na pรกgina anterior Hugo Ball como o Bispo mรกgico no Cabaret Voltaire (Zurique 1916) capa foto da obra The Boy from Mars de Philippe Parreno exposta no MIS-SP em 2009
obras de arte depois de suas técnicas de reprodução arte e sociedade ao longo do século XX
Trabalho Final de Graduação Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo André Leal orientador Luiz A. Recamán Barros São Paulo, junho de 2012
Sumário 11
introdução
15
parte 1 posturas críticas no século XX: arte e teoria depois das técnicas de reprodução
17
o desencantamento do mundo e a perda da experiência na modernidade
23
a obra de arte e suas técnicas de reprodução
33
a dialética do esclarecimento e a indústria cultural
43
modernismos
45
futurismo e dadaísmo – dois lados de uma mesma atitude
67
a sociedade de consumo espetacular
75
as artes e o espetáculo
77
momentos das neovanguardas
95
conclusão: anos hipertecnológicos
99
parte 2 obras de arte depois do espetáculo
101
introdução
105
Chris Burden: o corpo e as máquinas
119
Tom Sachs: as cicatrizes do trabalho
133
Chelpa Ferro: a dimensão sônica do mundo
145
Zidane: um retrato do século 21
157
o ar da cidade liberta: jovens artistas paulistanos
161
Pique a.k.a. Carango Sá: (es)quinas de São Paulo
171
Daniel Nogueira de Lima: o que está por trás da parede
183
Raphael Franco: as vísceras da cidade
195
Jan Nehring: um lance de dados jamais abolirá o acaso
205
conclusão
211
bibliografia
agradecimentos ao meu orientador Luiz Recamán por me ‘forçar’ a buscar um objeto. aos meus professores Agnaldo Farias e Maria Cecília França Lourenço pelas orientações e conversas ao longo de toda minha formação e que inevitavelmente estão incorporadas nesse trabalho. ao meu orientador metodológio Artur Rozestraten pelas indicações precisas. aos meus pais pelo apoio de toda vida, pelos comentários, pelas correções e pelas orientações emocionais e metodológicas. à minha irmã, companheira de sempre e que me emprestou seu quarto nos últimos dias de elaboração desse trabalho. à minha namorada por aguentar minhas crises e euforias, dividir suas experiências e pelas observações sempre atentas. a Sérgio Mekler por me receber em seu escritório e narrar as histórias do Chelpa Ferro. aos meus amigos e companheiros de trabalho de longa data Daniel Nogueira, Jan de Maria Nehring, Pique e Raphael Franco pelo entusiasmo com que receberam meu trabalho e pelo material e tempo que dedicaram a mim. aos muitos amigos que estiveram próximos, me deram apoio e dividiram comigo ideias ao longo do processo, especialmente Bruno Schiavo, Fernando Tulio, Gustavo Battagliese e Rafael Urano.
dedico esse trabalho a meu tio, grande companheiro de todas as horas que nos deixou precocemente, e cuja presença é intrínseca a esse texto e a toda minha formação acadêmica, mas cujas críticas ficaram faltando nessa etapa da minha vida.
introdução Vivemos encantados em meio a uma profusão de imagens que cada vez mais tomam conta de nosso cotidiano. Todo dia um novo gadget é lançado e apresentado pelo mercado como a última novidade que precisamos ter para viver melhor, nos socializar mais diretamente e fechar negócios de maneira mais ágil. No entanto, esses aparatos individualizantes atrofiam ainda mais nossa realidade e a experiência que teríamos dela é achatada a níveis escorchantes – podemos até dizer que estamos sendo espoliados de nossa capacidade de ter verdadeiras experiências. Atualmente é por meio do consumo de mercadorias que buscamos preencher o vazio do mundo desencantado e as experiências individuais são prontamente codificadas como algo externo a nós, sempre mediadas por algum tipo de tela ou visor que carregamos em nossos bolsos. Estamos, porém, vivendo um dos auges de um processo cujas origens podem ser traçadas há mais de quinhentos anos atrás de nós. Desde o século XVI o modo de produção capitalista foi sendo implementado na sociedade ocidental e culminou na industrialização intensiva no século XIX. Esse processo foi liderado de maneira geral pela burguesia que se consolidou como a classe dominante detentora dos meios de produção propagando seus ideais e durante esse período foi a classe revolucionária que combatia a aristocracia e liderava o povo nas lutas sociais. No plano filosófico essas transformações foram acompanhadas do que passou a ser chamado de Iluminismo e as noções de igualdade entre os homens, que está na base da burguesia enquanto classe revolucionária, culminaram nas grandes transformações pelas quais passaram as instituições políticas e deram origem aos fundamentos da democracia representativa como a conhecemos hoje. Da mesma maneira a busca pelo conhecimento científico prometia liberar o homem dos misticismos religiosos e apontava para um mundo de felicidades terrenas. A transformação social, porém, foi freada no ponto em que a burguesia ainda poderia manter seu controle econômico e político sobre a sociedade, passando então a estancar qualquer insurgência política que desestabilizasse seu poder. Assim as promessas de liberdade, igualdade e fraternidade ficaram apenas no plano das ideias e as condições materiais da população só pioraram desde então. No século XIX diversos pensadores buscaram formas de compreender a sociedade a partir de um ponto de visto crítico, muitas vezes propondo atuações políticas que visassem à emancipação do homem e à efetivação de uma sociedade verdadeiramente democrática. Já no século XX a evolução dos métodos de dominação cultural evidenciou ainda mais a dificuldade em escapar dos controles ideológicos impostos pela burguesia, apesar de que ao mesmo tempo a revolução comunista parecia perto de ocorrer, como de fato ocorreu na Rússia em 1917 – por mais que depois tenha se tornado um governo totalitário como os outros do ocidente. No mundo capitalista, no entanto, outros pensadores iriam analisar o que Max Horkheimer chamaria de Razão Instrumental na qual a racionalidade iluminista foi colocada à serviço da produção de mercadorias e à busca
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por lucro, tema que depois seria desenvolvido pelo autor junto com Adorno no livro A dialética do esclarecimento. Max Weber, por sua vez, desenvolveu o termo desencantamento do mundo para definir os efeitos da secularização da sociedade ocidental depois do iluminismo e sob a ideologia capitalista. Já Walter Benjamin chamaria esse processo de perda da experiência e analisaria seus efeitos sobre a sociedade a partir da análise de diversos autores e filósofos do século XIX, principalmente da obra do poeta francês Charles Baudelaire. Por fim, Georg Lukács identificaria a reificação promovida pelas mediações que marcam a produção na sociedade burguesa e a coisificação das relações humanas à maneira da que Karl Marx identificara no papel da mercadoria no sistema capitalista. Do mesmo modo, as artes acompanharam e refletiram esse processo, culminando em uma das maiores revoluções estéticas da história: as práticas modernistas do fim do século XIX e começo do XX, cujos desdobramentos percorreram o século e podemos dizer que, nesse começo de século XXI, ainda não foram completamente assimiladas. As novas técnicas de (re)produção da obra de arte e a produção modernista deslocaram o papel do objeto artístico levando os artistas à busca daquilo que seriam os fundamentos das artes de maneira geral. O objeto artístico foi completamente ressignificado por meio dessas experiências e chegou a ser reduzido a palavras ou ações, como as práticas da década de 1960 demonstraram, já no ocaso do modernismo. O mundo então já era outro, a fragmentação social promovida pelo capitalismo havia sido aprofundada desde o começo do século e as tecnologias da comunicação tiveram seu papel mediador elevado a níveis cada vez maiores na sociedade ocidental. O capitalismo financeiro estava sendo estabelecido e até o dinheiro – abstrato por excelência – tornou-se uma abstração ainda maior. Esses processos só se aprofundaram nas últimas décadas do século XX e o começo do XXI parece um paraíso artificial no qual tudo está disponível, com uma infinidade de objetos que concorrem nos prometendo trazer felicidade, mesmo que ao custo da redução cada vez maior das verdadeiras experiências. Atualmente é quase impossível apreendermos todos os movimentos reificadores já que estamos continuamente mediando – nós mesmos – nossa relação com a realidade. Desde então corremos atrás de nosso próprio rabo em busca de soluções para uma vida desalienada e as artes parecem ser o único campo onde ainda é possível algum tipo de experiência não mediada. Mesmo assim ela está sujeita à lógica da sociedade de consumo espetacular e é prontamente incorporada ao sistema estético do establishment e nesse processo é adocicada, tal como ocorreu com as práticas modernistas – e que quando surgiram chocavam e escandalizavam a sociedade burguesa. Uma sucessão de tentativas de combater a mistificação da realidade é o que podemos chamar a história da arte desde o final do século XIX, com algumas práticas bem sucedidas e outras não, mas que de maneira geral levaram a arte a seus próprios limites desconhecidos e a reposicionaram na cultura contemporânea. Dessa forma, o presente trabalho busca constituir um roteiro do debate teórico do papel da cultura no capitalismo tardio depois que as técnicas de reprodução da obra de arte se estabeleceram e acabaram por ressignificar o papel do objeto artístico na sociedade ocidental.
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A parte 1 toma como ponto de partida o texto A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica de Walter Benjamin e estabelece algumas relações entre ele e escritos de colegas seus do Instituto para Pesquisa Social da Universidade de Frankfurt. Herbert Marcuse, por exemplo, descreve o papel do que chama de cultura afirmativa na dominação ideológica por parte da burguesia. Adorno e Horkheimer, por sua vez, no já citado A dialética do esclarecimento além de sistematizarem sua crítica à razão instrumental, desdobram a análise da relação entre cultura e as técnicas de reprodução mecânica apontadas por Benjamin e que já haviam sido elaboradas pelos próprios autores em alguns ensaios anteriores. Eles introduziram a ideia da indústria cultural, formada pelos conglomerados capitalistas que controlam a produção cultural sob o capitalismo e estabelece os padrões de gosto que são impostos à sociedade como universalmente aceitos. Quando escreveram o livro, em plena Segunda Guerra Mundial, já não havia lugar para otimismo em suas análises; estamos fadados ou ao fascismo ou ao capitalismo bárbaro que promove a destruição bélica e a valoriza por meio de seus conglomerados culturais. Outros autores foram selecionados para descrever as transformações do período pós-guerras e a consolidação do que seria a sociedade de consumo espetacular à qual estamos sujeitos agora nesse começo de século XXI. Guy Debord alcunhou o termo espetáculo para definir o novo estatuto da imagem no processo de fragmentação social sob o capitalismo e como o aparato espetacular dá uma falsa ideia de totalidade que aprofunda e coisifica mais ainda as relações de produção. Fredric Jameson também é outro autor fundamental nesse roteiro que descreve o processo de transformação da sociedade moderna para a que ele chama de pós-moderna analisando principalmente a relação entre economia e cultura. Por fim, o historiador da arte inglês Timothy J. Clark aborda alguns efeitos da modernidade nas artes plásticas e, mais importante ainda, como os atentados de 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos participam do regime da imagem na sociedade espetacular dos primeiros anos do século. Acompanhando esse roteiro teórico, foram indicadas algumas práticas artísticas que buscam desnaturalizar processos sociais, revelando para o público automatismos aos quais estamos sujeitos. Ou então práticas que buscam reposicionar o entendimento tradicional da arte e de seus objetos enfrentando o estado de coisas no qual tudo deve ser valorizado por sua forma-mercadoria. Na parte 1 do presente trabalho algumas vanguardas modernistas foram elencadas para ilustrar esses processos, tendo em vista também as práticas que mais informam práticas contemporâneas, principalmente as analisadas na parte 2, tais como o dadaísmo, o futurismo e diversas das vanguardas construtivistas. Algumas das chamadas neovanguardas da segunda metade do século também são analisadas a partir dos mesmos interesses e abordam movimentos como o expressionismo abstrato, o minimalismo, a arte pop e as artes performáticas. Do mesmo modo, Gordon Matta-Clark é um artista fundamental nesse roteiro mas que não pode ser diretamente associado a nenhum grupo específico. Por fim, o neoconcretismo brasileiro é outro movimento que informa muitas produções contemporâneas e que participou desse processo de reposicionamento do objeto e das práticas artísticas na segunda metade do século XX.
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A parte 2 do trabalho aborda a produção de oito artistas contemporâneos que de diferentes maneiras se relacionam com o repertório apresentado na parte 1. Chris Burden realiza o que poderia ser a ponte histórica entre as neovanguardas e a contemporaneidade, pois seu trabalho começa com performances emblemáticas na década de 1970 e chega aos dias de hoje com obras que demonstram um vigor pertinente aos tempos atuais. Tom Sachs, por sua vez, atualiza o espírito pop para a produção artística do final do século XX e começo do XXI, com maquetes que invertem a noção de produtos industrializados ou de marcas de luxo e que enfrentam o caráter fantasmagórico e fetichista da forma-mercadoria. Já o grupo carioca Chelpa Ferro utilizase de elementos descartados pela sociedade para produzirem obejtos que têm como finalidade a ampliação de nosso repertório sônico, ou a aproximação do espaço expositivo ao ambiente urbano por meio da cacofonia que marca nossa experiência contemporânea. O som é muitas vezes tomado como matéria plástica em trabalhos do grupo que deslocam nossos sentidos e os embaralham, ressignificando cada um deles. Há ainda um trabalho conjunto de Douglas Gordon e Philippe Parreno que suscita importantes reflexões sobre o aparato do espetáculo nos dias de hoje por meio do escrutínio da imagem do jogador francês Zinédine Zidane em partida do Real Madrid na qual dezessete câmeras seguiram seus passos durante os noventa minutos. Por fim, uma segunda seção – o ar da cidade liberta – analisa a produção de quatro jovens artistas da cidade de São Paulo que de diferentes maneiras reconfiguram a apreensão corrente que temos de seu espaço. Intervenções urbanas, pinturas, instalações e fotomontagens são alguns dos principais meios utilizados por esses artistas para desconstruir o conceito de cidade cristalizado pelos processos ideológicos que encobrem o fato de que o espaço urbano é fruto de uma construção coletiva e não algo ‘natural’. De todo modo, as práticas apresentadas no presente trabalho estabelecem contrapontos à circulação mercantil e revelam maneiras de se opor à mistificação promovida pelo capitalismo que esconde tudo sob a forma-mercadoria. Por impossibilidade de reunir todos os aspectos que informam nosso período histórico, a seleção de autores e artistas foi guiada a fim de traçar um panorama daquilo que poderia ser a modernidade instrumental e as maneiras de enfrentar os encantamentos por ela promovidos. Sejamos todos bem vindos ao deserto do real e às desventuras de sua libertação.
