Zéfini Cultura
OQUECÊQUÉ? IDEIA SOLTA - THIAGO AMORIM
EDIÇÃO#02
THIAGO AMORIM Criado pelas ruas da Baixada Fluminense, dono da mesa de ping pong e psicólogo. Thiago Amorim, graduado em psicologia pela UFF, com mestrado em Bioética e doutorando pela UFRJ, Fiocruz, UERJ, e UFF em associação.
Reportagem e Produção Anderson Carvalho
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IDEIA SOLTA Como e em que momento da sua vida surgiu o interesse pela psicologia?
fez emergir inúmeros questionamentos relacionados principalmente aos aspectos institucionais da igreja. Alguns pensadores cristãos que já enfrentaram este problema há algum tempo (como C. S. Lewis, Ricardo Gondim, Ed René Kivitz, e Ariovaldo Ramos) me ajudaram a refletir acerca destes questionamentos. Fora a parte institucional da religião, a fé cristã expressa na pessoa de Cristo, de modo puro e simples, certamente foi e tem sido muito inspiradora em minha experiência pessoal. Sou radicalmente contrário à postura de alguns psicólogos fundamentalistas que usam da psicologia como instrumento para propagação de uma determinada crença, e para a defesa de posturas conservadoras, tendo como pretensão uma pseudo-cientificidade deste tipo de psicologia. Cristo foi radicalmente revolucionário, questionador, desvinculado da institucionalização religiosa, andava e convivia com as minorias e oprimidos, e propunha uma perspectiva ética de efetivação de justiça para com estes. Também acho que o fato de ter sido criado na Baixada, com as vivências concretas características a esta experiência, me ajudou a compor um modo de atuação profissional atento aos aspectos sociais, históricos, políticos, e éticos.
Quando eu estava terminando o ensino fundamental, com 14 anos, me vi imerso numa pressão por ter que escolher minha profissão para a vida. Naquele momento eu deveria dizer qual curso técnico gostaria de cursar em paralelo ao ensino médio. Escolhi o curso de Eletromecânica porque achei o nome legal. Fiz inscrição no processo seletivo da FAETEC, e me matei de estudar para passar. Em geral isso acontece com a rapaziada que é filha das classes mais pobres, e os que conseguem ser aprovados são tidos como privilegiados. O ensino superior, na época (em 2001) era uma possibilidade muito distante. Na medida em que eu cumpria com as atividades do curso, fui percebendo que este não tinha nada a ver comigo. Gostava muito das aulas de filosofia, sociologia, história... E não suportava as aulas de física, mecânica, eletrônica... Saquei, na metade do curso, que minha parada era outra. Queria trabalhar com alguma coisa que possibilitasse um processo reflexivo, que privilegiasse a relação entre as pessoas. Quase desisti do curso técnico, mas decidi terminá-lo. Me formei em 2003, e trabalhei como técnico até meados de 2005 numa empresa em Olaria, perto da Avenida Brasil. Pensava em fazer filosofia ou psicologia. Naquele momento estava se iniciando uma maior abertura política do ensino superior no Brasil, e resolvi tentar vestibular para psicologia, e consegui ser aprovado para a UFF, iniciando o curso em 2006.
Falando de Brasil, você acredita que a psicologia social aplicada aqui está seguindo qual direção? Ainda há muito que avançar. Contudo, acho que no Brasil hoje tem uma galera boa que consegue colocar em ação uma psicologia crítica, comprometida com a ética, e que privilegia os aspectos coletivos e sociais. Essa postura é interessante justamente porque permite uma análise da própria psicologia e dos processos de “psicologização” da vida (ou seja, um tipo de olhar que transforma tudo em problema psicológico). Nem tudo, ou quase nada, é sintoma. As emoções e os afetos fazem parte da vida. Uma preocupação do dia-a-dia não é sinônimo de “crise de ansiedade”. Sou radicalmente contra este processo de psicologização. Tem uma rapaziada muito boa da psicologia, dentro desta perspectiva, atuando na saúde (principalmente na saúde mental e na atenção psicossocial), na educação, na assistência social, na clínica, no mundo do trabalho, nos direitos humanos, e nas políticas públicas em geral.
