portfólio PPGAV/EBA

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portfolio andrĂŠ leal


apresentação O portfolio que apresento para a seleção do curso de mestrado em Linguagens

relativas ao campo das artes plásticas de maneira geral, o qual me acompanha

Visuais contém os principais elementos de minha produção plástica dos últimos

há anos e que gostaria de desenvolver com maior profundidade. Como parte do

anos. No entanto, não a considero como um corpo coerente e sim esboços, ou

portfolio incluo ainda um DVD com dois vídeos de trabalhos que também estão

ensaios de projetos que poderia desenvolver no curso caso venha a ser aprovado.

impressos e, por fim um texto crítico sobre obra do coletivo artístico Chelpa Ferro

Os trabalhos apresentados a seguir são experiências, muitas delas em estágio

que foi premiado pela Universidade de São Paulo em 2011.

inicial, e foram expostas em poucas ocasiões até o presente momento. Por esse motivo, e por considerar que a prática artística também compreende investigações teóricas no sentido estrito do termo, apresento também meu Trabalho Final de Graduação apresentado na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. Tal trabalho compreende um esforço de análise de diversas correntes artísticas do século XX com o fim de estabelecer uma base para abordar produções contemporâneas as mais variadas. Pelo fato de ser uma pesquisa de crítica e historiografia artística apresentado como trabalho de graduação em uma faculdade de arquitetura e urbanismo, ele já reforça por si próprio o caráter multidisciplinar necessário para compreender a cultura contemporânea de modo geral, ainda por cima em campo tão complexo e abrangente como o das artes plásticas. Como se pode depreender de tal pesquisa, meus interesses estão muito mais voltados para questões contemporâneas relativas às artes e minha produção artística propriamente também me leva a buscar espaços nos quais possa desenvolver concomitantemente minhas pesquisas teóricas e estéticas – portanto minha clara opção pela linha de pesquisa em Linguagens Visuais do PPGAV. Em um curso de tal natureza, me sentiria muito mais à vontade de buscar temas que abordem práticas artísticas contemporâneas e que, ainda por cima, possam se relacionar e fortalecer a minha própria atuação plástica. Nos últimos anos transitei constantemente entre a prática arquitetônica e a artística, sempre acompanhada de produção teórica relacionada a essas duas áreas de conhecimento. Portanto acredito que o mestrado em Linguagens Visuais da Escola de Belas Artes seria a oportunidade ideal de desenvolver minhas reflexões


cores glamourosas O trabalho apresentado a seguir explora a quase infinita variedade de cores de esmaltes de unhas disponíveis no mercado com os mais diversos nomes, que normalmente se referem a elementos extraídos de diversos domínios e são muitas vezes associados a alguma forma de “glamour” ou status social. Assim, as cores comuns dos esmaltes de unhas deram lugar a nomes relacionados ao universo do consumo ao qual todos estamos sujeitos. As próprias linhas de esmaltes já trazem nomes sugestivos sobre o modelo que pretendem estabelecer e difundir – isso quando não são coleções assinadas por nomes da alta costura como Reinaldo Lourenço, ou então promovidas por celebridades como Ivete Sangalo. Nomes de coleções como 7 vermelhos capitais, Sweet Rock’n Roll, Espelho espelho meu, ou então nomes de tons como Atrevida, Beijo Roubado ou Pura Luxúria, para ficarmos apenas em alguns poucos, têm como objetivo aproximar a usuária do esmalte de um universo ao qual ela só tem acesso pelas novelas televisivas, promovendo dessa forma uma ligação subjetiva entre a consumidora e o universo inacessível do espetáculo. Tais nomes muito pouco têm a ver com as cores do esmalte – claro que ainda mantêm uma mínima ligação com a ideia da cor em si – mas são dados de maneira a criar essa segunda camada de significação que se remete a um universo não imediato, acessível apenas pela construção simbólica ativada por meio dessa significação. Sem tampouco entrar na questão da própria criação de tonalidades variadas ou mesmo dos efeitos colocados nas tintas – como a infinidade de tons de vermelho por exemplo e as purpurinas e “rendas” de certas linhas de esmaltes – busco uma primeira aproximação de certo modo catalogadora de algumas tonalidades de esmaltes e ao mesmo tempo que explora os efeitos do esmalte de unha sobre a tela de pintura.


Atração fatal 2012 série Cores Glamourosas esmalte de unhas sobre tela 15 x 15 cm


Jabuticaba 2012 sĂŠrie Cores Glamourosas esmalte de unhas sobre tela 15 x 15 cm


CafĂŠ Italiano 2012 sĂŠrie Cores Glamourosas esmalte de unhas sobre tela 15 x 15 cm


Carbono 2012 sĂŠrie Cores Glamourosas esmalte de unhas sobre tela 15 x 15 cm


cinzas Projeto de longa duração, a coleta de cinzas dos cigarros – os que eu fumo e os que outros fumam perto de mim – tornou-se parte de minha vida. Há cerca de seis anos sempre carrego um pote de vidro no bolso para realizar essa coleta e quando estão cheios transfiro as cinzas para os recipientes nos quais as armazeno antes de utilizá-las. Para elaborar a tinta em si explorei técnicas de produção de têmpera com gema de ovo, além de emulsões à base de água e outros algutinantes. Os resultados dependem da concentração do pigmento e da emulsão utilizada no seu transporte e a aplicação sobre telas – que resultam nos monocromatismos apresentados a seguir – traz as marcas das pinceladas, seja em de um modo mais rarefeito ou por meio do acúmulo de tinta elaboradas com fórmulas mais densas. Para além das questões formais – reconhecidamente não muito exploradas nem tampouco desenvolvidas, mas que mesmo assim trazem uma lembrança urbana ou de uma paisagem cinza tempestuosa – a relação estabelecida entre o fumo e o acúmulo de cinzas por si só desencadeia relações de consumo e utilização que rompem com a compreensão usual do ato de fumar. É o cigarro que me consome ou sou eu que o consumo, já que utilizo seu resíduo como matéria prima da tinta que fabrico. O tempo passa e as cinzas se juntam, posso assim observar como meu hábito me acompanha e reflete diferentes momentos da minha vida. Se o cigarro de maneira geral marca a passagem do tempo, as cinzas juntadas são uma medida relativa, pois se acumulam de acordo com o consumo dos cigarros, não diretamente relacionada a um tempo que transcorre linearmente, mas sim a um tempo existencial, um reflexo quase biográfico das angústias dos momentos vividos.


