BRISA 1ª edição, julho de 2019
PÁS NA AREIA o avanço da propriedade privada sobre a praia de Canasvieiras preocupa moradores, beneficia turistas e impacta o meio ambiente
O avanço da propriedade privada sobre a praia de Canasvieiras preocupa moradores, beneficia turistas e impacta o meio ambiente
EXPEDIENTE
BRISA
1ª edição, julho de 2019
EDITORA: Ana Sophia Sovernigo PROJETO GRÁFICO-EDITORIAL: Ana Sophia Sovernigo TEXTOS: Ana Sophia Sovernigo IMAGENS: Foto de capa: Keith Bremmer / Unsplash <unsplash.com> Editorial: Arquivo pessoal / Ana Sophia Sovernigo Sumário: 1. Ministério do Meio Ambiente / Divulgação <flickr.com/photos/ mmeioambiente>; 2. Ana Sophia Sovernigo; 3. Ana Sophia Sovernigo; 4.Marco Bicca / Unsplash Eco-crítica: 1. Ministério do Meio Ambiente / Divulgação Florescer: 1. Ana Sophia Sovernigo Maré: 1. Roberto Nickson / Unsplash; 2. Ana Sophia Sovernigo Metamorfose: 1. Marcelo Bicca / Unsplash; 2. Johann Moritz Rugendas / Adelante Comunicação Cultural <https://adelantesp.tumblr.com/ post/181690556761/johann-moritz-rugendas-1802-1858-carregador-de>; 3. Seeklogo <https://seeklogo.com/vector-logo/290047/mapa-do-brasil> Contracapa: Willian Justen de Vasconcellos / Unsplash Esse trabalho é experimental, sem fins lucrativos e de caráter puramente acadêmico, criado e editado pela acadêmica Ana Sophia Sovernigo como exercício de projeto gráfico-editorial para a disciplina de Laboratório de Produção Gráfica do curso de Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) no semestre 2019-2. Não será distribuído, tampouco comercializado. Seu conteúdo e suas opiniões são de inteira responsabilidade dos acadêmicos, isentando assim a UFSC e o docente da disciplina de qualquer responsabilidade legal por essa publicação.
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EDITORIAL
Carta da editora Brisa: uma revista para quem quer agir
É
com muito orgulho apresentamos a primeira edição da revista Brisa, lançada em julho de 2019. Brisa nasceu da vontade de mudar o mundo. Da expectativa de que juntos somos mais fortes. Ela foi feita para todos que quiserem aprender um pouco mais a cuidar do nosso planeta. Desde especialistas a leigos, procuramos debater questões atuais sobre o meio ambiente e os impactos das ações humanas nessas áreas. Nessa primeira edição, trazemos seis matérias para debater essas questões. A primeira seção, Ecocrítica, traz um artigo de opinião intitulado “A sistêmica crise no Ministério”, debatendo o recente processo de desmonte do Ministério do Meio Ambiente, durante a atual gestão presidencial. A segunda seção, Florescer, procura trazer ideias e ações inspiradoras. Nessa edição, trouxemos o exemplo do restaurante Origem, o primeiro restaurante com certificação Lixo Zero no Brasil. A terceira seção, Maré, traz uma reportagem especial sobre o avanço da propriedade privada no ecossistema costeiro. Por fim, a seção Metamorfose traz matérias explicativas sobre problemas atuais, nesse caso, o saneamento básico. O projeto editorial dessa revista foi apresentado como trabalho final da disciplina de Laboratório de Produção Gráfica do Curso de Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), e orientado pelo professor Ildo Francisco Golfetto. O nome Brisa remete à uma maravilhosa sensação proporcionada pela natureza: o vento fresco das manhãs, do fim da tarde com amigos, o frescor do verão. Além disso, também é uma homenagem à minha fiel escudeira, uma gata muito brincalhona, que sempre me trouze as melhores sensações desde o dia em que foi adotada, em dezembro de 2018.
Em agradecimento, não posso deixar de mencionar todos que ajudaram nesse processo: meus pais e minha irmã, por sempre acreditarem em mim e por darem tudo para que eu pudesse estar onde estou hoje; aos meus amigos, por me ajudarem a lidar com o estresse e demais percalços da produção; aos meus colegas jornalistas, por seguirem firmes da luta pelo ensino público, gratuito e de qualidade; e, por fim, ao meu professor Ildo, por ser paciente e compartilhar seus conhecimentos para que a realização desse projeto pudesse sair do papel (ou melhor, entrar no papel). Agradeço também a todos os meus professores do curso de Jornalismo, que sempre fizeram o seu máximo para que seus alunos saíssem daqui com senso crítico e empatia. Como disse certa vez o escritor uruguaio Eduardo Galeano, em entrevista para o jornal El País: “eu acredito que toda mensagem escrita é parte da literatura, incluindo grafites nas paredes [...] agradeço ao jornalismo que me tirou da contemplação dos labirintos do meu próprio umbigo”.