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Parte 1
posturas críticas no século XX: arte e teoria depois das técnicas de reprodução
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o desencantamento do mundo e a perda da experiência na modernidade O historiador da arte T. J. Clark identifica o momento inicial do modernismo como sendo o dia 16 de outubro de 1793 quando o pintor Jacques-Louis David apresentou ao público sua pintura Marat assassinado durante celebração precisamente coreografada pelos jacobinos da seção do Museu no período da Convenção da Revolução Francesa. Segundo o autor “o que faz dele um momento inaugural, é justamente o fato de ter se subordinado ao contingente. A contingência penetrou no processo de pintar, invadiu-o, e desde então nenhuma outra substância podia resultar numa pintura”.1 É bastante revelador o fato de Clark tomar a contingência como momento inicial dos procedimentos modernistas nas artes plásticas e justamente em uma obra de período tão emblemático quanto o da Revolução Francesa. Esse foi o primeiro momento em que guerras ideológicas foram travadas como resultado do processo de autorreflexão e secularização da sociedade ocidental, que emergiu com o fim da Idade Média e o desenvolvimento do sistema capitalista. Clark realiza uma acurada análise histórica dos fatos do período que geraram a obra de David como construção simbólica de um mito da Revolução e parte de eventos políticos de abrangência muito maior. As repercussões desses eventos são até hoje bastante difíceis de serem totalmente compreendidas e Clark extrai dessa obra os elementos que para ele configuram os procedimentos do modernismo artístico. Um desses elementos seria a própria política que, segundo o autor, é “a forma por excelência da contingência que faz do modernismo o que ele é”, afirmando que “a arte, em muitos de seus momentos mais altos nos séculos XIX e XX, extraiu da política, sem transformá-la, sua própria matéria-prima”.2 Em outro momento Clark identifica a maneira como o culto a Marat participou da construção da representação simbólica da Revolução, mas principalmente como esse culto “está na intersecção entre a contingência política no curto prazo e o desencantamento do mundo no longo prazo”, como se o culto fosse “uma ação de retaguarda contra a perda do sagrado”.3 Fredric Jameson é outro autor que identifica a arte modernista como tendo que “solucionar a [...] oposição entre o sagrado e o secular”,4 acrescentando ainda as descontinuidades históricas que surgem nas práticas artísticas do começo do século XX. As descontinuidades históricas também aparecem para Clark em um raciocínio que ele utiliza para corroborar sua tese acerca da origem do modernismo ao colocar que “a Revolução é antecipadora de uma história que ainda está longe
1 2 3 4
Clark, Timothy J. A pintura no ano II, em: Modernismos: ensaios sobre política, história e teoria da arte. Salzstein, Sônia [org.]. São Paulo: Cosac & Naify, 2007. p. 95 ibidem. p. 105 ibid. p. 121 Jameson, Fredric. Transformações da imagem na pós-modernidade, em: A virada cultural – reflexões sobre o pósmoderno. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. p. 198
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Marat assassinado (1793) de Jacques-Louis David
de seu fim. Seu projeto é o desencantamento do mundo”.5 Essa autorreflexão empreendida pela sociedade ocidental nos últimos quinhentos anos de maneira geral aparece então permeada de idas e vindas de uma transformação muito mais ampla em direção ao esclarecimento e ao que seria seu polo oposto, o tal desencantamento do mundo. Esse termo foi elaborado pelo poeta romântico Friedrich Schiller e Max Weber a desenvolveu conceitualmente como esse traço da secularização da sociedade ocidental sob o capitalismo. Também parece bastante expressivo o fato de que o primeiro editorial da revista artística estadunidense October afirme que seu nome tem origem no “momento em nosso século quando a prática revolucionária, as investigações teóricas e a inovação artística se uniram de maneira única e exemplar”, e quando cada artista passou a criar “seus próprios outubros, pontos de partida radicais que articulavam o movimento histórico que os reuniam”.6 Dessa maneira, já no último quartel do século XX reaparece o desejo revolucionário aliado à produção estética que Clark identifica na pintura de David. Com o fim das garantias espirituais dadas pela religião e a ascensão do capitalismo, resta aos homens a democracia e o espírito burguês do triunfo individual por meio do trabalho que representarão a sua libertação em meio ao contingente, no qual nem a vida após a morte é tida
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Clark, Timothy J. op. cit. p. 153 About October, em: October n° 1, primavera de 1976. p. 3
como garantia final. É isso que marca a substituição de cultos apresentada por Clark e que de diversas maneiras reaparece desde então. Segundo Ruy Sardinha Lopes, Weber demonstrou a especialização dos saberes nesta sociedade recém-emancipada de seu “estado de natureza”, aquele “anterior à ascensão do Capitalismo, onde as regiões do cognitivo, do ético-político e do estéticolibidinal ainda estavam misturados”. Com a especialização e consequente autonomização dessas esferas da sociedade, a arte também se libera desses outros âmbitos. Mas, “se, como aponta Weber, tal movimento é característico do sistema capitalista” a arte, “passando a constituir-se em um âmbito alheio à racionalidade dos fins que domina a totalidade da vida – é, por um lado, penetrada pela valorização econômica e, por outro, abandona os condicionamentos oficiais e se livra de suas tutelas”.7 Se antes era objeto de culto, mantido à distância de maneira deliberada, agora a arte aumentará ainda mais sua distância em relação ao público, e requisitará uma atenção maior por parte deste para sua compreensão, ainda seguindo Sardinha. T. J. Clark também desdobra a ideia de desencantamento do mundo e de como a contingência emerge dela, quando afirma que o significado “tornou-se mercadoria escassa – se entendemos por ‘significado’ a forma de valor e de entendimento consensuais e institucionalizados, ordens implícitas nas coisas, narrativas e imagens nas quais uma cultura cristaliza sua concepção da luta contra o reino da necessidade e da dor e da morte.” Ele afirma ainda que a expressão de Schiller “é pessimista”, mas ao mesmo tempo “exultante, com sua promessa de um mundo sem falsas crenças”8 e por isso pode ser vista como uma via de acesso negativa ao esclarecimento. Esse pessimismo exultante é algo que perpassa toda a experiência da modernidade e também aparece na obra de um pensador que se debruçou a fundo sobre essa experiência, o alemão Walter Benjamin. Em seu famoso texto A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica ele analisa os efeitos da reprodução técnica, em suas variadas formas, sobre a produção artística e, com seu pessimismo exultante, se permite também incluir “alguns prognósticos”.9 A secularização social, que em última instância faz parte de um processo muito maior de dominação da natureza pelo homem, teve um de seus primeiros auges com a Revolução Industrial, quando as máquinas passaram a desempenhar funções que antes eram realizadas por homens e os delegou um papel alienado e repetitivo na cadeia produtiva. As máquinas, porém, acabaram assumindo uma posição de ‘segunda natureza’, mistificando ainda mais as relações de produção e dominação sob o capitalismo, e colocando-se como um novo mito na sociedade secularizada. Outro aspecto que acompanhou esse desenvolvimento técnico da sociedade ocidental foi o crescimento das cidades na Europa que passou a reunir milhões de pessoas em territórios muito reduzidos nos quais estavam concentradas
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Lopes, Ruy Sardinha. A imagem na era de sua reprodutibilidade eletrônica. São Paulo: FFLCH (tese de mestrado), 1995. p. 56 Clark, Timothy J. O estado do espetáculo, em: Modernismos: ensaios sobre política, história e teoria da arte. op. cit. p. 318 Benjamin, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, em: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1985. p. 165
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as indústrias que necessitavam de força de trabalho. Benjamin, para analisar os efeitos de tais mudanças na percepção e sensibilidade contemporâneas, iria extrair seu material principalmente da produção literária do século XIX, em especial do poeta Charles Baudelaire. O desencantamento do mundo surge em Benjamin como a perda da experiência contida nas tradições das sociedades pré-capitalistas, cujo momento mais revelador para o autor pode ser vista em sua descrição da volta dos soldados calados com os horrores da Primeira Guerra Mundial, que não teriam como transmitir suas experiências.10 Da mesma maneira, o desenvolvimento dos meios de comunicação de massa participam dessa redução da experiência. “Na substituição da antiga forma narrativa pela informação, e da informação pela sensação reflete-se a crescente atrofia da experiência” e define experiência da seguinte maneira: “onde há experiência no sentido estrito do termo, entram em conjunção, na memória, certos conteúdos do passado individual com outros do passado coletivo”.11 É esse passado coletivo que a modernização abala mas, pela velocidade das transformações que impõe, ela também afeta o individual; aqueles que assistem a grandes mudanças que passam a ocorrer em períodos muito menores do que o de uma vida e que antes poderiam levar séculos para acontecer, acabam perdidos em sua própria cidade. São essas mudanças no espaço urbano e causadas pela industrialização que levaram Benjamin a afirmar que “uma geração que ainda fora à escola num bonde puxado por cavalos viu-se abandonada, sem teto, numa paisagem diferente em tudo, exceto nas nuvens, e em cujo centro, num campo de forças de correntes e explosões destruidoras, estava o frágil e minúsculo corpo humano”.12 Foi isso que ocorreu na Paris de Baudelaire, na qual “a incomodidade dos habitantes com sua própria cidade [...] devido às conhecidas transformações produzidas por Haussmann, [...] se resume na figura baudelaireana daquele que é estrangeiro na cidade à qual pertence”.13 Benjamin articularia essas ideias a partir da definição de choque traumático por Freud e como o consciente atua para proteger-se de tais choques transformando-os em experiência vivida; “quanto mais corrente se tornar o registro desses choques no consciente, tanto menos se deverá esperar deles um efeito traumático”.14 Isso também seria algo que se iria se impor sobre os habitantes de grandes cidades, já que “mover-se através do tráfego implicava uma série de choques e colisões para cada indivíduo”,15 e que o cinema reproduziria, pois “no filme, a percepção sob a forma de choque se impõe como princípio formal. Aquilo que determina o ritmo da produção na esteira
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ver: idem. Experiência e pobreza, em: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. op. cit. idem. Sobre alguns temas em Baudelaire, em: Charles Baudelaire um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1989. p. 107 idem. Experiência e pobreza, op. cit. p. 115 Kohan, Martín. Zona Urbana – ensayo de lectura sobre Walter Benjamin. Buenos Aires: Norma, 2004. p. 34 [tradução minha; daqui em diante as traduções de minha autoria passam a ser indicadas por TM] Benjamin, Walter. Sobre alguns temas em Baudelaire. op. cit. p. 109 ibidem. p. 124
rolante está subjacente ao ritmo da receptividade, no filme”,16 associando ainda essa situação ao trabalho alienado do proletariado. Da mesma maneira, outra importante característica da obra de arte na modernidade é levantada por Benjamin em relação às novas formas de recepção e produção cultural depois da descoberta da fotografia, que seria o declínio da aura. Uma das definições que ele dá à aura é a de imagens que “tendem a se agrupar em torno de um objeto de percepção”, e que corresponde “à própria experiência que se cristaliza em um objeto de uso sob a forma de exercício”.17 Ainda extraindo tais constatações da análise da poesia de Baudelaire, Benjamin afirma que o poeta “determinou o preço que é preciso pagar para adquirir a sensação do moderno: a desintegração da aura na vivência do choque”.18
16 17 18
ibid. p. 125 ibid. p. 137 ibid. p. 145
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a obra de arte e suas técnicas de reprodução Essas características do mal estar da vida moderna fazem parte da conceituação que o autor realiza de maneira mais diretamente relacionada à cultura no texto A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. A reprodução técnica do objeto artístico o retira de sua condição única de existência, ligada à uma tradição e portanto, também parte de uma experiência, e acaba com sua autenticidade, atrofiando desse modo sua aura. Isso se deve ao fato de que “o aqui e agora do original constitui o conteúdo da sua autenticidade, e nela se enraíza uma tradição que identifica esse objeto, até nossos dias, como sendo aquele objeto, sempre igual e idêntico a si mesmo”.19 Mas ao mesmo tempo, em contraposição à reprodução manual, a reprodução técnica teria maior autonomia e aproximaria o indivíduo da obra – se antes ele tinha que dirigir-se a um determinado local para apreciar uma obra, agora ele pode tê-la em suas mãos ou dentro da sala de sua casa. “A catedral abandona seu lugar para instalar-se no estúdio de um amador; o coro, executado numa sala ou ao ar livre, pode ser ouvido num quarto”.20 Ao mesmo tempo, ao retirar da obra sua materialidade, a qual configura seu testemunho histórico, a reprodução técnica também lhe retira sua autoridade, seu “peso tradicional”, e participa dessa atrofia da aura, já que ela faz parte dessa existência única do objeto artístico. Ao multiplicar a existência da obra de arte, a reprodução técnica “substitui a existência única da obra por uma existência serial. E, na medida em que essa técnica permite à reprodução vir ao encontro do espectador, em todas as situações, ela atualiza o objeto reproduzido. Esses dois processos resultam num violento abalo da tradição, que constitui o reverso da crise atual e a renovação da humanidade”.21 A aura, porém também é fruto de construções sociais e por isso, no momento em que as grandes transformações sociais invadiram a vida cotidiana, seu declínio acaba sendo parte da própria experiência do homem moderno. E daí também que o reverso da crise atual é à sua vez exultante e pessimista, e pode, portanto, comportar prognósticos para que possam ser esboçados modos de atuação do produtor cultural contemporâneo em direção à renovação da humanidade. “Fazer as coisas ‘ficarem mais próximas’ é uma preocupação tão apaixonada das massas modernas como sua tendência a superar o caráter único de todos os fatos através da sua reprodutibilidade. Cada dia fica mais irresistível a necessidade de possuir o objeto, de tão perto quanto possível, na imagem, ou antes, na sua cópia, na sua reprodução. Cada dia fica mais nítida a diferença entre a reprodução, como ela nos é oferecida pelas revistas ilustradas e pelas atualidades cinematográficas, e a imagem. Nesta, a unidade e a durabilidade se associam tão intimamente como, na reprodução, a transitoriedade e a repetibilidade. 19 20 21