Que pessoas você tem como maiores referências dentro da psicologia? Na psicologia, acho que minhas principais referências são meus professores da UFF. Pra citar alguns: Luis Antonio Baptista, Marcia Moraes, Roberto Novaes, Marcelo Santana, Lilia Lobo, Cecília Coimbra, dentre outros. Mas hoje eu vejo o conhecimento de um modo mais transdisciplinar. Neste sentido, tenho referências de outras áreas também, como: Giovanni Berlinguer, Paulo Freire, Boaventura de Souza Santos, Michel Foucault, Walter Benjamin, Franco Basaglia, Freud, Sartre, Heidegger, e por aí vai. Pela proximidade que eu tenho de você, conheço a sua relação com a religião cristã. Você acha que essa base religiosa, somada a experiência de ter sido criado na Baixada Fluminense, influenciaram nessa sua escolha de uma psicologia de impacto social? Acho que sim. Mas também minha inserção e experiência na religião, como cristão da Igreja Batista,
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Sabem que eles existem e que trazem um monte de abacaxis a serem descascados. Mas, em geral, a galera não está apropriada dos principais vetores que dizem respeito a estas questões. A meu ver, a principal contribuição que a Bioética tem a oferecer a estas discussões seria a criação de um plano reflexivo, que questione os valores e estruturas morais que sustentam as posições conservadoras da sociedade a fim de verificar se estas moralidades e se estes valores estão obsoletos ou não. Caso estejam, precisamos, como cidadãos (numa dimensão singular) e como sociedade (numa dimensão coletiva), encontrar outros posicionamentos, fundados em novos valores e em novas estruturas morais. Mas aí, pra que esse processo reflexivo seja feito, é preciso convocar à discussão todos os que são afetados por estes temas, em um plano não assimétrico. Ou seja, não é ético uma discussão sobre eutanásia, sem que eu chame à discussão aquele sujeito que, de modo muito bem fundamentado e apropriado, escolheu morrer. Não é ético discutir sobre aborto ou células tronco, não trazendo à tona na discussão os posicionamentos da mulher que escolheu abortar (no caso do aborto) ou do sujeito tetraplégico que não encontra na ciência médica atual proposta de resolução para sua acentuada limitação física (no caso das pesquisas com células tronco). Não adianta fixarmos nosso posicionamento, impondo nossa opinião sem qualquer reflexão, a partir de dogmas ou da fala de líderes religiosos que estão completamente desvinculados da realidade concreta e singular dos afetados. Do mesmo modo, sobre haver uma discussão que seja efetivamente simétrica e proporcional, não podemos concordar com um tipo de debate sobre transgênicos, por exemplo, que não equipare as diferenças de poder existentes entre uma indústria do agronegócio e um pequeno produtor rural. Puxando a sardinha pro meu tema de estudo, não dá pra discutir sobre mobilidade urbana, doenças e acidentes no trabalho, assédio moral, e outros temas, colocando o diretor de uma empresa de frente para um trabalhador, acreditando que os dois possuem igualdade de poder na dimensão discursiva. Neste sentido, é necessário, antes das discussões, um processo prévio que reduza ao máximo possível as assimetrias que cercam os afetados por estas questões. Voltando à pergunta, e considerando isso tudo, como sociedade precisamos caminhar muito no sentido de reduzir as assimetrias e de conferir destaque e valor à posição daqueles que são afetados diretamente por estas e outras questões.