ANA SOPHIA SOVERNIGO EDITORA
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SUMÁRIO
NESTA EDIÇÃO:
ECO-CRÍTICA 5 A sistêmica crise no Minnistério do Meio Ambiente
METAMORFOSE 14-19 FLORESCER 6-7 Primeio restaurante Lixo Zero do Brasil
MARÉ 8-13 Pás na areia: Impérios à beira-mar
Sanear é preciso Evolução do saneamento nos dois Brasis Panorama do abastecimento de água
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Foto: MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE / DIVULGAÇÃO. ALTERAÇÕES DE COR POR ANA SOVERNIGO
ECO-CRÍTICA
MINISTÉRIO A SISTÊMICA CRISE NO
D
esde o dia 1º de janeiro de 2019 o Brasil vem sofrendo diversos ataques. Como uma doença que corrói de dentro para fora, o novo governo chegou com suas incabíveis reformas. O presidente Jair Bolsonaro e seu ministro do Ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, colecionam uma grande bagagem de ataques às políticas ambientais e aos servidores públicos da área, tudo isso apenas nos primeiros seis meses de governo. O ápice do desgoverno no ministério talvez tenha sido o discurso de Ricardo Salles no dia 13 de abril, em um evento no Rio Grande do Sul. Com o público constituído por personalidades ligadas ao agronegócio, o ministro ameaçou os servidores do ICMBio por não comparecerem ao evento. Irritado com a ausência, relatou “desrespeito à figura do ministro, do presidente do ICMBio e do povo gaúcho”. Com aplausos e gritos de apoio, Salles determinou a abertura de processo administrativo contra todos os funcionários do Instituto. Funcionários relataram ao jornal O Estado de S. Paulo que não foram ao evento simplesmente porque não haviam sido convocados para a cerimônia. Alguns servidores até chegaram a ir ao evento após saberem que o ministro havia ameaçado puni-los pela ausência. O Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) foi criado em 2007 durante o governo Lula, a partir de uma divisão do IBAMA. É um importante órgão vinculado ao Ministério, responsável pela gestão de 334 Unidades de Conservação federais espalhadas pelo país, entre parques nacionais, reservas extrativistas e áreas de proteção ambiental. Com apenas três meses de gestão, logo após o discurso polêmico de Salles, o presidente do ICMBio, Adalberto Eberhard, pediu exoneração do cargo. Ele vinha sendo cobrado pelos servidores do órgão a dar uma resposta às declarações feitas pelo ministro. “Por motivos pessoais, venho solicitar a minha exoneração do cargo de presidente deste instituto. Agradeço a oportunidade e toda a confiança em
mim depositada”, escreveu o ex-presidente ao ministro Ricardo Salles. Após a exoneração, outros três diretores do ICMBio também abandonaram seus cargos. Esse não foi um caso isolado: em janeiro, a então presidente do Ibama, Suely Araújo, pediu demissão depois que o ministro e o presidente fizeram insinuações no Twitter sobre o valor da contratação de carros oficiais no órgão. Não bastasse isso, o governo também exonerou um funcionário do Ibama que havia multado Bolsonaro por pesca ilegal em área protegida, em 2012.
Proteção em precipício Após a saída de Eberhard, tomou posse o comandante da Polícia Militar Ambiental do Estado de São Paulo, o coronel Homero de Giorge Cerqueira. Juntamente com ele, foram anunciados os novos gestores: coronel Marcos Simanovic, major Marcos Aurélio Venâncio e o coronel Marcos José Pereira, todos integrantes da Polícia Militar de São Paulo. Assim, militares já ocupam mais de 15 cargos no Ministério do Meio Ambiente. Durante a campanha eleitoral,Bolsonaro criticou o IBAMA, que classificou como responsável por uma “indústria da multa” e por “ativismo ambiental xiita”. O atual ministro, de perfil conservador, fundou e presidiu o Movimento Endireita Brasil, criado para “chamar a atenção da sociedade para pautas como a redução da burocracia e o direito à propriedade privada”. A militarização e a sucessão de demissões mostra um projeto de desmonte da gestão ambiental federal e a resistência dos servidores e comunidade envolvida. Parece uma intervenção militar que nada tem a ver com os objetivos ambientais. Fica cada dia mais claro que o projeto é a destruição dos avanços que conquistamos na área ambiental nos últimos 30 anos.
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FLORESCER
LIXO ZERO PRIMEIRO RESTAURANTE DO BRASIL A SER
Três amigos, sonhos e uma vontade de mudar o mundo, de pouquinho em pouquinho, motivaram a busca de uma certificação inédita para um estabelecimento brasileiro
A
Origem nasceu do sonho de sustentabilidade de 3 amigos, que colocaram em prática o negócio de um restaurante que cause o menor impacto possível na natureza. Com uma equipe de 5 pessoas e ideias simples e inovadoras, a Origem é o primeiro restaurante Lixo Zero do Brasil. Para os sócios, Alexandra Lemos, Joana Wosgrau Câmara e Arthur Ferreira, desde a criação da Origem, já estava no DNA da loja dizer não ao plástico. Confira a entrevista que a Revista Brisa fez com uma das sócias da Origem, Alexandra Lemos.
O que é um estabelecimento Lixo Zero? Segundo o Instituto Lixo Zero Brasil, um estabelecimento lixo zero deve produzir apenas 10% de rejeitos. Isso quer dizer que 90% ou mais de todo o lixo produzido deve ser destinado corretamente. O movimento bombou nas redes sociais principalmente depois da polêmica do uso dos canudinhos plásticos, que demoram mais de 500 anos para se decompor. Na Origem, o canudo nunca chegou a ser utilizado, assim como nenhum outro descartável desse material.
Como surgiu a ideia de criar um restaurante que não produz lixo? Tudo começou em outubro de 2016, quando o Arthur e a Joana os outros sócios da empresa] largaram suas profissões e me convidaram para formar a Origem. Inicialmente, o trabalho era só com delivery e os pratos eram feitos na cozinha do apartamento de Arthur. Em agosto de 2017 a Origem passou a ter um espaço físico, no bairro Santa Mônica. Os primeiros produtos produzidos foram as saladas no pote. Além de serem saudáveis, elas têm um importante diferencial: os potes de vidro são retornáveis. A cada pote
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devolvido, o cliente ganha 1 real de desconto. Para a gente, ter um negócio ecologicamente correto nunca foi discutido. Nunca sentamos e pensamos “vamos ser lixo zero”. Era algo intrínseco, sempre foi assim. Simplesmente não faria sentido ser de outro jeito. Antes da gente abrir a casa, a gente já tinha participado da Semana Lixo Zero, onde o pessoal fez um café de negócios, o Café com Atitude. A gente já estava familiarizado com esse pessoal e quando começou a surgir esse debate, nós pensamos “po, a gente é assim desde sempre”.