Benjamin, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. op. cit. p. 167 [grifo do autor] ibidem. p. 168 idem
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Retirar o objeto do seu invólucro, destruir sua aura, é a característica de uma forma de percepção cuja capacidade de captar ‘o semelhante no mundo’ é tão aguda, que graças à reprodução ela consegue captá-lo até no fenômeno. Assim se manifesta na esfera sensorial a tendência que na esfera teórica explica a importância crescente da estatística. Orientar a realidade em função das massas e as massas em função da realidade é um processo de imenso alcance”.22
Outra maneira de explicar a capacidade de ação do homem contemporâneo diante dessas transformações sociais que refletem na produção artística é dada por Benjamin em relação à função ritualística e de culto à qual estavam submetidos os objetos anteriormente. E esse valor pode ser atualizado de maneira secular no que o autor chama de culto profano do Belo, surgido na Renascença. Isso se aprofundou também com a invenção, ou descoberta, da fotografia e a reação artística a ela, quando fundou-se “a doutrina da arte pela arte, que é no fundo uma teologia da arte. Dela resultou uma teologia negativa da arte, sob a forma de uma arte pura, que não rejeita apenas toda função social, mas também qualquer determinação objetiva”.23 Mas essa transformação da função social da arte acaba estabelecendo seu fundamento em outro lugar; pois “em vez de fundar-se no ritual, ela passa a fundar-se em outra práxis: a política”,24 indo ao encontro do que afirma T. J. Clark como vimos no início. Isso também se dá pelo fato de que em nossa sociedade a “técnica é a mais emancipada que jamais existiu. Mas essa técnica emancipada se confronta com a sociedade moderna sob a forma de uma segunda natureza, não menos elementar que a da sociedade primitiva, como provam as guerras e as crises econômicas. Diante dessa segunda natureza, que o homem inventou mas há muito não controla, somos obrigados a aprender, como outrora diante da primeira. Mais uma vez, a arte põe-se a serviço desse aprendizado”.25 Como para Benjamin o cinema seria a expressão maior da obra de arte (re)produzida tecnicamente, o meio artístico que por excelência conteria tanto as formas materiais de produção, reprodução e difusão – cópias infinitas que fazem parte de sua lógica mercantil –, sua tarefa histórica seria a de “fazer do gigantesco aparelho técnico do nosso tempo o objeto das inervações humanas”.26 E o uso politicamente instrutivo do cinema para as massas se daria pela montagem, pois “a compreensão de cada imagem é condicionada pela sequência de todas as imagens anteriores”27 e essa compreensão é o que instruirá o observador. Haveria ainda uma perda de humanidade na atuação para o cinema por parte do ator já que, além de aliená-lo no processo de filmagem – o ator só saberá de fato como é o filme depois que este estiver pronto –, ele também é submetido à uma prova contra o aparato técnico e “ser aprovado nela significa para o ator conservar sua dignidade 22 23 24 25 26 27
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ibidem. p. 170 [grifo do autor] ibid. p.171 ibid. p. 172 ibid. p. 174 idem ibidem. p. 175
humana diante do aparelho”. E essa vitória do ator é transmitida ao público, decorrendo daí também parte do encanto que o cinema traz para as massas que durante o dia executam suas funções repetitivas na fábrica. “À noite, as mesmas massas enchem os cinemas para assistirem à vingança que o intérprete executa em nome delas, na medida em que o ator não somente afirma diante do aparelho sua humanidade (ou o que aparece como tal aos olhos dos espectadores), como coloca esse aparelho a serviço do seu próprio triunfo”.28 Benjamin, sempre pessimista e exultante, também percebeu os perigos aos quais estava submetida a produção cinematográfica, controlada por alguns poucos e já gigantescos conglomerados capitalistas. “O capital cinematográfico dá um caráter contra-revolucionário às oportunidades revolucionárias imanentes a esse controle. Esse capital estimula o culto do estrelato, que não visa conservar apenas a magia da personalidade, há muito reduzida ao clarão putrefato que emana do seu caráter de mercadoria, mas também o seu complemento, o culto do público, e estimula, além disso, a consciência corrupta das massas que o fascismo tenta pôr no lugar de sua consciência de classe”.29
Isso reúne a ideia de reencantamento que os meios de comunicação aprofundariam nas décadas seguintes e a coisificação do frágil corpo humano em meio às pulsões que cada vez mais são ditadas pela sociedade de consumo e não mais por seus próprios desejos e necessidades, ou instinto. A relação com o fascismo apontada acima também é aprofundada por esse reencantamento, algo que Benjamin percebe na década de 1930 observando a ascensão do nazismo e a crise econômica e política que permitiu essa situação na Alemanha de Weimar. Assim, “a crise da democracia pode ser interpretada como uma crise nas condições de exposição do político profissional. [...] O Parlamento é seu público. Mas, como as novas técnicas permitem ao orador ser ouvido e visto por um número ilimitado de pessoas, a exposição do político diante dos aparelhos passa ao primeiro plano. Com isso os parlamentos se atrofiam, juntamente com o teatro”,30 reduzindo ainda mais a experiência do homem moderno, já que tudo passa a ser mediado pelos aparatos técnicos. Outro apontamento de Benjamin que seria aprofundado pelos meios de comunicação de massa e que hoje parecem ser mais verdade do que nunca é o fim da diferença entre o público e o ator ou o produtor. Em um primeiro momento isso se deu pela ampliação do alcance da imprensa e do espaço dado por ela às cartas dos leitores, mas também porque ela constantemente convoca especialistas para discorrer sobre algum tema específico em determinadas ocasiões. Assim, “hoje em dia, raros são os europeus inseridos no processo de trabalho que em princípio não tenham uma ocasião qualquer para publicar um episódio de sua vida profissional, uma reclamação ou uma 28 29 30
ibid. p. 179 [grifo do autor] ibid. p. 180 ibid. p. 183 [grifo do autor]
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reportagem. Com isso a diferença essencial entre autor e público está a ponto de desaparecer. Ela se transforma numa diferença funcional e contingente. A cada instante, o leitor está pronto a converter-se num escritor”.31 Isso em tempos de YouTube, com seu slogan ‘broadcast yourself ’, parece estar mais realizado do que nunca. Mas da mesma maneira que hoje em dia tal possibilidade ainda está condicionada, e é mediada pelos interesses de grandes empresas capitalistas, já naquela época Benjamin alertava para o uso da participação como forma de iludir as massas em relação à sua consciência de classe, podendo assim servir ao fascismo. Essas mudanças no modo de ser do homem moderno também reverberam na pintura e na recepção dos objetos artísticos. Para que exista uma atitude progressista da produção artística, portanto, ela deve tomar como ponto de partida uma recepção coletiva. “O comportamento progressista se caracteriza pela ligação direta e interna entre o prazer de ver e sentir, por um lado, e a atitude do especialista, por outro. Esse vínculo constitui um valioso indício social. Quanto mais se reduz a significação social de uma arte, maior fica a distância, no público, entre a atitude de fruição e a atitude crítica, como se evidencia com o exemplo da pintura. Desfruta-se o convencional, sem criticá-lo; critica-se o que é novo sem desfrutá-lo. Não é assim no cinema. O decisivo, aqui, é que no cinema, mais que em qualquer outra arte, as reações do indivíduo, cuja soma constitui a reação coletiva do público, são condicionadas, desde o início, pelo caráter coletivo dessa reação. Ao mesmo tempo que essas reações se manifestam, elas se controlam mutuamente. De novo a comparação com a pintura se revela útil. Os pintores queriam que seus quadros fossem vistos por uma pessoa, ou poucas. A contemplação simultânea de quadros por um grande público, que se iniciou no século XIX, é um sintoma precoce da crise da pintura, que não foi determinada apenas pelo advento da fotografia, mas independentemente dela, através do apelo dirigido às massas pela obra de arte”.32
Em outro momento Benjamin relaciona as técnicas de reprodução ao efeito de anulação do choque vivenciado pelo homem moderno quando analisa o cinema e suas possibilidades de enfrentamento à vida alienada. Isso pois o cinema nos permitiria vislumbrar “os mil condicionamentos que determinam nossa existência” e “assegura-nos um grande e insuspeitado espaço de liberdade”. Da mesma maneira, o uso da câmera oferece aos homens uma nova relação espacial e, ainda, escrutiniza a realidade fazendo com que fenômenos comuns, como pegar um isqueiro, sejam revelados de maneiras absolutamente novas, assim como a fotografia revelara toda uma nova forma de apreender e de se relacionar com a realidade. Está aí também a relação das técnicas de reprodução com as novas ciências humanas como a psicanálise, já que a câmera “nos abre, pela
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ibid. p. 184 ibid. p. 188
primeira vez, a experiência do inconsciente ótico, do mesmo modo que a psicanálise nos abre a experiência do inconsciente pulsional. De resto, existem entre os dois inconscientes as relações mais estreitas. Pois os múltiplos aspectos que o aparelho pode registrar da realidade situamse em grande parte fora do espectro de uma percepção sensível normal”.33 Assim é possível também a criação de personagens que fazem parte de um ‘sonho coletivo’, como é o caso do Mickey Mouse. Isso também se relacionaria com as ideias formuladas por Benjamin em relação à produção artística de sua época propriamente, como será visto mais adiante. Para concluir as transformações identificadas por ele nesse texto, porém, é preciso lembrar como o cinema afeta a recepção artística do observador moderno. Por se tratar da “forma de arte correspondente aos perigos existenciais mais intensos com os quais se confronta o homem contemporâneo” ele “corresponde a metamorfoses profundas do aparelho perceptivo, como as que experimenta o passante, numa escala individual, quando enfrenta o tráfico, [sic] e como as experimenta, numa escala histórica, todo aquele que combate a ordem social vigente”.34 Isso leva a massa à uma recepção distraída da obra de arte, em contraposição ao recolhimento dos especialistas que a tomam como objeto de devoção e não diversão. Dessa forma, “quem se recolhe diante de uma obra de arte mergulha dentro dela e nela se dissolve [...]. A massa distraída, pelo contrário, faz a obra de arte mergulhar em si, envolve-a com o ritmo de suas vagas, absorve-a em seu fluxo”.35 Existe ainda uma dimensão de educação sensorial ou perceptiva nesse processo de anulação do choque e dos efeitos provocados pelo cinema por meio de seu estabelecimento enquanto hábito. A cooptação desses efeitos pelo fascismo reaparece no texto de Benjamin, sempre preocupado com sua ascensão e com a guerra que ele já via no horizonte. A estética fascista que seria estabelecida na Alemanha por Hitler, mas que já estava em construção na Itália havia alguns anos, se aproveitaria desses efeitos da modernidade para se apropriar dos desejos das massas. Isso porque, a câmera, que pode captar movimentos microscópicos como visto acima, também pode captar as massas de uma maneira completamente nova. Tais movimentos “e em primeira instância a guerra constituem uma forma do comportamento humano especialmente adaptada ao aparelho. As massas têm o direito de exigir a mudança das relações de propriedade; o fascismo permite que elas se exprimam, conservando, ao mesmo tempo, essas relações. Ele desemboca, consequentemente, na estetização da vida política”.36 E essa estetização é o que levaria a Europa à guerra alguns anos depois, já que “somente a guerra permite mobilizar em sua totalidade os meios técnicos do presente, preservando as atuais relações de produção”.37 De maneira oposta, a politização da arte e sua mobilização a favor da emancipação do homem frente à instrumentalidade técnica é a 33 34 35 36 37
ibid. p. 189 [grifo do autor] ibid. p. 192 ibid. p. 193 ibid. p. 195 [grifo do autor] idem