Sem tĂ­tulo 2011 sĂŠrie Cinzas tĂŞmpera de cinzas de cigarro sobre aglomerado de madeira 40 x 40 cm


Dispositivos de coleta s.d. sÊrie Cinzas potes de vidro e tampa de borracha com cinzas de cigarro no interior 6,5 cm de altura; 3,0 cm de diâmetro na base aproximadamente e 8,7 cm de altura; 5 cm de diâmetro na base, respectivamente


Dispositivo de armazenamento s.d. sÊrie Cinzas copo de vidro 9,3 cm de altura; 6,7 cm de diâmetro na base


Sem título 2010 série Cinzas têmpera de cinzas de cigarro sobre tela 30 x 30 cm


Sem título 2009 série Cinzas têmpera de cinzas de cigarro sobre tela 30 x 30 cm


Sem título 2009 série Cinzas têmpera de cinzas de cigarro sobre tela 30 x 30 cm


Vazio urbano 2007 sĂŠrie Cinzas tinta a Ăłleo e tĂŞmpera de cinzas de cigarro sobre tela 30 x 30 cm


Sem título 2007 série Cinzas solução de cinzas de cigarro sobre tela preparada com argila branca 30 x 30 cm


Produção intensiva 2011 (2009) série Cinzas fotografia digital 30 x 39 cm


aproveitamento da vida Outro projeto de longa duração que também me acompanha há alguns anos surgiu de um interesse em acompanhar o tempo dormido e comparar diferentes períodos da vida em relação à quantidade de horas dormidas. Depois de anotar diariamente em uma caderneta as horas dormidas, registrando a hora dormida e a hora acordada e a diferença entre elas, passo a última informação para uma planilha Excel que transforma essa informação em dados relativos e absolutos, podendo deles ser extraídas comparações como o total de horas dormidas por dia, por mês ou por ano e a média de horas dormidas em determinados períodos, bastando modificar as fórmulas que determinam os cálculos a serem realizados. Além do próprio interesse em tais números que demonstram diferentes aspectos e características da vida contemporânea, a tabulação e a própria tomada de notas pode converter-se em um registro do tipo de um diário, já que as horas dormidas variam não só de acordo com as mudanças de rotina na vida de maneira geral, mas também de acordo com períodos do ano tais como finais de semana e férias, por exemplo. Assim, por meio do registro de minha rotina de sono acabo entrando em contato com novas maneiras de experimentar o hábito do sono e da vigília.


Dia 2010

abril

março

tempo de sono (hs) tempo de sono (min.) total minutos diários

7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 22 23 24 25 26 27 28 29 30 31

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 Contabilização19 (exemplo) s.d. 20 série Aproveitamento da vida 21 planilha Excel 22 dimensões variáveis 23 24

6 0 6 7 7 8 7 6 7 3 5 6 6 7 7 7 3 6 6 8 8 8 6 8 6

55 0 30 20 0 35 45 55 35 40 45 5 35 35 20 40 50 25 15 55 35 0 35 5 40

415 0 390 440 420 515 465 415 455 220 345 365 395 455 440 460 230 385 375 535 515 480 395 485 400

7 7 6 7 7 6 6 7 7 7 6 5 6 7 9 7 7 6 6 7 6 6 7 7

40 25 30 35 40 25 55 10 55 15 15 50 45 10 5 0 5 50 35 0 25 15 55 10

460 445 390 455 460 385 415 430 475 435 375 350 405 430 545 420 425 410 395 420 385 375 475 430

total (min.)

9995

total hs (decimal) total (dias dormidos) média diária hs (decimal)

166,5833333

6,940972222

6,663333333


Folhas de anotação diária s.d. série Aproveitamento da vida grafite, caneta esferográfica e tinta nanquim sobre papel sulfite 10 x 6,5 cm cada folha


atentados brancos Os atentados terroristas são uma das principais formas de violência política da atualidade. Se em todo o século XX eles marcaram as lutas contestatórias ao sistema estabelecido ou a resistência a poderes ditatoriais, depois dos ataques às Torres Gêmeas em 11 de setembro de 2001 os atentados terroristas ganharam nova conotação de maneira geral. Muito mais do que um ataque que visse neutralizar um certo poder soberano, eles podem expressar simplesmente uma contestação difusa em relação ao poder imperial e à imposição de modos de vida a povos culturalmente diferentes. Quando um governo dito democrático é atacado invoca-se logo a ideia de uma tragédia gratuita e “bárbara”, mas na verdade esse ataque pode apenas conter um tipo de reivindicação por maior respeito a modos de vida diversos daqueles impostos pela sociedade de consumo ocidental – não que pregue uma legitimidade dos atentados de 11 de setembro, mas uma leitura mais abrangente de um fenômeno que é logo caracterizado como pura violência e massacre de inocentes deve ser feita. Com esse novo tipo de atentado difuso podemos ser a qualquer instante vítimas de um homem-bomba, principalmente se habitamos um país cujo governo patrocina guerras distantes e também difusas de certo modo. Uma bomba explode no centro da cidade e centenas de pessoas inocentes são mortas e feridas. Mas aqui explode uma bomba branca, um pó de talco – não de antraz – se espalha pela cidade e os cidadãos olham atônitos para tal acontecimento, com medo de se tornarem vítimas aleatórias da “insensatez terrorista”. Mas esse evento nada tem de violento. É uma ação poética, um clamor para que os transeuntes, em seu susto, retenham seu passo e analisem suas ações, analisem as ações terroristas em si e analisem as ações do Estado que age em seu nome. E dessa forma revejam o poder por nós delegados aos governantes e o discurso que recebemos formatados pelos grandes meios de comunicação que tendem a transformar tudo e todos em objetos de sua fala. Veja também vídeo no DVD anexo.


