O Corpo Produtivo. Escritos sobre a industrialização da vida.

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O corpo produtivo: escritos sobre a industrialização da vida

Ana Reis


A Industrialização da Vida: um Ponto de Vista de uma Dona de Casa

Era uma vez um tempo em que fruta dava no pé, peixe na água e criança no ventre fecundado das mulheres. • Um dia chegaram os donos da terra, das sementes e dos fertilizantes e viram que o leite dos seios, os espermatozóides, os óvulos, os embriões também podiam lhes pertencer. Era uma vez um tempo em que a comida era muito barata. Tão barata quanto as bananas. Era tudo a preço de banana. Naquele tempo, yes, nós tinhamos muitas bananas: banana d’água, banana maçã, banana da terra, a SãoTomé, a banana ouro e a enorme banana nanica. Compradas nas feiras, às pencas, às dúzias, aos cachos. E havia pitangas, carambolas, pinhas, jabuticabas, mangas. Manga rosa, manga espada, manga coquinho. Na França nunca nasceu manga, mas aqui tinha até a manga bourbon. 3


Um dia vieram os supermercados. Então o caos da feira. cheia dos cheiros, de gente se esbarrando, misturando pernas, olhares, sentidos (é gostosa, prova que é gostosa), foi ordenado nas fileiras e catracas do supermercado. Grande, moderno, prático: super. Um lugar onde todos estão sós. Um lugar onde não se cheira, não se apalpa, não se prova. As balanças impõem quilos, gramas exatas. Impossível pechinchar, pedir “um choro”. Tudo já foi organizado para você self chegar de carro, self pegar um carrinho e rolar maciamente pelo mundo encantado da imagem. Nas embalagens as fotos e os desenhos mostram muito mais que mercadorias: o leite desnatado emagrece, o chocolate em pó é uma festa, o ovo sem colesterol cura o que o stress que o dia-a-dia-dia super rápido contraiu nas suas artérias. Os grãos já foram empacotados, os líquidos aluminizados. Tudo já foi escolhido: os amassados, os podres, você mesma joga fora em casa. Sem reclamação.

Certamente são raras as pitangas e as jabuticabas nos supermercados; essas frutas de antigamente, se compram nas ruas, no Nordeste, é claro, que é o lugar do antigamente do país. O supermercado não é, evidentemente, o único culpado pela abolição da variedade das comidas. Ele é parte integrante da maneira de produzir e comerciar que se tornou dominante. O supermercado é, sobretudo, nossa grande vitrine. Matéria prima, marca registrada • Era uma vez um tempo em que a comida vinha da terra. Havia as estações do ano, as fases da lua, as marés. Havia até os ciclos menstruais e as culturas eram feitas em sistemas de rotação. Desse ciclo fazia parte o repouso da terra. A fertilidade era personificada em divindades, as colheitas festejadas. Com namoro, vinhos e danças de roda. Os ciclos e os círculos. Diz-se, hoje, que naquele tempo se estava à mercê do tempo, mas certamente foram as guerras que causaram mais fomes e pestes.

Mas nada paga o conforto super. Faça frio ou faça sol, o ar é o mesmo: condicionado. Inverno ou verão, as mesmas frutas: climatizadas. Sem efeitos colaterais.

Bem antes que um monge no seu ócio sagrado começasse a plantar ervilhas, alguém havia domesticado os animais e as plantas, escolhido as mais resistentes mas nem por isso haviam destruído a variedade. Mas isso não era científico, porque como todo mundo sabe, isso era coisa de mulheres.

Se perderam o gosto e o perfume, ganharam muito em tamanho e beleza; basta ver os morangos, os tomates e as cenouras.

Como se lembra, um dia chegaram os donos da propriedade privada e se apossaram das terras e das mulheres.

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Mais tarde, das sementes. Como sementes se multiplicam, resolveram patenteá-las.

Sem efeitos colaterais. Erosão, contaminação de animais, dos alimentos, das águas, isso se arranja.

Do lado sem pecado do equador, onde nasceram e nascem quase todas as sementes do que se come e do que se transforma, elas se chamam patrimônio genético da humanidade.

Você mesma joga fora em casa. O leite materno que vem com DDT é um preço que se paga sem reclamação. Aguarde para breve, bactérias feitas em laboratórios especialmente para limpar o ambiente.

Do lado de cima, onde se modifica, industrializa e patenteia essas sementes, elas se chamam germoplasma, têm donos, são engenheiradas em laboratórios. As sementes, como outros bens, são estocadas em bancos. Quase 90% do material genético armazenado a longo prazo localiza-se na Europa e na América do Norte. Os países da América Latina e Africa contribuem com 57% desse “material genético”. Somando com a ‘ doação” asiática dá 91%. Quem se beneficia do estoque desses bancos? A América do Norte fica com 24%. A Europa Ocidental com 16%. Voltam para a América Latina 6,3%, para a Africa 4,6% e 4,2% para a Ásia. Esses são os países pobres e os países ricos. Ou o contrário, segundo se está do lado de cima ou debaixo do Equador. Assim como foram abolidas as feiras e o supermercado se impôs, o modo de plantar sofreu o que se chamou de “Revolução Verde”, uma invenção Rockefelleriana. Em vez de depender do sol, das chuvas, das aves e dos ventos, a terra passou a ser climatizada pelas estufas, irrigada pelas bombas, fertilizada pelo laboratório. 6

Encomende as comedoras de DDT e coloque no iogurte. Bebês Serono, Bradescoesperma. • Era uma vez um tempo em que fruta dava no pé, peixe na água e criança no ventre fecundado das mulheres. Um dia chegaram os donos da terra, das sementes e dos fertilizantes e viram que o leite dos seios, os espermatozóides, os óvulos, os embriões também podiam lhes pertencer. E disseram às mulheres que seu leite era fraco, que seus genes tinham defeitos. E chegaram os hormônios, o leite em pó, as mamadeiras e as incubadoras. E fizeram espéculos, fórceps, ultrasons, congeladores de óvulos, de esperma, de embriões, sondas de DNA. Quem ousa hoje parir em casa sem um aconselhador genético, um pediatra, um perinatologista, um periconceptologista, um esterileuta, um anestesista? Você é quem faz, mas o parto é “Leboyer”, o embrião é pago, a conta é cara. Tudo devidamente patenteado: do vírus da AIDS às sementes vegetais e animais. Brevemente as humanas. 7


Tem banco de esperma de Prêmio Nobel, prêmio Nobel de química privatizando genes humanos: Walter Gilbert, de Harvard. Da Myriad também. Que detém a patente dos genes do teste de câncer de mama que fez a Angelina Jolie de vitrine. Quem vai dizer que prêmio Nobel é merchadising para as Corporations? Quem vai dizer que cientista pode rimar com fascista? Jeshua Lederberg, prêmio Nobel de fisiologia e medicina, acha que a produção de seres humanos em série, através da clonagem é um meio eficaz de produzir seres superiores. W. Shockley, que doou para um banco seu esperma Nobel, acha que os indivíduos de QI baixo devem ser esterilizados. Charles Richet, Nobel de medicina em 1913, escreveu: “eu não compreendo por qual aberração pode-se assimilar um negro a um branco”. E propôs que se criasse entre as raças que povoam a terra uma verdadeira aristocracia: a dos brancos, de raça pura, não misturados com os “detestáveis elementos étnicos que a Africa e a Ásia introduziram entre nós”.

to, fornecedoras de matéria prima para o sistema de produção do bionegócio. E sabemos bem o que significam “bancos”. Sem reclamação. Os riscos das doses pesadas de hormônios fabricados pelas ratas recombinantes não aparecem nas fantásticas notícias do milagre tecnológico. Nem as mortes e o sofrimento dos gêmeos, trigêmeos, quadrigêmeos de proveta em série. Tecido embrionário humano patenteado estará à venda às claras muito em breve, e custará caro, assim como já custam caro o ovo caipira, a água mineral, o tomate sem veneno. Nas prateleiras super do mercado “cientifico”, embriões perfeitos virão com “garantia” contra câncer, doença mental, desadaptação social. As ratas recombinantes fabricadoras de hormônios, as bactérias engenheiradas fixadoras de nitrogênio, as comedoras de óleo, os porcos transgênicos produtores de insulina humana trabalham sem trégua.

Em 1919, quando escreveu isso, não havia amnioscopia, exame do vilo coriônico, pré-determinação do sexo, Norplant, vacina contra a gravidez, campos de esterilização, Banco Mundial, FMI, OMS, FNUAP, UNICEF, etc...

O grande exército de mão-de-obra do século XXI não se organiza em sindicatos. De recombinação em recombinação, vai contaminar o ar, a terra, as águas.

O germoplasma do Terceiro Mundo vem sendo selecionado, engenheirado, estocado em banco, vendido a preço de ouro.