Mesmo não produzindo lixos plásticos, os resíduos orgânicos ainda são presentes. Como vocês lidam com essa questão? Desde sempre mandamos para a compostagem. Desde 2018 estamos compostando também o lixo orgânico do pessoal da rua. Foi ideia do Tuca [Arthur] e os vizinhos adoraram. Decidimos que nós íamos ser o ponto de coleta do lixo orgânico da rua e como a cooperativa AgroEcológica vinha tirar o nosso lixo, ele recolheria o lixo da rua inteira, só que nos pontos específicos de coleta. A galera tá amando. Assim nasceu o Projeto Semente. O custo de cada retirada de resíduo é de 15 reais por bombona, o que é feito duas vezes por semana. As bombonas ficam cheias mais rápido do que a gente poderia imaginar. Todos dia vem vizinha perguntar alguma coisa, tirar alguma dúvida, dar alguma ideia, a galera tá super engajada. Por semana, todos juntos produzimos cerca de 63kg de lixo orgânico, que depois se transforma em adubo, podendo ser utilizado em hortas domésticas, por exemplo. Atualmente, o maior resíduo produzido pelo restaurante atualmente é o lixo do banheiro, que ainda não é compostado.
Qual é o maior desafio para o funcionamento do negócio?
Foto: Ana SOPHIA Sovernigo
Logo na entrada do restaurante, fica exposta a placa que mostra a certificação Lixo Zero. Ao fundo, a cozinha onde tudo acontece. Na parede, uma frase marcante: menos impacto ambiental, mais impacto social.
Com certeza é mudar o modo de entrega que nossos fornecedores possuem, já que, em sua maioria, entregam produtos embalados em plástico, como os sacos de frango, tofu, bandeja de cogumelos e plástico filme. Aqui não utilizamos sacolas plásticas para as entregas. A sacola de papel que a gente dá pode ser devolvida e reutilizada até que for possível, para aproveitar o máximo de recursos.Para tentar amenizar o impacto, além de potes e garrafas de vidro retornáveis, os talheres utilizados são biodegradáveis e os copos são de papel. Na cozinha, ao invés de utilizar uma esponja descartável, a gente usa uma bucha feita com restos de redes de pesca reciclados.
Qual é o futuro da Origem? Queremos manter tudo isso num preço acessível para as pessoas virem comer aqui (produtos sem glúten, sem leite, base vegana, orgânicos…). Também temos o projeto “1 por 1”, em que a cada compra, R$1 é investido num projeto social da cidade. Entre os projetos apoiados estão o É o Bicho, Casa Lar Emaús, Cidades Invisíveis, Projeto Resgate e a Creche Vó Inácia. Além disso, os pedidos por delivery são feitos majoritariamente pela empresa Pedivento, que faz as entregas de bicicleta. É com iniciativas simples mas muito eficazes que a Origem caminha para se tornar um estabelecimento completamente Lixo Zero.
#FLORIPALIVREDEPLÁSTICO No mesmo sentido da criação da Origem, outra iniciativa tem tomado espaço em Florianópolis. Trata-se
Nunca sentamos e pensamos “vamos ser lixo zero”. Era algo intrínseco, sempre foi assim. da campanha #FloripaLivreDePlático, criada pela Frente Parlamentar de Combate ao Lixo no Mar, da Cãmara de Vereadores da cidade. Com o objetivo de sensibilizar a população em relação aos impactos do consumo e descarte incorreto de plásticos de uso único, na Semana do Meio Ambiente (5/06) deste ano, foram espalhadas pela cidade imagens de tartarugas ingerindo canudos plásticos. Quem passar pelos elevados da cidade consegue visualizar plotagens que trazem a mensagem #plasticomata. Nas ruas do centro, totens de tartarugas simulam uma cena muito comum no mar. Com o slogan “A Vida Marinha Não é Descartável”, a Prefeitura também distribui garrafas para garis da companhia de limpeza da capital. Com inicitaivas simples, Floripa vem tentando se tornar uma capital Lixo Zero. O caminho não é fácil e também não é rápido, mas com certeza vale a pena de ser trilhado.
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Foto: RoBERto NICKSoN | UNSPLASH
MARÉ
O CAMINHO DOS IMPÉRIOS À BEIRA-MAR
PÁS NA AREIA
o avanço da propriedade privada sobre a praia de Canasvieiras preocupa moradores, beneficia turistas e impacta o meio ambiente
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T
á vendo aquilo alí? — me disse Manuel, de 76 anos, apontando a bengala para a estreita faixa de areia da praia de Canasvieiras. — Era tudo mato e isso não é conversa de velho, não, você pode pesquisar, não tinha nada mesmo. Quando o paulista chegou em Florianópolis para visitar seu filho, logo decidiu abrir mão de tudo e se mudar para a ilha. Ficou um tempo na praia da Armação, até conhecer e se apaixonar pela então pacata Canasvieiras. Ele e a mulher venderam o sítio que possuíam na cidade de Itatinga/SP e vieram de mala e cuia, como se diz por aqui. No inverno de 1994, alugaram um apartamento por R$250 reais mensais. Quando chegou a alta temporada de verão, o casal teve que sair pois o valor do aluguel triplicou. Começou então a busca por um terreno que coubesse no orçamento. Na época, Seu Manuel comprou uma enorme casa de madeira a poucos metros do mar. Comerciante desde pequeno, logo abriu um bar na beira da praia. Como não havia nenhum mercado no bairro, todo dia ele e o filho iam para o bairro vizinho, Jurerê, para buscar as cervejas que alegravam os moradores e turistas. Dispostos a ajudar todos, Manuel e a esposa cozinhavam qualquer comida que os clientes pedissem. Apaixonado à primeira vista pelo bairro, trouxe toda a família consigo: a mulher, os dois filhos e agora três netos. Manuel conheceu muita gente nesses 25 anos vivendo em Florianópolis. Viu de perto o desenvolvimento do bairro e seu crescimento acelerado. Quando ele e a família chegaram, tinham pouquíssimos vizinhos. Hoje, “todo dia que você olha tem uma fumaceira desgraçada. Sabe o que é? Uma casa nova que vai sair”.
