»

8.2. A Câmara Municipal de Oeiras e as instituições locais

A primeira medida tomada pelo Município de Oeiras, logo após as inundações, foi a convocação de uma reunião extraordinária dos seus corpos dirigentes para o dia 27 de Novembro, justificada na urgência premente da situação.198 Esta reunião foi dirigida pelo Presidente, arquitecto António Bernardo da Costa Cabral de Macedo. Nela estiveram presentes o Vice-Presidente Artur Martinho Simões e os veradores Eng. Henrique Pádua de Carvalho, Dr. Mário de Castro Arez e Manuel Leitão Vieira dos Santos. Faltaram 3 vereadores, João Guimarães dos Santos Mattos, Eng. Francisco Xavier Meireles Moreira Aranha e o Dr. Miguel Sá da Bandeira (Fotos 33 e 34). Para a mesma foram convidados várias individualidades, como o Subdelegado de Saúde, os Presidentes efectivo e substituto da Comissão Municipal de Assistência, o provedor da Misericórdia, os membros Conselho de Administração dos Serviços Municipalizados e chefes de serviços. O propósito era naturalmente o de organizar os serviços, de se tomarem medidas de socorros às vítimas das inundações que causaram avultado número de mortos e feridos, destruição de habitações com todos os seus haveres, existindo centenas de pessoas sem lar e sem recursos. Foi aí deliberado, por unanimidade, que ficasse exarado, na acta, um voto de sentido pesar às famílias das vítimas da calamidade e decidida a concessão de um subsídio de mil contos à Comissão Municipal de Assistência, para que pudesse prestar ajuda imediata e urgente às famílias mais necessitadas. Essa ajuda seria dada através da Santa Casa da Misericórdia de Oeiras e de outras instituições ou entidades. 197

AZEREDO, Cândido de, A Censura de Salazar e Marcello Caetano, Editorial Caminho, Lisboa, 1999, p.539, cit. in SANTO, Sílvia Espírito, Cecília Supico Pinto. O rosto do Movimento Nacional Feminino, A Esfera dos Livros, 2008, Capítulo VII, nota 8, p. 217. 198 Reunião Extraordinária da Câmara Municipal de Oeiras de 27 de Novembro de 1967, Câmara Municipal de Oeiras, p. 101.

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Relativamente às vítimas mortais ocorridas no concelho, o Presidente da Câmara determinou que não haveria funerais colectivos, mas que estes ocorreriam conforme a vontade das famílias que, com o apoio da Comissão Municipal de Assistência, realizariam o seu culto funerário como fosse do seu agrado, ao contrário de outros concelhos onde o elevado número de mortos conduziu a enterros colectivos.199 A 28 de Novembro, três dias depois da tragédia, o Presidente da Câmara Municipal de Oiras, António Bernardo da Costa Cabral de Macedo, enviou ao Governador Civil de Lisboa um relatório200 onde dava conta dos danos humanos e materiais da intempérie no concelho de Oeiras. Segundo o mesmo, tinham perdido a vida naquele concelho, 29 pessoas, assim distribuídas pelas seguintes freguesias: Amadora (7); Carnaxide (8); Oeiras (4); Barcarena (4); Paço de Arcos (6). O relatório informava ainda que o número de feridos rondava as 400 pessoas, sobretudo resultantes da explosão do Forte do Carrascal. No entanto, não obstante o elevado número de feridos (mas sem gravidade), a explosão não tinha provocado nenhuma vítima mortal. Relativamente aos danos materiais, o Presidente contabilizava cerca de 5 mil contos de prejuízos. Nestes se inseriam alguns danos municipais e sobretudo danos imensos e incalculáveis nas zonas urbanas particulares e nas zonas de barracas. No conjunto dos danos apresentados, o Presidente distinguia os que tinham sido provocados pelas inundações dos que tinham resultado da explosão do Forte do Carrascal. As inundações tinham provocado um saldo de dezenas de milhares de contos de prejuízos em estabelecimentos comerciais e em habitações particulares com perda de roupas, mobiliário e de espaços de habitação. A explosão do Paiol, por sua vez, na zona de maior intensidade, tinha estilhaçado cerca de 90% dos vidros de todas as habitações, dos edifícios camarários e das montras dos estabelecimentos comerciais, e destruído toda a maquinaria da zona industrial, sobretudo nas fábricas da Tofa e da Fanta. Acompanhava o relatório do Presidente, os mapas que abaixo se apresentam, onde se assinalava, a vermelho, a zona de maior intensidade e que mais sofreu com a enxurrada e as zonas limítrofes que foram também atingidas, apesar de com menor intensidade. Relativamente aos danos nas zonas de barracas, o Presidente afirmou que todas foram atingidas e que ficaram totalmente destruídas, sobretudo as que se encontravam junto das linhas de água, na zona de maior intensidade da explosão.

199

República, 28 de Novembro de 1967 cit. in Cheias no Concelho de Oeiras, Recortes de jornais 1962 /2008, Vol. II, 2009. 200 Relatório do Presidente da C.M.O., 28 Novembro 1967, Governo Civil de Lisboa, Inundações 25/26 Novembro, Relatórios Presidentes Câmaras Municipais, 3902, Arquivo do SEMAI

98


O Presidente fez ainda referência ao pânico que atingiu a população do concelho após a explosão do forte, atribuindo responsabilidade às autoridades responsáveis. Dizia201: Não posso deixar, por dever de cargo e da responsabilidade que me cabe, de mencionar neste relatório, muito sucintamente o pânico que foi criado dentro do nosso Concelho, que tendo início às 10h 30m, só pôde ser esclarecido cerca das 13 horas, mas que deixou na população uma ferida profunda, e a nós responsáveis, a certeza de que certos e determinados organismos, sem o sentido de ofender ninguém, falharam, nomeadamente a Defesa Civil do Território que, aquando do pânico, sabiamente propagado dentro do Concelho e levianamente aceite pelas autoridades responsáveis, não tomaram uma atitude concertante, com a aceitação voluntária da sua missão.

Zonas atingidas pelas inundações

Zonas atingidas pela explosão do Paiol do Carrascal

Ribeiras da Lage, de Porto Salvo, Barcarena e Algés.

Centro do núcleo como a zona mais duramente atingida pela explosão.

Fonte: Relatório do Presidente da C.M.O., 28 Novembro 1967, Governo Civil de Lisboa, Inundações 25/26 Novembro, Relatórios Presidentes Câmaras Municipais, 3902, Arquivo do SEMAI

201

Relatório do Presidente da C.M.O., 28 Novembro 1967, Governo Civil de Lisboa, Inundações 25/26 Novembro, Relatórios Presidentes Câmaras Municipais, 3902, Arquivo do SEMAI.

99


Zona atingida pela explosão do Paiol do Carrascal (ampliação)

Fonte: Relatório do Presidente da C.M.O., 28 Novembro 1967, Governo Civil de Lisboa, Inundações 25/26 Novembro, Relatórios Presidentes Câmaras Municipais, 3902, Arquivo do SEMAI

Na sequência das decisões tomadas no primeiro plenário camarário após as cheias, a 27 de Novembro, realizou-se, na Santa Casa da Misericórdia de Oeiras202, uma reunião para estudar o plano de acção de apoio às vítimas da catástrofe no concelho. Estiveram presentes, vindos de todas as localidades, os Presidentes das cinco Juntas de Freguesia, os seis párocos, os Comandantes das Corporações de Bombeiros, o Subdelegado de Saúde, as três assistentes sociais em exercício, duas representantes da Cruz Vermelha e os jornais Notícias da Amadora e Ribamar. Aí se constituíram Comissões Assistenciais por freguesia e foi elaborado um plano de acção assistencial,203 que foi enviado ao Governador Civil do distrito de Lisboa204 (que o aprovou), às várias 202 203

Ribamar, 30 de Dezembro de 1967, p.5. Notícias da Amadora, 8 de Dezembro de 1967, p,1.

100


entidades acima referidas e ao jornal Notícias da Amadora, para publicação, o que este jornal fez, na sua edição de 2 de Dezembro.

Diagrama do Plano de Acção Assistencial no Concelho de Oeiras 205 Governo Civil do Distrito de Lisboa

Cáritas Portuguesaa

Câmara Municipal de Oeiras

Comissão Municipal de Assistência Santa Casa da Misericórdia de Oeiras

Comissão de Freguesia de Carnaxide

Comissão de Freguesia da Amadora

Comissão de Freguesia de Paço de Arcos

Comissão de Freguesia de Barcarena

Comissão de Freguesia de Oeiras

204

Correspondência expedida pelo Presidente da Câmara Municipal de Oeiras, nº C/16 093 / 67 de 5 de Dezembro de 1967, Arquivo Histórico da Câmara de Oeiras. 205 Notícias da Amadora, 2 de Dezembro de 1967, p,1.

101


O esquema assistencial acima, provavelmente aplicado também a outros municípios, era encabeçado pelo Governador Civil de Lisboa, tendo a Câmara Municipal como a principal responsável pela assistência às vítimas no concelho, contando com o apoio directo da Cáritas. Caberia à Santa Casa da Misericórdia de Oeiras e à Comissão de Assistência proceder à coordenação das actividades levadas a cabo pelas 5 Comissões de Freguesia existentes no concelho. Estas instituições ficariam com a tarefa da atribuição dos subsídios da «Comissão de Apoio aos Sinistrados» do Ministério da Economia, bem como a distribuição de outras verbas disponibilizadas directamente pelo Município ou doadas por particulares. No diagrama acima, as Comissões de Assistência, uma por freguesia (Oeiras, Amadora, Barcarena, Carnaxide, Paço de Arcos), dirigidas por cada um dos seus Presidentes, eram constituídas pelos comandantes das corporações de bombeiros, pelos representantes das paróquias, por assistentes do Instituto de Assistência à Família e por outras instituições que estivessem dispostas a prestar auxílio, mas cujo nome não é referido.206 Aquelas comissões tinham um carácter executivo e total liberdade de acção para dar resolução aos problemas encontrados. Todos os subsídios e donativos de bens recebidos, fosse qual fosse a sua proveniência, teriam que ser entregues exclusivamente àquelas comissões, que procederiam à sua distribuição pelos mais necessitados, respondendo aos pedidos de inúmeras vítimas da catástrofe que se dirigiam às Juntas de Freguesia a solicitarem auxílio. Eram as únicas comissões de auxílio às vítimas permitidas no concelho, sendo reprimidas e severamente punidas todas as acções isoladas que [visassem] o mesmo fim.

207

Essa decisão prendia-se com a

necessidade de evitar que gente pouco escrupulosa, em benefício próprio, percorresse as localidades, pedindo donativos para as vítimas. Do plano de acção que iria ser posto em prática no concelho, constavam duas fases:208 A primeira pressupunha o auxílio imediato às vítimas, a quem seria prestada assistência médica, alimentação, alojamento provisório, agasalhos e ajuda espiritual. Sob a tutela do Município de Oeiras, as famílias desalojadas foram, de imediato, recolhidas nas dependências de várias instituições: corporações de bombeiros das várias localidades; edifícios das Juntas de Freguesia; Palácio Anjos, em Algés (mais de 100 pessoas, ficando a alimentação das mesmas a cargo da Legião Portuguesa); edifício do Instituto de Socorros a Náufragos, em Paço de Arcos; Associação «Junção do Bem» (7 famílias); casas cedidas pela firma de construção J. Pimenta; igrejas e espaços paroquiais; casas particulares, onde chegaram a ficar famílias inteiras. Uma centena de

206

Notícias da Amadora, 2 de Dezembro de 1967, p.6. Notícias da Amadora, 4 de Dezembro de 1967, p.4. 208 Diário de Notícias, 1 de Dezembro de 1967 e Notícias da Amadora, 2 de Dezembro de 1967, p.7 207

102


desalojados que viviam na zona vizinha do Paiol do Carrascal foram instalados no Albergue da Mitra, em Lisboa 209 Em Algés, no Palácio Ribamar, funcionava também uma das secções do Instituto de Assistência à Família, tendo prestado, apesar de limitado, o apoio às populações. 210 Encontrámos pouca informação sobre o modo como os desalojados eram apoiados nos vários espaços onde foram recolhidos. Só conhecemos com mais pormenor o apoio dado pela Junta de Freguesia de Paço de Arcos

211

que recolheu, na sua cantina, cerca de 200 pessoas, todas de Linda-a-Velha, que se

tinham deslocado a pé até lá, fugindo da explosão do Forte e temendo a sua repetição. No local, foram atendidas pelo Presidente da Junta/Comissão de Assistência, José Gonçalves Vieira Peixinho Júnior e pelo Presidente da Câmara, António Costa Cabral de Macedo, que aí se deslocou e se prontificou a prestar a ajuda necessária. Contaram também com a solidariedade da população daquela vila. Entrevistado pelo repórter de O Século, a 28 de Novembro, José Manuel de Pinho, bombeiro voluntário de 3ª classe, dava conta desses gestos generosos da população de Paço de Arcos212: Houve um grande movimento de solidariedade da maior parte do povo de Paço de Arcos. A corporação dos voluntários de Paço de Arcos teve de socorrer, não só os desalojados da vila, mas bastantes pessoas dos arredores, por exemplo de Linda-a-Velha (…). Os habitantes daqui receberam essa gente de braços abertos. Alguns desses infelizes ficaram recolhidos nas dependências das corporações de bombeiros, outros no edifício do Instituto de Socorros a Náufragos e, a maior parte em casas particulares, onde ficaram famílias inteiras. Da Comissão de Assistência de Paço de Arcos faziam parte, entre outros, Peixinho Júnior, Presidente da Junta de Freguesia, como se disse, o Padre Luís Neri e Manuel de Passos Correia de Almeida, comandante dos Bombeiros de Paço de Arcos.213 Esta primeira fase foi considerada concluída a 20 de Dezembro. A segunda, mais demorada, visava a resolução do problema habitacional. Teria em vista a reconstrução e reabilitação das habitações dos munícipes que as tinham perdido. Incluía a reconstrução de barracas danificadas e o fabrico de barracas tipo casa, seguindo o modelo Câmara Municipal de Oeiras.

209

Notícias da Amadora, 8 de Dezembro de 1967, cit in Cheias no Concelho de Oeiras, Recortes de jornais 1962 /2008, Vol. II, 2009; Reunião Extraordinária da Câmara Municipal de Oeiras de 30 de Janeiro de 1968, Câmara Municipal de Oeiras, pp. 8 verso/9. 210 Reunião da Câmara Municipal de Oeiras, Livro de Actas nº 79, 1968, 1968, p,11. 211 Notícias da Amadora, 4 de Dezembro de 1967, p. 4. 212 O Século, 28 de Novembro de 1967. 213 Notícias da Amadora, 4 de Dezembro de 1967, p. 4.

103


Esta fase exigia a mobilização de recursos mais amplos a receber de várias instituições locais e para tal se apelaria à solidariedade das indústrias do concelho e a outros apoios nacionais e até internacionais. Para a aplicação do plano de acção de apoio aos sinistrados foram realizados 98 inquéritos pelo Instituto de Assistência à Família às vítimas da intempérie no concelho. Entre aqueles deveriam estar os inquéritos da Inspecção Geral das Actividades Económicas dirigidos especificamente aos industriais e comerciantes cujas empresas tinham sido afectadas pelas cheias. Abaixo apresentamos 3 exemplares desses inquéritos dos quais constava a inscrição no serviço de apoio às empresas afectadas e a recolha de elementos para avaliação dos prejuízos declarados, numa primeira fase pelos próprios interessados e, posteriormente, pelos agentes do I.G.A.E.

Inquérito às Zonas Devastadas – Leitaria em Algés

Declarações do proprietário

Declarações dos Agentes do I.G.A.E.

Fonte Inquéritos às zonas afectadas, Inspecção Geral das Actividades Económicas, Governo Civil, Inundações 25/26 Novembro 1967, 3856, Arquivo SGMAI

104


Mercearia em Algés

Talho em Linda-a-Velha

Fonte Inquéritos às zonas afectadas, Inspecção Geral das Actividades Económicas, Governo Civil, Inundações 25/26 Novembro 1967, 3856, Arquivo SGMAI

Ao longo dos meses que se seguiram à catástrofe, a Câmara recebeu, por várias vias, muitas votos e manifestações de pesar pelas vítimas do concelho, bem como variadas manifestações de solidariedade de outros Municípios (Caldas da Rainha, Vila Nove de Gaia, Nelas, Porto) e de instituições particulares (Associação dos Inquilinos Lisbonenses, Casa do Alentejo, Federação Nacional dos Produtores de Trigo).

Obras Procurando reparar estragos causados pelas inundações, os serviços camarários procederam a vários tipos de trabalho de que destacamos:214 

reparação das vias de comunicação nas várias localidades afectadas pelas inundações;

214

Reuniões da Câmara Municipal de Oeiras de 2 e 30 de Janeiro, de 27 de Março, de 9 de Abril de 1968, Arquivo Histórico da Câmara de Oeiras. Reunião da Câmara Municipal de Oeiras de 19 de Dezembro de 1967, Câmara Municipal de Oeiras, p. 139.

105


reparação da Escola Masculina de Algés, devido a estragos provocados pela explosão do Forte do Carrascal (4. 970$00);

construção de uma muralha na margem direita da Ribeira de Algés;

limpeza do rinque de patinagem da Associação Desportiva de Oeiras, danificado pelas inundações;

reparação da ponte de Barcarena e desobstrução da sua Ribeira no troço compreendido entre a Ponte e a praia de Caxias;

reparações em Carnaxide, na rua Sacadura Cabral, que ficou completamente destruída. A Câmara conseguiu que as reparações fossem repartidas entre os Serviços Municipalizados e a empresa Solátia. Esta substituiu o colector de águas fluviais, que tinha ficado destruído, por outro de maior diâmetro e os serviços camarários substituíram a rede de água que tinha ficado destruída e procederam à reconstrução dos esgotos. Ficou ainda por fazer, a cargo da Câmara, a reconstrução dos passeios, do pavimento e da rua;

desobstrução dos espaços sinistrados em Algés, onde trabalharam 4 escavadoras mecânicas, dia e noite, enchendo cerca de oitocentas camionetas de lama, correspondente a cerca de 4 mil metros cúbicos da mesma. 215

reparação de arruamentos em Algés, nas ruas Dr. António Granjo, Latino Coelho, Elias Garcia e na Av. Doutor Manuel de Arriaga.

Em termos globais, a Câmara Municipal de Oeiras gastou, nas reparações dos estragos provocados pelas inundações, a verba de 3.520.982$00216

Pedidos de vistorias Na sequência dos estragos materiais provocados em habitações (sobretudo caves) no concelho, muitos moradores escreveram à Câmara, solicitando uma vistoria às suas habitações. Esta enviava os peritos e, em função dos seus pareceres, intimava os proprietários daqueles espaços urbanos a realizar as obras

215

Diário de Notícias, 1 de Dezembro de 1967, p.9.

216

Ofício do Presidente da Câmara ao Governador Civil dando conhecimento dos gastos feitos até final de 1968 Governo Civil, Inundações 25/26 Novembro 1967, 3856, Arquivo SGMAI.

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necessárias para a recuperação dos imóveis (reparação de telhados e algerozes, limpeza de paredes, substituição de pavimentos, etc.). Os peritos iriam depois fiscalizar as obras.217

Donativos e subsídios Como seria de esperar, muitos munícipes que foram atingidos pelas inundações acorreram à Câmara de Oeiras, em busca de auxílio. Entre eles, os desalojados, os comerciantes, os proprietários de automóveis e outros que tinham visto as suas casas inundadas e danificadas, perdendo muitos dos seus haveres. A partir dos inquéritos acima referidos, muitos queixosos apresentavam os danos sofridos e pediam a ajuda das autoridades camarárias e estatais. A quase todos a Câmara, através do seu Presidente e vereadores, procurou dar resposta, concedendo subsídios vindos do seu próprio orçamento ou canalizando apoios recebidos de outras entidades. Quando tal não era possível, procurou encaminhar aqueles pedidos de auxílio para outras instituições oficiais. Foi precisamente o que aconteceu com o pedido solicitado por comerciantes do concelho que o Presidente da Câmara encaminhou para o Ministro do Interior, solicitando ajuda218: Tenho a honra de informar Vossa Excelência de que elevado número de comerciantes deste Concelho, grandemente afectado pelas cheias ocorridas na passada noite de 25/26 do mês findo, e que se encontram em precária situação económica, têm procurado o signatário, manifestando o desejo de se reunirem nesta câmara, a fim de solicitarem do Governo da Nação, auxílio material que os possibilite refazer o que perderam e que, em certos casos, foi perda total. O jornal Ribamar identificou várias casas comerciais do concelho que sofreram danos na sequência da intempérie, a partir de informação recebida do Presidente do Grémio do Comércio do concelho de Oeiras que tinha realizado um inquérito aos comerciantes do concelho para se inteirar dos danos sofridos e das suas maiores necessidades, ao mesmo tempo que procurava angariar ajuda das autoridades para os casos mais urgentes. Curiosamente, na identificação dos danos, foi feita uma distinção entre prejuízos sofridos com a inundação e com a explosão do Paiol do Carrascal. Sabemos que Linda-a-Velha sofreu sobretudo os efeitos da explosão, ao contrário de Algés que foi afectada fundamentalmente pela invasão das águas e da lama das inundações. Contudo, no quadro abaixo, vamos encontrar na zona inundada de Algés, distinções que devem resultar não tanto da exactidão dos danos sofridos, mas da proveniência dos 217

Reunião da Câmara Municipal de Oeiras de 20 de Fevereiro de 1968, Câmara Municipal de Oeiras, pp.41 e 41 verso. 218 Correspondência expedida pelo Presidente da Câmara Municipal de Oeiras ao Ministro do Interior, nº 16 062/67 de 4 de Dezembro de 1967.

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apoios a receber. Os fundos do Ministério da Economia eram exclusivamente dirigidos aos danos provocados pela invasão das águas e da lama, cabendo às autoridades militares cobrirem, com o seu financiamento, os danos provocados pela explosão. Talvez assim esta distinção permitisse o acesso a maiores donativos. Das 150 casas comerciais219 que haviam sofrido danos, selecionámos, aleatoriamente, 10, como uma amostra do todo, que apresentamos no quadro abaixo: Charcutaria «Zínia» Rádio Eléctrica Central de Algés Campos & Marques, Lda Armazéns do Mercado de Algés Cordeiro & Ramos, Lda Confeitaria «Nortenha» Pastelaria «Milu» Representação Algés, Lda Pastelaria «Tá –Mar» Singer Algés

Inundações: 1.050.000$00 Explosão: 600$00 Inundações: 800.000$00 Inundações: 600.000$00 Explosão: 5.000$00 Inundações: 320.000$00 Explosão: 4.600$00 Inundações: 220.000$00 Explosão: 750$00 Inundações: 170.000$00 Explosão: 300$00 Explosão: 15.000$00 Inundações: 10.000$00 Explosão: 10.000$00 Explosão: 2.500$00

Indo ao encontro aos interesses dos comerciantes, o Presidente da Câmara de Oeiras solicitou também a ajuda do Ministério do Interior, nomeadamente no que se refere à concessão de subsídios e de empréstimos, bem como isenção no pagamento da contribuição industrial e do imposto do comércio e da indústria. O Município pediu ainda auxílio material à Cruz Vermelha Portuguesa, para que ajudasse moradores do concelho nas reparações necessárias nas habitações por terem ficado muito danificadas pelas cheias, para além do mobiliário perdido. Este pedido foi justificado pelo facto de a Câmara não ter possibilidades orçamentais de socorrer todos os que necessitavam de ajuda. 220 A satisfação de muitos dos pedidos recebidos pelo Município foi possível devido ao facto de a mesma ter recebido donativos de várias entidades em dinheiro, materiais de construção e outros bens que distribuiu pelas várias instituições do concelho.

219 220

Ribamar, 30 de Dezembro de 1967. Reunião da Câmara Municipal de Oeiras de 13 de Fevereiro de 1968, Câmara Municipal de Oeiras, pp. 31 e 32

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O quadro abaixo indica-nos a proveniência dos apoios e as instituições que os receberam ou as obras que tornaram possíveis:

Ministério da Economia

Ministério do Interior222 Associações Bombeiros Voluntários do concelho 266.406$10

Câmara Municipal de Oeiras 223 224

«Serviço de Apoio à actividade económica da área devastada» 6 mil contos em subsídios e empréstimos a 91 comerciantes do concelho de Oeiras . Na sessão solene de entrega dos subsídios, estiveram presentes os Presidentes da Câmara (António Bernardo da Costa Cabral Macedo), da Comissão de Assistência de Oeiras (António Roquete Campelos) e do Grémio do Comércio (Heitor de Almeida), entre outras personalidades.221 «Comissão de Apoio aos Sinistrados» 7 mil contos em subsídios e empréstimos a 167 comerciantes do concelho de Oeiras. Associações dos Bombeiros Voluntários de Algés: 162.788$00 Associações dos Bombeiros Voluntários do Dafundo: 42.448$10 Associações dos Bombeiros Voluntários de Linda-a-Pastora: 42.070$00 Associações dos Bombeiros Voluntários de Oeiras: 8.250$00 Associações dos Bombeiros Voluntários de Paço de Arcos: 6.850$00 Associações dos Bombeiros Voluntários de Barcarena: 4.000$00 Subsídios concedidos: Subsídio de 1.000 contos, no dia 27, entregue à Comissão Municipal de Assistência/Santa Casa da Misericórdia de Oeiras para fazer face às despesas mais urgentes. ---------------------------------------------------------------------------------------------------------------Bombeiros Voluntários da Amadora - 50.000$00 Bombeiros Voluntários de Carnaxide - 40.000$00 Bombeiros Voluntários de Barcarena - 30.000$00 Bombeiros Voluntários de Oeiras - 30.000$00 Bombeiros Voluntários de Paço de Arcos - 20.000$00

221

Diário de Notícias, 22 de Dezembro de 1967, p.10 Reunião da Câmara Municipal de Oeiras de 13 de Fevereiro de 1968, Câmara Municipal de Oeiras, p. 34 verso 223 Reuniões da Câmara Municipal de Oeiras. Livro de Actas nº 79, 23 de Julho de 1968, p. 150; Reuniões da Câmara Municipal de Oeiras. Livro de Actas nº 80, 10 de Setembro de 1968, p. 39; Correspondência expedida pelo Presidente da Câmara de Oeiras ao Chefe de Gabinete do Ministro do Interior, resposta a pedido de informação,, nº 16 748/67 de 20 /12/1967, p. 135; Correspondência expedida pelo Presidente da Câmara de Oeiras nº 16 904/67, 16 706, 16 814, 16 815, 16 816, 17 032 de Dezembro de 1967. 224 Reuniões da Câmara Municipal de Oeiras. Livro de Actas nº 79, 23 de Julho de 1968, p. 150; Reuniões da Câmara Municipal de Oeiras. Livro de Actas nº 80, 10 de Setembro de 1968, p. 39; Correspondência expedida pelo Presidente da Câmara de Oeiras ao Chefe de Gabinete do Ministro do Interior resposta a pedido de informação,, nº 16 748/67 de 20 /12/1967, p. 135; Correspondência expedida pelo Presidente da Câmara de Oeiras nº 16 904/67, 16 706, 16 814, 16 815, 16 816, 17 032 deDezembro de 1967222

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Câmara Municipal de Oeiras

---------------------------------------------------------------------------------------------------------------Subsídio de 80.000$00 ao Sport Algés e Dafundo para fazer face às despesas resultantes dos prejuízos provocados pela tragédia (orçamento de 1968) ---------------------------------------------------------------------------------------------------------------Legião Portuguesa «Terço de Oeiras» – 1.500$00 Conferência Masculina da Nossa Senhora da Graça – 1.000$00 Linda-a-Pastora Sporting Club – 1.000$00 Sociedade de S. Vicente de Paulo – 1.000$00 Sociedade Musical e Escolar Cruz Quebradense – 1.000$00 Liga Operária Católica Feminina – 1.000$00

Inspecção-Geral dos Serviços de Doação de 78.570$00 à Associação de Bombeiros Voluntários União e Capricho de Linda-a-Pastora, para reparação ou substituição de material danificado pelas Incêndios 225 inundações de organismos oficiais Cruz Vermelha Donativo no valor de 1.155.000$00 para a Câmara Municipal de Oeiras distribuir aos Portuguesa226 sinistrados. Firma de Doação de 5.000 metros quadrados de placas de madeira para construção de 227 Tomar habitações para desalojados em Oeiras.

«Colónia Portuguesa do Pará-Brasil»228

Donativo de 454.209$00 destinado à construção de moradias para as famílias vítimas das inundações de Novembro do ano findo, que não tenham o seu problema habitacional devidamente solucionado, devendo dar-se-lhe uma designação que ateste a proveniência do donativo «Colónia Portuguesa do Pará-Brasil». O montante recebido pelo Ministério do Interior foi enviado para a Câmara Municipal de Oeiras (cheque de 450.000.$00).

Particulares229

50.000$00 + 20 pequenas habitações do tipo C.M.O.

Na sequência da explosão do Forte do Carrascal, várias firmas (10 de Linda-a-Velha, 4 de Carnaxide e 1 de Santa Maria de Belém) solicitaram apoio financeiro aos Serviços de Apoio à Actividade Económica no concelho, mas o Presidente da Câmara, em carta enviada ao Governador Militar de Lisboa, declinou a utilização dos fundos assistenciais existentes para compensar os prejuízos dos queixosos, por considerar

225

Reunião da Câmara Municipal de Oeiras, Livro de Actas nº 79, 1968, 1968, pp. 56 v e 57. Relatório do Presidente da C.M.O., 28 Novembro 1967, Governo Civil de Lisboa, Inundações 25/26 Novembro, Relatórios Presidentes Câmaras Municipais, 3902, Arquivo do SEMAI. 227 Novidades, 30 de Dezembro de 1967, Lisboa, cit. in Cheias no Concelho de Oeiras, Recortes de jornais 196/2008, Vol. II, 2009. 228 Reuniões da Câmara Municipal de Oeiras. Livro de Actas nº 80, 1968, 27 de Agosto de 1968, p. 14. 229 Relatório do Presidente da C.M.O., 28 Novembro 1967, Governo Civil de Lisboa, Inundações 25/26 Novembro, Relatórios Presidentes Câmaras Municipais, 3902, Arquivo do SEMAI. 226

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que os danos sofridos resultaram não das inundações, mas de uma explosão, remetendo a solução do caso para aquelas autoridades militares.230 Houve também situações em que sinistrados do concelho pediam ajuda não directamente ao Município, mas a outras autoridades. Foi o caso de João Augusto Carriço Sant ‘Ana (testemunho a que já nos referimos) que, tendo perdido os seus haveres na sequência das inundações de Algés e sabendo da existência de subsídios para ajudar os que necessitavam, pediu ajuda financeira à Caixa de Previdência da Marinha Mercante (à qual pertencia) e ao Ministério do Interior. Eis o seu testemunho:231 Durante a minha licença, em Lisboa, procurei obter alguma compensação para os prejuízos que enfrentei ocasionados pelas cheias, tais como; mobílias, roupas, objetos de uso pessoal e viatura. Requeri à Caixa de Providência da Marinha Mercante um subsídio para ajuda dos prejuízos que sofri. Em resultado desse meu pedido, foi-me atribuído um subsídio de Esc. 2.400$00 (montante máximo a atribuir para esses casos, segundo me foi declarado). [Ciente de] que esse montante não cobria nem 5% dos prejuízos que sofri, resolvi solicitar ao então Ministério do Interior um subsídio adicional que pudesse cobrir as despesas que tinha de enfrentar. Sabia que, alguns países, entre os quais os EUA, tinham enviado verbas para esse efeito. Mais tarde foi-me concebida a quantia de 20.000$00 escudos. Já deu para comprar alguma mobília nova, roupa para meu filho, mulher e para mim também, além da reparação do meu automóvel que nunca recuperou, pois passados uns meses, germinavam as sementes que vinham na enxurrada e que se infiltraram no interior do carro…era um relvado ...

Casas pré-fabricadas para os desalojados em Oeiras A 2 de Janeiro232 de 1968, tomou posse uma nova vereação, eleita pelo Conselho Municipal. Continuava o mesmo presidente, António Bernardo da Costa Cabral de Macedo. Um dos assuntos tratados foi o problema do realojamento das vítimas das inundações e a consequente necessidade de proceder à substituição dos bairros de barracas no concelho, tarefa importante, mas difícil e que, segundo o Presidente, iria exigir da parte dos senhores vereadores, como presidentes das comissões executivas, um trabalho extremamente árduo e não isento de preocupações e contrariedades. Relativamente ao número de desalojados do concelho, os dados de que dispomos apontam para 1.725 a 30 de Novembro, diminuindo este número para 118 a 20 de Dezembro. Estes últimos teriam sido

230

Correspondência expedida pelo Presidente da Câmara de Oeiras ao Governador Militar de Lisboa, 5/1/1968 João Augusto Carriço Sant ‘Ana, testemunho recolhido por Helena Abreu, Maio 2017. 232 Reunião da Câmara Municipal de Oeiras de 2 de Janeiro de 1968, Câmara Municipal de Oeiras, pp.149 e 149 verso. 231

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distribuídos pelas sedes das corporações dos Bombeiros (76), por edifícios públicos (30) e por instituições vicentinas (12).233 Até à substituição dos bairros de barracas ser uma realidade no concelho, era necessário dar resposta às famílias que tinham ficado desalojadas. Finalmente, a 9 de Janeiro de 1968, 234 foi definido um plano para o realojamento dessas famílias. A Câmara aprovou um projecto destinado às habitações dos desalojados das caves e das barracas e decidiu passar de imediato à sua construção. O plano pressupunha a construção de 2 tipos de habitações e, para tal, existia a verba imediata de 3 milhões de escudos, que seria reforçada no 1º orçamento suplementar que viesse a ser feito. Os empreiteiros escolhidos para as obras viriam a ser indicados pelas comissões de freguesia, mediante concurso público, devendo a Câmara, antes de pôr a obra a concurso, aprovar o respectivo programa e caderno de encargos. A habitual burocracia iria contudo atrasar este plano, em virtude de se ter constatado que, por não estar a obra a realizar inserida no plano de actividades do ano em vigor, já aprovado pelo Conselho Municipal, ela não poderia avançar, a menos que se obtivesse a aprovação daquele órgão, conforme exigia o Código Administrativo. Assim, para evitar que fosse responsabilizada por não cumprir as formalidades legais, a Câmara decidiu suspender a iniciativa, ficando o Presidente com a missão de entrar em contacto com o Governador Civil, para que este solicitasse ao Ministro do Interior a devida autorização. Feitos os contactos, o Governador Civil não deu provimento às preocupações do Município de Oeiras, para desagrado do Presidente da Câmara, preocupado com o realojamento dos desalojados, uma necessidade urgente a exigir medidas igualmente urgentes. Procurando ultrapassar o impasse, a Câmara decidiu pedir ao Governo, através do Governador Civil, a publicação de um diploma legal especial para se resolver o problema e se poder dar andamento à ajuda às famílias desalojadas.235 Em Fevereiro, já com a concordância do Governador Civil, a Câmara avançou finalmente com o plano para a construção das casas do tipo Câmara Municipal de Oeiras para as famílias desalojadas. Foi decidido que essa construção seria feita por fases, que deveria ser adjudicada a construtores por concurso limitado e que os Serviços de Urbanização e Obras da Câmara iriam consultar os empreiteiros

233

Correspondência expedida pelo Presidente da Câmara de Oeiras ao Chefe do Gabinete do Ministro do Interior, resposta a a pedido de informação, nº 16 748/67 de 20/12/1967. 234 Reunião da Câmara Municipal de Oeiras de 9 de Janeiro de 1968, Câmara Municipal de Oeiras, pp. 166/166 verso/167. 235 Reunião da Câmara Municipal de Oeiras de 16 de Janeiro de 1968, Câmara Municipal de Oeiras, pp. 186 verso.

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mais responsáveis e competentes do concelho, para que depois se pudesse escolher a quem a as obras deveriam ser adjudicadas. Não sabemos ao certo o local de construção dessas habitações. Há referência a um agrupamento de casas a ser construído em Cacilhas, outro em Leceia-Barcarena. Desconhecemos a existência de qualquer outro. Os dados são incompletos e, por vezes, contraditórios. Como a construção daquelas habitações não seria imediata, os Presidentes das Comissões de Freguesia ficaram de indicar à Comissão Municipal de Assistência as famílias mais necessitadas de ajuda, para que viessem a ser alojados em casas preparadas para o efeito, até que as novas habitações estivessem concluídas.236 Em Março, 237 foi deliberado adjudicar a obra ao empreiteiro Manuel Amaral, por parecer dos Serviços de Urbanização e Obras. Aquele empreiteiro deveria construir, na zona de Cacilhas, em terreno propriedade da Câmara, 5 Barracas tipo 1,2,3,4 pelo valor de 52.250$00 (10.450$00 cada) e 3 Barracas tipo 5 e 6, pelo valor de 32.850$00 (10.950$00 cada). A execução das obras, a partir do projecto já aprovado, seria fiscalizada pelo Chefe de Serviços de Fiscalização da Câmara. O arrendamento ficaria a 75$00 para as unidades de tipo 1,2,3 e 4 e a 100$00 para as unidades 5 e 6. No mês de Abril,238 o Presidente informou que iriam ser entregues 7 casas (tipo Câmara Municipal de Oeiras) a 7 famílias desalojadas e que os ministros do Interior e da Saúde e Assistência, bem como o Governador Civil, seriam convidados para visitas as casas logo que fossem habitadas. Sobre elas, disse: São casas provisórias, de passagem para outras melhores, mas que servem um mínimo de condições higiénicas. No mês de Maio,239 em Leceia - Barcarena, a escolha recaiu sobre a firma Nova Leceia, de Sérgio dos Santos, a quem foi adjudicada a construção de 10 habitações que incluíam 4 barracas de tipo 5 e 6, pela verba de 34.800$00 e 6 barracas de tipo 1,2,3,4, pela verba de 43.980$00O. O empreiteiro encarregue da obra sugeriu a introdução de novos equipamentos nas casas de banho daquelas habitações (bidé, chuveiro e autoclismo), o que levou a uma actualização do seu valor, que foi aceite pelo Município. 240 No Arquivo Histórico de Oeiras, encontrámos uma «Memória descritiva com planta»241 daquelas habitações que foram definidas como tendo um carácter provisório. Com efeito, essas estruturas eram 236

Reunião da Câmara Municipal de Oeiras de 6 de Fevereiro de 1968, Câmara Municipal de Oeiras, pp. 22 e 22 verso. 237 Reuniões da Câmara Municipal de Oeiras. Livro de Actas nº 78, Sessão de 12 de Março 1968, p. 90 Reunião da Câmara Municipal de Oeiras de 9 de Abril de 1968, Câmara Municipal de Oeiras, pp. 151 e 151 verso. 238 Reunião da Câmara Municipal de Oeiras de 9 de Abril de 1968, Câmara Municipal de Oeiras, pp. 151 a 152. 239 . Reunião da Câmara Municipal de Oeiras de 7 de Maio de 1968, Câmara Municipal de Oeiras, p. 198. 240 Pasta de documentos, 28 de Maio de 1968, Arquivo Histórico de Oeiras.

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consideradas como soluções temporárias até surgirem novas possibilidades de alojamento em habitações definitivas, melhores e mais modernas. Seriam uma transição entre a barraca degradada e a habitação de qualidade. Esta memória descritiva refere-se à barraca tipo CMO que foi projectada, não para resolver um problema estável de habitação de gente humilde, mas sim e unicamente, para substituir a barraca quando esta, pela sua localização, ou por absoluta falta de condições higiénicas e morais mínimas, não pode nem deve subsistir. 242 Essas habitações eram constituídas por blocos de 10 casas de tijolo ligados por argamassa aplicada com argila de areia e cal em pó, cobertas por chapas de fibro-cimento. Dispunham, no seu interior, de instalações sanitárias mínimas, com uma retrete turca e um lavatório com os indispensáveis esgotos e alimentação de água (água canalizada). Aos seus moradores eram exigidas rendas de 50 a 60 escudos mensais. No total, a Câmara de Oeiras gastou, até finais de 1968, a quantia de 298.783$50 na construção de pequenas habitações provisórias para os sinistrados, de tipo C.M.O., em substituição das barracas atingidas pela intempérie.243

Blocos de 10 Barracas tipo CMO

Fonte: Pasta Memória descritiva com planta, 1967, Arquivo Histórico de Oeiras

241 242

Pasta Memória descritiva com planta, 1967, Arquivo Histórico de Oeiras. Pasta Memória descritiva com planta, 1967, Arquivo Histórico de Oeiras.

243

Ofício do Presidente da Câmara ao Governador Civil dando conhecimento dos gastos feitos até final de 1968 Governo Civil, Inundações 25/26 Novembro 1967, 3856, Arquivo SGMAI.

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Barraca CMO Tipo 1 e 2 (alçados posterior, principal e planta)

Fonte: Pasta Memória descritiva com planta, 1967, Arquivo Histórico de Oeiras

Barraca CMO Tipo 6 (alçados principal, posterior e planta)

Fonte: Pasta Memória descritiva com planta, 1967, Arquivo Histórico de Oeiras

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Barraca CMO de Tipo Especial (Casal com 10 filhos) - Porto Salvo

Fonte: Pasta Memória descritiva com planta, 1967, Arquivo Histórico de Oeiras

Dimensões das habitações tipo Câmara Municipal de Oeiras Barraca Tipo 1 Barraca Tipo 2

5,67X 4,40

Barraca Tipo 3 Barraca Tipo 4

Barraca Tipo 5

Barraca Tipo 6

5,58X 4,40

7,08X 4,40

6,13X 4,40

2 quartos - 1,95X1,90 e 2,15X1,90 Sala comum - 3,20X 2,04 Cozinha - 2,10X2,04 WC - 1,10X1,90 2 quartos - 1,95X1,90 e 2,15X1,90 Sala comum - 3,20X 2,04 Cozinha - 2,10X2,04 WC - 1,10X1,90 3 quartos 1,95X1,90 /2,15X1,90 / 1,60X1,90 Sala comum - 3,20X 2,04 Cozinha- 2,10X2,04 WC - 1,10X1,90 3 quartos 2,30X1,90 /2,15X1,90 / 1,60X1,90 Sala comum - 3,75X 2,04 Cozinha - 2,10X2,04 WC - 1,10X1,9

6. 870$20

6.766$00

7.675$50

7.918$40

Fonte: Pasta Memória descritiva com planta, 1967, Arquivo Histórico de Oeiras

Entretanto, foram sendo adjudicadas mais obras do mesmo tipo ao mesmo empreiteiro, vindo a atingir um conjunto de 22 barracas construídas naquele local, a expensas do Município de Oeiras. 116


Um mês depois da tragédia, O Notícias da Amadora244 dava testemunho de que nem tudo corria bem no auxílio prestado às vítimas do temporal: As anomalias verificadas no processo de distribuição do auxílio às vítimas das últimas enxurradas são muitas e gritantes (…). A maior parte dos desalojados, aqueles que ficaram sem as suas já precárias habitações, continuam hoje na mesma situação dos primeiros dias após os temporais. Claro que, e isso é compreensível, situação como esta que se nos deparou não pode ser resolvida, de uma simples penada. (…) Muitos são os casos, digamos de reparo, que até nós nos têm chegado (…) como o desvio de materiais de construção destinados aos desalojados para outras obras de gente desonesta.

A Câmara de Oeiras tomou ainda algumas medidas para evitar a repetição da tragédia de 25 de Novembro. Uma delas prendeu-se com a utilização das caves para alojamento. Assim, foi decidido na reunião camarária de 9 de Janeiro de 1968:245 O Senhor Presidente informou a Câmara de que se verificou que, na maioria dos casos, as caves inundadas foram construídas clandestinamente e, consequentemente, estavam a ser habitadas sem os necessários requisitos. Assim, para obstar, tanto quanto possível à construção de caves clandestinas que resultam da alteração topográfica do terreno, tornando-se perigosas em casos como o que aconteceu na noite de vinte e cinco de Novembro e até insalubres, o Excelentíssimo Presidente propôs que, a partir do dia um de Março, não se recebam projectos para construção de prédios, sem que venham acompanhados de uma declaração em papel selado, assinado pelo técnico responsável, em que se indique que do projecto apresentado fazem parte todas as partes exigidas no artigo dezassete do Regulamento dos Edifícios Urbanos desta Câmara Municipal. E que se enviem circulares a todos os técnicos inscritos na Câmara dando-lhes conhecimento desta deliberação e ainda que sejam arquivados todos os processos que não venham nas condições indicadas.

Um ano depois… Um ano depois da tragédia, era já Marcello Caetano Presidente do Conselho de Ministros, voltou a ser debatido o problema do assoreamento da foz da Ribeira de Barcarena, em Caxias, agravado pelas marés vivas. Foi decidido alertar para a situação a Administração Geral do Porto de Lisboa e o Ministério das Obras Públicas e das Comunicações, para que as populações não voltassem a estar em perigo: Os habitantes dos prédios naquela zona viveram momentos de pânico, pois, dificilmente esquecerão as

244

Notícias da Amadora, 23 de Dezembro de 1967, p. 5. Reunião da Câmara Municipal de Oeiras de 9 de Janeiro de 1968, Câmara Municipal de Oeiras, pp. 165 e 165 verso. 245

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horas particularmente difíceis porque passaram quando das inundações de Novembro do ano findo, que poderão repetir-se com a época das chuvas que se aproxima.246 Também, nessa altura, a situação da Ribeira de Algés preocupava as populações, motivando uma representação daquela localidade a manifestar os seus receios perante a hipótese de futuras inundações na época das cheias que se avizinhava, tanto mais que no mês de Setembro já se tinham registado alguns problemas. À semelhança do que acontecera no caso da Ribeira de Barcarena, foi dado conhecimento da situação à Administração Geral do Porto de Lisboa e ao Ministério das Obras Públicas e das Comunicações.247 A 27 de Novembro de 1969, o novo Presidente da Câmara Municipal de Oeiras, Dr. Manuel Henrique de Matos, mandou que se fizesse um inquérito para determinar as barracas que existiam nas várias localidades e o número de moradores que lá viviam, 248 com a intenção de remover, logo que tal fosse possível, todas as barracas existentes no concelho. Realizado o inquérito, não encontrámos referência nem do número exacto de barracas, nem da população que aí residia. Sabemos apenas que muitas das que existiam entre a Estrada da Circunvalação e o terreno onde estava instalado o laboratório Fidelis eram usadas, pelos seus proprietários, como garagens e arrecadações. A Câmara decidiu proceder à sua demolição e solicitou ao Laboratóro Fidelis o auxílio no realojamento das famílias que viviam nas barracas que dificultavam o acesso ao mesmo.249 Mesmo assim, o número devia ser bastante elevado porque o Presidente da Câmara entendeu justificar a dimensão da construção clandestina como consequência da política do Município de Lisboa que havia iniciado a repressão à construção clandestina de barracas em Lisboa: Tal procedimento traz como consequência o afluxo ao concelho de Oeiras, dada a posição de zona limítrofe, de população que por falta de recursos, procura alojamento em barracas.250 Sabemos apenas que existiam barracas em Algés de Cima e nas zonas de Romeiras. O seu número continuava a crescer, apesar dos propósitos camarários de as reduzir ou extinguir. No ano de 1972, cinco anos após as inundações, o concelho assumia-se como um grande centro comercial e industrial e aí viveriam mais de 250 mil habitantes. Não obstante essa situação, as dificuldades continuavam: o problema da habitação mantinha-se; a rede de estradas mostrava-se obsoleta, sem alterações durante mais de 20 anos; faltavam as infra - estruturas básicas; não havia o

246

Reuniões da Câmara Municipal de Oeiras. Livro de Actas nº 80, 26 de Setembro de 1968, p.81 v. Reuniões da Câmara Municipal de Oeiras. Livro de Actas nº 80, 13 de Novembro de 1968, p.81V 248 Reuniões da Câmara Municipal de Oeiras. Livro de Actas nº 82, 27 de Novembro de 1969, p.148 V 249 Reuniões da Câmara Municipal de Oeiras. Livro de Actas nº 82, 29 de Janeiro de 1970, p.32 V 250 Reuniões da Câmara Municipal de Oeiras. Livro de Actas nº 82, 4 de Dezembro de 1969, p.160 V 247

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serviço de nenhum hospital; os edifícios escolares eram demasiado antigos; e, na freguesia da Amadora, a maior do concelho, continuavam a crescer as barracas e os prédios clandestinos.251 Por essa altura, o Notícias da Amadora tentara publicar um abaixo-assinado com 68 assinaturas que, como se pode ver na ilustração abaixo, foi vetado pela Censura. Nele se criticava a situação de desinteresse e de apatia do Município que não deveria ser muito diferente da de finais de 1967.