Mas isso se resolve. Como se resolveu Chernobyl, Goiás e Fukushima: sem reclamação.

Armazéns de óvulos e embriões congelados, as clínicas de reprodução “assistida” são chamadas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária, a Anvisa, de “bancos de células e tecidos germinativos”.

Como já nos acostumamos a viver de imagens, o real não nos atinge. O Fantástico e as folhas de São Paulo legitimam os avanços da ciência em seus competentes press- releases.

O sistema de vigilância desse “germoplasma” estocado nesses “bancos” se chama Sistema Nacional de Produção de Embriões. As mulheres são, portan-

Os brinquedos e desenhos animados preparam o inconsciente das crianças para o futuro que se fabrica nos laboratórios: seres híbridos muito úteis,

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replicantes heróis, computadores e robôs que se emocionam, gente virando máquina e, é claro, policiais sagrados e militares heróicos. O acaso, a diversidade, os ciclos, são inimigos do processo industrial de massa. O planejamento e a previsibilidade pensam em linha reta. Como a arquitetura totalitária ditadora dos espaços. Precisamos eliminar as ruas, decretou Le Corbusier. E Brasilia deu no que deu. Nossa capital de proveta. Longe de cheiros, de olhos, de gente se misturando, de multidões protestando. Vitrine da sociedade re-produzida. Tem gente que gosta. Como gosta de ketchup, de check-up, de fast-food e diz que a vitamina do laboratório é melhor que fruta chupada no pé. Eu prefiro ar puro, água sem cloro, janela sem grade. E gostaria muito que as crianças das próximas décadas contassem para as netas delas que os gregos chamavam de hybris a perda da medida, que as quimeras eram pesadelos, que os heróis se imortalizaram simbolicamente na luta contra essas criaturas híbridas.

A desmesura dessa fome já custou muito sangue dos povos indígenas, muito sangue dos povos africanos. E continua custando as vidas de seus descendentes. Devora as florestas, as espécies animais, o ar e as águas. Não existe laboratório que vá dar conta de fabricar substituto - em extinção estamos todos - como as baleias e o mico leão. Mas já tem gente que sabe tudo isso e não tem medo de afirmar que o rei tem medo e que os cientistas têm patrões. Qualquer uma e qualquer um pode - no sentido de ter poder - afirmar que tudo tem limite: as pessoas, o planeta. Esse limite é a nossa humana condição e a aceitação da medida é por onde passa o caminho de sua superação. A tal da transcendência. É o que penso, enquanto dona de casa.

E que a medida-metron-nada mais é que o nosso humano corpo. Tem quem vá morar no espaço, comer comprimido, respirar de canudinho. Querem fazer parecer que é possível, desejável e há quem diga que esse é o destino dos humanos. • Sem Américas a colonizar, façamos o cosmo rentável. 10

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“barca de Pedro”, um símbolo nítidamente uterino?

O GêNERO DO PAPA (será o Benedito?)

O Cardeal Ratzinger, encarregado, em 2004, pela Congregação para a Doutrina da Fé (conhecida antigamente como Inquisição) de redigir um documento dirigido aos bispos da Igreja sobre a “colaboração do homem e da mulher na Igreja e no mundo”, condenou o feminismo e a ideologia de gênero. Argumentava que a diferença natural de sexos tem que ser respeitada e que a ideologia de gênero equipara a homossexualidade à hetero, pela possibilidade de opção de gênero. Aproveitou para acusar as feministas de promover a guerra entre os sexos e de destruir a família. Sua Santidade está certíssima. A idéia de gênero não é uma boa para a Santa Madre. As diferenças entre sexos devem se aferrar aos destinos traçados pelos genitais. E assim se manterem definidos, homens e mulheres e seus papéis na Igreja e no mundo. Como Deus designou e todo mundo sabe, úteros lavam roupas e testículos pensam. Onde iríamos parar se, por uma opção de gênero os homens usassem saias, adereços dourados, se rodeassem de rendas, paninhos bordados, echarpes franjeadas caindo sobre as batinas, vestissem rôxo, falassem com aquela vozinha anasalada e falsamente mansa, e ainda ficassem jogando água benta fora da bacia? Se por uma opção de gênero chamassem uma instituição de patriarcas de 12

Se destruissem a família e separassem os homens das mulheres obrigando-a-os a uma convivência de uma vida inteira só com pessoas do mesmo sexo em conventos? Tal prática seria uma forte incitação à homossexualidade, quem sabe até à pedofilia! Não! Os pastores devem dar o exemplo para seus rebanhos de ovelhas. Ovelhas devem pastar serenas e responder ao sinal seguro do cajado. Os pastores têm a responsabilidade divina de garantir o comando dos patriarcas em todos os domínios. Domminus, como toda ovelha sabe, quer dizer senhor. Sua Santidade, tem, por isso, o dever de garantir a abolição da ideologia de gênero não só nas pastagens das ovelhas. Não se pode sair por aí passando instituições respeitáveis como o Sistema Jurídico, por exemplo, pela lente do gênero. Seria uma opção de gênero usar togas rodadas, chapéus enfeitados com arminho, lapelas rendadas. Acabar-se- ia até com a pompa e circunstância dos garçons e seus aventais elegantes até os pés, na nobre e elevada função de servir à mesa, que não poderia ser confundida com outra possível opção de gênero. Dos garçons aos chefs, com seus impolutos aventais compridos. Os homens, como qualquer ovelha não desconhece, não fazem as mesmas coisas que as mulheres. Mulheres são cozinheiras, garçonetes. Imagine o ridículo de uma garçonete vestida com um longo servindo um prato requintado. 13


Isso é coisa para um smoking. Com gravata borboleta de lacinho. E não são à toa os tamanhos dos chapéus dos chefs, das mitras e das coroas. A cabeça do Domminus tem que se elevar acima da carneirada. Quanto mais estrelinha, fitinha e medalhinha no peito, mais respeitável o comandante. E cajados, espadas, as varas dos antigos professores (de avental até o chão eles também), o martelo do Meretíssimo, o martelo do pregoeiro da Bolsa de Valores, para não falar dos ejaculantes garrafões de champanhe dos campeões da Fórmula-1, esguichando-se uns nos outros, estas sim, são opções viris, como a viril coragem e o orgulho varonil. Que ningém se emascule em rendados, não se embaralhem os signos. Sua Santidade está certíssima. Não vá nenhuma ovelha sair do caminho traçado. Ela vira uma ovelha negra, imediatamente. E a ovelha negra, como reza o cardápio, contamina todo o rebanho. Incita, por sua própria negritude, a ideologia da diferença. Pastores odeiam a diferença.

E sem as mulheres que cardassem com paciência a lã, fiassem interminavelmente em suas rocas e ferissem seus dedos e gastassem seus olhos a tecer? E mantenham-nas longe das doutrinas histéricas das feministas, essas desagregadoras das congregações, incapazes de bordar uma batina, de fazer um sequilho para o senhor cura, de ajoelhar-se e confessar seus pecados. Cabeças cobertas e silentes, as mulheres, pela própria natureza, não empunham cajados. São muito assustadiças, dóceis e assustadiças. O mundo, com seus domínios, não é um lugar seguro para mulheres sem pastores. Assim reza a doutrina da fé de Benedito XVI, o Papa Ratzinger. Papa, como toda ovelha sabe, é o nome do Pai. Do patrão, do patrocinador, do patriarca, do patrício, do patrimônio, do patrulheiro do..

Amam suas ovelhinhas todas iguais, balindo assustadas, temerosas, passando umas sobre as outras, pisando as próprias crias se ameaçadas. Ovelhas são muito asssustadiças. Precisam de rotinas, ritos rígidos, o mesmo percurso diário, geração após geração. Uma vida regrada, de tosa em tosa até o corte final. Sem elas, o que seria dos longos mantos dos reis e imperadores? Sem a lã de seus corpos quem haveria de aquecer os pastores, os meretíssimos, as santidades, os nobres senadores e deputados, os excelentes, excelentíssimos senhores, os magníficos reitores? 14

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Ah, a turma de sempre… a Violência contra as Mulheres…

E la nave va

A Violência contra as Mulheres ou a Violência de Gênero? interrompeu o adolescente. Ah, sei lá! As duas!