GIGANTES DE CONCRETO Do alto das formações rochosas na ponta oeste da praia de Canasvieiras, a chamada Ponta dos Morretes, é possível enxergar um verdadeiro paredão de casas, hotéis e estabelecimentos comerciais plantados na areia. Durante a alta temporada, os banhistas se espremem para conseguir um lugar ao sol escaldante da Ilha da Magia. Quem vê os muros e grades que ocupam a orla da cidade de Florianópolis pode não imaginar que esse é um fenômeno recente. Ao chegar nas praias mais urbanizadas como Canasvieiras, o que se vê são condomínios à beiramar, beach clubs, mansões e estabelecimentos comerciais que acabam se grudando às praias como se fossem piscinas em seus imensos quintais. Mas nem sempre foi assim. Mayara Heloísa Santos, de 22 anos, lembra que, cerca de dez anos atrás, a vista de sua casa no bairro de Canasvieiras era bem diferente. Seus tempos de menina foram marcados com brincadeiras na larga faixa de areia que ocupava a praia. Naquela época,
havia poucos prédios em todo o bairro, o que deixava a vista para o mar livre para quase todos os moradores, bastava debruçar-se nas janelas. Mesmo os poucos empreendimentos que ocupavam o local ainda respeitavam o limite da vegetação nativa. No início do século XX, a única praia conhecida na cidade era a Praia de Fora, atual Avenida Beira Mar Norte. A historiadora Suzana Bitencourt, em sua dissertação de mestrado, intitulada “Castelos de areia: o turismo de litoral em Florianópolis (1930-1980)”, aponta que, por muito tempo, as casas foram construídas com os fundos voltados para a praia, onde os moradores despejavam seus detritos. Levou um bom tempo para que se adquirisse o hábito de frequentar as praias como atividade de lazer e de fato estar apenas com os pés na areia. Desde 1918, o então governador Hercílio Luz demonstrava interesse em criar estações balneárias na região norte da ilha. Moradores antigos relembram que a orla marítima era conhecida como o lugar dos pobres e das prostitutas, que viviam marginalizados em seus ranchos à beira-mar. O manguezal tomava conta da paisagem e o único acesso da comunidade até o mar acontecia através da rua conhecida como o Caminho do Rei. Antes dos anos 30, os moradores da comunidade se deslocavam poucas vezes para “a cidade”, devido ao precário acesso. Manuel lembra de histórias contadas por seu vizinho, seu Chico, que ia a pé de Canasvieiras até o centro, ou em um cavalo emprestado, quando tinha sorte. Mas tudo isso começou a mudar em 1930: antes nem eram alguns pés na areia, agora passam a ser as pás - as quais são responsáveis por tirar o que é natural e erguer gigantescas edificações. A construção do Hotel Balneário de Canasvieiras na beira da praia alterou a percepção da população em relação ao mar. A Empresa Balneária Beira Mar foi responsável por inaugurar a instalação, juntamente com o apoio do governo estadual. A historiadora aponta que a inauguração do hotel ainda estava fresca na memória de alguns moradores quando escreveu sua pesquisa, em 2005. “Foi uma coisa que eu nunca esqueci: a inauguração do hotel e quando botaram a luz no hotel [...] que naquele tempo era de lampião. Teve um jantar, e veio muita gente de fora. Tinham políticos daqui que foram convidados a participar. Nós não participamos, a gente só espiava de fora”, relembra Adelina Severiana Bitencourt, citada na pesquisa da historiadora Suzana Bitencourt. A criação do Hotel Balneário foi um marco fundador dos incentivos públicos para o turismo na ilha, juntamente com a obra da rodovia SC-401, que facilitava o acesso do centro aos bairros do norte. Se antes fazia sucesso por estar isolado e solitário no vazio da orla, atualmente
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MARÉ
o prédio que abrigava o hotel transformou-se apenas em uma construção antiga em meio a muitos outros gigantes que o cercam. A região outrora pobre acaba virando um balneário internacional.
É PRECISO HOMEOPATIA A especulação imobiliária, além de alterar geograficamente o espaço, também tem direta influência na valorização excessiva do preço dos imóveis. Se comparada com a extensão territorial do Brasil, essa área se torna extremamente limitada. No ano de 2010, nos cerca de 8.500km de costa, viviam 26,6% da população brasileira. Desde então, a estimativa é de que a densidade populacional tenha aumentado consideravelmente. Portanto, a importância do cuidado com esse espaço não provém do seu pequeno tamanho, mas sim dos interesses e conflitos que incidem sobre essas áreas. A urbanização acelerada da área próxima ao mar não é um fenômeno isolado. Na sala 15 do primeiro corredor dos blocos modulares do Centro de Ciências Físicas e Matemáticas da UFSC, se reúne toda semana um pequeno grupo de pessoas com um objetivo em comum: pensar a gestão da costa catarinense. Os membros do LAGECI, Laboratório de Gestão Costeira Integrada, pesquisam a dinamicidade do espaço e os impactos humanos sobre essa área. A gestão costeira consiste basicamente em uma tentativa de conciliar todos os entes governamentais e não-governamentais envolvidos, de modo que a exploração e utilização das áreas de costa sejam efetuadas de forma consciente e sustentável. Na reunião de terça-feira, 7 de maio de 2019, acompanhei a discussão acalorada entre os 13 pesquisadores presentes. Para o grupo, o principal desafio para o funcionamento de um bom gerenciamento é a sobreposição de diversas esferas estatais. “A gestão costeira eficiente é fazer com que todos esses atores conversem pra acordar um uso mais racional da zona costeira e da orla”, como definiu a coordenadora, Marinez Scherer. Legalmente, a situação da costa brasileira parece uma briga de grandes atores. A partir da Constituição Federal de 1988, todas as praias e ilhas do Brasil passaram a ser de domínio da União. Sendo assim, as áreas próximas a estas deveriam ser demarcadas, o que resultou na distribuição do gerenciamento para outras esferas públicas que, por sua vez, foram acoplando seus próprios instrumentos para realizar o dever constitucional. Mesmo sendo patrimônio nacional, as praias são definidas como bens públicos de uso comum do povo, sendo assegurado livre e franco acesso a elas e ao mar,