Fonte: Censura 16, Inéditos do Arquivo de Censura do Notícias da Amadora (1958-197), nº 35, 29 de Julho de 2004, Arquivo & Biblioteca da Fundação Mário Soares 251

Notícias da Amadora, Dezembro de 1972

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8.3. Legião Portuguesa, Mocidade Portuguesa e Movimento Nacional Feminino A Legião Portuguesa, milícia salazarista criada pelo Estado Novo, em 1936, mantinha-se como uma instituição ao serviço do regime. Tinha sido idealizada como uma milícia paramilitar, uma espécie de «corpo militar», de apoio ao Exército, mas, com o tempo, foi perdendo o fulgor militarista, para passar a intervir mais no campo da luta contra a subversão, nos meios sindical e estudantil. Para tal, a L.P. dispunha de uma rede de informadores e colaborava com a PIDE, a quem não agradava esta competição no controlo ideológico dos cidadãos, por não levar muito a sério as informações recolhidas pelos legionários, que acusava, muitas vezes, de amadorismo252. Diz Irene Pimentel: As denúncias da LP enviadas ao Ministério do Interior começavam habitualmente pela expressão «consta que», pelo que nem sempre este serviço informativo era muito levado a sério pelas autoridades.253 Apesar desta nova vertente de acção, em Novembro de 1967, a Legião Portuguesa esteve também presente no auxílio às populações dos bairros atingidos pelas cheias. 254 Várias equipas de legionários, munidos de pás e picaretas, ajudaram a escavar os escombros nos bairros da Urmeira, em Odivelas; em Vila Franca de Xira (20 homens, 2 camiões e 2 jeeps ocupados na desobstrução de estradas); em Alhandra (viatura com 20 homens); na Fábrica de Papel de S. António do Tojal (cozinha para servir cerca de 100 refeições de cada vez); em Benfica (com moto-bomba para escoamento das águas das casas inundadas); e em Algés, no Palácio Anjos, ficando responsáveis pela alimentação de mais de 100 pessoas. Nos bairros onde estiveram, prestaram também apoio às vítimas, fornecendo macas e cobertores.255 A par destas acções solidárias, aquela instituição salazarista mantinha, paralelamente à PIDE, à GNR e à PSP, uma actividade de fiscalização política dos cidadãos, como se poderá constatar, mais à frente.

A Mocidade Portuguesa, outra das organizações salazaristas criadas pelo regime para enquadramento ideológico da juventude, interveio também no apoio às populações atingidas pelas enxurradas, estabelecendo contactos com as autoridades municipais e disponibilizando-se para a recolha de donativos em agasalhos, géneros alimentares e dinheiro para apoiar as populações necessitadas. 256

252

PIMENTEL, Irene Flunser, História da PIDE, Temas e Debates, 2007, p. 84 Ibidem. 254 Diário de Notícias, 29 de Novembro, p.9. 255 O Século, 29 de Novembro de 1967, p. 10. 256 Diário de Notícias de 5 de Dezembro de 1967, p.9. 253

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Particularmente no concelho de Oeiras, a Mocidade Portuguesa Feminina, em colaboração com a Câmara Municipal, instalou um campo de trabalho entre Linda-a-Pastora e Carnaxide com a tarefa de construir fundações para casas pré-fabricadas destinadas ao alojamento provisório de 18 famílias de desalojados. Aí trabalharam 20 raparigas de escolas industriais, dirigidas por três universitárias257 A Câmara Municipal de Oeiras na sua reunião deliberou por unanimidade exarar em acta, um voto de agradecimento à Mocidade Portuguesa, pela sua colaboração dada aquando da catástrofe de vinte e cinco para vinte e seis de Novembro passado, e agradeceu as facilidades concedidas para alojamento dos sinistrados nas suas instalações, o que muito contribuiu para aliviar o sofrimento das vítimas. 258

O Movimento Nacional Feminino (MNF), outra das organizações de suporte ideológico do Estado Novo, também prestou apoio às vítimas das intempéries de 1967. Criado, em 1961, no ano em que se iniciou a Guerra Colonial, por Cecília Supico Pinto, mulher de Luís Supico Pinto (chegou a ser ministro da economia de Salazar e presidente da Câmara Corporativa), teve desde logo o apoio de Salazar. Para além da prestação de uma série de serviços úteis de apoio aos militares e às suas famílias numa Guerra Colonial imposta e para a qual o país não estava preparado, o MNF serviu ideologicamente o regime, promovendo a doutrinação ideológica e moral junto das mulheres e dos soldados para a aceitação dessa mesma guerra. A intervenção do MNF no apoio às populações sinistradas em consequência das cheias de 1967, concentrou-se no concelho de Vila Franca de Xira, com vista a apoiar as populações em sofrimento. Cecília Supico Pinto e as outras filiadas no MNF, por representarem, aos olhos das populações, a elite do regime que tão mal as defendera da fúria das águas e da acumulação da lama, não foram bem recebidas nos bairros pobres de Vila Franca de Xira. A presença, no mesmo local, de brigadas de estudantes universitários também não deveria ter ajudado. Supico Pinto dizia que os estudantes eram complicadíssimos e que o ambiente não podia ser pior, de cortar à faca. 259 Sílvia Espírito Santo, que estudou aquela personalidade emblemática do Estado Novo, conta-nos como tudo aconteceu:260 Foi num clima de calamidade e contestação ao Governo que Cilinha, juntamente com outras filiadas no MNF, enfrentou a população de Vila Franca de Xira, uma das zonas mais afectadas pelo temporal. Hostilizada por pessoas desesperadas e desconfiadas de toda a proximidade com o regime – a quem

257

Diário de Notícias, 9 de Dezembro de 1968, p.7. Reunião da Câmara Municipal de Oeiras de 12 de Março de 1968, Câmara Municipal de Oeiras, pp. 90 e 90 v. 259 SANTO, Sílvia Espírito, Cecília Supico Pinto. O rosto do Movimento Nacional Feminino, A Esfera dos Livros, 2008, pp. 131 a 133. 260 Ibidem. 258

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responsabilizavam pela extensão da calamidade como consequência do atraso endémico do país -, impôs-se pela firmeza das palavras e a concretização de promessas. Tinha, segundo afirmou aos presentes, dois objectivos e ia cumpri-los: socorrer as famílias de militares e responder, com exactidão, aos inúmeros pedidos de informação que chegavam ao MNF, vindos das «províncias ultramarinas», e não seria uma má recepção que a demoveria de os cumprir. O facto de se ter envolvido pessoalmente no auxílio às vítimas e mobilizado com rapidez a rede das mulheres do Movimento e dos poderes intermédios que conhecia e dominava, e de ter providenciado comida, roupas e até caixões para enterrar os mortos que se amontoavam na igreja, fez com que as iniciais divergências fossem, por momentos relegadas para segundo plano.

Lista de Donativos recebidos no MNF para os sinistrados das inundações de Novembro de 1967

Fonte: Guerrilha, nº 7, Janeiro de 1968, p.27 Cit. in SANTO, Sílvia Espírito, Cecília Supico Pinto. O rosto do Movimento Nacional Feminino, A Esfera dos Livros, 2008, pp.132

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Dois anos depois, em Julho de 1969, Cecília Supico Pinto recebeu a medalha de ouro do concelho de Vila Franca de Xira, pelos «relevantes serviços prestados aquando das enxurradas de 1967», entre os quais se deveriam incluir, naturalmente, a lista dos donativos recolhidos que se apresentam na lista cima, para serem distribuídos pelos sinistrados.261

8.4. Forças militares e militarizadas No apoio às populações foi solicitada a ajuda do Exército, da Força Aérea e da Marinha. Soldados de várias unidades militares da região de Lisboa, num total de mais de 1.500 homens, prestaram diferentes tipos de apoio nas regiões atingidas: desobstrução de vias de acesso às localidades e habitações; remoção de cadáveres; evacuação das populações das habitações inundadas; socorro a vítimas; doação de géneros alimentares e de agasalhos; instalação de centros de operações de salvamento; policiamento das ruas; desobstrução das vias de caminho de ferro; posterior arranjo de arruamentos. Para fazer referência apenas a alguns casos, registe-se a participação de 250 cadetes da Academia Militar na região de Alverca, 30 fuzileiros navais em Odivelas, 45 fuzileiros especiais no vale do Zebro e a participação de operacionais da Escola Militar de Electromecânica de Paço de Arcos, do RAL1 (futuro RALIS) e da Base Aérea Nº 2 da Ota em Alenquer. Uns e outros prestaram ajuda com barcos pneumáticos movidos a remos. Tinham como função principal a remoção dos cadáveres afogados de homens, mulheres e crianças que se encontravam aprisionados dentro das casas ou a boiar nas águas e a ajuda aos sobreviventes, levando-os para lugares protegidos. Eis o testemunho de Helder Casimiro, de serviço no RAL1, no dia 26 de Novembro: Cheguei ao quartel com dificuldade e fui destacado com um grupo de soldados para Alhandra onde o comboio tinha sido travado pela enxurrada. Não sei quantos mortos eram, mas vi, pelo menos, duas camionetas cheias de corpos que eram amontoados nas caixas de carga. 262 No concelho de Oeiras, em ligação com os bombeiros locais, participaram nas operações de salvamento dois pelotões da Escola Militar de Electromecânica de Paço de Arcos, que se concentraram na desobstrução as ruas que ficaram inundadas de lama, nomeadamente a Rua Costa Pinto que se tornou completamente intransitável, bem como as artérias vizinhas.263 Aquela escola militar prestou também ajuda através do fornecimento de géneros alimentares, roupas e enxergas às populações sinistradas. 261

Guerrilha, nº 12, Agosto de 1969, p.13 cit. in SANTO, Sílvia Espírito, Cecília Supico Pinto. O rosto do Movimento Nacional Feminino, A Esfera dos Livros, 2008, p.131. 262 Comentário de Helder Casimiro a propósito das cheias de 1967, Facebook da C.M.L., 26 de Novembro de 2014. 263 Notícias da Amadora, 2 de Dezembro de 1967, p.4.

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Outras forças militares prestaram também auxílio como a Base Aérea Nº 2 da Ota264, que enviou militares para Alenquer para fazer o policiamento e a vigilância da noite, utilizando grandes holofotes direccionados para a parte baixa da cidade, completamente inundada. Aquela unidade enviou também diversas máquinas para ajudar na limpeza das ruas e disponibilizou pão para os sinistrados de Alenquer. Numa nota interna, o seu Comandante transmitia: NÓS PODEMOS PASSAR SEM PÃO. Mandem-no todo para ALENQUER.265

9. O apoio das várias corporações de Bombeiros Em todas as zonas atingidas pela enxurrada, eram constantes os pedidos de socorro às várias corporações de bombeiros. Estes acorriam aonde podiam, mas muitas vezes eram bloqueados no caminho. Não obstante, estiveram presentes todas as corporações de bombeiros dos concelhos atingidos, ainda auxiliadas por outras de localidades vizinhas. Por todo o lado, procediam ao escoamento da água e da lama, salvavam pessoas presas nas casas e automóveis e transportavam os mortos e os feridos para os hospitais. Os Bombeiros Voluntários de Oeiras prestaram ajuda nas zonas mais atingidas, como a zona da Laje, a parte baixa da vila, o jardim e parque municipais, o Palácio do Marquês de Pombal, o Centro de Biologia da Fundação Gulbenkian, a Estação Agronómica e a zona da Quinta do Marquês. Aquela corporação de bombeiros colaborou também com a Paróquia de Oeiras no apoio às populações sinistradas, nomeadamente no alojamento provisório de crianças nas suas instalações e na recolha de roupa e géneros alimentares. A intervenção dos Bombeiros Voluntários de Paço de Arcos foi também fundamental. Segundo o Notícias da Amadora266, 35 bombeiros voluntários daquela localidade, dirigidos pelo Subchefe João Freitas, estiveram mais de 24 horas em acção, acorrendo aos 60 pedidos de auxílio que lhes chegaram naquelas horas de aflição, vindos de Paço de Arcos, Caxias, Laveiras e Murganhal. Chegaram mesmo a colaborar na extinção do incêndio do Forte do Carrascal. Dada a extensão da tragédia, tiveram que usar vasto material como viaturas para transporte do pessoal, um pronto-socorro, um autogerador eléctrico,

264

Memória de Carlos Cordeiro in RAPOSO, Raquel; LOURENÇO, José Leitão; SANTOS, Alberto, A NOITE MAIS LONGA história e memória da cheia de 25-26 de Novembro de 1967, Alencultura editorial, Alenquer, 2017, p. 221 265 RAPOSO, Raquel; LOURENÇO, José Leitão; SANTOS, Alberto, A NOITE MAIS LONGA história e memória da cheia de 25-26 de Novembro de 1967, Alencultura editorial, Alenquer, 2017, p. 135. 266

Notícias da Amadora, 2 de Dezembro de 1967, p.4.

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motobombas e 4 ambulâncias (3 delas cedidas pelo Serviço de emergência 115 e pelos Bombeiros Voluntários do Dafundo e de Oeiras). Também fundamental para o auxílio às populações foi a acção dos Bombeiros Voluntários de Algés. Helena Abreu, moradora naquela localidade e ainda criança, recorda a sua acção: 267 Lembro-me de ter chovido muito nessa tarde e de continuarem a cair grossas bátegas, sem cessar. Não sei quando nos demos conta de que a situação estava a tornar-se perigosa. Creio que foi tudo muito rápido. De repente, a Rua Damião de Góis era um rio e os carros iam arrastados na corrente para acabarem empilhados junto ao jardim ou à marginal. (…) Entretanto as pessoas das casas de trás tiveram de subir para cima do telhado. Lembro-me de ver a Menina Maria e o filho, mais umas pessoas, a gritarem para que nós os fôssemos salvar. Era desesperante, ninguém sabia muito bem o que fazer. Nisto surgiram uns bombeiros que avançavam com água pelo peito. (…) Já não me lembro como é que os bombeiros conseguiram fazer descer as pessoas de cima do telhado. Fizeram uma fila indiana, os bombeiros a apoiar os mais fracos, até saírem pelo que hoje corresponderia à boca do túnel do Pingo Doce. Os Bombeiros Voluntários de Barcarena, com uma grande limitação meios, actuaram como puderam, como recorda Vasco Pereira, então sub-chefe dos bombeiros daquela localidade268: Limitámo-nos a colaborar, limpeza das ruas, cortar as árvores e tal. Mas como não tínhamos meios, naquele tempo os meios eram escassos, tivemos que chamar o batalhão de sapadores bombeiros para trazerem uma grua e umas moto-serras. Naquele tempo, os bombeiros eram só uma coisa, nada comparado com o material que têm hoje. Então veio o batalhão, com uma grua, puxaram o eucalipto para cima, foi todo cortado com umas serras grandes porque era um eucalipto muito grande e puxado. Na região de Loures, como em todos os outros locais atingidos, o quartel dos Bombeiros Voluntários rapidamente se transformou num dos locais que melhor refletia toda a tragédia. Apesar do seu espaço exíguo, tornou-se o centro de informações locais e um centro de apoio às populações que acorriam a pedir notícias e a prestar apoio. Referia o Diário de Notícias269: Os vivos iam ali saber dos mortos; as famílias, aos gritos, aos gritos insistentes, iam ali perguntar pelos desaparecidos, que são em número bastante elevado. (…) Por toda a vila, carros com altifalantes percorreram as ruas, solicitando agasalhos e alimentos para os que ficaram ao desabrigo. (…) Constantemente chegavam peças de roupa e de calçado, cobertores e

267

Helena Abreu, depoimento na Biblioteca Municipal de Algés, 15 de Setembro de 2016. Vasco Henrique Monteiro Pereira subchefe da Corporação dos Bombeiros Voluntários de Barcarena, na época das cheias. Testemunho registado por Helena Abreu. 269 Diário de Notícias, 28 de Novembro de 1968, p.9. 268

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colchões; panelas de sopa, cabazes de pão, jarros de leite e de café, garrafões de vinho, travessas com comida, pães, chouriços, presuntos, caixas de cerveja, etc. Mais tarde, para desanuviar a confusão reinante no quartel e permitir uma maior eficácia do apoio aos sinistrados nas zonas inundadas, o então Presidente da Câmara de Loures disponibilizou um edifício que estava destinado ao tribunal da vila, para que aí fosse prestado auxílio às populações que chegavam a pedir e dar auxílio. Odivelas foi uma das localidades mais fustigada pelas cheias de Novembro de 1967, com um elevado número de mortos. Fernando de Oliveira Aleixo, então Comandante daquela corporação, elaborou um relatório dos serviços prestados pela Corporação dos Bombeiros Voluntários de Odivelas nos dias 25 e 26 Novembro de 1967 e que constitui um testemunho essencial para compreendermos a importância que esta e as outras corporações tiveram durante aqueles tágicos dias. Dele transcrevemos alguns excertos e informações:270 A primeira chamada de pedido de socorro foi recebida pelas 21,10 horas para o lugar do Silvado, onde havia várias barracas inundadas e animais em perigo. (…) Às 22,30 horas começaram as chamadas de [auxílio] para gente que se encontrava em perigo nos seguintes locais: Bairro Espírito Santo, Silvado, Pombais, Póvoa de Santo Adrião, Olival de Basto, Senhor Roubado, Urmeira, Bairro de Santa Maria, Pontinha, Serra da Luz, Famões, Bairro da Barrosa, Odivelas, etc. As viaturas começaram a sair por ordem de urgência até às 23,10 horas. Às 23,40 estava consumada a grande catástrofe com todas as estradas cortadas para Odivelas, e centenas de pessoas a gritar pedindo para as salvar. Foi também solicitado, pelo comandante de bombeiros, um helicóptero à Força Aérea e um pedido de ajuda aos Fuzileiros Navais para poderem acudir às vítimas. Foram salvas 58 pessoas e prestados outros apoios como alojamento, alimentação durante 4 dias e entrega de roupas doadas pela população solidária.271 Segundo aquele relatório, pelas 4h do dia 26, começaram a chegar ao quartel os primeiros corpos dos sinistrados, homens, mulheres e crianças, levados por barcos de borracha daquela corporação e também dos Fuzileiros Navais, que entretanto tinham ido ajudar. Às 16h, tinham já sido recolhidos 61 cadáveres, aos quais se juntariam mais 3 nos dias seguintes. Na ajuda prestada, aquela corporação ficou com todas as suas viaturas danificadas, bem como o seu Auto-Pronto Socorro Tanque nº 2, por ter sido também arrastado na enxurrada. Nos dias seguintes, o trabalho de auxílio continuou, com o apoio de outras corporações, procedendo-se, então, à remoção das terras alagadas e das viaturas encalhadas, à recolha dos corpos dos animais

270

ALEIXO, Fernando de Oliveira, Relatório dos Serviços Prestados Por Esta Corporação nas Inundações de 25/26 de Novembro de 1967 in METEOPT.COM, 26 de Novembro de 2007. 271 Ibidem.

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mortos e à procura de mais vítimas entre os escombros. Diz o relatório que, temendo uma epidemia como resultado do elevado número de mortos no quartel, o Comandante pediu medidas de segurança aos serviços de saúde que enviaram pessoal e material para se proceder à vacinação das pessoas.

Neste ano de 2017, 50 anos passados sobre as cheias de 1967, os Municípios dos concelhos atingidos avivam as suas memórias. Foi o que já aconteceu no dia 28 de Maio de 2017272, numa iniciativa conjunta da Câmara Municipal de Odivelas, da Sociedade Musical Odivelense e da Rádio Cruzeiro. Foi feita uma homenagem aos 9 bombeiros sobreviventes que, em Novembro de 1967, tinham prestado auxílio às populações locais. A homenagem teve lugar na Sociedade Musical Odivelense. Foi projectado um documentário, expostas fotografias daqueles dias dolorosos e tocou a Banda Filarmónica da S.M.O., dirigida pelo Maestro Fernando Palacino. Para além dos discursos oficiais, procedeu-se à entrega emocionada de uma placa de homenagem a cada um dos nove bombeiros que viveram o drama e que socorreram as populações: Guilherme Duarte Esteves, Vitor Manuel Cruz Cardoso, Abílio Rodrigues da Silva, José Marques Martins, Eduvigo Dias, João António Caeiro de Brito, Jaime Dias da Assunção, Orlando de Jesus Cardoso e Zeferino Correia Moreira. Abílio Rodrigues da Silva273, um dos homenageados, nunca esqueceria aqueles dias dolorosos de Novembro de 1967. Recorda que quando chegou ao quartel dos bombeiros de Odivelas, às 6 da manhã do dia 26 de Novembro de 1967, já lá estavam 17 mortos. Durante os três dias e noites seguintes, nunca parou, ele e os colegas, ninguém foi à cama ou a casa, e Abílio ainda hoje se espanta de como aguentou e aguentaram todos. "Passaram-me 63 mortos pelas mãos." Contou-os. E passaram de forma literal: era preciso tirá-los da lama, carregá-los de braços ao alto em tábuas, que não havia macas – nem, na maior parte dos sítios, carro que passasse –, e levá-los até ao quartel. "Os corpos eram contados e levados para o Instituto de Medicina Legal, onde eram arrumados por área de origem e "estava cheiinho até acima, íamos todos lá levar, de Algés, de outros sítios, de todo o lado, andávamos por cima dos corpos para pôr os outros". (…) Quando finalmente parou e voltou a casa, não ia o mesmo: «Não consegui pegar nos meus filhos ao colo». Um era bebé, o outro com 2 ou 3 anos. «Não consegui.»

272

Homenagem aos Bombeiros que participaram nas inundações de 1067 in Site oficial da Câmara Municipal de Odivelas, 29 Maio 2017. 273 Revista Sábado, «Ainda há lá corpos enterrados», Maria Henrique Espada, pp.44 a 50, www.sabado.pt

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10. As Instituições Católicas 10.1. Cruz Vermelha Portuguesa, Santa Casa da Misericórdia, Cáritas e Conferências de S. Vicente de Paulo Segundo documentação da Cruz Vermelha Portuguesa274 (C.V.P.), a zona sinistrada foi dividida por várias instituições que se prontificaram a prestar auxílio às vítimas das inundações. Entre elas, a própria C.V.P., a Misericórdia de Lisboa, a Cáritas e o Instituto de Assistência à Família. Eventualmente, todas serão referidas nas várias localidades, mas será nos concelhos atribuídos a cada uma que poderemos compreender melhor o alcance da prestação do seu auxílio às populações.

Cruz Vermelha Portuguesa Sabemos, pela imprensa, que a Cruz Vermelha Portuguesa esteve presente em muitas localidades, no entanto, segundo a informação acima, foi-lhe atribuído o concelho de Loures como local específico para a sua acção directa de apoio às comunidades. Naquele concelho, a Secção Auxiliar Feminina da Cruz Vermelha Portuguesa275 formou uma Comissão Coordenadora de Auxílio às vítimas e criou postos de distribuição, de socorro e refeitórios, onde as suas equipas prestavam auxílio, acompanhadas por outros voluntários locais. Nesses postos, a C.V.P. fazia doação de roupas, calçado, cobertores, lençóis, colchões, géneros alimentares, louças e talheres, mobílias, utensílios de trabalho, fogões a gás e de petróleo, caloríficos, ferros de engomar, etc. Todo este material doado provinha das outras instituições já acima identificadas. Nesses locais, também se atribuíram subsídios para realojamento e aquisição de mobiliário, bem como indemnizações às vítimas da chuva torrencial. Grande parte daqueles subsídios e indemnizações era proveniente da subscrição pública iniciada pelo Diário de Notícias, no dia 27 de Novembro, e que atingiu o valor de 18.624.075$90 a 14 de Janeiro de 1968, dia em que foi encerrada. Durou 7 semanas e 49 dias. Foi a maior subscrição pública que, até então, acontecera no país.

274

Cruz Vermelha Portuguesa. Inundações de 25 de Novembro de 1967. A acção desenvolvida pela Secção Auxiliar Feminina da Cruz Vermelha Portuguesa em todo o concelho de Loures, e auxílio prestado a toda a zona sinistrada. 275

Ibidem.

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Ao iniciar aquela recolha de fundos para as vítimas das inundações, o Diário de Notícias informou todos os que nela quisessem participar que todas as doações seriam entregues, à medida que iam chegando ao jornal, à C.V.P., que procederia à sua distribuição pelos necessitados conforme achasse mais conveniente. Naturalmente, aquela instituição agradeceu ao jornal, a honra e a confiança que depositou na Cruz Vermelha Portuguesa entregando à sua guarda o resultado integral da extraordinária subscrição aberta nas colunas do seu Jornal a favor das vítimas das inundações.276 No concelho de Loures, mais precisamente no Bairro da Urmeira, um dos lugares que mais sofreu com a intempérie, com elevado número de mortos e muitos desalojados, a C.V.P. montou, no terreno da Escola Agrícola de Paiã, um acampamento com 5 grandes barracas de campanha onde ficaram instalados 130 desalojados. Este acampamento integrou várias equipas de médicos, enfermeiros e maqueiros que prestaram assistência aos sinistrados. Aí se confeccionaram e foram distribuídas refeições com ajuda de uma cozinha móvel de reforço, fornecida pelo Exército,

277

com víveres fornecidos pela própria C.V.P., pela

Manutenção Militar e pela Escola Agrícola. No dia 10 de Dezembro, com o apoio do Exército, os desalojados foram transferidos para uma dependência do estabelecimento, que se situava mais perto da Bairro da Urmeira, onde foram instalados dois grandes dormitórios, um para homens e outro para mulheres. A cargo do Exército ficou também a montagem de uma tenda-refeitório, cozinhas e instalações sanitárias. A C.V.P. montou ainda diferentes pontos de apoio em dependências de várias instituições para que a ajuda às populações pudesse ser mais abrangente, tal como se pode observar no quadro abaixo:278 Postos Coordenadores e de Distribuição da C.V.P. Escola Eugénio dos Santos Grupo Recreativo Olival Basto

Quinta da Várzea

Fornecimento de refeições a 100 pessoas por dia. Assistência a 452 famílias, num total de 1.492 pessoas. Distribuição de géneros alimentares e de roupa a mais de 420 pessoas. Fornecimento de uma média de 150 refeições por dia, num refeitório instalado na Igreja Paroquial. Instalação de um refeitório que passou a servir 200 refeições por dia e esteve em funcionamento até Março de 1968. Também se distribuíam géneros a famílias que podiam fazer as refeições em suas casas.

276

Cruz Vermelha Portuguesa. Inundações de 25 de Novembro de 1967. A acção desenvolvida pela Secção Auxiliar Feminina da Cruz Vermelha Portuguesa em todo o concelho de Loures, e auxílio prestado a toda a zona sinistrada, p.39 277 Ibidem. 278 Ibidem.

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Póvoa de S. Adrião Grupo Desportivo de Frielas Loures Junta de Freguesia de Fanhões Junta de Freguesia de Bucelas Junta de Freguesia de S. Júlio do Tojal Sede dos Bombeiros Voluntários de Sacavém S. Iria de Azóia

Atendimento a 274 famílias, num total de 732 pessoas. Atendimento a 144 famílias num total de 354 pessoas. Distribuição de géneros, roupa e outros bens a 293 famílias num total de 1.021 pessoas. Distribuição de 3 mil litros de leite, doados pela UCAL. Visitas a todas as casas atingidas e assistência a 76 famílias, num total de 160 pessoas. Visitas a todas as casas atingidas e assistência a 134 famílias num total de 305 pessoas. Distribuição de peixe três vezes por semana. Ajuda de empresas de transporte na distribuição de colchões, roupas, mobiliário e roupa. Assistência a 84 famílias, num total de 128 pessoas. Assistência a 144 famílias, num total de 508 pessoas. Assistência a 10 famílias, num total de 36 pessoas, por uma brigada de voluntários.

Se juntarmos toda a ajuda prestada pela C.V.P. nos lugares acima indicados (mais de 2.000 famílias e de 5.000 pessoas) e tivermos a consciência de que se trata apenas da amostra de um dos concelhos atingidos, ficaremos com uma ideia da real dimensão da tragédia que se abateu sobre as populações da Grande Lisboa em Novembro de 1967. No relatório apresentado em Março de 1968, onde se descreve a acção desenvolvida pela Secção Auxiliar Feminina da Cruz Vermelha Portuguesa no concelho de Loures e do qual foram retirados os dados acima apresentados, Maria Margarida Thomas de Morais, a sua Presidente, agradeceu a ajuda de todos os que colaboraram e, sobretudo, a ajuda dos estudantes das várias Faculdades, Colégios e Escolas que ajudaram em vários trabalhos, com uma dedicação digna dos maiores louvores.279 O apoio possivelmente não terá chegado a todos, ou talvez a eficácia da distribuição do auxílio às vítimas não tivesse sido a mesma nos vários concelhos. Houve vozes magoadas pela ajuda não chegou, como acontece em todas as tragédias, independentemente do tempo histórico em que ocorrem e do regime que governa o país. Moradora no concelho de Oeiras, Elisabete Aguardela recorda que, em grande parte dos casos, cada família resolvia os seus problemas sem ajudas. No caso particular dos seus tios, que a custo se salvaram da cave em que viviam em Algés, relembra: Os meus tios ficaram sem nada. (…) Foram realojados pela Cruz Vermelha porque houve muitos auxílios externos, mas as pessoas pouco receberam. Cobertores e 279

Cruz Vermelha Portuguesa. Inundações de 25 de Novembro de 1967. A acção desenvolvida pela Secção Auxiliar Feminina da Cruz Vermelha Portuguesa em todo o concelho de Loures, e auxílio prestado a toda a zona sinistrada, p.39.

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pouco mais. Foram realojados em Caxias e depois, pelos seus meios, voltaram para Algés. Pouco receberam. Magoada desde então, Elizabete Aguardela deixou de dar donativos à Cruz Vermelha. 280 Mais difícil de entender é a atitude da Cruz Vermelha Portuguesa perante a disponibilidade das suas congéneres europeias em prestar a sua ajuda solidária a Portugal. Sabemos que a Cruz Vermelha Internacional se disponibilizou para ajudar as populações portuguesas atingidas pela catástrofe (Cruz Vermelha Francesa281 e a Liga das Sociedades da Cruz Vermelha, com sede em Genebra), mas aparentemente aquela ajuda não chegou a acontecer, porque a C.V.P. recusou dinheiro, socorros médicos, medicamentos e outros auxílios com a justificação de «nada necessitarem», atendendo a que as medidas governamentais e a generosidade dos portugueses tinham conseguido satisfazer as necessidades das populações sinistradas. 282. Foi, no mínimo, uma tomada de posição estranha, tendo em conta o grande número de pessoas que ficou sem alojamento, com os seus bens destruídos e com uma imensa necessidade de reconstrução. Nessa medida se compreende a crítica, de autor não identificado, formulada em carta conservada nos arquivos da Censura, que se indignava, na altura dos acontecimentos, com a recusa daquela instituição em receber auxílio das suas congéneres: 283 Um país como o nosso, devem ter dito de si para si, não precisa cá de auxílio do estrangeiro. O português é valente e há-de se arranjar sozinho. (…) O orgulho nacional fica-lhes bem, comove mesmo na sua dignidade de pobreza honrada. Os sinistrados, porém, talvez se não importassem de aceitar o dinheiro e os medicamentos e o que mais que viesse da Cruz Vermelha Internacional (…). Talvez a constatação das reais necessidades das populações tivesse feito a Cruz Vermelha Portuguesa mudar de opinião, porque acabaria por aceitar a ajuda da Cruz Vermelha Inglesa, que enviou 1.750 quilos de carga diversa para distribuir pela população sinistrada.284

A Santa Casa da Misericórdia Como já foi dito acima, os vários concelhos da Grande Lisboa mais duramente atingidos pela intempérie de Novembro de 1967 foram, no que se refere à prestação de auxílio às populações, divididos pelas várias instituições que se disponibilizaram para o fazer. A Santa Casa da Misericórdia de Lisboa foi uma dessas instituições. Tentámos junto do Arquivo Histórico da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa obter dados que nos permitissem ter uma perspectiva mais

280

Elisabete Aguardela, Registo áudio na Biblioteca Municipal de Algés a 9 de Outubro de 2015. Nouvelles de la Croix rouge française, Source gallica.bnf.fr / Croix Rouge Française. 282 O Século, 28 de Novembro de 1967. 283 O Portuguesinho valente, 1967, DBE, Arquivo & Biblioteca da Fundação Mário Soares. 284 O Século, 29 de Novembro e 1 de Dezembro de 1967. 281

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alargadas sobre a sua acção nas localidades onde ela aconteceu, mas tal não foi possível pela ausência de documentação relevante. Segundo Francisco d'Orey Manoel

285

daquela instituição, há apenas

referência à aquisição de panos e cobertores para as vítimas das cheias e de donativos da Santa Casa da Misericórdia do Porto para os sinistrados, no valor de 184.074$00.286 No que se refere à Santa Casa da Misericórdia de Oeiras, sabemos que lhe foi dado um papel de destaque no Diagrama do Plano de Acção Assistencial no Concelho de Oeiras já apresentado num tópico anterior. Lamentavelmente, não conseguimos ter acesso aos seus arquivos. Não se encontram nem no Arquivo Histórico de Oeiras, nem na própria instituição. Apesar dos vários contactos estabelecidos, ninguém na Santa Casa da Misericórdia de Oeiras foi capaz de esclarecer onde se encontram. Não podemos deixar de lamentar que assim aconteça numa instituição que existe no concelho de Oeiras desde Dezembro de 1926 e que, necessariamente, tanto tem contribuído para o apoio às populações mais necessitadas.

Cáritas de Lisboa A Cáritas foi outra das instituições presentes no auxílio às populações atingidas pelas inundações de 1967. Estiveram envolvidos nessa acção solidária 227 voluntários, que se deslocaram para as zonas sinistradas onde procederam à distribuição de roupas e de géneros alimentares. Os bens distribuídos resultaram de vários donativos nacionais e até internacionais. Por iniciativa do Cardeal-Patriarca de Lisboa, em todas as missas dominicais do dia 3 de Dezembro, foi feita uma recolha de donativos em dinheiro, roupa e géneros, que foi depois entregue à Cáritas para proceder à sua distribuição pelas populações mais carenciadas.287 Do estrangeiro, a Cáritas recebeu donativos do Papa Paulo VI, da Cáritas Internacional e da Cáritas alemã, no valor de 10.000 dólares. Só da Cáritas alemã, recebeu 9 toneladas de cobertores e de medicamentos. A Cáritas Espanhola doou meio milhão de pesetas e procedeu a uma recolha de donativos em todas as dioceses de Espanha com o objectivo de ajudar as vítimas das inundações de Novembro. 288 285

Francisco d'Orey Manoel, email enviado a 8 de Janeiro de 2018, em resposta a um pedido de consulta ao acervo do Arquivo da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. 286 Donativo da Santa Casa da Misericórdia do Porto e dádivas dos seus funcionários e do público daquela cidade para as vítimas da catástrofe que assolou os arredores de Lisboa em 26 de Novembro de 1967, cedido por Francisco d'Orey Manoel, Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, 8 de Janeiro de 2018. 287 288

O Século, 1 de Dezembro de 1967, p.6. O Século, 1 de Dezembro de 1967, p.6.

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Da francesa Secours Catholic chegaram 4 toneladas de vestuário e de agasalhos e dos Estados Unidos da América chegou a ajuda solidária da American Catholic Relief Services.289 Na sequência de todas as ajudas recebidas no país e do estrangeiro, os voluntários da Cáritas puderam distribuir grandes quantidades de roupas, cobertores e medicamentos, através das paróquias das localidades mais atingidas pela destruição das chuvas torrenciais e da lama, que tudo cobriu num manto desolador.290

As Conferências de S. Vicente de Paulo Várias voluntárias, que integravam as Vicentinas, movimento católico de leigos que se dedica, hoje como em 1967, a iniciativas que ajudem a minorar o sofrimento do próximo, em particular dos que vivem com maiores dificuldades económicas, mobilizaram-se também no apoio às vítimas das inundações de Novembro. Nos vários bairros atingidos pelas cheias, nos lugares de abrigo para onde eram levados os desalojados, nas paróquias e nos hospitais, as Vicentinas estiveram presentes, distribuindo alimentos, roupas e apoio espiritual. Na ausência de dados objectivos que permitam fazer uma abordagem geral à forma como aquele movimento interveio nos vários lugares, optámos por falar da solidariedade activa das Vicentinas, através de 3 testemunhos que nos mostram também perspectivas diferentes do modo como nos inserimos no mundo e nos relacionamos com os outros. Conceição Monteiro,

291

prima de Francisco Pinto Balsemão, cunhada de Luís Sttau Monteiro e que se

viria a tornar secretária pessoal de Francisco Sá Carneiro depois do 25 de Abril, tinha uma situação económica privilegiada e fazia do voluntariado a sua justificação para uma vida útil e intensa. Em 1967, vivia em Loures, uma das zonas mais atingidas pelo temporal. Era catequista e, integrada na Conferência de São Vicente de Paulo, trabalhava com mulheres dos bairros mais pobres, com as quais formou um pequeno clube no lugar de Pinheiro de Loures. Com esses encontros, procurava reforçar a autoestima daquelas mulheres, ajudando-as a percorrer um caminho no sentido de uma maior igualdade entre os sexos, não só no campo do trabalho profissional, mas também na área doméstica. Na noite do temporal, jantava no Estoril com o seu marido e, no dia seguinte, o casal regressou a Loures, onde residiam. Ao chegar perto de Loures, numa curva, [viram] todo o imenso vale lá em baixo. E a vista 289

O Século, 29 de Novembro de 1967 e 1 de Dezembro de 1967. O Século, 29 de Novembro de 1967, p.10. 291 Depoimento de Conceição Monteiro in AA.VV.– Mulheres Políticas – As suas causas. Dir. de Ana Maria Bettencourt e Maria Margarida Silva Pereira. Lisboa: Quetzal Editores, 1995, pp. 192-193, in ARAÚJO, António, As cheias de 1967 e o progressismo católico português, 21 de Junho de 2017. 290

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era assustadora: "Lama, lama, lama. O vale inteiro parecia mousse de chocolate, estava tudo castanho de uma ponta à outra." Naquela mousse havia carros, animais mortos, casas e pessoas.»292 Conceição Monteiro ficou com a sua casa destruída e chocada com a morte de 24 dos seus vizinhos.293 Alguns ainda tentaram subir a árvores, mas foram arrastados. Havia uma ponte que ligava a quinta à igreja, que rebentou no momento em que ia lá o médico da terra, que conhecíamos e as duas filhas. O corpo dele só foi encontrado meses depois perto de Sacavém. Conceição Monteiro passou os dias seguintes a tentar ajudar, a confortar as famílias dos vizinhos que iam ao quartel dos bombeiros chorar os seus mortos e a tentar recuperar memórias submersas na lama, loiças, livros já imprestáveis, vidros. 294 Decidiu, então, mudar-se para Lisboa: Continuei a militar na Acção Católica e na Conferência São Vicente de Paulo, e a ajudar ainda a Cruz Vermelha. Na verdade, na época tinha várias vertentes de voluntariado, pois ainda trabalhei também em Alcoitão. (…) Como financeiramente não precisava de trabalhar, sempre me causou horror a ideia de alguém ocupar indevidamente o emprego de alguém que precisava de trabalhar. (…). Sentia que tinha uma espécie de dever para com a sociedade, devolvendo o meu tempo através do voluntariado. Já na época que vivi em Loures, apesar de ser apenas a sete quilómetros de Lisboa, conheci imensos vizinhos que nunca tinham vindo à capital, por mais incrível que isto possa parecer. E foi junto dessas pessoas mais carenciadas que viviam ali, em redor da Quinta, que eu me senti mais gratificada com aquilo que estava a fazer, ou seja, sentia-me francamente útil. 295 Diana Andringa, então estudante de Medicina, e que iria também ajudar na vacinação das populações sinistradas, integrada no movimento organizativo das Associações de Estudantes, testemunhou também esta intervenção social das Vicentinas: Liguei para a minha mãe e disse: «Tu que és católica e vicentina, mobiliza as pessoas para arranjar biberões, roupas, mantas.» Duas horas depois, ela mandou um carro cheio de coisas. Muitas outras pessoas fizeram o mesmo.296 Helena Abreu, moradora em Algés, acompanhou a mãe, vicentina, à Conferência de S. Vicente de Fora: (…) fui com ela, para a Avenida da República onde ficava a sede de uma obra da Conferência S. Vicente de Paulo masculina, para a ajudar. Estavam lá acolhidos muitos habitantes do Bairro das Santas Martas, cujas barracas tinham deslizado pela ribanceira abaixo e que se encontravam sem tecto e sem coisa

292

Revista Sábado, «Ainda há lá corpos enterrados», Maria Henrique Espada, pp.44 a 50, www.sabado.pt. Depoimento de Conceição Monteiro in AA.VV. – Mulheres Políticas – As suas causas. Dir. de Ana Maria Bettencourt e Maria Margarida Silva Pereira. Lisboa: Quetzal Editores, 1995, pp. 192-193, in ARAÚJO, António, As cheias de 1967 e o progressismo católico português, 21 de Junho de 2017. 294 Revista Sábado, «Ainda há lá corpos enterrados», Maria Henrique Espada, pp.44 a 50, www.sabado.pt. 295 Revista Sábado, «Ainda há lá corpos enterrados», Maria Henrique Espada, pp.44 a 50, www.sabado.pt.. 296 ANDRINGA, Diana, Lisboa, anos 60, Joana Stichini Vilela e Nick MROZOWSKI, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1912, pp. 224 -231. 293

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nenhuma. No Palácio Anjos [em Algés] estavam também muitas pessoas e no pavilhão desportivo do ISEF (hoje Faculdade da Motricidade Humana) estava outro grupo de refugiados das cheias. (…) Lembrome do espectáculo desolador das pessoas que lá dormiam, da pobreza, da distribuição de roupas, da tal sopa servida em malgas.297

10.2. A Paróquia de Oeiras Para além dos serviços espirituais prestados junto das comunidades, as paróquias alargaram a sua acção junto das populações mais necessitadas, transformando a solidariedade social numa das mais importantes vertentes das comunidades cristãs. Eram os párocos os primeiros a chegar aos bairros onde viviam os mais pobres dos pobres. Por altura das inundações de Novembro de 1967, as paróquias das zonas atingidas pela tragédia, tornaram-se centros de acolhimento para as populações atingidas e serviram, nalguns casos, de locais de alojamento provisório nos dias imediatos à tragédia. A Paróquia de Oeiras

298

foi uma das que se

mobilizou nessa ajuda às populações. O Padre Fernando Martins, que tinha tomado posse como pároco de Oeiras em Outubro de 1966, vindo de Setúbal, foi o grande dinamizador de um movimento de apoio às vítimas da intempérie nalgumas das áreas atingidas do concelho de Oeiras. Conta aquele Padre299 que, na época, Oeiras era uma vila pequena com cerca de 10.000 habitantes agrupados em pequenos grupos de famílias dominantes e no resto da população, maioritariamente muito pobre. Não conviviam entre si e, por isso, o Padre Fernando Martins classificava Oeiras como um arquipélago com ilhas de ricos e ilhas de gente pobre. Hoje, com os seus 92 anos, ainda se lembra aquele trágico dia de Novembro em que uma imensa queda de água caiu sobre Oeiras e outras localidades. Tinha ido a Sassoeiros e a chuva não o deixou regressar a casa. Recorda que o lugar da Ribeira da Laje foi o mais atingido pela intempérie. Era uma zona muito pobre, com cerca de mil habitantes que moravam em barracas, sem o mínimo de condições de habitabilidade e até mesmo em grutas nas ribanceiras, encostadas ao cemitério. Grande parte daquelas habitações tinham sido construídas em cima da antiga ribeira e a grande chuvada de 25 e 26 de Novembro provocou o aluimento de terras, arrastando os parcos haveres das gentes e provocando a morte de algumas pessoas.

297

Helena Abreu, depoimento na Biblioteca Municipal de Algés, 15 de Setembro de 2016. Padre Fernando da Silva Martins, testemunho recolhido por Maria Sampedro, em Março de 2016. 299 Padre Fernando da Silva Martins, testemunho recolhido por Maria Sampedro, em Março de 2016. 298

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Conta o Padre Fernando Martins que, logo após a catástrofe, o Presidente da Câmara de Oeiras lhe pediu para que, em parceria com o Presidente da Junta de Freguesia daquela vila, fizesse um levantamento dos danos verificados e das necessidades das populações. Na sequência desse trabalho, o Presidente da Câmara disponibilizou uma verba para ser distribuída pelas famílias mais necessitadas. Metendo mãos à obra, o Padre Martins organizou um grupo de pessoas disponíveis e logo partiram para auxiliar os que estavam numa situação mais dramática. Os habitantes da zona da Ribeira da Laje foram os primeiros a receber auxílio. No regresso à normalidade, e para ajudar as crianças e aliviar os pais que iam trabalhar, o Padre montou uma improvisada creche numa fábrica abandonada, cedida pelo proprietário, a seu pedido. Uma cozinha improvisada alimentava as crianças. Também igualmente na zona do Jamor, a igreja local acolheu e deu protecção a mais de uma centena de pessoas que viviam em barracas destruídas na madrugada de dia 25. 300 A ajuda às vítimas das inundações de Novembro de 1967 na vila de Oeiras alargou-se, nos anos seguintes, a outros necessitados, com a criação, na Paróquia de Oeiras, do Secretariado da Acção Social (SAS) que teve a sua primeira reunião no dia 9 de Janeiro de 1968. O SAS contou com o apoio dos Bombeiros Voluntários de Oeiras, nomeadamente para o alojamento provisório de crianças e para a organização de um serviço de angariação de roupas e géneros alimentares. Existia, para esse efeito, o «Roupeiro da Paróquia» e a «Arca da Caridade», que recebiam doações que eram depois distribuídas aos que necessitavam de ajuda. Também se activou a «Casa do Miúdo», que já existia, e para a qual contribuíram a Cáritas Diocesana e a Câmara Municipal. Em Outubro de 1968, menos de um ano depois da tragédia, foi inaugurado um Jardim infantil para ajudar as famílias que, durante o seu trabalho, não tinham a quem confiar os filhos. De toda esta ajuda viria a surgir, em 1997, o Centro Social Paroquial que, hoje, tem um papel importante em Oeiras.

10.3. Acção Católica Portuguesa e a Juventude Universitária Católica Acção Católica Portuguesa A Acção Católica Portuguesa (ACP), criada em 1933, na altura em que o Estado Novo também se consolidava, visava reforçar a presença da Igreja na sociedade portuguesa, integrando no seu seio todos os católicos. Criada pelo Cardeal Cerejeira, com o apoio do Papa Pio XI, cobria todas as dioceses do país

300

O Século, 26 de Novembro de 1967.