O Empoderamento, agarrado ao laptop, o corpo entusiasmado, vibrante, olhos brilhando apalpava os bolsos procurando a passagem. Andava rápido, mais ainda quando viu o tamanho da fila embolando o saguão do aeroporto. Mal se metera na baia e logo um grupo amontoou-se atrás dele. Era o clã dos Direitos Reprodutivos e Sexuais. Estavam todos: o Direito à Esterilização, o Direito à Contracepção Segura, o Direito ao Aborto e o jovem Direito à Diversidade, em trajes civis. O mais velho do clã, aprumava seus oitenta e tal com leveza. Sim senhoras, o Direito ao Orgasmo ainda mantinha seu charme, embora um certo tique nervoso, quase imperceptível, mas notava-se, como s o traísse, uma ruga de enfado franzindo de leve o nariz. A ruidosa ala mais jovem parecia ignorá-lo mais do que o que seria esperado, visto a reserva moral que ao velho deviam, ao menos junto ao mercado de imagem liberada. O Empoderamento, atento a tudo o que pudesse incorporar ao seu capital discursivo, alçou as sobrancelhas e abriu os ouvidos. Quem mais vai estar? perguntava, entre impaciente e curioso o Direito à Diversidade. Quem mais? 16

Velho, vai dar pau, vai dar pau, concluiu, antevendo o porre que viria pela frente. Detestava aquelas obrigações burocráticas. A Voz Interna do Pai, do avô, no entanto, martelava: se quer os privilégios de Direito… mantenha os rituais. Sem eles, desaparecemos.Trajes civis. A fila avançava lenta, todos se apertavam mais, instaurando aquela intimidade forçada, mas até simpática, ideal para coletivizar conversas. Na verdade, nem teria sido preciso estarem amontoados para que toda a fila ouvisse um zumzum que se transformou pesadamente em silêncio ostensivo. O Empoderamento imediatamente virou-se para ver quem tinha chegado. Do alto de suas plataformas, dois representantes dos Direitos Sexuais e Reprodutivos. Umas drags de boutique - desferiu logo o jovem Direto `a Diversidade do clã dos Direitos Reprodutivos e Sexuais, subitamente mais velho que seus contemporâneos de geração, tremendo o piercing do lábio superior. E os Direitos do Homem? Será que já estão lá? Fazia, em tom de deboche uma vestida-como-uma-menina. 17


Direitos Humanos, você quer dizer, tá maluca, mulher? Os Direitos do Homem estariam com 225 anos! Se tivessem nascido, teriam 225 anos, gargalhou a outra.

Que vantagem Maria leva?

O Empoderamento anotou a cena para seu repertório. Essa ia ser uma conferência e tanto! Na próxima já teria seu próprio clã. Um Empoderamento Sexual, um Empoderamento Reprodutivo, um Empoderamento Diverso, no começo soa estranho, mas, afinal, não tinham assumido o seu neologismo? Suspirou aliviado só de pensar na terminologia anterior. Teriam-no chamado de Barbarismo e isso seria um acoplamento de péssima ressonância para sua imagem. Só de pensar em encontrar o Empowerment um mal estar começava a murchar seu peito. Não podia deixar de sentir-se levemente fake. Mas afinal, ele era apenas um significante. Essa idéia bastou para sentir-se bem melhor. Bastava cumprir seu papel. Não matem o mensageiro, comparava-se, divertido. Estava quase chegando a sua vez de sorrir para o sujeito da bagagem, rezando pra não anotar o excesso quando uma voz de criança perguntou bem alta: Tio, e puxava o braço do Direito ao Aborto: É verdade que existem pessoas do mesmo sexo?

“Nosso corpo nos pertence” dizíamos nos anos 70 e 80. Achávamos que chegara a hora de termos autonomia, de dispor dos nossos corpos, do nosso prazer, construirmo-nos fora da receita machista. Engoliram, as heteros, a pílula, e com ela o controle médicofarmacológico da “revolução sexual”. Com todos os seus efeitos “colaterais”. As décadas se passaram, mudamos de século e de milênio e os “nossos corpos” estão mais que nunca desenhados, cortados e costurados segundo os modelitos dos homens. “O rosto perfeito é o da Grace Kelly” decretava outro dia um cirurgião plástico loiro na TV. Escova com nanotecnologia, oferece o “salão de beleza” da esquina. A Folha de São Paulo informa, grama por grama, a competição do silicone na passarela. Fulana botou 345 gramas, sicrana ousou 354. Esses mesmo moços vibram com a espuma de champanhe, que esporram uns nos outros os campeões da velocidade, essa deusa adorada dos homens. Acelera, Airton! Que mulher diria isso na cama? As mães compram sapatos de salto para meninas de 3 anos de idade, levam

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para o dr Elsimar injetar hormônios aos 8, porque o doutor disse que se não menstruarem ficarão mais altas e elegantes. As baixinhas jamais terão direito às passarelas. Quem terá o rosto perfeito que o doutor quer? Onde mais devemos injetar botox? Quantas morreram na lipo, na proveta, quantas anoréxicas? Direito a ser feia, gorda, cheia de pêlos, baixinha, alta, mediana - vamos enfileirar na lista dos direitos humanos? Feministas históricas pintam os cabelos e fazem reposição hormonal e a Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres foi patrocinada pela Avon. Nas propagandas, os rapazes bebem loiras geladas, morenas popozudas, teenagers preparadas.

da que você paga caro pra beber - vendida também em farmácias. No país do Jeca Tatu de celular, a nanotecnologia entra pela cosmética. A Vigiliancia Sanitária não dá conta nem de matar mosquitos. Camadas de séculos tecnológicos se superpõem e interagem. Já nascemos pós-modernos mas ainda tentamos apreender nossas realidades pelos livros traduzidos. Trinta anos de feminismo liberal deram em um monte de leis e nenhum direito garantido. Ainda não fomos capazes de enfrentar a cegueira de raça nas teorias feministas empoleiradas orgulhosamente na academia. Ufa! Que tal começarmos a cantar outro sambinha?

Anunciam o Brasil das bundas, as mulatas calientes, a “mulher brasileira” é matéria prima barata da milionária indústria do turismo sexual. O galã da novela vai bater de cinta na vilã, ao nascer da Lei Maria da Penha. Tá certo, sentencia o assentado do MST em Coité, com o boné de aba pra trás: era uma descarada. Teremos dinheiro para grudar um bico de mamadeira na cerveja e anunciar que “A mulher que o homem bebe é a mãe”? O hormônio que acelera a engorda das galinhas e do gado encaroça os úteros, rasga estrias, o conservante do shampu dá câncer de mama, o metal pesado não vem dosado na lista dos pesticidas e agrotóxicos que compõem a fórmula da água mineral. O nitrato da salsicha que você evita vem na água engarrafa20

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As cédulas-tronco e os donos dos embriões uma visão feminista radical e não religiosa sobre o uso dos embriões humanos

- Introdução Esse texto pretende informar sobre a complexa questão das pesquisas com embriões humanos, numa perspectiva feminista e não religiosa e se possível, em linguagem inteligível. Não registra muitas referências bibliográficas. Seria uma lista de 24 anos de pesquisa. Como a urgência do tema exige ver para crer, uma série de sites de filmes a respeito de diversos tópicos que a questão envolve é indicada no final. Serve também como roteiro para um curso completo, surfando no youtube. O texto não tem patrocinadores, nem relações com os sitemas CNPQ, CAPES, FAPESP, etc, nem tampouco conta ponto no currículo Lattes. A autora não é filiada `a Sociedade Brasileira de Bioética.

- O espetáculo do debate Nos últimos meses assistimos, através da mídia, ao debate sobre a utilização ou não dos embriões humanos para “fins de pesquisa” autorizada, em março de 2005, pela lei que aprovou os organismos transgênicos - dentre eles em especial, as sementes de soja transgênicas da Monsanto, que tinham sido 22

ilegalmente contrabandeadas e plantadas. É preciso então, falar um pouco dessa lei e relacionar embriões e organismos transgênicos. Na verdade, a lei dos transgênicos aprovou o uso dos embriões humanos para pesquisa e terapia, o que não teve muita ênfase no “debate”. Vamos ver em que “universo” se situam os embriões. No corpo dessa lei, conhecida como lei da biossegurança, aparecem as palavras: mutagênese, células somáticas de hibridoma animal, auto-clonagem de organismos não-patogênicos. Você sabe o que querem dizer? Imagine quantos deputados o saibam. Pois bem, essas coisas aí em cima figuram na lei para dizer que estão fora da lei. Registre: a mutagênese, as células somáticas de hibridoma* animal, a autoclonagem de organismos não-patogênicos estão fora da lei. Os deputados votaram e aprovaram. Reconhece-se na lei, implicitamente, os direitos de patentes sobre organismos, definidos como ”toda entidade biológica capaz de reproduzir ou transferir material genético, inclusive vírus e outras classes que venham a ser conhecidas”. Além das “entidades” que ainda nem são conhecidas, e já estão sujeitas a ela, nós todas e todos, como “entidades” transferidoras de material genético, estamos, ao que parece, igualmente incluídas numa lei que trata de “mecanismos de fiscalização sobre a construção, o cultivo, a produção, a manipulação, o transporte, a transferência, a importação, a exportação, o armazenamento, a pesquisa, a comercialização, o consumo, a liberação no meio ambiente e o des23


carte de organismos geneticamente modificados – OGM e seus derivados”. E estamos não sob a forma de embrião, note-se.