omba 2010 sÊrie Atentados brancos bexiga preta, talco e explosivo 15 cm de diâmetro aproximadamente


Explosão no minhocão 2010 série Atentados brancos fotograma de vídeo em mini-DV


projeto apartamento A ação foi realizada pelo coletivo artístico Cadeira Branca em um edifício abandonado em São Paulo. Em um primeiro momento levamos uma cadeira, um colchão, uma televisão, uma privada, um bidê e tapetes, todos retirados de caçambas da cidade e portanto destinados ao abandono e à destruição em um aterro sanitário. Depois de ser configurada a sala de estar do apartamento, outros ambientes foram sendo desenvolvidos com mais móveis e elementos encontrados em caçambas e as áreas que um dia deveriam ser destinadas ao uso comum por uma família foram sendo simuladas nesse ambiente de abandono representado pelo esqueleto do edifício. Logo o local tornou-se ponto de reunião entre os integrantes do coletivo e outros usuários da estrutura – desde moradores de rua que buscavam abrigo em suas lajes até estudantes universitários que realizavam churrascos no local. Um centro de convivência autônomo e espontâneo logo foi estabelecido a partir do impulso dado pela ocupação artística e as possibilidades representadas pela estrutura abandonada passaram a instigar cada vez mais os integrantes do coletivo. No entanto, a própria lógica imobiliária de uma cidade como São Paulo, que permitiu que o prédio ficasse em tal estado por mais de catorze anos, acabou interrompendo a atividade do grupo, já que a construção foi retomada apenas alguns meses depois que a ação começou. Atualmente famílias habitam a laje que um dia serviu a essas experiências estéticas que buscavam iluminar esse recôndito da cidade esquecido pelo capital que move sua construção. A função social que o edifício representava e que havia sido desviada por seu abandono, acabou sendo retomada pelos seus donos legítimos, mesmo que a função buscada pelos integrantes do coletivo seria “muito mais” social se entendida como construção coletiva do espaço urbano e ponto de contato entre diferentes atores sociais. Veja também vídeo no DVD anexo.


Fotografia 2006 sĂŠrie Projeto Apartamento fotografia digital impressa sobre papel fotogrĂĄfico 30 x 39 cm


Sala de estar 2006 sĂŠrie Projeto Apartamento fotografia digital impressa sobre papel fotogrĂĄfico 30 x 39 cm


Contemplando 2006 sĂŠrie Projeto Apartamento fotografia digital impressa sobre papel fotogrĂĄfico 30 x 39 cm


desenhos Os desenhos apresentados são alguns dos mais significativos realizados durante minha vida e expressam a relação que sempre tive com tal atividade. A maioria são simples “exercícios representativos”, enquanto outros fazem parte de séries mais ou menos formuladas, como as cópias das radiografias de meu tornozelo operado após acidente automobilístico. A primeira imagem dessa seção não é um desenho propriamente, mas sim uma impressão das áreas verdes da região central da cidade de São Paulo extraídas de base cartográfica. Essa imagem expõe ao mesmo tempo a falta de áreas verdes nessa cidade e o mau uso que é dado a elas, mas o faz por meio de uma apresentação estética que causa estranheza no observador e amplifica os efeitos nele. De todo modo os desenhos fazem parte de minha vida de maneira geral e são parte indissociável de minha personalidade.


Ă reas verdes de SĂŁo Paulo 2011 plotagem sobre papel sulfite 150 g 100 x 150 cm


Externa 2011 sĂŠrie FAUUSP grafite, nanquim e tinta permanente sobre papel sulfite 21,0 x 29,7 cm


Ponto de 么nibus 2012 grafite sobre papel sulfite 14,8 x 21 cm


Casal 2009 grafite sobre papel manteiga 21 x 29,7 cm


Igreja Matriz de Piren贸polis 2009 grafite sobre papel 180 g 21 x 29,7 cm


Tornozelo 2008 sĂŠrie ExperiĂŞncias de quase-morte (Near-death experiences) grafite sobre papel manteiga 21,2 x 19,6 cm


ExercĂ­cio representativo 2006 grafite e tinta nanquim sobre papel sulfite 21 x 29,7 cm


Dafodil 1994 pastel sobre papel 120 g 21 x 29,7 cm


fotografias Da mesma maneira que os desenhos, as fotografias aqui apresentadas são exercícios de apreensão de uma realidade subjetiva e podem ser apenas registros isolados ou compor séries dirigidas. Tal é o caso de Lambendo Borges por aí, série da qual são apresentadas duas fotografias de uma mesma ação, realizada em Vitória (ES), mas que foi feita em outras cidades do Brasil. A série consiste em grudar pequenos adesivos com frases extraídas de livros do escritor argentino Jorge Luis Borges em muros das cidades para literalmente introduzir um pouco de poesia no cotidiano corrido de uma grande cidade. Outra série da qual uma fotografia é apresentada são os experimentos de light-painting, ou pintura com luz, na qual fantasmagorias de corpos são criadas, ou então encontros inusitados do autor consigo próprio são criadas, como na fotografia apresentada. Explorando também se refere a uma ação de prospecção de uma casa abandonada na zona leste da cidade de São Paulo à maneira de Projeto Apartamento. Por fim, cabe ressaltar que técnicas fotográficas diversas são utilizadas para buscar diferentes maneiras de apreensão e consequente mediação da realidade.


indo - voltando 2011 fotografia em película cromo 35 mm revelação cross-process (C-41) impressa sobre papel fotográfico 30 x 90 cm


Praia do Canto - Vitória (ES) 2011 série Lambendo Borges por aí fotografia digital


Explorando 2012 fotografia em pelĂ­cula 35 mm impressa em papel fotogrĂĄfico 30 x 45 cm


Puente de las Mujeres 2008 fotografia em película cromo 35 mm revelação cross-process (C-41) impressa sobre papel fotográfico 45 x 30 cm


Encontro 2009 light-painting - fotografia digital 30 x 39 cm


a dimensão sônica do mundo Texto como apresentado para o prêmio 19° Programa Nascente da Universidade de São Paulo e que recebeu menção honrosa na categoria Texto.