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e deu origem a 20 movimentos que organizavam os crentes em função da idade, do sexo e da região onde se encontravam, reforçando, deste modo, a participação dos leigos na Igreja. Estes movimentos não eram grupos homogéneos. Apesar da íntima ligação entre a alta hierarquia da Igreja e o Salazarismo, muitos grupos católicos, constituídos por padres e leigos, começaram a encetar caminhos de reflexão que os conduziam a tomadas de posição e prática novas que começavam a criar problemas à hierarquia rígida e salazarenta do catolicismo. Era uma nova geração que surgia, marcada pela sua juventude. Sobretudo a partir dos anos 60, começavam a incomodar o regime e a suscitar o interesse da PIDE, que passou a ter um raio de acção mais alargado. Para além dos comunistas, dos grupos da oposição que iam surgindo no país e nas comunidades de exilados, para além da vigilância dos operários, dos insubmissos alentejanos e dos estudantes, tinham agora um novo alvo, que eram os grupos cristãos mais jovens e progressistas. A primeira surpresa teria surgido num lugar nobre e inusitado, a Igreja do Mosteiro dos Jerónimos, quando, em 1965, o padre José Alves da Piedade ousou defender a teoria evolucionista e criticou a relação entre o Igreja e o Estado em Portugal.301 Em Novembro de 1967, a Acção Católica Portuguesa não ficou indiferente à tragédia das inundações e chegou mesmo a relacionar o grande número de vítimas com a situação deplorável de grande parte da população do país. Numa circular distribuída a vários organismos internos, a Junta Central da Acção Católica Portuguesa afirmava:302 A gravidade da situação representa, por si, uma chamada à solidariedade dos homens em termos a que ninguém poderá ficar indiferente. A situação do nosso próximo é de tal modo gritante e angustiosa, que sentimos dever considerá-la como um veemente apelo a todos nós pela situação de miséria existente à nossa volta e que permitiu que a catástrofe atingisse as proporções que teve. (…) não podemos esquecer que só assumindo plenamente os problemas dos mais pobres e humildes, seremos fiéis ao Evangelho que nos convida incessantemente à acção, como construtores da paz. (…) Em face da gravidade do momento (…) a Junta Central da Acção Católica (…) [julgou] de maior conveniência que todos os filiados (…) analisem este acontecimento (…) procurando, não apenas formas práticas e concretas de expressão da sua solidariedade para com as vítimas, mas também a maneira de, a seu modo, contribuírem para uma reforma da nossa sociedade que permita evitar, tanto quanto dos homens depende, a repetição de situações como a actual. (sublinhados no original).

301

PIMENTEL, Irene Flunser, História da PIDE, Temas e Debates, 2007, p. 245. Actividade da Acção Católica Portuguesa. Análise das consequências da situação criada pelo temporal de 26 de Novembro de 1967, que assolou a região de Lisboa, 29 de Novembro de 1967 cit. in ARAÚJO, «Agir» As cheias de 1967 e o progressismo católico português, 21 de Junho de 2017, Malomil. 302

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O documento avançava ainda com pistas para a reflexão, estabelecendo uma relação entre miséria dos bairros pobres e morte dos seus moradores 303: Os temporais são sempre uma calamidade, são horríveis. Até parecia o fim do mundo. Serão apenas os temporais a causa de tudo o que sucedeu na noite de 25 para 26 de Novembro? Não sei se esta interrogação se levantou no teu espírito, no entanto, ela pôs-se a muitas pessoas. Ela pôs-se a mim também. Vivo exactamente num bairro dos que foram mais assolados pelos temporais. O maior número de mortos e desaparecidos registou-se perto da minha casa. No entanto, a mim nada me sucedeu. Porquê? Aos vizinhos da minha rua e das ruas mais próximas nada sucedeu. Porquê? Quem morreu, então, se viviam perto de mim? Morreram e desapareceram (na grande maioria) aqueles que não tinham casa. Poderá chamar-se casa a uma pequena barraca feita de madeira (muitas vezes já velha) onde vivem amontoados pais, sogros, filhos? Poderá chamar-se casa àquela pequena construção de pedra e cal que com um temporal mais forte cai por terra como as casas feitas por mãos de criança? Morreram e desapareceram os mais pobres entre os mais pobres !!! E o texto continuava, fazendo referência ao movimento de solidariedade que se gerou para auxiliar as populações atingidas pela tragédia304: Dá-se o que se tem… e em muitos casos, o que faz falta, como eu vi no meu bairro. Aqueles que quase nada têm foram os primeiros a correr numa atitude de solidariedade para com os outros que nessa altura eram ainda mais pobres. Eu também fui, mas dentro de mim a inquietação continua. Bastará ter agora uma atitude de solidariedade? Bastará procurar agora dar alimentação, roupas e alojamento àqueles que ficaram sem nada? E os outros milhares por esse país fora que vivem em condições semelhantes, embora desta vez não tenham sido martirizados pelos temporais? Não terão todos os homens direito a um lar, a condições de vida que respeitem a sua dignidade? Solidariedade nesta hora? Sim! Mas muito mais do que isso, que estes temporais, com todas as suas graves consequências, sejam um grito de alerta em todas as consciências. Não basta a solidariedade nas horas de dor. É preciso que ela exista em todos os momentos ao serviço duma Justiça que abranja todos os homens E, finalmente, terminava assim sua reflexão: Que poderás fazer como construtora dum mundo em que a Justiça não seja apenas uma palavra, mas ACTOS?» A voz incómoda da Acção Católica Portuguesa suscitou, como já referimos, a atenção da PIDE que alargou a sua vigilância aos vários grupos católicos. Foi o que aconteceu com alguns padres de 303

Actividade da Acção Católica Portuguesa. Análise das consequências da situação criada pelo temporal de 26 de Novembro de 1967, que assolou a região de Lisboa, 29 de Novembro de 1967 cit. in ARAÚJO, «Agir» As cheias de 1967 e o progressismo católico português, 21 de Junho de 2017, Malomil. 304 Ibidem.

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Alcântara305 que passaram a ser vigiados pela PIDE por terem criticado o governo pela forma como lidara com as inundações na zona da Grande Lisboa. A toda esta agitação, sobrepunha-se o silêncio ambíguo do Cardeal Cerejeira, idêntico ao de Salazar. A partir de 1968, a vigilância sobre estes grupos católicos tornava-se cada vez menos eficaz e, no dia 31 de Dezembro, na Igreja de S. Domingos, em Lisboa, após a missa do fim do ano, a Direcção Geral de Segurança (DGS), a nova nomenclatura marcelista da polícia política, não conseguiu impedir a realização de uma manifestação contra a Guerra Colonial. Em Dezembro de 1972, um grupo de católicos realizou uma vigília pela paz, na Capela do Rato, em Lisboa. Foram presos os cerca de 70 participantes e 12 deles demitidos da Função Pública. Mas a semente estava lançada e o seu crescimento seria irreversível.

Juventude Universitária Católica (JUC) A Juventude Universitária Católica306 foi um dos movimentos católicos que integrava a ACP, a que acabámos de fazer referência. Criada em 1950, dirigia-se aos estudantes universitários a quem pretendia difundir os ensinamentos da Igreja, mobilizando-os para um trabalho de reflexão e de debate sobre os textos religiosos e sobre a ligação entre a Igreja e a sociedade. Representava uma geração nova de universitários católicos empenhados em observar a sociedade em que viviam e a actuar sobre ela, levando ajuda espiritual e material aos que mais necessitavam. A JUC realizara o seu primeiro congresso no mês de Abril de 1953, no Instituto Superior Técnico, atraindo mais de dois mil alunos. Os discursos de abertura couberam a Adérito Sedas Nunes e a Maria de Lurdes Pintassilgo. Três anos depois, em Janeiro de 1956, a JUC lançava o primeiro número da publicação Encontro que se definia como Órgão da Juventude Católica. Tinha João Salgueiro como o seu primeiro director. Anos mais tarde, em 1964, um inquérito realizado pela JUC sobre as motivações dos seus membros, veio a revelar que 76,8% dos inquiridos tinham manifestado a ideia de que «o universitário deve tomar consciência das questões económico-sociais e políticas do seu tempo, esforçando-se por encontrar as soluções mais válidas», deixando para um nível residual de 6,2%, aqueles que apenas se preocupavam com os seus estudos.307

305

PIMENTEL, Irene Flunser, História da PIDE, Temas e Debates, 2007, p. 246 GOMES, Adelino, A JUC, O JORNAL ENCONTRO E OS PRIMEIROS INQUÉRITOS À JUVENTUDE UNIVERSITÁRIA. Contributos para a história das modernas ciências sociais em Portugal. 307 Situação e opinião dos universitários. Inquérito promovido pelas direcções-gerais da Juventude Universitária Católica. Lisboa: CODES – Gabinete de Estudos e Projectos de Desenvolvimento Sócio-Económico, SCRL, 1967, p. 61 in FONTES, Paulo – Juventude Escolar Católica / Juventude Escolar Católica Feminina (JEC/JECF). In Dicionário de História de Portugal. Dir. de António Barreto e Maria Filomena Mónica. Vol. 8. Suplemento F/O. Porto: 306

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Na perspectiva de Adérito Sedas Nunes, começava a surgir uma «geração social» que se tinha inscrito na Universidade «sem grandes preocupações políticas», mas que dela tinha saído «cheia de preocupações sociais». 308 Representativo deste novo interesse pela solidariedade social foi a participação de muitas jovens católicas, algumas catequistas, no Instituto de Serviço Social de onde partiam para prestar auxílio às populações dos bairros mais pobres nos vários municípios do país, como aconteceu no concelho de Oeiras, por altura das cheias de 1967, mais precisamente para o Bairro J. Pimenta, na Amadora que, na época, integrava aquele concelho.309 Uma das jovens que participou nesse apoio solidário foi Maria da Conceição Moita que, imbuída de consciência cristã e social, rapidamente evoluiu para um posicionamento político mais crítico. Em entrevista ao historiador António Araújo, recordou a sua experiência: 310 Fui professora de Religião e Moral durante muitos anos. Procurava fazer um discurso para os jovens, não subversivo mas entusiasmante, alegre, positivo, de empenhamento. Para mim, foi uma coisa muito interpeladora. Depois, convivi muito de perto com os professores de moral de Lisboa, porque trabalhei no secretariado diocesano que fazia a colocação desses professores, como o Pe. Alberto, o Pe. Armindo e o Pe. Janela. Pela comunidade da Martens Ferrão passaram muitos jovens, era um lugar de alegria, de sonho, de utopia, de acreditar que era possível mudar. [Nos bairros pobres atingidos pelas cheias], ouvi histórias de vida que ainda hoje me deixam dilacerada. (…) – nasceu em mim a revolta perante o país que se tinha.311 Os Padres António Janela e Armando Garcia, referidos no testemunho de Maria da Conceição Moita, e que coabitavam na mesma casa, nunca esqueceram as memórias daqueles tempos de entusiasmo e de vontade de ajudar os outros, particularmente quando os jovens católicos sentiram a necessidade de participar nas campanhas de Novembro de 1967, partindo para os bairros onde as águas e a lama provocavam a morte e a destruição entre as camadas mais pobres da população. Em entrevista, concedida muitos anos depois, a António Araújo, recordavam:312

Figueirinhas, 1999, p. 349. AMARAL, Ana Filomena – Maria de Lourdes Pintasilgo. Os Anos da Juventude Universitária Católica Feminina (1952-1956). Coimbra: Edições Almedina, 2009, pp. 150ss. In ARAÚJO, António, As cheias de 1967 e o progressismo católico português, 21 de Junho de 2017. 308 GOMES, Adelino – A JUC, o jornal Encontro e os primeiros inquéritos à juventude universitária. Contributos para a história das modernas ciências sociais.Sociologia. Problemas e práticas. 49 (2005), pp. 99-100. In ARAÚJO, António, As cheias de 1967 e o progressismo católico português, 21 de Junho de 2017. 309 Entrevista a Zulmira Marinho Antunes in ARAÚJO, António, «Agir» As cheias de 1967 e o progressismo católico português, 21 de Junho de 2017, Malomil. 310 Entrevista a Maria da Conceição Moita in ARAÚJO, António, «Agir» As cheias de 1967 e o progressismo católico português, 21 de Junho de 2017, Malomil. 311 Ibidem. 312 Entrevistas a António Janela e Armindo Garcia, Moita in ARAÚJO, António, As cheias de 1967 e o progressismo católico português, 21 de Junho de 2017.

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As inundações foram um momento de grande mobilização. (…) Houve uma mobilização muito grande, até que a certa altura o Ministério do Interior disse-nos para pararmos. Foi uma mobilização tão grande que devemos ter ficado debaixo de olho da PIDE (António Janela). Nós oferecemos a nossa Casa da Martens Ferrão. Foi uma invasão, ali entrou toda a gente. Aquilo foi uma espécie de célula de coordenação, onde alguns conquistaram ali terreno, onde algumas lideranças se afirmaram (Armando Garcia). No ano de 1967, apesar de ser uma estrutura dependente da Igreja Católica, a JUC mantinha a sua autonomia ideológica e assumia-se como um movimento progressista, bem distante das posições mais conservadoras da alta hierarquia da igreja portuguesa muito ligada à ideologia do Estado Novo. Para além de promover a reflexão espiritual dos estudantes a partir da análise dos textos bíblicos e de estudos religiosos, a JUC mobilizava-os também para uma acção social solidária junto das populações mais pobres. Na época, a sua publicação Encontro era a expressão do sector mais inconformista da Igreja portuguesa, realizando reportagens e inquéritos e abordando temáticas muito diferentes das seguidas por outras revistas e jornais católicos. Esse trabalho social dos estudantes universitários católicos era dinamizado a partir de uma estrutura da JUC que funcionava no Alto de S. João, em Lisboa. Por altura das cheias de 1967, quem dirigia aquela estrutura era António Guterres que, à época, dirigia um dos núcleos de reflexão espiritual da JUC, sucedendo a Roberto Carneiro. 313 Muito motivado para o activismo social, António Guterres, que viria a ser Primeiro Ministro de Portugal nos últimos anos do século XX e Secretário-Geral da O.N.U. em 2017, promoveu a acção social dos estudantes no apoio às populações. Segundo Adelino Cunha, foram as cheias de Novembro de 1967, com as suas consequências dramáticas para as populações dos bairros pobres de Lisboa e da sua periferia, que marcaram o início da militância cívica daquele estadista. 314 António Guterres foi apenas um caso, entre muitos. Houve toda uma geração de estudantes que, tomando consciência da situação de miséria em que vivia grande parte da população, se mobilizou para a luta política contra o regime. Entre eles, estavam outros dirigentes associativos católicos como Pedro Roseta, Helena Roseta (na época, Helena Salema) e Marcelo Rebelo de Sousa. Este último foi com um grupo de voluntários católicos para a zona de Loures e de Odivelas e voltou impressionado com o somatório da pobreza suburbana, com o caos urbanístico e a falta dramática de infraestruturas básicas. 315 313

CUNHA, Adelino, António Guterres. Os Segredos do Poder, Aletheia Editores, 2013, p. 53. CUNHA, Adelino, António Guterres. Os Segredos do Poder, Aletheia Editores, 2013, p. 54. 315 http://observador.pt/2017/07/27/porque-e-que-marcelo-fala-em-ditaduras-e-tragedias-por-causa-das-cheiasde-1967/ 314

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O jornal Observador [net]

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recorda-nos um episódio dessa época protagonizado, na Faculdade de

Direito de Lisboa, pelo então estudante Marcelo Ribeiro de Sousa e pelo seu professor Marcello Caetano: Marcello Caetano tinha distribuído temas para os estudantes apresentarem numa aula. [Marcelo Rebelo e Sousa] tinha quase tudo preparado, mas abrandara o trabalho para acudir os desalojados. Em dificuldades estavam também outros estudantes, como Braga de Macedo que pediu ao Professor um adiamento das apresentações, por terem estado a apoiar as vítimas das inundações. Marcello Caetano foi inflexível e as apresentações tiveram que ser feitas. Segundo a fonte consultada317, As cheias haviam de marcar Marcelo Rebelo de Sousa. Não as esqueceria. E seria mais um elemento a contribuir para o lento afastamento do jovem do regime, que havia de se manifestar de forma mais aguda uns anos depois. Os estudantes católicos da JUC, impressionados com a tragédia humana desses dias de Novembro e imbuídos do novo espirito do Concílio Vaticano II, mobilizaram-se para a intervenção social, organizando-se na ajuda às populações nos bairros de lata de Lisboa e da sua periferia, devastados pelas águas e pela lama. António Guterres e os outros jovens da JUC distribuíram comida e roupas às populações desses bairros e ajudaram-nas a salvar os seus parcos haveres.318 Tal como estava a acontecer com outros estudantes universitários, o regime mostrou-se desconfortável e desagradado com essa ajuda da JUC. Recorda Roberto Carneiro que a PIDE se opôs a todas acções solidárias da JUC e acusou os jovens que a integravam de revolucionários e comunistas. Para grande indignação dos estudantes, agentes da PIDE trancaram as instalações da JUC no IST (Instituto Superior Técnico) e apreenderam todo o material que encontraram, que foi levado para os arquivos daquela polícia política. Roberto Carneiro conta como tal aconteceu:319 Um dia de manhã, chegámos para as aulas e as portas estavam a ser seladas. Foi um tremendo choque. Pregaram duas tábuas e deixaram um aviso a dizer que as instalações tinham sido encerradas compulsivamente por ordem da PIDE. Conta Adelino Cunha que, não aceitando aquela afronta, os estudantes juntaram-se junto do gabinete de Almeida Alves, então Director do IST, para exigir a abertura daquelas instalações. Depois de ouvir os estudantes, aquele declarou nada poder fazer contra o encerramento das instalações da JUC executado por ordem do Ministro do Interior. Justificou esse encerramento na sequência das iniciativas sociais dos 316

http://observador.pt/2017/07/27/porque-e-que-marcelo-fala-em-ditaduras-e-tragedias-por-causa-das-cheiasde-1967/ 317 http://observador.pt/2017/07/27/porque-e-que-marcelo-fala-em-ditaduras-e-tragedias-por-causa-das-cheiasde-1967/. 318 CUNHA, Adelino, António Guterres. Os Segredos do Poder, Aletheia Editores, 2013, p. 55. 319 CUNHA, Adelino, António Guterres. Os Segredos do Poder, Aletheia Editores, 2013, p.57.

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estudantes que, na perspectiva do regime, tinham um carácter abusivo e que eram considerados como uma ingerência na acção do próprio governo junto das populações. Segundo Adelino Cunha, com aquele acontecimento, A JUC morria no Técnico

320

e retirava aos jovens

católicos as ilusões de conseguirem aplicar o espirito inovador do Concílio Vaticano II num país marcado pela ditadura salazarista. Na altura, o Encontro,321 (órgão de imprensa da JUC fundado em 1956) dava testemunho dessa ajuda aos mais necessitados, denunciando também a miséria como um dos factores que teria contribuído para aumentar os números da tragédia: bairros de lata sem condições mínimas de habitabilidade e sem segurança, onde se registaram centenas de vítimas, em contrate com os bairros bem construídos e seguros da classe média da região de Santo António do Estoril, onde a chuva atingiu os valores mais elevados e apenas provocou uma vítima mortal. A denúncia de tal situação levou a Censura a actuar, pela primeira vez, sobre o jornal Encontro, decretando o visionamento prévio dos futuros artigos. Recorda Manuel Ponces de Carvalho 322: Aquilo nunca tinha acontecido e começámos a ter problemas. Havia edições em que eram retiradas páginas inteiras e não era possível deixá-las sair em branco para evitar que se deixasse perceber a dimensão dos cortes.

11. A solidariedade dos Estudantes e o incómodo do Governo 11.1. A JUC, as Associações de Estudantes e as brigadas de solidariedade A população universitária, maioritariamente originária das classes média, média alta e classe alta, era, em finais da década de 60, um grupo reduzido e privilegiado em temos económicos, sociais e culturais, não obstante começar a haver alguma heterogeneidade no que se refere à origem geográfica, social e cultural dos estudantes, sobretudo na região de Lisboa. No ano lectivo de 1967/68, havia em Lisboa 17. 654 universitários, distribuídos como se segue: Universidade de Lisboa - 11.131; Universidade Técnica de Lisboa - 5.911; Escola Superior de Belas Artes de Lisboa – 612. 323

320

CUNHA, Adelino, António Guterres. Os Segredos do Poder, Aletheia Editores, 2013, p.57. CUNHA, Adelino, António Guterres. Os Segredos do Poder, Aletheia Editores, 2013, p. 56. 322 CUNHA, Adelino, António Guterres. Os Segredos do Poder, Aletheia Editores, 2013, p. 56 e 57. 323 Estatística da Educação, INE, citado in DUARTE, Marta Benamor, Foi Apenas Um Começo. A Crise Académica de 1969 na história do movimento estudantil dos anos Sessenta e da luta contra o Estado Novo, Dissertação de mestrado em História Contemporânea (séc.XX), Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, 1997, pp. 172 a 180. 321

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Eram jovens, generosos e, muitos deles motivados para acções colectivas promovidas pelas associações que os representavam. Ao tomarem conhecimento da situação de catástrofe que se abatia sobre muitas localidades da região de Lisboa, mobilizaram-se, de imediato, para prestar ajuda. Contornando a escassez das informações e as dificuldades de acesso aos bairros, avançaram para as zonas sinistradas, com toda a energia e a solidariedade da sua juventude. O relato que se segue é demonstrativo do drama então vivido e do amplo movimento de solidariedade estudantil no apoio às populações sinistradas.324 Tinha eu, na altura, 19 anos, e frequentava a Faculdade de Direito de Lisboa, morando em Odivelas num quarto alugado e, para sobreviver, dava explicações a particulares de Filosofia e Latim numa sala de estudos ali para os lados da Calçada de Carriche, ainda, com o seu traçado antigo.... Desci do Autocarro número 36 (Restauradores - Carriche) entre as 18 e as 19 horas e, como sempre, fiz a pé o percurso entre o fim da Calçada de Carriche (…) e o princípio do Bairro que nascia junto ao velho Pelourinho de Odivelas onde então morava ... A esta distância parecia que andava uns três/quatro quilómetros (…). Chovia não com muita violência...mas com muita persistência desde o fim da manhã desse dia (…). Às seis da manhã, acordei eu e outros residentes com os gritos que se ouviam sentir dos lados das Patameiras....a Chuva continuava a cair....(…) e logo sentimos que algo de profundamente anormal tinha ocorrido...A várzea de Odivelas tinha deixado de existir....boiavam alguns carros e centenas de cadáveres de cabeças de gado.... Pelo meio dia, a garagem das viaturas da Associação dos Bombeiros Voluntários de Odivelas estava cheia de cadáveres nas posições mais grotescas, apanhadas pelo inesperado da morte de uma enxurrada....cerca de 200....a maior parte das Patameiras e da Póvoa de Santo Adrião, Flamenga e Olival Basto onde a as águas atingiram o segundo andar de algumas habitações....e onde esmagaram barracas de habitação... A Calçada de Carriche tinha sido fatiada em dois segmentos, como um queijo flamengo, e tinha brechas descomunais...os automóveis boiavam virados do avesso...ou deixavam-se adivinhar pelos remoinhos das águas.... (…) As Associações Académicas de Lisboa, de Coimbra e do Porto fizeram a sua aparição e centenas de estudantes de Medicina, de Direito, de Ciências.....trabalharam duramente no terreno, desenterrando corpos....assistindo às crianças e acompanhando as famílias desamparadas naquelas circunstâncias.

324

MeteoPT.com, Fórum de Meteorologia, Cheias de 25 de Novembro de 1967, www.meteopt.com.

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O testemunho acima destaca o papel dos estudantes e das suas associações ou pró-associações no apoio às populações vítimas das cheias de Novembro de 1967. Aquelas organizações eram, no regime salazarista, as únicas entidades que podiam, legalmente, organizar e mobilizar a população estudantil, e assim o fizeram naquela hora fatídica, tendo sido, a par dos bombeiros, a primeira forma de ajuda organizada às vítimas das cheias. Lugares houve onde bombeiros e estudantes foram os únicos a prestarem ajuda, não havendo quaisquer autoridades no terreno. A iniciativa do auxílio às populações partiu da JUC que fazia trabalho social nos bairros pobres de Lisboa e arredores e que se apercebeu da situação dramática em que estavam a viver as populações daqueles bairros. Querendo levar ajuda às zonas atingidas, mas sem meios e estrutura organizativa para o fazer, os estudantes da JUC solicitaram o apoio da Associação de Estudantes do IST (Instituto Superior Técnico), por ser, à época, a mais autónoma de todas as associações. Na altura, a JUC estava próxima do movimento associativo dos estudantes e era aceite por este, por assumir um posicionamento muito diferente da hierarquia da Igreja, ligada ao Estado Novo. Essa proximidade era igualmente literal, porque a JUC dispunha mesmo de instalações no interior da própria Associação de Estudantes do IST, como já foi referido no tópico anterior. António Mota Redol, então estudante de Engenharia Química e membro dos corpos gerentes da A.E.I.S.T, recorda esses tempos: 325 Foi a JUC [Juventude Universitária Católica] que se apercebeu da situação, porque estava em contacto com esses bairros, e contactou a Direcção da Associação dos Estudantes do Instituto Superior Técnico [IST]. Eles queriam ajudar mas não tinham estrutura; quem tinha eram as associações, especialmente a do IST, que na altura teria 40 ou 50 empregados. Reuniram-se as associações das várias faculdades e lá chegaram a um consenso. Foi pois a A.E.I.S.T. (Associação de Estudantes do Instituto Superior Técnico), com o apoio da RIA (Reunião Interassociações), a coordenar e a dirigir os estudantes das várias universidades e institutos de Lisboa nesse amplo movimento de solidariedade. Esta associação, ao contrário das outras, funcionava num edifício aparte das instituições escolares, o que lhe conferia maior independência. A sua influência

325

António Mota Redol, Lisboa, anos 60, Joana Stichini Vilela e Nick MROZOWSKI, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1912, pp. 224 -231 A obra Lx60, que apresenta, admiravelmente, diversos flashes de acontecimentos e realidades do Portugal salazarista dos anos 60, aborda também o drama das cheias de 1968, registando vários testemunhos de vários antigos estudantes universitários, alguns dos quais membros dos corpos gerentes da A.E.I.S.T. Foi desta obra que retirámos alguns dos testemunhos que acima apresentamos. São eles João Bernardo (expulso da Universidade de Lisboa em 1965/ membro do SCIP): Danilo Matos (Engenharia Civil/membro dos corpos gerentes da A.E.I.S.T); António Mota Redol (Engenharia Química/ membro dos corpos gerentes da A.E.I.S.T); Diana Andringa (Medicina): Violante Saramago Matos (Biologia).

145


atingia não só os 2.613 alunos do IST inscritos no ano lectivo de 1967/68, mas também outras universidades. 326 Foi, a partir da AEIST, que se montou todo o sistema organizativo

327

que tornou possível levar os

estudantes de Lisboa a ajudar as populações nos bairros mais atingidos pela catástrofe. Nas suas instalações, foi então criada uma Comissão Coordenadora Central (C.C.C.) que integrava membros das AAEE (Associações de Estudantes) e membros da Juventude Universitária Católica 328 e um Secretariado Coordenador de Informação e Propaganda das Associações de Estudantes de Lisboa (SCIP), eleito por membros das várias associações, com a função de agilizar o apoio às populações dos bairros mais atingidos. Aquele Secretariado era constituído por Manuel Castilho, João Crisóstomo, Alexandre Oliveira e João Bernardo. 329 Foram também formadas Comissões Locais em todas as Associações de Estudantes e Institutos, que trabalhavam em estrita colaboração com a C.C.C., organizando a recolha de donativos e a inscrição dos estudantes nas Brigadas de Campo que seguiam para o terreno. A Comissão Coordenadora Central estabeleceu ainda contactos com a Comissão Coordenadora da C.P.A. de Medicina (Comissão PróAssociação), no sentido de obter ajuda médica e organizar equipas médicas para prestar a ajuda necessária às populações. Seguidamente, foram criados vários tipos de equipas que partiam para os bairros: Brigadas de Prospecção (as primeiras a avançar para contactarem com as autarquias atingidas e com as populações, a fim de se inteirarem das necessidades de trabalho e do tipo de ajuda que era necessário), Brigadas de Campo, Brigadas Médicas e Sanitárias, Brigadas de Transporte. Todas estas equipas eram auto-suficientes e alimentadas por refeições diárias preparadas por voluntários na cantina da AEIST. Foram servidas mil refeições por dia durante 5 dias. O SCIP e a C.C.C. criaram ainda três tipos de serviços para dar maior eficácia e rapidez à ajuda às populações: Serviço de Planificação, que recebia os relatórios das várias Brigadas de Campo e, com base nos seus dados, preparava as tarefas para o dia seguinte; Serviço de Transporte, que contactava com

326

Estatística da Educação, INE, citado in Foi apenas um começ, p. 302 e 303.

327

Solidariedade Estudantil, Secretariado Coordenador de Informação e Propaganda (SCIP) das Associações de Estudantes de Lisboa, nº 1, 4 de Dezembro de 1967. 328

Solidariedade Estudantil, Secretariado Coordenador de Informação e Propaganda (SCIP) das Associações de Estudantes de Lisboa, nº 1, 4 de Dezembro de 1967. COSTA, Francisco da Silva, CARDINA, Miguel, VIEIRA, Avelino in Inundação na região de Lisboa (1967). Um olhar sobre o impacto político e social in Riegos, Vulnerabilidades y resilencia socioambiental para enfrentar los cambios globales, Santiago (Chile), 03 a 05 de Diciembre 2014, p. 1267 . 329 João Bernardo in A Politização de Estudantes durante o Estado Novo – o caso das cheias de 1967, Conferência na Biblioteca Municipal de Algés a 28 de Maio de 2016.

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empresas de transporte e com as autarquias para obterem autocarros que pudessem levar os estudantes aos bairros; Serviço de Expedição, que organizava o envio do material pedido pelas Brigadas. Conta João Bernardo, membro do SCIP que a mobilização dos estudantes foi feita através do telefone e do contacto pessoal (passa-palavra). Foi-lhes dada a informação de que se deveriam concentrar junto à sede da A.E.I.S.T., munidos com botas de borracha. Eram, então, distribuídos por vários carros e assim partiram para os bairros mais atingidos, prontos a prestar a ajuda necessária.330 Danilo Matos (Engenharia Civil)

331

, e António Mota Redol (Engenharia Química),

332

ambos membros

dos corpos gerentes da A.E.I.S.T, recordam essa mobilização: Ligaram-me para casa logo de manhã – era domingo – e disseram: «Aparece na associação, temos de fazer qualquer coisa.». Juntaram-se a nós muitos estudantes católicos. Comprámos pás, baldes, vassouras. Arranjámos meios para ir para o terreno limpar casas e valas. Fizemos um levantamento das zonas mais carenciadas e fomos distribuídos por elas (Danilo Matos).

Fez-se apelos pela rádio. Apareceram muitas pessoas com carros à porta do IST a disponibilizarem-se para o que fosse preciso. Eu e o presidente da JUC estávamos lá desde as sete da manhã até à meianoite, a coordenar as operações, redistribuir e preparar brigadas para o dia seguinte. As brigadas partiam do IST em camionetas e autocarros para vários pontos à volta de Lisboa. (…) Só Medicina é que funcionou à margem – foram vacinar as pessoas (António Mota Redol). Também Lourdes Camilo o recorda: 333 Lembro-me muito bem. Estava a entrar no meu primeiro ano do curso no IST e também nós os estudantes saíamos de autocarro à porta da faculdade na alameda e íamos ajudar a limpar as casas e tratar das famílias. Estive na Póvoa de Santo Adrião. Mas como foi antes do 25 de Abril, os jornais referiam todo o tipo de solidariedade e apoio, mas nunca mencionavam os estudantes. Nessa época os estudantes eram um grupo a abater de revolucionários, a quem não interessava agradecer e enaltecer. Eu que vinha de fora de Lisboa, comecei logo a sentir a ingratidão do sistema político vigente.

330

João Bernardo in A Politização de Estudantes durante o Estado Novo – o caso das cheias de 1967, Conferência na Biblioteca Municipal de Algés a 28 de Maio de 2016. 331 Danilo Matos, Lisboa, anos 60, Joana Stichini Vilela e Nick MROZOWSKI, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1912, pp. 224 -231. 332 António Redol, Lisboa, anos 60, Joana Stichini Vilela e Nick MROZOWSKI, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1912, pp. 224 -231. 333 Comentário de Lourdes Cunha Camilo a propósito das cheias de 1967,Facebook, 26 de Novembro de 2014.

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Organizados daquela forma, participaram no auxílio às populações, durante duas semanas, quase 6 mil estudantes 334 (5. 760, por defeito), numa média de 600 por dia, a trabalharem uma média de 8 horas diárias. Estiveram em Silvados, Odivelas, Ponte de Frielas, Olival Basto, Póvoa de Santo Adrião, Loures, Bucelas, Pintéus, Fanhões, Alhandra, Calhandriz, Tortosa, Vala do Carregado, Quintas, Santana da Carnota, Refugidos, Cadafais, Carnota de Baixo e Alenquer, as regiões mais duramente atingidas pela tragédia.335 Conta Diana Andringa 336 que os estudantes iam em camionetas alugadas ou emprestadas com letreiros a dizer «Associações de Estudantes de Lisboa» e, por várias vezes, os polícias sinaleiros davam prioridade aos mesmos por saberem que iam para os bairros mais atingidos, ajudar as populações. Eram, de repente, reconhecidos como aqueles que estavam a fazer alguma coisa. Na procura urgente de transporte para levar os estudantes, registou-se uma situação curiosa contada por Gabriela Lourenço: 337 As associações de estudantes já [tinham despendido] muito dinheiro na compra do indispensável, mantimentos, galochas para as brigadas de limpeza e salvamento, velas, medicamentos. Continuavam a faltar meios eficientes para transportar pessoas e donativos para as regiões afectadas. Diana Andringa, vencendo as resistências iniciais que a ideia lhe provocou, rog[ou] ao pai o auxílio da poderosa Legião Portuguesa. À porta da Associação de Estudantes de Medicina, no dia seguinte, estão várias camionetas e jipes da Legião, para auxiliar os estudantes. A ajuda não [foi] logo bem recebida: ninguém [quis] aparecer nos bairros de lata abandonados pelo poder num carro da milícia do Estado Novo. Após alguma discussão, a dificuldade [foi] contornada: [tapou-se] o emblema da Legião com o das associações de estudantes. Do Campo Grande e da Alameda [saíram] centenas de estudantes em direcção às zonas mais afectadas – Loures, Vila Franca de Xira, Amadora. A mobilização estudantil contou também com a participação de vários estudantes liceais, nomeadamente dos liceus Camões, D. Leonor, D. João de Castro, Filipa de Lencastre, Maria Amália, Passos Manuel e do Colégio Moderno que também se organizaram autonomamente numa comissão inter-escolas, apelando aos seus colegas a organizarem-se em brigadas de jovens para prestar auxílio às populações338. Também estudantes do Liceu Francês se mobilizaram.

334

COSTA, Francisco da Silva, CARDINA, Miguel, VIEIRA, Avelino in Inundação na região de Lisboa (1967). Um olhar sobre o impacto político e social in Riegos, Vulnerabilidades y resilencia socioambiental para enfrentar los cambios globales, Santiago (Chile), 03 a 05 de Diciembre 2014, p. 1267. 335 Solidariedade Estudantil, Secretariado Coordenador de Informação e Propaganda (SCIP) das Associações de Estudantes de Lisboa, nº 1, 4 de Dezembro de 1967. 336 Diana Andringa, Filme da RTP. 337 LOURENÇO, Gabriela; COSTA, Jorge; PENA, Paulo, Grandes Planos – Oposição Estudantil à Ditadura 1956-1974, Âncora Editora, Lisboa, 2001, p. 118 (O pai de Diana Andringa era dirigente da Legião Portuguesa). 338 ARAÚJO , António, «Agir» As cheias de 1967 e o progressismo católico português, 21 de Junho de 2017, Malomil

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Mais de 2 mil estudantes liceais inscreveram-se para essa ajuda, respondendo ao apelo de um comunicado distribuído nos meios estudantis que dizia339: É urgente! Não vimos trazer-te notícias porque já as ouviste. Vimos informar-te que podes ser útil. Os teus braços, a tua imaginação, o teu dinheiro são vitais para quem não tem tecto nem roupa para se agasalhar. Foi diverso o auxílio prestado por estudantes universitários e liceais nos bairros mais atingidos pela catástrofe 340: desobstrução e lavagem de ruas, habitações e quintais atolados de detritos acumulados pelas águas e lama; remoção das águas e lama das habitações; abertura de caminhos para a actuação das brigadas de salvamento; procura de mortos entre os destroços (batiam na lama esperando ouvir resistência, o que significava que havia algo soterrado); remoção dos cadáveres; distribuição de géneros alimentares, de roupas e de agasalhos (a piscina do IST ficou completamente cheia com as roupas e agasalhos recebidos dos vários estudantes). O fornecimento de alimentos foi uma das iniciativas importantes da AEIST. Durante os dias mais críticos das inundações, altura em que as populações se encontravam mais desprotegidas, a cantina da AEIST forneceu gratuitamente aos desalojados cerca de 1.000 refeições por dia.341 Armando Fernandes, então Vice-Presidente da AEIST, recorda os primeiros contactos com a população342: Os primeiros momentos não foram fáceis. As pessoas tinham dúvidas sobre o que levava os estudantes para lá. Os estudantes eram uma elite, não conheciam bem a população, nem a população os conhecia a eles. Começaram por pensar que eles iam ali mais para ver do que outra coisa, mas quando sentiram que eles estavam dispostos a ajudar as pessoas, a limpar as casas, a recuperar bens que se tinham perdido, a lavar roupa, a limpar móveis que eram as coisas que as pessoas tinham, aí, a partir do primeiro dia, os estudantes foram muito bem recebidos pelas pessoas. Violante Saramago Matos (Biologia),343 João Bernardo344 e Danilo Matos (Engenharia Civil)345 recordam aqueles dias dramáticos:

339

RTP1 O Tempo que faz, reportagem de Helena Matos, 24 Novembro 2017 Solidariedade Estudantil, Secretariado Coordenador de Informação e Propaganda (SCIP) das Associações de Estudantes de Lisboa, nº 1, 4 de Dezembro de 1967 e nº 2. 341 DUARTE, Marta Benamor, Foi Apenas Um Começo. A Crise Académica de 1969 na história do movimento estudantil dos anos Sessenta e da luta contra o Estado Novo, Dissertação de mestrado em História Contemporânea (séc.XX), Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, 1997, p.173. 342 SIC Notícias, «Cheias de 2967 – 50 anos», 25 de Novembro de 2017. 343 Violante Saramago Matos, Lisboa, anos 60, Joana Stichini Vilela e Nick MROZOWSKI, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1912, pp. 229 e 230. 344 João Bernardo, Lisboa, anos 60, Joana Stichini Vilela e Nick MROZOWSKI, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1912, pp.229 e 230. 345 Danilo Matos, Lisboa, anos 60, Joana Stichini Vilela e Nick MROZOWSKI, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1912, p.230. 340

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Não ia preparada para o que encontrei. Fui para Alenquer, para a zona mais junto ao rio. As casas tinham lama até um metro e meio de altura. As mais baixas estavam completamente enterradas. Os animais tinham sido arrastados ou estavam lá, mortos. Foi a primeira e única vez que vi uma pessoa afogada. É uma sensação estranha, pensar na solidão, no desespero, ali, no meio da lama, das pedras. Deve ter sido uma coisa… (Violante).

A primeira coisa que fizemos quando chegámos foi contactar os Bombeiros Voluntários. Não sabíamos nada de socorros. Fiquei com uma belíssima impressão deles. Eu estava num bairro de lata, não sei bem onde, que tinha ficado completamente submerso. Lembro-me de estar de botas de borracha que não me valeram de nada porque a lama ia até à cintura. Não se viam cadáveres. Estava tudo soterrado. Mas as pessoas diziam «aqui morava a minha mãe, o meu filho, o cão, o gato. Morreu tudo. Pediam, com um ar quase apático, «tente encontrar isto». Sabe o que me pediu uma senhora idosa que tinha perdido os filhos e os netos? Uma fotografia da família. (…) O que me chocou foi o mar de lama. Sempre imaginei que uma inundação seria água e aquilo era lama, uma lama espessa, um horror. (João Bernardo).

Notava-se uma grande desorientação no fácies das pessoas. Porque em poucas horas perderam tudo. Pela forma como nos receberam percebi que sentiram que éramos uma espécie de anjo-da-guarda sem asas. Uma coisa que me ficou de forma muito nítida foi o cheiro: terra, lama, podridão, esgoto, coisas mortas. O rio arrasta tudo, e tudo aquilo se deposita e começa a decompor-se. (Violante).

Guardo a ideia de uma grande tristeza. Os estudantes não tinham grandes meios, só coragem e generosidade. A nossa força vinha da onda de solidariedade que conseguíssemos desencadear. E conseguimos. Esta tragédia tinha causas que o governo tentou esconder (Danilo).

A imagem avassaladora da lama era comum a todos os testemunhos. Mais que a água, era a lama que prendia, que sufocava, que matava. Rita Veiga que, na época, morava na zona protegida de Alvalade, disse numa entrevista que fez muitos anos depois, a recordar os acontecimentos: Se me pedissem para resumir, numa só palavra o que vi diria: lama, lama, e ainda lama.346 Também Jorge Wemans, na época estudante liceal e que viria a estar presente, em Dezembro de 1972, na vigília da capela do Rato, um momento marcante da contestação ao regime, guardou das cheias de

346

WEMANS, Jorge, Os «miúdos» nas cheias. Pública, de 23-XI-1997, p. 56, in ARAÚJO, António «Agir» As cheias de 1967 e o progressismo católico português, 21 de julho de 2017.

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1967, memórias difíceis com lágrimas desconfortadas, envergonhadas, cheiros nauseabundos, casas esventradas, móveis partidos, muros caídos, árvores derrubadas. E, por todo o lado, lama, montanhas de lama, sempre mais lama.347 Particularmente importante foi o auxílio médico e sanitário prestado por cerca de 300 estudantes de Medicina. Face à urgência de uma acção imediata de apoio médico, a Comissão Pró-Associação de Estudantes de Medicina elaborou um plano de acção que apresentou à Direcção Geral de Saúde, que o aprovou, concedendo um salvo-conduto aos estudantes para as acções de rastreio e vacinação das populações das zonas afectadas.348 Segundo o Solidariedade Estudantil

349

e o Comércio do Funchal

350

, munidos de stocks de

medicamentos, de vacinas e de muito boa vontade, aqueles estudantes prestaram um importante apoio médico: vacinação em massa contra a febre tifóide, com vacinas fornecidas pela Direcção Geral de Saúde; instalação de postos clínicos para consultas e tratamentos de urgência, enviando para os hospitais os casos mais urgentes; tratamento de feridas; inquérito profilático às populações (contou com o apoio da Direcção-Geral de Saúde); distribuição de medicamentos cedidos por estudantes, médicos, delegados de propaganda médica, e laboratórios farmacêuticos; informação sanitária às populações das zonas sinistradas; separação das populações segundo o maior ou menor grau de risco de contraírem a febre tifóide; vigílias nocturnas para os casos mais urgentes e para proteger crianças desalojadas; criação de creches com os devidos cuidados médicos e de puericultura; exames bacteriológicos à água das nascentes; queima de cadáveres de animais regados com petróleo ou seu enterramento, depois de cobertos com cal viva. Carlos Cordeiro351, que viveu a tragédia de 1967, em Alenquer, recorda a chegada desses estudantes de Medicina, àquela localidade: [Os primeiros que chegaram para ajudar foram os] estudantes. Eram estudantes de medicina que montaram um posto médico no quartel dos bombeiros (…). Eu andava a ajudar nas limpezas do Matos [vizinho] e feri-me num dedo. Fui ali aos estudantes e, como não tinham mais nada, puseram-me um preservativo no dedo para poder continuar!...

347

WEMANS, Jorge, Os «miúdos» nas cheias. Pública, de 23-XI-1997, p. 56, in ARAÚJO, António «Agir» As cheias de 1967 e o progressismo católico português, 21 de julho de 2017. 348 Diário de Notícias, 3 de Dezembro de 1967. 349 Solidariedade Estudantil, Secretariado Coordenador de Informação e Propaganda (SCIP) das Associações de Estudantes de Lisboa, nº 1, 4 de Dezembro de 1967 e nº2. 350 Comércio do Funchal, Dezembro de 1967. 351 RAPOSO, Raquel; LOURENÇO, José Leitão; SANTOS, Alberto, A NOITE MAIS LONGA história e memória da cheia de 25-26 de Novembro de 1967, Alencultura editorial, Alenquer, 2017, p. 221.

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Devido àquele serviço solidário e de utilidade pública, a Direcção-Geral de Saúde, ao contrário de todas as outras autoridades, reconheceu, publicamente, a ajuda prestada pelos alunos da Faculdade de Medicina nos trabalhos de apoio médico às populações dos bairros mais atingidas pela catástrofe.352 Diana Andringa,353 na

época estudante de Medicina, participou também nessas campanhas de

vacinação e recorda esses momentos: Um colega esteve a ensinar-nos a dar injecções. Nesse primeiro dia dei centenas. Sobretudo tifo e talvez cólera. Acho que as vacinas vieram de médicos e também dos delegados de propaganda médica, um emprego bastante comum para os estudantes de Medicina. Durante os dias a seguir às grandes chuvas, os estudantes criaram, na A.E.I.S.T., um Banco de Medicamentos que contou sobretudo com o apoio dos estudantes de Medicina e de Veterinária e organizaram também uma recolha de roupa e de agasalhos. Dias depois de terem iniciado o movimento solidário de ajuda às populações, os estudantes decidiram fazer a primeira comunicação escrita sobre a sua acção e a realidade encontrada, através de um Comunicado dirigido à população e assinado pelas Associações de Estudantes e pel’ A Juventude Universitária Católica de Lisboa. 354Dizia: São já do conhecimento geral da população universitária as trágicas ocorrências verificadas na noite de 25 para 26 do corrente, que vieram atingir vastas zonas populacionais do país, com o vasto cortejo de morte e devastação cuja amplitude brutalmente se revela a todos nós. Foi precisamente em face da alarmante situação assim criada que surgiram na Universidade, durante a passada segunda-feira, dia 27, diversas iniciativas no sentido de desenvolver um movimento de solidariedade e auxílio efectivo às populações atingidas, por parte das ASSOCIAÇÕES DE ESTUDANTES e da JUVENTUDE UNIVERSITÁRIA CATÓLICA (JUC). Consideramos que a Universidade não se deve fechar sobre si própria (…), mas se deve abrir a uma compreensão autêntica e a uma participação activa na problemática social do país. (maiúsculas no original). Dias depois, o S.C.I.P. criava o Solidariedade Estudantil, um boletim dirigido sobretudo à população universitária onde divulgava o apoio prestado à população e apresentava uma leitura crítica aos efeitos dramáticos das cheias, bem diferente da leitura oficial que transparecia na imprensa e que, salvo algumas denúncias subtis, tendia a apenas atribuir a culpa da tragédia aos fenómenos naturais que se tinham abatido, naqueles dias, sobre a região de Lisboa.

352

O Século, 1 de Dezembro de 1967, p.6. Diana Andringa, Lisboa, anos 60, Joana Stichini Vilela e Nick MROZOWSKI, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1912, p. 229. 354 Comunicado, As Associações de Estudantes. A Juventude Universitária Católica de Lisboa, 29 de Novembro de 353

1967.