Na Austrália, por exemplo, existe um movimento para informar sobre vacinas obtidas com utilização de embriões humanos. Mais ou menos como a etiqueta de transgênico que não temos em nenhuma embalagem.

Não somos (ainda) geneticamente modificados. Mas na categoria de derivados entram células humanas, como células de tumores cancerosos, por exemplo. E os embriões a serem geneticamente modificados.

Pela frequência de retiradas de medicamentos do mercado, dá para perceber o cuidado da indústria biotecno-farmacêutica na avaliação dos eufêmicos “efeitos colaterais” dos seus produtos.

Eu consultei um grande jurista a respeito das implicações dessa definição de “organismos”. Ele me respondeu que não seremos considerados organismos. Eu o respeito muito, e por isso fiquei sem jeito de perguntar se ele sabia o que eram hibridomas. Juristas, deputados e jornalistas não costumam saber o que são coisas como hibridomas, nem a turma das ciências sociais, justamente o campo disciplinar que pode ser o mais crítico.

Mas voltemos aos embriões. Ocultando a função de terapia, o uso dos embriões fica, no imaginário coletivo, fixado como pesquisa, uma associação com cientistas, progresso da ciência, conquistas da medicina. Mantém-se a imagem do cientista puro, desinteressado, pesquisando para a sociedade.

Talvez, por tudo isso, seja fácil, para a indústria biotecnológica, que comercializa os hibridomas e assemelhados, mantê-los fora da lei. Para isso, basta tirar os desenhos sobre os mecanismos de obtenção de produtos, dos esquemas que aparecem na mídia, quando resolvem fazer “divulgação científica.” Para não complicar a vida de ninguém se souber que está sendo tratado com um hormônio fabricado por uma rata transgênica ou com um anticorpo produzido por um hibridoma obtido com o câncer da titia. Na era dos produtos orgânicos, lights e sem conservantes, não é um bom merchandising. Muita gente é tratada com produtos de hibridomas.* Não sabemos, a longo prazo, o que pode acontecer. Ainda não sabemos. Mas temos o direito de saber de onde vêm medicamentos que nos prescrevem e quais os reais riscos a que nos expomos. 24

Ele não tem patrocinadores, não forma companhias lucrativas nem registra patentes de células do tumor da titia. Ou famílias de células do embrião da sua amiga de infância. Alguém por acaso sabe o que acontece com as placentas? E quem controla o sangue do cordão umbilical que se paga para estocar? Onde vão parar os montes de células-tronco da lipoaspirações? E os embriões abortados? Será que todo esse rico material vai para o lixo? Num mundo em que tudo vira mercadoria e se patenteia o que não se inventou, o relator da lei que regulamentou a comercialização de organismos vivos patenteados pertence, acredite, a um partido comunista. As características centralizadoras de tomadas de decisão, dessa agremiação, 25


me induzem a concluir que o comitê central do partido discutiu e aprovou tal decisão, que vai contra todo um movimento internacional ativo contra o patenteamento de medicamentos e seres vivos, como sementes, células de tumores cancerosos, plantas medicinais, ou linhagens de células para terapia, obtidas de embriões humanos. Além de conferir ao Manifesto Comunista**, uma das grandes contribuições do pensamento do século XIX, uma obsolescência que ele está longe de ter. Cabe indagar o por quê da denominação de comunista que o partido ainda se atribui. Como ninguém se lembrou de patentear a denominação... Não ocorreu o mesmo com as células-tronco obtidas dos embriões. Coincidência ou não, no mesmo dia em que foi divulgada a decisão do Supremo, consultei a cotação das mesmas (stem cells) no Nasdaq, da bolsa de valores das novas tecnologias. Subiram. Como se pode patentear células humanas e torná-las matéria prima e mercadoria? Que valores de uso e quais os de troca estão nisso envolvidos? É possível um discurso ético para isso? Essa é uma boa pergunta, mas não foi a que o ex-procurador geral da República, Claudio Fonteles fez, ao levar uma Ação de Inconstitucionalidade da lei para o Supremo Tribunal Federal.

- Magistrados, tecno-cientistas e pastores: os donos dos embriões Armou-se então, um “grande debate.” Como sempre há que ter 2 e apenas 2 contendores, a turma do bem e a turma do mal, estavam, de uma lado, “a 26

igreja” (sobretudo a católica) e do outro, “a ciência”. A “ciência” reivindicou - e ganhou - a posse dos embriões, armada dos imbatíveis argumentos a favor da vida, da cura de todas as doenças, da recuperação dos lesionados, da fabrica- ção de tecidos e até órgãos de reposição, do avanço do saber. O julgamento de Galileu foi invocado, na defesa da liberdade de pesquisa. Na cena, os pesquisadores e suas filiações acadêmicas. Aliados, cadeirantes organizados abraçaram o tribunal, presenças constantes desde as pressões sobre o Congresso. Confiantes no poder seguro das células-tronco que virão dos embriões-quevão-para-o-lixo, não se manifestaram sobre hibridromas, ou o patenteamento dessas células-tronco. A espe-rança, mais que compreensível, suplanta a crítica das promessas. Garantiu-se assim, a invisibilidade da indústria farmacêutica e biotecnológica, quem lucra mais com o assunto. Com resultados ou não, as ações sobem na bolsa. Investidores não costumam ser especialistas em biologia. Fonteles reivindicou, por pertencerem a deus, a posse dos embriões para a hierarquia da instituição religiosa, representante do pai celeste na terra. Seu argumento, membro que é da ordem dos franciscanos, foi afirmar que a manipulação e a des- truição dos embriões são contrárias `a dignidade da pessoa humana e violam o direito à vida. A milenária instituição católica, como se sabe, não inclui as mulheres na categoria de pessoa humana, decretando, como esclarece o teólogo Geraldo Hackmann, que “é a mãe que irá proteger o dom de Deus gerado nela. Por isso ela, no momento da concepção, perde o direito de dispor sobre a nova 27


vida, pois o direito da vida recém-gerada compete a quem foi gerado, e não a quem gerou. O livre-arbítrio da mãe não se estende a decidir se a vida gerada nela, mesmo que alguns não a queiram reconhecer como pessoa humana, irá viver ou não”. Isso não foi achado lá num mosteiro da idade média. Saiu na Folha de São Paulo de 12 maio 2007, no Caderno 1, na coluna Opinião, na famosa página 3 do jornal. Como misoginia não é crime, a Folha pode publicar tal afirmação. Já se dissessem que um negro não tem o livre arbítrio sobre seu corpo, a coisa não ia ficar assim. Uma prova de quanto o movimento negro avançou, felizmente, e nós, feministas, não. Muito infelizmente, porque, com manipulação ou sem manipulação de embriões, para as mulheres, assim como o ministrar dos sacramentos, o aborto continua proibido, pelos mesmos ministros que entregaram, sem nos consultar, os embriões para a indústria biotecnológica. As mulheres não cabem nos código dos homens de togas e arminhos. Para eles, nunca serão as donas dos embriões. Por seu lado, pastores de diferentes denominações, querem fazer valer, em uma República, um direito canônico, reivindicando o direito deles de fazer o direito. Os homens, como sabemos, inventaram a propriedade do direito antes do direito `a propriedade, e o primeiro direito foi a propriedade dos corpos das mulheres.

criança. Qualquer outro papel da mãe é, portanto, descabido. As mulheres não cabem no direito canônico, como foi demonstrado, à vontade, historicamente. Diz, na internet, a lei canônica : “Os leigos do sexo masculino que tenham a idade e as condições determinadas pela Conferência Episcopal podem ser chamados para o ministério estável do leitor e do acólito mediante o rito litúrgico prescrito; sem que esses ministérios lhes dêem direitos a serem remunerados pela Igreja.”. Uma questão de poder, como se vê, transcendental. Ou, se me for permitida a parábola, uma espécie de patente do sagrado. As impuras mulheres, fontes do mal na terra, não ministram sacramentos. Não passando de vaso receptor, protegem o dom de deus colocado nelas, mas continuam impuras. Centrando o foco do debate nos embriões, mais precisamente, na categoria os-embriões-excedentes-que-vão-para-o-lixo, garante-se a invisibilidade das mulheres. E seu direito ao próprio corpo. O foco nos óvulos, não nos embriões: eis a questão. Agora chegamos, finalmente `a questão: não se trata de “os embriões,” indo para o lixo ou não.

“À mãe cabe” dizem eles: um dever. Ao feto, direitos. É por esse discurso que entram nos corpos femininos, apropriando-se deles através do feto. A criança pertence aos homens, coletivamente.

A questão que antecede a existência desses embriões “excedentes” é um enorme iceberg que fica submergido nas águas turvas da desinformação proposital.