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atuação que deve ser empreendida pela esquerda. Dessa forma, a humanidade “se transforma em espetáculo para si mesma. Sua auto-alienação atingiu o ponto que lhe permite viver sua própria destruição como um prazer estético de primeira ordem. Eis a estetização da política, como a pratica o fascismo. O comunismo responde com a politização da arte”.38 Todos esses elementos sistematizados por Benjamin nesse famoso ensaio foram desenvolvidos em sua produção de uma maneira geral, mas é aqui onde ele vai mais à fundo nas implicações estéticas e políticas dessa nova condição da sociedade ocidental. Da mesma maneira é uma das bases fundamentais para uma discussão que percorreria todo o século XX. o ‘instituto para pesquisa social’ da universidade de frankfurt e os estudos sobre a cultura no capitalismo monopolista O primeiro momento de desenvolvimento dessas análises faz parte do próprio contexto de Benjamin, que participou da criação do Instituto para Pesquisa Social da Universidade de Frankfurt junto a Theodor Adorno, Max Horkheimer e Herbert Marcuse, para citar apenas os mais importantes no contexto da presente pesquisa. A análise da produção e da recepção dos bens culturais no capitalismo monopolista foram exaustivamente abordados por esses pensadores. Adorno e Horkheimer desdobrariam essas pesquisas depois do fechamento do Instituto pelos nazistas com a chegada de Hitler ao poder em 1933 e o consequente exílio de ambos nos EUA. O contato dos dois com a produção cinematográfica estadunidense, principalmente depois que se mudaram para a Califórnia em 1941, os levou à formulação do problema nos termos do que chamaram de indústria cultural, cuja análise sistematizaram em A dialética do esclarecimento, livro que escreveram juntos e que teve sua primeira versão publicada em 1944. Esse contato com os grandes estúdios cinematográficos reforçou a ideia de que a produção cultural no capitalismo aprofundava a alienação da população, impedindo a possibilidade de emancipação vislumbrada por Benjamin alguns anos antes. É interessante salientar novamente a característica exultante e pessimista que perpassa essa produção. Se Benjamin já oscilava entre ambas as posições, buscando formas de atuar criticamente frente às novas técnicas que invadiam o cotidiano, Adorno será ainda mais crítico em relação à essa possibilidade desde o princípio. Em seu polêmico ensaio Sobre o caráter do fetichismo e a regressão da audição ele analisa a produção musical sob os imperativos de seu consumo ditados pela difusão radiofônica. Da mesma maneira que Benjamin, Adorno irá analisar a atrofia da experiência do homem, mas já sem qualquer otimismo em relação à possibilidade de emancipação do homem frente à alienação e cooptação dos meios de produção artística pelo capitalismo. Ao atacar os modismos e gostos criados pelos monopólios culturais, Adorno coloca 38
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ibidem. p. 196 [grifo do autor]
que “o indivíduo simplesmente não consegue mais viver empiricamente” e que os produtos musicais para consumo fácil propagados por tais monopólios são a tal ponto indiferenciáveis que “a predileção, na realidade, se prende apenas ao detalhe biográfico, ou mesmo à situação concreta em que a música é ouvida”.39 Do mesmo modo, Adorno problematiza a separação entre a música séria e a leve, ou de consumo, que segue os padrões estabelecidos pelo mercado musical. Ele também reconhece que tal separação é difícil de ser mantida e que a Flauta Mágica de Mozart mostraria uma possibilidade de integração entre as duas esferas, sem destacar, porém, que esse seria um possível caminho para uma produção cultural progressista. De todo modo, um problema que ele aponta na música de entretenimento é a falta de integração entre suas partes constitutivas e o todo da composição, assim “os momentos parciais já não exercem função crítica em relação ao todo pré-fabricado, mas suspendem a crítica que a autêntica globalidade estética exerce em relação aos males da sociedade”.40 O rádio aparece nesse momento como o principal meio de difusão da indústria cultural e Adorno o responsabiliza por fomentar a distração dos ouvintes, justamente aquilo que aparece em Benjamin como produto da manipulação técnica no cinema. Adorno também culpa o rádio por estabelecer o gosto da época, por meio da difusão de valores culturais e que “a ilusória convicção da superioridade da música ligeira em relação à séria tem como fundamento precisamente essa passividade das massas, que colocam o consumo da música ligeira em oposição às necessidades objetivas daqueles que a consomem”.41 Aí está o caráter fetichista e reificado que faz parte das análises produzidas sobre a indústria cultural e que têm nas análises marxistas sobre a mercadoria sua origem. Da mesma maneira que Benjamin identifica na separação da obra de um uso ritualístico a perda de seu lugar dentro de uma tradição e a consequente dissociação dela com a experiência do observador, Adorno coloca essa dimensão em relação à música comercial. A coisificação da música por meio de seu consumo enquanto mercadoria é um tema que guiará o ensaio de Adorno no qual ele pontua as diversas maneiras como isso ocorre e de que modo reforçam a própria fetichização e seu esvaziamento de sentido social. Da mesma forma, a confusão entre a música em si e seu consumo ou difusão também fazem parte desse processo e o autor afirma que “todo o movimento do jazz [...] está orientado no sentido de a execução ser usada como instrumento de propaganda para a compra de discos”.42 As colocações acerca do jazz por parte de Adorno são as que maior polêmica causam até hoje, já que ele ignora o fato de que tal movimento tem origem popular e reforça apenas o lado comercial de sua difusão pelos 39 40 41 42
Adorno, Theodor. O fetichismo na música e a regressão da audição, em: Adorno, Theodor; Benjamin, Walter; Habermas, Jürgen e Horkheimer, Max. Textos Escolhidos (coleção Os Pensadores). Grünnewald, José Lino et al. [trad.]. São Paulo: Abril Cultural, 1980. p. 166 ibidem. p. 168 ibid. p. 169 ibid. p. 172
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meios de comunicação de massa. De qualquer modo essas colocações são bastante ilustrativas do movimento de cooptação realizado no sistema capitalista de maneira geral, sempre pronto para apaziguar e se apropriar de movimentos que possam trazer alguma liberdade criativa, como é o caso do jazz, por meio de sua distribuição – e codificação – enquanto produto comercial. Mais adiante Adorno realiza a ligação entre suas colocações e as de Benjamin no texto analisado anteriormente, afirmando que “a observação de Walter Benjamin sobre a percepção de um filme em estado de distração também vale para a música ligeira. O costumeiro jazz comercial só pode exercer a sua função quando é ouvido sem grande atenção, durante um batepapo e sobretudo como acompanhamento de baile”.43 De maneira geral Adorno coloca diversos elementos que marcam o estágio inicial de pasteurização cultural que a indústria cultural promove e o definhamento da experiência decorrente desse processo. É esse o papel do rádio na difusão de valores culturais como visto acima e que se reflete na educação – ou condicionamento – do ouvinte submetido a tal sistema da mesma maneira como realiza seu trabalho repetitivo na indústria. Os próprios ouvintes seriam portanto, “os primeiros a denunciar tais sons como ‘intelectuais’ ou, pior ainda, como dissonantes, cacofônicos. Os atrativos degustados pelos ouvintes devem ser do tipo aprovado e comprovado”.44 Os exemplos usados por Adorno para descrever esse processo de submissão da música aos imperativos comerciais, são bastante criativos e se relacionam a diversos aspectos do modo de vida que então estava se estabelecendo e que hoje parece ter alcançado um dos pontos altos de seu desenvolvimento. Esse condicionamento do ouvinte exposto acima é algo de extrema importância para fundamentar sua análise sobre a regressão da audição, que nada mais é que parte desse processo de recepção distraída analisado por Benjamin e repercutido por Adorno em relação à música. Mas de qualquer jeito essa atitude distraída tem como consequência a resposta automatizada a problemas como explicitado na passagem relativa à condenação pelos ouvintes de músicas dissonantes que fazem parte da música ‘séria’. Dessa maneira, a regulação normativa imposta em algumas esferas pela sociedade moderna reflete no comportamento dos ouvintes que têm reações iguais às de um motorista, segundo Adorno. “O motorista é o protótipo do ouvinte ‘moderninho’. A sua concordância com tudo o que está na crista da onda é tão maciça, que já não opõe resistências a nada, mas faz sempre o que lhe é exigido, a fim de que tudo funcione tranquilamente”.45 Ademais, a difusão dos valores culturais pelo rádio podem ser tomados atualmente como a construção de consensos em torno de ideias que acabam sendo dogmatizadas e reificadas, mas que fazem parte dos valores da sociedade ocidental introjetados em seus cidadãos que, sem perceberem que são frutos de construções ideológicas precisamente dirigidas, as repetem à exaustão e policiam seus pares. 43 44 45
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ibid. p. 182 ibid. p. 183 ibid. p. 187
São esses diversos modos de condicionamento da vida que estarão no alvo das análises teóricas dos pensadores de Frankfurt. Da mesma maneira, as ideias colocadas por Adorno em textos desse período inicial seriam desdobradas por ele e por Horkheimer no livro de 1944. Após o contato com os conglomerados culturais dos EUA não havia mais espaço para otimismo, se é que houve para Adorno em algum momento. Cabe ainda uma aproximação a outro pensador ligado à Escola de Frankfurt, Herbert Marcuse, quem analisaria justamente o caráter apaziguador da produção cultural sob o capitalismo monopolista e sua relação com os meios de comunicação de massa. Rodrigo Duarte resume de maneira precisa algumas das ideias de Marcuse expressas em seu ensaio Sobre o caráter afirmativo da cultura, que se relacionam diretamente com os apontamentos aqui elencados, quando coloca que “a Idade Moderna surge sob a égide de uma potencial igualdade entre os homens: não há nada mais que, substancialmente, determine o fato de que alguns devam apenas trabalhar e outros possam também (ou somente) se deleitar. Como, na prática, o advento do capitalismo, em parte, aprofundou ainda mais as desigualdades existentes, a cultura – elevada, desde o Renascimento, à sua máxima potência criativa – passa a desempenhar um papel crucial na sinalização de que, em princípio, todos podem usufruir os valores supremos, entre os quais a beleza se enquadra perfeitamente”.46
Por meio da análise da tradição filosófica ocidental e de sua relação com o cotidiano social, Marcuse revela como se deu a instrumentalização da cultura na sociedade burguesa e sua posterior transformação à serviço do Estado totalitário que teria no fascismo sua expressão máxima. Ele analisa ainda a maneira como essa noção de igualdade entre os homens que está na formação do Estado burguês foi sendo transformada, pela condição da burguesia enquanto classe dominante, de modo que não permitisse sua efetiva realização, senão enquanto aspiração ou valor universal que nunca se reverteria em alguma transformação social concreta. Dessa maneira sua definição de uma cultura afirmativa implica no processo de reificação dos valores de igualdade propagados pela sociedade burguesa em seus primórdios, por meio da separação de tais ideais da vida cotidiana. Para Marcuse, portanto, “somente na arte a sociedade burguesa tolerou a realização efetiva de seus ideais, levando-os a sério como exigência universal. Ali se permite o que na realidade dos fatos é considerado utopia, fantasia, rebelião” e isso pelo fato de que “o medium da beleza descontamina a verdade afastando-a do presente. O que acontece na arte não compromete com nada”.47 Ele dá pistas aí justamente da cooptação e tolerância do capitalismo com produtos culturais que explicitem as contradições do modo de produção 46 47
Duarte, Rodrigo. Teoria crítica da indústria cultural. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007. p. 20 Marcuse, Herbert. Sobre o caráter afirmativo da cultura, em: Cultura e Sociedade v.1. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997. p.113 [grifo do autor]
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vigente. Da mesma maneira, a introjeção dos mecanismos de controle social aparecem logo a seguir quando o autor afirma que “a sociedade burguesa libertou os indivíduos, mas como pessoas que se mantêm sob controle”, reafirmando sempre a lógica de reprodução social, já que a “coisificação” do homem “na fábrica se tornaria um dever moral”.48 Marcuse, portanto, também teve papel importante na compreensão das maneiras de condicionamento e perpetuação dos mecanismos de controle social por meio da cultura na modernidade instrumentalizada. Da mesma forma, os homens e objetos culturais transformados em mercadoria nesse processo só têm alívio na própria mercadoria, ou seja, no consumo.
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ibidem. p. 114
a dialética do esclarecimento e a indústria cultural São análises dessa ordem que também permeiam A dialética do esclarecimento, uma profunda análise da evolução dos ideais iluministas em suas diversas formas e na sua evolução em direção à uma sociedade cada vez mais instrumentalizada. Mas, se até o momento imediatamente anterior à Segunda Guerra Mundial, ainda havia um grande componente exultante nessas análises, que buscavam sempre lançar as bases para a transformação social, o contexto no qual esse livro foi escrito não permitia muitas cargas de otimismo. Como já foi dito anteriormente, nos EUA no auge das atrocidades da guerra e da formação dos conglomerados da indústria do entretenimento, Adorno e Horkheimer já analisam essas transformações de maneira bastante pessimista, levandoos a colocar no livro os capítulos sobre a indústria cultural e o antissemitismo que não constavam do roteiro inicial. Rodrigo Duarte aponta também para o fato de que a obra parte da ideia de uma dialética entre cultura e barbárie, e que o texto de Benjamin Sobre o conceito da história,49 teve grande impacto para Adorno. Em carta a Horkheimer ele afirmou que a visão exposta nesse texto estava muito próxima das ideias que os dois autores gostariam de desenvolver, no que diz respeito “à ideia da história enquanto catástrofe permanente” e no rompimento por parte de Benjamin da noção de história como um progresso em direção à melhoria da sociedade como propagado pela socialdemocracia.50 Adorno e Horkheimer primeiro definem o que entendem por ‘Esclarecimento’ e sua relação com o mito, que seriam ambos parte do processo de dominação da natureza pelo homem desde a pré-história e que as bases da noção de igualdade burguesa também derivariam desse período. O que se inverte, no entanto, é que “no período de capitalismo tardio, esse princípio [da lei da igualdade e da equivalência] assume as características de um domínio do homem pela natureza, semelhante ao experienciado nos tempos imemoriais, só que com a perversa característica de a natureza manifestar-se através das próprias ações humanas, e não mais imediatamente”.51 Dessa maneira, a tecnologia forma parte de uma segunda natureza, como já havia sido colocado por Benjamin, e dissocia-se do homem, reificando-o no processo de alienação ao qual está sujeito, que nada mais é que o controle das máquinas sobre o operário. Segundo Duarte, o pensamento dialético seria, portanto, a maneira de desmistificar a ideologia cristalizada nas ações instrumentalizadas cotidianas e que se ligam diretamente à desmontagem dos mecanismos de dominação e cooptação empregados pela indústria cultural, que por meio de imagens reencanta a experiência do homem moderno, anulando sua capacidade de ação frente aos aparatos técnicos.