152


O Solidariedade Estudantil

355

conheceu apenas 2 números. O primeiro exemplar foi publicado a 4 de

Dezembro. Era um jornal feito a stencil, como era habitual na época, com o formato A4. Continha 6 páginas. Era assinado pel’ As Associações de Estudantes de Lisboa. Teve uma tiragem de 10 mil exemplares e esgotou-se numa manhã. O segundo exemplar (Foto 41) continha 8 páginas, também em stencil, no mesmo formato. Apresentava já uma imagem mais cuidada e incluía 4 fotografias de barracas e de brigadas de estudantes no terreno. No conjunto, o jornal fornecia à população estudantil quatro informações essenciais356: a criação, pelas AAEE e pela JUC de um «Movimento de Solidariedade e Auxílio à população» atingida pelas inundações de Novembro; a existência de uma íntima colaboração entre aquelas instituições no movimento solidário; a força do movimento associativo com o envolvimento maciço dos estudantes em R.G.A. (Reuniões Gerais de Alunos) em várias escolas e nas brigadas de trabalho que partiram para os bairros no apoio às populações; a denúncia da triste realidade social encontrada e que a Censura procurava ocultar. Diana Andringa recorda a sua divulgação entre os estudantes: Costumávamos ser cuidadosos a distribuir comunicados, mas aqui saímos com o «Solidariedade Estudantil» debaixo do braço. Desapareceram 10 mil exemplares. Um jornal feito por estudantes.357 O jornal divulgava também algumas entrevistas que evidenciavam a situação dramática vivida pelas populações. Dizia o Presidente da Junta de Freguesia da Castanheira, numa dessas entrevistas:358 Tivemos que desenterrar os mortos no domingo, e [segunda-feira] estivemos a lavar mortos entre as 9 da manhã até às 4 horas [de terça-feira] e admite-se que ainda haja mortos. (…) Nas Quintas não há feridos: há sobreviventes que estão capazes e há famílias inteiras completamente mortas. Já há mortos com muitos bichos, não são bichos do corpo, são bichos, lagartixas, minhocas que saem pelos olhos, pelo nariz dos mortos. Eram 4 horas da manhã quando acabamos o último dos 110 mortos. (…) Além da febre tifóide, deve [haver] muitos casos de pneumonia aí pela rua. Porque esta gente, eu vios embrulhados no dia seguinte em sacos encharcados. Descoberta a realidade chocante dos bairros pobres onde viviam as populações atingidas, os estudantes compreenderam que as razões naturais não bastavam para explicar toda a dimensão do drama que as atingiu. 355

Solidariedade Estudantil, Secretariado Coordenador de Informação e Propaganda (SCIP) das Associações de Estudantes de Lisboa, nº 1, 4 de Dezembro de 1967.

356

Solidariedade Estudantil, Secretariado Coordenador de Informação e Propaganda (SCIP) das Associações de Estudantes de Lisboa, nº 1, 4 de Dezembro de 1967. 357 Diana Andrina, Lx 60, p. 230. 358 Solidariedade Estudantil nº 2, SCIP – Secretariado Coordenador de Informação e Propaganda.

153


O Solidariedade Estudantil

359

avançava, então, com outra explicação. Da contradição entre as regiões

que tinham registado maiores níveis de pluviosidade, como a zona do Estoril, e aquelas onde a tragédia humana estava a evidenciar uma maior dimensão, concluía aquele boletim que havia outras razões para explicar o drama. Foi uma das primeiras leituras sociais da tragédia das cheias de 1967. No entender daquele jornal académico, a dimensão dramáticas dos acontecimentos resultou da interligação de factores socio-económicos e administrativos bem concretos: 1) A miséria das populações: as acentuadas condições de subdesenvolvimento em que viviam as populações atingidas, habitando na sua maior parte barracas, casebres, bairros de lata, sem os mais elementares requisitos de sanidade e de segurança; 2) A ausência quase total de sistemas de segurança e socorro, prevenção de epidemias, redes de escoamento de águas, condições de estabilidade de terrenos, defesa contra aluimento de terras, inundações, etc; 3) Uma Previdência Social precariamente montada, quase inexistente, de tal forma que não foi possível organizar desde a primeira hora o serviço complexo e auxílio às vítimas, deixado ao sabor da iniciativa individual ou de organizações, mais ou menos oficiais.

O 2º número do Solidariedade Estudantil reforçava a causa social da tragédia com a fotografia de uma barraca destruída com o título: Só a chuva? (Foto 41).

Também a JUC decidiu reflectir sobre os acontecimentos verificados naquele dramático mês de Novembro, através de «Cadernos de Reflexão» editados pelas direcções gerais da JUC e da JUCF. O tema do Caderno nº 1 incidia exactamente sobre as implicações da actuação dos estudantes face às inundações de Novembro, pela importância que tiveram na época, visando dois objectivos principais: «a investigação da verdade» e «a missão que de um modo muito especial cabe a todo o universitário: [por ser] mais qualificado deve servir aqueles que o não são, estando atento a todos os acontecimentos que os afectem.360 Depois de fazer referência ao meio milhar de vítimas mortais361, aquele Caderno descrevia a forma como os estudantes se organizaram a partir das AAEE e da JUC e partiram para o trabalho de campo nos bairros mais atingidos, organizados em brigadas de diferentes tipos.

359

Solidariedade Estudantil nº 2, SCIP – Secretariado Coordenador de Informação e Propaganda. Caderno de Reflexão, nº 1, Editado pelas Direcções Gerais da J.U.C., p.3. 361 Caderno de Reflexão, nº 1, Editado pelas Direcções Gerais da J.U.C., p.5. 360

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Segundo aquele Caderno, nem sempre o contacto com as populações foi fácil. Se, em grande parte das áreas atingidas, a recepção foi favorável, até porque rapidamente as pessoas se aperceberam de que os estudantes estavam ali para ajudar, houve casos pontuais em que isso não aconteceu: No contexto directo ao longo das muitas horas de trabalho gerava-se em duas ou três zonas uma certa perplexidade perante as reações de parte da população que, naturalmente traumatizada, nem sempre colaborou com as brigadas de auxílio – pensamos, no entanto, que para a maioria essa atitude se justifica pela falta de uma educação de base que desenvolve valores como a cooperação e o espírito de iniciativa.362 A acção solidária estudantil contou também com a ajuda de estudantes das Academias de Coimbra e do Porto. Segundo o Diário de Notícias,

363

em Coimbra, muitos estudantes acorreram à Secção de

Intercâmbio e Turismo da Associação Académica, com propostas de auxílio às vítimas das cheias, disponibilizando-se para seguir para Lisboa para prestar auxílio. Também duas organizações estrangeiras, o Serviço Civil Internacional e A.I.G. alemã, ofereceram voluntários. Segundo o mesmo jornal, a Associação Académica de Coimbra projectava a realização de campos de trabalho nas zonas mais atingidas, preparando uma brigada para actuar em Loures, nos dias 8 a 10 de Dezembro. No Porto, os estudantes organizaram uma recolha de donativos a enviar para Lisboa. Na imagem abaixo, podemos ver a disponibilidade da Associação Académica de Coimbra no apoio às populações sinistradas, disponibilizando para a Cruz Vermelha Portuguesa as instalações da sua associação364.

Fonte: SIC Notícias, Cheias de 1967 – 50 anos, 25 Novembro 2017

362

Caderno de Reflexão, nº 1, Editado pelas Direcções Gerais da J.U.C., p.6. Diário de Notícias, 9 Dezembro de 1967, p.9. 364 SIC Notícias, Cheias de 1967 – 50 anos, 25 Novembro 2017 363

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11.2. O papel das cheias na consciencialização política dos estudantes Esta não foi a primeira vez que os estudantes se mobilizaram no apoio à população. Já tinha acontecido em 1961, na Cova do Vapor, numa zona habitualmente invadida pelo mar, o que voltou a acontecer e de forma dramática no Inverno daquele ano, em que marés mais violentas destruíram as barracas da linha de água, onde viviam cerca de 50 pessoas. Nessa altura, a AE da Faculdade de Direito de Lisboa tinha organizado uma ajuda às populações e um grupo de estudantes tinha partido para as auxiliar.365 Como já referimos, tal como entre as comunidades católicas começaram a surgir grupos de jovens com ideias e práticas mais ousadas, também uma nova geração começava a surgir entre a população estudantil, muito marcada pelo impulso inovador da campanha eleitoral de Humberto Delgado para a Presidência da República, em 1958. A partir de 1962, os estudantes mais politizados estavam em marcha. Começaram a organizar-se. Vários dirigentes, reunidos na Associação Académica do ISCEF (Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras), criaram, em Fevereiro daquele ano, o Secretariado Nacional dos Estudantes Portugueses e, um mês depois, realizou-se o I Encontro Nacional de Estudantes. As motivações ainda não eram marcadamente políticas, mas continham já um embrião de contestação. Na época, as suas grandes preocupações limitavam-se aos temas pedagógicos e à procura de melhores condições de vida dos próprios estudantes. 366 Contudo, porque começavam já a perturbar o regime, foi-lhes proibida a comemoração do Dia do Estudante que iria ocorrer entre 23 e 25 de Março e, no dia 24, a polícia de choque invadiu a Cidade Universitária de Lisboa. Em resposta, os estudantes reunidos no Estádio Universitário, decretaram o «luto académico» que se alargou à Universidade de Coimbra. A esta agitação dos estudantes universitários juntar-se-ia a dos estudantes de alguns liceus de Lisboa, que formaram uma Comissão Pró- Associação. 367 Era a crise estudantil de 1962 que, naturalmente, deixaria sementes para a grande mobilização que iria ter lugar cinco anos depois, com os acontecimentos dramáticos que ocorreram sobre zonas da Grande Lisboa, ceifando a vida a muitas centenas de pessoas. Em Novembro de 1967, o movimento de solidariedade estudantil assumiu uma expressão completamente nova. Segundo João Bernardo368, aquela foi a primeira vez que os estudantes verdadeiramente se mobilizaram, de forma maciça, no apoio às populações ao contrário do que tinha

365

Solidariedade Estudantil nº 2, SCIP – Secretariado Coordenador de Informação e Propaganda. PIMENTEL, Irene Flunser, História da PIDE, Temas e Debates, 2007, p. 262. 367 PIMENTEL, Irene Flunser, História da PIDE, Temas e Debates, 2007, p. 263. 368 JOÃO BERNARDO in «A politização dos estudantes durante o Estado Novo – o caso das cheias de 1967», Conferência realizada a 28 de Maio de 2016. 366

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acontecido, em movimentos anteriores, como a crise académica de 1962, em que era o movimento estudantil a apelar ao apoio popular à luta dos estudantes. Em Novembro de 1967, o pedido de solidariedade da população para com os estudantes era substituído pelo próprio exercício da solidariedade dos estudantes para com a população. Imbuídos de belos ideais revolucionários e preparados para as grandes lutas em defesa da humanidade, o movimento estudantil descia ao concreto, prestando auxílio às populações sinistradas. Para tal teria inevitavelmente contribuído a iniciativa dos estudantes católicos, mais ligados ao quotidiano das populações e das suas necessidades. Segundo Marta Duarte, 369 a mobilização dos estudantes não era de estranhar: Em Lisboa parecia óbvio que os estudantes se organizassem para acudir as populações. (…) Os universitários estavam na posição ideal para os socorrerem: beneficiavam de uma boa organização e mobilização … em número considerável e não tinham encargos laborais que os desviassem do dia-a-dia. O choque com a realidade foi, segundo João Bernardo370, muito importante para o reforço da mobilização política dos estudantes na luta contra o regime salazarista. Muitos ficaram estupefactos com as condições de vida das populações e o seu testemunho, bem como a sua solidariedade activa, contribuíram para alargar a base de apoio estudantil do movimento associativo, levando à luta um maior número de estudantes, o que porventura viria a estar na base da grande mobilização que levou à crise académica de 1969. Também Francisco Costa371 reforça a ideia da catástrofe ter funcionado como importante motor de politização das jovens gerações que, a partir das universidades, vinham ensaiando modos de contestação menos elitistas e mais aguerridos. Diz o estudo em que participou que, longe das preocupações elitistas de outrora, os estudantes ensaiavam já uma efetiva abertura à sociedade, efetuada num liame de contornos marxizantes, através do encontro com as faixas mais pauperizadas da população. Igualmente para Miguel Cardina372, o dramático contacto dos estudantes com a população dos bairros pobres da região de Lisboa por ocasião das cheias de 1967 teria sido um dos factores a contribuir para acelerar a politização do movimento estudantil nos fins dos anos 60, juntamente com outros factores 369

DUARTE, Marta Benamor, Foi Apenas Um Começo. A Crise Académica de 1969 na história do movimento estudantil dos anos Sessenta e da luta contra o Estado Novo, Dissertação de mestrado em História Contemporânea (séc.XX), Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, 1997, p. 172. 370 JOÃO BERNARDO in «A politização dos estudantes durante o Estado Novo – o caso das cheias de 1967», Conferência realizada a 28 de Maio de 2016. 371 COSTA, Francisco da Silva, CARDINA, Miguel, VIEIRA, Avelino in Inundação na região de Lisboa (1967). Um olhar sobre o impacto político e social in Riegos, Vulnerabilidades y resilencia socioambiental para enfrentar los cambios globales, Santiago (Chile), 03 a 05 de Diciembre 2014, p. 1269. 372 CARDINA, Miguel, Tradição, Sociabilidades, Compromisso: mutações na auto-imagem estudantil durante o Estado Novo in VII Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais, Coimbra, 16, 17, 18 de Setembro de 2004.

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como os ecos da revolta mundial dos estudantes nos ano 60 e o crescente descontentamento perante a Guerra Colonial. Na mesma linha dos investigadores já apresentados, Luís Tiago de Oliveira, 373 que estudou o activismo estudantil no Instituto Superior Técnico, identifica as inundações de 1967 como o momento simbólico marcante na politização dos estudantes universitários: A saída das escolas permitiu aos estudantes descobrir um país de pobreza e de lama. A partir daí, alguns activistas procuraram intensificar o conhecimento mútuo entre estudantes e população. Fizeram-no através do estudo e das viagens (…) ao mundo rural ou a campos de férias, onde procuravam participar nos trabalhos agrícolas, ouvir as pessoas e disseminar notícias ou músicas de intervenção. Os estudantes procuravam também incluir notícias de lutas de trabalhadores na imprensa estudantil; reciprocamente tentavam difundir as lutas estudantis junto das populações, através de comunicados e boletins. Era essa preocupação de ligação entre estudantes e população que explica a existência de muitos folhetos que se podiam encontrar, a partir de 1970, em grande quantidade, nas associações de estudantes ou nas suas imediações para poderem ser distribuídos clandestinamente. Para além das lutas estudantis, faziam também referência às lutas operárias e à Guerra Colonial. Uns tinham a chancela das associações, mas a maioria era assinado, para fugir à repressão, por Um grupo de Estudantes. Longe ia o tempo em que as preocupações das associações estudantis se centravam apenas no seu universo específico: luta pela autonomia das universidades e das associações e pela reforma do ensino; defesa de melhores condições de vida dos estudantes, como o reforço das bolsas de estudo, melhorias nos lares que os alojavam, nas cantinas que os alimentavam e nos transportes que os levavam até às universidades. Segundo Luís Tiago de Oliveira, Novembro de 1967 representou o tal momento simbólico que levou ao salto dos estudantes das universidades para o mundo exterior. João Bernardo

374

estabelece mesmo

uma ligação entre a participação dos estudantes nas cheias de 1967 e a revolução de Abril de 1974. Segundo aquele antigo dirigente estudantil, o ambiente então criado teria contribuído para a formação dos partidos de extrema-esquerda que viriam a surgir anos depois e que iriam inflamar as universidades e as Forças Armadas (com a entrada dos oficiais milicianos politizados, vindos daquelas instituições escolares) contra a Guerra Colonial. Entre os universitários e os estudantes liceais estavam, na época, membros da União dos Estudantes Comunistas (UEC), organização estudantil do PCP que, não obstante a luta daquele partido contra a 373

OLIVEIRA, Luís Tiago de, O activismo estudantil no IST, pp. 314, 415.

374

Arquivo RTP- Cheias de 1967 - https://www.youtube.com/watch?v=_YxQCHexxwg.

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ditadura, não se empenhou de forma organizada no apoio às populações em Novembro de 1967 (nem a UEC, nem o próprio PCP). Esse teria sido outro factor que teria contribuído para o enfraquecimento daquela organização no movimento universitário, abrindo as portas para a criação/ reforço dos grupos de extrema-esquerda entre a população estudantil das universidades. Pacheco Pereira 375 assinala também Novembro de 1967 como o período que marca o início da perda da influência do Partido Comunista Português no meio estudantil, ultrapassado por grupos mais esquerdistas que foram ganhando destaque, com práticas de acção (a ideia de agir) mais próximas do maoísmo e que surgiam como alternativa mais dinâmica ao centralismo do modelo soviético da URSS e do PCP. Segundo Pacheco Pereira, a mobilização dos estudantes no apoio às populações, nas inundações de Novembro, tratou-se de um momento único da experiência estudantil militante dos anos 60, que os terá marcado irremediavelmente: Os estudantes associativos, a elite política das universidades, comunistas, católicos progressistas, esquerdistas, e muitos voluntários atraídos por uma solidariedade que não sabiam ser proibida, iam pela primeira vez conhecer o Portugal sobre o qual falavam em abstracto nos panfletos. Os mundos do salazarismo eram tão socialmente estanques que se podia viver sem contactar com os traços mais revoltantes da miséria, que grassava nos arredores de Lisboa, e no interior do país, onde por essa altura centenas de milhares de portugueses faziam a «valise» para irem para França.376 A experiência das inundações, lado a lado com as Associações de Estudantes, também afectou a Juventude Universitária Católica, contribuindo para alargar a sua reflexão e a sua área de acção no Portugal de então. Podia ler-se no seu Caderno de Reflexão dedicado exclusivamente aos acontecimentos de Novembro de 1967377: E agora? Não há dúvida de que a tragédia das inundações, com todos os esforços que solidariamente mobilizou, é um fenómeno passado. É também um fenómeno passado a actuação das brigadas de estudantes, muito importante porque foi imediata, conjunta e ao serviço das populações atingidas com quem contactaram. Mas é preciso viver as consequências deste contacto. E não só reflectindo no que está para trás (…), mas também continuando a agir no meio estudantil e, para além dele, nas estruturas da nossa sociedade, em diálogo cada vez maior com aqueles que nela são mais pobres e desfavorecidos. Tirada esta conclusão, a J.U.C. apontava três «pistas de actução»:

375

In ANDRINGA, Diana – Geração de 60, RTP, 1989, 3º episódio in ARAÚJO , António, As cheias de 1967 e o progressismo católico português, 21 de julho de 2017. 376 PEREIRA, José Pacheco, Sentimentos Misturados. Público (30-XI-2006) in ARAÚJO , António, As cheias de 1967 e o progressismo católico português, 21 de julho de 2017. 377 Caderno de Reflexão, nº 1, Editado pelas Direcções Gerais da J.U.C., p. 8 .

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Reflexão: «Apelo aos cristãos para que leiam e reflictam sobre textos editados pela Junta Central da Acção Católica e pela Popularum Progressio, recordando que «O Reino de Deus é dos pobres», mas que «O Evangelho não exalta a Miséria». Apelo aos cristãos para que encarem a vida à luz do Evangelho, para construírem um mundo de unidade e de paz.»378 Acção: «Aproveitando (…) os tempos de férias, haveria interesse em promover, com mais frequência e sistematização cursos intensivos de alfabetização, de educação rural ou de integração urbana das populações que migraram, campos de trabalho, de auto-construção, etc.», ou seja, «Passar da promoção individual à promoção social, pois os estudantes poderão contribuir para um serviço a prestar à comunidade.379 «Evitar as blocagens»: apelo a que os cristãos não assumam atitudes que podem prejudicar e dificultar os trabalhos de reflexão e de acção, nomeadamente, «burguesismos (não perder tempo com questões sociais)»; «atitudes de paternalismos face às populações; e «atitudes de narcisismo».

Passando do domínio nacional para o internacional, constatamos, curiosamente, que esta ligação entre a participação dos estudantes na ajuda às populações vítimas de uma catástrofe e a elevação da sua consciencialização política não aconteceu só em Portugal. Também se verificou em Itália. Guya Accornero, que estudou a politização dos estudantes nos dois países, estabelece o paralelismo entre o que aconteceu: 380 É bastante comum, nos ciclos de protesto, que um vento imprevisto e incontrolável possa contribuir para desviar ou para conferir uma marca indelével no percurso da formação sociopolítica dos actores. Isso, todavia, acontece sobretudo quando existem condições favoráveis para que o evento permita iluminar de forma nova uma determinada situação e fornecer novas interpretações da realidade. Além disso, é necessário que um evento deste tipo aconteça no momento oportuno, ou seja, que existam as premissas para que uma nova leitura da realidade se possa afirmar e novas redes sociais, veículos privilegiados de qualquer mobilização, se possa construir. (…) Essa convergência de factores verificou-se na altura das cheias que atingiram Lisboa e os arredores em Novembro de 1967 e que contribuíram para a dilatação da politização e mobilização do movimento universitário, seja fazendo com que os estudantes entrassem em contacto com as reais condições de pobreza do país, seja facultando uma excepcional ocasião de participação autogerida.

378

Caderno de Reflexão, nº 1, Editado pelas Direcções Gerais da J.U.C., pp. 8 e 9. Caderno de Reflexão, nº 1, Editado pelas Direcções Gerais da J.U.C., p. 9. 380 ACCORNERO, Guya, Efervescência Estudantil. Estudantes, acção contenciosa e processo político no final do Estado Novo (1956-1974), pp. 103 e 104. 379

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Diz, sobre a situação semelhante, em Itália:381Algo de parecido tinha acontecido também em 1966 em duas importantes cidades italianas, Trento e Florença. (…) As cheias de Trento chegaram numa altura em que a actividade política estudantil já tinha começado e contribuiu para estender a mobilização a outras cidades, através dos estudantes chegados de todo o norte de Itália para prestarem ajuda à população atingida. A cheia de Trento determinou também a suspensão da ocupação da Universidade que estava a decorrer (…). Numa entrevista, Marco Boato382, então dirigente da «Lotta Continua», afirma: «Aquela ocupação foi dissolvida pelas cheias. Uma manhã, acordámos, vimos a água sobre os degraus da Sé e fomos ajudar a tirar a lama. Em Trento, Florença, Veneza, para a mesma geração foi a primeira experiência de voluntariado» (…). Como as cheias de Trento, também as que atingiram Florença, provocando cerca de trezentos mortos e doze mil cidadãos evacuados, contribuíram para ampliar e politizar a mobilização(…). (…) Entre os que se ofereceram como voluntários para limpar a cidade e salvar o possível das obras de Quinhentos e Seiscentos fechadas nas caves submergidas da Biblioteca Nacional, estavam também neste caso vários estudantes chegados de toda a Itália. Também ali, o contacto com a realidade levou a uma mobilização política dos estudantes, como nos conta um jovem de Bolonha, citado por Guya Accornero: 383 «Quando voltámos a Bolonha, sentimos uma dor quase física ao reencontrar uma cidade com uma vida completamente regular. Descendo do autocarro, cobertos de lama da cabeça aos pés, (…) os passantes olhavam para nós como se fôssemos seres estranhos e inquietantes, enquanto nós nos sentíamos portadores de sensações incomunicáveis a quem não as tivesse vivido (…). Foi uma experiência decisiva para a minha vida, uma etapa que marcou o caminho de me tornar adulto.

Em Portugal, a memória do movimento solidário estudantil tem permanecido vivo entre muitos daqueles que nele participaram. Descobrimos que antigos dirigentes associativos, empregados e colaboradores da AEIST se juntam anualmente, para recordar aqueles tempos de 1967 (ver Foto 41). Neste ano de 2017, 50 anos passados sobre as inundações de 1967, o grupo planeia um novo evento: 384

381

ACCORNERO, Guya, Efervescência Estudantil. Estudantes, acção contenciosa e processo político no final do Estado Novo (1956-1974), pp. 104 e 105. 382 CAZULLO, 2006:27, citado por ACCORNERO, Guya, Efervescência Estudantil. Estudantes, acção contenciosa e processo político no final do Estado Novo (1956-1974), p. 105. 383 Testemunho de Umberto Mazzone in «Unibo Magazine», revista on-line da Unversidade de Bolonha, citado por ACCORNERO, Guya, Efervescência Estudantil. Estudantes, acção contenciosa e processo político no final do Estado Novo (1956-1974), p. 107. 384 António Abreu, Blog ANTREUS, http://antreus2.blogspot.pt/.

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O encontro deste ano vai assinalar a importante acção de solidariedade que então realizamos com os estudantes de outras faculdades. Desta escadaria, partiram autocarros cheios de estudantes, alimentos, agasalhos, pás, picaretas, baldes, que transportávamos. (… ) Quase todos nós encontrámos o Povo, o nosso, nas difíceis condições de vida de que só tínhamos ouvido falar.

11.3. O incómodo do Governo – Desagrado e aproveitamento Naturalmente, este amplo movimento de solidariedade estudantil não foi bem visto pelo regime. Desagradava-lhe, por vários motivos. Em primeiro lugar, porque aquele movimento era autónomo e não se integrava em nenhuma das instituições corporativas vigentes. Tolerável seria a acção de estudantes integrados no Ministério da Educação, nos Serviços Sociais da Universidade e na Mocidade Portuguesa, outra bem diferente seria admitir que estudantes organizados pelas suas associações, mais ou menos contestatárias, partissem para os bairros pobres da região de Lisboa, a prestarem a ajuda que deveria caber, por inerência, às próprias autoridades. Em segundo lugar, o regime temia que aquela solidariedade estudantil, à margem das instituições oficiais, pudesse pôr em causa a impreparação e a falta de eficácia das autoridades nos serviços de socorro às populações, em situações de catástrofe. Era a prova da sua incompetência. Em terceiro lugar, o contacto entre estudantes associativos e a população dos bairros de lata que vivia em condições miseráveis, desconhecidas dos próprios estudantes, podia vir a revelar-se explosiva, com consequências que poderiam pôr em causa a paz social tão cara ao salazarismo. Em quarto lugar, as autoridades temiam que o contacto dos estudantes, tendencialmente contestatários, com a realidade pusesse a nu a ineficácia do regime na procura de soluções para os problemas urbanísticos das zonas deficientemente povoadas, sem redes de escoamento das águas e sem medidas de protecção contra o deslizamento de terras e as inundações. Era, de novo, a imagem de um regime incompetente que este queria evitar que transparecesse para a opinião pública. Efectivamente, o grande empenhamento dos estudantes contrastava com a desorientação inicial do regime. Rapidamente se constatou que, nos primeiros dias, os serviços de socorro ou eram inexistentes ou muito pouco eficazes. Surpreendido pela violência das águas e lama e pelos desastres humanitários que estavam a provocar, o regime ficou numa primeira fase apático e impotente e, quando mais tarde acordou para a realidade, começou por se preocupar em salvar a imagem de um país sereno sem dramas sociais, mesmo em prejuízo das populações sinistradas. Só dias depois, avançou com medidas concretas de ajuda às populações que foram já apresentadas noutros tópicos deste trabalho. 162


Diana Andringa385, Violante Saramago 386 e António Redol 387 recordam essa realidade: Quando chegámos ao terreno verificámos a total apatia do Estado, o total desinteresse. A minha brigada foi para Ponte de Frielas, perto de Loures. Estávamos a explicar às pessoas os perigos e os cuidados a ter quando aparece um miudinho descalço com um golpe imenso no pé. Havia um posto médico ali perto e eu fui com ele. Resposta do médico: «O posto médico já fechou.» Nessa altura já estava a pensar mudar para jornalismo, mas ainda tinha uma ideia nobre da medicina. Depois levámos a criança para o Hospital de Santa Maria (Diana Andringa). O governo preferiu camuflar tudo, sacrificar as populações. Não tenho dúvida de que houve gente que morreu porque o auxílio não chegou a tempo. Uma coisa são estudantes com pás e carrinhos de mão. Outra são corpos de infantaria, corpos de engenharia (Violante Saramago). Nos últimos dias, ainda fui com uma brigada que estava na Vala do Carregado, onde andei a desenterrar galinhas. Apareceu o presidente da Câmara de Vila Franca de Xira para mandar vir connosco. A população revoltou-se: «Eles é que têm ajudado; os senhores não têm feito nada (António Redol).

Outro motivo pelo qual a iniciativa dos estudantes desagradava ao Governo tinha a ver com a divulgação que aqueles faziam da ajuda prestada pelas brigadas no terreno e pela leitura crítica que faziam da situação social, denunciando a pobreza em que viviam as populações atingidas. Essa divulgação foi feita, como já fizemos referência, primeiramente por um Comunicado, pel’ Solidariedade Estudantil e também por outros jornais associativos. Diz Marta Duarte, que estudou os movimentos estudantis nos anos 60: 388 A participação estudantil, ou melhor, os relatos que os estudantes participantes iam fazendo nos jornais associativos e nacionais sobre os acontecimentos e a situação em que se encontravam as populações atingidas não agradou de modo nenhum às autoridades. Um grupo de estudantes que no Rossio fazia, de capa e batina, um peditório em favor das vítimas das cheias foi detido pela PSP, por alegados distúrbios de ordem pública. Conta Diana Andringa389 que, nalguns bairros, a GNR estava mesmo mais preocupada em afastar e prender os estudantes, por serem agitadores, do que em prestar auxílio às populações: 385

Diana Andringa, Lisboa, anos 60, Joana Stichini Vilela e Nick Mrozowski, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1912, p.229. 386 Violante Saramago, Lisboa, anos 60, Joana Stichini Vilela e Nick Mrozowski, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1912, p.230. 387 António Redol, Lisboa, anos 60, Joana Stichini Vilela e Nick Mrozowski, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1912, p.230. 388 DUARTE, Marta Benamor, Foi Apenas Um Começo. A Crise Académica de 1969 na história do movimento estudantil dos anos Sessenta e da luta contra o Estado Novo, Dissertação de mestrado em História Contemporânea (séc.XX), Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, 1997, p.173. 389 Diana Andringa, Lx60, p.230 e Arquivo RTP- Cheias de 1967 - https://www.youtube.com/watch?v=_YxQCHexxwg.

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O exército estava na Guerra Colonial e a GNR tinha ordens para parar acções subversivas. Chegou a prender estudantes que estavam a ajudar. Segundo João Bernardo, o Governo chegou mesmo a emitir uma nota oficiosa que alertava para o facto de os comunistas estarem a aproveitar-se da situação.390 Contra o movimento associativo dos estudantes estava também a Legião Portuguesa que, periodicamente, elaborava relatórios sobre as acções subversivas das associações de estudantes, nomeadamente a AEIST. Vejamos, o que se podia ler no relatório daquela instituição do regime salazarista, seis meses após a catástrofe:391 A Associação desta escola continua a ser o factor dinâmico mais subversivo da Universidade de Lisboa. Dispondo de poderosos meios financeiros que lhe são facultados pelos lucros exorbitantes da sua Secção de Folhas, problema para o qual já por diversas vezes chamámos a atenção, este organismo estudantil edita em seu nome [e] doutras Associações economicamente mais débeis, mais de 70% dos textos subversivos distribuídos pelas Faculdades de Lisboa. E continuava: A par da sua actividade editorial, a A.I.E.S.T. mantém uma série de secções de carácter subversivo a par de outras de cobertura. Entre as primeiras, citamos a sua Secção de Teatro que praticamente só trata autores modernos comunistas; citamos por exemplo: Buchner, Brecht, Sartre e Santareno. (…) Quanto a esta escola, parece-nos ser fundamental a urgente tomada de medidas que ponham cobro a este estado de coisas. Houve, contudo, excepções. Apesar do desagrado governamental relativamente à presença de grupos de estudantes nos bairros, a Direcção- Geral de Saúde

392

elogiou o precioso auxílio dos alunos da

Faculdade de Medicina, que colaboraram dedicadamente nos trabalhos e vacinação e de assistência médico-sanitária às populações. Igualmente, o Ministro da Educação393, Galvão Teles, não obstante não fazer qualquer referência às associações de estudantes que tinham organizado todo aquele movimento, mandou cancelar as faltas de todos os alunos que tivessem participado no auxílio às populações. Também a Cruz Vermelha Portuguesa elogiou, como já vimos, o apoio solidário dos estudantes. No relatório apresentado em Março de 1968, Maria Margarida Thomas de Morais, a Presidente daquela instituição, agradeceu e elogiou a colaboração dos estudantes, sem no entanto referir a forma como se

390

João Bernardo, Arquivo RTP- Cheias de 1967 - https://www.youtube.com/watch?v=_YxQCHexxwg. Relatório da Legião Portuguesa sobre a propaganda subversiva nos estabelecimentos escolares, Maio/Junho/1968. 392 O Século, 1 de Dezembro de 1967, p.6 393 ACCORNERO, Guya, Efervescência Estudantil. Estudantes, acção contenciosa e processo político no final doEstado Novo (1956-1974), p.108. 391

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organizaram para irem apoiar as populações: Colaboraram na limpeza das casas e em todos os serviços da Cruz Vermelha Portuguesa, com uma dedicação digna dos maiores louvores e agradecimentos, estudantes da Faculdade de Ciências, do Instituto Superior Técnico, do Instituto Comercial, Económicas e Financeiras, da Escola Industrial Eugénio dos Santos, Escola António Arroio, Colégio Académico e pessoas da localidade.394 Naturalmente, devido à Censura, o movimento solidário dos estudantes não teve, nos órgãos de comunicação social, o destaque que a sua dimensão exigia. Ou se omitia a sua acção, ou se lhe dava uma projecção mínima ou se manipulava a informação, atribuindo às autoridades oficiais a iniciativa e a organização do seu movimento solidário. Noutros casos, essas informações eram remetidas para páginas interiores, eventualmente para tentarem escapar ao controlo da Censura, tentativas pouco conseguidas, porque nunca faziam referência às associações de estudantes como o motor de todo aquele movimento de ajuda solidária. 395 Segundo o Caderno de Reflexão da JUC396, a que já fizemos referência, o único jornal diário que identificou a JUC e as Associações de Estudantes como organizadoras da ajuda às populações foi o Diário de Lisboa, do dia 28 de Novembro, o que eventualmente lhe terá sido permitido por acontecer numa edição que se destinava exclusivamente a ser distribuída em localidades do Norte e do Sul do país e que não foi distribuída na região de Lisboa. Dizia, aquela edição: Neste momento, a JUC e as Associações de todas as escolas e Faculdades estão a organizar-se, de acordo com os reitores e os directores. Esta manhã, houve no Técnico, uma reunião magna de Estudantes. Estão já a constitui-se comissões em todas as escolas, na Universidade Técnica e nas Faculdades.397 Na sua edição de dia 1 de Dezembro398, aquele jornal, enquanto retirava da primeira página e, pela primeira vez, fotos e notícias sobre as inundações para se centrar quase exclusivamente no discurso «histórico» de Salazar, utilizava uma página interior para elogiar a acção dos estudantes no apoio à população sinistrada, sem que no entanto fosse feita qualquer referência aos seus verdadeiros organizadores. Aí se podia ler: PRECIOSO AUXÍLO DOS ESTUDANTES UNIVERSITÁRIOS nos trabalhos de vacinação e assistência médicosanitária às populações flageladas.399 394

Cruz Vermelha Portuguesa. Inundações de 25 de Novembro de 1967. A acção desenvolvida pela Secção Auxiliar Feminina da Cruz Vermelha Portuguesa em todo o concelho de Loures, e auxílio prestado a toda a zona sinistrada, p.32. 395 O Século, 1 de Dezembro de 1967, p.6. 396 Caderno de Reflexão, nº 1, Editado pelas Direcções Gerais da J.U.C., p.6. 397 Caderno de Reflexão, nº 1, Editado pelas Direcções Gerais da J.U.C., p.6. 398 O Século, 1 de Dezembro de 1967, p. 6 399 Ibidem.

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Merecedora dos maiores encómios e digna da mais viva simpatia, tem sido a acção desenvolvida pelos estudantes da Universidade de Lisboa no auxílio e assistência às populações atingidas pelas funestas consequências dos temporais que flagelaram a capital e quase todos os concelhos do distrito de Lisboa. (…) Estudantes de Direito, do Instituto Superior Técnico, de Letras, de Económicas, de Veterinária e Agronomia, da Faculdade de Ciências e do I.S.C.S.P.U., assim como os de Medicina, e mesmo das Academias Militares e dos últimos anos liceais, revezando-se por turnos, e sempre animados de apreciável e comovente espírito de solidariedade, têm prestado, assim, significativo contributo ao esforço geral que visa minorar, tanto quanto possível, os elevadíssimos prejuízos registados. Feito o elogio ao movimento solidário dos estudantes, aquele jornal continuava a identificar as instituições sociais do Ministério da Educação como as promotoras e organizadoras daquele movimento, omitindo toda e qualquer referência à JUC e às Associações de Estudantes:400 No âmbito universitário, o Ministério da Educação providenciou para que a coordenação do apoio moral e material de conforto e ajuda às populações atingidas pela catástrofe das inundações seja realizada através dos Serviços Sociais das Universidades de Lisboa, do Centro Universitário, da Procuradoria dos Estudantes Ultramarinos e dos Serviços Médico-Sociais Universitários da capital. As mesmas instituições estão em contacto com o Ministério do Interior a fim de, dentro do planeamento geral das acções de assistência em curso e a promover, providenciarem no sentido de que grupos de universitários estejam presentes nos lugares onde forem necessários, com vista a prestarem a ajuda mais conveniente. Tendo consciência do aproveitamento que o Governo estava a fazer do movimento de solidariedade estudantil, a JUC e as Associações de Estudantes indignaram-se pela injustiça da situação, agravada, entretanto, na Universidade por uma campanha de confusão e calúnia empreendida por sectores que se refugiavam no anonimato401. A JUC lamentou também que não tivesse havido uma mobilização do corpo docente, pelo menos de tipo organizado, na ajuda às populações, não obstante o apoio de muitos reitores e directores.402 Face ao tratamento discriminatório e à manipulação política de que estavam a ser alvo, os estudantes resolveram reagir criando jornais próprios. Surgiu, como já vimos, o Solidariedade Estudantil que conheceu três números (Repudiamos … a escandalosa usurpação do trabalho desenvolvido403) e a JUC criou o Caderno de Reflexão, onde analisava e reflectia sobre os acontecimentos.

400

Ibidem. Caderno de Reflexão, nº 1, Editado pelas Direcções Gerais da J.U.C., p.6. 402 Caderno de Reflexão, nº 1, Editado pelas Direcções Gerais da J.U.C., p.6. 401

403

Solidariedade Estudantil nº 2, SCIP – Secretariado Coordenador de Informação e Propaganda.

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Além da denúncia na sua imprensa própria, os estudantes convocaram uma conferência de Imprensa no dia 3 de Dezembro para dar a conhecer à opinião pública o trabalho que estava a ser realizado, bem como do seu aproveitamento pelo regime.404 Estiveram presentes representantes dos órgãos de comunicação nacionais e agências noticiosas estrangeiras. Foi referido que, ao contrário da informação veiculada pelas autoridades oficiais, a direcção da organização do apoio estudantil à população não esteve a cargo dos Serviços Sociais da Universidade, mas das Associações de Estudantes. Foi lida uma declaração inicial, que foi distribuída, e aberto um período de perguntas-respostas. A conferência de Imprensa foi evidentemente censurada e nenhuma informação ou esclarecimento surgiu na imprensa diária nos dias seguintes. Só na imprensa estrangeira saíram notícias sobre a mesma. Aí, disseram, os representantes dos estudantes:405 O embargo pela censura às notícias que se referem à nossa acção significa que as Autoridades têm interesse em que não sejam conhecidas a impreparação e desorganização dos seus organismos sociais e sanitários para fazer face a uma eventualidade como esta; a existência, num extensíssimo sector do território, de condições de vida de tal modo miseráveis que, por elas, em grande parte se explica a amplitude das perdas de vidas e de haveres das populações atingidas; e a participação dominante de organizações democráticas e livres como as AAEE, num trabalho que em primeira linha competia às instituições oficiais. (sublinhados no original). A conferência de imprensa apesar de não ter captado o interesse da imprensa nacional, suscitou, como seria de esperar, o interesse da polícia política. Armindo Fernandes, então vice-presidente da Associação de Estudantes do Instituto Superior Técnico, recorda406 que Como resultado dessa conferência de imprensa, toda a Direcção da Associação de Estudantes do IST foi convocada para ir prestar declarações à PIDE .

12. Outros gestos de solidariedade 12.1.Fundação Calouste Gulbenkian A Fundação Calouste Gulbenkian, não obstante todos os danos sofridos nas suas instalações em Lisboa e em Oeiras, fez jus ao seu papel de grande instituição filantrópica, concedendo um fundo de apoio aos

404

Solidariedade Estudantil nº 2, SCIP – Secretariado Coordenador de Informação e Propaganda.

405

Solidariedade Estudantil, Secretariado Coordenador de Informação e Propaganda (SCIP) das Associações de Estudantes de Lisboa, nº 1, 4 de Dezembro de 1967. 406 Expresso, Cheias de 1967, Reportagem de Joana Pereira Bastos, 11 Novembro 2017, pp. 24 a 32

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sinistrados e financiando a construção de habitações para famílias desalojadas, em vários locais da Grande Lisboa. A instituição começou por fazer a doação de um fundo no valor de 50.000.000$00 para ajudar a reparar, reconstruir e sobretudo construir habitações para as vítimas das inundações. Aquele orçamento seria depois reforçado em mais 14.000.000$00, num total de 64.000.000$00, a ser investido em várias fases. Estipulava-se como condição que todos os bairros a construir se passassem a chamar «BAIRROS CALOUSTE GULBENKIAN» e que as despesas de urbanização dos mesmos fossem custeadas pelas respectivas câmaras municipais. Deste modo, a Fundação subsidiou a construção de 324 habitações para desalojados nas seguintes zonas da Grande Lisboa: Odivelas (160 fogos); Santarém (42 fogos); Mealhada (32 fogos); Venda Seca (32 fogos); Arruda dos Vinhos (22 fogos); Alenquer (36 fogos) e Quintas.407 Em Alenquer, o Bairro Gulbenkian incluía 36 apartamentos distribuídos por 6 edifícios. Todos eles dispunham de 3 quartos, uma sala comum, cozinha, casa de banho e arrecadação. A renda estipulada para o arrendamento era definida segundo o rendimento do agregado familiar, indo de 150$00 a 500$00.408 Em Quintas, aldeia que perdeu mais de metade dos seus habitantes, também foi construído um Bairro Gulbenkian, do qual se pode observar, na imagem abaixo, a sua zona central.

Bairro Gulbenkian em Quintas e memorial em homenagem às vítimas da cheia de 1967. Fonte: Foto de Ana Paula Torres 407

Acta nº 907, Reunião da Comissão Delegada do Conselho de Administração realizada em 20 de Fevereiro de 1968. Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa. 408 RAPOSO, Raquel; LOURENÇO, José Leitão; SANTOS, Alberto, A NOITE MAIS LONGA história e memória da cheia de 25-26 de Novembro de 1967, Alencultura editorial, Alenquer, 2017, pp. 162 a 164.

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A inauguração daqueles bairros contava com a presença de uma comitiva oficial encabeçada, na maior parte das vezes, por Américo Tomás, então Presidente da República. Segundo a jornalista Helena Matos409, A inauguração daqueles bairros seria, para o regime, a contra imagem das barracas destruídas na noite de 25 de Novembro, logo uma importante propaganda para o regime.

12.2. Imprensa O Diário de Notícias promoveu, como já foi referido, uma subscrição em dinheiro e em géneros a favor das vítimas das cheias, dando início a um grande movimento de solidariedade nacional que haveria de marcar as primeiras páginas daquele diário durante vários dias. Segundo o jornal, todas as doações seriam entregues à Cruz Vermelha Portuguesa, à medida que fossem chegando, cabendo àquela instituição definir os critérios na distribuição dos géneros e dos valores monetários às populações atingidas pelo temporal. Essa subscrição foi um êxito porque contou com o apoio generoso de muitos particulares e instituições do mais variado tipo, que doavam dinheiro, bens alimentares, cobertores e outros bens no apoio às vítimas da catástrofe. Diariamente, aquele jornal ia informando os seus leitores, dando conta dos valores recolhidos, identificando a lista dos dadores particulares e institucionais, nacionais e estrangeiros e as respectivas doações. A subscrição foi aberta com o valor inicial de 20.000$00 no dia 27 de Novembro e, no fim do primeiro dia, juntava já 668.442$2. As primeiras contribuições recebidas foram de entidades bancárias (Banco Pinto & Sotto Maior, Banco Nacional Ultramarino, Borges e Irmão), da Mobil Portuguesa e Fundação de Oeiras, que enviou 20.000$00, e de muitos dadores anónimos. A subscrição durou 7 semanas e 49 dias, tendo sido a maior subscrição pública que, até à época, tinha sido organizada em Portugal. Encerrou no dia 14 de Janeiro, com um total de 18.624.075$90 donativos em dinheiro, para além de muitos outros donativos em diferentes tipos de géneros.

12.3. Comunidade artística e outros grupos No apoio às vítimas da catástrofe, mobilizou-se toda a sociedade portuguesa e, nela incluída, a comunidade artística, a transportadora aérea portuguesa, grupos desportivos, colectividades e simples grupos de amigos. Houve peditórios e subscrições, espectáculos para angariação de fundos, bailes de

409

RTP1, O Tempo que Faz, reportagem de Helena Matos, 24 Novembro 2017

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beneficência e jogos de futebol. Os bombeiros iam aos mercados recolher mantimentos e vinham carregados de produtos, porque o sentimento dominante era a generosidade.410 Operários de várias fábricas deram parte dos seus salários para as vítimas das inundações e empresas disponibilizaram gratuitamente os seus serviços para arranjar maquinaria danificada. Foi o caso da LA CIMBALI que se ofereceu para reparar gratuitamente todas as máquinas de café daquela marca que tivessem ficado danificadas.411 Por iniciativa da União dos Grémios dos Espectáculos, o dia 7 de Dezembro foi instituído como o «Dia do Cinema» no apoio às vítimas da catástrofe. Foi escolhida uma das sessões da noite desse dia e todas as receitas recolhidas reverteram a favor dos desalojados, juntando-se à subscrição organizada pelo Diário de Notícias. O valor das mesmas foi de mais de quinhentos contos entregue pelo Dr. Manuel Teles, Presidente da União dos Grémios de Espectáculos, ao Director daquele jornal. 412 Os Teatros e a Revista também participaram na subscrição pública do Dário de Notícias, revertendo para o mesmo fim as receitas de espectáculos no Teatro Avenida (Equilíbrio instável, realização de Amélia Rey Colaço); Monumental (Flor do Cacto, de Vasco Morgado); e no ABC, Teatro do Parque (Mulheres à Vela, de José Miguel), entre outros. Também a TAP, a transportadora aérea portuguesa, ofereceu o transporte gratuito de bens vindos do estrangeiro, doados por várias entidades e países. Os seus trabalhadores de Lisboa, Beira (Moçambique) e Genebra doaram uma hora do seu trabalho diário, exemplo que foi seguido por outros trabalhadores da empresa. A 18 de Dezembro, o Grupo Cultural e Desportivo da TAP organizou uma festa de Natal no cinema Monumental para 1.400 crianças vindas dos bairros mais atingidos pelas inundações, com projecção de desenhos animados e distribuição de guloseimas e de brinquedos.413

13. As excepções: desumanidade e pilhagens Apesar da solidariedade revelada pelas instituições e por muita gente anónima, também houve casos de grande oportunismo. Temos um exemplo no Dafundo, no Bairro Clemente Vicente, onde existiam cerca de 40 habitações devolutas pertencentes a José Manuel Vicente, que teria entregado a administração das mesmas a um indivíduo, identificado como «Canhoto».