A dimensão sônica do mundo Antes de entrarmos no espaço expositivo já somos atingidos por uma reverberação indistinta que se oferece como uma primeira apreensão da obra de arte. Avançamos e nos deparamos com uma infinidade de diminutos seres de barro, inertes em sua placidez material. Deles saem vozes que solfejam os números de um a sete remetendo-nos simultaneamente às sete notas musicais e a uma contagem redundante do tempo. Os sons que os vasos emitem, no entanto, não são tão claros a ponto de que percebamos os números com clareza; a mixagem e a distribuição dos sete canais que participam da composição embaralham o sentido das palavras e, junto com a reverberação acústica no interior dos vasos de diferentes formatos, realizam uma outra sinfonia, apreensível apenas no espaço da galeria. Passeamos por entre as fontes sonoras e o som se altera de acordo com a posição em que nos encontramos no espaço expositivo. Som que parecia uno e uniforme, a ‘música’ aqui produzida se torna cambiante como a argila de que estão feitos os vasos, ou então como o próprio ruído urbano, que nunca expõe suas fontes com clareza e se modifica a cada esquina que alcançamos. Apenas um barulho se mantém constante: a reverberação dentro dos vasos, que nos lembra o marulho ou sons de um pasto distante em nossa memória. O grupo Chelpa Ferro promove aqui uma verdadeira apropriação do espaço expositivo, que se torna a um só tempo receptor deste ruído e também seu propulsor, propagando-o para além dos limites da própria sala na qual está o trabalho. O ar aqui é o principal elemento constitutivo da obra. A dimensão contemplativa do som, de fato quase que ecos de um canto gregoriano contemporâneo, amplia-se pela quase não interferência do grupo no espaço expositivo; à altura dos olhos poderia se dizer que não há nada na sala, apenas som. E o som é utilizado nesse caso como matéria escultórica tanto quanto a argila dos vasos. Marca maior da manipulação sonora, o tempo da experiência artística é aqui marcado pelo tempo da composição que o grupo nos apresenta e de nosso percurso entre esses corpos estranhos à feição de alta cultura que o espaço nos impõe. Com a industrialização e a consolidação da vida urbana, novos sons apareceram na paisagem da cidade; atualmente nossa vida se caracteriza por um constante tráfego entre diferentes fontes sonoras que se perdem em uma cacofonia generalizada, composição


sonora maior de nossa experiência urbana. Os vasos de Acusma nos trazem de volta

compartilhação das máquinas no trabalho humano. [...] No entanto, o som musical é muito

a esse universo móvel no qual as fontes emissoras de sons estão ocultas pelos mais

restrito na variedade e qualidade de seus tons. [...] Devemos romper a todo custo com esse

variados aparatos e poucas vezes são identificáveis com precisão. Estamos diante de uma

círculo restritivo de sons puros e conquistar a variedade infinita dos sons-ruídos”2. A título de

reconfiguração da própria apreensão que temos do espaço que nos envolve em nossa vida

ilustração de suas proposições, o artista apresenta uma carta que o poeta futurista Marinetti

cotidiana.

lhe enviara das trincheiras búlgaras descrevendo “a orquestra de uma grande batalha”.

O grupo carioca Chelpa Ferro, com suas recentes obras Microfonia e Acusma, renova

Russolo defende o uso dos ruídos pela sua capacidade de “nos trazer de volta à vida”,

seu repertório sonoro, que nos ajuda, junto com os de diversos outros artistas, a ampliar

em contraposição ao domínio da música que teria sido relegado a esfera dissociada da

nossa capacidade de apreender a amplidão sonora do mundo. A experiência urbana é objeto

vida ao longo da história por sua característica sagrada e ritualística. Ele propunha, para

de experimentações artísticas desde sua intensificação à época da Revolução Industrial.

tanto, não apenas a reprodução desses sons, como também sua reordenação, edição e

Em fins do século XIX, Baudelaire descrevia a experiência do flaneur na Paris fin-de-siècle

mesmo sua criação a partir de mecanismos feitos com essa finalidade. “Assim que tivermos

e definia os contornos de uma nova atitude artística que iria colocar em contato o encontro

encontrado o princípio mecânico que produz certo ruído, seremos capazes de graduar seu

casual com os desconhecidos na multidão com o ritmo que as máquinas estavam a impor no

andamento de acordo com as leis da acústica. [...] Essa nova orquestra irá produzir as

modo de vida de seu tempo. Simultaneamente, escritores como Alfred Jarry, Arthur Rimbaud

mais novas e complexas emoções sônicas, não uma sucessão de ruídos miméticos que

e Stéphane Mallarmé, colocavam em dúvida as convenções tanto da linguagem em si

reproduzem a vida, mas pelo contrário, por meio de uma associação fantástica desses sons

quanto das formas de utilização desta pelas artes literárias. Assim, não é de surpreender

variados”3.

que em 1908 o poeta inglês Arthur Symons, ao ver os primeiros automóveis invadirem as

Outro grupo que contribuiu muito para a ampliação de nossa percepção dos

ruas londrinas, tenha escrito “Londres que era vasta e enfumaçada e barulhenta, agora fede

ruídos modernos foram os dadaístas reunidos no Cabaret Voltaire e dos quais Richard

e reverbera; viver nela é viver no buraco de um sino badalando” .