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Benjamin, Walter. Sobre o conceito da história, em: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. op. cit. Duarte, Rodrigo. op. cit. p. 41 ibidem. p. 43
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A mediação realizada pela indústria cultural resultaria na classificação dos consumidores e na conseguinte padronização dos produtos culturais, que devem ser sempre valorizados dentro de um mesmo padrão de gosto consagrado pela sociedade que, como vimos, já havia sido apontado por Adorno. Ao mesmo tempo, a mistificação das massas se dá por meio da “duplicação dos objetos empíricos” e quanto mais profundo for esse processo, “tanto mais fácil fazer crer que o mundo lá fora é o simples prolongamento daquele que se acaba de ver no cinema”. O filme, portanto, não deixa margem para que o observador possa ampliar sua capacidade de reflexão sobre a realidade, fato exacerbado pela própria condição do meio, de imagens que se sucedem a velocidades desconhecidas até então, situação para a qual Benjamin também já havia apontado. O resultado é “a atrofia da imaginação e da espontaneidade do consumidor cultural”52 e o aprofundamento da mistificação dos processos ideológicos que guiam a construção das representações sociais, já que “reproduz os homens como aquilo que foi já produzido por toda a indústria cultural”.53 A própria diferença acaba incorporada à essa lógica, como na classificação dos consumidores e dos produtos a eles dirigidos e converte-se em estilo ou ainda identidade. Mas, segundo os autores, as grandes obras de arte nunca se sujeitaram propriamente a um estilo, senão o tomam “como verdade negativa” e sempre desconfiaram dele como um dado, no entanto, “a falsidade do estilo como tal hoje triunfa no jargão cantado do crooner”.54 Essa pasteurização e anulação da capacidade crítica do espectador unifica a experiência do homem moderno sob o rótulo da cultura, também interpretado por Adorno e Horkheimer como parte do mecanismo de validação dos objetos culturais submetidos à lógica da mercadoria. A introjeção dos valores desse sistema nos cidadãos, também é parte da criação de necessidades impostas pela indústria cultural, que para os autores seria uma de suas maiores forças. Isso leva o sujeito ainda à lógica da diversão enquanto “prolongamento do trabalho sob o capitalismo”55 e os conteúdos culturais já prescrevem as reações do consumidor, ampliando ainda mais seu condicionamento social e a atrofia de sua experiência e capacidade crítica. Sempre analisando a desintegração social aprofundada pelo capitalismo monopolista, eles afirmam que os produtos da indústria cultural fazem parte de um processo de coisificação e portanto de exclusão de significados para o observador. Da mesma maneira, não há espaço para inovação técnica propriamente, já que tudo está submetido a padrões estabelecidos e à duplicação da realidade anteriormente exposta. Assim, “não obstante os progressos da técnica de reprodução, das regras e das especialidades, não obstante a pressa agitada, o alimento que a indústria cultural oferece aos homens permanece como a pedra da estereotipia”, reforçando
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Adorno, Theodor. Indústria Cultural e Sociedade. São Paulo: Paz e Terra, 2002. p. 16 ibidem. p. 17 ibid. p. 21 ibid. p. 30
“a imutabilidade das relações”.56 No começo da televisão, eles também percebem o seu papel na manutenção da ordem social vigente e ainda seu poder de penetração nos lares e portanto no lugar mais íntimo de nossas vidas. Algo que atualmente parece ser um dos maiores papéis desse meio de comunicação surge em outro momento do texto, quando os autores afirmam que “a cultura industrializada [...] ensina e difunde a condição em que a vida desumana pode ser tolerada”.57 O outro – o diferente em condições piores que as nossas – aparece na televisão como um alívio para que nos contentemos com as agruras do cotidiano. Há ainda uma colocação que merece ser destacada que é aquela da separação entre valor de uso e valor de troca no objeto cultural e a confusão desses valores por meio do rádio, por exemplo. Já que, “incorporando completamente os produtos culturais na esfera das mercadorias, o rádio renuncia a colocar como mercadoria seus produtos culturais. Ele não cobra do público na América taxa alguma e, assim, assume o aspecto enganador de autoridade desinteressada e imparcial, que parece feita sob medida para o fascismo”.58 Desse modo o rádio também dissocia o conteúdo do contexto, entrando nas casas e fazendo com que os ouvintes entendam a palavra como uma ordem, o “falso mandamento” que seria a “tendência imanente do rádio”.59 Por fim, a partir do momento em que a obra de arte se aproximou do observador, e não é mais mediada pelo dinheiro, ela atinge o auge da reificação, fazendo com que desapareça tanto a crítica quanto o respeito: “àquela sucede a expertise mecânica, a este, o culto efêmero da celebridade”.60 antinomias frankfurtianas e o campo de forças benjaminiano Por mais que Adorno desenvolva em seus escritos ideias relacionadas às de Benjamin, a relação dos dois era bastante complicada como revelam alguns fatos e que aparece nas correspondências trocadas entre os dois. Adorno acreditava muito nos estudos de Benjamin, mas faz a eles diversas ressalvas expressas em cartas nas quais analisa minuciosamente ensaios de Benjamin enviados para publicação na revista do Instituto para Estudos Sociais. Comentando sobre A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, Adorno coloca sua completa aprovação ao que lhe parece ser condizente com a intenção original do autor, “a construção dialética da relação entre mito e história” a partir de um ponto de vista materialista, que seria “a auto-dissolução dialética do mito, que aqui é entendida como o desencantamento da arte”.61 Mais adiante ele condena Benjamin por não levar as formulações dialéticas que realiza mais a fundo quando analisa as relações entre 56 57 58 59 60 61
ibid. p. 47 ibid. p. 53 ibid. p. 62 ibid. p. 63 ibid. p. 64 Adorno, Theodor. Adorno to Benjamin, em: Aesthetics and politics. Londres: Verso, 2007. p. 120 [TM]
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a obra de arte autônoma e aquela dependente dos grandes investimentos dos conglomerados culturais, o que seria ir até o âmago de tal situação para revelar sua “irracionalidade imanente”. Do mesmo modo, não apenas o contato de Adorno com Hollywood aprofundou sua descrença em relação às capacidades do cinema, mas na própria Alemanha ela já tinha se impressionado com o modo de produção cinematográfico ao visitar o estúdio de Neubabelsberg. Ele afirma que nessa ocasião pôde perceber “o quão pouco a montagem e todas as técnicas avançadas que você enfatiza são realmente utilizadas; ao contrário, a realidade é por todo lado construída de um modo mimético muito infantil e depois é ‘fotografada’”.62 Da mesma maneira ele vê a influência do teatrólogo alemão Bertolt Brecht como bastante prejudicial ao escritos de Benjamin e afirma que o principal problema de tal influência seria “a liquidação de qualquer apelo à imetiaticidade dos efeitos estéticos interconectados, por mais estilizados que sejam, e para a verdadeira consciência dos trabalhadores que não têm nenhuma vantagem sobre a burguesia a não ser pelo fato de seu interesse na revolução, mas do contrário trazem todas as marcas da mutilação típica do sujeito burguês”.63 Ele afirma ainda que seria de extrema importância que conseguisse concluir seu estudo sobre o jazz para que os dois ensaios fossem publicados juntos, já que ambos revelam em diferentes produções culturais modos de se esconder por trás de fachadas progressistas algo que na verdade é reacionário. Ao comentar sobre o projeto das Passagens de Benjamin, Adorno novamente realiza um balanço entre os pontos positivos e negativos que vê na obra de seu colega. Algo curioso é o fato dele denunciar o que seria um marxismo artificialmente introduzido por Benjamin no projeto, que é algo que T. J. Clark também questiona, de modo bastante oblíquo seja dito, em Será que Benjamin deveria ter lido Marx?, no qual afirma que o contato do autor com Marx “de modo geral, foi um empecilho na trajetória ascendente de Benjamin como pensador”,64 embotando a simplicidade poética que constava nas primeiras notas do projeto das Passagens no fim da década de 1920. Do mesmo modo, Adorno diz a Benjamin que sua “solidariedade com o Instituto [para Pesquisas Sociais] [...] o levou a fazer reverências ao Marxismo que não são adequadas nem ao Marxismo em si e nem para você” e o levou a autocensurar suas ideias mais frutíferas e promissoras com base em (falsas) categorias marxistas.65 Mas de qualquer forma, Adorno diz que “esteja certo de que estamos prontos para realizar os mais extremos experimentos para fazer de sua teoria a nossa”.66 Outra crítica comum a Adorno e Clark é o fato de Benjamin omitir de suas análises o poeta Mallarmé, que para o primeiro teria definido de maneira absoluta o programa materialista no qual 62 63 64 65 66
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ibidem. p. 124 [grifo do autor] idem Clark, Timothy J. Será que Benjamin deveria ter lido Marx?, em: Modernismos: ensaios sobre política, história e teoria da arte. op. cit. p. 282 Adorno, Theodor em: Adorno to Benjamin. op. cit. p. 130 [TM] ibidem. p. 131
“obras literárias não seriam inspiradas pelas palavras, mas sim feitas delas”.67 Já para Clark, “omitir Mallarmé hesitando perigosamente à beira dos trilhos é excluir parte do sofrimento da modernidade”.68 Isso ecoa também a frase de Adorno na qual ele diz que sua esposa Gretel teria dito que Benjamin seria “o habitante das profundezas cavernosas de suas Passagens e que você se retém de terminá-la porque tem medo de deixar o que construiu”69 – demonstrando como Benjamin também sofre as mudanças trazidas pela modernidade. Por fim, há mais um ponto de convergência entre as ideias expressas por esses dois autores em relação ao uso por Benjamin de categorias totalizantes como massas e fantasmagoria sem defini-las precisamente e sem estabelecer a dialética de sua conformação enquanto representação social mediadora da ideologia burguesa do capitalismo monopolista. Benjamin, por outro lado, se defende dizendo que “a teoria emerge como uma forma desobstruída. Ela irrompe como um único raio de luz dentro de um quarto artificialmente escurecido”.70 Aí está definido o papel da teoria crítica que perpassa toda essa discussão, que seria o de iluminar aquilo que a reprodução social esconde por meio de diversas formas de ilusão – o quarto que é escurecido artificialmente. Dos ataques à maneira como se apropria da teoria marxista, Benjamin afirma que o fato de se utilizar dessa teoria “não seria mera lealdade ao materialismo histórico, mas solidariedade às experiências que todos compartilhamos nos últimos 15 anos. Aqui também, é uma questão de interesses produtivos bastante pessoais meus; não posso negar que eles podem ocasionalmente ser violentos em relação a meus interesses originais. Entre eles está um antagonismo do qual nem em meus sonhos eu gostaria de aliviar”.71 Novamente aparece aqui o que Gretel afirmara, um alívio que apenas em seu suicídio Benjamin alcançaria, já que nunca iria deixar seu castelo da modernidade e portanto jamais poderia concluí-lo. Benjamin se defende também da acusação de ser demasiadamente filológico, afirmando que sua análise da produção de Baudelaire tem por objetivo justamente realizar a passagem do conteúdo para seu contexto social, revelando-o historicamente,72 outra importante característica do papel dessa teoria na análise de objetos culturais ou artísticos. Ele pede ainda para que Adorno reveja sua postura de não publicar o texto sobre Baudelaire e que ele realizaria mudanças para que isso ocorresse, mas que gostaria de colocá-lo em debate público para romper com o isolamento no qual vinha trabalhando. Benjamin também se refere ao texto de Adorno Sobre o caráter do fetichismo e a regressão da audição e o comparando com o seu sobre a obra de arte e suas técnicas de reprodução. Para ele, as divergências teóricas que podem ser vistas entre os dois ensaios decorrem mais do ponto de partida de cada um. “Deve ser realmente uma questão de enxergar diferentes objetos a partir 67 68 69 70 71 72
ibid. p. 122 Clark, T. J. op. cit. p. 303 Adorno, Theodor em: Adorno to Benjamin. op. cit. p.131 [TM] Benjamin, Walter. Reply, em: Aesthetics and politics. Londres: Verso, 2007. p. 134 [TM] [grifo do autor] ibidem. p. 136 ibid. p. 137