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com exceção de áreas militares ou de proteção ambiental. Já as faixas de terra próximas ao mar e a rios e lagoas que sofrem a influência de marés, também são patrimônio da União, mas funcionam como “bens públicos dominicais”, ou seja, podem ser cedidos a terceiros. Essas áreas são chamadas de Terrenos de Marinha e a referência para sua demarcação não é a configuração do mar como se encontra hoje, mas sim a Linha do Preamar Média (LPM), que considera as marés máximas do ano de 1831. A Secretaria do Patrimônio da União (SPU) realiza a demarcação, cobrando taxas para o uso e cessão do espaço. Em Florianópolis, a SPU realizou a demarcação em 2014 e
GESTÃO COSTEIRA INTEGRADA PROBLEMA
GOVERNANÇA INEFICIENTE CAUSAS
IMPACTOS
Atores não conversam entre si
Decisões divergentes Falta de formação e capacitação de profissionais
Ausência de políticas públicas Extensão territorial
Falta de recusos
Pouco engajamento social
Infográfico: Ana Sophia Sovernigo, com informações do Laboratório de Gestão Costeira Integrada da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
“O que se vê é que, ao invés de tratar a orla com homeopatia, ou seja, prevenir, eles vão com alopatia, sem pensar na causa” incluiu 39 mil imóveis como sendo dessa categoria, porém a demarcação não foi totalmente homologada e a maioria dos imóveis segue sem fiscalização alguma. Paralelamente à cobrança de taxas e honorários nas áreas demarcadas, foi necessário a criação de políticas públicas para auxiliar esse gerenciamento. Inicialmente, em 1988, foi implementado o primeiro Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro (PNGC), sucedido pelo PNGC II, implantado em 1997. O PNGC II não tem peso de lei, mas funciona como uma diretriz do que deve ou não ser feito na zona costeira brasileira. No mesmo sentido, os estados e municípios costeiros devem criar seus próprios planos estaduais e municipais, mas nem sempre isso acontece. O estado de Santa Catarina, por exemplo, possui um plano, formulado em 2010 e que, assim como a demarcação dos terrenos de marinha, também não foi aprovado pelo Conselho Estadual de Meio Ambiente. Em outra tentativa, no ano de 2000, o Ministério do Meio Ambiente criou o chamado Projeto Orla, que consiste em estabelecer diretrizes para a gestão especificamente das praias, de forma participativa, por meio de reuniões com a comunidade. A adesão dos municípios é voluntária e tem como espécie de prêmio final a gestão do município sobre as praias que compreendem o seu território. Mas, em 2015, uma Proposta de Emenda Constitucional passou a gestão para os municípios que quiserem realizar a gestão de suas praias, sem necessariamente executar o Projeto Orla, mediante a assinatura do Termo de Adesão, ao qual
se comprometem a fazer o projeto orla em até 3 anos, no máximo. Esse é o caso da cidade de Florianópolis, que implementou-o em 2014. Nas palavras da pesquisadora Marinez Scherer: “o que se vê é que, ao invés de tratar a orla com homeopatia, ou seja, prevenir, eles vão com alopatia, sem pensar na causa”. À medida em que a maré avança, as faixas de areia se tornam cada vez menores, o que prejudica moradores e turistas e, eventualmente, pode até derrubar as construções, já que a água vai levando a areia que sustenta suas bases. A frase de Marinez se refere ao processo de engordamento de praia, proposto pela prefeitura de Florianópolis, inicialmente para a praia de Canasvieiras, podendo se estender para toda a ilha. A obra consiste na alimentação artificial da praia, retirando areia de jazidas encontradas no fundo do mar. A proposta prevê o alargamento de uma faixa de 2.325 metros. Assim, a faixa de areia que atualmente tem cerca de 5 a 10m, passaria a ter, em primeiro momento, entre 40 e 50 metros de largura, e de 30 a 35 metros depois de estabilizada. A previsão é que as obras levem quatro meses, de agosto a novembro de 2019, após o período de pesca da tainha e antes do início da temporada de verão 2019/2020. O edital para contratar a empresa foi lançado em janeiro deste de 2019, orçado no valor de R$16.417.463,54, segundo a Prefeitura Municipal de Florianópolis. O valor será gasto para consertar um problema natural, em resposta, também, às ações humanas sobre o ecossistema. O processo de erosão e o acúmulo de sedimentos, juntos, afetam aproximadamente 60% do litoral brasileiro, de acordo com o livro Panorama da Erosão Costeira no Brasil, publicado em novembro de 2018 pelo Ministério do Meio Ambiente. Desde o último levantamento, em 2003, a incidência desse fenômeno dobrou de tamanho. Dos 7.500 quilômetros de costa, mais da metade sofre com problemas devido à erosão. É possível visualizar suas consequências, expressas na rápida alteração da linha de costa, diminuição da largura das faixas de areia, perda e desequilíbrio de habitats naturais, aumento na frequência de inundações decorrentes das ressacas e destruição de estruturas, casas e estabelecimentos. Esse desgaste pode ser promovido de forma natural com o passar do tempo, mas a ação humana sobre esses locais possui muita influência. Um dos principais incidentes é a construção em cima das pequenas dunas que ficam logo no início da praia, as chamadas dunas frontais. Se um muro é construído nesse espaço, à medida em que o mar vai se aproximando e carregando a areia, já não é possível que a areia seja reposta. Assim, essas estruturas sofrem grandes riscos de despencar. Em Florianópolis não é diferente. Ivo Rodhen, morador
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de Canasvieiras desde 2007, lembra dos estragos da última maré alta, em 2015. A árvore em que estávamos conversando na manhã do dia 14 de junho de 2019 quase despencou. Ele me olhou fundo nos olhos e disparou: “aquele prédio amarelo alí, o mar invadiu. Todo mundo dizia: tomara que a água derrube, porque eles não deveriam ter construído ali. Não é o mar que ta invadindo, é o povo que já invadiu há muito tempo”. Quando muros são erguidos em cima da areia, acabam limitando o acesso à praia. Como são áreas extremamente populosas e turísticas, limitar o acesso é algo extremamente danoso. Assim, muitas vezes, a resposta dos gestores da área é o processo de repor a areia e tentar reconstruir o que foi perdido. Marinez e os pesquisadores do LAGECI apontam uma questão central em seus trabalhos: a partir do momento em que tiramos os serviços do ecossistema, passamos a ter que pagar por eles. Resta saber se estaremos dispostos.