Mas quando aparece um bebê na cestinha a Folha anuncia: mãe abandona

Por que tantos embriões?

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São resultantes das tentativas de fertilização in vitro, pode-se responder facilmente. Mas por que tantos? Quantos embriões se obtém em cada tentativa? Por que tantas tentativas? Podem ser outras perguntas. Mas a pergunta mais importante é: como se obtém os óvulos? Espermatozóides todo mundo sabe. Pela masturbação, revistas de mulher pelada fazendo parte da tecnologia de coleta, sem problemas éticos. Borracharias e clínicas de fertilização tem essa liberalidade em comum. Não se obtém óvulos por masturbação, mas sim por um processo complicado, danoso e que submete a mulher completamente ao poder médico. É preciso “desligar” a produção interna de hormônios, através de inibidores que cortam a produção no nível do hipotálamo, de onde saem os estimuladores dos ovários. Em seguida, estimula-se, ou melhor, bombardeia-se os ovários com hormônios, injetados pela própria mulher diariamente, faz-se um monte de exames de laboratório e várias ultrassonografias, tudo para conseguir colher os óvulos antes que eles saiam dos ovários e sejam captados pelas trompas. Pela ultrassonografia observa-se o grau de “maturidade” dos folículos e sob anestesia, faz-se a penetração do coletor, que vai perfurar o fim da vagina para atingir, no abdome, a superfície dos ovários. Normalmente produzimos um óvulo por ciclo. Com esse bombardeio deze30

nas de óvulos são produzidos, chegando a várias dezenas, 30, 40 óvulos! E por que? Porque a técnica da fertilização in vitro (FIV) tem mais de 80% de fracasso. Os tecno-doutores manipulam as estatísticas, misturam dados de mulheres e técnicas diferentes, enfim, a FIV é absurdamente ineficiente, além de danosa. Por isso são necessários muitos embriões, para se conseguir uma criança. Quatro, cinco embriões são implantados, o que resulta, quando evoluem, na alta taxa de múltiplos, o que significa gravidez de risco, recém nascidos prematuros de alto risco, maior mortalidade neo natal, defeitos congênitos, e sofrimento, essa invisibilizada intercorrência do processo. Mas, antes dos embriões, vêm os óvulos. Uma superprodução de óvulos é parte constitutiva do processo da fertilização in vitro. É, além da gravidez múltipla, uma parte muito perigosa para a mulher. O bombardeio dos ovários tem uma série de consequências. O conjunto dos sintomas é denominado de Síndrome da Hiperestimulação Ovariana e envolve desde enjôos e distensão abdominal, até choque causado pela fuga de líquidos, dos vasos para a barriga e o tórax, e pode causar até a morte. Nada disso aparece na mídia. Ao contrário, sempre se diz dos embriões que eles são “feitos nas clínicas”. O interesse crescente na manipulação dos embriões para fins de pesquisa e terapia aumenta a necessidade de obtenção de óvulos. Além da utilização de embriões na fabricação de vacinas e em testes de novos medicamentos, o que também não aparece nos jornais; há hoje uma verdadeira corrida pelas células-tronco, bases do tratamento de reparação tecidual. 31


Para refazer tecidos de uma pessoa, pode-se usar células-tronco da própria pessoa, ou pode-se usar um embrião do qual se retira o material genético e se introduz o da pessoa a ser tratada. O processo é uma clonagem. Em boletim da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência) de 18 de janeiro de 2006, um artigo descreve a corrida pelo domínio da diferenciação das células-tronco embrionárias, em termos de uma competição, como se falasse da fórmula-1. E afirma que o vencedor poderá acrescentar à economia do país o “equivalente a um campo saudita de petróleo”. Essa fortuna viria do patenteamento dos mecanismos que disparam a divisão e a transformação das células embrionárias nos diversos tecidos. Os pesquisadores coreanos que anunciaram, em 2005, “os primeiros embriões clonados” usaram mais de 900 óvulos para conseguirem essa clonagem, envolvendo 65 mulheres. A questão ética maior é essa: a utilização das mulheres como fornecedoras de matéria prima para a indústria biotecno-farmacológica. Dias antes da aprovação do Supremo, a Anvisa, a agência nacional de vigilância sanitária formalizou um sistema de informação de dados sobre embriões congelados. O sistema chama-se simplesmente Sis-Embrio, Sistema Nacional de Produção de Embriões. Ou seja, cada mulher que se submeter ao processo de fertilização in vitro estará entrando no sistema de fabricação de embriões. As mulheres superovuladas entregam os óvulos `as clínicas, que detêm o poder de dizer quais são os óvulos viáveis ou não, estocam os embriões “excedentes”, o estado finge que controla esses estoques e a disponibilidade para “pesquisa e terapia”. A lei proíbe a comercialização dos materiais, mas não proíbe que se patenteie os produtos resultantes, o que é uma mistificação grosseira. O comércio internacional de óvulos é uma realidade, e compram-se mu32

lheres pobres e principalmente negras para gestarem filhos para casais ricos e brancos. Na índia há clínicas que mantêm as grávidas durante a gestação, para garantir a “qualidade do produto”. Uma mulher recebe de US$6 mil a US$15 mil por contrato, o que equivale a uma casa, num contexto onde o salário do marido é de cerca de 300 US$.*** As chamadas novas tecnologias da reprodução já são uma prática há mais de duas décadas. O eufemismo “reprodução assistida” é discurso criando regime de verdade para ocultar a intensa invasão, exploração e dominação do corpo das mulhe- res pelo biopoder patriarcal, capitalista, racista, heteronormativo e cínico. Shulamith Firestone, em 1970, achava que as mulheres podiam se libertar da maternidade pelo útero artificial. Mas insistiu em que nós controlássemos as técnicas, tanto conceptivas quanto contraceptivas, caso contrário viveríamos um pesadelo.. Três décadas depois, as mulheres estão, como nunca, alienadas de seus corpos, de suas vontades, submetidas aos ideais de maternidade, estética, comportamento sexual construídos pelos homens. Sem concordar com a proposta tecnológica dela, que nem sonhava com o que fossem hibridomas, acho que sim, estamos vivendo o que podemos chamar de o pesadelo de Firestone.

- Notas e referências *Hibridomas – são células híbridas resultantes de linfócitos B, tirados do baço de animais, fusionados com células de mieloma, um câncer da medula óssea humana. O hibridoma é uma fábrica de anticorpo e é imortal, em cultura. 33


As células cancerosas não páram de se reproduzir. Sim, só o câncer é imortal, não é uma injustiça poética?

Estão no mercado, consolidados. Estão fora da lei.

dade para não deixar subsistir outro vínculo entre os homens que o frio interesse, as duras exigências do “a contado”. Afogou o sagrado êxtase do fervor religioso, o entusiasmo cavalheiresco e o sentimentalismo pequeno-burguês nas águas geladas do cálculo egoísta. Fez da dignidade pessoal um simples valor de troca; substituiu as liberdades tão afetuosamente conquistadas por uma liberdade única e impiedosa: a liberdade do comércio. Numa palavra, em lugar da exploração velada por ilusões religiosas e políticas, estabeleceu uma exploração, descarada, direta e brutal. A burguesia despojou da sua auréola todas as atividades que até ai passavam por veneráveis e dignas de piedoso respeito. Converteu o médico, o jurista, o padre, o poeta, o sábio em assalariados ao seu serviço.

Há muita informação na internet sobre produtos fabricados por hibridomas.

Karl Marx (30) e Friedrich Engels (28), em 1848.

Veja a página da 14a conferência internacional em anticorpos humanos e hibridromas, que vai acontecer um New York em novembro de 2008. Veja os patrocinadores. Esses hibridromas aí são os fora da lei da biossegurança. Integram o amplo campo de aplicação em testes de diagnósticos, como o dos detectores de câncer como estão sendo usados na terapia de certos tipos dessa doença.

http://www.meetingsmanagement.com/hah_2008/ Exemplo de empresa biotec: “Compartilhando dessa mesma visão, os empresários Emílio Alves Odebrecht e Jovelino Carvalho Mineiro Filho se associaram a Perez e ao Instituto Ludwig para a constituição da RECEPTA biopharma. “Até chegar a um medicamento eficaz há um longo caminho a ser percorrido”, diz o professor José Fernando Perez, presidente da Recepta e ex-diretor científico da FAPESP.

http://www.vermelho.org.br/img/obras/manifesto_comunista.asp *** Ver em: http://news.bbc.co.uk/1/hi/world/south_asia/7202043.stm muita informação crítica aqui (versões em espanhol também) www.etcgroup.org **** Lista de vídeos: 1- Fecundação gestação e parto

http://www.receptabiopharma.com.br/ ** “Onde quer que conquistou o poder, a burguesia destruiu todas as relações feudais, patrimoniais e idílicas. Todos os laços complexos e variados que unem o homem feudal aos seus “superiores naturais”, esmagou-os sem pie34

http://br.youtube.com/watch?v=qDbCJVKI43A 2- A FIV http://br.youtube.com/watch?v=GpcUxhrG_H8&feature=related 35