410

Revista Sábado, «Ainda há lá corpos enterrados», Maria Henrique Espada, 16-10- 2017. http://www.sabado.pt/portugal/detalhe/cheias-de-1967-a-tragedia-esquecida-que-matou-centenas. 411 RTP1, O Tempo que Faz, reportagem de Helena Matos, 24 Novembro 2017 412 Diário de Notícias, 10 de Janeiro de 1968, p.7. 413 O Século, 18 de Dezembro de 1967 . 170


Após as inundações e dada a situação aflitiva de muitas pessoas, foram feitas diligências para ali albergar provisoriamente os desalojados, mas tal não aconteceu. O administrador «Canhoto», como era conhecido, manteve-se intransigente na recusa em disponibilizar as habitações para aquele fim. O jornal Actualidades414, que deu aquela informação, indignava-se com esta falta de solidariedade e desmascarava a especulação imobiliária que a motivava: Há no Dafundo um monstro que ignora o significado da solidariedade, negando abrigo que poderia dar sem encargos a 300 pessoas vítimas das enxurradas. Diz-se, de boa origem, que a atitude se filia no propósito de garantir próspero negócio no futuro, venda de casas e de terrenos. Algumas das habitações encontravam-se há anos sem inquilinos, precisamente para salvaguardar a oportunidade do negócio evitando (…) a concessão das inevitáveis indemnizações pelo desalojamento. Oportunistas… João Bernardo, dirigente do AEIST a que já várias vezes fizemos referência, vivenciou também outro episódio de grande desumanidade em Frielas (Loures), um dos bairros pobres onde foi prestar auxílio:415 O senhorio das barracas destruídas andava no meio dos escombros a recolher as rendas daquele mês, temendo perder de vista os inquilinos. A GNR, que esteve sempre ausente das acções de salvamento, está lá para o proteger na cobrança. A população [recebeu] o senhorio e os militares à pedrada. Olhando à volta, a região é um imenso buraco castanho, com lama e chapas de zinco. Como acontece em todas as catástrofes, também se registaram pilhagens, por ocasião da fuga das populações para escapar às águas e à lama. Em vários locais, foram vistos indivíduos a saquearem as habitações. Alguns foram detidos. Testemunhos recolhidos na Biblioteca Municipal de Algés contam alguns desses episódios pouco dignos. Conceição O´ Neil416: Houve pilhagens de casas. Gente a gritar que as pessoas deviam fugir, que era melhor fugir. Depois pilhavam as casas. Viam-se pessoas a tirar eletrodomésticos (televisões, telefonias) das lojas na Rua Damião de Góis. Helena Abreu:417 Agora recordo que a um certo momento já não havia luz. Foi quando a rua, toda às escuras, começou a ser invadida por pessoas que vinham ao saque. Algumas montras já tinham rebentado, mas outras estavam inteiras. Atiravam qualquer coisa pesada para partir os vidros, entravam e saqueavam o que havia. Lembro-me da loja de móveis do Sr. Antunes (talvez a loja onde agora está a

414

Actualidades, 9 de Dezembro de 1967, Lisboa, cit. in Cheias no Concelho de Oeiras 1962/2008, Vol. II, CMO. LOURENÇO, Gabriela; COSTA, Jorge; PENA, Paulo, Grandes Planos – Oposição Estudantil à Ditadura 1956-1974, Âncora Editora, Lisboa, 2001, p. 119. 416 Conceição O’ Neil, Registo áudio, Biblioteca Municipal de Algés, Maio de 2016. 417 Helena Abreu, depoimento escrito, Biblioteca Municipal de Algés, Setembro de 2016. 415

171


Padaria Portuguesa) ter sido saqueada assim. Víamos os móveis a serem levados. Aconteceu o mesmo à loja dos electrodomésticos, que ainda lá está. João Augusto Carriço Sant ‘Ana

418

: Chegado a Algés (…) nem queria acreditar no que via. Móveis da

sala de estar, quarto e casa de jantar cobertos de lama, gavetas abertas mostrando o seu conteúdo danificado pela lama. (…) Tinham-me desaparecido, algumas coisas de algum valor, que considerei como saque. Pessoas ofereceram-se para lavar as roupas que se encontravam nas gavetas, mas algumas delas já não voltaram… Foi um pesadelo, para mim (…). Viriato Pereira

419

recorda que, para evitar as pilhagens, as ruas de Linda-a-Velha foram, nos dias a

seguir à tragédia, patrulhadas por homens da GNR a cavalo. Identificavam as pessoas que circulavam nas ruas, perguntavam-lhes onde moravam e, grande parte das vezes, escoltavam-nas até a casa. O aproveitamento sem escrúpulos da tragédia humana foi também noticiado em Lisboa; burlões que, organizados em falsas comissões de apoio, iam de porta em porta a pedir donativos para os sinistrados, em nome do Diário de Notícias. Dois dias após a catástrofe, O Século420 relata também um testemunho deste lamentável aproveitamento da situação dramática vivida pelas populações:

Gatunos à solta aproveitando-se da confusão gerada pela tragédia [Depois de as pessoas] se porem a salvo e de ajudarem os outros, e depois das chuvas pararem, levaram os seus haveres para a rua e passeios [para os secarem]. Assim havia um pandemónio de cadeiras e fogões, rádios, cadeirinhas de crianças, televisores, etc. Houve quem se aproveitasse e deitasse a mão ao que estava a secar.

Alguns, apanhados em flagrante, acabaram por ser presos como aconteceu em Algés, em que dois jovens de 18 e 19 anos (um empregado de comércio e um aprendiz de ladrilhador) acompanhados por um pedreiro de 27 anos, transportavam alguns bens alheios quando foram apanhados pela PSP daquela localidade. A explosão do Forte do Carrascal também incentivou esses comportamentos, tendo ocorrido a prisão de 16 boateiros em flagrante delito421, que espalhavam o boato da eminência de uma nova explosão para, alegadamente, organizarem uma operação de saque às habitações, deixadas abandonadas pelas populações em fuga. 418

João Augusto Carriço Sant ‘Ana, testemunho recolhido por Helena Abreu, Biblioteca Municipal de Algés, Maio 2017. 419 Viriato Pereira, testemunho recolhido por Maria Sampedro, Biblioteca Municipal de Algés, Fevereiro de 2016. 420 O Século, 27 de Novembro de 1967, p.11. 421 Diário de Notícias, 28 de Novembro de 1967, p.8.

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14. Ecos da tragédia na Comunicação Social: Imprensa, Televisão, Rádio. O travão da Censura. Imprensa e Televisão A tragédia ocorrida a 25 e 26 de Novembro teve uma imediata cobertura na imprensa nacional. Os telefones das redações dos jornais não paravam de tocar com as informações que chegavam de todas as zonas atingidas e com pedidos de informação constantes. Os jornais fizeram várias tiragens no dia a seguir à tragédia, acrescentando notícias transmitidas pelos seus repórteres. Foi o caso do Diário de Notícias, que lançou para a rua 3 tiragens e de O Século, que distribuiu cinco edições ao longo de domingo, com dados casa vez mais dramáticos, à medida que se iam conhecendo pormenores da tragédia. Na manhã após a grande tromba de água que se abateu sobre a região de Lisboa, o Diário de Notícias já tinha recolhido informação de várias fontes e narrava o que tinha acontecido, o que faz supor um trabalho exaustivo por parte dos jornalistas422 que tentavam cobrir os acontecimentos, deslocando-se a todas as áreas atingidas, limitados pelas águas, pela lama e pelos brutais engarrafamentos de trânsito, como foi o caso de um carro de reportagem do Ribamar, que demorou três horas de Belém a Algés.423 Os títulos da imprensa da época, nomeadamente o Diário de Notícias, O Século, O Diário de Lisboa, a Flama e Século Ilustrado,424 nos dias imediatos àqueles acontecimentos, evidenciavam o choque perante uma tragédia de que ainda mal se adivinhavam as consequências devastadoras para as populações. Alguns títulos fazem eco da catástrofe: «Noite dramática em Lisboa e arredores. Horas de desespero» «Dilúvio de Catástrofe» “Fim-de-semana trágico: Dilúvio, lama e morte” “A mais longa noite da região de Lisboa” “Impossível dizer onde acabava o Tejo e começava Lisboa” “A Noite em que a chuva matou” “Noite de pesadelo numa cidade em pânico”

422

Diário de Notícias, 26 de Novembro de 1967, p.8. Ribamar, 3 de Dezembro de 1967, p. 2 424 Diário de Notícias, 26 e 27 de Novembro de 1967; O Século, 26 e 27 de Novembro de 1967; Diário de Lisboa, 26 e 27 de Novembro de 1967; Flama; Século Ilustrado. 423

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«Chuva e Morte: Centenas de Vítimas» «Horas de pavoroso dilúvio sobre Lisboa e arredores. Mortos e desaparecidos envolvidos pela enxurrada» «Só silêncio na aldeia de Quintas» “Enterram-se os mortos e socorrem-se os sinistrados” Após os primeiros dias das chuvas torrenciais, os jornais continuaram a dar um grande realce ao tema que continuava a ocupar as primeiras páginas, relatando acontecimentos, mostrando fotografias, recolhendo testemunhos, narrando históricas trágicas dos sobreviventes, identificando mortos e referindo os desaparecidos dos lugares. Os jornalistas que cobriam as notícias envolviam-se também emocionalmente, partilhando nos títulos e comentários comovidos, a dor dos que sofriam, como se pode ver nos testemunhos abaixo de jornalistas do Diário de Notícias, em Quintas e de O Século Ilustrado, em Odivelas:

[Em Quintas], vi dezenas de corpos desfilarem em macas, corpos transportados em escadas. Vi rostos

com a máscara do pavor, homens e mulheres, crianças e jovens. Vi famílias inteiras que marcaram encontro com a morte. (…) Falta-me a coragem para fazer perguntas, para interrogar. Sinto que estou num necrotério, sem paredes, sem tectos. Oiço os lamentos, os gritos dos filhos chorando os pais, de mães chamando as filhas. (…) Esta, a mais dolorosa das reportagens que é preciso escrever. 425

Aquilo a que a população de Odivelas assistiu não há palavras que o descrevam. Não as há suficientemente ricas para transmitirem o patético da situação de um homem que se finca a um poste, num meio de um caudal de água barrenta, em plena noite, e aí fica a bradar por socorro, uma hora, duas horas, sem que ninguém o possa auxiliar e enquanto a água vai subindo, subindo, e submergindo-lhe a cintura, o peito, o pescoço e depois de lhe ter lançado a morte na alma, arranca o poste e leva o poste e leva-o a ele – ainda aos gritos – pela noite fora, até um sítio qualquer onde o deixa morto. 426 Appio Sottomayor, jornalista da France Press, comovia-se também com as notícias que transmitia:427 Logo nessa noite fui dar uma volta pelas zonas mais sinistradas, incluindo Odivelas. Das cenas que mais me marcaram foi ver a boiar os corpos de uma mulher e uma jovem, juntamente com coelhos mortos, um cão e uma boneca, todos em grande irmandade naquela Ribeira de Odivelas que normalmente é um

425

Diário de Notícias, 27 de Novembro de 1967, p.12. O Século Ilustrado, 2 de Dezembro de 1967. 427 Appio Sottomayor, jornalista da France Press in Lisboa, anos 60, Joana Stichini Vilela e Nick Mrozowski, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1912, p. 226. 426

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charco e nessa altura subiu como sei lá o quê. Fui o mais depressa possível para a redacção, telefonei ao chefe para pedir a correcção em francês e enviou-se o texto para Paris. (…) De madrugada telefonaram- me de uma rádio francesa a perguntar se [podia] falar com eles. Disselhes que podia ler o que tinha escrito. Começo a ler e no meio daquilo salta-me um soluço. Não aguentei. Digo: «Peço desculpa.» E eles responderam: «Não, não, é um óptimo apontamento de reportagem.» Foi uma coisa tremenda.

Também para Homero Cardoso, jornalista da Flama, o drama das inundações de 1967 deixou marcas profundas. Recorda, numa entrevista que deu anos depois:428 Faço parte de um grupo que primeiro descobre a acção social, a luta pelos pobres oprimidos. Estava na Flama quando se dão as cheias de 1967 e foi uma coisa que, até de um ponto de vista meramente jornalístico, teve um impacto muito grande na redacção da Flama e nas outras redacções. Quando as cheias acontecem, toda a gente aparece num instante na redacção da Flama. Andava toda a gente à procura do fotógrafo, o João Tinoco. Simplesmente, ele nem passara pela redacção, tinha ido logo a correr para lá.

Os jornalistas tentavam cobrir as notícias relatando para as redacções dos seus jornais os acontecimentos o que, na época e nas circunstâncias, era uma tarefa difícil. Joaquim Letria, na época jornalista do Diário de Lisboa, recorda as dificuldades de então, ao nível das comunicações429: Conseguir um telefone era um milagre. Conseguir que o telefone funcionasse era outro milagre. Conseguir ter moedas trocadas para que o telefone funcionasse era um milagre, conseguir que a pessoa certa atendesse com a brevidade certa que nós pretendíamos, era outro milagre. Eram muitos milagres. Pedro Alvim, também jornalista do Diário de Lisboa, redigiu, dias depois dos acontecimentos, a mais bela crónica escrita sobre a tragédia, Os Fósforos e os Mortos (ver Anexos – 3. Lista de mortos confirmados nas várias localidades), onde identifica, de uma forma poética, as vítimas mortais encontradas no quartel dos bombeiros de Odivelas, primeiro à luz de uma lanterna e depois à luz de fósforos. Nos primeiros dias, o regime permitiu que os jornais e outras publicações dessem informações sobre os acontecimentos, publicassem fotografias, recolhessem testemunhos de vítimas e de equipas de salvamento. A Censura não ousou impedir as notícias, as fotografias, as reportagens. A tragédia era demasiado grande em dimensão dramática e em termos geográficos para ser ocultada. 428

Entrevista a Homero Silva Cardoso, em 16 de Abril de 2009 in ARAÚJO, António «Agir» As cheias de 1967 e o progressismo católico português, 21 de julho de 2017. 429 SIC Notícias, Cheias de 1967 - 50 anos – 24 Novembro 2017

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Nesses dias, a Censura foi nitidamente ultrapassada pelas circunstâncias, pelos acontecimentos inesperados e imprevisíveis, que se sucediam a um ritmo que pouco tinha a ver com a rotina dos censores do lápis azul que foram incapazes de travar a corrente de notícias sobre a tragédia. Em sua substituição, o regime, através da imprensa que lhe era afecta, justificava a tragédia como resultado de uma Natureza hostil, atribuindo aos fenómenos naturais a única explicação para a mesma. Vendo que a dimensão da tragédia se ia avolumando com a descoberta de cada vez maior número de corpos, o Governo passou a ficar incomodado. A «política do espírito» salazarista, que tinha por base a exaltação/propaganda do Estado Novo e a censura de tudo o que lhe era contrário, corria o risco de falhar com as notícias da tragédia, contribuindo para criar uma imagem negativa de si próprio. Segundo Alice Vieira430, a Censura começou então a dar indicações para as redacções dos jornais: «Não falem muito no assunto»; «Não falem muito do cheiro»; «Cuidado com o que dizem». Os censores tornaram-se mais activos e começaram a riscar frases como: «Rostos marcados pela tragédia»; «As crianças foram as vítimas mais dolorosas»; «Flores, lágrimas e lama»; «A dor foi comunicativa»; «Momentos que não serão esquecidos» 431. Destas primeiras indicações, a Censura passou a enviar directivas mais precisas para os órgãos de comunicação, temendo que o choque e consternação gerais pudessem evoluir para o domínio político. Eis algumas das que a Direcção Geral da Censura enviou para os órgãos de comunicação, nos dias 27 e 29 de Novembro: 432 «Gravuras da tragédia: é conveniente ir atenuando a história. Urnas e coisas semelhantes não adianta nada e é chocante. É altura de acabar com isso. É altura de pôr títulos mais pequenos».

«Inundações: Títulos não podem exceder a largura de ½ página e vão à censura. Não falar no mau cheiro dos cadáveres. Actividades beneméritas dos estudantes – Cortar».

«Deliberação do Senado Universitário de Coimbra acerca do auxílio a prestar às vítimas das enxurradas. Cortar. A notícia só pode sair nos jornais de Coimbra».433

430 431

RTP1, O Tempo que Faz, reportagem de Helena Matos, 24 Novembro 2017 RTP1, O Tempo que Faz, reportagem de Helena Matos, 24 Novembro 2017

432

COSTA, Francisco da Silva (colab.) in Inundação na região de Lisboa (1967). Um olhar sobre o impacto político e social in Riegos, Vulnerabilidades y resilencia socioambiental para enfrentar los cambios globales, Santiago (Chile), 03 a 05 de Diciembre 2014, p. 1269. 433 MELO, António – Cheias. A censura não aguentou. Pública, de 23-XI-1997, pp. 50ss., in ARAÚJO , António, As cheias de 1967 e o progressismo católico português, 21 de julho de 2017.

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Deliberação da Comissão de Exame Prévio do Porto, em 30 de Dezembro de 1968: Baile de passagem de ano, no Palácio dos Valenças, em Sintra. Não dizer que a receita se destina às vítimas das inundações.434

«Não podem ser autorizadas mais gravuras sobre as inundações.»

435

(Século Ilustrado,2 de Dezembro

de 1967)

«centenas de mortos» é alterado para «dezenas de mortos».

Segundo o relato do editor Francisco Lyon de Castro, foi do próprio Salazar que partiu a directiva para que a Censura interviesse, pondo algum controlo nas notícias a transmitir sobre a catástrofe. Numa das frequentes idas de Lyon de Castro ao director da Censura, este mostrou-lhe um cartão de Salazar, a recomendar que a população portuguesa não fosse «mais amargurada com notícias sobre este assunto.»436 Joaquim Letria recorda que havia discrepâncias no acesso à informação, o Ministério da Saúde dava uns números, o Ministério do Interior dava outros...437 e o Ministério do Interior desmentia todos os números fossem quais fossem e dizia «que era tudo mentira».438 Também o Presidente do Município de Alenquer se admirava com a desproporção entre a realidade e a informações dos jornais: A população e forças vivas têm vindo junto desta Câmara exprimir enorme estranheza por virtude das informações da Imprensa quase desconhecer a enormidade em mortos, desaparecidos e totais prejuízos que o concelho de Alenquer sofreu. 439 Incomodada com a preocupação da imprensa em actualizar o número dos mortos nas várias regiões sinistradas (importante para que se tivesse uma consciência da dimensão da tragédia), a Censura decidiu pôr fim à situação, fixando o número oficial de mortos em 462 e enviando para os vários meios de comunicação, via telefone ou telex, a seguinte ordem tão curta, como absurda e totalitária: «A partir deste momento não morreu mais ninguém.» 440

434

MELO, António – Cheias. A censura não aguentou. Pública, de 23-XI-1997, pp. 50ss., in ARAÚJO, António, As cheias de 1967 e o progressismo católico português, 21 de julho de 2017. 435 Registo da Censura. 436 MADEIRA J.; PIMENTEL I. F.; FARINHA L., Vítimas de Salazar. Estado Novo e violência política, Lisboa, Esfera dos Livros, 2007, p. 49. 437 In ANDRINGA, Diana – Geração de 60, RTP, 1989, 3º episódio, in ARAÚJO, António, As cheias de 1967 e o progressismo católico português, 21 de julho de 2017. 438 Reportagem de Maria Henrique Espada na Revista Sábado, 16.09.2017. http://www.sabado.pt/portugal/detalhe/cheias-de-1967-a-tragedia-esquecida-que-matou-centenas 439 Diário de Notícias, 28 de Novembro de 1967, p.8. 440 http://observador.pt/2017/07/27/porque-e-que-marcelo-fala-em-ditaduras-e-tragedias-por-causa-das-cheiasde-1967/.

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Neste número oficial, as vítimas mortais estavam assim distribuídas pelos vários concelhos: Vila Franca de Xira (221); Loures (125); Alenquer (54); Oeiras (33); Arruda dos Vinhos (14); Sintra (12); Sobral de Monte Agraço (3). Abílio Rodrigues da Silva, bombeiro voluntário de Odivelas a que já fizemos referência, garante que os números oficiais de mortos, estão errados de certeza: "Porque ainda hoje há lá corpos enterrados. Os que lá ficaram. Porque foram casas inteiras levadas com as pessoas lá dentro, gente que depois ninguém reclamava", porque tinham vindo de longe para a cidade e "ficou lá a família toda". 441 Perante a imposição da Censura, três jornalistas do Diário de Lisboa decidiram ir investigar. Joaquim Letria, Pedro Alvim e Fernando Assis Pacheco foram contar os mortos. Diz Letria: Era a única forma. Andámos a correr as casas mortuárias, as morgues, a contar. E chegámos perto dos 700. 442 É desta contagem literal feita naqueles espaços que aparece a referência a 700 mortos, número máximo apresentado para as vítimas mortais das inundações de 1967. Fica o testemunho daqueles jornalistas que andaram a contar os mortos. Falta a identificação dos seus nomes, o que nas circunstâncias em que a contagem foi feita, não teria sido possível fazer. Até que os investigadores voltem aos arquivos das casas mortuárias e das morgues, não é possível determinar, com exactidão, o número de pessoas que perderam a vida naquele mês de Novembro de 1967. A partir de 25 de Dezembro, o tema deixava de ser referenciado na primeira página, que era ocupada exclusivamente com a temática relacionada com o Natal. Tal aconteceu com o Diário de Notícias e com os outros jornais. Da surpresa e do choque iniciais passava-se ao tempo da normalidade e da reconstrução. As notícias sobre as inundações foram transferidas para as páginas interiores e tornaram-se cada vez mais breves. Para o Diário de Notícias, o dia 15 de Janeiro (o dia a seguir à publicação do total obtido na subcrição pública) marcava o fim do destaque às notícias sobre as cheias. A partir de então, não haveria mais informações sobre aqueles acontecimentos dramáticos. No que se refere à televisão, houve referência às cheias durante pouco tempo (...), mais ou menos uma semana. 443 Notava-se a preocupação em esconder a dimensão da tragédia. As imagens dos mortos não apareciam nesse meio de comunicação.

441

Sábado, «Ainda há lá corpos enterrados», Maria Henrique Espada, pp.44 a 50, 16.09.2017. http://www.sabado.pt/portugal/detalhe/cheias-de-1967-a-tragedia-esquecida-que-matou-centenas. 442 Sábado, «Ainda há lá corpos enterrados», Maria Henrique Espada, pp.44 a 50, 16.09.2017, http://www.sabado.pt/portugal/detalhe/cheias-de-1967-a-tragedia-esquecida-que-matou-centenas 443 Elisabete Aguardela, Biblioteca Municipal de Algés, 9 de Outubro de 2015

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Agências Noticiosas As agências noticiosas como a Associated Press (AP) e a United Press International (UPI) foram também pressionadas pela Censura no que respeita às notícias difundidas. Isaac Flores, correspondente da AP em Lisboa, foi chamado ao Ministério dos Negócios Estrangeiros por críticas tecidas à actuação da Censura no que se refere à realidade dramática dos acontecimentos. 444 Diz Irene Pimentel , que Isaac Flores foi, em 1967, alvo da vigilância do informador «Visconde», da PIDE, que o chamou, aliás, à sua sede, devido às críticas que tinha feito à censura sobre as notícias das catastróficas inundações e à forma como as autoridades portuguesas tentavam diminuir a tragédia.445 Igualmente, Edouard Khavessian, correspondente da UPI, foi interrogado pela PIDE na sequência da divulgação dos protestos dos estudantes contra a ineficácia da actuação das autoridades no auxílio às populações. Por considerar as informações daquele correspondente como difamatórias para a reputação de Portugal, a PIDE ameaçou-o de expulsão, caso não revelasse o nome da sua fonte. Só a intervenção do Ministério dos Negócios Estrangeiros o conseguiu evitar. 446 Também, a imprensa estrangeira que deu informações sobre as inundações de Novembro, com referência a questões sensíveis como a pobreza em que viviam as populações atingidas, a falta de meios de socorro imediato ou a intervenção dos estudantes, mereceu reparos das autoridades portuguesas, acusando-a da divulgação de notícias tendenciosas. 447 O regime tentava não só limitar o acesso da população portuguesa à cruel realidade dos acontecimentos, como igualmente evitar a transmissão para o exterior de notícias que pudessem prejudicar a imagem do regime e do país.

Rádio Portugal Livre Não temos quaisquer dados sobre o modo como as várias estações da Rádio a operar em Portugal noticiaram a tragédia. A única a que tivemos acesso, através de um boletim interno da Policia, foi a respeitante às emissões de dia 28 de Novembro da Rádio Portugal Livre, a operar clandestinamente a partir de Bucareste. 448 Dizia:

444

MADEIRA J.; PIMENTEL I. F.; FARINHA L., Vítimas de Salazar. Estado Novo e violência política, Lisboa, Esfera dos Livros, 2007, pp. 48 e 49 445 PIMENTEL, Irene Flunser, História da PIDE, Temas e Debates, 2007, p. 93. 446 MADEIRA J.; PIMENTEL I. F.; FARINHA L., Vítimas de Salazar. Estado Novo e violência política, Lisboa, Esfera dos Livros, 2007, pp.48 e 49. 447 MADEIRA J.; PIMENTEL I. F.; FARINHA L., Vítimas de Salazar. Estado Novo e violência política, Lisboa, Esfera dos Livros, 2007, pp.48 e 49. 448 Boletim de Informação do Comando-Geral da Polícia de Segurança Pública (Confidencial), Ministério do Interior.

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O Governo Salazarista gaba-se de ter montado no País um sistema de controlo policial que atinge o nível mais aperfeiçoado do mundo. Gaba-se das brigadas móveis da P.S.P. que criou, prontas a actuar em poucos minutos contra a população. (…) Todo este monstruoso sistema de controlo e vigilância está sempre a postos para intervir contra a população. Mas na noite de sábado para domingo, as autoridades salazaristas apesar de as águas irem subindo de volume, apesar de ao fim de várias horas se poder prever que a chuva iria provocar grandes inundações, apesar de terem começado a chegar os primeiros pedidos de socorro, em vez de advertirem a população, em vez de darem o alarme para as zonas que poderiam ser atingidas, deixaram que a inundação subisse e que as águas arrastassem as casas onde dormiam as pessoas, ignorando absolutamente o que se passava. Pela primeira vez, temos um registo com a informação de que as populações poderiam ter sido avisadas com antecedência da catástrofe e que tal informação poderia tê-las posto de sobreaviso para se protegerem das grandes chuvas que se aproximavam. Teriam os serviços meteorológicos da época a informação para prever o que acabaria por acontecer? Essa informação, a existir, teria sido comunicada às autoridades? Se tivesse havido uma informação à população no final da tarde de dia 25, poder-se-ia ter evitado o número tão elevado de mortos? Não temos resposta para nenhuma destas questões que, no entanto, se revestem da maior pertinência. Continuava a Rádio Portugal Livre449: Apelamos para que de todo o País se desenvolva um amplo movimento de solidariedade às vítimas das inundações. Apelamos para que se criem por todo o País comissões de solidariedade e apoio que desenvolvam não só a recolha de auxílios, como um movimento a forçar as autoridades a tomar as medidas necessárias. Trabalhadores, jovens, estudantes, colocai-vos à frente do movimento de solidariedade às vítimas deste desastre. Formai brigadas de solidariedade. Defendei os interesses da população que o Governo Salazarista deixará ao abandono se não for obrigado a socorrê-las, por um forte movimento nacional. Dirigi-vos às zonas sinistradas e levai a vossa solidariedade e o vosso esclarecimento às pessoas atingidas (sublinhados no original).

449

Boletim de Informação do Comando-Geral da Polícia de Segurança Pública (Confidencial), Ministério do Interior.

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15. Solidariedade Internacional e ecos na Imprensa estrangeira O drama das inundações de Novembro na Grande Lisboa impressionou também a Europa e outros continentes. Imagens dos bairros pobres da Grande Lisboa transformados em cemitérios com centenas de corpos de cor ocre, perfilados e imóveis no chão dos quartéis de bombeiros e noutros locais, corriam mundo. Eram as imagens dos fotógrafos das agências estrangeiras e as de Eduardo Gageiro que, impedidas de serem publicadas nos jornais portugueses, apareciam nas publicações estrangeiras. Ao Presidente do Conselho e ao Ministro dos Negócios Estrangeiros, Franco Nogueira, chegaram vários telegramas e outras manifestações de solidariedade da Europa e do mundo, da qual destacamos a do Papa Paulo VI que enviou a bênção apostólica às famílias das vítimas e uma quantia em dinheiro para as populações atingidas; a da Rainha Isabel II, do Reino Unido; a do General de Gaulle (enviou um donativo pessoal de 30 mil francos); a do Príncipe Rainier do Mónaco (enviou um donativo de 20 mil francos); a de Aldo Moro (Primeiro Ministro italiano); a do Generalíssimo Franco, de Espanha; a do Rei Balduíno da Bélgica; e a de U Thant (Secretário- Geral das Nações Unidas). Muitos governos estrangeiros exprimirem as suas condolências e alguns enviaram doações para as vítimas, como foi o caso da República Federal Alemã que doou 400 contos para a ajuda às populações sinistradas, enquanto de França, Suíça e Espanha, chegou sobretudo apoio médico-sanitário, com a oferta de vacinas contra a febre tifóide. 450 Só a Direcção Geral de Saúde de Espanha doou 200 mil doses de vacinas contra o tifo, podendo atingir as 500 mil, se tal se viesse a revelar necessário.451 Na cidade de Paris452, foi aberto um crédito de 50.000 francos para ajudar as populações atingidas pela inundações e de várias instituições internacionais chegaram, por via aérea, transportados gratuitamente em avões da TAP, toneladas de ofertas de roupas, agasalhos e medicamentos. Na imprensa e em revistas estrangeiras houve ecos da tragédia social e revelavam-se os números dramáticos das inundações em Portugal. No Reino Unido, em França, em Espanha e no Brasil, vários jornais e revistas deram conta da situação dramática vivida pelas populações da região de Lisboa. Foi o caso da Life Magazine nos EUA, do jornal madrileno Madrid e dos jornais brasileiros O Globo, A Última Hora, A Notícia e a Tribuna da Imprensa, que também publicaram fotografias e exprimiam a sua solidariedade para com o povo português. Em França, o Paris Match e o Le Monde denunciaram a censura exercida pelo Governo português sobre os jornais, sobretudo no que dizia respeito ao número de mortos. O Diário de Notícias deu conta da 450

O Século, 29 de Novembro de 1967 O Século, 1 de Dezembro de 1967, p.6 O Século, 29 de Novembro de 1967 O Século, 1 de Dezembro de 1967, p.6. 452 Bulletin municipal officiel de la Ville de Paris, LXXXVII annee , nº 18, 14 decembre 1967, p.704. 451

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notícia daquele jornal francês e definiu-a como «notícia tendenciosa e tendo sido forjada para fins tendenciosos». 453 A Censura do regime atenta às informações da imprensa estrangeira sobre a catástrofe que se abatera sobre o país e não podendo impedi-la, tentou manchar a sua reputação, acusando-a de publicar «notícias tendenciosas», sempre que elas faziam referência à dimensão social da tragédia e à insuficiente resposta do regime. 454 Também a BBC, as rádios e televisões francesa e espanholas transmitiram notícias e lançaram apelos à solidariedade. Os portugueses na «diáspora» também deram mostras da sua solidariedade, quer nas colónias africanas, quer nas comunidades espalhadas pelo mundo. De Angola e Moçambique chegaram muitos donativos em dinheiro, medicamentos, géneros, roupa e calçado.

455

Em Moçambique, houve festivais desportivos (hóquei em patins, futebol) cujas receitas

foram recolhidas para serem enviadas para as vítimas das inundações e alguns criadores de gado ofereceram cem vitelos que, depois de abatidos, congelados e transportados, se destinavam a ser vendidos em leilão, revertendo o produto da venda para as populações sinistradas. Angola foi também solidária: uma subscrição pública rendeu mais de 204 contos; a Cruz Vermelha, a Mocidade Portuguesa, os Escuteiros e uma rádio local organizaram campanhas de donativos em dinheiro e roupas; também se realizaram vários espectáculos com receitas a favor das vítimas. As comunidades de emigrantes portugueses no mundo manifestaram igualmente a sua solidariedade456: grupos de emigrantes portugueses em França deram uma hora de trabalho pelas vítimas das inundações; instituições francesas fizeram doações como a Casa de Portugal em Paris, o Grupo de Amizade França-Portugal e a Associação dos Trabalhadores Portugueses da França; uma sociedade cultural luso-americana de Nova Iorque, a Sociedade Cultural Estados Unidos-Portugal, criou um fundo especial de auxílio; a Federação das Associações Portuguesas e Luso-Brasileiras e o Conselho Superior da Colónia Portuguesa do Brasil reuniram-se para promoverem uma campanha de ajuda às vítimas; a Colónia portuguesa de Massachusetts enviou um cheque de 500 dólares para ser entregue à Cruz Vermelha Portuguesa.

453

Diário de Notícias, 5 de Dezembro de 1967, p.9. COSTA, Francisco da Silva (colab.) in Inundação na região de Lisboa (1967). Um olhar sobre o impacto político e social in Riegos, Vulnerabilidades y resilencia socioambiental para enfrentar los cambios globales, Santiago (Chile), 03 a 05 de Diciembre 2014, p. 129. 455 O Século, 5 de Dezembro de 1967, p.10. 456 O Século, 1 de Dezembro de 1967 / O Século, 29 de Novembro de 1967 454

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16. A Resiliência das populações e das instituições atingidas pelas cheias 16.1. Resiliência e solidariedade das populações A capacidade das pessoas para superarem as situações mais dramáticas que vivenciam é imensa. Do medo e do pânico, passam rapidamente à acção, lutando por salvar as suas vidas e a dos seus, ajudando amigos e vizinhos e salvaguardando os bens que não se perderam para sempre. Os testemunhos de Helena Abreu e Elisabete Aguardela recordam essa extraordinária resistência dos seres humanos, essa capacidade de seguir em frente, não obstante as dificuldades com que se deparam. Helena Abreu: Espantava-me, e espantou-me noutras cheias que vivi em Algés, a capacidade que as pessoas têm de se atirar ao trabalho e reporem as coisas como eram antes da tragédia. Aos poucos, as montras foram repostas, as lojas foram abrindo, a piscina interior do Algés e Dafundo foi esvaziada da lama, limpa e reposta em funcionamento. O trânsito recomeçou a circular, as ruas passaram a ser transitáveis. Durante alguns meses, as lojas tinham às portas produtos apelidados “Salvados”, que vendiam muito baratos. (O dicionário diz que é “qualquer coisa que escapou de uma catástrofe”). Eu desconhecia a palavra e perguntava-me como é que ela teria aparecido, assim, de repente. E em breve, só o cheiro acre dos salvados, quando se passava por uma dessas lojas, nos fazia lembrar a tragédia.457 Elisabete Aguardela: Depois, a pouco a pouco, com muito trabalho e ajuda, as pessoas foram reconstruindo as suas vidas. Arregaçaram as mangas, como se diz, e reconstruíram a partir dos escombros. Foi duro! Foi duro! Mas é extraordinária a capacidade que temos para começar de novo. De ver sempre uma candeia dentro da própria desgraça, como diz a canção. 458 As pessoas tentavam salvar o que era possível. Transportavam para fora das habitações os haveres que tinham conseguido salvar (electrodomésticos, móveis, colchões, roupas, loiças, brinquedos, etc.) para os deixar a secar ao sol e ao ar e para os limpar. Os comerciantes também o faziam, levando, para os passeios da rua, as mercadorias molhadas do interior das suas lojas. Não só os que tinham sofrido directamente os efeitos do temporal metiam mãos à obra, mas também vizinhos e gente anónima solidária, que vinha de outros locais, sensibilizada pelas notícias da tragédia, para ajudar à reconstrução e ao regresso à normalidade. Nos concelhos atingidos pela catástrofe, gente anónima, descalça ou com botas de borracha, auxiliava as brigadas da Junta Autónoma da Estrada a desobstruir estradas e caminhos. Os tratores levantavam a lama e as pessoas, usando pás, atiravam-na para camionetas, que seguiam depois para longe. Toneladas de lama. Assim se limpavam as estradas, os passeios e a vida recomeçava para novos dias.

457 458

Helena Abreu, depoimento na Biblioteca Municipal de Algés, 15 de Setembro de 2016 Elisabete Aguardela, vídeo Histórias de Vida, Biblioteca Municipal de Algés.

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Contava o jornal Ribamar459 que também a Algés chegava gente de fora para ajudar, nomeadamente jovens que se dirigiam à Junta de Freguesia, disponíveis para qualquer ajuda que fosse necessário. Foi o caso de Uma senhora freira do convento do Bom Sucesso [que apareceu] com 20 alunas a prestar serviços na remoção de entulhos e recuperação de objectos. Laurentina Pereira460 recorda que, naquela localidade, as pessoas iam comprar coisas para oferecer a quem precisava. Levavam sacos com comida, utensílios de casa, roupa de vestir, cobertores e que entregavam diretamente nas casas de quem precisava, ou na igreja ou no mercado. Foi muita, a ajuda das pessoas. Ela própria recorda-se de ter ido à casa Felga na Rua Damião de Góis comprar roupa e agasalhos para os sinistrados. Em Alenquer, a solidariedade das gentes do concelho na ajuda à recuperação da catástrofe foi imensa. As pessoas vieram de todo o concelho, vieram para a vila, trabalhar, limpar. Os grandes lavradores aqui do concelho mandaram os seus empregados todos para a vila, trabalhar, limpar, ajudar… Depois os comerciantes juntaram-se e fizeram, já depois de passado este período, umas caravanas de visitas às sedes das freguesias, para agradecer publicamente, no local, essa coisa que tinha sido feita. Mas não há dúvida nenhuma que houve uma unidade muito grande de todo o concelho nessa altura.461 As imagens abaixo são reveladoras dessa determinação em continuar em frente, da generosidade de todos e da força imensa da vida sobre a morte e a desolação.

Algés. Artigos expostos ao sol e ao ar para secarem Fonte: O Século, 28 de Novembro de 1967, p. 7 459

Fonte: Malomil_Cheias de 1967_ 50 anos_Files

Ribamar, 3 de Dezembro de 1967, p. 6.

460

Testemunho de Laurentina Pereira, por Maria Sam Pedro Marques. Memória de Carlos Cordeiro in RAPOSO, Raquel; LOURENÇO, José Leitão; SANTOS, Alberto, A NOITE MAIS LONGA história e memória da cheia de 25-26 de Novembro de 1967, Alencultura editorial, Alenquer, 2017, pp. 219 a 222. 461

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16.2. Resiliência das instituições: o caso da Fundação Calouste Gulbenkian no restauro das obras em Lisboa e Oeiras Lisboa Na sequência dos graves prejuízos sofridos nas suas instalações em Lisboa e Oeiras, a Fundação Calouste Gulbenkian sentiu necessidade de tomar medidas para evitar que, naquelas duas localidades, uma catástrofe semelhante se voltasse a repetir no futuro. Dias depois das inundações, a Fundação convidou o Presidente da Câmara Municipal de Lisboa e os Ministros do Interior e das Obras Públicas a visitarem as obras da Sede e Museu, para se inteirarem dos estragos e definirem medidas a fim de evitar a repetição da situação. Essa visita aconteceu no dia 22 de Dezembro. Uma comitiva constituída pelos Ministros do Interior e das Obras Públicas, pelo Vice-Presidente da Câmara Municipal de Lisboa e por altos funcionários ministeriais e municipais deslocaram-se às instalações da Fundação. Esteve também presente um repórter que não foi convocado pela Fundação e que, no dia seguinte, fez a reportagem da visita. A comitiva foi recebida pelo Presidente Azeredo Perdigão, por outros dois membros do Conselho de Administração da Fundação e pelo seu Director do Serviço de Projectos e Obras. A ausência do Presidente do Município de Lisboa foi, desde logo, interpretada por Azeredo Perdigão como a falta de vontade do município para avançar com as necessárias obras de fundo. O Presidente da Fundação realçou o facto de as inundações das caves do edifício em construção da Sede-Museu e do edifício da Fundação, nº 56 da Avenida de Berna, terem contribuído para não tornar ainda mais dramática a situação da Praça de Espanha, completamente inundada. Ao receberem e reterem, nas suas caves, cerca de 10.000 metros cúbicos de água, evitaram que o nível da água naquele local subisse mais um metro e viesse a atingir o andar nobre da Embaixada de Espanha. Os dois ministros lamentaram os danos, agradeceram o subsídio de 50.000.000$00 que a Fundação tinha atribuído às vítimas das cheias e prometeram que, no caso de Oeiras, nos domínios do Palácio do Marquês de Pombal adquiridos pela FCG, iria ser feita uma avaliação dos prejuízos e que iriam ser melhoradas as redes de evacuação das águas. Relativamente à rede de esgotos de Lisboa, remeteram a responsabilidade para a Câmara Municipal de Lisboa, a quem competia proceder às medidas correctivas necessárias para melhorar o escoamento das águas naquela, como noutras zonas da cidade. A Câmara de Lisboa, através do engenheiro que enviou na comitiva, apresentou como solução ideal a construção de um grande colector, acrescentando que qualquer das hipóteses possíveis (ligação de Campo Grande a Xabregas ou a Sete Rios) seria excessivamente dispendiosa e demorada. 185


Aquela atitude preocupou naturalmente os representantes da Fundação Calouste Gulbenkian porque perceberam que a Câmara não tinha intenção de avançar com as medidas estruturais necessárias à resolução do problema. Depois daquele encontro, a Fundação voltou a convidar o Presidente da Câmara para uma visita, ao mesmo tempo que incentivou a edilidade a avançar com obras de fundo (remodelação do sistema de esgotos da zona), que se apresentavam urgentes, para que não houvesse uma repetição da tragédia de dias 25 e 26. A urgência da visita solicitada visava também a aceleração das obras que tinham ficado atrasadas com o temporal, a fim de que a Sede e o Museu pudessem vir a ser inaugurados, como estava previsto desde o início, em 1969, altura em que se iria comemorar o centenário do nascimento de Calouste Gulbenkian. Da Câmara Municipal de Lisboa nunca chegou uma resposta àquele convite.462 Apesar de todos os contactos estabelecidos, o Município de Lisboa esquivou-se a quaisquer medidas estruturais, optando antes por pequenos ajustamentos (abertura de um descarregador de superfície entre a Praça de Espanha e a Ribeira de Alcântara, correcção do perfil da Avenida de Berna, aumento do número de sarjetas e da sua superfície de escoamento), que foram desde lodo considerados insuficientes pelos especialistas consultados pela Fundação.463 Face à inactividade das autoridades competentes, a Fundação Calouste Gulbenkian tomou a iniciativa. Pediu à Hidroprojecto-Consultores de Hidráulica e Salubridade. S.A.R.L. um estudo sobre as obras necessárias para proteger a Sede e o Museu de futuras inundações ou outras catástrofes. Esse estudo apontava para a necessidade de obras estruturais, nomeadamente a construção de um colector de reforço na Avenida de Berna, obra da competência do Município. No caso de esta não avançar, aconselhava a Fundação a montar comportas nas rampas de acesso ao parque de estacionamento. A partir das conclusões desse estudo, a Fundação iniciou a aplicação das medidas propostas pelos especialistas, preocupando-se em conciliar a estética do edifício com a sua própria segurança. Delas, destacamos a instalação de uma potente estação de bombagem para lançar as águas para o exterior e a instalação de comportas de fácil manejo nas rampas de acesso ao parque automóvel que podiam ser accionadas eléctrica e manualmente em caso de cheia. 464

462

PERDIGÃO, José de Azeredo, IV Relatório do Presidente, 1 de Janeiro de 1966 - 31 de Dezembro de 1968, Cap. 7º, pp. 65 e 66, Fundação Calouste Gulbenkian. 463 PERDIGÃO, José de Azeredo, IV Relatório do Presidente, 1 de Janeiro de 1966 - 31 de Dezembro de 1968, p.59, Fundação Calouste Gulbenkian. 464 PERDIGÃO, José de Azeredo, IV Relatório do Presidente, 1 de Janeiro de 1966 - 31 de Dezembro de 1968,Cap. 7º, pp. 59,63, 64, 65 e 66, Fundação Calouste Gulbenkian.

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Oeiras Consternados com a destruição das obras artísticas e dos manuscritos guardados nas casas-fortes do Palácio, todos os que trabalhavam no Museu Gulbenkian do Palácio de Marquês de Pombal em Oeiras participaram activamente, procurando salvar o que fosse possível ou evitar o agravamento dos bens já danificados. Segundo Manuela Mota465, na época Conservadora do Museu Gulbenkian de Oeiras, antes de serem abertas as portas da cave onde se encontravam acumuladas as águas da enxurrada, foi feita, a conselho dos bombeiros, uma pequena abertura nas portas para que a água começasse a escoar lentamente. Só depois se abriram as portas da cave e se puderam vislumbrar, ainda com a água e a lama pelos joelhos, os imensos estragos provocados. Procurando salvar os objectos de arte danificados, conservadoras, engenheiros, arquitectos, empregados do Museu, pessoal do Serviço de Projectos e Obras, guardas e jardineiros, todos participaram nos trabalhos de limpeza durante todo o dia 26 (domingo), ao lado dos Bombeiros Voluntários de Oeiras e do Batalhão de Sapadores Bombeiros. Segundo a imprensa, participaram também serviços da Administração-Geral do Porto de Lisboa e da Lisnave. Num imenso esforço colectivo, realizaram as seguintes tarefas: escoamento das águas; remoção da lama; transporte das obras de arte para outros locais do Palácio; primeiros trabalhos de lavagem e limpeza das obras, fundamentais para evitar que a lama secasse e provocasse ainda mais estragos. 466 As operações de restauro tiveram início no dia 26, logo a seguir à grande chuvada. Foram, de imediato, estabelecidos contactos com técnicos especializados da Oficina e Restauro do Instituto Dr. José de Figueiredo (anexo ao Museu Nacional de Arte Antiga, em Lisboa) e da Biblioteca Nacional de Lisboa, para recolha de conselhos úteis para o restauro das obras de arte danificadas. A Fundação recebeu convites de museus e instituições estrangeiras, que se ofereceram para que o trabalho de restauro fosse feito nas suas próprias instalações, mas Azeredo Perdigão foi de opinião que o trabalho deveria ser feito integralmente em Portugal, habilitando a Fundação e o próprio país a obter as competências para restauros futuros:467 As consequências da tragédia de 25 de Novembro talvez levem à criação de um instituto de restauro, em Lisboa. Esse instituto teria trabalho largamente assegurado, se tivermos em conta a quantidade enorme de manuscritos guardados nos Arquivos Nacionais, nas Igrejas e em numerosas Bibliotecas privadas.

465

Manuela Mota, Colóquio Rios de Lama, Auditório da Câmara Municipal de Oeiras, 25 de Novembro 2017. PERDIGÃO, José de Azeredo, IV Relatório do Presidente, 1 de Janeiro de 1966 - 31 de Dezembro de 1968, Capítulo 7º, p. 56, Fundação Calouste Gulbenkian. 467 Acta nº 887, Reunião da Comissão Delegada do Conselho de Administração realizada em 14 de Dezembro de 1967. Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa. 466

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Nesse sentido, foi pedida a ajuda de museus britânicos, institutos italianos e da Universidade de Istambul, que foram chamados de urgência e que responderam prontamente ao pedido solicitado, enviando os seus técnicos para Lisboa para ajudar nas operações de restauro. A Biblioteca Nacional de Paris enviou para Lisboa três especialistas do seu Atelier de Restauro que tinha sido criado com a função de intervir em todas as situações em que as bibliotecas francesas enfrentassem problemas relacionados com a preservação e restauro das suas colecções por danos provocados por inundações, tendo posteriormente alargado a sua acção a bibliotecas estrangeiras que precisassem de ajudas do mesmo tipo. 468 Outras instituições internacionais prestaram também a sua ajuda, como o Museu Britânico (enviou três especialistas); Centro Internacional de Restauro de Roma; Instituto di Restauro del Libro, do Vaticano; e a Universidade de Istambul. Para além desta ajuda de técnicos estrangeiros, a Fundação enviou também Conservadores do Museu ao estrangeiro, para visitaram outras oficinas de restauro e tomarem conhecimento de técnicas mais adequadas à recuperação dos documentos danificados. 469 Foi então criada uma Oficina de Restauro de Manuscritos e Livros no Palácio Marquês de Pombal , onde, para além dos especialistas nacionais e estrangeiros, trabalharam como tarefeiros alunos da Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa. José de Azeredo Perdigão recorda esses trabalhos de restauro: (…) em dependências do Palácio Pombal, em Oeiras, foi instalada uma rudimentar oficina de limpeza de livros, manuscritos, estampas e encadernações, ao mesmo tempo que se entregavam ao Instituto Dr. José de Figueiredo, para lavagem e restauro, os quadros e tecidos que haviam sofrido a acção das águas e das lamas, e se confiavam, para o mesmo fim, ao Museu Monográfico de Conímbriga, os objectos de cerâmica carecidos de tratamento, e à oficina do professor Basin, de Istambul, a título experimental, uma encadernação de grande valor. 470 Mais tarde, essa oficina de restauro seria transferida para o edifício do Museu, em Lisboa. Ao todo, foram sujeitas a limpeza e restauro 70 peças. O trabalho realizado permitiu recuperar todas as obras (pinturas, tecidos, cerâmica, jóias, esculturas) danificadas que, segundo o Presidente da Fundação, ficaram bastante beneficiadas com o restauro.