A árvore que resiste Apesar dos muros e grades que ocupam a areia, os nativos e moradores mais recentes do bairro de Canasvieiras encontram seu jeito de conviver. Embaixo de uma enorme figueira, uma estrutura simples sustenta a história daquela gente. O banco de madeira, conhecido como Pau do Mané, foi feito em 1995 e abriga os mais variados causos. Todos os dias, durante a manhã e o fim da tarde, os moradores mais antigos se reúnem para conversar, tomar chimarrão, fumar seus cigarros e conviver. O Pau do Mané é conhecido internacionalmente. “Os turistas vêm aqui e pedem: ¿donde estás Manuel?, e logo eu digo: tô aqui, mas um dia me vou. Já comprei um crematório e pedi pra me jogarem no mar, alí na Ilha do Francês. É pra lá que eu vou”, conta seu Manuel, em um misto de risadas e saudosismo. O banco leva esse nome porque seu Manuel deu vida à figueira ali crescida, para servir de ponto de encontro e muito companheirismo. Ele chega todos os dias, pontualmente, 8h30 da manhã. Pouco a pouco toda a turma vem chegando: catarinos, gaúchos, paranaenses, paulistas… todos têm seu lugar ao sol, ou melhor, à sombra da figueira. Apesar das contradições da ocupação na orla, Manuel não troca o bairro por nada. Diz até que é um manezinho por tempo de serviço. A vida em comunidade instalada na árvore criou uma relação quase familiar. Os mais velhos brincam com as crianças, os adultos conversam com adolescentes, os vizinhos se tornam quase irmãos. Ivo Rodhen, morador do bairro há 12 anos, encontrou um primo perdido por aqui. Ele e Osni se conheceram ao
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“Não é o mar que ta invadindo, é o povo que já invadiu há muito tempo” acaso, passeando pelas ruas. Descobriram que tinham o mesmo sobrenome e que o pai de Ivo era irmão do pai de Osni, que saiu de Porto Alegre muito novo. De todos os lugares do mundo, os primos vieram parar ali. Mesmo durante o verão, com o aumento exorbitante do número de pessoas na estreita faixa de areia, os moradores não se incomodam. Chegam cedinho para garantir seu espaço e vão fazendo mais e mais amizades. — O problema é que o mar sempre volta pra buscar aquilo que lhe é tomado — alerta Ivo. — No verão sobe a maré e já não tem lugar pras pessoas. Eles querem alargar a praia, mas eu acho uma besteira. É melhor deixar a natureza fazer o trabalho dela. A luta pelo direito de usufruir a praia não é contra turistas. É contra quem instala mansões de luxo, resorts, clubes, entre outras estruturas que, ao mesmo tempo, inibem a circulação e promovem segregação da areia. A comunidade embaixo da figueira talvez seja a prova de que a cidade precisa mesmo é de espaços para as pessoas, pois a maioria dos existentes já foram ocupados pelos gigantes de concreto.
Foto: Ana SOPHIA Sovernigo Casa construída na faixa de areia da praia de Canasvieiras, em Florianópolis/SC, junho de 2019.
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METAMORFOSE
SANEAR É PRECISO
Direito básico incorporado recentemente à declaração universal dos direitos humanos, o saneamento ainda está longe de ser totalmente acessível aos cidadãos brasileiros
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da manhã. Você acorda em sua cama, abre os olhos, levanta-se e vai ao banheiro. Faz suas necessidades, aperta o botão de descarga e toma seu banho com a água quente que sai das tubulações. Depois, você leva seu lixo para fora de casa, pois em algum momento alguém vai retirá-lo e aquilo não será mais problema seu. Essa é a rotina de apenas uma parcela da população brasileira que possui acesso ao saneamento básico. Outros, sonham em poder desfrutar desses direitos que são, como o próprio nome diz, básicos. Segundo dados do Sistema Nacional de Informações Sobre Saneamento (SNIS), em 2017, cerca de 95 milhões de brasileiros não tinha acesso à coleta de esgoto e outros 33 milhões não possuíam abastecimento de água tratada. Esse panorama gera uma segregação entre os que possuem saneamento e os que não têm esse privilégio. O aluguel médio de uma moradia saneada era de R$741,81, em 2017, e o de uma casa sem saneamento algum, R$394,48. Assim, a população pobre fica cada vez mais vulnerável. Em teoria, como previsto na Constituição Federal de 1988, é direito de todo brasileiro usufruir de um conjunto de serviços, infraestrutura e instalações que garantam o abastecimento de água potável, tratamento de esgoto, limpeza urbana, destinação correta de resíduos sólidos e drenagem e manejo das águas das chuvas. Na prática, a Lei nº 11.445/07 que regulamenta esses serviços foi sancionada somente em 2007. A chamada Lei do Saneamento Básico prevê a universalização dos serviços no país, além de estabelecer a titularidade dos serviços aos municípios. Porém, a meta de universalizar os serviços de saneamento até 2030 ainda está longe de ser atingida. Para o total funcionamento do sistema, cada município deveria mapear sua área e elaborar um Plano Municipal de Saneamento Básico. Contudo, a adesão ainda é insuficiente. Segundo o IBGE, em 2017, 41,5% dos municípios brasileiros possuía o próprio plano, regulamentado ou não. Os planos são importantes para regulamentar os serviços das companhias que realizarão o trabalho. Atualmente, os serviços de abastecimento de água e de esgotamento sanitário tem como modelo de concessão os serviços da
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Parceria Público-Privada (PPP). O investimento total no saneamento em 2017 ficou em R$ 10 bilhões ou 0,18% do PIB, praticamente a metade do que deveria ser investido anualmente para a universalização, que seriam aproximadamente 0,33% do PIB. Para saber como é a dura realidade de muitos brasileiros, escaneie o QR Code abaixo e assista ao documentário feito pelo Instituto Trata Brasil. Publicado em 2017, o documentário A Luta pelo Básico - Saneamente salvando vidas celebra os 10 anos do Instituto, que atua para que o cidadão seja informado e reivindique a universalização do serviço mais básico, essencial para qualquer nação: o saneamento. À medida em que as sociedades foram se formando e a vida se complexificando, iniciativas de saneamento foram necessárias para livrar as pessoas dos prejuízos dos rejeitos causados por elas mesmas. Essa realidade tão precária se reflete historicamente, como veremos nas próximas páginas.