Como a Bioética veio ser um interesse de objeto de estudo? Foi um pouco por acaso, e por meio de uma outra área de estudo que não é a psicologia. Acho que por conta da minha experiência anterior à faculdade, de ter sido cria da baixada (que tradicionalmente é tida como um dormitório de trabalhadores que exercem suas funções bem longe de casa) e de ter trabalhado no Rio como técnico (tendo que enfrentar todo o transporte público sempre lotado e com trânsito caótico neste trajeto entre a Baixada e o município do Rio), algumas questões relacionadas ao mundo do trabalho já me instigavam muito enquanto eu fazia os meus estudos na graduação. Dentro da psicologia do trabalho existe uma interface com a área de saúde do trabalhador (um campo que tem um grande vínculo com a saúde pública). Esta interface me permitia discutir inúmeras questões que eu vivenciava desde antes da faculdade, e pra mim foi algo tão interessante que fiz meu trabalho de conclusão de curso utilizando esta abordagem. Quando terminei a faculdade de psicologia, em 2010, queria me aprofundar numa reflexão em saúde pública, principalmente em saúde do trabalhador, e busquei me especializar na área. Fui fazer uma pós em Saúde Pública na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), e lá, em uma das aulas, conheci a Bioética de modo mais apropriado. Tive algumas idéias e comecei a pensar que seria possível articular uma relação reflexiva e interventiva por meio da interface entre Saúde do Trabalhador e Bioética. A Fiocruz, juntamente com a UFRJ, a UERJ, e a UFF possuem um programa de mestrado e de doutorado em Bioética, Ética Aplicada e Saúde Coletiva, e eu resolvi me inscrever no processo de seleção para uma vaga no mestrado. Fiz um projeto propondo esta relação da área com a Saúde do Trabalhador, e acabei sendo aprovado. Desde então foi isso, mergulhei na Bioética: terminei o mestrado em 2013, fui contratado como professor da área de Bioética no Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da UFRJ neste mesmo período, e estou fazendo meu doutorado na mesma área. No dia em que troquei uma ideia contigo sobre Bioética, (que foi objeto de estudo do seu mestrado e agora do seu doutorado) não tinha sacado bem a complexidade do tema, que só percebi depois, quando pesquisei mais sobre. E pesquisando vi que os assuntos complexos, onde pode se aplicar a Bioética, precisam ser de conhecimento público e consequentemente da massa, para esses saberem as opções que existem dado um determinado caso. Você enxerga a massa da população consciente dos temas complexos discutidos hoje em dia, como a eutanásia, o uso de células tronco, os transgênicos, a clonagem e etc?
Diz ai Thiago, o que é ser psicólogo pra você? Minha profissão foi composta por inúmeros atravessamentos (experiências, conversas, leituras, relação com professores, colegas, amigos, etc) que estão para além de mim mesmo. E com todas estas coisas que fazem parte de mim, mas que não são minha propriedade, ser psicólogo, dentre muitas coisas, é estar apropriado do meu próprio ofício, sempre implicado com o compromisso ético de desconstruir, em minhas intervenções, todo o processo de “psicologização” da vida cotidiana que eu havia falado numa pergunta anterior.
Acredito que a sociedade em geral está consciente destes temas apenas até certo ponto.
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Thiagão,Oquecêqué? Curtir minha família, meus amigos, fazer coisas que eu gosto, ampliar minhas relações com gente maneira que está aí pelo mundo (e que eu ainda não conheço), e contribuir para a construção de uma sociedade efetivamente justa e implicada com a ética.
O poema “Embebedai-vos”, de Charles Baudelaire
Thiagão, já que você é um cara que devora livro, da uma dica cultural e faz teu top five de literatura. O poema “Embebedai-vos”, de Charles Baudelaire; O livro “A metamorfose”, de Franz Kafka; O livro “O alienista”, de Machado de Assis; O conto “Funes, o memorioso”, de Jorge Luis Borges; O conto “Amor”, de Clarice Lispector.
O livro “A metamorfose”, de Franz Kafka
O livro “O alienista”, de Machado de Assis
O conto “Funes, o memorioso”, de Jorge Luis Borges
O conto “Amor”, de Clarice Lispector.
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