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RAPPORT D´ACTIVITÉ, Bibliothèque nationale deFrance. Source gallica.bnf.fr / Bibliothèque nationale de France, 01 /01/1969, p. 86. 469 PERDIGÃO, José de Azeredo, IV Relatório do Presidente, 1 de Janeiro de 1966 - 31 de Dezembro de 1968, Capítulo 7º, p. 57, Fundação Calouste Gulbenkian. 470 PERDIGÃO, José de Azeredo, IV Relatório do Presidente, 1 de Janeiro de 1966 - 31 de Dezembro de 1968,Capítulo 7º, p. 57, Fundação Calouste Gulbenkian.

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Apenas duas pinturas ficaram irremediavelmente perdidas: A Ilha de San Pietro di Castello, de Guardi e A Virgem com o Menino e Doadores, uma tábua dos finais do séc. XV. Os manuscritos foram os materiais mais difíceis de serem recuperados, não obstante o apoio dos peritos franceses, ingleses e italianos que, muitas vezes, tinham opiniões discordantes sobre os métodos de restauro a aplicar.471 Segundo Manuela Mota472, o restauro dos livros durou quase 40 anos. As folhas foram limpas uma a uma e todos os livros foram restaurados, à excepção de um que ficou inutilizado. Os trabalhos de limpeza e restauro alargaram-se também aos jardins do Palácio, severamente danificados pelas águas e lama que o cobriram integralmente. Houve necessidade de as remover, recuperar a vegetação e restaurar os elementos decorativos, como vasos e estátuas de mármore. Para além dos trabalhos imediatos de limpeza dos espaços inundados do Palácio e das obras de restauro, a Fundação, à semelhança do que tinha acontecido em Lisboa, tentou envolver as autoridades centrais e concelhias na procura de soluções estruturais que evitassem a repetição da tragédia em situações futuras. No dia 22 de Dezembro, terminada a visita às instalações da Fundação na cidade de Lisboa, Azeredo Perdigão e outros membros da Fundação, acompanhados pelo Ministro das Obras Públicas, seguiram para Oeiras onde foram recebidos pelo Presidente e funcionários deste município. Visitaram os locais inundados e a foz da Ribeira das Lajes, uma das zonas mais atingidas pela tragédia. Nesta localidade, foram identificadas três causas principais para as inundações locais: 473 1ª Urbanização de antigas zonas agrícolas e pecuárias, impermeabilizando áreas anteriormente permeáveis; 2ª O estrangulamento do leito da Ribeira em vários lugares, nomeadamente resultante das obras da Estrada Marginal junto à praia de S. Amaro de Oeiras; 3ª Falta de limpeza e desassoreamento da Ribeira em anos sucessivos. Na sequência daquela visita, o Presidente da Fundação pediu à Câmara Municipal de Oeiras e à Direcção dos Serviços Hidráulicos para que cada uma daquelas entidades, na sua área respectiva, adoptasse medidas estruturais para resolver os problemas identificados e evitar situações idênticas no futuro. Voltaram a fazer-se estudos e planos mas, meses depois, Azeredo Perdigão lamentava-se: até ao presente, nada se fez para dar fácil escoamento às águas da Ribeira das Lajes para o oceano, o que forçou a Fundação a defender o edifício do Centro de Biologia, o único que podia ser defendido, com um 471

Acta nº 887, Reunião da Comissão Delegada do Conselho de Administração realizada em 14 de Dezembro de 1967. Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa. 472 Manuela Mota, Colóquio Rios de Lama, Auditório da Câmara Municipal de Oeiras, 25 de Novembro 2017 473 Acta nº 896, Reunião da Comissão Delegada do Conselho de Administração realizada em 3 de Janeiro de 1968. Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa.

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muro de 152 metros de comprimento e cuja crista excede o nível atingido pelas águas no decurso das inundações de Novembro de 1967.474 No Instituto Gulbenkian de Ciências (IGC), também duramente atingido com a morte de animais do Biotério e com a destruição de muitas amostras e material de investigação, houve também um enorme esforço de limpeza e de reconstrução. Recorda Aline Bettencourt que ali trabalhava como técnica de investigação científica na área da Bioquímica: Andámos meses a limpar e a tentar recuperar. Toda a gente comprou e calçou botas de borracha e pôs-se a limpar e a tentar salvar o que podia(…) Levámos meses e meses a recuperar o material danificado.

17. O recorrente problema das cheias na região de Oeiras. Como proteger o futuro? O concelho de Oeiras, que se estende ao longo da linha do Tejo na zona em que este desagua no Oceano Atlântico, é intensamente marcado por várias linhas de águas que o cruzam, nomeadamente o Rio Jamor e as ribeiras de Algés, de Barcarena, de Porto Salvo e da Lage, que nele correm de Norte para Sul, para desaguarem no Tejo. Num concelho com estas características, não é de estranhar que ocorram, ao longo dos anos, tantas inundações. Um breve resumo, a partir da imprensa, das intempéries que ocorreram ao longo de 20 anos, permite constatar a frequência com que estas se repetiam: 1963 - Nova inundação registou-se hoje na «Vila Conceição» em Algés; 475 1964 - As águas do Tejo invadiram algumas casas em Algés;476 1966 - Algés e Dafundo invadidas pelas águas que chegaram a atingir 3 metros de altura!; 1967 - Grandes inundações de Novembro com elevado número de mortos, feridos e desalojados; 1969 – A Ribeira de Barcarena deu que falar mais uma vez;477 1969 – Em Caxias, uma cheia que só teve paralelo com as inundações de há dois anos; 478

474

PERDIGÃO, José de Azeredo, IV Relatório do Presidente, 1 de Janeiro de 1966 - 31 de Dezembro de 1968, Capítulo 7º, p. 59, Fundação Calouste Gulbenkian. 475 Diário Popular, 6 de Junho de 1963 cit. In Cheias no Concelho de Oeiras, Recortes da Imprensa, 1962/2008, Vol. II, SSI 2009. 476 Diário Popular, 19 de Março de 1964 cit. In Cheias no Concelho de Oeiras, Recortes da Imprensa, 1962/2008, Vol. II, SSI 2009. 477 Notícias da Amadora, 15 de Novembro de 1969 in Cheias no Concelho de Oeiras 1962/2008, Recortes de Imprensa, Câmara Municipal de Oeiras, Vol. II, SSI, 2008. 478 O Comércio do Porto, 13 de Novembro de 1969 in Cheias no Concelho de Oeiras 1962/2008, Recortes de Imprensa, Câmara Municipal de Oeiras, Vol. II, SSI, 2008.

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1969 – Em Caxias, junto à ponte do Lagoal, um prédio inundado devido a imprudência na construção de uma represa;479 1970 – Inundação na Amadora;480 1970 - Um Bairro [Bairro da Pia à Porta, em Talaíde] em péssimas condições: depois de gravemente atingidos pelas cheias de 1967, continua sem quaisquer defesas;481 1982 – Mar cortou a Marginal. Quando chove, o Bairro da Figueirinha tem piscina;482 1983 – Registaram-se novas cheias nos dias 18, 19 e 20 de Novembro, que afectaram 13 municípios da Grande Lisboa, com uma dezena de mortos, mais de 2 mil desalojados e prejuízos materiais incalculáveis. 483

O problema das inundações parecia ser endémico no concelho de Oeiras. Em Outubro de 1968, quase um ano depois dos acontecimentos, uma delegação de representantes da população de Algés e do comércio daquela localidade deslocou-se à Câmara Municipal de Oeiras, para entregar ao seu Presidente uma exposição em que manifestava a sua preocupação perante o assoreamento da Ribeira de Algés, responsável pelas inundações que, todos os invernos, se produziam com as suas inevitáveis consequências económicas. O Presidente, apesar de compreender a situação, revelou que a resolução do problema não estava nas suas mãos, sendo da responsabilidade da Administração Geral do Porto de Lisboa e da Direcção Geral dos Serviços Hidráulicos. 484

A tragédia voltava a repetir-se, apesar de com outros contornos, em 1983, com novas inundações, a fazer lembrar as de 1967. O Diário de Lisboa

485

dava, na época, uma imagem de mais um momento dramático vivido pelas

populações nas zonas da Grande Lisboa, concelho de Oeiras incluído:

479

Diário Popular, 12 de Novembro de 1969 in Cheias no Concelho de Oeiras 1962/2008, Recortes de Imprensa, Câmara Municipal de Oeiras, Vol. II, SSI, 2008. 480 Diário de Notícias, 5 de Junho de 1970 cit. in Cheias no Concelho de Oeiras, Recortes de jornais 1962 /2008, Vol. II, 2009, f.951. 481 Diário de Lisboa, 17 de Janeiro de 1970 cit. In Cheias no Concelho de Oeiras, Recortes da Imprensa, 1962/2008, Vol. II, SSI 2009. 482 Correio da Manhã, 31 de Março de 1982, cit. in Cheias no Concelho de Oeiras, Recortes de jornais 1962 /2008, Vol. II, 2009, f.951. 483 Inundações no Concelho de Oeiras, Câmara Municipal de Oeiras. 484 Notícias da Amadora, 5 de Outubro de 1968, cit. in Cheias no Concelho de Oeiras, 1962/2008, Vol.II, 2009. 485 Diário de Lisboa, Sábado, 26 de Novembro de 1983, p,20 cit. in cit. in Cheias no Concelho de Oeiras, Recortes de jornais 1962 /2008, Vol. II, 2009, f.951.

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As cidades, vilas e aldeias à volta de Lisboa não resistiram aos cento e tal litros de água por metro quadrado caídos em doze horas, sob forma de chuva. Exactamente como já tinham entrado em ruptura com 3 anos de seca, como tinham transbordado em 67, como tinham secado há tantos outros anos. O drama estendeu-se por estradas, telefones e corredores ministeriais, com pavimentos levantados, pontes que ruíram, visitas ministeriais, manchetes de jornais, uma dezena de mortos e cinco milhares de pessoas que ficaram sem tecto (…). A extensão da tragédia, iniciada no dia 18, fica à vista com o rol de municípios chamados a responder às carências mais imediatas: Torres Vedras, Sobral de Monte Agraço. Arruda dos Vinhos, Sintra, Cascais, Oeiras, Vila Franca de Xira, Alenquer, Mafra e Setúbal.

O concelho de Oeiras voltou, então, a ser duramente atingido pelas águas e pela lama, e voltaram a repetir-se os trabalhos de remoção dos destroços, lavagem de passeios e dos arruamentos, limpeza das sargetas na Vila de Oeiras, em Paço de Arcos, em Caxias e Laveiras, na Cruz Quebrada, Dafundo e Algés. Os jardins do Palácio do Marquês de Pombal voltaram a ficar destruídos e as águas da ribeira destruíram um paredão que a Fundação tinha erguido na Quinta do Marquês para proteger o Laboratório de Biologia, na sequência das inundações de Novembro de 1967. Os prejuízos no Instituto Gulbenkian de Ciências ascenderam a cerca de 200 mil contos.486 No Dafundo, a rua por onde circulavam os eléctricos, junto ao Aquário Vasco da Gama, voltou a transformar-se num verdadeiro rio, por onde só se circulava de barco pneumático. O Aquário Vasco da Gama sofreu danos, bem como as habitações vizinhas, cujas caves voltaram a ficar inundadas de lama até ao tecto. O pânico voltou, uma vez mais, à zona baixa de Algés, que se transformou em pântano. O túnel de acesso à estação de caminho de ferro ficou literalmente tapado pelas águas

487

e as ruas Damião de

Góis, Luís de Camões, Manuel de Arriaga e a dos Bombeiros Voluntários encheram-se, de novo, de água e de lama, tal como tinha acontecido em 1967. Nas várias localidades do concelho, houve 120 desalojados e os prejuízos ultrapassaram os 200 mil contos. O Palácio Anjos, em Algés, voltava a ser o centro do atendimento aos desalojados. 488 Dizia o jornal O Diário que, no concelho de Oeiras, várias colectividades sofreram prejuízos cujo montante ascende a um total de 10.000 contos. Algumas dessas actividades foram de tal modo

486

A Capital, 21 de Novembro de 1983, cit. in cit. in Cheias no Concelho de Oeiras, Recortes de jornais 1962 /2008, Vol. II, 2009, f. 916. 487 Inundações no Concelho de Oeiras, Câmara Municipal de Oeiras. 488 Diário de Lisboa, 21 de Novembro de 1983, p,20 cit. in cit. in Cheias no Concelho de Oeiras, Recortes de jornais 1962 /2008, Vol. II, 2009, f. 912.

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atingidas que tiveram pura e simplesmente de fechar as suas instalações sociais e desportivas, como foi o caso do Clube Recreativo Atlético de Algés e a União Recreativa do Dafundo.489 O Arquitecto Ribeiro Telles, já em 1972, previra que a cheia seguinte provocaria prejuízos materiais muito mais gravosos que a de 1967, não obstante o número de mortos poder vir a ser bastante inferior, pela memória e experiência que as gentes guardariam da inundação de Novembro. Desanimado, concluíra, ao ver que se continuava sem vontade de mudar: Enterrados os mortos e atendidos bem ou mal, os vivos, pouco se aprendeu. Continuou-se a construir em vales, sujeitos a inundação. 490 É recorrente que, após a ocorrência das cheias de grande dimensão, as autoridades, quaisquer que elas sejam, reajam no sentido de restabelecer a normalidade (limpeza e algumas obras nas infra-estruturas danificadas) e depois legislem de modo a evitar a repetição de ocorrências semelhantes. É a resposta que o drama exige, mas depois deste momento de preocupação, segue-se uma época de apatia, adiando a aplicação das leis, sobretudo as que envolvem alterações de maior complexidade nas infraestruturas. Foi o que aconteceu depois de Novembro de 1967. Segundo José Ventura,

491

tentou resolver-se o

imediato e também se legislou. O Decreto-Lei nº 368/71, de 5 de Novembro, entre outras medidas, produziu alterações no regime jurídico dos terrenos inseridos em terrenos públicos, definiu os conceitos de leito, margem e zonas adjacentes e disciplinou a ocupação dos leitos de cheia. Também os terrenos privados situados nos lugares críticos passaram a ter restrições de utilidade pública, tornando-se obrigatório o licenciamento dos mesmos e das obras neles inseridas, bem como contratos de urbanização na Direcção Geral dos Serviços Hidráulicos (DGRAH). Mas, como prova a cheia de 1983, estas medidas não foram suficientes. Em 1987, um grupo de trabalho ligado a vários ministérios estudou o problema das cheias no concelho de Oeiras e, particularmente, o caso da Ribeira da Laje. Do trabalho realizado, propôs-se um conjunto de medidas para evitar situações semelhantes no futuro. Entre as medidas preventivas, identificavam medidas institucionais, conservativas e correctivas. Ei-las:492 Medidas Institucionais (Administração Central e Municípios) com vista impedir a futura ocupação urbana das áreas de risco de cheias ou, nos casos em que esta já existe, reduzir os seus danos. Nelas se 489

O Diário, 6 de Dezembro de 1983, p,20 cit. in cit. in Cheias no Concelho de Oeiras, Recortes de jornais 1962 /2008, Vol. II, 2009, f. 973. 490 Gonçalo Ribeiro Telles, Há só uma Terra, TV Rural, 1972. https://www.youtube.com/watch?v=sH0pI3Om1uk. 491 VENTURA, José Eduardo, Áreas urbanas, uso do solo e protecção ambiental, Centro de Estudos de Geografia e Planeamento Regional/FCSH/UNL, VI Congresso de Geografia Portuguesa, Lisboa, 17 a 20 Outubro de 2007. 492 GOMES (João Reis), SARAIVA (Maria da Graça), CABRAL (Luís), BORGES (Orlando), AZEVEDO (Isabel Gomes), A Catástrofe das Cheias. O Caso da Ribeira da Laje, 1987.

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integram planos de ocupação do solo, normas e regulamentos, seguros e sistemas de aviso e emergência; Medidas conservativas: definição de uma estratégia para reduzir o impacto das cheias que deverá passar por uma definição adequada dos terrenos de modo a proteger as zonas de risco (escolha das culturas agrícolas adequadas) e as zonas de infiltração máxima (zonas de cabeceiras das linhas de água e as zonas das linhas de água); Medidas correctivas: da regularização dos leitos dos rios e das ribeiras, com barragens, rectificação de leitos, e redução da erosão. Os seus proponentes acrescentavam ainda a necessidade de se proceder à limpeza sistemática das ribeiras obstruídas por uma imensa variedade de detritos, nomeadamente por restos de construções urbanas e de vegetação e que têm como consequência a saída do leito das ribeiras, sempre que se verifica uma situação de chuva fora de comum. A responsabilidade desta limpeza cabe, segundo aqueles investigadores, não só às autoridades, mas também aos cidadãos que usam a ribeira como reservatórios de lixo. Não obstante a legislação criada e a aplicação de algumas medidas, José Eduardo Ventura 493 alertava, em 2007, para os perigos de novas cheias, nomeadamente para uma grande cheia prevista pela OCDE. Segundo aquela instituição, Lisboa é uma das cidades que poderá vir a sofrer «(…) a ocorrência de uma cheia com um período de retorno de 100 anos (cheia centenária) no presente e no futuro. Na situação actual seriam afectadas 40.000 pessoas e em 2070, face à evolução prevista, este número ascenderia a 90.000 pessoas». Em 2010, Margarida Novo,494 jurista que liderava a Liga dos Amigos do Jamor, criticava a construção de um campo de golfe no Jamor, por ter provocado uma perigosa movimentação de terras, alertando para o facto de tal situação poder vir a agravar o risco de cheias naquele local. Aquela jurista dizia, então, que se realmente a ribeira sair do seu leito, [virá] toda por aí abaixo arrastando com ela pedras, lama, água e vai inundar a Cruz Quebrada, em toda a zona mais baixa junto ao rio. Comparando com as cheias de 1967, a jurista concluía que [será] seguramente muitíssimo pior do que aconteceu.

Em 2012, as cheias de 1967 foram também estudadas pelo Projecto Disaster. A partir de 16 jornais portugueses, os investigadores daquele projecto, coordenados por José Luís Zêzere, do IGOT (Instituto

493

VENTURA, José Eduardo, Áreas urbanas, uso do solo e protecção ambiental, Centro de Estudos de Geografia e Planeamento Regional/FCSH/UNL, VI Congresso de Geografia Portuguesa, Lisboa, 17 a 20 Outubro de 2007. 494 Destak, 23-02-2010.

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de Geografia e Ordenamento do Território da Universidade de Lisboa), identificaram e catalogaram todas as inundações e deslizamentos de terras ocorridas desde 1865. Registaram 1.903 casos com vítimas mortais, sendo que 1.622 foram cheias (provocaram 1.071 mortos e 40.283 desalojados) e 281 deslizamentos de terras (239 mortos e 1.561 desalojados). Do trabalho realizado, foi criada uma base de dados assinalando os perfis de risco para cada concelho do país, identificando as regiões de Sacavém, Loures, Odivelas, Vila Franca de Xira e Oeiras como as de maior risco de cheias no país.495 Resta-nos a esperança que aquela base de dados venha a ser útil na prevenção de futuras situações de catástrofe no país e, particularmente, no concelho de Oeiras.

Conclusão Sabendo que deste trabalho resultou um dos primeiros livros que se escreveu sobre as inundações de Novembro de 1967496, esperamos que não tenha defraudado as expectativas de quem o leu e que tenha contribuído para retirar do esquecimento um tema que, pela sua importância e dimensão trágica, deveria fazer parte da nossa memória colectiva. Relativamente à pesquisa realizada, retirámos seis conclusões que consideramos da maior importância relativamente ao tema estudado e que apresentamos de forma breve.

1. A dimensão da tragédia Provavelmente, nunca saberemos a verdadeira dimensão da tragédia. O regime limitou o número de vítimas mortais a 462 e os jornalistas Joaquim Letria, Pedro Alvim e Fernando Assis Pacheco contaram 700. A partir da imprensa publicada na época (Diário de Notícias e O Século) e de pesquisas publicadas em 2017, pelo jornalista José Pedro Castanheira497 e por investigadores de Alenquer,498 este trabalho fez o

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Diário de Notícias, 21 Novembro de 2012 in AULP EX UNITATE VIS. No dia 25 de Novembro de 2017, no mesmo dia da apresentação desta obra, foi apresentada outra sobre a dimensão da tragédia em Alenquer de RAPOSO, Raquel; LOURENÇO, José Leitão; SANTOS, Alberto, A NOITE MAIS LONGA história e memória da cheia de 25-26 de Novembro de 1967, Alencultura editorial, Alenquer, 2017. 497 Revista Expresso, «Aos que morreram nas Cheias», reportagem de José Pedro Castanheira, edição 2351, 18/Novembro/2017, pp.34 a 42. 498 RAPOSO, Raquel; LOURENÇO, José Leitão; SANTOS, Alberto, A NOITE MAIS LONGA história e memória da cheia de 25-26 de Novembro de 1967, Alencultura editorial, Alenquer, 2017. 496

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levantamento de todas as vítimas mortais ocorridas nos vários concelhos. Foram registados 576 mortos, com identificação de 462 deles (80,2%). Os restantes permanecem por identificar. As vítimas estão assim distribuídas pelos vários concelhos: Vila Franca de Xira (194); Odivelas (117); Loures (79); Oeiras (66); Sintra (39), Alenquer (49); Lisboa (4); outros lugares (28). Regista-se também um grande número de crianças até 11 anos entre as vítimas (116, para cima de 20%), e o facto de a morte ter atingido muitas famílias, principalmente em Quintas, como foi o caso da família de Luísa Fajardo (25 vítimas mortais) e das famílias Pereira e Vicente, que perderam, cada uma delas, mais de 20 dos seus membros. Mais à frente, nos Anexos, serão apresentados quadros com o número de vítimas mortais por concelho e tecidas novas considerações sobre o tema. Fica a certeza de que, de momento, qualquer lista que se apresente sobre o número de mortos nas cheias de Novembro de 1967 será sempre limitada e ainda longe da verdadeira que, por dificuldades várias, será muito difícil de obter.

2. A solidariedade das gentes É a conclusão que se retira de todas as catástrofes, a imensa capacidade dos Portugueses em prestar apoio, em ser solidário. Não diremos, como foi dito pelo regime, que a Nação se uniu e una foi prestar apoio às populações. A Nação estava profundamente dividida e foi assim que foi prestar ajuda. Basta ver as interpretações mais ou menos maniqueístas que se fizeram dos acontecimentos para demonstrar como os portugueses estavam divididos e como encaravam, de forma muito diferente, a realidade. Mas estavam lá todos, apesar dos outros que também lá estavam. Os bombeiros, os estudantes, os militares, as organizações católicas, a Mocidade Portuguesa, a Legião Portuguesa, o Movimento Nacional Feminino.

3. As diferentes leituras da tragédia: Na época, o drama das grandes cheias de 1967 suscitou diversas leituras. A leitura oficial do mesmo atribuía a culpa do fenómeno às causas naturais que se tinham imposto aos homens, provocando o sofrimento das populações. Houve, contudo, leituras críticas como a da revista Flama que realçava a desigualdade social como um factor que estaria na base da desigual consequência das cheias nos vários bairros da região de Lisboa; o Comércio do Funchal que atribuía a dimensão da tragédia às condições de vida das populações, marcadas por uma grande miséria; O Solidariedade Estudantil que apontava condições sociais, 196


económicas e administrativas para explicar o que tinha acontecido; o Caderno de Reflexão da JUC que apontava dois tipos de causas fundamentais que teriam contribuído para aumentar a carga dramática daquelas inundações: «causas económicas e demográficas» e «deficiências de ordem educacional». A estas explicações se seguiram outras. Numa reflexão posterior, foram apontados dois tipos de factores para explicar o fenómeno : 1) ambientais, relacionados com a gestão do território e urbanização do mesmo; 2) sociais, ligados às condições de miséria em que viviam as populações dos bairros onde tinha havido maior número de mortos, que não coincidia com aqueles onde a pluviosidade tinha sido maior. 4. A resposta do regime. Da desorientação inicial à actuação das instituições governamentais e municipais. Primeiros dias: Surpreendido pela violência das águas e da lama e pelo número de mortos que iam surgindo nos vários concelhos, o regime ficou desorientado e não foi capaz de intervir junto das populações, nas tarefas que eram urgentes: salvar pessoas; dar abrigo aos desalojados; alimentar os que tinham perdido tudo; remover os cadáveres da lama. Nos primeiros dias, na generalidade dos bairros afectados, as tarefas acima enumeradas não foram da iniciativa de qualquer entidade oficial, central ou municipal. Foram os bombeiros voluntários das localidades, cerca de 6.000 estudantes e gente anónima que estiveram no terreno a apoiar as populações. Apenas, sapadores de algumas unidades militares estiveram também a prestar ajuda. Nem o Governo nem os Municípios tinham serviços de emergência preparados para face a uma situação de catástrofe, nem foram criados, nos dias em que eram necessários, quaisquer centros de apoio nos bairros ou nas freguesias mais atingidas pelas chuvas. Nessa primeira e imediata ajuda às populações, o regime, na generalidade dos concelhos, falhou completamente. Quando, no ano em que este trabalho se apresenta, volta a ocorrer uma situação de tragédia no país, com os incêndios no Norte e Centro do país, é impossível não estabelecer paralelismos entre as expectativas defraudadas das populações que sofreram com ambos os acontecimentos. Em 2017, cinquenta anos depois, Portugal já não é o mesmo. É um país novo, democrático, dotado de um Serviço Nacional de Protecção Civil e de um Serviço Nacional de Saúde alargado a todos os cidadãos. No entanto, o país assistiu estupefacto e revoltado à morte de 109 pessoas em incêndios florestais, em poucos meses, em Pedrogão Grande (64), no Norte e Centro do país (45). Desta vez, não era a chuva, mas o fogo que trazia a morte. O país que, todos os anos, ardia nos meses de Verão, surpreendia-se, alarmado, com o número de vítimas mortais e emocionava-se ao ver as estradas com carros derretidos pelas chamas, de populações em fuga.

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Não é intenção justificar a falta de eficácia da autoridades de 67, apenas reflectir sobre o modo como as populações se encontram quase sempre indefesas perante as grandes catástrofes e que, por vezes, qualquer que seja o regime, é difícil encontrar as soluções ideais para lhes fazer frente.

Segunda fase: O regime acordou e tomou medidas, a partir dos seus Ministérios e das suas instituições corporativas e assistenciais com iniciativas que, não chegando a todos, contribuíram para minorar a situação das populações atingidas pela catástrofe. Os seus ministros multiplicaram-se em reuniões governamentais, comunicados à imprensa, reuniões das direcções das instituições oficiais, visitas dos ministros aos concelhos mais atingidos, discursos de promessas de auxílio. Depois dos primeiros dias, o regime pôs a funcionar a sua pesada máquina administrativa apoiado em várias instituições como o Instituto de Assistência à Família, o Ministério das Corporações e Previdência Social e os Ministérios da Saúde e Assistência, da Economia e das Obras Públicas. Uma das primeiras medidas foi a realização de inquéritos a todos os presidentes das Juntas de Freguesia das regiões sinistradas a fim de fazerem um balanço da catástrofe, identificarem as necessidades mais prementes e encontrarem soluções imediatas no que dizia respeito ao realojamento dos que tinham ficado sem habitação. Esses inquéritos foram, decerto, úteis e fizeram todo o sentido. Fica por saber, se o apoio solicitado chegou a todos. Foram também instalados, posteriormente, postos informativos em vários locais para apoio às populações, como resposta a diferentes situações como recolha de pedidos de auxílio, habilitação aos subsídios de assistência e de alojamento provisório e atribuição dos auxílios pedidos. Foram concedidos vários subsídios às populações sinistradas e, neles incluídos, a comerciantes e industriais também atingidos pelas cheias. Por último, há a assinalar a preocupação na resolução do problema da habitação, através da atribuição de subsídios de alojamento provisório e no apoio à construção de casas para os desalojados, em diferentes locais. Foi também decidido transferir todas as acções de apoio às populações para os Municípios pelo contacto privilegiado que tinham com as populações, o que se veio a revelar uma medida eficaz.

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Município de Oeiras É de destacar o papel activo da Câmara Municipal de Oeiras no apoio às populações atingidas pelas cheias, sobretudo na acção dinamizadora do seu Presidente, o arquitecto António Bernardo da Costa Cabral de Macedo. Do Plano de Acção Assistencial no Concelho de Oeiras, destacavam-se as Comissões de Assistência, uma por cada freguesia (Oeiras, Amadora, Barcarena, Carnaxide, Paço de Arcos), dirigidas por cada um dos seus Presidentes. Daquele plano de acção, constavam duas fases que foram aplicadas. A primeira foi o auxílio imediato às vítimas, a quem foi prestada assistência médica, alimentação, agasalhos e alojamento provisório. As famílias desalojadas foram recolhidas nas dependências de várias instituições: corporações de bombeiros das várias localidades; edifícios das Juntas de Freguesia; Palácio Anjos, em Algés; edifício do Instituto de Socorros a Náufragos, em Paço de Arcos; Associação «Junção do Bem»; igrejas e espaços paroquiais; e casas particulares. A segunda visava a resolução do problema habitacional e iria exigir a reconstrução e reabilitação das habitações dos munícipes que as tinham perdido. Incluía a reconstrução de barracas danificadas e o fabrico de barracas tipo casa, seguindo o modelo Câmara Municipal de Oeiras. A aplicação do plano acima referido deu, efectivamente, alojamento provisório aos desalojados do concelho, mas sabemos, pela imprensa local, que não resolveu o problema habitacional que continuou a marcar o concelho durante muitos mais anos.

5. A eficácia do Estado Novo na destruição das memórias das vítimas das cheias Ao cemitério de Vila Franca de Xira, chegaram os corpos das vítimas (…). No próprio local, fez-se o reconhecimento dos corpos. «Em cada um, colou-se um papel com o nome e um número.499

Se o regime falhou no apoio imediato às vítimas, não falhou na desvalorização do acontecimento e na ocultação dos factos. Nesse domínio, foi tremendamente eficaz. Ao fixar, através da Censura, um número oficial de mortos, ao impedir a divulgação dos nomes dos que tinham perdido a vida a partir do número artificialmente estipulado, ao limitar a publicação de fotografias depois das primeiras semanas, ao deixar cair no esquecimento o tema um mês e meio depois dos acontecimentos, o regime utilizou a estratégia adequada. O sucesso da mesma resultou não só do controlo da informação transmitida para o grande público, mas sobretudo do silêncio que envolveu o tema, para o deixar cair, definitivamente, no esquecimento. 499

O Século, 29 de Novembro de 1967

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Se as difíceis condições de vida das populações nos bairros pobres e em habitações precárias contribuíram para tornar ainda mais dramático a dimensão da tragédia, a Censura e o silêncio produziram uma segunda morte daquelas vítimas, na medida em que lhes recusaram o direito à memória. O esquecimento era-lhes imposto à partida. Nenhuma lista de vítimas mortais os incluía. Simplesmente, não tinham existência. Esta condenação ao esquecimento é tanto mais inacreditável quando é a nossa própria natureza humana que nos identifica com um nome. Somos porque temos um nome. Sem nome não existimos. Diz Eduardo Gageiro500, fotógrafo que andou nas zonas sinistradas a captar imagens da tragédia: Este «apagão» da memória dos portugueses só aconteceu porque essas pessoas não eram importantes. Eram pessoas pobres. Como não eram importantes, esqueceram-se delas. E, se o regime negou às vítimas o direito ao nome, negou-o também a todos nós, enquanto povo portador de uma história e de memórias. Negou à nossa memória colectiva a recordação de um acontecimento que, segundo estudiosos, foi tão somente a última das grandes catástrofes da nossa história. A sua inscrição na memória pública é escassa. Apesar de ser a maior catástrofe do último século, ela diz pouco ou nada à maior parte dos portugueses.501 E aqui, se impõe, de novo, um paralelismo com o que aconteceu em 2017, no que se fere às vítimas dos incêndios. Houve, a certa altura, dúvidas sobre o número de pessoas que tinha morrido nos incêndios. Tornou-se urgente para todos a publicação de listas com a identificação dos mortos, para que nenhum fosse esquecido. Era a dignidade de cada vítima mortal que o exigia, bem como a preservação da nossa memória colectiva. A propósito desta situação, o Professor Marcelo Rebelo de Sousa recordou-se das vítimas de Novembro de 1967:502 Em ditadura, lembro-me há 50 anos, era possível haver tragédias e nunca ninguém percebia bem qual eram os contornos das tragédias porque não havia um Ministério Público autónomo, juízes independentes e comunicação social livre. Em democracia há tudo isto”. Acrescentaria, mais tarde, que em democracia não há desaparecimento de vítimas. Actualmente, no novo Portugal democrático, seria impensável negar o direito ao nome às vítimas de uma catástrofe. A imprensa batia-se pela actualização das listas com a identificação dos mortos dos incêndios de Pedrógão Grande, do Norte e do Centro do país, como se a sua publicação lhes devolvesse a vida. Mas tinham razão nessa insistência. Não era a vida que lhes davam, mas a dignidade da forma como tinham morrido, com o direito inalienável a um nome, a uma memória.

500

Eduardo Gageiro, SIC Notícias, Cheias de 1967 – 50 anos, 25Novembro 2017 Reportagem de Maria Henrique Espada, Revista Sábado, 16 de Outubro de 2017, http://www.sabado.pt/portugal/detalhe/cheias-de-1967-a-tragedia-esquecida-que-matou-centenas 502 http://observador.pt/2017/07/27/porque-e-que-marcelo-fala-em-ditaduras-e-tragedias-por-causa-das-cheiasde-1967/. 501

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Hoje, 50 anos volvidos, investigadores e jornalistas procuram recuperar essas memórias. Vão às zonas sinistradas, procuram sobreviventes, recolhem testemunhos, consultam arquivos e publicações. E, não fossem os testemunhos dos que sobreviveram, tornar-se-ia quase impossível a reconstituição dos acontecimentos porque, como diz a historiadora Irene Pimentel503, A Censura perdura muito depois de ela ter deixado de funcionar porque nega os dados da tragédia para consulta. Não estão disponíveis porque não existem. A Censura apagou-os para a eternidade.

6. A dificuldade da mudança Parece impôr-se, como paradigma da resposta nacional às catástrofes (grandes cheias, grandes incêndios), uma resposta das autoridades/população que é marcada por 3 momentos: resposta à catástrofe com medidas urgentes para a sua resolução e no sentido da reposição da normalidade; criação de legislação com medidas de carácter estrutural para evitar a repetição de ocorrências semelhantes; apatia e inacção no tereno, adiando a aplicação da legislação, sobretudo as de maior complexidade a nível das infra-estruturas e persistência em comportamentos de risco. É esse paradigma da actuação do Estado e também das próprias populações que explica o elevado número de vezes que o país arde ou se inunda, ano após ano. Como se não houvesse estudos que tivessem já identificadas as causas, como se não se conhecessem já as medidas inadiáveis. Portugal foi sempre um país inovador ao nível da sua legislação. Legislou sempre à frente da Europa. Veja-se o que aconteceu no liberalismo e no período republicano. As constituições de 1822 e de 1911 são um exemplo de modernidade, em termos políticos e de direitos dos cidadãos, Falta, contudo, ao país, autoridades e população incluídas, a capacidade de aplicação, de execução das próprias leis. Falham as autoridades porque não têm forças para se imporem aos interesses instalados, para fiscalizarem a aplicação das leis. Falham os cidadãos com a sua apatia e os seus comportamentos de risco, não cumprindo as leis, impondo projectos de urbanização e de obras que contornam a legislação em vigor, poluindo as ribeiras, não limpando os terrenos de que são proprietários, insistindo nas queimadas e no uso de pirotecnia nos meses quentes do Verão. E o ciclo deste paradigma repete-se indefinidamente….

Assim aconteceu em Novembro de 1967: tentou resolver-se os problemas do imediato e repôr a normalidade; fizeram-se leis para alterar o regime jurídico dos terrenos inseridos em zonas públicas, foram definidos os conceitos de leito, margem e zonas adjacente e para se disciplinar a ocupação urbana dos leitos de cheia. Também se tornou obrigatório o licenciamento dos terrenos privados 503

Irene Pimentel, SIC Notícias, Cheias de 1967 – 50 anos, 25 Novembro 2017.

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situados nas zonas críticas e das obras neles inseridas. Em 1967, parecia saber-se o que fazer e como fazer, mas na realidade não se fez o que devia ter sido feito e, em 1983, os concelhos da Grande Lisboa voltavam a ficar inundados com as águas e a lama.

Que não se diga que não temos memória. Que estas memórias das cheias de 1967 façam o país proteger-se e progredir. Que a História tenha este sentido pragmático, o de ajudar os governantes e os povos a não repetir erros e a encontrar caminhos de futuro sustentáveis.

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Anexos

1. Memórias das cheias em Oeiras - A voz de quem viveu e foi testemunha da tragédia 2. Fotografias 3. Lista de mortos confirmados nas várias localidades

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1. Memórias das cheias no concelho de Oeiras - A voz de quem viveu e foi testemunha da tragédia de 1967 A Biblioteca Municipal de Algés, com o apoio da Câmara Municipal de Oeiras, iniciou o Projecto «Histórias de Vida» nos finais de 2014, com a coordenação de Ana Santos, com a intenção de dar voz a cidadãos que tivessem nascido antes de 1955, partilhando com a comunidade as suas histórias e as suas memórias, sobretudo as que tinham vivido no concelho de Oeiras. A dinâmica própria daquele projecto levou os seus participantes à pesquisa de temáticas relacionadas com as várias localidades do concelho, com destaque preferencial por Algés, espaço privilegiado das memórias de grande parte das pessoas envolvidas no mesmo. Assim, das memórias individuais, se passou às memórias colectivas e destas à história local. O tema das inundações de 25 e 26 de Novembro de 1967 sobressaiu de entre vários, pela sua relevância na época, por ainda se encontrar na memória de muitos e pelo facto de, no ano de 2017, se ir assinalar o seu 50º aniversário. Escolhido o tema, foi feita durante dois anos, a recolha e gravação, na Biblioteca Municipal de Algés, de testemunhos presenciais de munícipes que vivenciaram aquela tragédia, para além da realização de entrevistas a outros, feitas pelos vários participantes no projecto. É o testemunho integral de alguns desses munícipes que abaixo transcrevemos.

1. Adelino Coradinho 2. Alice Teixeira 3. Aline Bettencout 4. Ana Paula Torres 5. Elisabete Aguardela 6. Helena Abreu 7. João Augusto Carriço Sant ‘Ana 8. José António Leitão 9. Josefina Vieira 10. Laura Santos Augusto 11. Laurentina Pereira 12. Manuela Barreto 13. Padre Fernando da Silva Martins 14. Viriato Pereira 204


1. Testemunho de Adelino Coradinho, por Maria Sam Pedro Marques. Por volta das 21 horas, do dia 25 de Novembro de 1967, como habitualmente, o professor Adelino e o seu irmão foram de eléctrico, do Dafundo a Algés, dirigindo-se ao café Ribamar que encontraram quase vazio. Tomaram a bica e ficaram a observar a chuva que caía sem parar, até por volta das 23 horas. Viram o jardim de Algés e a zona dos eléctricos cheios de água, assim como a Avenida Marginal que ficou entupida com tanta água. Deixou de haver elétricos e o professor e o seu irmão saíram do café Ribamar, atravessaram a Avenida Marginal e saltaram a vedação de acesso à linha do comboio, deslocando-se por ela, de regresso a casa até ao Dafundo, tendo constatado que a água corria de Algés para a Cruz Quebrada. Chegados ao Dafundo, saltaram da linha férrea para a Avenida Marginal, dirigindo-se para casa que ficava num 1º andar no Bairro Clemente Vicente. As caves das casas e também os r/chs estavam inundadas. A zona onde se situa o Instituto Espanhol é uma zona de cheias que fica abaixo do nível do rio Tejo. Com a maré cheia, a água não escoa para lado nenhum e, por isso, os passeios deixaram de se ver tendo a Avenida Marginal ficado inundada. Os vizinhos do rés-do-chão do professor Adelino, nessa noite, dormiram na sua casa. Os bombeiros utilizaram bombas para escoar a água das caves e as pessoas também ajudaram na limpeza. No dia seguinte, por volta das oito e tal da manhã, ouviram um estrondo enorme e, através das notícias da rádio, souberam do rebentamento de um paiol. O professor Adelino, com o irmão e um amigo, dirigiram-se a Algés para tomarem conhecimento do que acontecera. Ainda hoje conserva a imagem de um automóvel acachapado por cima de um muro de dois metros de altura e de tudo estar enlameado na zona da praça de Touros. Soube também que na rua onde hoje está o Pingo Doce, morreu uma mulher afogada, numa cave. Na semana seguinte, o professor Adelino, a convite de amigos, visitou Venda do Pinheiro encontrando ainda a estrada com restos das cheias e a zona muito afetada, pois a estrada tinha lama seca e o carro em que seguiam tinha dificuldade em avançar. 205


2. Testemunho de Alice Teixeira, por Maria Sam Pedro Marques. Alice Teixeira, esposa do Sr. Teixeira que tinha uma loja (frutas secas, bombons, chás, cafés) na Rua dos Combatentes, em Algés, em frente ao Sport Algés e Dafundo, conta que, na casa onde morava, num 1º andar, não houve problemas com a água das cheias. Lembra-se, entretanto, que o marido chegou a casa à noite todo enlameado. Como ela comentasse o seu aspecto, ele respondeu-lhe: "As outras pessoas estão piores do que nós". (…) O filho mais velho de Alice Teixeira (Dr. Gilberto que trabalha no Hospital de Faro) tinha na altura 17 anos e juntamente com os amigos, de imediato, quiseram colaborar na limpeza das ruas.

3. Testemunho de Aline Bettencourt, por Ana Paula Torres. Quando começou a chover, eu estava em casa, era de noite, à hora de jantar. O que me fez impressão naquela chuva era a sua persistência. Era forte e durou muito tempo. Eu não tive logo a noção dos estragos que ela eventualmente poderia provocar e só quando cheguei ao IGC, ao Instituto Gulbenkian de Ciências, onde eu trabalhava, é que tive a noção do que realmente tinha acontecido.

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Pelos jardins do Palácio e pela Estação Agronómica passa uma ribeira, a de Barcarena. Com a chuva torrencial, a água da Ribeira extravasou as margens e inundou tudo. A Estação Agronómica tinha um muro do tempo do Marquês, muito forte, mas foi derrubado e a água irrompeu por ali acima e inundou o Palácio onde estava o espólio do Gulbenkian guardado na cave, porque o Museu na Av. De Berna, em Lisboa, ainda estava a ser construído. Havia muita pintura e muitos livros. Nós estávamos mais baixo, no IGC, onde estava o Biotério. Ali tínhamos cultura de animais, os frigoríficos para conservar as nossas amostras que tinham que estar a menos de 70 graus e todo o material próprio dos trabalhos de investigação. Estava aí muito do nosso trabalho. Eu era técnica de investigação científica no Instituto, na área da Bioquímica. Para mim, foi uma surpresa ver todos aqueles estragos que aquela chuvada provocou no Museu Gulbenkian e no nosso Instituto. A água invadiu tudo e arrastou a lama que tudo soterrou. Andámos meses a limpar e a tentar recuperar. Toda a gente comprou e calçou botas de borracha e pôs-se a limpar e a tentar salvar o que podia. O Instituto foi muito atingido. Além de terem morrido muitos animais (ratos, hamsters e murganhos), houve muito material de investigação que ficou inutilizado. Levámos meses e meses a recuperar o material danificado. A Gulbenkian decidiu então construir um dique no jardim do Palácio para o proteger e ao Instituto Gulbenkian de Ciência. Também me recordo do efeito das cheias de 1967 em Paço de Arcos. Passa por lá a Ribeira que vem de Porto Salvo, mas nessa data já estava encanada. Toda a Rua Nosso Senhor Jesus dos Navegantes tem a ribeira encanada mas, mesmo assim, quando chove muito há inundações, porque quando chove muito as marés também sobem, a Natureza tem estas coisas fantásticas, e com a chuva a cair e a com maré a subir, normalmente as zonas mais baixas ficam inundadas. Foi o caso da Rua Costa Pinto. Depois, houve as cheias dos anos 80. A Gulbenkian já tinha saído do Palácio, mas continuava no IGC. Quando todos pensávamos que estávamos protegidos no Instituto com a construção do dique, não foi nada disso que aconteceu. O dique não conseguiu suster as águas e voltámos a ter novas cheias.

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4. Testemunho de Ana Paula Torres Tinha acabado de fazer 14 anos. Vivia no Areeiro, em Lisboa, e não recordo as inundações na minha rua nem no meu bairro, porque morava numa zona mais elevada e segura da cidade. Contudo, de forma indirecta, senti também o medo daquelas águas e lamas que tudo envolviam, através do testemunho de amigos dos meus pais que passaram por um momento muito dramático que quase os lançou para a morte. O Américo e a Lili viviam na Encarnação. Ele era veterinário, a pessoa mais calma que encontrei em toda a minha vida. Falava tão baixinho que todos nos calávamos para o ouvir. Era um homem muito bondoso que nos transmitia a paz das pessoas sensatas e carinhosas. Ela era muito nervosa e dada a depressões, mas tinha uma gargalhada descontrolada e contagiante que animava os serões em que nos juntávamos todos. Tinham dois filhos, meus companheiros de brincadeiras, a Sofia, de 13 anos, que era muito certinha e o Rui, de 12, que era um esgrouviado sardento e de cabelo em pé que trocava comigo valentes pontapés e algumas bofetadas. Viviam na Encarnação, mas não recordo o local onde tudo aconteceu. Vinham no seu Volkswagen castanho, possivelmente a caminho de casa. Repentinamente, viram-se cercados pelas águas que entravam pelas fendas do carro de muitos anos e pelas janelas que não as conseguiam conter. Sentiramse baloiçar e encharcar. Ainda oiço os seus gritos aterrorizados. Na aflição, subiram, um a um, para o tejadilho do carro. Juntaram-se lá todos, nem sei como, porque o tecto do carocha é estreito e não é plano. Mas estavam bem agarrados uns aos outros e à vida que lhes fugia. A certa altura, o Américo retirou do bolso da camisa o salário do mês que tinha recebido naquele dia e guardou as notas numa mão, para que não fossem com as águas. Bruscamente, o rio que os cercava começou a correr mais violentamente e, numa chicotada brusca, lançou-se sobre o carro, projectando o Rui para fora daquela massa humana que se abraçava para viver. No mesmo instante, contava o Américo para nós, com a sua voz muito baixinha, «Larguei as notas e agarrei-o». 208


Ouvíamos aterrados. Reflexos que valem uma vida. O momento de uma vida. E o Rui a olhar para nós, apático e ainda em choque. As imagens dos quatro amigos em cima do tejadilho do velho carocha, da corrente a sacudir o carro, do Rui a ser projectado e do Américo a largar o salário para salvar o filho criaram um filme que continuei a ver durante muitas noites escuras. Foi a minha forma de viver, também eu, a tragédia de Novembro de 1967.