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de ângulos aparentemente diferentes mas igualmente válidos”73 e afirma ainda que em seu texto havia tentado “articular momentos positivos tão claramente quanto você conseguiu articular os negativos”.74 O debate que percorre essas visões tão próximas, mas ao mesmo tempo tão combativas entre si na verdade extrapola os autores aqui elencados e acaba percorrendo todo o século XX, como será visto mais adiante. Nesse período do entre-guerras na Europa, porém, tal debate estava tomado por forças de esquerda que se opunham, discutindo incessantemente o papel do realismo e do modernismo em relação à reificação imposta pelo capitalismo monopolista na sociedade ocidental. Brecht, por exemplo, afirmava que representava a realidade em suas peças, mas dando-a aos homens “de modo que eles possam se apropriar dela”.75 Sua concepção de realismo também é interessante de ser apontada “Meios realistas: descoberta dos complexos causais da sociedade / desmascarar os pontos de vista prevalentes das coisas como o ponto de vista daqueles que estão no poder / escrever do ponto de vista da classe que oferece as mais amplas soluções para as dificuldades opressoras nas quais a sociedade humana está enredada / enfatizar o elemento de desenvolvimento / tornar possível o concreto, e possibilitar a abstração a partir dele”.76
A desconstrução da linguagem utilizada pelas classes dominantes é algo de fundamental importância para a estratégia brechtiana de iluminação da realidade social e isso também o liga a outras práticas que serão abordadas em breve. Por ora ainda cabe detalhar o que estava em jogo nesse momento de formação da sociedade de consumo e de seu entendimento crítico. Dentro do processo de dissolução do mito e sua substituição por diversas outras formas de mistificação presentes no capitalismo monopolista sob a forma de mercadorias, Jameson demonstra como a produção de Brecht estava ligada à uma ideia de ciência enquanto prática e que romper com a divisão do trabalho seria colocar o processo de “conhecer o mundo de volta ao processo de transformá-lo e ao mesmo tempo reúne o ideal de práxis com uma concepção da produção”.77 Esse seria um dos fundamentos de sua estética, assim como de sua noção de arte didática que colocou em prática em diversas de suas peças. O efeito de estranhamento causado por elas teria o objetivo de desnaturalizar a recepção da arte bem como das representações ideológicas da sociedade capitalista. Jameson atenta ainda para o fato de que a relação entre Benjamin e Brecht propiciou um intercâmbio de teoria e prática que resultou em tal estética, já que “a inextricável relação entre a estética de Brecht e a análise da mídia e de suas possibilidades revolucionárias por 73 74 75 76 77
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ibid. p. 139 ibid. p 140 Brecht, Bertolt. Against Georg Lukács, em: Aesthetics and politics. op. cit. p. 81 [TM] ibidem. p. 82 Jameson, Fredric; em: Aesthetics and politics. op. cit. p. 204. [TM]
Benjamin” poderiam levar a “propósitos politizadores e didáticos”.78 Algo que Jameson também aponta é o fato de que depois da Segunda Guerra Mundial a sociedade de consumo tomou contornos mais claros do que na época trabalhada inicialmente por esses autores, por mais que a preocupação que tinham com a mercadoria e seu papel alienante fosse uma constante nesses textos. A construção da noção de um sistema total cristalizado pelos conglomerados da indústria cultural e da cooptação que ela realiza de elementos que a contradigam é, para Jameson, uma das maiores contribuições dos pensadores da Escola de Frankfurt. No entanto, ele vê a resposta de Adorno para o problema como ainda longe de solucioná-lo, já que sua “proposta de vermos o estágio clássico do alto modernismo em si como o protótipo da mais ‘genuína’ arte política [...] e sua sugestão de que Beckett seria o verdadeiro artista revolucionário de nossa época”79 não seria muito satisfatória. Jameson também indica outro ponto falho que ele vê na Filosofia da nova música de Adorno, pois o maior problema, ignorado por este autor, seria “o destino do modernismo na sociedade de consumo em si” e sua participação enquanto o estilo dominante na produção de mercadorias, pois “o que antes era uma escandalosa ‘arte perceptual’ encontrou sua função econômica e social para suprir as mudanças estilísticas necessárias para a sociedade de consumo contemporânea”.80 Algo que Jameson também acrescenta ao debate é em relação ao uso da tradição e da história da cultura ocidental que ele extrai da noção de Ernst Bloch de Erbe, que seria “a questão do uso do passado cultural do mundo naquilo que seria crescentemente uma única cultura universal do futuro” e, ao contrário de Luckács que vê a sociedade socialista como uma continuação da sociedade burguesa, “Bloch sugere a necessidade de se pensar a ‘transição para o socialismo’ em termos de uma diferença radical, de uma ruptura mais absoluta com aquele passado em particular, e talvez uma renovação ou redescoberta da verdade das formas sociais mais antigas”.81 Jameson acaba advogando um novo realismo, em uma época na qual as formas de abstração artística já foram transformadas na estética dominante do capitalismo. Assim, “quando o modernismo e suas técnicas de ‘estranhamento’ se tornaram o estilo dominante pelo qual o consumidor é reconciliado com o capitalismo, o hábito da fragmentação em si deve ser ‘estranhado’ e corrigido por um modo mais totalizante de analisar o fenômeno”.82 Dessa forma, esse novo realismo seria a maneira de “resistir ao poder de reificação na sociedade de consumo e reinventar aquela categoria de totalidade a qual, sistematicamente minada pela existência fragmentada em todos os níveis da vida e da organização social atualmente, pode sozinha projetar relações estruturais entre as classes, assim como a luta de classes em outros países, no que se tornou um 78 79 80 81 82
ibidem. p. 207 ibid. p. 209 idem ibid. p. 210 ibid. p. 211
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sistema mundial”.83 Por fim, Jameson ressalta que o debate realismo/modernismo, por mais distante que esteja, revela uma discussão ainda não solucionada cuja “contradição fundamental é entre a história em si e o aparato conceitual que, buscando apreender essas realidades, apenas consegue reproduzir sua discordância dentro de si na forma de um enigma para o pensamento, uma aporia. É a esta aporia que devemos nos agarrar, que contém em sua estrutura o ponto crucial de uma história que ainda não superamos”.84 Esse debate no começo do século XX gira em torno do modo de construção e de infiltração da reificação promovida pelo aparato da indústria cultural, algo que se acentuaria nas décadas seguintes, mas que ainda estava em um momento inicial de sua constituição. Muitos autores entendiam que somente o retorno a antigas práticas artísticas poderia ser efetivo na contraposição cultural à dominação econômica, pois apenas elas ainda poderiam dar ao observador uma recepção que fosse de algum modo ‘iluminadora’. Sardinha Lopes vai no mesmo sentido quando afirma que a arte pós-aurática não mais evocaria o real, mas sim o atualizaria, já que “enquanto parte mesma desse real, ela [a arte] conteria indícios que nos permitiriam repensá-lo: os objetos [artísticos], aliviados do peso da tradição e tornados independentes de seu ambiente original, poderiam se rearticular em novas correspondências, em que os objetos, fora do lugar, tornarse-iam uma via de acesso a uma nova realidade, propiciando uma nova visão do passado – algo como uma ‘iluminação profana’ pela qual se instaura um sentido inesperado”.85 E essa é parte da maneira como muitas obras contemporâneas apresentam fragmentos da realidade sob diferentes ângulos, como que esmiuçando a realidade em um processo que, quando alcança seu objetivo, força o observador a reorganizá-la de acordo com – e em favor de – sua própria experiência. Para encerrar tal debate cabe ainda colocar o próprio método de trabalho de Benjamin como representante de práticas essencialmente modernistas que levam o observador, ou leitor no caso, a uma certa ‘iluminação profana’. A própria obra das Passagens, era para ser composta apenas de fragmentos e citações para que os materiais falassem por si próprios e para que a subjetividade do crítico desaparecesse o máximo possível – daí emergiria a teoria desobstruidamente como colocado pelo próprio Benjamin. Da mesma forma, ao se referir às análises benjaminianas da obra de Baudelaire, Martín Kohan afirma que esse autor “considera que a forte presença da multidão na poesia de Baudelaire se deve a que ele nunca a menciona diretamente”.86 Da mesma maneira como a teoria aparece subjetivamente nos textos de Benjamin a multidão e Paris aparecem como pano de fundo para os poemas do francês, que nunca explicita sua presença de fato, mas da qual é impossível de ser desassociada. A mobilização do real em direção à iluminação secular do
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ibid. p. 213 idem Lopes, Ruy Sardinha. op. cit. p. 61 Kohan, Martín. op. cit. p. 35
observador, também aparece em uma descrição feita por Adorno sobre o método de trabalho de Benjamin depois de sua morte. Ele afirma que o processo de análise benjaminiano seria o de “contemplar todos os objetos tão de perto quanto lhe fora possível, até que se tornassem alheios e como alheios lhes entregassem seu segredo”.87 Essa passagem novamente revela o processo de estranhamento que pode ser alcançado por meio da exposição da própria realidade e ainda a forma negativa de acesso que seria permitida pela arte aurática, como debatido em torno dos poemas épicos e românticos por Benjamin e Adorno. O crítico literário estadunidense Robert Kaufman ao analisar o debate da época em torno da questão da aura e da recepção ‘iluminadora’ dos objetos artísticos afirma que a totalidade social, que, como foi visto anteriormente é criticada por Adorno e Jameson por não ser diretamente apontada no processo dialético de Benjamin, aparece em seu trabalho “na teoria e na prática da constelação e do campo de forças [Kratfeld]. Estes últimos são constante e corretamente entendidos como uma tentativa intelectual não-determinística de identificar e conectar dinamicamente elementos (históricos, socioeconômicos, culturais) que não são dados inicialmente como relacionados, mas que, quando animados – constelados –, em conjunção criam ou revelam um campo de forças significante. Tal campo de forças por sua vez ilumina a realidade social maior cujos elementos foram reunidos de acordo com a afinidade e a tensão (ao invés de o serem em uma falsa totalização integrativa) para tornar o próprio campo de forças construtivista visível”.88
Kaufman também aproxima essa discussão ao modo de entendimento kantiano de que o estético é justamente “um modo de pensamento não instrumental mas ao mesmo tempo preciso, coerente e não-arbitrário” que informa de maneira “criativamente revigorante” o conhecimento conceitual. De maneira simplificada, “o estético faz uma ponte entre o conhecimento objetivo-conceitual (ou o mundo objetivo a cujo conhecimento corresponde) e a capacidade humana subjetiva de uma agência crítica que seria mais que arbitrária em relação ao conhecimento objetivo da realidade existente”.89 Mais adiante Kaufman retoma a ideia da constelação/campo de forças para afirmar que ela serve como “uma das grandes reimaginações modernistas, construtivistas, daquele velho e familiar amigo do estético-lírico que é então radicalmente reinventado (não menos que também pela devida parataxia modernista que reencena as articulações românticas das partes e do todo): a forma orgânica”, que serviria também para Adorno em suas análises em torno da música onde, na modernidade, “as formas orgânicas aparecem como o princípio simultaneamente dissociativo e
87 88 89
ibidem. p. 59 Kaufman, Robert. Aura Still, em: October n° 99, inverno de 2002. p. 75 [TM] [grifo do autor] ibidem. p. 76
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estruturante da composição dissonante”,90 como colocado em seu ensaio Sobre o caráter do fetichismo e a regressão da audição.91 De todo modo, “a forma constelativa simplesmente é a teoria-prática da obra de arte modernista autoconsciente crítico-progressista.”92 Ainda de acordo com Kaufman “seguindo Benjamin, Adorno argumenta de maneira consistente pela natureza ‘crítica’ da aura moderna, cujo ponto de partida ele, assim como Benjamin, tendem a identificar na poesia lírica romântica. [...] Adorno afirma que tanto o romantismo britânico quanto o alemão, o pós-romantismo francês e então o próprio modernismo são estágios chave no desenvolvimento de um inevitável, mesmo que complicado, experimentalismo artístico dedicado à percepção crítica do ‘novo’ (‘novo’ aqui entendido em última instância como as características ainda não exploradas do modo de produção e, de fato, de tudo o que é emergente no social)”.93
O que não puderam ver de maneira tão clara à época no entanto, foi justamente o poder de cooptação do capitalismo por meio de seus conglomerados culturais, como já indicado por meio de Jameson, mas do qual o pessimismo que emana da Dialética do esclarecimento é resultado.