A LUTA PELO BÁSICO - SANEAMENTO SALVANDO VIDAS
Escaneie o QR Code em seu celular e assista ao documentário produzido pelo Instituto Trata Brasil, em parecria com a Sabesp e Kurundu Filmes. O vídeo aborda a importância da água e do esgotamento sanitário em comunidades vulneráveis que passaram a receber esses serviços.
Foto: marco bicca | unsplash
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METAMORFOSE
EVOLUÇÃO DO SANEAMENTO BÁSICO
NOS DOIS BRASIS Praticado há milhares de anos, o acesso ao saneamento ainda é um privilégio dos mais ricos, enquanto a população vulnerável sofre com a falta de seu direito básico
E
ngana-se quem pensa que essa é uma preocupação recente. Na verdade, os serviços de saneamento vêm sendo praticados desde o período neolítico, mas de forma muito menos abrangente. Acredita-se que nos primeiros agrupamentos em aldeias, os dejetos humanos eram separados em locais específicos, longe da comunidade. Já com a chegada da Idade Antiga e a formação das primeiras cidades, as ações começaram a se complexificar. Percebeu-se que a água suja e acúmulo de resíduos podiam causar graves doenças. Assim, nasceu a ideia de sanear, higienizar, limpar. A partir daí as ações de saneamento ao redor do mundo foram tratadas conforme seu próprio contexto social e político. Às vezes, o saneamento ambiental tem sido tratado como uma política social e, por outras, apenas como uma política pública, com a lógica financeira e administrativa, muito diferente de uma ação relacionada a uma política social. Saneamento básico, de acordo com a Organização Mundial da Saúde, é o conjunto de instalações, serviços, infraestrutura, tratamento de lixo, esgoto sanitário e abastecimento de água potável. Em locais com baixo saneamento básico, há aumento de doenças como hepatite, cólera e dengue. Atualmente, pouco mais da metade da população brasileira tem acesso à coleta de esgoto - isso significa que, por volta de 100 milhões de pessoas no país, ainda não têm acesso ao esgoto recolhido. Isso sem mencionar o tratamento desses dejetos, por exemplo. De acordo com o relatório World Population Prospects 2019 da ONU (Organização das Nações Unidas), a população mundial já passou dos 7,7 bilhões em 2019, sendo que a expectativa é que, no fi nal do século, esse número chegue em 11 bilhões. Acontece que o planeta Terra e seus recursos não se expandem como a população humana.Ao contrário. A dis-
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“a regulação do uso das águas até o século XIX apenas se verificava para colocá-las a serviço do projeto de exploração econômica” cussão de superpopulação x recursos é longa e não vem de hoje. É fato que a população estar crescendo não é o cerne da questão - até porque sabemos que, se mais nenhuma pessoa nascesse a partir de hoje, nossos problemas ambientais não deixariam de existir automaticamente. No Brasil, o desenvolvimento de açãoes para tentar controlar esses problemas vem desde a exploração da colonização portuguesa. Os autores Cristina Rezende e Léo Heller dividem a história do saneamento no país em 3 grandes fases: na primeira, o Estado estava ausente das questões sanitárias (século XVI até século XIX); na segunda, o Estado assume as ações, havendo uma relação entre a melhoria da
saúde e a produtividade do trabalho (meados do século XIX até o final de 1950); e na terceira (a partir da década de 60), ocorre uma bipolarização entre as ações de saúde e as de saneamento. A saúde passa a ter cada vez mais um caráter assistencialista e o saneamento passa a ser tratado como medida de infraestrutura. Durante todo o período colonial, as ações de saneamento eram isoladas. Como apontado no artigo Uma Perspectiva Histórica das Primeiras Políticas Públicas de Saneamento e de Recursos Hídricos no Brasil, dos pesquisadores Ney Albert Murtha, José Esteban Castro e Léo Heller, as primeiras ações de saneamento se deram no Rio de Janeiro e em Pernambuco. No Rio, a canalização do rio Carioca fui usada para criação de chafarizes, propiciando o abastecimento comunitário e gratuito de água à população. Assim, o povo escravizado levava a água dos chafarizes, fontes e bicas para as casas. Além disso, os escravos também eram responsáveis pelo descarte de rejeitos no mar ou em valas. Como definem os autores, “a regulação do uso das águas até o século XIX apenas se verificava para colocá-las a serviço do projeto de exploração econômica”, como o aproveitamento hídrico nos engenhos e na mineração. Já no fim do século XIX, a estratégia adotada foi permitir concessões para empresas estrangeiras prestarem os serviços de saneamento. O resultado foi o desenvolvimento somente nas regiões mais ricas, deixando grande parte da população isolada e sem acesso. Saem as fontes públicas e entra a distribuição residencial. No início do século XX a responsabilidade dos serviços volta para a administração pública. A ideia era sanear o ambiente urbano para promover saúde pública, ameaçada pelas doenças infecciosas. O higienismo marca as obras urbanas nas metrópoles: os cortiços são proibidos, deixando às elites saneadas e os pobres destinados à miséria, sem qualidade de vida alguma. Assim, ao tempo em que modernizou estruturas sanitárias, estabeleceu a segregação social e espacial.