5. Testemunho de Elisabete Aguardela (transcrição do texto do vídeo Histórias de Vida de Ana Isabel Santos, gravado na Biblioteca Municipal de Algés)

Eram cerca das 5 ou das 6 horas da tarde de dia 25 de Novembro de 1967. Começava já a escurecer e eu preparava-me para voltar a casa, no Dafundo, com o meu filho acabado de nascer. Mandei chamar um táxi desde a Clínica de S. Miguel, em Alvalade, e quando chegámos ao Alto da Ajuda, o táxi começou a abrandar. Da janela pude aperceber-me do grande lençol de água que se espalhava por toda a via e que acabou por deixar o carro submerso até ao meio. Apanhei um enorme susto! Sentia-me ainda muito sensível. O táxi conseguiu continuar até ao Dafundo, onde moro ainda. Chovia imenso e também aqui havia imensa água na rua que os Bombeiros tentavam controlar. Ainda estava meia atordoada e não liguei por aí além. Pensei que só seria mais uma cheia como tantas outras. Toda a minha atenção estava centrada no bébé e eu não quis saber do resto. Passei a noite acordada com o barulho dos Bombeiros e da chuva que não parava. A água vinha para casa em garrafões e iluminávamo-nos com velas. Já de manhã, enquanto dava de mamar ao bébé, uma enorme explosão estilhaçou os vidros e fez-me debruçar sobre o meu filho para o proteger.

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Começava a ser evidente que estas não eram as cheias do costume e que qualquer coisa mais grave se estava a passar. O corredor cheio de lama, a aflição da minha mãe e a insistência para eu permanecer no quarto protegida da confusão, os estores descidos, a água fervida para uso doméstico, tudo isto era estranho, mas eu permanecia ainda meio adormecida, longe daquela realidade. Na segunda-feira, a minha mãe entra em casa coberta de lama e diz: «Vamos embora! Temos de fugir todos!». Da rua, chegava o som de um megafone de Bombeiros a alertar as pessoas para saírem de casa e ouviam-se gritos por todo o lado. Esperava-se uma segunda explosão no Paiol de Linda-a-Velha e desta vez as casas podiam ruir. Devíamos fugir para a praia. Petrificada, já nem consegui cuidar do meu bébé. Teve que ser a minha mãe a fazê-lo. Vesti-me sem nenhuma atenção e peguei num saco onde pus fraldas e roupas. Para trás ficaram as Obrigações de Tesouro da minha avó, espalhadas em cima da mesa onde o meu marido as tinha deixado. Quando cheguei à rua, vi tudo coberto de lama e filas que se dirigiam para a praia, muitos ainda em pijama com animais e gaiolas que tentavam salvar, num ambiente sombrio e cinzento que lembrava um filme de guerra. Então, entrei em pânico. O meu pai, de repente, com a barba ponteada de branco, mandou parar um carro que passava levando um ferido para o Hospital de S. José, em Lisboa, e pediu para me levarem dali para fora, com a criança recém-nascida. Mais à frente, haveria de entrar uma outra senhora com o filho. Cheguei finalmente a casa da minha sogra e sentia-me muito confusa e perdida. Fui recebida com aflição e espanto pelas madrinhas já velhotas do meu marido e ainda me consegui rir quando vi a minha figura de matrafona ao espelho. Não me admirava que olhassem estranhamente para mim na rua. Mas o trauma tinha-se instalado. O meu leite secou e as noites começaram a ser complicadas. Através da televisão, comecei a perceber o que estava a acontecer. Mas só quando voltei para casa é que tive a noção da extensão completa da tragédia que, claro, tinha sido filtrada pelas notícias de então: a morte da mãe de um colega do meu irmão que ficou soterrada numa cave; a sobrevivência da minha tia que, noutra cave inundada, aprendeu a flutuar; os muitos desalojados; os que perderam tudo; as lojas com tudo espalhado na rua a secar. Depois, a pouco a pouco, com muito trabalho e ajuda, as pessoas foram reconstruindo as suas vidas. Arregaçaram as mangas, como se diz, e reconstruiram a partir dos escombros. Foi duro! Foi duro! Mas é extraordinária a capacidade que temos para começar de novo. De ver sempre uma candeia dentro da própria desgraça, como diz a canção. 210


6. Testemunho de Helena Abreu Eu ainda morava com os meus pais na Rua Damião de Góis, em Algés, quando aconteceram as grandes cheias, na noite de 24 para 25 de Novembro de 1967. Algés era basicamente um tranquilo subúrbio e a Rua Damião de Gois tinha sido acabada há bem poucos anos. A minha família inaugurou o segundo andar direito do número 42. Em frente havia uma mercearia e a cervejaria do Sr. Gama. Na rua velha, como então chamávamos à Rua Major Afonso Palla, havia lojas antigas, entre as quais a drogaria do Sr. Manuel. Nas traseiras, havia um terreno grande que ia até ao casarão da antiga Quinta Matias cuja fachada coincidiria com o que é hoje a fachada do Pingo Doce. E, naquele terreiro havia uma fileira de casas de um só andar, as antigas casas dos trabalhadores da quinta. Numa delas morava a costureira mais conhecida de Algés, a Menina Maria, que tinha várias aprendizas a trabalhar com ela. O terreiro servia de parque de automóveis dos moradores. Lembro-me de ter chovido muito nessa tarde e de continuarem a cair grossas bátegas, sem cessar. Não sei quando nos demos conta de que a situação estava a tornar-se perigosa. Creio que foi tudo muito rápido. De repente, a Rua Damião de Góis era um rio e os carros iam arrastados na corrente para acabarem empilhados junto ao jardim ou à marginal. Não sei se havia iluminação pública a funcionar, creio que sim, caso contrário não veríamos os carros e a enxurrada. Muito depressa a água começou a subir nas caves e as pessoas tiveram de abandonar tudo e subir para os andares superiores. O Sr. Gama, da cervejaria, que vivia na cave do 42, resolveu ir salvar não sei que bens e por pouco não morreu. Foi o momento em que as janelas e as portas das traseiras rebentaram, pela pressão da água, e ele foi arrastado conseguindo sair por uma janela do lado da Damião de Góis. No terreiro das traseiras, os carros boiavam em círculos. Tocavam-se levemente mas não chocavam. Era como se estivessem a brincar. Não havia saída, por isso andavam vagando ao sabor das correntes. Entretanto as pessoas das casas de trás tiveram de subir para cima do telhado. Lembro-me de ver a Menina Maria e o filho, mais umas pessoas, a gritarem para que nós os fôssemos salvar. Era 211


desesperante, ninguém sabia muito bem o que fazer. Nisto surgiram uns bombeiros que avançavam com água pelo peito. Tive muito medo quando vi carros a boiarem em direcção a eles (entre os quais o do meu pai). Mas eles afastavam-nos com um simples empurrão e eles iam-se. Já não me lembro como é que os bombeiros conseguiram fazer descer as pessoas de cima do telhado. Fizeram uma fila indiana, os bombeiros a apoiar os mais fracos, até saírem pelo que hoje corresponderia à boca do túnel do Pingo Doce. Agora recordo que a um certo momento já não havia luz. Foi quando a rua, toda às escuras, começou a ser invadida por pessoas que vinham ao saque. Algumas montras já tinham rebentado, mas outras estavam inteiras. Atiravam qualquer coisa pesada para partir os vidros, entravam e saqueavam o que havia. Lembro-me da loja de móveis do Sr. Antunes (talvez a loja onde agora está a Padaria Portuguesa) ter sido saqueada assim. Víamos os móveis a serem levados. Aconteceu o mesmo à loja dos electrodomésticos, que ainda lá está. No nosso prédio, a água chegou a entrar no rés-do-chão alto. No dia seguinte, tudo era desolação, lama e mau cheiro. A minha mãe ofereceu-se para acolher a família Gama lá em casa. Inicialmente seria por dois ou três dias, acabaram por ficar cerca de vinte dias. Foi difícil para todos nós conviver com a família Gama, numa casa tão pequena. Eles iam limpando a cervejaria e a casa deles e nunca procuraram outro abrigo. O Sr. Gama, à noite, punha as notas da caixa a secar em frente ao radiador eléctrico. Na madrugada do dia 26, deu-se uma violenta explosão em Linda-a-Velha que partiu os vidros de muitos prédios, até mesmo em Algés. Foi um susto tremendo, era catástrofe sobre catástrofe. Depressa se soube que tinha sido o paiol de munições do quartel de Linda-a-Velha que um curto-circuito tinha feito rebentar. Nessa manhã soube-se também que tinha morrido um homem, polícia reformado, na cave do prédio do canto da Rua Luís de Camões. E corriam boatos de muito outras mortes. Havia, no ar, uma sensação de insegurança e medo. E as pessoas trabalhavam para se libertarem da lama e salvar os objectos que ainda tinham proveito. Creio que no dia a seguir à explosão, a minha mãe que pertencia à Conferência S. Vicente de Paula, foi, e eu fui com ela, para a Avenida da República onde ficava a sede da obra da Conferência S. Vicente de Paula masculina, para a ajudar. Estavam lá acolhidos muitos habitantes do Bairro das Santas Martas cujas barracas tinham deslizado pela ribanceira abaixo e que se encontravam sem tecto e sem coisa nenhuma. No Palácio Anjos estavam também muitas pessoas e no pavilhão desportivo do ISEF (hoje Faculdade da Motricidade Humana) estava outro grupo de refugiados das cheias. Antes de sairmos de casa começou a correr o boato de que iria haver outra explosão, muito maior do que a anterior, que teria efeitos devastadores. A palavra de ordem que as pessoas transmitiam umas às outras era “Para a praia, todos para a Praia de Algés”. E via-se a população toda em pânico a correr para a praia, a 212


atravessar a linha do comboio, com crianças, velhos… numa vozearia enorme. Um pânico completamente irracional tinha-se espalhado. O meu pai, que gostava de exibir a sua fleuma de alentejano, declarou que ficaria na varanda a ver. Levou para lá uma cadeira de lona e ficou toda a manhã a observar o pânico dos outros. A minha mãe achou que tinha mais que fazer e decidiu ir para a Avenida da República acudir aos pobres e fazer uma sopa para todos. E eu fui com ela. Lembro-me do espectáculo desolador das pessoas que lá dormiam, da pobreza, da distribuição de roupas, da tal sopa servida em malgas. Espantava-me, e espantou-me noutras cheias que vivi em Algés, a capacidade que as pessoas têm de se atirar ao trabalho e reporem as coisas como eram antes da tragédia. Aos poucos, as montras foram repostas, as lojas foram abrindo, a piscina interior do Algés e Dafundo foi esvaziada da lama, limpa e reposta em funcionamento. O trânsito recomeçou a circular, as ruas passaram a ser transitáveis. Durante alguns meses as lojas tinham às portas produtos apelidados “Salvados” que vendiam muito baratos. (O dicionário diz que é “qualquer coisa que escapou de uma catástrofe”). Eu desconhecia a palavra e perguntava-me como é que ela teria aparecido, assim, de repente. E em breve, só o cheiro acre dos salvados, quando se passava por uma dessas lojas, nos fazia lembrar a tragédia.

7. Testemunho de João Augusto Carriço Sant ‘Ana, enviado por escrito. (Capitão da Marinha Mercante e Comandante do Quadro de Honra dos Bombeiros Voluntários de Matosinhos-Leça) Minhas memórias sobre essa tragédia 25 Nov 1967 Encontrava-me nesse dia a navegar um pouco a Norte das Ilhas Canárias e a cerca de 770 milhas náuticas do Porto de Leixões, destino da escala do meu navio, e que era devido chegar no dia 30 de Novembro. A minha mulher aguardava a minha chegada, no Porto, em casa dos meus pais, tendo saído de Algés, dois dias antes levando também meu filho com 2 anos de idade. Na casa de Algés, ficou somente a minha avó com 72 anos de idade. 26 Nov. 1967 Estava a tomar o pequeno almoço, cerca das 7h30m, para entrar de “quarto” na Ponte às 8 horas, quando ouvi, através da Emissora Nacional e Rádio Club Português, que tinha havido grandes inundações em Lisboa e arredores que ocasionaram prejuízos nas habitações e vítimas entre a população. Como muitas vezes sucede com a maioria do ser humano, temos pena, mas pensamos sempre que só sucede aos outros e nós ficamos a salvo…mas não foi assim. 213


Durante esse dia, a minha mulher foi informada, via telefone, pela minha avó e pelos pais dela, que habitavam em frente à minha casa, que esta estava completamente inundada, a água tinha atingido cerca de 1,50 de altura dentro de casa, as portas estavam arrombadas pela lama e que os nossos haveres estavam todos contaminados pela lama da enxurrada e, na maioria, perdidos. A minha avó foi salva pelos Bombeiros, tendo sido evacuada para o 1º andar com o auxilio de um cabo, pois a força da corrente era fortíssima provocando o desequilíbrio e provável afogamento. O meu carro, que estava estacionado à porta, foi levado na enxurrada, “navegando” pela Rua Manuel de Arriaga abaixo, até que embateu numa árvore, afundando-se… O meu sogro ainda tentou derivá-lo para uma zona com menos água, mas não teve forças para o agarrar. Voltou a nado e agarrado às paredes da Manuel de Arriaga até à sua casa na Latino Coelho. 27 Nov 1967 A minha mulher regressou a Algés para se inteirar e avaliar a situação, deixando meu filho no Porto, em casa dos meus pais. Eu continuava a navegar rumo a Leixões. 30 Nov 1967 Chego ao porto de Leixões, a bordo do N/M “S. Thomé” da CNN, no qual exercia a função de 2º Piloto. No cais, à chegada, os meus pais puseram-me a par dos acontecimentos. Solicitei autorização ao Comandante do navio, para me ausentar por 2 dias do navio a fim de viajar para Lisboa para que, junto da minha mulher, me pudesse inteirar da situação e tomar as decisões necessárias para as enfrentar e tentar resolver. À chegada a Sta. Apolónia, estava a minha mulher e meus sogros, que me inteiraram dos acontecimentos. Chegado a Algés, e em frente à casa que habitava como inquilino, mas que tinha sido construída pelos meus avós, onde nasci, nem queria acreditar no que via. Em frente ao portão de entrada observavam-se 2 montes cuneiformes de terra enlameada, que tinha sido retirada do interior da habitação, portas da rua abertas, escancaradas pela força da enxurrada. Móveis da sala de estar, quarto e casa de jantar cobertos de lama, gavetas abertas mostrando o seu conteúdo danificado pela lama. As roupas, estavam todas em péssimo estado e mesmo que as lavassem, ficavam castanhas, cor de terra. Tinham-me desaparecido, algumas coisas de algum valor, que considerei como saque. Pessoas ofereceram-se para lavar as roupas que se encontravam nas gavetas, mas algumas delas já não voltaram… Fiquei com a roupa que tinha a bordo e a minha mulher e filho, com a roupa que tinham levado para o Porto, para estadia de 10 dias, mais ou menos.

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Foi um pesadelo, para mim, pois estava casado há dois anos e meio, e os bens que possuía e que muito me custaram a adquirir fruto do meu trabalho…foram por água abaixo!! 02 Dez 1967 Voltei ao Porto, para bordo do meu navio, que saiu rumo a Lisboa 2 dias depois. 08 Dez 1967 Tendo em conta que a situação resultante destes acontecimentos era complicada para só ser resolvida pela minha mulher, solicitei uma licença de 2 meses e com a condição de regressar ao mesmo navio quando este chegasse da viagem seguinte a África. Durante a minha licença, em Lisboa, procurei obter alguma compensação para os prejuízos que enfrentei e ocasionados pelas cheias, tais como; mobílias, roupas, objetos de uso pessoal e viatura. Requeri à Caixa de Providência da Marinha Mercante um subsídio para ajuda dos prejuízos que sofri. Em resultado desse meu pedido, foi-me atribuído um subsídio de 2.400$00 (montante máximo a atribuir para esses casos, segundo me foi declarado). Como era evidente que esse montante não cobria nem 5% dos prejuízos que sofri, resolvi solicitar ao então Ministério do Interior um outro subsídio adicional que pudesse cobrir as despesas que tinha de enfrentar. Sabia que alguns países, entre os quais os E.U.A. tinham enviado verbas para esse efeito. Mais tarde, foi-me concebido a quantia de 20.000$00. Já deu para comprar alguma mobília nova, roupa para meu filho, mulher e para mim também, além da reparação do meu automóvel (que nunca recuperou, pois passados uns meses, mais propriamente em Maio, germinavam as sementes que vinham na enxurrada e que se infiltraram no interior do carro…era um relvado ...). Voltei à minha vida profissional, em Fevereiro de 1968. Como a casa estava inabitável, alugamos um apartamento em Algés, lá para a Rua do Mirante, bem lá no alto de Algés, não vá o diabo tecê-las…. Assim acabou mais um episódio da minha vida, mas que me marcou para sempre. Uns tiveram prejuízos materiais, mas infelizmente outros tiverem o desgosto de verem os seus entes queridos falecerem nessa catástrofe. Águas Santas, 28 de Maio de 2017

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8. Testemunho de José António Leitão, por Helena Abreu. Recordo-me que na cave do meu prédio (R. Luís de Camões nº 39, esquina com a R. António Granjo) havia um ferro-velho (Sr. Américo, julgo) que cedia o espaço a um sem-abrigo (naquele tempo não se chamavam assim) que eventualmente morreu na cheia, esmagado por um guarda-fatos. Penso que não teve morte imediata, morreu passados uns dias. O que recordo perfeitamente foi estar com o meu pai à janela a ver automóveis levados pela corrente de lama, nessa sexta- feira ou sábado (eu estava a fazer o serviço militar na Marinha e tinha vindo a casa no fim-de-semana). Tinha nessa altura um Vauxhall Viva e resolvemos amarrá-lo a uma árvore. A R. Luís de Camões tinha umas cerejeiras bravas que davam uma flor parecida com a das amendoeiras. O carro lá foi amarrado com uns nós que eu tinha aprendido na Marinha e que eram muito eficazes. Mas a força da corrente era de tal ordem que o pára-choques (nessa época os carros tinham uns párachoques salientes e cromados) dobrou e o carro foi arrastado pelo mar de lama. O meu pai e eu tentámos segurá-lo mas não conseguimos. Valeu a ajuda de uns populares que, com água até à cintura, empurraram o carro contra um prédio da esquina (onde morava o Vasco Mântua) evitando que ele só parasse no fim da rua, onde já estavam empilhados uma dúzia deles! Lembro-me que, na altura, a rua acabava numa grande cova. Curiosamente no dia seguinte, e com água a cobrir totalmente os assentos, o motor pegou e permitiu pôr o carro em segurança, no cimo da rua. Recordo também que nesse fim-de-semana, houve uma explosão num paiol em Linda-a Velha e partiramse imensos vidros e montras em Algés. Algés parecia que tinha sido bombardeada! Foi realmente um fim-de-semana trágico em que morreu imensa gente nos arredores de Lisboa. A censura não deixou publicar toda a informação nos jornais e suavizou muito o número de mortos. Foi num Paris-Match que tive conhecimento de toda a extensão do drama.

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9.Testemunho de Josefina Vieira, por Ana Paula Torres Eu morava com o meu marido e os meus filhos na rua junto aos fornos da cal, em Paço de Arcos, onde ainda moro hoje mas, nessa altura, como o meu marido estava a fazer melhoramentos na nossa casa (estava a instalar uma alcatifa), nós estávamos, provisoriamente, a morar em casa de uma tia do meu marido, no Pátio dos Vieiras, junto ao Largo S. João. Essa zona ficou toda inundada. Foram as cheias grandes. Passava ali uma ribeira, no caminho perpendicular à Rua Costa Pinto que nós gostávamos de ir ver. A ribeira passava a descoberto. Tinha um gradeamento e a gente ia ver as águas passarem [trata-se de uma confusão com cheias anteriores porque em 1967 a ribeira já estava encanada]. A água arrombou a porta da casa onde nós estávamos a morar e ainda tivemos água a um metro e tal e morreu a criação, porque nós tínhamos lá galinhas e coelhos. Foi então que um rapaz que ainda é vivo, o Luís António Baptista, nos foi buscar a mim e à minha filha que tinha uns 14 ou 15 anos. Fez um buraco no telhado e puxou-me a mim e à minha filha. Depois, já na segunda-feira, começou a circular o boato de que iria haver uma nova explosão no paiol do Carrascal. Já tinha havido uma primeira explosão e esperava-se que houvesse outra. A minha filha trabalhava na altura no cabeleireiro Elvirinha que era muito conhecido e que só quase atendia senhoras importantes de Lisboa e de Cascais. A minha filha e as colegas saíram a correr do cabeleireiro e fugiram para a praia. Deixaram passar algum tempo e, como não acontecia nada, voltaram para o trabalho.

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10. Testemunho de Laura Santos Augusto, por Ana Paula Torres. O meu pai era operário da Fábrica da Pólvora de Barcarena e nós vivíamos no Bairro dos Trabalhadores da Fábrica. Ainda era uma miúda, tinha 8 anos, mas tenho algumas recordações dessas cheias. Nessa noite, tínhamos ido para casa de um vizinho, porque ninguém tinha televisão, poucos tinham televisão e nós tínhamos ido ver um programa, era uma peça de teatro ou uma coisa assim. E nem percebíamos o que estava a acontecer. Quando alguém se apercebeu que a água estava a chegar às casas, as pessoas começaram a agitar-se. Depois, quando percebemos que algumas casas estavam a ser inundadas e os animais estavam a ser levados pela cheia, com a corrente, por uma questão de protecção, fomos levados para uma dependência da fábrica, onde estávamos juntos e a salvo. Era uma espécie de armazém. Já nem fomos a casa, mas fomos directamente para lá. Fomos os mais sortudos. Eu sei que fiquei mais de uma semana numa outra casa que estava a salvo da cheia, não tão próxima da ribeira de Barcarena, que era de um engenheiro da fábrica. Era uma casa lindíssima e fiquei lá com os filhos dele. Para mim, como criança, foi uma festa. Era uma brincadeira. Nunca tive a sensação de perigo, mas os meus pais contavam histórias dramáticas. Quando o meu pai quis ir ajudar, as pessoas disseram «Vai-te embora! Não vale a pena salvar coisas Podes ir com água, também!» É porque continuava o perigo! De um momento para o outro, aquilo podia ser tudo levado e as pessoas irem também no meio das águas. A minha casa ficou inundada, a água chegou quase ao colchão, as caves ficaram inundadas e os animais (cães, coelhos e galinhas) que estavam presos morreram. Depois, tivemos um subsídio da Cruz Vermelha. A Cruz Vermelha foi quem lá prestou auxílio. Eu recordo que a minha mobília de quarto foi comprada com o dinheiro do subsídio. Foram oito contos, ou uma coisa assim.

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11. Testemunho de Laurentina Pereira, por Maria Sam Pedro Marques. Na altura das cheias de 1967, a D.Tina, como é conhecida, não morava em Algés. Morava em Pedrouços. Nesse dia, deslocara-se a Algés de eléctrico e soube do que aconteceu pelo que foi ouvindo das pessoas com quem conversava. Observou, do eléctrico, que a água da ribeira arrastava muitos utensílios, roupas. No nº18, da Rua Dr. Manuel de Arriaga, em frente à oficina de automóveis, havia a loja da D. Palmira com exposição de móveis no rés-de-chão.. Na cave, havia o armazém. A senhoria contou-lhe que a água da cheia entrou para a loja e de seguida encheu o armazém. Tentaram tirar material da cave, mas rapidamente a água encharcou tudo. Na rua, viam-se os bens das pessoas a boiar (colchões, móveis, etc).Tudo o que havia nas caves desta rua se perdeu. O prédio nº 18 foi construído em cima da ribeira e via-se a água sair do chão limpinha e em repuxo. Bem próximo, na padaria, os bombeiros estiveram quase uma hora a trabalhar, utilizando bombas para escoar a água. Foi muita, a ajuda das pessoas. A D. Tina lembra-se que foi à casa Felga na Rua Damião de Góis (loja de moda, fazendas...) comprar coisas para oferecer a quem precisava. As pessoas levavam sacos com comida, utensílios de casa, roupa de vestir, cobertores e que entregavam diretamente nas casas de quem precisava, ou na igreja ou no mercado.

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12. Testemunho de Manuela Barreto, por Helena Abreu. A história foi-me contada pela minha mãe. Eu, na altura não estava cá, estava em Luanda. Nós tínhamos uma vizinha, gostávamos muito dela, da Rua Ernesto da Silva (nós morávamos nessa rua), chocou-me imenso quando soube, fico transtornada cada vez que me falam disto, conhecia-a muito bem. Acontece que no local onde ela trabalhava fizeram uma homenagem às pessoas que completavam 25 anos de serviço e ela foi homenageada na véspera, ou na ante-véspera do dia em que se deram as cheias. Ela estava muitíssimo feliz, e para ir à homenagem tirou umas joiazinhas que tinha, pô-las no quarto, eram as jóias para levar à homenagem. Depois, voltou a tirá-las no quarto, quando chegou a casa, a seguir à homenagem. E, nesse dia, começou a ver entrar a água. Segundo me disseram, entrava água até pelas sanitas! Ela morava nessa altura na Rua Luís de Camões, nas caves. Quando se lembrou que as jóias estavam no quarto, voltou a correr ao quarto para as salvar, só que a porta do quarto fechou-se. Ela começou aos gritos, a água a subir vertiginosamente, ela aos gritos, aos gritos, aos gritos e o marido correu a acudir-lhe. Tentou abrir a porta e ela só dizia: “Vai-te embora que eu estou perdida! Salva-te, salva-te, salva-te!” e ela morreu afogada lá dentro. Sei que mais tarde, disseram-me, já quando eu estava cá em Portugal, que o marido (mais tarde casou outra vez), tinha pesadelos horríveis com a cena que viveu.

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13. Testemunho do Padre Fernando da Silva Martins, por Maria Sam Pedro Marques

Padre Fernando Martins em 1969504 e em Março de 2016 com Maria Sam Pedro Marques O Padre Martins é natural de Sarzedas (Castelo Branco) e tomou posse na paróquia de Oeiras em Outubro de 1966, vindo de Setúbal onde foi vigário geral e professor do liceu. Nessa altura, Oeiras era uma vila pequena talvez com 10.000 habitantes. O Padre Martins chamava-lhe “Arquipélago” porque as famílias viviam separadas: havia os ricos e os pobres. Havia famílias dominantes e o resto era uma pobreza franciscana. O Padre encontrou a igreja com dívidas, em estado lastimoso e com muita gente pobre. No dia 25 de Novembro de 1967, caiu sobre Oeiras e outros pontos da Grande Lisboa uma forte tromba de água que deixou atrás de si vítimas humanas sem conta e prejuízos materiais incalculáveis. Na altura, O Padre Martins tinha ido a Sassoeiros e não pôde voltar para casa. O lugar da Ribeira da Laje, em Oeiras, foi o mais atingido. Muitas casas tinham sido construídas em cima de uma antiga ribeira e com a chuvada houve um aluimento de terras, arrastando os haveres das pessoas, tendo morrido três ou quatro pessoas. Aquela povoação era um lugar muito pobre, talvez com mil habitantes. O Padre Fernando Martins referiu que, na Páscoa, quando ia dar as Boas Festas, encontrou pessoas a morar em barracas e outras a viver em grutas nas ribanceiras encostadas ao cemitério. O toureiro Mestre Baptista tinha os cavalos num espaço onde agora é o pavilhão da Junta de Freguesia, um estacionamento de carros e onde se fazem os festejos em Junho. Tendo este espaço ficado inundado,

504

Memória recente e antiga – Verº Padre Fernando Martins http://memoriarecenteeantiga.blogspot.pt/2008/05/rev-padre-fernando-martins.html

221


os seus cavalos morreram. As águas subiram tanto que não se podia passar de Este para Oeste. Também na zona do Palácio do Marquês não se passava e na rua do tribunal tudo ficou alagado, tendo as pessoas perdido muitos haveres. A ribeira não estava limpa e as águas arrastaram terras e lixos. As casas eram clandestinas e ilegais construídas por pessoas vindas da província. Com as cheias e o que daí resultou, muito havia a fazer. Era urgente ajudar! O Presidente da Câmara chamou o Padre Fernando Martins e o Presidente da Junta de Freguesia a fim de fazerem um levantamento dos prejuízos e necessidades junto à população atingida pela catástrofe. Depois de terem corrido a vila de Oeiras e da avaliação feita, o Presidente da Câmara deu-lhes dinheiro que, de imediato, foi distribuído pelas famílias necessitadas. Depois, foi preciso pensar noutras maneiras de ajudar as pessoas. O Padre Martins, com os seus 92 anos, recorda que sempre procurou ser um bom discípulo de Cristo. Com a catástrofe, não podia dormir descansado e lembrando-se que “Se o teu irmão tiver fome, dá-lhe uma cana para pescar”, «não era hora de dar esmolas, mas sim de promover pessoas». Pondo em prática os seus princípios, o Padre Martins rodeou-se de um grupo de pessoas e na povoação da Ribeira da Laje, a zona mais fustigada, os habitantes foram os primeiros a ser ajudados. Foi pedido ao dono de uma fábrica abandonada as instalações e aí se arranjou uma sala para tratar das crianças que eram ajudadas por uma senhora que ia a pé de Oeiras todos os dias, a chover ou a fazer sol. Entretanto, fez-se uma cozinha para dar o almoço às crianças, a fim de que os seus pais pudessem ir trabalhar descansados. Como em Oeiras havia muita pobreza, pensou-se dar vida à “Casa do Miúdo” que já existia e que pertencia ao “Património dos Pobres”. A Cáritas Diocesana e a Câmara Municipal ajudaram com dinheiro. Depois de se acudir às primeiras necessidades, era necessário promover as pessoas e assim nasceu o Centro Social Paroquial. Também existia o «Roupeiro da Paróquia» e a «Arca da Caridade» que recebiam doações das pessoas para serem distribuídas depois pelos mais carenciados.

222


14. Testemunho de Viriato Pereira, por Maria Sam Pedro Marques

O sr. Viriato morava em Linda-a-Velha, quando num sábado de madrugada, dia 26 de Novembro de 1967, ouviu um grande estrondo que muito o assustou. Soube depois que tinha havido uma explosão num paiol existente em Linda-a-Velha. Como tinha chovido muito, a água entrou no paiol e provocou a explosão do material explosivo que lá existia. Um seu amigo que trabalhava na Marconi contou-lhe que, do ponto de recepção da Marconi em Lindaa-Velha, os operadores viram faíscas nos cabos elétricos antes da explosão. Como consequência da explosã,o as janelas da sua casa (e de muitas outras) ficaram com os vidros partidos. Nesse dia, à noite, a G.N.R. patrulhou a cavalo as ruas a fim de evitar os roubos e não deixavam entrar ninguém em Lindaa-Velha sem que mostrassem a identificação. A G.N.R. acompanhava depois as pessoas a casa de dia e de noite, comentando com elas a não divulgação do sucedido. Esteve quinze dias à espera que lhe colocassem os vidros nas janelas. Mas teve sempre água e luz. Entretanto, enquanto não colocavam os vidros, esteve em Lisboa em casa de familiares. O sr Viriato conta que só na segunda feira a seguir à explosão é que se apercebeu dos enormes estragos causados pelas cheias, resultantes da chuva que caiu sem parar durante bastante tempo. Ouviu dizer que, em Paço de Arcos, o cavaleiro Emídio Pinto tinha ficado sem os cavalos pois tinham morrido afogados nas cheias.Também em Oeiras, o cavaleiro Mestre Baptista ficou sem os cavalos que morreram afogados.

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2. Fotografias

1. A cheia de 1967 nas localidades do concelho de Oeiras. Fundação Calouste Gulbenkian - Palácio do Marquês de Pombal. 2. A cheia de 1967 noutras localidades da Grande Lisboa (Frielas, Alenquer, Quintas, outros locais) 3. Câmara Municipal de Oeiras, Associações de Previdência Social e Cruz Vermelha Portuguesa 4. Censura 5. Associações de Estudantes

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1. A cheia de 1967 nas localidades do concelho de Oeiras

1.Dafundo, Rua Direita (rua dos eléctricos).

2. Dafundo, Rua 7 de Junho, em frente ao Instituto Espanhol. Fonte: Fotos cedidas por Foto ARTEBELA, Ilídio Espada Teixeira, Algés

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3. Ribeira e Baixa de Algés.

4. Ribeira e Baixa de Algés. Fonte: Fotos cedidas por Foto ARTEBELA, Ilídio Espada Teixeira, Algés

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5. Algés, a azáfama das pessoas na limpeza dos seus haveres.

Fonte: O Século, 28 de Dezembro de 1967

7. Talaíde, Bairro da Pia à Porta que ficou inundado. Fonte: Foto de Ana Paula Torres

6. Algés, junto à Pastelaria Nortenha, o mesmo esforço para para preservar o que foi possível salvar das águas e da lama.

Fonte: http://historiasdevida.cm-oeiras.pt/wpcontent/uploads/2017/06/NORTENHA.jpg

8. Amadora, imagem da destruição

Fonte: Censura 16, Inéditos do Arquivo de Censura do Notícias da Amadora (1958-1974), Nº 5, 31/1/2002

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Fundação Calouste Gulbenkian - Palácio do Marquês de Pombal Fotografias de 26 de Novembro de 1967 Fonte: Arquivo Fotográfico da Fundação Calouste Gulbenkian, Colecção Fotográfica. Serviço Projectos e Obras [Palácio de Oeiras] [Inundações de 25 para 26 de Novembro de 1967].

9.Exteriores do Palácio Pombal

228


10. Interior do Palácio Pombal com as marcas da lama visíveis até às abóbadas.

12. Exteriores do Palácio Pombal e relvado da zona da antiga piscina.

11. Exteriores do Palácio Pombal: Jardim Botânico e tanques das plantas aquáticas.

13. Exteriores do Palácio Pombal: Jardim Botânico e limites da propriedade.

229


2. A cheia de 1967 noutras localidades da Grande Lisboa

Fonte: Arquivos Gulbenkian

14. Em local não identificado, as pessoas não desistem da vida e tentam recuperar o que é possível.

Fonte: Terense Spencer in http://citizengrave.blogspot.pt/2011/06/fotos

15. e 16. Ponte de Frielas (Loures) - Na Rua David José Chitas, moradores salvam pertences após as cheias. A criança que aparece na 1ª foto é Manuel Júlio dos Santos (adulto da 2ª), actualmente a viver em França. A identificação que se segue é feita a partir do seu testemunho: 

Tio Pimenta, o senhor de chapéu e camisa branca, o proprietário da tasca de onde estão a retirar os objectos para os deixar secar ao sol e ao ar;

D. Celeste, a senhora que está em primeiro plano, mulher do Tio Pimenta;

Madalena, a outra senhora, vizinha da casa ao lado. 230


17. Aldeia perto de Quintas.

18. CadĂĄveres transportados em portas.

Fonte: Terence Spencer in SĂŠculo Ilustrado, http://citizengrave.blogspot.pt/2011/06/fotos

Fonte: paris_mat ch_9dez67_cheias, 2 de Dezembro de 1967 http://citizengrave.blogspot.pt/2011/06/fotos

19. Transporte de cadĂĄveres por bombeiros e sapadores bombeiros Fonte: paris_mat ch_9dez67_cheias

231


20. Mortos de Vila Franca de Xira amontoados numa igreja, para serem lavados e identificados. Fonte: Revista Expresso, «Aos que morreram nas Cheias», reportagem de José Pedro Castanheira, edição 2351, 18/Novembro/2017, foto cedida pelo Arquivo Nacional da Torre do Tombo. http://images-cdn.impresa.pt/expresso/2017-11-23-cheias-1967-3/original/mw-86

21. Uma menina inanimada encontrada no interior do rés-do-chão de uma habitação Fonte: Diário de Notícias, 27de Novembro de 1967

22. Aldeia perto de Lisboa. Enterro de uma criança. Fonte: Terence Spencer,in citizengrave.blogspot.pt/2011/06/fotos

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23. Retirados pelos bombeiros do interior das habitações inundadas, homens e mulheres espelham a fadiga que uma noite de pavor produziu neles.

24.Testemunho de Maria José Garcia, sobrevivente de 17 anos.

Fonte: Diário de Notícias, 27 de Novembro de 1967

Fonte: Diário de Notícias, 28 de Novembro de 1967

Quintas Fonte: Fotos de Ana Paula Torres

25. Quintas – Aldeia- mártir, do concelho de Vila Franca de Xira, que perdeu mais de metade dos seus habitantes. 233


26. e 27. Quintas - Luísa Fajardo, sobrevivente e testemunha da tragédia recorda a imagem que guardou da várzea de Quintas, em frente de sua casa, onde a força das águas arrancou, pela raiz, vinhas e árvores de fruto. Na madrugada de dia 26, aos seus olhos de criança, a várzea parecia um mar de prata com o brilho do orvalho da manhã sobre aquele manto imenso de lama que se estendia no horizonte.

28. e 29. Quintas – A rua, em frente à lezíria, que registou mais vítimas mortais. Hoje, em homenagem aos que ali perderam a vida, chama-se Rua 26 de Novembro de 1967.

234


30. Quintas – Rua 26 de Novembro de 1967. A água chegou à ombreira do telhado da casa.

31. Quintas - Casa onde, no piso inferior (único na época), perderam a vida muitos membros da mesma família (de Salustiano Mascote). O piso superior é habitado por familiares das vítimas de 1967 que, na altura, viviam noutro local e que vieram, mais tarde, viver para Quintas.

32. Enterros colectivos na zona de Vila Franca de Xira. Fonte: Flama, «Portugal Chora. Reportagem completa da catástrofe que enlutou o pais», 8 de Dezembro de 10967https://cdn1.newsplex.pt/fotos//2017/11/25/614595.jpg

235


3. Câmara Municipal de Oeiras, Associações de Previdência Social e Cruz Vermelha Portuguesa

33.Presidente da Câmara Municipal de Oeiras

34. Vice-Presidente da Câmara Municipal de Oeiras

Fonte: Ribamar, 30 de Abril de 1967, p. 1

35. Posto de atendimento da Previdência Social, em Algés. Fonte: Arquivo da Torre do Tombo, Caixa da Previdência Algés

36. Posto móvel de atendimento da Cruz Vermelha Portuguesa. Fonte: http2.bp.blogspot.com

236


4. Censura

37. Censura ao Século Ilustrado a 2 de Dezembro de 1967 «Não podem ser autorizadas mais gravuras sobre as inundações».

237


38. Censura ao SĂŠculo Ilustrado a 2 de Dezembro de 1967.

238


5. Associações de Estudantes

39.Brigadas de estudantes no apoio às populações

40. Plenários de estudantes

Fonte:

Solidariedade Estudantil nº 2, SCIP – Secretariado Coordenador de Informação e Propaganda, TT, Arquivo Salazar, Correspondência.

239


41. Primeira página do Solidariedade Estudantil, nº2.

Fonte:

Solidariedade Estudantil nº 2,mSCIP – Secretariado Coordenador de Informação e Propaganda, TT, Arquivo Salazar, Correspondência.

240


42. Antigos dirigentes associativos, empregados e colaboradores da AEIST, reunidos em 2002, nas escadarias do IST: Desta escadaria, partiram autocarros cheios de estudantes, alimentos, agasalhos, pás, picaretas, baldes, que transportávamos. (…) Quase todos nós encontrámos o Povo, o nosso, nas difíceis condições de vida de que só tínhamos ouvido falar.

Fonte: Blog ANTREUS, Blog de António Abreu, 2017

241


3. Lista de mortos confirmados nas várias localidades

Os Mortos e os Fósforos, crónica de Pedro Alvim, Diário de Lisboa, 26 de Novembro de 1967

Era ao cair da tarde – e havia mortos. Todos muito juntos, enlameados, compridos. Alinhados, distanciados para sempre, ali aguardando o arrumo definitivo. Ali, ali no cimento frio de um quartel de bombeiros, no fim de um domingo de Inverno. Eu estava ao telefone, um telefone de moedas de cinco tostões, a dar para o jornal o número de mortos, os seus nomes, as suas idades. Ia escurecendo, escurecendo, e eu já não via os nomes escritos à pressa, abreviados, secos. Um bombeiro, uma pilha nas mãos, tentava auxiliar a minha leitura, uma leitura triste, sincopada, hesitante de quando em quando. Eu sabia que tinha os mortos todos atrás de mim, indiferentes, quietos, não se importando absolutamente nada que lhes trocasse os nomes. Mas eu não queria cometer o mínimo erro, o mais pequeno deslize. “Se tu és João” – dizia para mim – “és João. E se o teu nome é Mário, o teu nome será Mário. E caso te chames Rosa, não te chamarei Lucília.” E teimava, teimava em ser exacto, pedia, pedia ao bombeiro que mantivesse o foco da pilha sobre o papel em que tinha escrito os nomes dos mortos. E carregava nas moedas de cinco tostões, mantinha a ligação telefónica, identificava-os um a um. O tempo passava, o tempo passava sem luz eléctrica, e eu estava sempre ali ao telefone, e os familiares dos mortos iam entrando, (que longa bicha!), identificavam os mortos, os nomes dos mortos eram-me dados, e eu dava os nomes dos mortos ao jornal. Ouvia o choro dos vivos, ouvia o silêncio dos cadáveres, ouvia a noite lá fora – Depressa! Depressa! – diziam-me do jornal – Depressa que é para a terceira edição! Iam-me faltando as moedas de cinco tostões, sentia-me aflito, pedia que me trocassem moedas de cinco, dez escudos. E os nomes dos mortos continuavam na minha boca, lidos um a um, o mais exactamente possível. Como um preito de homenagem. Como um choro. Chegavam aos meus ouvidos pormenores da tragédia, da chuva, da lama.

242


Eu carregava nas moedas de cinco tostões, afligia-me com o seu desaparecimento contínuo e, automatizado já, ia lendo os nomes dos mortos à luz da pilha. Escuridão total. – Acabou-se a carga! – disse o bombeiro. O suor tomou-me o corpo todo – e os meus dedos amarfanhavam o papel com os nomes dos mortos ainda não transmitidos. E agora? E agora? Agora que a pilha tinha dado de si – que fazer, que fazer? – Acendam fósforos! – gritei – Estes fósforos! E assim foi: à chama tremida do enxofre, dos fósforos, acesos um a um, fui lendo o nome dos mortos que restavam, que estavam ainda no papel, sem o mais pequeno deslize. “Se tu és João” – dizia para mim – “és João. E se o teu nome é Mário, o teu nome será Mário. E caso te chames Rosa, não te chamarei Lucília“. Quando, finalmente, abandonei o telefone, ganhei a rua, respirei a noite, apeteceu-me loucamente um cigarro, um cigarro que me turvasse, um cigarro para esquecer aquilo tudo. Meti, os pulmões ansiosos, um cigarro na boca – mas não pude, não pude fumar, não pude acender o cigarro: os mortos tinham queimado todos os meus fósforos. Fonte: “OS MORTOS E OS FÓSFOROS” ou a Crónica dentro da Crónica, João Figueira, 22 de Junho de 2017, Jornal Tribuna de Macau

243


Contar os mortos…

A identificação das vítimas mortais que constam dos quadros que se seguem foi feita a partir da imprensa da época (Diário de Notícias e O Século) 505 e da pesquisa realizada, já no ano de 2017, pelo jornalista José Pedro Castanheira506 para a Revista do Expresso e por investigadores de Alenquer que publicaram uma obra sobre a tragédia naquela localidade507. Segundo a pesquisa de José Pedro Castanheira,508 nos livros de assentos de óbito das 10 conservatórias consultadas, foram três as causas das mortes das vítimas das inundações de Novembro de 1967: submersão acidental provocada por inundação; afogamento e soterramento provocado por avalanche.

Identificadas as vítimas mortais, a partir daquelas fontes, as mesmas foram inseridos em quadros por concelho ou localidade, para que se percebesse melhor o peso da tragédia em cada lugar. É possível, contudo, que alguns nomes não estejam inseridos no quadro da localidade onde viviam e morreram porque houve casos em que os corpos foram encontrados muito longe daqueles lugares e os seus óbitos foram registados em conservatórias de outras localidades. Na identificação dos nomes, procurou-se também juntar famílias. Assim se justificam os sombreados das linhas dos quadros. Feita a identificação de um nome, seguem-se-lhe, aleatoriamente, os outros nomes da mesma família. Estão juntos na morte, para termos também a percepção de como as inundações de Novembro de 1967 ceifaram a vida de muitas famílias. Foi o caso dos Pereira, em Quintas, por exemplo, que perderam 23 dos seus familiares e dos Vicente, no mesmo local, que perderam cerca de 22 dos seus membros (números por defeito, porque é provável que haja outros sem que apresentem esse nome). Luísa Fajardo, sobrevivente e testemunha da tragédia, perdeu 25 familiares, também naquela localidade.

Não foi possível fazer a identificação de todos. Nos quadros, algumas das vítimas mortais não têm nome, mas identificações mínimas. Todos tiveram direito a uma linha nestes quadros. Não juntámos os

505

Diário de Notícias e O Século de 25 de Novembro de 1967 a 14 de Janeiro de 1968. Revista do Expresso, Aos que morreram nas cheias, José Pedro Castanheira, 18 Novembro 2017, pp. 35 a 42 507 RAPOSO, Raquel; LOURENÇO, José Leitão; SANTOS, Alberto, A NOITE MAIS LONGA história e memória da cheia de 25-26 de Novembro de 1967, Alencultura editorial, Alenquer, 2017. 508 Revista do Expresso, Aos que morreram nas cheias, José Pedro Castanheira, 18 Novembro 2017, pp. 35 a 42 506

244


corpos. Deixámos que um fosse «corpo de mulher», outro «corpo de criança», numa identificação mínima que respeitasse a individualidade de cada um. Foi a identificação possível. A partir de certa altura, como já fizemos referência, a Censura não permitiu que mais corpos fossem identificados e as pesquisas acima indicadas feitas em 2017 também não permitiram ir muito mais longe. O último registo de uma vítima mortal a aparecer nos jornais aconteceu no dia 14 de Janeiro de 1968. Chamava-se José António Lourenço Venâncio, tinha 17 anos e era bombeiro voluntário de Bucelas. Há ainda outros por identificar e só um trabalho paciente de vários investigadores, por todas as conservatórias e cemitérios das zonas sinistradas, poderá alcançar maior sucesso na identificação das vítimas que faltam. Para que todos tenham direito ao seu nome, para que a sua memória não se perca para sempre. Será, contudo, impossível identificar todos os que perderam a vida nas inundações de 1967. É provável que alguns corpos ainda estejam enterrados; que outros tenham sido enterrados à pressa, sem assentos de óbito, por questões de saúde pública; e que ainda outros se tenham perdido no Oceano Atlântico, levados pela corrente do Tejo. Há ainda a acrescentar todos aqueles que, não tendo morrido na intempérie de dia 25, acabaram por morrer nas semanas e meses seguintes, na sequência de doenças (pneumonias, broncopneumonias e infecções respiratórias) resultantes da chuva, do frio e da humidade que as cheias provocaram. O quadro abaixo dá-nos os valores totais por concelho. Entre as vítimas mortais destaca-se o elevado número de crianças (mais de 20%). A partir das fontes consultadas, descobrimos a presença de mais de cem crianças com idades que variavam entre poucos dias de vida e os onze anos. Morreram nas barracas, nos telhados das suas habitações e nas caves, arrancadas aos braços dos pais pela força da corrente da água e da lama que envolveu os espaços onde viviam.