3- Diagnóstico pré implantação http://br.youtube.com/watch?v=0dDUf2CmQTE&feature=related 4- Mãe aos 66 anos http://br.youtube.com/watch?v=Q9rtWZrBeV4 5- Milagre da gravidez sub-rogada http://br.youtube.com/watch?v=g27iaKZ2KQg&feature=related 6- Barriga de aluguel http://br.youtube.com/watch?v=xnJXO9T0u3Y&feature=related 7- Doador de esperma http://br.youtube.com/watch?v=aI8UG-Uh3dg 8- Segredo de pais http://br.youtube.com/watch?v=KNgBT_MeMUo&feature=related 9- Razões altruístas de doadoras de óvulos http://br.youtube.com/watch?v=oVZ9hBztPb0&NR=1 10- Propaganda http://br.youtube.com/watch?v=OUNykVTS6Pg&feature=related http://br.youtube.com/watch?v=oDgFSHUoF1A&feature=related 36

11- Centro de fertilidade http://br.youtube.com/watch?v=eH1ZWd8avDo&feature=related 12- Triplos http://br.youtube.com/watch?v=1GE6zQ8FWok 13- Quádruplos http://br.youtube.com/watch?v=zy4U7Gpk6Bs 14- Trigêmeos da Fatima Bernardes http://br.youtube.com/watch?v=Qxq2UNa18Ys&feature=related 15- Quadrigêmeos http://br.youtube.com/watch?v=vmnjyyNryvE 16- Prematuridade os primeiros momentos de um prematuro http://br.youtube.com/watch?v=EhQxO8pVy0A&feature=related http://br.youtube.com/watch?v=JsFT1xEIHzM 17- Células-tronco-stem cells http://br.youtube.com/results?search_query=stem+cells&search_type=&aq=f

18- Celine Dion http://br.youtube.com/watch?v=D69yI1IILbg 37


19- As primeiras mães de proveta http://br.youtube.com/watch?v=V5QIUoU3WfE 20- Escolhendo doadora de óvulos http://www.donoregg1.com/search/viewprofile.cfm?id=727&type=persprofile#section4870000 21- Eugenia http://br.youtube.com/watch?v=38uNDM2tXjw http://br.youtube.com/watch?v=ufqOe0_pres&feature=related +++ 22- Homens tendo bebês http://br.youtube.com/watch?v=XK4QeIE4QL8&feature=related 23- Clínicas na India http://br.youtube.com/results?search_query=india+surrogate+clinics&search_type=&aq=-1&oq=

As filhas de Margareth Sanger Desde fins da década de 1970, discursos e práticas dos grupos brasileiros de feministas brancas sobre os corpos e as sexualidades, articularam-se, predominantemente, no campo da saúde. Assim como ocorreu em outros países, reunidas em pequenos grupos autônomos, ao mesmo tempo que coletivizaram saberes e experiências, questionaram a medicalização do processo procriativo, da contracepção e do aborto. O saber/poder médico foi, então, identificado como um importante componente das relações patriarcais, como discurso normatizador dos papéis sexuais, e historicamente construído a partir da expropriação do saber/poder das mulheres cuidadoras, eliminadas fisicamente pela igreja católica. A proposta “nosso corpo nos pertence” passava, portanto, pela construção e recuperação de saberes baseados nos corpos e nas experiências das mulheres. Ao mesmo tempo, apresentava-se o desafio de fazer com que esses discursos e práticas de cuidado com o corpo fossem além das individualidades e atingissem os serviços públicos de saúde. Quando foi lançada, em 1983, pelo Ministério da Saúde, a proposta do Programa de Assistência Integral `a Saúde da Mulher (PAISM)¹ , intensificou-se ¹ Pela primeira vez era apresentada uma proposta de atenção à saúde em que as mulheres eram vistas em sua integralidade, em todas as fases da vida, e não como unicamente reprodutoras.

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a atuação das feministas pela saúde. Houve um crescimento particularmente dinâmico, dentro do movimento social, de grupos que se “especializaram” nesse campo². Com o fim da ditadura militar ampliaram-se as possibilidades de trabalhos comunitários e de alianças com os movimentos populares; núcleos de estudos de gênero consolidaram-se nas universidades e órgãos pelos direitos das mulheres no apare- lho estatal foram criados. Um lugar de fala e atuação públicas estava aberto e foi sendo ocupado. Embora a palavra “feminista” ainda fosse ignorada religiosamente pela mídia (como ainda é) “movimento de mu-lheres” não era mais objeto de ironia, na cena política. A partir dos anos 1980, o fenômeno da “onguização” dos movi- mentos sociais atingiu particularmente os grupos de saúde, cuja capacidade de visibilização e vocalização tinham sido potencializadas pelas suas articulações com o PAISM³ e os conse-lhos de direitos da mulher. A rápida profissionalização foi estimulada, principalmente, pelos organismos pertencentes ao que se denomina, no jargão do campo, de “comunidade internacional de população”.

Nações Unidas, como o Fundo para Assuntos de População (FNUAP) 4. A questão do controle da fertilidade das mulheres do chamado “terceiro mundo”, estratégica para os países centrais e seus aliados, aproximava, uma vez mais na história, reivindicações feministas e os interesses eugenistas e imperialistas5. Na intrincada questão das políticas da produção (e do não desejo) de crianças, esse é um pontos de incômodas presenças, nos mesmos “lugares de interesses”6 , que as mulheres têm encontrado no seu caminho para deixar de ser “um instrumento passivo da vida, uma poedeira, um ovo”, no dizer de Simone de Beauvoir7. Um problema, por suposto, das mulheres dentro da heteronormatividade. A contracepção interessa a mulheres e a controlistas. Não pelas mesmas razões. Mulheres procuram controlar sua fertilidade, individualmente. Controlistas eugênico/imperialistas objetivam impedir a existência das populações não brancas, em países ricos em recursos naturais. Classes dominantes brancas não admitem a mais remota possibilidade de serem minorias 4 Um histórico de parte dessa rede encontra-se emThe Ford Foundation’s Work in Population Acessível em www.fordfound.org/elibrary/documents/0190/normal/low/0190norm-low.pdf

Tiveram papel protagônico, nesse processo, fundações como a Ford e MacArthur, organizações como a Internacional Women’s Health Coalition, Pathfinder, Population Council, Catholics for Choice, assim como organismos das

5 Para associações entre feministas e eugenia no passado ver Ziegler, Mary.Eugenic Feminism:Mental Hygiene, The Women’s Movement, And The Campaign for Eugenic Legal Reform, 1900-1935 Acessível em www. law.harvard.edu/students/orgs/jlg/vol311/211-236.pdf

² Essa “especialização” não implica em uniformidade de atuações. Grupos eram (e são) voltados para a questão da assistência ao parto, outros mais focados no aborto e contracepção, outros nas articulações entre contraceptivos e engenharia genética e da reprodução e biopolítica.

7 “A transcendência do artesão, do homem de ação é habitada por umasubjetividade, mas na futura mãe abole-se a oposição sujeito e objeto; ela forma com esse filho de que se acha prenhe, um casal equívoco que a vida submerge; presa às malhas da Natureza, ela é planta e animal, uma reserva de colóides, uma poedeira, um ovo; assusta as crianças de corpo egoísta e faz com que jovens escarneçam, pois ela é um ser humano, consciência e liberdade, que se tornou um instrumento passivo da vida” O Segundo Sexo T.2, 2000, p. 262263.

3 Oficinas nos serviços de ginecologia, seminários e material educativo feitas por feministas espalharam-se pelo país, via Ministério da Saúde.

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6 Talvez “lugares” seja mais preciso do que “campos”, uma vez que não é todo o campo da questão que une feministas e controlistas.

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étnicas/raciais em “seus” países. Na obtenção de resultados tão completamente diferentes, “acesso `a contracepção” não tem o mesmo significado para umas e para outros. O que faz uma grande diferença é como se vai fazer a contracepção, através de quais tecnologias. Feministas, nas décadas de 1970 e 1980, em vários países, denunciaram os mecanismos impositivos e de coerção dos programas de controle de população, assim como o uso de contraceptivos danosos para a saúde8. A “escolha” de métodos não é assegurada pela oferta de todos os métodos existentes. Os tipos de métodos existentes são determinados, em larga medida, por quem os “desenha”. Desde a confecção da pílula, que teve a decisiva participação de Margaret Sanger9, a contracepção pela via hormonal foi uma escolha do saber/poder biomédico. A pílula, mais do que os dispositivos uterinos que a precederam, internalizou ainda mais a intervenção médica no corpo, envolvendo-o como um todo10.