CORTIÇOS MODERNOS E REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA Após a abolição da escravatura, juntamente com a chegada de imigrantes estrangeiros depois de 1850, surge um novo problema: como garantir ao menos o mínimo de moradia e saneamento para essas pessoas? A resposta
Carregador de água (1835) - pintura de Johann Moritz Rugendas (1802-1858). Gravura 34 x 50,5 cm. Disponível em <https://adelantesp.tumblr.com/post/181690556761/johann-moritz-rugendas-1802-1858-carregador-de>
dada foi, basicamente, deixar isso de lado. Assim nasceram os cortiços, moradias pequenas e sem saneamento algum, alugadas para a população pobre. Embora fossem moradias precárias, era o único acesso da sociedade brasileira marginalizada. Com o crescimento desordenado das cidades, o saneamento inexistente nessas áreas criou um foco de proliferação de doenças através da água e esgoto contaminados. Mesmo após a sua proibição, nada foi feito para ajudar aquelas famílias. Na verdade, tudo piorou com as demolições em massa por todo o Brasil. A partir daí nascem as primeiras favelas, também sem o mínimo de estabilidade para as pessoas. Parece inacreditável pensar que os problemas dos cortiços no início do século 20 sejam os mesmos dos dias de hoje. As áreas com moradias irregulares desde sempre careceram de serviços públicos essenciais. A falta de regularização fundiária, ou seja, medidas para regularizar os assentamentos ilegais, faz com que as prestadoras não cheguem à esses locais. Nesse contexto, para tentar reverter essa situação, os moradores acabam buscando por soluções próprias, como ligações ilegais de água (gato/furto), por exemplo. Se continuarmos assim, a população vulnerável continuará sem acesso ao direito social à moradia e saneamento, essenciais para a qualidade de vida.
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METAMORFOSE
PANORAMA DO ABASTECIMENTO DE
ÁGUA POTÁVEL
No Brasil, cerca de 33 milhões de pessoas não tem acesso ao serviço de distribuição de água tratada
A
o chegar em casa, parece impensável não tomar um copo de água e depois tomar um banho quente. Pois nem tudo que parece, é. Desde 2014, por meio do Plano Nacional de Saneamento Básico (Plansab), o Brasil se comprometeu a universalizar o acesso à água potável até 2033. Mas os últimos dados coletados em 2017 mostram que, mesmo sendo o melhor dos indicadores de saneamento básico, cerca de 34 milhões de pessoas ainda não possuem acesso à água potável em suas residências. A Organização das Nações Unidas (ONU) estima que um bilhão de pessoas carece de acesso a um abastecimento de água suficiente no mundo, o que corresponde a uma fonte que possa fornecer 20 litros de água por pessoa diariamente e que não ultrapasse a distância de mil metros. Só você, muito provavelmente, gasta cerca de 154 litros de água todos os dias. Mas, ao contrário do que se ouve em muitos lugares, o consumo humano representa apenas uma pequena parte do consumo. Os grandes vilões do gasto excessivo de água são os gigantescos latifúndios que necessitam de 66,38% da água tratada distribuída no país. Somos uma das maiores refências em agronegócio no mundo e estamos entre os maiores produtores de alimentos e exportadores de insumos. Mas tudo isso tem um preço: a cada 100 litros de água tratada utilizadas no país, 72 são encaminhadas para o agronegócio. Enquanto isso, ainda que mais de 83% dos brasileiros possuam algum tipo de fonte de água, o restante fica comprometido. O abastecimento na área rural representa apenas 2,47% do total distribuído. Juntamente com o uso excessivo desse recurso, os fatores climáticos do país causam baixos níveis nos reservatórios e a crise hídrica aumenta a restrição de água nos estados e municípios. Para que seja possível universalizar os serviços até 2033, como prevê o Plano Nacional de Saneamento Básico (Pnsb), o país precisará praticamente quadruplicar os R$ 6 bilhões destinados ao setor em 2017 e investir, todos os anos até lá, R$ 21,6 bilhões. Enquanto isso não ocorre, pessoas seguem sofrendo e morrendo por falta de um direito tão básico. A água contaminada pode causar uma série de v e até mesmo levar à morte. Em 2017 foram
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registradas 340 óbitos relacionadas à doenças que poderiam ser evitadas com acesso ao saneamento. Mesmo nas localidades que possuem fontes de abastecimento, surge outro problema: a alta perda de água nos processos de entrega. Cerca de 38% do que é produzido nas estações de tratamento não chega às torneiras da população, seja por vazamentos, ligações irregulares ou falhas na distribuição. O panorama do abastecimento de água no Brasil ainda está longe do ideal. Enquanto uns esbanjam, outros não possuem esse direito básico de sobrevivência.
ABASTECIMENTO POR REGIÃO
57,49%
73,25% 90,13%
91,25%
89,68%
DADOS: ibge SNIS 2017 DATASUS 2017 INSTITUTO TRATA BRASIL
33 MILHÕES População sem acesso à água
154,1 litros consumo diário por habitante
30.748.657 PESSOAS RECEBEM ÁGUA DE FONTE DUVIDOSA
38,29% PERDAS NA DISTRIBUIÇÃO
R$98.854.184,26 Despesas Com Internações Por Doenças De Veiculação Hídrica(R$)
PARA ONDE VAI A NOSSA ÁGUA?
258.826
Internações por doenças de veiculação hídrica
340
ÓBITOS
9,5%
INDÚSTRIA
11,6%
USO ANIMAL
2,4%
ABASTECIMENTO RURAL
0,9%
MINERAÇÃO
9,1%
ABASTECIMENTO URBANO
66,2%
IRRIGAÇÃO
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Foto: ANDY FALCoNER / UNSPLASH VIStA DE FAVELA NÃo IDENtIFICADA, No RIo DE jANEIRo/Rj.
BRISA O CONTRASTE ENTRE OS DOIS BRASIS É GIGANTESCO. DE UM LADO, HÁ OS qUE POSSUEM CAPITAL PARA SE APROPRIAR DE ESPAÇOS PÚBLICOS, COMO PRAIAS. DE OUTROS, HÁ qUEM NÃO POSSUI NEM O DIREITO DE TER UMA CASA EM LOCAL PRÓPRIO PARA TAL.