245


Concelhos

Mortos

Identificados

Por identificar

Oeiras

66

34

32

Lisboa

4

4

-

Loures Freguesia de Odivelas

18

16

2

22

15

7

40

30

10

37

34

3

79

66

13

49

49

0

39

24

15

58

57

1

53

40

13

83 a)

83

a)

28

10

18

576 a)

462 80,2%

114 a) 19,8%

Loures (Odivelas) Quinta do Silvado Pátio do Silvado, Silvado Pátio de João Pequeno Loures (Odivelas) Pontinha, Paiã Bairro da Urmeira Bairro de Santa Maria Loures (Odivelas) Póvoa de Santo Adrião Olival Basto Quinta da Quintinha Quinta da Várzia Loures Loures, Bucelas Pintéu, Ponte de Frielas S. João do Tojal Alenquer Sintra Queluz Sintra Vila Franca de Xira Alverca Alhandra Vila Franca de Xira Castanheira do Ribatejo Vila Franca de Xira Quintas Outros Arruda dos Vinhos Azambuja, Barreiro Sobral de Monte Agraço TOTAIS:

a) Mais número desconhecido de corpos por identificar. 246


Fontes e Bibliografia Diário de Notícias, de 25 de Novembro de 1967 a 30 de Janeiro de 1968. O Século, de 25 de Novembro de 1967 a 30 de Janeiro de 1968. Relatório do Presidente da Câmara Municipal de Oeiras, Governo Civil de Lisboa, Pasta Catástrofes dias 25-26 Novembro de 1967, Relatórios Presidentes Câmaras Municipais, 3902, Arquivo SGMAI. RAPOSO, Raquel; LOURENÇO, José Leitão; SANTOS, Alberto, A NOITE MAIS LONGA história e memória da cheia de 25-26 de Novembro de 1967, Alencultura editorial, Alenquer, 2017. Revista do Expresso, Aos que morreram nas cheias, José Pedro Castanheira, 18 Novembro 2017, pp. 35 a 42 RTP1, O Tempo que faz, reportagem de Helena Matos, 24 Novembro 2017

247


Concelho de Oeiras – 66 mortos / 34 identificados Localidade

Nome

Idade

Filipe …..

Profissão/local de aparecimento

Mãe de Isaac Santos

Morreu numa cave na Rua Luís de Camões, entalado ente o guarda-roupa e a parede. Não conseguiu sair a tempo.509 Guarda da PSP aposentado. Morreu afogado na residência, na Rua General Vicente de Freitas, nº 15, cave. Quinta da Carapuça, barraca em Algés Encontrada na ribeira do Jamor. Empregada de escritório. Morreu afogada na residência na Rua Luís de Camões, lote 7, cave Dto, em Algés. A senhora ao tentar fugir, ao tentar subir as escadas, ficou ali porque a água que descia se misturava com aquela que lhe entrava pelas traseiras, então foi a morte dela510 O carro onde seguia o meu pai e a minha mãe foi arrastado contra muro e caiu ao rio. Eles faleceram. O meu pai foi encontrado já a entrar no Tejo e a minha Mãe foi encontrada, oito dias depois, num caniçal em Carnaxide. 511

Homem

Apareceu afogado junto à Praça de Touros

João Pôla Maria Joaquina Raposo Maria Luísa Lopes Rodrigues Brás

70 53

40

Algés (7) Pai de Isaac Santos

Custódia Maria Filipa Valente Fernanda Maria Ernesto Alves

8

Maria do Jesus Mulher Filho Filho Filho Homem Homem Menina Mulher

1

Vivia na Quinta da Brandoa. 4

Amadora (11)

Mãe e 3 filhos menores. Viviam numa barraca em Fontaínhas, Vendas Novas. Vivia numa cave (Brandoa) Vivia numa barraca em Ribeira do Casal de Vila Chã. Vivia numa cave (Brandoa) Damaia. Aparentava 60 anos.

509

Testemunho de José Nuno Pacheco Pereira. Testemunho de Elizabete Aguardela na Biblioteca Municipal de Algés. 511 Comentário de Isaac Santos a propósito das cheias de 1967, Facebook da Câmara Municipal de Lisboa, 1 Dezembro 2014. 510

248


Barcarena (12)

Carnaxide (8)

Aldina Maria Ana Cristina de Sousa Ribeiro de Abreu

8 1

António Lisboa

64

Maria Carolina Rolo Pinto

8

Maria da Graça Rolo Pinto

8

Maria do Céu Patrocínio

Morava na Estrada da Fontainhas, em Tercena. A pareceu a boiar no Rio Jamor.

De S. Marcos. Foi encontrado junto à Fábrica da Pólvora. Apareceu …encostado a um eucalipto, com aquelas ramagens todas, ele estava encoberto (…). Era conhecido pelo «contínuo de S. Marcos» .

Tercena. Estrada da Fontainha

Maria Alice Capelo

4

Maria de Jesus Capelo

1

T Tercena. Bairro da Fontainha. Mãe e 2 filhas. Houve uma rapariga que morava…junto à ribeira que vai passar por dentro da fábrica da Pólvora, … ao sair de casa, não se apercebeu de que a cheia já ultrapassava e foi na cheia. Foi encontrado o corpo dela aqui em baixo numa quinta e também uma irmã dela (…). A casa era em cima, no largo da Fábrica da Pólvora.

Maria Sofia Monteiro Viana Homem Homem Menina

21

Tercena. Operária na Fábrica da Pólvora de Barcarena

Manuel Joaquim da Praça Moura Matado Maria Bárbara Rafael Sebastião Desidério Menina Menina Mulher Mulher Homem

38

50 ap. 50 ap. De Valejas. Encontrada no rio Jamor 34

62

Foi arrastada e encontrada na Senhora da Rocha.

52 18 ap. meses 2 ap. 73 ap. 80 ap. 30 ap.

Envergando um vestido de tecido com bonecos estampados e usando babete branco. Aparentava 18 meses. Aparentava 2 anos. Quase calva. Aparentava 73 anos. Aparentava 80 anos. Com grandes patilhas. 249


Caxias (5)

Cruz Quebrada (3)

Dafundo (4)

Paço de Arcos (3)

Oeiras

António Carvalho Catarino Joaquim Augusto dos Santos Catarino Maria da Senhora do Carvalho José Gonçalves Afonso Maria de Lurdes de Almeida Sousa Dias Homem Mulher de meia idade Mulher de meia idade Rute Maria Baltazar das Neves Mulher Mulher Mulher José Gonçalves Afonso

28 3

52 29 5

Encontrada a boiar junto ao Instituto dos Altos Estudos Militare.s

Foram encontradas a boiar no rio Jamor

24

80 ap. 29 ?

Maria Luisa Mota José Manuel Madureira Maria Alves G. Madureira Maria da Conceição Gonçalves Madureira Fernanda Madureira

62

Maria Isabel Vaz Marques

Servente de pedreiro.

Encontrado na foz do rio Jamor, na Cruz Quebrada.

Mulher

(13)

Empregado da Messe dos Oficiais em Caxias Pai, filho e sogra morreram afogados na cave onde viviam na Rua Croft de Moura, nº 4 A, em Caxias.

Corpo deu entrada no Hospital de S. José. Morreu numa arrecadação. Morreu numa cave. Velhinha com mais de 80 anos. Guarda da Pedreira do Alfredo. Morreu na pedreira onde vivia, junto da Rua Lino da Assunção, a Norte da linha do comboio. Corpo por aparecer

40 37

Moravam numa barraca que foi arrastada pelas águas

8

6 Moradora numa barraca que ruiu, ficando soterrada. Os seus dois filhos (Álvaro e João) de dois anos e meio foram salvos pelos vizinhos.

250


Oeiras (13)

Homem Homem Menina corpo por identificar corpo por identificar corpo por identificar corpo por identificar corpo por identificar

5 ap.

Encontrada no Sítio do Senhor da Serra. Aparentava 5 anos.

Cidade de Lisboa (4 mortos/ 4 identificados) Nome

Idade

Germano dos Santos Rolim

34

Manuel Augusto Correia

7

Manuel Joaquim Santos Correia Rosa Maria dos Santos

33 86

Profissão

Bairro das Minhocas, Beneficência, na Freguesia de Nª Senhora de Fátima. Ficou soterrado na barraca nº 24037 onde vivia, que ficou esmagada por um muro.

Soterrada pela barraca que abateu.

251


Nome

Concelho de Loures – Freguesia de Odivelas (Odivelas estava integrada no concelho de Loures) (18 mortos / 16 identificados) Idade Profissão

Albino Teixeira Alves António Lisboa António da Conceição Fernandes Balbina Maria Fortunato Maria Carlos Joaquim da Conceição Lemos José da Mota e Silva José Silva Carneiro Maria Emília da Silva Maria Filomena Brás dos Santos Maria Helena Brás dos Santos Miquelina Jesus Moreira Gonçalves

56 87 45 79 48 35 33 35 45 34 33 5

Rosa Maria dos Santos

87

Funileiro. Apareceu na Lezíria de Sacavém Rua do Espírito Santo Ribeira da Mata

Ramada

Sebastião Desidério Vítor Manuel Campizes Lemos Licínio Manuel Campizes Lemos Trabalhador da firma «Mateus» Homem

12 6 20/30

Eram irmãos. Era distribuidor de gás. Seguia numa bicicleta. Usava camisa azul e pullover de malha claro.

252


Concelho de Loures – Odivelas Quinta do Silvado / Pátio do Silvado / Pátio de João Pequeno/ Silvado (22 mortos, 15 identificados) Nome Idade Profissão Abílio Mateus Júnior

42

Florinda Maria Duarte Francisco Duarte Garcia Valadeiro Abílio Garcia Valadeiro Francisco José Garcia Valadeiro

68 16 6 3

José da Silva Carneiro Maria de Lurdes Costa Maria de Fátima dos Santos da Silva Maria da Natividade Ribeiro Dulce de Jesus Ribeiro Moreira Maria José Ribeiro R. Moreira Duarte

25 28 42 60 20 +1

Palmira de Jesus Moreira Gonçalves Maria Teresa Moreira Gonçalves Miquelina de Jesus Moreira Gonçalves Víctor Manuel da Costa Gameiro

26 7 5 3

Menina recém-nascida

Mulher de Abílio Filho de Abílio Filho de Abílio Sogra de Abílio Cunhada de Abílio Sobrinho de Abílio

512

-8 dias

Empregado comercial e distribuidor de mercadorias ao domicílio. Foi o 1º corpo a ser recolhido e o 1º a ser sepultado no cemitério de Odivelas. António Andrade Valadeiro, de 43 anos, empregado da C.M. Loures, salvou a mulher e 4 filhos. Viu as águas arrastarem 3 outros filhos. A rapariga morreu devido a submersão por inundação e os rapazes ficaram soterrados por avalanche. Empregada do comércio Mãe Filha Neta com 15 meses Mãe Filha Filha Tinha menos de 8 dias. Ainda não estava registada. Era filha de Manuel Duarte da Silva e Amélia dos Santos Firmino que se salvaram por se terem agarrado a uma árvore. AÍ estiveram muitas horas à espera de socorro. O bebé morreu enregelada ao colo do pai. Residiam no Silvado.512

Só se salvaram o trabalhador Abílio e a filha mais nova.

O Século, 4 de Dezembro de 1967

253


Concelho de Loures - Odivelas Pontinha/Bairro da Urmeira/Paiã/Bairro de Santa Maria (40 mortos /30 identificados) Adelino de Jesus Moreira Alberto de Carvalho Carlos Alberto de Jesus

57 50 5

Ana Emília da Silva Rodrigues

21

Carlos Alberto Rodrigues da Silva

7

Fernando Manuel Rodrigues da Silva

3

António da Conceição Fernandes António João de Sousa António Nogueira Dialina Maria Pinto Torres Maria Adelina Pinto Torres

45 49 49 17 17

Fernando Nunes Sande

23

Gracinda Maria

50

Henriqueta Maria Fragoso

74

José Manuel Roque de Almeida

18 meses

Jorge Moisés da Conceição Roque

2 meses

Maria dos Santos

49

Maria dos Santos

20

Maria de Fátima Martins Neves dos Santos

21

Maria da Conceição Martins das Neves

10

Alípio Francisco Martins dos Santos

Irmãos

Funileiro

Irmãs

Mãe do pugilista Belarmino Fragoso

Bairro de Santa Maria (Paiã)

14 meses

Maria Emília da Silva

47

Maria Fernanda Pinto Figueiredo da Paz

23

Domingos Manuel Figueiredo da Paz

Servente Pai e filho. Viviam numa quinta perto do Bairro da Urmeira.

18 meses 254


Maria Gracinda

52

Maria Henriqueta Mestre Sineiro Martins

31

Maria Henriqueta Sineiro Martins

18

Maria Pereira de Carvalho Barreiros Marques Ana Maria de Carvalho Barreiros Marques

40

MĂŁe

3 meses

Filha

Victor Manuel Costa Gameiro

3

Criança Homem

20/30 ap.

Menino

4 ap.

Menino

12 ap.

Mulher

60 ap.

Mulher

60 ap.

Mulher

45 ap.

Mulher

20 ap.

Mulher Mulher

255


Concelho de Loures - Odivelas Póvoa de Santo Adrião, Olival Basto, Quinta da Quintinha, Quinta da Várzia (37 mortos, 34 identificados) Nome Idade Albertina da Conceição Ventura Ana Domingos Antunes Adelino Ferreira Garrido Amélia da Silva Ribeiro Garrido Adelino Ribeiro Garrido Maria de Fátima Ribeiro Garrido António Baptista da Silva Garrido Maria Filomena da Silva Ribeiro Carlos Jorge da Silva Garrido Cândido Ferreira Garrido Belarmina de Oliveira Emília Rosa Derriça Machado Fernando de Oliveira Ramos Florinda Maria Arroja Gracinda Jesus R. Gameiro de Oliveira Maria de Fátima Gameiro de Oliveira Joaquim Ramos Jerónimo Marta Seia Maria da Conceição Almeida Seia José Maria Lobo Barão Laura Santos Teixeira Luís Augusto Domingos Costa Manuel Gonçalves Rosa Gonçalves Maria de Castro Maria Luísa Ribeiro da Cunha Teixeira Maria Ferreira Maria Piedade Mota Marta Maria Amaral Paula Cristina Berto «Pé-leve» Prudêncio de Sá Laje Ramiro José Teixeira Costa Vitória Maria Homem Menina Mulher

74 63 43 36 10 9 7 5 2 37 30 41 7 68 26 3 70 56 58 42

70 42 33 18 75 80 29 3 meses 67 3 58 3 30 ap.

Póvoa de S. Adrião

Pai, mãe, 5 filhos e tio. Eram caseiros da Quinta da Quintinha na Póvoa de Santo Adrião. O irmão era inválido e tinha tido alta do Hospital dos Capuchos no próprio dia da catástrofe. Desta família, salvaram-se 3 filhos do casal.

Quinta da Várzea Quinta da Várzea Mãe e filha. Póvoa de S. Adrião Jornaleiro Marido e mulher. Pedreiro. Quinta da Várzea

Quinta da Várzea

Quinta da Várzea Família dos donos da taberna no Olival Basto Quinta da Várzea Era empregado da Mobil e tinha aquela alcunha Póvoa de S. Adrião Quinta da Várzea Quinta da Várzea Olival Basto. Estava a ver televisão numa taberna no Olival Basto. Era filha de um freguês. Usava casaco de malha encarnado e saia preta. 256


Concelho de Loures Loures/ Bucelas /Pintéus /Ponte de Frielas /S. João do Tojal (79 mortos, 66 identificados) Nome Idade Profissão Alice da Conceição Alice Maria da Conceição Alminha Alberto Alves de Oliveira Mulher

60 3

Maria Virgínia Cristiano de Oliveira

11

Maria Dolores Cristiano de Oliveira

11

António Castanheira António Ferreira Lopes António Porfírio Ana Cristina Sousa Ribeiro de Abreu António Lopes Bárbara Maria

58 44 39 21 meses

Belarmina de Oliveira Brízida Maria Brízida Cecília Brás Carapinha Cuba Catarina Rosa Mira Manuel Rosa Cuba Maria Rita Rosa Mira Carapinha Brás Garcia Carapinha Catarina Carapinha Cesariano Pinto Custódia Maria Valentim Filipe Felizberto Rufino de Campos Fernanda Maria Germano dos Santos Rolim Gracinda Jesus Rodrigues Gameiro

76 37 76

35 30 6 4 70 ap. 65 ap. 29 2 meses 37 7 45 26

S. João do Tojal Corpo por encontrar deste médico que era subdelegado de saúde da zona. Seguia no carro com as duas filhas gémeas quando foi surpreendido pela enxurrada tendo o veículo sido arrastado para o rio Trancão. As duas gémeas acompanhavam os pais numa viagem entre Pinheiro de Loures e Bucelas quando foram apanhados pela enxurrada. As duas irmãs foram encontradas, pelos bombeiros, dentro do carro, abraçadas e com as pastas da escola ao lado. (Diário de Notícias, 28 /11/1967)

Morreu afogada na cama onde se encontrava entrevada, em Ponte de Frielas. Tia e sobrinha.

Marido, mulher e filhos.

Marido e mulher. Avós?

Vestia o fato do baptizado.

257


de Oliveira Maria de Fátima Guilhermina Maria Lopes Henrique Caetano Dias Laurinda Gertrudes dos Santos Júlio dos Santos Dias Henrique Manuel dos Santos Dias Hélder Nunes Conceição Saúde Joaquim Amante Gregório

Mãe e filha. 3 55 30 28 7 2 40 67

José António Lourenço Venâncio

17

José Carlos Mendes de Castro José da Silva Carneiro José Rosa Serra

50 23 19

José de Sousa José de Sousa Júlio Caetano Júlio da Silva Brumeira Hernâni Vaz da Silva Brumeira José António Vaz da Silva Brumeira Manuel Gonçalves Manuel Gonçalves Manuel Joaquim Paulo Correia Manuel Joaquim da Praça Mouro Matado Manuel Rodrigues Maria Alice Martins Alminha Maria Cecília Maria da Conceição Maria da Conceição Silva Maria da Piedade Mota Maria do Céu Patrocínio Maria Jesus Capitão dos Santos Fernanda Maria Capitão dos Santos

40 67 7 43 3 6 40 ap. 70 45 34

Maria José Restolho Ferreira Germana Maria Restolho Ferreira Paulo Sousa Giade Rui de Oliveira Vicente Francisco Simões João Virgínia Pereira de Carvalho

17 10 60 45 23 36

45 3 85 37 51 82 20 10 7

Pai, mãe e filhos.

Bucelas Bombeiro voluntário da Corporação de Bucelas. Foi a última vítima mortal a ser identificada na imprensa. O seu corpo apareceu a 14 de Janeiro de 1968. S. João do Tojal. Funileiro. Bucelas. Bombeiro voluntário. Perdeu a vida quando participava nas operações de salvamento Loures

Pai e filhos. Ameijoeira

Sacavém

Irmãs

Irmãs

O marido e pai das crianças, António Teixeira de 258


Maria da Conceição Pereira de Carvalho Maria Helena Pereira de Carvalho Sebastião do Carmo Graça Cabaço Criança

12

Carvalho, enlouqueceu e foi transportado pela GNR para o Hospital Júlio de Matos.

9 62

Diário de Notícias, 27 Novembro de 1967, p. 9

Vivia em Alhos Vedros, mas estava na altura em Ponte de Frielas, onde faleceu.

18 ap. meses

Criança

A boiar nas águas

Criança

A boiar nas águas

Homem

35 ap.

Bombeiro voluntário

Homem Mulher Mulher Mulher Menina recém –nascida Corpo não identificado Corpo não identificado Corpo não identificado

50 ap. 35 ap. 60 ap. 70 ap.

Usava grandes patilhas Sacavém (Unhos)

Concelho de Alenquer (49 mortos, todos identificados) Nome

Idade

Adélia Rosa Rocha Colaço Albertina da Conceição Rabaça Desgarrado Maria Elisabete Cabaço Desgarrado de Almeida Maria Emília Desgarrado de Almeida Joaquina do Rosário Cabaço Desgarrado

27 37 3 4 29

Alexandrina da Conceição Parruca Ana Paula Mendes da Costa Maria Luísa Mendes da Costa

68 5 2

Antónia Carvalho Brás Maria Teresa Brás Ribeiro Maria Clotilde Brás Ribeiro Maria de Fátima Brás Ribeiro António da Conceição António José Póvoa Murteira

38 16 12 12 29 19 259


António Mendes dos Reis Carlos Alberto Lopes Carlos Joaquim Marciano Simões Clotilde de Assunção Lino de Assunção Henriques Conceição Pereira Esteves Dionísio Ribeiro Ermelinda da Conceição Ribeiro Gabriela Ribeiro Pereira Soledade Pereira Salvador Ribeiro Pereira Eduarda dos Santos Barroca Eduardo Pereira Irís Eliziária João Augusto da Silva José Arroja Simões José Domingos Paixão da Luz Pedro Manuel Nunes de Carvalho Manuel Rogério Martins Massano Maria Manuela Santo Clara Massano Anabela Santa Clara Massano Maria Adelaide Santa Clara Massano Rogério Lúcio Santa Clara Massano Maria do Céu Ribeiro Real Maria do Céu Rocha Rodrigues Maria Elisa Ferreira Marciano Maria de Lurdes Gomes dos Santos Maria José Brilha de Oliveira Ana Vitória Brilha de Oliveira António Raul Jorge Brilha de Oliveira António Mariana Ferreira Nuno Luís de Oliveira Grilo Vicente Oliveira Grilo Raul Correia Salvador Avelar Gonçalves

58 17 12 73 33 25 40 47 53 14 14 50 45 67 32 36 3 42 38 12 6 4 2 8 meses 4 33 39 30 3 5 61 32 28 56 32

260


Localidade

Concelho de Sintra - Queluz e Sintra (39 mortos, 24 identificados) Nome Idade Anabela Ferrão Cassilda de Jesus Pereira Neta Familiar Familiar Florbela da Silva Ferrão

4 68

Maria da Luz Alberto

71

José Pereira (bisavô) Ana Cristina Sousa Ribeiro de Abreu (bisneta) Queluz (21)

Queluz (21)

Profissão

Residia no prédio que abateu, o nº 221 da Rua Elias Garcia, onde morreram 4 pessoas.. 4

70 21 meses

Maria Cecília de Sousa Neves Ribeiro

14

Maria Emília Costa da Silva Maria da Piedade Rosário Adriano Salvador Maria do Rosário

64 48 45 4 meses

Maria da Piedade Martinho Maria da Purificação Azevedo Custódio dos Santos Natividade Conceição Ribeiro da Silva Emanuel de Jesus Ribeiro da Silva Fortunata da Conceição Ribeiro

46

Laura Gertrudes Simões Piedade Simões Serafim Isaac dos Santos

56 34 45

47

Carenque Residia numa barraca na Quinta do Araújo, nas imediações do Palácio. Sapateiro. O corpo foi encontrado na Ribeira do Jamor, no Sítio do Senhor da Serra. Estudante. Frequentava o 2º ano da Secção do Liceu Passos Manuel que funcionava em Queluz. Vítima da derrocada do prédio, na Rua Elias Garcia. O seu corpo só foi encontrado 17 dias depois da tragédia. Carenque

Mãe, pai e filha.

O seu corpo foi encontrado em Carnaxide no dia 1 de Dezembro.

26 7 43

O corpo de Emanuel foi descoberto nos jardins do Palácio Nacional de Queluz, a mais de 3 km do local da tragédia. Laura, a avó, era vendedeira ambulante de leite. O seu corpo apareceu pendurado numa árvore a mais de 300 metros de casa. Apareceu afogado no rio Jamor, na Cruz Quebrada. Era dono de uma barbearia. 261


Cacém (1)

Sintra (17)

António dos Santos Lisboa Júnior Carlos Manuel Correia Bártolo Maria da Graça Correia Bártolo Paula Cristina da Silva Bártolo Maria da Luz Alberto Maria do Rosário da Costa Oliveira Corpo por identificar Corpo por identificar Corpo por identificar Corpo por identificar Corpo por identificar Corpo por identificar Corpo por identificar Corpo por identificar Corpo por identificar Corpo por identificar Corpo por identificar Corpo por identificar

68 3 2

Irmãos. Aldeia de Lopas

3 meses 71 1 mês

Afogada no rio Carenque.

Recolhidos em Sintra, no dia 4 de Dezembro de 1967.

262


Nome

Concelho de Vila Franca de Xira - Alverca e Alhandra (58 mortos/ 57 identificados) Idade Profissão

Aida Monteiro Freitas

57

Albertina da Conceição Cabaça Desgarrado Alfredo Esteves António Augusto Duarte Pardal Armando Augusto Duarte Pardal

27

Cidadã brasileira. Vivia em Quinta da Bola em Alverca do Alentejo. Seguiu para o cemitério da freguesia de Alverca. Operária.

71 40 5

Reformado da Empresa Nacional de Penteação de Lãs. Pai e filho. Seguiram para o cemitério da freguesia de Calhariz.

Apolinário Marques Pinheiro

42

Maria Rita Perdigoto António Perdigoto Pinheiro Pinheiro Assunção de Sousa Canito Ferreira

42 20

Pai, mãe e filho. Viviam na Quinta da Bola. Seguiram para o cemitério da freguesia de Alverca.

51

Augusto de Oliveira Valada Guedes

70 6 5 7 8

Seguiu para o cemitério da freguesia de Alverca Vale da Pedrosa. Seguiu para o cemitério da freguesia de Alverca Vale da Pedrosa Irmãos. Freguesia de Calhandriz. Seguiram para o cemitério da freguesia de Calhandriz

Carlos Manuel Pereira Nunes Constantino Manuel Avelar da Cruz Dália Maria Avelar da Cruz Rui Manuel Avelar da Cruz

Deolinda Penas Dionísio

36

Maria Luísa Dionísio de Carvalho

4

Domingos Manuel Fialho Emília Rodrigues da Silva Fernando da Fonte Calçada Francisco Quion-Quion Francisco Ferreira Francisco Soares Ferreira Isabel Tonelo

28 51 17

Jerónimo Correia Piedade Condessa Joaquim de Carvalho Joaquim Vaz Pinheiro

55 52 78 58

60 74 56

Mãe e filha encontradas na lama de uma quinta junto às Oficinas Gerais de Material de Aeronáutica. Só o pai se salvou. Viviam no Vale da Pedrosa. Vale da Pedrosa. Seguiu para o cemitério da freguesia de Alverca. Alhandra Estrada da Subserra. Alhandra Alhandra Alhandra Quinta da Bola. Seguiu para o cemitério da freguesia de Alverca. Marido e mulher. Seguiram para o cemitério da freguesia de Alverca. S. João dos Montes. Alhandra - Electricista Quinta do Cochão. Encontrado na lama de uma quinta 263


junto às Oficinas Gerais de Material de Aeronáutica. José Agostinho dos Santos Nervina Martins Alves Natália Alves dos Santos

25 22 2

José Carlos Ramos Basílio José Veríssimo Anacleto Manuel Borges Manuel do Carmo Manuel Lourenço Manuel Mateus de Jesus Lourenço Jaime Vicente de Jesus Lourenço Manuel Neto Manuel Pereira Manuel Pereira Manuel Roque de Carvalho Maria Clara dos Santos Moura Manelinho Maria Conceição Pinheiro Maria Conceição Sousa Maria Felícia Amaro Pascoal Maria Gabriela Soares Palhinha Ana Maria Soares Palhinha Maria Ferreira Maria Isabel Ribeiro da Conceição Maria José de Sousa Maria Luísa da Conceição Cocheno

14 53 64 75 44 11 8 72 78

Maria Luísa Mangas Nazaré da Conceição Matos Piedade da Conceição Emília Rodrigues João Paulo Silvana da Assunção Pinheiro

76 60 66 44 2 53

Homem

69 23 47 16 13 11 75 3 84 18

45/50

Pai, mãe e filha. Alhandra. Cadete dos Bombeiros de Alverca e residente em Alhandra. Foi atingido por uma descarga eléctrica. Alhandra. Estrada da Subserra. Alhandra Alhandra - Comerciante Pai e filhos. Seguiram para o cemitério da freguesia de Alverca. Alhandra – Reformado da «Ribatejana» Alhandra – Aposentado da Armada Alhandra - Empregado de comércio Alhandra Seguiu para o cemitério da freguesia de Alverca. S. João dos Montes Alhandra Seguiu para o cemitério do Rosmaninhal Seguiram para o cemitério da freguesia de Alverca. Vialonga Estrada da Subserra. Seguiu para o cemitério da freguesia de Trancoso (Beira Alta) Alhandra Estrada da Subserra. Avó, nora e neto. Alhandra Vale da Pedrosa Baixo, forte, de cabelo preto e curto com entradas muito grandes. Com 1,60m de altura. Foi encontrado na margem esquerda do Tejo, entre Figueirinhas e Faial.

264


Concelho de Vila Franca de Xira - Castanheira do Ribatejo (53 mortos/ 40 identificados) Adélia Rocha Rafael Alberto Ribeiro da Silva América da Conceição Tiago António da Conceição Correia António da Conceição Garcia Carlos Augusto Pimenta Machado Deolinda da Assunção Jeremias Gomes Miguel Joaquim Ramos de Oliveira António Joaquina do Rosário Cabaço Joaquina Pereira João Augusto Anacleto da Silva João da Silva Vadio Celeste João Vadio José Carlos Arrojo Simões José Carlos Simões Leonice Cantoneiro Manuel Cantoneiro Lino de Assunção Henriques Maria Adélia Carreira Manuel Antunes Manuel Nunes Carvalho Maria Caracol Maria Celeste Caracol Maria de Fátima Ribeiro Maria Gormezinda Galveia Avelino Ermelinda Maria Galveia da Silva Maria de Jesus Maria do Céu Maria do Céu Rafael Henriques Lino da Assunção Henriques Maria José Rodrigues Carvalho Maria Luísa Maria Teresa Vicente Oliveira Prelo Mariana da Conceição Nazaré da Conceição Matos Nuno Luís de Oliveira Raul da Silva Correia

69 18

17 19 19 62 32

39

60

36 7 53 4

Mãe e filha

14

60 56 265


Soledade Bartolomeu Teresa Libertino Homem Homem Menina Corpo não identificado Corpo não identificado Corpo não identificado Corpo não identificado Corpo não identificado Corpo não identificado Corpo não identificado Corpo não identificado Corpo não identificado Corpo não identificado

50 ap. 60 ap.

Encontrado no apartamento

Concelho de Vila Franca de Xira – Quintas (83 mortos identificados e número desconhecido de corpos por identificar) Adelaide da Purificação Adelaide da Assunção Adérito da Silva Rodrigues Adriano Vicente Agostinho Luís Ferreira Almerinda Jesus Silva Anabela Elias Vicente /Pereira Costa Vicente André Fernando Vicente Ferreira Angélica Rosa Ramalho Antónia das Dores António Coelho da Graça António Pereira Carlos Alberto Gomes Bernardo Casimira Pereira Elias Casimiro Vicente Cecília Luís da Conceição Vicente Celeste Rosa Monteiro Daniel Pereira Ferreira /Daniel Pereira Vicente Elisa Rosa da Silva Vicente Elvira Ascenção Pereira Vicente da Graça Elvira da Conceição Pereira Cleto Esmeralda Jesus Silva

64 59 11 56 58 42 4 7 44 66 30 72 16 65 77 63 34 51 28 45 37 266


Germana Pereira Garcia Gertrudes Assunção Figueiredo Graça Maria Vicente Ferreira Guilhermina Vicente Idálio Monteiro Vicente Isabel Pereira Isilda da Purificação Vicente João José da Silva Joaquim José Pereira Pires Joaquim Pereira

42 83 1 74?

Joaquina Conceição Pereira Dias Joaquina Pereira Seixas José Alexandre Carvalho Monteiro José Carlos dos Santos Pereira

49

José da Silva José Domingos Paixão da Luz Pedro José Manuel Pereira Pires José Pires Monteiro Duarte José Vicente da Silva José Vicente Júnior Julieta Gomes Lopes Bernardo Leonor dos Santos Batista Pereira Luzia de Assunção Pereira Manuel Nunes Caldeira Lopes Manuel Pereira Maria Angélica Pereira Teófilo Maria Celeste Jesus Monteiro Maria da Conceição Maria da Conceição Carvalho Maria da Conceição Jesus Maria da Rosa Maria Elvira dos Santos Pereira Maria Emília da Conceição Pereira Maria Emília Santos Pereira Pires Maria Estrela Nunes Mascote Maria Gertrudes Ferreira Vicente Maria Gertrudes Garcez Maria Isabel Pereira Maria João da Purificação Monteiro Maria José Rodrigues Carvalho

54

50 51 77 1 80

4 25

Tinha combatido nas trincheiras de França na I Grande Guerra.

Tinha golpes na testa e na mão. Deve ter lutado para sair pela janela de casa, mas não conseguiu.

7 69 19 39 57 54 35 57 25 18 81? 47 60 81 30 18 51 37 6

267


Maria Leonice Garcez Lopes Maria Luísa da Conceição Carvalho Maria Manuela Ferreira Vicente Maria Teresa Carvalho Monteiro Maria Teresa Casimira Pereira Elias Maria Teresa da Conceição Silva Maria Teresa Pereira Pires Maria Vicente Mariana Assunção Figueiredo Vicente Mário Pereira Elias Mário da Silva Rodrigues Maximiliano Jesus Vicente Olga Elias Vicente/Pereira Costa Vicente Otília Duarte Crua Mascote Paulino Garcia Paulo Vicente da Graça Rui Manuel Vicente da Graça Sofia da Purificação Teresa da Conceição Teodolinda da Assunção Ribeiro Virgílio António Pereira Outros não identificados

11 28 31

14 8

42 53 3 meses 30 76 2 7 77 65 80 69

268


Familiares de Luísa Fajardo (avô, avó, irmã, tios e primos) – 25 Adelaide da Assunção Adelaide da Purificação Adelina da Conceição Adriano Vicente Anabela Elias Vicente /Pereira Costa Vicente Antónia das Dores António Coelho da Graça Carlos Alberto Gomes Bernardo Casimira Pereira Elias Casimiro Vicente Elisa Rosa da Silva Elvira Ascensão Vicente da Graça José Pires Monteiro Duarte José Vicente da Silva Julieta Gomes Lopes Bernardo Maria Angélica Pereira Teófilo Maria Estrela Nunes Mascote Maria Teresa da Conceição Silva Maria Teresa Casimira Pereira Elias Mário Pereira Elias Olga Elias Vicente/Pereira Costa Vicente Otília Duarte Cruz Mascote Paulo Vicente da Graça Rui Manuel Vicente da Graça Teresa da Conceição

59 64 88 56 4 66 30 16

Relações familiares entre as vítimas: Bisavós, avós, pais, filhos, netos, bisnetos, tios e primos.

65 51 28 69 19 39 25 18 14

José Pires Monteiro Duarte ????? Avô de Luísa Fajardo. Apareceu só ao fim de 9 dias.

Maria Teresa da Conceição Silva Irmã de Luísa Fajardo.

21 3 meses 30 2 7 65

Teresa da Conceição Avó de Luísa Fajardo.

Mário Pereira Elias Tinha 21 anos e era soldado. Prestava serviço em Beja, mas fora passar o fim-de-semana a Quintas, para ver a irmã, a mãe das crianças. O seu corpo seguiu para o cemitério de Sines de onde era natural. Deste núcleo familiar, só o pai de Anabela e Olga (Olímpio de Costa Vicente) sobreviveu Para tal, teve que rebentar o estuque do tecto, para abrir um buraco por onde escapou. Tentou agarrar as filhas, mas a força da corrente era muito forte. O Século, 27 de Novembro de 1967, p.10

Salustiano da Costa Mascote Sobreviveu porque que dormia na adega ao lado da casa. Com a água, a cama onde dormia subiu, permitindo que ficasse agarrado à trave do tecto da adega. Testemunho de Luísa Fajardo

269


Arruda dos Vinhos, Azambuja, Barreiro, Sobral de Monte Agraço (28 mortos/ 10 identificados) António Rodrigues Júnior Augusto Guedes Morgadito Maria de Jesus Henriques Morgadito Adelina Maria da Silva Morgadito

Arruda dos Vinhos

60 Avó (69), filha (38) e neta (5)

Francisco Vieira Padeiro

28

José da Conceição Carvalho

41

José Quintino Lourenço

49

Maria Martins da Silva

69

Paula Lima da Silva

59

Corpo não identificado Corpo não identificado Corpo não identificado Corpo não identificado Corpo não identificado Corpo não identificado Corpo não identificado Corpo não identificado Corpo não identificado Corpo não identificado Corpo não identificado Corpo não identificado Corpo não identificado Azambuja

Mulher

Aparentava 20 anos

Barreiro

Criança

Aparentava 6 a 7 anos

Sobral de Monte Agraço

Elvira Baptista Cacilhas

47 anos. O seu corpo só foi descoberto 5 meses após as cheias, na região de Arruda dos Vinhos.

Corpo não identificado Corpo não identificado Corpo não identificado

270


Bibliografia

271


BIBLIOGRAFIA

1.TESTEMUNHOS - Entrevistas, depoimentos e conferência na Biblioteca Municipal de Algés Entrevistas em Algés e Paço de Arcos Colóquio «Rios de Lama» em Oeiras Entrevista em Quintas (registos efectuados entre 2015 e 2017) ADELINO CORADINHO, testemunho recolhido por Maria Sam Pedro, Março de 2016. ALICE TEIXEIRA, testemunho recolhido por Maria Sam Pedro, Fevereiro de 2016. ANA PAULA TORRES, Junho de 2017, depoimento escrito. ANTÓNIO REIS LUZ, testemunho recolhido por Helena Abreu, Maio de 1967. CONCEIÇÃO O’NEIL, Registo áudio, Biblioteca Municipal de Algés, Maio de 2016. ELIZABETA AGUARDELA, Registo áudio, Biblioteca Municipal de Algés, 9 de Outubro de 2015. ELIZABETA AGUARDELA, Vídeo Histórias de Vida, Biblioteca Municipal de Algés, 9 de Outubro de 2015, realizado por Ana Santos. EUGÉNIA GAMEIRO DAS NEVES, testemunho recolhido por Paulo Gameiro das Neves, Maio 2016. EZEQUIEL GAMEIRO DAS NEVES, testemunho recolhido por Paulo Gameiro das Neves, Maio 2016. JOÃO BERNARDO in «A politização dos estudantes durante o Estado Novo – o caso das cheias de 1967», Conferência realizada a 28 de Maio de 2016. JOÃO AUGUSTO CARRIÇO SANT’ ANA, testemunho recolhido por Helena Abreu, Maio 2017. JOSÉ ANTÓNIO LEITÃO, testemunho recolhido por Helena Abreu, Maio 2017. JOSÉ MARIA FLORÊNCIO, testemunho recolhido por Helena Abreu, Maio 2017. JOSÉ NUNO PACHECO PEREIRA, Maceió, Brasil, testemunho recolhido por Helena Abreu, Maio 2017. JOSEFINA VIEIRA, testemunho recolhido por Ana Paula Torres, em Setembro de 2017. HELENA ABREU, depoimento escrito, Setembro de 2016. LAURA SANTOS AUGUSTO, testemunho recolhido por Ana Paula Torres, Setembro de 2017. 272


LAURENTINA PEREIRA, testemunho recolhido por Maria Sam Pedro, Março de 2016. LUÍSA FAJARDO, testemunho recolhido por Ana Paula Torres, Janeiro de 2018. MANUELA BARRETO, testemunho recolhido por Helena Abreu, Maio de 2017. MANUELA MOTA, testemunho recolhido no Colóquio «Rios de Lama» em Oeiras a 25 Novembro 2017. PADRE FERNANDO DA SILVA MARTINS, testemunho recolhido por Maria Sam Pedro, Março de 2016. PAULO GAMEIRO DAS NEVES, registo áudio, Maio de 2016. VIRIATO PEREIRA, testemunho recolhido por Maria Sam Pedro, Fevereiro de 2016.

2.TESTEMUNHOS - Obras impressas

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Arquivo Histórico da Câmara Municipal de Oeiras: Actas das Sessões da Câmara Municipal de Oeiras de 25 de Novembro de 1967 a 28 de Dezembro de 1970, Livros de Actas nº 79, 80, 81, 82, 83, 84, 85, 86. Arquivo Histórico da Câmara Municipal de Oeiras. Cheias no Concelho de Oeiras 1962/2008, Recortes de Imprensa, Câmara Municipal de Oeiras, Vol. II, SSI, 2008, Arquivo Histórico da Câmara Municipal de Oeiras. Correspondência expedida pelo Presidente da Câmara Municipal de Oeiras, 15661-16050 (23 Nov a 4 de Dez), 16051 -16540 (4 Dez a 15 Dez), 16541 – 17050 (15 Dez a 27 Dez), Arquivo Histórico da Câmara Municipal de Oeiras. Correspondência expedida pelo Presidente da Câmara Municipal de Oeiras, nº C/16 091 / 67 de 5 de Dezembro de 1967, Arquivo Histórico da Câmara de Oeiras. Correspondência expedida pelo Presidente da Câmara de Oeiras nº 16 904/67, 16 706, 16 814, 16 815, 16 816, 17 032 de 18, 20, 21 e 26 de Dezembro de 1967. Correspondência expedida pelo Presidente da Câmara Municipal de Oeiras, nº C/16 093 / 67 de 5 de Dezembro de 1967, Arquivo Histórico da Câmara de Oeiras Correspondência expedida pelo Presidente da Câmara de Oeiras ao Chefe de Gabinete do Ministro do Interior, resposta a pedido de informação, nº 16 748/67 de 20 /12/1967, Arquivo Histórico da Câmara de Oeiras. Correspondência expedida pelo Presidente da Câmara Municipal de Oeiras ao Governador Militar de Lisboa, 5 de Janeiro de 1968, Arquivo Histórico da Câmara Municipal de Oeiras. Correspondência expedida pelo Presidente da Câmara Municipal de Oeiras ao Ministro do Interior, nº 16 062/67 de 4/12/1967,Arquivo Histórico da Câmara Municipal de Oeiras. Correspondência expedida pelo Presidente da Câmara Municipal de Oeiras ao Notícias da Amadora, nº 16 091/67 de 5/12/1967,Arquivo Histórico da Câmara Municipal de Oeiras. Inundações no Concelho de Oeiras, Câmara Municipal de Oeiras, Arquivo Histórico da Câmara Municipal de Oeiras. Pasta Memória Descritiva com Planta,1968, Arquivo Histórico da Câmara Municipal de Oeiras. Reunião Extraordinária da Câmara Municipal de Oeiras de 27 de Novembro de 1967, Maria Manuela da Costa Guedes, Bibliotecária Arquivista, Arquivo Histórico da Câmara Municipal de Oeiras.

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Actividade dos Serviços de Informação da Legião Portuguesa. Relatório SI Nº8- Novembro de 1967, Arquivo Salazar, Correspondência. Actuação das Instituições de Previdência para auxílio às vítimas das Inundações de 25 de Novembro de 1967. Relatório, 1968 - Circular nº 117/67, nº 1 e Circular nº 123/67, nº 3 - Direcção- Geral de Previdência e Habitação Económica. Agradecimento da Associação Industrial Portuguesa, pelas providências tomadas pelo Governo para enfrentar os prejuízos causados no sector industrial, pelas inundações que assolaram a região de Lisboa, 1967, Arquivo Salazar, Correspondência. Boletim de Informação do Comando-Geral da Polícia de Segurança Pública (Confidencial), Ministério do Interior, Nº 11/67, Período 1 Nov /30 Nov 1967, Arquivo Salazar, Correspondência. Censura do Jornal «Comércio do Funchal», 1968, Arquivo Salazar, Correspondência. Comunicado, As Associações de Estudantes. A Juventude Universitária Novembro de 1967, Arquivo Salazar, Correspondência.

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Arquivo Nacional da Torre do Tombo / Arquivo da PIDE/DGS: Pastas da Delegação de Coimbra da PIDE/DGS – Pastas. NP 10470, «Propaganda Comunista da União Internacional dos Estudantes endereçada à Via Latina». NP 10470, Pasta 8, «Direito à Informação- Boletim». NP 10470, Pasta 14, «Movimento Sindical Estudantil».

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3. Bibliografia Geral BARBOSA, Ana; ALVES, Francisco; AZEVEDO, José; LOBO, Margarida; VILLAS-BOAS, Pedro, OCUPAÇÃO do Bairro do Bom Sucesso em Odivelas, por 48 famílias de barracas, Afrontamento, Porto, 1972 GARCIA, Maria Madalena, Arquivo Salazar. Inventário e índices, Imprensa Universitária, nº 94, Editorial Estampa, Biblioteca Nacional, 1992 RAPOSO, Raquel; LOURENÇO, José Leitão; SANTOS, Alberto, A NOITE MAIS LONGA história e memória da cheia de 25-26 de Novembro de 1967, Alencultura editorial, Alenquer, 2017. RODRIGUES, António Simões (em colab.), História de Portugal em Datas, Temas e Debates, Lda Autores, 1996.

FOTOGRAFIAS

Arquivo Fotográfico da Fundação Calouste Gulbenkian, Colecção Fotográfica. Serviço de Comunicação Saúde e Protecção Social. Arquivo Fotográfico da Fundação Calouste Gulbenkian, Colecção Fotográfica. Serviço Projectos e Obras [Palácio de Oeiras] [Inundações de 25 para 26 de Novembro de 1967]. Censura 16, Inéditos do Arquivo de Censura do Notícias da Amadora (1958-1974), Nº 5, 31 de Janeiro de 2002 (DOC - Documentos Orlando César). Foto Artebela, Fotógrafo Ilídio Espada Teixeira, Algés.

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VÍDEOS

Histórias de Vida, Ana Santos, Biblioteca Municipal de Algés, 2016 https://www.youtube.com/watch?v=cF3Ccgp2oRk Miguel Ferreira , https://www.youtube.com/watch?v=sH0pI3Om1uk Odivelas Slideshow, https://www.youtube.com/watch?v=2S1JRAyy_d8 RTP Cheias de 1967, https://www.youtube.com/watch?v=_YxQCHexxwg. RTP1, «O tempo que faz», reportagem de Helena Matos, 24 de Novembro 2017. SIC Notícias, «Cheias de 1967 – 50 anos», 24 e 25 de Novembro de 2017

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Ana Paula Teixeira Torres é licenciada em História, pela Universidade de Letras de Lisboa e Mestre em História Social Contemporânea, pelo ISCTE. Foi professora do Ensino Básico e Secundário durante quase 38 anos. Trabalhou em Lisboa, Grândola, Algés, Montijo, Linda-a-Velha, Amadora, S. João do Estoril e, nos últimos 20 anos, em Paço de Arcos, na Escola Secundária Luís de Freitas Branco. Vive no concelho de Oeiras desde 1985, na localidade de Paço de Arcos, mas tem sido em Algés que tem desenvolvido uma série de iniciativas culturais. Desde 2014, tem estado integrada no projecto «Histórias de Vida» da Biblioteca Municipal de Algés que, visando a partilha de histórias e de memórias individuais, evoluiu para a construção das memórias colectivas de Algés e de outras localidades do concelho de Oeiras. Integrada naquele projecto, participou também no «Museu Instantâneo» que, no dia 16 de Junho de 2017, juntou várias gerações no Palácio Anjos, em Algés, para uma partilha alargada de histórias, contadas a partir de objetos que as representavam. O seu vínculo cultural a Algés foi ainda reforçado com a sua ligação à ACSA-USILA ( Associação Cultural Sénior de Algés-Universidade Sénior e Intergera cional de Algés), onde integra o Grupo de Cavaquinhos e o Grupo de Violas, participando em iniciativas daquela instituição. Eleições, Eleitores e Elites Políticas do Concelho de Oeiras (1908 – 1926). Um contributo para o seu estudo foi o seu primeiro trabalho científico, no âmbito da História. Esta obra faz-nos atravessar os tempos até ao ano de 1908. Estávamos no estertor final da Monarquia. Depois, chegava a República. O concelho em turbulência. Os Monárquicos desapareciam do concelho, como já tinham desaparecido do país e instalavam-se os Republicanos.

As «Gotas de Ar Frio» que inundaram, a Grande Lisboa. Memórias das Cheias de Novembro de 1967. O Concelho de Oeiras é o seu mais recente trabalho, no âmbito da História. Se, enquanto cidadã, intervém na partilha de histórias com outros munícipes, enquanto investigadora, continua a privilegiar a história local, tratando temáticas que se inserem, fundamentalmente, no domínio do social e do político.

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