8 Em 1984 aconteceu o Tribunal Internacional de Crimes contra os Direitos Reprodutivos em Amsterdã. Esse evento reuniu cerca de 400 mulheres de vários países que vinham denunciando e fazendo campanhas contra anticonceptivos danosos, como a Depo Provera e o DIU Dalkon Shield e contra as esterilizações em massa. Histórico acessível em http://www.wgnrr.org/wgnrr_french/index.php?option=com_content&task=view&id=13&Itemid=67 9 Margaret Sanger (1879–1966) foi uma militante do “birth control” quando a propaganda de contracepção era ilegal nos EUA. Identificada como feminista; propôs e implementou políticas eugenistas, xenofóbicas e racistas. 10 A inexistência, até hoje, da contracepção hormonal masculina atesta o viés sexista nos desenhos e escolhas da tecnologia anticonceptiva. Mais de quarenta anos se passaram e ainda não se conseguiu convencer os homens a aceitarem efeitos colaterais como mudança de humor e baixa da libido.

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Além da pílula, a “comunidade de população” empenhou-se no desenvolvimento de anticoncepcionais que respondessem às necessidades do “delivery system” de seus programas. Não foi por respeito `a “saúde reprodutiva” que injetáveis (que podem agir durante até 6 meses) implantes (inseridos cirurgicamente sob a pele, para instilar hormônio ininterruptamente por 7 anos) e vacinas (contra o hormônio da gravidez) foram desenvolvidos. Não são métodos que se possa dizer que contribuam para a autonomia da mulher. Nessa “escolha”, a eficácia custa o preço da segurança. Não há autonomia para parar um efeito danoso como nos métodos de barreira ou pela tomada diária de um comprimido11. De fato, a questão da contracepção ainda não está resolvida. Mesmo onde existe disponibilidade de métodos (predominantemente orais e injetáveis) as mulheres continuam se esterilizando12. Assumo que, ao contrário de Margaret Sanger13, as feministas brasileiras estavam verdadeiramente empenhadas em ser fe- ministas, e trabalhavam para que as mulheres se apoderassem do controle da sua sexualidade e da sua fertilidade.

11 É bom notar que os métodos de barreira não implicam em intervenção médica. Nos serviços que os oferecem, são as enfermeiras as responsáveis pela orientação para o uso.Ademais, em tempos de AIDS o uso de condom passou a ser obrigatório. Assiste-se hoje a uma esquizofrenia entre contracepção e prevenção de DST/AIDS que merece uma reflexão que excede este texto. 12 Amorim, Flavia A. et al. Diferenciais de gênero no uso da esterilização voluntária: o caso de São Paulo e Minas Gerais, 2008 Acessível em www.abep.nepo.unicamp.br/encontro2008/.../ABEP2008 13 Para a análise do papel de Margaret Sanger nesta questão e o histórico da “comunidade de população” ver Greer, Germaine Sexo e destino. A Política da Fertilidade Humana, 1987

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O que aconteceu para que fosse possível esse paradoxal encontro de feministas brasileiras com os controlistas?

ministério da saúde, articulado com um grupo de feministas atuando em mandato parlamentar no Rio de Janeiro17.

As feministas brancas vinham, em grande proporção, do movimento estudantil, de partidos e movimentos de esquerda. No trabalho comunitário com as mulheres, constataram as consequências da intensa atuação da rede controlista internacional, presente no país desde os anos 1960. Denunciaram que as mulheres estavam se esterilizando cada vez mais jovens, com número menor de filhos e que pílulas contraceptivas14 eram distribuídas nas comunidades pobres, sem a devida informação sobre riscos e cuidados com as repercussões sobre a saúde15.

Por seu lado, os controlistas constataram, além da pressão das denúncias, que programas envolvendo contracepção geridos por e para mulheres tinham melhor desempenho.

Demonstraram como os sistemas públicos ofereciam serviços precários, restringindo-se a atenção ao âmbito do “materno-infantil” onde as mulheres eram assistidas enquanto “meio ambiente” da criança; politizaram a hipocrisia em relação à prática generalizada do aborto em condições de clandestinidade e suas trágicas consequências. A “pesquisa” introdutória do Norplant, comandada pelo Cemicamp16, ligado ao Population Council, envolvendo diversas universidades e instituições de saúde, foi proibida, numa iniciativa inédita partindo de grupo técnico do 14 A gravidade dos efeitos “colaterais” da primeira geração de pílulas tinha sido denunciada pelas feministas estadunidenses, forçando audiências no Congresso. Estas pílulas tinham uma potência farmacológica 50 vezes maior que as atuais. Foram despejadas nos corpos de mulheres centro e sulamericanas pela “ajuda” da USAID e através da Benfam. A Benfam (Bem Estar Familiar no Brasil) é um dos braços da IPPF (International Planned Parenthood Federation, que Margaret Sanger ajudou a fundar). Foi lançada na XV Jornada de Ginecologia e Obstetrícia em 1965; estendeu sua atuação pelo Nordeste do país. O Cepaimc- Centro de Assistência Integrada `a Mulher e `A Criança, outro braço, atuava no Sudeste. 15 Os demógrafos oficiais nada disseram, durante duas décadas sobre o impacto demográfico que teria (o que se confirmou) a esterilização, em massa, das mulheres, principalmente das mulheres negras (até hoje um impacto invizibilizado). Uma discussão da complexidade da questão extrapola a proposta deste texto. 16 Cemicamp é o Centro de Pesquisas emSaúde Reprodutiva em Campinas.

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Segundo a linguagem de seus relatórios, os programas deveriam incorporar “o ponto de vista da cliente”. A melhoria da qualidade de atenção aumentaria não somente a aceitação de métodos como a continuidade na sua utilização. Surge assim o conceito de “saúde reprodutiva”. Esse termo, que aparece no relatório da Fundação Ford, de 198418, foi associado ao de “direitos reprodutivos e sexuais” e adotado oficialmente na Conferência do Cairo em 1994. Em torno da formulação “saúde e direitos reprodutivos” a colaboração entre grupos feministas e organizações da “comunidade de população” se estreitaram. Por esta via, mudaram também as relações com o poder médico. Os programas de “planejamento familiar” não seriam mais coercitivos e a qualidade de atenção passava a ser um objetivo a se alcançar. Controlistas e poder médico apoiaram os grupos nas campanhas pela discriminalização do aborto. Não necessariamente pelas mesmas razões.

17 O grupo do mandato da deputada Lucia Arruda instalou na assembléia estadual uma Comissão Parlamentar de Inquérito que demonstrou as irregularidades cometidas no Cepaimc, com grande repercussão na mídia. A proibição do Norplant, em 1985, deu início à regulamentação mais rigorosa das pesquisas em seres humanos no Brasil. 18 Ver relatório anual de 1984 da Fundação Ford acessível em http://www.fordfound.org/archives/item/1984/text/13 (p.13) Ao que parece, não foi forjado pela Organização Mundial da Saúde, como é referido em BERQUO, Elza; “Apresentação - Sexo & Vida - Panorama da Saúde Reprodutiva no Brasil”, “Sexo & Vida - Panorama da Saúde Reprodutiva no Brasil”, 2003. Acessível em http://cendoc.nepo.unicamp.br/iah/textos/textos/resumo_livros_venda/sexo_e_vida.doc

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Na contabilidade controlista, os abortos contribuem para frear o crescimento de populações. O poder médico amplia seu mercado de trabalho. Feministas lutam pelo direito das mu- lheres ao próprio corpo. Mas, pelas leis, são as mulheres que controlam o abortamento, nos países onde foi conseguida a legalidade? Conseguir a aprovação legal garante o direito definitivamente? Consolidadas essas as alianças, contraceptivos injetáveis e implantados passaram a integrar os direitos à saúde reprodutiva. A esterilização, uma vez regulamentada na lei do planejamento familiar, deixou de figurar na agenda política, apesar de cerca de 45% das brasileiras estarem esterilizadas, na sua maioria, mulheres negras 19. Pedindo envergonhadas desculpas por vinte anos de atraso20, quero ressaltar que ao denunciarmos a esterilizações, as fe- ministas brancas não incluímos, de fato, a determinação ra- cista que impulsionou esse processo. Nossa cegueira para raça, ocultada pelas perspectivas da luta de classes fez com que nos referíssemos ao malthusianismo do imperialismo, associando, por outro lado, eugenismo unicamente com anti-sionismo. Em 1990, por iniciativa do Programa de Mulheres do Centro de Articulação de Populações Marginalizadas do Rio de Janeiro, ativistas negras lançaram, marcando sua vigorosa presença no movimento negro, a Campanha Nacional Contra a Esteri- lização em Massa de Mulheres Negras, denunciando o objetivo específico de conter o crescimento dessa população, a qual, em pou19 Esterilizadas precocemente, grande parte dessas mulheres se arrependem e demandam, atualmente, a fertilização in vitro. 20 Essse pedido é feito, é claro, em caráter individual.