Huelsenbeck foi um dos maiores expoentes nas composições às quais eles deram o

1

As artes plásticas também se voltaram à reordenação da apreensão da vida urbana de

nome de bruitistas4. Esse termo deriva justamente das experiências realizadas pelos

um modo geral. Todos os cânones sensoriais estavam na mira dos artistas das vanguardas

futuristas italianos e que lhes serviu de referência às suas próprias ações. No cerne da

do começo do século XX. Os sons que o mundo emite também não poderiam ficar de

preocupação dos artistas desse grupo, tais como Tristan Tzara e Hugo Ball, no entanto,

fora. Deste modo a música instituída também foi severamente atacada pelas artes, que

estava a linguagem em si, que foi amplamente explorada em recitais no Cabaret. Como

reivindicavam para si os ruídos da cidade e das máquinas. Um dos grupos mais prolíficos

relata Douglas Kahn, em 29 de março de 1916 Richard Huelsenbeck, Tristan Tzara e Marcel

nesse sentido foram os futuristas italianos com sua paixão pelas máquinas e pela guerra,

Janco recitaram o poema “L’admiral cherche une maison à louer” simultaneamente em

também em sua dimensão sonora. Em 1913 Luigi Russolo escreveu “A arte do barulho”

inglês, alemão e francês, gerando uma sobreposição de vozes que anula o sentido imediato

no qual esboçou um paralelo entre as máquinas e a sensibilidade contemporânea, assim

do texto, dando-lhe nova forma que só adquire sentido no espectador. Ademais, o próprio

como atacou a música por uma busca da pureza sonora. “Hoje em dia a arte musical mira os mais estridentes, estranhos e dissonantes amálgamas de sons. Assim, estamos nos aproximando do som-ruído. Essa revolução da música é paralela à crescente proliferação da 1 em: Ratcliff, Carter. Max Neuhaus: Aural Spaces, in: Art in America, outubro de 1987. p. 154-162 ““London that was vast and smoky and loud, now stinks and reverberates; to live in it is to live in the hollow of a clanging bell.””

2 Russolo, Luigi. The Art of Noise (futurist manifesto, 1913). Nova Iorque: Something Else Press, 1967. “Nowadays musical art aims at the shrilliest, strangest and most dissonant amalgams of sound. We are approaching a noise-sound. This revolution of music is paralleled by the increasing proliferation of machinery sharing in human labor. […] However, musical sound is too restricted in the variety and the quality of its tones. […] We must break at all cost from this restrictive circle of pure sounds and conquer the infinite variety of noise-sounds.” 3 id. “As soon as we will have found the mechanical principle which produces a certain noise, we will be able to graduate its pitch according to the laws of acoustics. […] This new orchestra will produce the most complex and newest sonic emotions, not through a succession of imitative noises reproducing life, but rather through a fantastic association of these varied sounds.” 4 brutisme: termo desenvolvido à partir das colocações de Russolo pelos artistas mencionados.


texto, escrito por Hugo Ball, já era composto de palavras sem sentido, vocábulos, cânticos

ouvinte se isole do resto das pessoas”8. Em tempos de iPod as palavras de Cage ganham

e assobios. Uma das maiores preocupações de Ball era justamente essa recomposição

contornos proféticos, ainda mais quando ele afirma que no futuro produtores e consumidores

do sentido das palavras, “devemos voltar à alquimia [rimbaudiana] da palavra, devemos

musicais se confundirão cada vez mais na mesma figura.

inclusive renunciar à palavra também, a fim de conservar o último e mais sagrado refúgio

As experiências de John Cage também passavam, portanto, pelo tema da redefinição

da poesia” . Essa prática ligava-se ao chamado simultaneísmo que Tzara elaborou e que

do campo sonoro que entendemos como música, abarcando ainda os sons não-intencionais

consistia esse tipo de ação voltada à desconstrução da linguagem, entendida em sua

ou inerentes à existência, como o som do corpo humano ou o som do silêncio inexistente de

transmissão e recepção. Isso a aproximava também da nascente tecnologia sem fio de

sua 4’33’’. Moacir dos Anjos define muito bem essa abordagem de Cage, ao afirmar que ele,

emissão radiofônica que tinha ainda o potencial de igualar os espaços acústicos em todo

“contrapondo-se à ideia de que o som seria experimentado em pedaços, instituía a ideia de

o mundo, algo que hoje em dia parece estar plenamente realizado pelas tecnologias da

um campo sônico contínuo, embora sempre atrelado a um contexto preciso”9. Cage coloca

comunicação. Esses modos de atuar que os dadaístas desenvolveram, apesar de expressos

ainda suas ações como “situações musicais que constituem analogias de circunstâncias

por meio de diversos meios e suportes pareciam se realizar plenamente apenas através

sociais desejáveis, ainda não alcançadas”, tornando “a música sugestiva e relevante para

das experimentações sonoras do grupo, principalmente em seus recitais de poesias

as questões sérias que afrontam a Humanidade”10. Essa sua colocação o aproxima muito do

simultaneístas. Um tema que se fazia presente em tais apresentações eram também os

tema que Nicolas Bourriaud desenvolve sobre a produção artística contemporânea expressa

sons de povos “exóticos”, como nos poemas negros de Huelsenbeck da década de 1910,

em seu Estética Relacional ao dizer que a arte hoje “apresenta modelos de universos

que sempre incluíam um “umba umba”, ou nas poesias de Ball, que ele declamava em

possíveis”11. Os trabalhos de Cage atuam ainda em direção à uma “desmilitarização da

“estilo de cântico litúrgico” , ocidentais ou orientais.

linguagem”12, que remetem às experiências dos escritores modernistas, como os dadaístas