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ibid. p. 78 ver nota 40 Kaufman, Robert. op. cit. p. 78 ibidem. p. 48
modernismos Cabe agora analisar como a produção artística lidou de maneira geral com essas transformações ocorridas na sociedade ocidental. Além das práticas já indicadas na literatura e na música por esses autores, a produção modernista também foi pauta de seus debates teóricos e as vanguardas artísticas tiveram papel fundamental na transformação da sensibilidade contemporânea de modo geral. No entanto, se a experiência da modernidade traz sofrimento e perda de referências para o cidadão, as práticas modernistas que se apropriaram dessas formas acabaram sendo incorporadas ao sistema estilístico do capitalismo tardio, como já indicado anteriormente. Benjamin formularia diversas observações sobre as práticas modernistas, encontrando no surrealismo, por exemplo, uma das formas de se atingir a iluminação profana secular do homem moderno. Para ele “o domínio da literatura foi explodido de dentro” pelos surrealistas, “na medida em que um grupo homogêneo de homens levou a ‘vida literária’ até os limites extremos do possível”.94 Esse processo, no entanto, era algo que estava em curso desde o século anterior, por meio das práticas de artistas como os já citados Baudelaire e Mallarmé, mas também por Guillaume Apollinaire – quem alcunhou o termo surrealismo em livro de 1917 –, Alfred Jarry e Arthur Rimbaud, para ficar em apenas alguns exemplos. A instrumentalização técnica, portanto, somente levou ao extremo as práticas de desintegração da linguagem que já estavam em curso no século anterior. Novamente, a superação “autêntica e criadora da iluminação religiosa [...] se dá numa iluminação profana, de inspiração materialista e antropológica, à qual podem servir de propedêutica o haxixe, o ópio e outras drogas”.95 Ainda segundo Benjamin, o surrealismo participa da reordenação da arte em um sentido menos contemplativo como “uma oposição revolucionária” e “a atitude da burguesia contra toda manifestação de liberdade espiritual desempenha um papel decisivo. Foi essa hostilidade que empurrou para a esquerda o surrealismo”,96 algo que mudaria com a apropriação da estética do alto modernismo pelo capitalismo como indicado por Jameson e que será visto com maior profundidade posteriormente. Da mesma maneira, as práticas modernistas de modo geral introduziriam, em contraposição ao romantismo, uma possibilidade dialética de devassar o mistério “na medida em que o encontramos no cotidiano, graças a uma ótica dialética que vê o cotidiano como impenetrável e o impenetrável como cotidiano”.97 Para Benjamin, o sonho coletivo expresso por Mickey Mouse, por exemplo, é parte das possibilidades ilimitadas colocadas pelos novos meios de reprodução técnica das obras de arte, mas que nesse exemplo, está completamente sujeito à produção comercial e circulação 94 95 96 97
Benjamin, Walter. O surrealismo – o último instantâneo da inteligência europeia, em: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. op. cit. p. 22 ibidem. p. 23 [grifo do autor] ibid. p. 28 ibid. p. 33
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por meio dos grandes conglomerados capitalistas, algo oposto ao uso dos sonhos pelas práticas surrealistas. O dadaísmo é outra corrente de fundamental importância na compreensão das transformações estéticas ocorridas no começo do século XX que também foi entendida assim por Benjamin. Para ele, o dadaísmo seria uma nova forma de arte fruto das transformações técnicas da época, e que esse movimento “tentou produzir através da pintura (ou da literatura) os efeitos que o público procura hoje no cinema”.98 Assim, menos de vinte anos após as primeiras experiências dadaístas no Cabaret Voltaire em Zurique, Benjamin já demonstrava como o efeito de choque introduzido em suas práticas estava absorvido pelo cinema e naturalizava a experiência contemporânea. O recolhimento, cuja prática era inerente à contemplação da arte autônoma burguesa, foi solapado pelos dadaístas “cujas manifestações [...] asseguravam uma distração intensa, transformando a obra de arte no centro de um escândalo. Essa obra de arte tinha que satisfazer uma exigência básica: suscitar a indignação pública”. A obra então “convertia-se num tiro. Atingia, pela agressão, o espectador”.99 Dessa forma provocaria o observador contemporâneo a examinar suas próprias aflições com essa experiência de vida fragmentária que se instalava em todos os domínios da sociedade, mas ao mesmo tempo lhe introjetaria ainda mais essa fragmentação e o tornaria mais apto a enfrentá-la no cotidiano. A experiência artística era assim ressignificada e a vida angustiante na modernidade passava a ser um fato consumado com o qual teríamos que lidar. Por estar estabelecida e configurada enquanto forma de vida, não há como transformá-la sem antes educar o sujeito contemporâneo e é a essas ideias que as práticas modernistas se ligam de maneira geral. Se “o cinema é a forma de arte correspondente aos perigos existenciais mais intensos com os quais se confronta o homem contemporâneo” e “corresponde a metamorfoses profundas do aparelho perceptivo”,100 um dos principais papéis da arte é justamente o de educar o observador contemporâneo a se apropriar de uma maneira não-alienada desses novos meios de apreensão da realidade, justamente de uma maneira que se contraponha à reificação estabelecida pela circulação dos objetos culturais sob a formamercadoria. Uma das atitudes mais radicais dos dadaístas reunidos em Zurique na década de 1910 foi a decomposição da linguagem, à maneira surrealista, mas desenvolvendo seus métodos de desconstrução dos significados sociais, que teriam nos readymades de Duchamp sua expressão máxima: é a própria realidade do objeto em sua pura presença que irá subverter seu significado social, revelando assim sua existência enquanto produto de uma construção social cuja finalidade é a produção de mercadorias para a reprodução do sistema econômico e social.
98 idem. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. op. cit. p. 191 99 idem 100 ibidem. p. 192 [grifo do autor]
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futurismo e dadaísmo – dois lados de uma mesma atitude futurismo Outro movimento de vanguarda de fundamental importância para compreender como as artes visuais lidariam com tais transformações sociais é o futurismo, um dos primeiros movimentos de vanguarda a se apropriar dos meios de comunicação a seu favor, quando em 1909 Filippo Marinetti publicou seu Manifesto Futurista na capa do Le Figaro, jornal francês de maior circulação. Os artistas reunidos nesse grupo, tais como Giacomo Balla, Umberto Boccioni e Carlo Carrà estavam interessados em introduzir em suas práticas artísticas os avanços tecnológicos dos anos precedentes. Desse modo, o futurismo avançava na fusão entre as práticas artísticas e as formas avançadas da tecnologia “celebrando o ‘dinamismo congênito’, ‘a quebra do objeto’ e a luz como ‘destruidora de formas’, e ao mesmo tempo exaltando o mecânico”.101 Diversos outros manifestos do grupo seriam lançados nos anos seguintes, expressando outros interesses dos artistas em relação aos diversos meios artísticos como a pintura, a escultura e a música. O manifesto A arte do barulho, lançado por Luigi Russolo em 1913 trazia um contundente ataque à música tradicional, afirmando que “hoje em dia a arte musical mira os mais estridentes, estranhos e dissonantes amálgamas de sons. Assim, estamos nos aproximando do som-ruído. Essa revolução da música é paralela à crescente proliferação do compartilhamento das máquinas no trabalho humano. [...] No entanto, o som musical é muito restrito na variedade e qualidade de seus tons. [...] Devemos romper a todo custo com esse círculo restritivo de sons puros e conquistar a variedade infinita dos sons-ruídos”.102
Para tanto, Russolo construiria máquinas de produzir sons inusitados que emulam os aspectos sonoros da vida moderna nas grandes cidades, seus Intonarumori (1914). A sinestesia, o movimento, as representações fotográficas e cinematográficas e as máquinas de guerra são assim introduzidas Luigi Russolo em meio a seu Intonarumori (1914) 101 102
Buchloch, Benjamin e Krauss, Rosalind. 1909, em: Art since 1900 – modernism, antimodernism, postmodernism. Nova Iorque: Thames & Hudson, 2011. p. 90 [TM] Russolo, Luigi. The Art of Noise (futurist manifesto, 1913). Nova Iorque: Something Else Press, 1967. p. 6 [TM]
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nas práticas artísticas do período. Da mesma maneira, o movimento afastou-se da aproximação com a esquerda que parecia inevitável, e aproximou-se do fascismo, já que por meio “de sua violenta ruptura com o legado da tradição burguesa, organizou de maneira igualmente apaixonada a afirmação da necessidade de se integrar a arte com a tecnologia avançada, inclusive a tecnologia da guerra”.103 Desse modo a pintura e a escultura, tradicionalmente consideradas artes estáticas, ganharam a incumbência de representarem o movimento e a desintegração promovida pelas tecnologias da sociedade industrial. E os futuristas buscaram realizar isso de diversas maneiras, introduzindo em suas obras a simultaneidade da apreensão da velocidade. As pinturas de Balla e as esculturas de Boccioni são as práticas mais representativas desses intentos e acabaram alcançando “um dos primeiros modelos válidos de uma pintura não-representacional”.104 Na pintura Dinamismo de um cachorro na coleira (1912) Balla realiza a decomposição do movimento transformando o espaço pictórico em algo temporal. Não é uma posição específica do sujeito que aparece ali – decomposto em diversos ângulos como realizado pelos cubistas –, mas sim parte do percurso das figuras representadas. Da mesma maneira, Boccioni realizou tal procedimento em sua escultura Formas únicas da continuidade no espaço (1913), ainda preso à ideia de cronofotografia e a modos de apreensão simultânea de um movimento no espaço. Ele desenvolveria esse procedimento, aproximando-se das ideias do russo Vladimir Tatlin, em seu Dinamismo de um cavalo acelerando e casa (1914-15), objeto no qual materiais industrialmente fabricados como couro, aço e pedaços de vidro encontrados são combinados na “primeira escultura completamente não-representacional do século XX”.105 As colagens futuristas apontam ainda outro caminho buscado pelos artistas do grupo, como Carrà que se apropriava de elementos da cultura de massas para criar um efeito de movimento por meio de suas diagonais e, justapondo diversos elementos tipográficos, alcançava ainda uma súbita ressignificação dos elementos gráficos ali reunidos. Essas experiências seriam impulsionadas também pelos poemas de Marinetti que tentou registrar em Zang Tumb Tuum (1914) a experiência vivida por ele no campo de batalhas da Primeira Guerra Mundial, quando lutou pelo exército italiano na Líbia. Se Walter Benjamin relata o mutismo dos soldados que voltavam das batalhas, Marinetti tenta transformar os horrores que geravam tal mutismo em uma vivência estética que liberaria a cognição humana de suas atitudes automatizadas e instalaria um novo mundo tecnicizado. O próprio Benjamin alerta para os perigos da estetização da política realizada pelos futuristas e que os levaria ao fascismo, à maneira como já foi colocado anteriormente, ao citar carta de Marinetti sobre as batalhas que viveu, na qual o artista afirma que
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Buchloch, Benjamin e Krauss, Rosalind. op. cit.. p. 90 ibidem. p. 93 ibid. p. 95
acima Dinamismo de um cavalo acelerando e casa (1914-15) de Boccioni abaixo Demonstração intervencionista (1914), colagem de Carlo Carrà acima Formas únicas da continuidade no espaço (1913) de Umberto Boccioni abaixo Dinamismo de um cachorro na coleira (1912) de Giacomo Balla
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“[...] a guerra é bela, porque graças às máscaras de gás, aos megafones assustadores, aos lança-chamas e aos tanques, funda a supremacia do homem sobre a máquina subjugada. A guerra é bela, porque inaugura a metalização onírica do corpo humano. [...] porque conjuga numa sinfonia os tiros de fuzil, os canhoneios, as pausas entre duas batalhas, os perfumes e os odores de decomposição. A guerra é bela, porque cria novas arquiteturas, como a dos grandes tanques, dos esquadrões aéreos em formação geométrica, das espirais de fumaça pairando sobre aldeias incendiadas, e muitas outras... Poetas e artistas do futurismo... lembrai-vos desses princípios de uma estética da guerra, para que eles iluminem vossa luta por uma nova poesia e uma nova escultura!”106
A desconstrução da linguagem realizada pelos futuristas buscava libertar as palavras de suas relações tradicionais – gramaticais, sintáticas, léxicas etc. – mas ainda se atinham às suas formas gráficas – que poderiam ter origens miméticas na natureza como colocado por Rosalind Krauss. Foram os futuristas russos que levaram tais práticas adiante, bem como os dadaístas como veremos a seguir. Na Rússia os poetas que experimentavam com a linguagem colocavam a necessidade daquilo que Brecht levaria ao teatro: o efeito de estranhamento para que nossa percepção fosse desfamiliarizada e assim desnaturalizada. Dessa maneira os signos seriam revelados em sua forma arbitrária, como identificado por Roman Jakobson em suas análises sobre o cubismo. Para ele, “sem contradição [entre signo e objeto] não há mobilidade de conceitos, de signos e a relação entre conceito e signo torna-se automatizada”.107 Assim, os russos também estabeleceriam as bases das decomposições estruturalistas da obra de arte, buscando, por meio de tais procedimentos, revelar as estruturas subjacentes a sistemas cristalizados na sociedade como os da pintura representativa. “Ao deixar nu os mecanismos tradicionais da representação pictórica, o cubismo tinha para Jakobson e seus colegas a mesma função que a neurose teve para Freud em sua descoberta do inconsciente”.108 dadaísmo Os dadaístas também avançariam, por meio de rituais secularizados, na desfamiliarização ou estranhamento da linguagem principalmente em suas performances realizadas no Cabaret Voltaire em Zurique em 1916. Levados à cidade pela Primeira Guerra Mundial, artistas de diversas nacionalidades se reuniram em torno do Cabaret, buscando lidar com a crise vivida na Europa, de uma maneira oposta à dos futuristas. “As pessoas agem como se nada estivesse acontecendo, [como] se toda essa carnificina civilizada [fosse] um triunfo”.109 De fato, juntando elementos de 106 107 108 109
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Marinetti, Filippo apud: Benjamin, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. op. cit. p. 196 [grifo do autor] Bois, Yve-Alain. Introduction 3, em: Art since 1900 – modernism, antimodernism, postmodernism. op. cit. p. 35 [TM] idem Ball, Hugo apud: Krauss, Rosalind. 1916a, em: Art since 1900 – modernism, antimodernism, postmodernism. op. cit. p. 136 [TM]
diferentes movimentos artísticos como o expressionismo e o futurismo, eles criavam eventos que se aproximavam de rituais litúrgicos medievais, atacando todas as convenções, inclusive aquelas criadas por eles mesmos. As apresentações ‘bruitistas’ que realizavam impunham no observador uma nova forma de apreensão artística, à maneira descrita por Benjamin acima sobre o efeito de choque que as ações dadaístas provocavam. Tal prática deriva ainda das performances iniciais dos futuristas, apesar de terem diferentes objetivos, algo que fica evidente quando o artista Hugo Ball afirma que ele “desejava esvaziar a linguagem não apenas de seus sentidos tradicionais mas também da razão instrumental que havia subscrito a carnificina em massa da guerra”.110 Douglas Kahn relata uma apresentação ‘simultaneísta’ dadaísta realizada em 29 de março de 1916 por Richard Huelsenbeck, Tristan Tzara e Marcel Janco no qual recitaram L’admiral cherche une maison à louer simultaneamente em inglês, alemão e francês, gerando uma sobreposição de vozes que anula o sentido imediato do texto, dando-lhe uma nova forma que só adquire sentido no observador. O próprio texto, escrito por Ball, já era composto de palavras sem sentido, vocábulos, cânticos e assobios. Sobre seu objetivo de recompor o sentido das palavras, Ball afirmaria que “devemos voltar à alquimia [rimbaudiana] da palavra, devemos inclusive renunciar à palavra também, a fim de conservar o último e mais sagrado refúgio da poesia”.111 Esses modos de atuar que os dadaístas desenvolveram, apesar de expressos por meio de diversos meios e suportes pareciam se realizar plenamente apenas através das experimentações sonoras do grupo, principalmente em seus recitais de poesias simultaneístas. Um tema que se fazia presente em tais apresentações eram também os sons de povos ‘exóticos’ – da mesma maneira que os cubistas haviam ‘descoberto’ as máscaras tribais africanas –, como nos poemas negros de Huelsenbeck da década de 1910, que sempre incluíam um ‘umba umba’, ou nas poesias de Ball, que ele declamava em “estilo de cântico litúrgico”,112 ocidentais ou orientais. Da mesma maneira, por meio da mimetização “da destruição e da dissonância, os dadaístas buscavam expurgá-los de algum modo, ou pelo menos transformar tal choque em um tipo de proteção que no entanto ainda carrega uma grande dose de terror e agonia”.113 Este é o modo pelo qual, negativamente, o sujeito da modernidade seria educado sensorialmente para poder lidar de maneira produtiva com a perda de referências no mundo instrumentalizado pelas forças do capital – algo que a psicanálise também abordaria de diferentes maneiras, mas principalmente nas questões apontadas por Freud acerca da relação do sujeito com os traumas pelos quais passa e na formação do ego como descrita por Jacques Lacan. De qualquer maneira, uma nova maneira de se relacionar – por via negativa – com os objetos artísticos surgia, exigindo do observador uma atitude de recolhimento, e não 110 111 112 113
Krauss, Rosalind. op. cit. p. 136 Ball, Hugo apud: Kanh, Douglas. Los ruidos de la vanguardia, em: Sardo, Delfim. La exposición invisible. (catálogo de exposição) Madrí: V.E.G.A.P., 2006. p. 16 [TM] idem Krauss, Rosalind. op. cit. p. 137
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de distração como colocado por Benjamin. Isso porque cabe ao público terminar a apreensão do poema e reorganizar a cacofonia promovida pelos artistas no palco, e por isso que a princípio seria por meio da distração intensa identificada por Benjamin que se daria, de maneira negativa, a ‘iluminação profana’ do público. O ritual secularizado proposto por esse grupo bastante heterogêneo de artistas serviria então para recompor a experiência do homem contemporâneo frente às aflições trazidas pela sociedade industrial. De maneira mais organizada, após o fim da guerra, o dadaísmo encontrou campo fértil na Alemanha de Weimar, marcada por sua politização extrema da qual o movimento não escaparia. Em uma sociedade que cada vez mais era inundada pela propaganda e pela comunicação de massa,
Cabeça mecânica (esírito da época) (c.