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cas décadas, suplantaria, numericamente, a branca. Profissionalizados e institucionalizados, grupos do movimento pela saúde das mulheres, orientados pela perspectiva da associação saúde/direitos reprodutivos21, tiveram sua representação política centralizada. No começo da década de 1990, formou-se a Rede Feminista de Saúde e Direitos Reprodutivos que congrega grupos, núcleos de pesquisas, entidades sindi- cais, passando a assumir protagonismo e representações em instâncias de controle social das políticas públicas. Embora a criatividade feminista possa superar, sem dúvida, os limites inerentes aos financiamentos, é inegável que o mo- vimento se burocratizou e se desvitalizou. Houve uma empobrecedora uniformização do discurso e das agendas. Lideran- ças comunitárias que trabalhavam com mulheres passaram a pesquisar sobre mulheres atuando como correntes de transmissão de discursos22. O reducionismo do conceito de saúde reprodutiva foi um re- trocesso em relação à proposta de atenção integral do PAISM e a desvinculação com as determinantes socio-econômicas do que possa ser definido como saúde deixou para trás as arti- culações com as perspectivas transformadoras da sociedade como um todo. Cabe também perguntar qual o lugar para os corpos, em suas concretas variedades, suportes e enunciações de discursos, marcados por sofrimentos tão

21 A Rede recebeu financiamento desde seus princípios, em 1991 da International Women’s Health Coalition, dirigida, na época, por Joan Dunlop, assessora de John Rockefeller 3rd o principal responsável pelo Population Council. A atual presidente da IWHC trabalhou na Fundação Ford e no Population Council. 22 Pude constatar recentemente a existência do “onguês”, dialeto falado por essas lideranças. A frase “é preciso empoderar a capacitação” foi um exemplo desse dialeto.

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diferenciados, cheios de desejos e de mistérios, se o “corpo das mulheres” é cada vez mais (de novo) só um corpo reprodutivo portador de direitos que dialoga com as políticas públicas e os organismos internacionais? Em tempos de body building e da epidemia de cirurgias plásticas e de implantes de silicone, do bionegócio da engenharia genética e da reprodução, da norma anoréxica dos estilistas, qual a contribuição do conceito de saúde/ direitos reprodutivos para a discussão a respeito de corpos e sexualidades? Ou ainda: é no campo da saúde que se vai questionar a biopolítica? As aproximações com o poder médico suavizaram tensões e- xistentes não só em relação aos contraceptivos. As alianças em torno da mortalidade “materna” também significam perda de enfrentamentos necessários. Comitês para averiguar mortes obstétricas implicam na ava- liação de negligências e mau atendimento, na personalização, embora sigilosa, de responsabilidades. O corporativismo médico nega-se a atitudes punitivas. Queixas de violência e racismo nos partos e nos abortamentos em hospitais, não são tão visíveis como a contabilidade dos anos que vão se acumulando às resoluções das conferências internacionais23 .

tas e representantes do poder médico, as tensões são inevitáveis. A disputa pelas Casas de Parto, cujo fechamento é exigido corporativamente, sob alegação de não incluírem médicos, as nas suas equipes25 exigiu pronunciamentos públicos da comunidade dos direitos/saúde reprodutiva muito recentemente. Outros aspectos importantes da apropriação médica do processo procriativo estão longe de ser politizados pelas feministas hegemônicas. As atividades da comunidade da engenharia da reprodução, apesar de se darem sem marcos legais e desrespeitando cotidianamente as normas éticas, foram incorporadas ao rol dos direitos reprodutivos26. As tecnologias conceptivas, (a exemplo das contraceptivas), entendidas estritamente como direitos, deixam de ser “corporificadas”. Não é preciso detalhar o que significa a apropriação médico-(eu)genética (farmacológica, instrumental, biotecnológica) da concepção. Bastaria mencionar que o processo de hiper- estimulação hormonal para a obtenção de óvulos e sua captura, no processo de fertilização in vitro, longe de contribuir para a “saúde reprodutiva”, tem causado inclusive mortes27. Assistiu-se, também recentemente, no Brasil, à disputa entre os poderes médicos (leia-se bionegócio) e o poder eclesiástico pela propriedade dos embriões humanos. Embutidos na assim chamada lei de biossegurança28 auto-

Ainda são as ativistas negras a denunciar o racismo institucional, que contribui para que a probabilidade da morte obstétrica para mulheres pretas seja de 5, 5 a 7, 4 vezes maior que para brancas24. No entanto, por mais diplomáticas que possam ser as relações entre feminis-

25 ‘O parto é um ato médico’, declarou o corregedor do Conselho Regional de Medicina de São Paulo. Acessível em www.apm.org.br/aberto/noticias_conteudo.aspx?id=8023

23 Além de Cairo + 15, Pequim + 10 (entre outros) comemorou-se os 25 anos do PAISM, apesar do programa não ter sido implantado de fato!

26 Artistas com seus “bebês de proveta” são fartamente exibidos pelos médicos; se vé merchandising de congelamento de óvulos na novela; o dono da maior clínica de reprodução “assistida” foi denunciado por dezenas de clientes, por assédio sexual.

24 Estudo de Laurenti et al (2002) citado em Martins, Alaerte Leandro “Mulheres Negras: Mortalidade Materna e Aborto -- uma contribuição à Marcha Zumbi + 10” Acessível em http://marchazumbimais10. blogspot.com/2005/10/mulheres-negras-mortalidade-materna-e.html

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27 Acessível em www.thenation.com/doc/20051212/galpern 28 Também chamada de lei da soja transgênica da Monsanto.

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rizou-se a sua utilização para fins de pesquisa e terapia. Representantes da igreja católica arguíram, junto ao Supremo Tribunal Federal, a constitucionalidade dessa autorização. A necessidade, legítima, de dessacralizar os embriões e de sair da bizantina discussão sobre “o começo da vida”, levou a comunidade saúde/direitos reprodutivos ao alinhamento automático com o poder médico. A ocasião oferecia uma oportunidade de afirmar que são as mulheres as verdadeiras proprietárias (nosso corpo nos pertence) de seus embriões, reafirmando o direito ao aborto. Impunha-se, igualmente, que se desviasse o foco do debate sobre os embriões, trazendo-o para a questão sistematicamente ocultada: a manipulação dos corpos para a obtenção dos óvulos. Contando com a aprovação do sistema judiciário, que se confirmou, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária instituiu o recenseamento obrigatório dos estoques de embriões “excedentes” das clínicas de reprodução. Esse sistema de informação recebeu o singelo nome de SIS-EMBRIO – Sistema Nacional de Produção de Embriões. Consequentemente, toda mulher que se submete às tecnologias conceptivas passa a integrar um sistema de produção do que é hoje matéria prima para a indústria farmacêutica em testes de novos medicamentos e desenvolvimento de vacinas e a fabricação de linhagens de células- tronco para as terapias de reparação de tecidos. As mulheres não receberão, é claro, os royalties das patentes dessas linhagens celulares, cotadas no Nasdaq29. Feministas contrárias às tecnologias conceptivas e às tecnologias contracepti-

vas inseguras encontram-se, algumas vezes, em posições que podem ser confundidas com as do poder eclesial. Espero ter deixado claras as distâncias de motivos e de objetivos de umas e outros. Denunciar a dominação tecnológica dos corpos não tem nada a ver com essencialismo, como querem algumas. Quando Margaret Sanger providenciou o financiamento das pesquisas que resultaram na pílula anticoncepcional, contribuiu decisivamente para entregar o controle da fertilidade das mulheres para o complexo bio-médico-farmacêutico, a- través do qual é exercida em nossas sociedades, a biopolítica com suas bases racistas, misóginas e heteronormatizadoras. É um reducionismo inadmissível atribuir à pílula a “revolução sexual” dos anos 1960. Assim como não se pode atribuir à medicina a obtenção de saúde. As leis, o mais das vezes, não imprimem mudanças significativas nas relações entre as pessoas. Sempre é bom lembrar que, mesmo nas democracias burguesas onde o espetáculo da “justiça” é mais comprometido com certa facticidade, leis não têm se mostrado suficiente para garantir igualdade de direitos entre mulheres e homens. Nos Estados Unidos, cujos feminismos tanto inspiram o apego ao campo do direito, a longa luta, desde 1923, pela Equal Rights Amendment ainda não conseguiu escrevê-la na constituição. Deslocar, portanto, a questão das sexualidades e da procriação do campo da saúde e dos direitos pode ampliar nossas visões e possibilitar outras alianças, pela determinação dos corpos e de seus desejos.

29 Assim como não recebem pela industrialização de derivados do sangue obtidos das placentas.

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