5

6

Na década de 1940 essas ideias foram retomadas por Pierre Schaeffer que elaborou a noção de “música concreta” e realizou inúmeras composições a partir do registro de

já citados, e da poesia concreta que tem suas origens na década de 1950. A filosofia oriental era uma presença marcante desde as performances dadaístas

diferentes fontes sonoras, como por exemplo os sons de uma via férrea. Deste modo,

e a relação com um sentido de liturgia pode ser identificado nessas práticas, que ao fim

ele abordava uma característica fundamental da reprodutibilidade técnica do som e de

têm como proposta um reencontro da humanidade desencantada pelo mundo mecânico e

sua “transmissão radiofônica: a capacidade de separar os sons de suas fontes visíveis”,

científico da modernidade com sua essência anterior à linguagem e à apreensão mediada

assim “subvertendo a hegemonia da visão para tornar possível a experiência do “som

do mundo. É nesse sentido que o poeta sueco-brasileiro Oyvind Fahlström diz que ao

enquanto tal””7. O compositor John Cage, por sua vez, abordou tal tema de maneira distinta,

colocarmos “palavras conhecidas em tais conexões estranhas estamos quebrando com

reivindicando o uso dos ruídos para ativar novos modos de sociabilidade e vendo as fontes

a segurança do leitor no contexto sagrado entre a palavra e seu significado fazendo com

emissoras como inseparáveis dos sons que produziam. Nesse sentido, expressa termos

que ele sinta que os significados tradicionais são tão arbitrários, ou tão pouco arbitrários

opostos aos de Schaeffer em relação à gravação e reprodução sonora: “a popularidade da

quanto aqueles novos significados ditados”13. Ele vai além ao afirmar que “qualquer ataque

gravação é desastrosa, não só por razões musicais, mas por razões sociais: permite que o

5 Kanh, Douglas. Los ruidos de la vanguardia, em: La exposición invisible. Madrí: V.E.G.A.P., 2006. 6 Kanh, Douglas. id. 7 Cox, Christoph. Lost in Translation – the discovery of synaesthesia, in: Artforum, outubro de 2005. “Pierre Schaeffer celebrated a defining property of audio recording and radio transmission: the ability to separate sounds from their visible sources. […] Schaeffer, however, argued that records and radio triumphantly subvert the hegemony of vision to make possible the experience of “sound as such”.”

8 Cage, John: O futuro da música, in: Ferreira, Glória e Cotrim, Cecilia (orgs.). Escritos de artistas – anos 60/70. São Paulo: Jorge Zahar, 2006. 9 dos Anjos, Moacir: O barulho do mundo, in: Chelpa Ferro. São Paulo: Imprensa Oficial, 2008 10 id. Cage, John 11 Bourriaud, Nicolas. Estética Relacional. São Paulo: Martins Fontes, 2009. 12 ibid. Cage, John 13 Fahlström, Oyvind. Manifesto for Concrete Poetry. disponível em: http://www.ubu.com/papers/fahlstrom01.html “You can also go one step in this direction by putting well-known words in such realized strange connections that you undermine the reader’s security in the holy context between the word and its meaning and make him feel that conventional meanings are quite as much or quite as little arbitrary as the dictated new meanings.”


dirigido à forma válida da linguagem será um enriquecimento dos desgastados caminhos do

rumos da música de sua época e partiu para uma exploração do “contínuo do sonoro”

pensamento”14, e ainda relaciona suas colocações diretamente com as práticas concretistas

que marca nossa existência. Sua prática inseria o campo sonoro das artes visuais em um

de Schaeffer de apropriação dos sons emitidos pelo cotidiano de uma cidade moderna.

mesmo patamar que tinham a escultura e a pintura em suas propriedades materiais. Em

Assim, afirma Fahlström que Schaeffer “criou uma interferência com o próprio material por

suas instalações sonoras, termo inclusive introduzido por ele em 1967, Neuhaus manipula

meio da separação: os elementos não eram novos: os novos contextos formados é que

os sons enquanto tempo que se desenvolve no espaço, reintroduzindo-nos neste espaço,

dão caminho a um novo material” . O poeta apresenta também uma reivindicação por toda

agora aurático, de suas práticas sonoras. Suas instalações modelam o espaço no qual

forma de material e de linguagem, ampliando as colocações até aqui apresentadas de uma

estão inseridas, mas, ao contrário de esculturas, que se inserem pontualmente no espaço

ressignificação dos sons emitidos pela sociedade moderna, e aproximando-se de práticas

expositivo, elas o preenchem por completo. “O espectador precisa gastar pelo menos

absolutamente em voga atualmente nas artes de modo geral.

algum tempo andando em volta de uma escultura, mas mesmo se o objeto se sujeita a essa

15

A música concreta de Schaeffer serviu também de inspiração a outra prática concretista, na qual John Cage também teve papel preponderante, aquela do grupo Fluxus

necessidade ele tenta transcender o tempo com uma inércia exemplar. As figuras auditivas cambiantes de Neuhaus comprometem-se com o tempo. Elas se infiltram nele”18. A indústria musical também acompanhou em certa medida essa evolução, com

formado por artistas de diversas nacionalidades na década de 1960. Um dos participantes mais destacados do grupo, George Maciunas, afirma que “um som material ou concreto

muitos grupos se apropriando de fontes sonoras inusitadas e deslocando assim sua

é reputado como tendo estreita afinidade com os objetos materiais que o produzem”16,

significação contextual, ou se utilizando de aparatos especificamente construídos para a

colocando-se ao lado de Cage e expressando características comuns nas práticas de muitos

composição musical. Isso sem mencionar a música eletrônica e as capacidades de mixagem

artistas do Fluxus. Essas práticas são identificáveis principalmente na obra de artistas como

que a tecnologia permitiu que surgissem e se estabelecessem nas práticas musicais

Nam June Paik, La Monte Young e George Brecht, que envolviam muitas vezes a linguagem

contemporâneas. O DJ e o produtor musical, por meio do sampler e do mixer, realizam na

e os meios de comunicação como materiais de seus trabalhos. Uma meta dessa atuação

música aquilo que Duchamp introduziu nas artes plásticas com seus readymades e assim

era também a dissolução da arte na vida como colocado por Maciunas: “Se o homem

participam dessa reordenação de nossa sensibilidade com relação ao cotidiano. Outro

pudesse, da mesma maneira que sente a arte, fazer a experiência do mundo, do mundo

elemento de forte presença na sociedade brasileira atualmente e que não pode deixar de ser

concreto que o cerca (desde os conceitos matemáticos até a matéria física), ele não teria

citado são as festas de aparelhagem do Pará e as bandas de tecnobrega que inserem-se no

necessidade alguma de arte, de artistas e de outros elementos “não-produtivos””17. Essa sua

mercado (“informal”) justamente por meio da venda de CDs “piratas” que as próprias bandas

colocação o aproxima ainda de outro artista que esteve na origem do grupo Fluxus, Joseph

produzem, suscitando questionamentos acerca do mercado musical e da propriedade

Beuys, que apesar de ter um trabalho que colocava questões diversas a essas, também

intelectual. É nesse sentido também que Nicolas Bourriaud aproxima a prática dos artistas

experimentou com a música e os sons produzidos pelo homem.

contemporâneos com a de DJs, que se apropriam de elementos de diversas origens para

Outro artista que não pode deixar de ser apontado nesta cronologia é Max Neuhaus,

suas composições19. É esse o contexto pelo qual circula a obra de Chelpa Ferro, grupo carioca formado em

que na década de 1960 abandonou sua carreira de músico para explorar as implicações sonoras na vida cotidiana. Assim como Russolo, Neuhaus dizia-se discontente com os 14 Fahlström, Oyvind. id. 15 Fahlström, Oyvind. id. “He had created an interference with the material itself by means of separation: the elements were not new: the newly-formed context yielded a new material.” 16 Maciunas, George: Neodadá em música, teatro, poesia e belas-artes, in: Ferreira, Glória e Cotrim, Cecilia (orgs.). Escritos de artistas – anos 60/70. São Paulo: Jorge Zahar, 2006. 17 id.

1995 pelos artistas plásticos Barrão, Luiz Zerbini e Sérgio Mekler e pelo produtor musical Chico Neves, que saiu em 2003. Como Moacir dos Anjos coloca, o trabalho do grupo não 18 19

Ratcliff, Carter. Max Neuhaus: Aural Spaces, in: Art in America, outubro de 1987. p. 154-162 Bourriaud, Nicolas. Pós-produção: como a arte reprograma o mundo contemporâneo. São Paulo, Martins Fontes: 2004.


é apenas a soma das trajetórias individuais desses artistas, apesar de uma marca que os

simbólico ao desejo expresso e cristalizado pelo automóvel, o grupo Chelpa Ferro neste

leva a “juntar pedaços de vários lugares e em mídias as mais diversas”, evidenciando “uma

trabalho coloca o espectador diante da fragilidade do material que constitui esse objeto ao

coerência que é forçosamente arbitrária e provisória, tornando-se índices da impermanência

qual damos tanta confiança. O grupo se utiliza do carro por sua capacidade percursiva,

da relação entre as coisas e as ideias”. O grupo expressa assim um interesse pelo

servindo também como base para a desconstrução de nossas certezas e seguranças que

“impreciso e pelo transitório” em suas instalações e performances sonoras20. Da mesma

os produtos industriais nos trazem. O Maverick exposto aos visitantes da exposição como

forma que em nossa experiência urbana, os sons de Chelpa Ferro se impõem sobre nossa

objeto quase autônomo amplia essa dimensão da obra, mas ao mesmo tempo serve como

percepção, unindo as fontes – visíveis e invisíveis – com o ambiente que as contém, tanto

indício da ação e do som que ela produziu.

fisica quanto culturalmente. De diversas maneiras o coletivo dialoga com esse repertório

É essa a dimensão colocada também pelo trabalho Moby Dick de 2003, no qual o

artístico do século XX em seus trabalhos, indo desde a justaposição de sons e fontes

grupo expõe unicamente uma imensa bateria, composta pelos mesmos elementos daquela

urbanas de ruído, como na vídeo-instalação 100 metros rasos, até a criação de objetos

que John Boham tocou em 1969 com sua banda Led Zepellin a música de mesmo nome.

produtores de ruídos, como em suas performances ao vivo nas quais um liquidificador pode

No trabalho de Chelpa Ferro, no entanto, a bateria não está ali para ser tocada, mas

ter a mesma função que uma guitarra. Ou então na ação Autobang realizada na abertura da

apenas para ser vista. “A bateria é apresentada aqui, de fato, apenas como potência de

25ª Bienal de São Paulo em 2002, na qual um carro Maverick 1974 foi destruído para dele

som que a visão icônica do instrumento ativa na memória. Ou como barulho que, inscrito na

serem retirados todos os sons que poderia conter um objeto de tal sorte.

lembrança de uma forma, pode, diante da imagem dessa, ser recordado”22. O grupo, deste

A escolha de um carro para a realização da performance foi feita pela sua capacidade

modo, articula distintas relações entre nossos sentidos e os modos como eles apreendem

potencial como instrumento percursivo e ainda pela carga simbólica que contém. Nas

o mundo. Não se trata apenas de trazer a audição à primazia em relação aos outros

palavras do próprio grupo, “um carro que despertasse algum tipo de desejo latente nas

sentidos, mas sim de se afirmar a correlação entre eles e o potencial criativo que cada um

pessoas, que tivesse um apelo sexual implícito, essas coisas que só carros, baterias e

deles encerra em sua relativa autonomia sensorial. Tampouco buscam uma construção

guitarras elétricas produzem” . A ação iniciou-se com os membros dos grupos e convidados

sinestésica no espectador no sentido estrito; os trabalhos de Chelpa Ferro antes confundem

seus batucando no carro com baquetas as mais diversas – das baquetas propriamente

nossos sentidos e recompõem nossa capacidade sensorial repleta de vícios adquiridos

às ferramentas que fazem parte do universo do automóvel, passando por ossos, como

desde a infância. Muitos outros trabalhos do grupo poderiam ser utilizados para exemplificar

que a unir em uma mesma ação fontes variadas de representação da produção industrial,

esse trânsito entre formas de atuar com o som nas artes visuais, mas algo que deve ser

que aqui deve ser compreendida como mais um estágio da história da cultura humana.

salientado é a importância que é dada ao público por eles. Não apenas de forma interativa

O batuque aos poucos foi ganhando força e as batidas aumentando em intensidade,

propriamente, como ao acionar um pedal em Nadabrahma, ou ao jogar pebolim em Totó

cada vez agredindo mais a superfície-fetiche do Maverick. No clímax da ação o público

treme terra, mas no sentido de que toda ação e obra do grupo só estará completa quando o

acabou pegando instrumentos e entrando na batucada que ecoava pelo prédio da Bienal

espectador a terminar em sua própria apreensão dela.

21

preenchendo seu espaço monumental. Após a performance, a carcaça retorcida do carro

Recentemente o grupo tem apresentado trabalhos que se voltam mais à natureza do

ficou exposta junto com os instrumentos utilizados, como que a guardar os traços daquele

som de maneira imediata. Microfônico e Acusma exploram modos de propagação sonora

evento-ritual de ampliação de nossa perspectiva sônica e, neste caso especificamente,

ou de reverberação frutos dos aparatos eletrônicos que regem esse ambiente sonoro do

da dimensão material do mundo que se apresenta aos nossos olhos. Além deste ataque

qual o mundo é composto. O primeiro trabalho aborda de maneira literal a microfonia gerada

20 21

dos Anjos, Moacir: O barulho do mundo, in: Chelpa Ferro. São Paulo: Imprensa Oficial, 2008 Chelpa Ferro. São Paulo: Imprensa Oficial, 2008

22

dos Anjos, Moacir: O barulho do mundo, in: Chelpa Ferro. São Paulo: Imprensa Oficial, 2008


pelo microfone quando colocado para amplificar o ruído dentro de um vaso com água que

em detrimento da visual, participando assim dessa mudança sensível levada a cabo pelas

não emite som algum à princípio. É a reverberação do ar e o mecanismo de captação

artes do século XX. Os vasos de Acusma, portanto não abrigam propriamente os aparatos

sonora do microfone que realizam o som que preencherá o espaço expositivo. O espectador

eletrônicos que emitem o som; eles de fato escondem as fontes emissoras de ruído que

atua também no acionamento desse mecanismo a partir do pedal que põe em movimento

participam da composição e ocupam assim o lugar dessas fontes, em última instância.

o microfone em sua trajetória sobre os vasos com água em diferentes níveis. A questão

A experiência imediata da realidade também foi bastante atacada com os meios

principal da obra, no entanto, é colocada em relação ao ambiente sônico do espectador, ou

de registros eletrônicos dela e de transmissão de dados que tanto marcam a existência

seja do habitante de uma metrópole contemporânea. Assim como em Acusma, no qual a

contemporânea. A arte, como espaço para experiências relacionais diferentes daquelas

reverberação dos vasos nos coloca em contato com a reverberação imperceptível de nosso

impostas pela sociedade, ainda tem esse caráter de imediatez, de uma experiência direta

próprio corpo. Corpos inertes que são potencializados pela dimensão acústica que mantém

entre o observador e a obra que irá lhe abrir os horizontes do sensível. Assim, em tempos

suprimidas até que algo a acione.

de fragmentação exacerbada do mundo sensível no qual vivemos, de perda de escala

As formas dos vasos de barro de Acusma são outro elemento que ampliam as

tanto física quanto temporal, Chelpa Ferro intervém para devolver-nos as dimensões

implicações da obra. Não são formatos ali colocados apenas para reverberarem de

apropriadas à realidade. Esses seres que ecoam rumores ancestrais encerram, e pontuam,

maneiras distintas e assim realizarem a composição esperada. Essas formas também

uma trajetória que é marcada por esse redimensionamento do sensível, de uma volta ao

nos dizem muito sobre a cultura humana que há séculos produz artefatos de argila com

corpo fragmentário do pós-estruturalismo. Vivemos em um tempo e em um espaço. Através

tais formas. A marca tecnológica dos aparatos eletroacústicos que encerram são afetadas

da dimensão sônica24 do mundo o grupo nos situa novamente na realidade, modificando

diretamente pelo artesanato expresso pelos vasos. Moringas que contém som, assim

nossa apreensão dela e nos forçando a dar maior atenção aos detalhes que nos passam

são esses seres que ecoam barulhos que nos levam ao interior de nossa própria caixa

despercebidos no cotidiano corrido de uma cidade.

ressonante que chamamos de corpo. Inclusive o próprio efeito que o som tem sobre nosso corpo é uma característica relevante dessa instalação. Por sua capacidade de penetrar nosso corpo, o som pode mexer com nossa sensibilidade das maneiras mais improváveis. Neste trabalho, o grupo Chelpa Ferro, ao unir essas esferas díspares de sentidos humanos acaba por nos retirar da realidade imediata, colocando-nos nessa imersão temporal, e nos devolve ao mundo com os sentidos mais aguçados do que antes. Como diz Viljay Iyer, “esse processo de ação encarnada situa o observador no ambiente; assim ele deve interagir com seu eu encarnado também”23. Essa capacidade corpórea que é ativada pelo som dessa obra é também inerente a seu título, referência ao termo acusmático, cunhado por Pierre Schaeffer a partir da prática que Pitágoras realizava com os alunos calouros de sua academia. Tal prática consistia em esconder o iniciante atrás de uma cortina através da qual ele escutaria o que estava se passando com os alunos que se iniciavam na escola pitagórica. Schaeffer utilizou-se desse procedimento para realçar nossa percepção sonora

23 Iyer, Vijay: On improvisation, in: Miller, Paul D. (org.). Sound Unbound. Cambridge: MIT Press, 2008. “This process of embodied action situates the perceiver within the environment; so the perceiver must interact with her embodied self as well.”

24

Anjos, Moacir. op. cit.


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