os artistas iriam se apropriar desses elementos para seguir
1920) de Raoul Hausmann
nas estratégias de estranhamento e desautomatização de maneira geral. Como forma de imiscuir-se nesse mundo imagético, as montagens realizadas com elementos encontrados foi uma das maneiras de expressão mais frequentes do grupo, como a escultura de Raoul Hausmann Cabeça mecânica (espírito da era) (c. 1920) demonstra, apontando ainda para uma relação do novo corpo mecânico da sociedade industrial – diferente daquela colocada por Marinetti, seja dito. As fotomontagens, porém, acabaram sendo um dos campos que os dadaístas alemães mais desenvolveram, procurando “desmantelar as representações míticas do mundo visual como resultado da emergência da distribuição em massa de imagens fotográficas”, buscando novamente uma produção “não-semântica de sentidos”.114 Por fim, acabariam desenvolvendo uma produção gráfica voltada para publicações políticas, estabelecendo as bases para o desenho gráfico moderno e utilizando-se da propaganda política como método de contrapropaganda àquelas disseminadas pelos meios de comunicação de massas. Da mesma maneira deram uma função à sua produção artística, retirando-a do campo da ‘arte pela arte’, já que “a tarefa específica que foi agora designada para a fotomontagem não era mais a destruição da pintura e da escultura, ou da cultura como uma esfera autônoma e separada; sua tarefa era fornecer às massas imagens com informações didáticas e políticas”.115 Quando Hitler tomou o poder esses artistas foram os primeiros a serem perseguidos e tais experimentos estéticos foram interrompidos.
114 115
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Buchloh, Benjamin. 1920, em: Art since 1900 – modernism, antimodernism, postmodernism. op. cit. p. 176 [TM] ibidem. p. 178
A ressignificação dos produtos industriais, no entanto, seria realizada de maneira radical pelo artista francês Marcel Duchamp, que atravessou diversos grupos artísticos e passou a ser mais associado aos dadaístas que se exilaram em Nova Iorque durante a Segunda Guerra Mundial. Duchamp levou o cubismo, prática com a qual manteve intenso contato, ao que seria seu extremo e assim evidenciou a crise pela qual o movimento passava, relacionada ao fato de que suas práticas continuavam a tratar a arte como uma esfera autônoma. Seu Nu descendo a escada n.2 (1912) provocou escândalo no Salão dos Independentes de 1912, por introduzir o movimento na pintura, e o artista se viu forçado a retirá-la da exposição por seus próprios irmãos que também eram pintores cubistas. A partir de então ele abandonou a pintura e abriu as portas das artes visuais para objetos extraídos diretamente das prateleiras das nascentes lojas de variedades. A partir do contato com o pintor surrealista Francis Picabia ele descobriria a figura do ‘esnobe-negador’, que pautaria suas atitudes desde então. Uma passagem curiosa que ilustra bem as ideias do artista foi durante visita ao Salão da locomoção aérea com o escultor Constantin Brancusi, quando Duchamp olhou uma hélice e lhe disse: “a pintura acabou. Quem faria melhor do que essa hélice? Digame, você conseguiria?”116 Buscando abolir também a figura do artista, ele procurou fazer uma arte ‘sem artista’ lançando-a em aventuras pautadas pelo acaso e pela escolha. O mito, deslocado da arte para a mercadoria, seria então reintroduzido no campo estético pelo deslocamento das próprias mercadorias para o campo artístico por meio da escolha do artista. Os readymades de Duchamp apareceram então como fruto dessa escolha e um Secador de garrafas (1914) não deixa de ser um objeto utilitário, mas nos leva a “considerar as complexas relações entre valor estético, valor de uso e valor de troca”117 de uma maneira nunca vista até então. Ao mesmo tempo, Duchamp realiza o deslocamento da própria figura do artista e da instituição que chancela os objetos artísticos enquanto tais – dotados portanto de uma outra aura,
116 117
Foster, Hal. 1914, em: Art since 1900 – modernism, antimodernism, postmodernism. op. cit. p. 127 [TM] ibidem. p. 128
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acima Fonte (1917) à direita A noiva sendo despida por seus celibatários, mesmo (Grande Vidro) (1915-23) página anterior Nu descendo a escada n.2 (1912) todos de Marcel Duchamp
que lhes é conferida no momento em que entram em tal espaço. A singularidade das obras de arte é deslocada em favor de sua serialidade e então, por mais que a figura do artista saia da obra em si, é ele quem irá conferir o estatuto de objeto cultural àquele artefato produzido industrialmente, confundindo perpetuamente a relação entre artista, instituição cultural, empresário industrial e consumidor. De qualquer forma o evento mais significativo promovido por Duchamp no teste dos limites institucionais e da liberdade da prática artística foi seu famoso urinol que enviou para a exposição da Sociedade dos Artistas Independentes dos EUA em 1917 da qual era um dos organizadores. Batizado de Fonte e assinado por R. Mutt – nome que reúne diversas referências à alcunha para pessoas ricas, ao fabricante da louça e a personagens de desenho animado – ele foi a única obra rejeitada da exposição, cujo conselho curatorial era presidido pelo próprio Duchamp. Por meio de Beatrice Wood ele se defendeu dizendo que “não tem importância se o sr. Mutt fez a fonte com suas próprias mãos ou não. Ele o ESCOLHEU. Ele pegou um objeto ordinário da vida e o colocou de modo que seu significado de utilidade desapareceu sob um novo título e ponto de vista – criou um novo pensamento para aquele objeto”.118 Duchamp rompe assim de maneira fatal com a visão burguesa da autonomia da esfera artística e realiza um ato que “beira o 118
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ibid. p. 129
anarquismo”, segundo Adorno, para quem o tal gesto seria de uma radicalidade burguesa.119 O artista ainda iria além em seus experimentos posteriores, como A noiva sendo despida por seus celibatários, mesmo (Grande Vidro) (1915-23), no qual rompe de vez com a noção de pintura figurativa e introduz a realidade diretamente na composição, por meio dos objetos que flutuam no espaço presos ao vidro. Ele introduziu também o acaso na construção dessa obra, cujo vidro deixou meses largado em seu estúdio tomando poeira que seria incorporada ao trabalho. As notas que preparou para acompanhar a obra, reunidas na Caixa verde, também introduzem a ideia de instruções para Marcel Duchamp vestido de Rrose
se compreender algumas das colocações feitas pelo artista
Sélavy (1921); foto tirada por Man Ray
no trabalho, que nunca poderão ser sistematizadas a ponto de cobrirem todas as implicações possíveis. Suas fotografias como Rrose Sélavy aprofundam ainda mais a dissociação entre
referentes que havia introduzido no Grande Vidro por meio dos traços que imprimiu nele. Com essas fotografias nas quais aparece travestido de mulher, Duchamp rompe com a ideia de um sujeito unificado como era assumida pela arte burguesa até então e “se declara como um sujeito disjuntivo, fraturado, quebrado axialmente em direção a dois polos opostos”.120 O Grande Vidro foi o último trabalho que o artista produziu ‘publicamente’, já que depois de terminá-lo ele dedicouse a jogar xadrez enquanto produzia sua última obra de fato, Étant donnés: 1. La chute d’eau, 2. Le gaz d’éclairage [Sendo dados: 1. A queda d’água, 2. O gás de iluminação] realizada em sigilo entre 1946 e 1966. Curiosamente essa obra teve início quando o artista realizou um desenho de sua amante, a escultora surrealista brasileira Maria Martins, que deu origem à figura feminina que se vê no centro da instalação. A atitude irônica do artista enquanto ‘esnobe-negador’ pautou a vida de Duchamp e muitos outros viriam a se utilizar desse procedimento em suas práticas depois dele.
119 120
idem Krauss, Rosalind. 1918, em: Art since 1900 – modernism, antimodernism, postmodernism. op. cit. p. 165 [TM]
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vanguardas construtivistas Entendendo os diversos modernismos como tentativas de lidar com as mudanças sociais ocorridas na Europa no fim do século XIX e começo do XX, é interessante analisar outra corrente das vanguardas artísticas cujas práticas estariam no extremo oposto às do dadaísmo, mesmo que tenham muitos pontos de contato e expressem uma mesma relação com a sociedade industrial. As tendências construtivistas das vanguardas históricas abordam a prática artística de maneira muito menos ‘niilista’ do que os dadaístas. Buscando solucionar o impasse vivido pelas artes nas primeiras décadas do século XX eles se engajaram em um ativo ordenamento dos novos materiais disponíveis em direção a um envolvimento com as práticas industriais em muitos momentos, ou então com a arquitetura em outros. A Revolução Russa em 1917 permitiu ainda que participassem da edificação de um verdadeiro mundo novo da modernidade, composto por homens livres das dinâmicas capitalistas que os mantinham sob dominação, o que possibilitou que em um primeiro momento aprofundassem as experiências estéticas já em curso como as indicadas até aqui. Roman Jakobson também já havia esboçado as bases das práticas modernistas que seriam desenvolvidas na Rússia, entendendo a arte como um dispositivo linguístico “interdependente” que constituiria “um sistema, e que cada dispositivo teria uma função construtiva, cada qual contribuindo para a especificidade e unidade da obra”.121 O artista russo Vladimir Tatlin respondeu à mesma crise da representação cubista na qual Duchamp se envolveu por meio de um aprofundamento de suas investigações sobre os materiais que utilizaria em suas composições seguindo a tradição produtivista de seu país. Mas foi por meio da pintura de ícones russa, “cuja materialidade não permite qualquer alusão ao mundo real” e conduz o observador à uma transcendência em direção a deus, que Tatlin direcionou o observador à imanência da realidade dos materiais. Ele realizou com os ícones russos o mesmo processo que havia sido feito por Picasso com as máscaras africanas, “como ‘testemunha’ para seu próprio desenvolvimento analítico dos precedentes modernistas, como um guia de uma arte que não era mais dirigida pela semelhança”.122 Novamente a mitologia das sociedades pré-capitalistas entra em cena para substituir sua própria decadência em um mundo desespiritualizado, guiado pelos produtos industriais em direção à iluminação profana de uma sociedade secular. “Profundamente russo e extremamente moderno” é como define Margit Rowell em texto na revista October e segue afirmando que “Tatlin buscou nos conceitos peculiarmente russos de faktura e da linguagem transracional para vislumbrar uma arte que consistiria na pura semântica dos materiais”.123 A partir da crise da pintura cubista, portanto, o artista desenvolveu seu 121 122 123
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Bois, Yve-Alain. op. cit. p. 35 Foster, Hal. 1914. op. cit. p. 126 Rowell, Margit. Vladimir Tatlin: Form/Faktura, em: October n° 07, inverno de 1978. p. 83 [TM]
acima Contra-relevo de canto (1914) à esquerda Seleção de materiais: aço, estuque, vidro, asfalto (1914) próxima página Monumento à 3ª Internacional (1920) todos de Vladimir Tatlin
vocabulário, indo além dos postulados do grupo em direção à ‘verdade dos materiais’. Já em 1914 Tatlin apresentaria seu Seleção de materiais: aço, estuque, vidro, asfalto na qual coloca esses elementos dentro de uma moldura. “A moldura ainda permanece” enquadrando a obra, porém o artista já está à “beira do construtivismo” já que “a composição dos materiais não é mais pictórica”, mas deriva da própria lógica imposta por eles. Como o crítico Nikolai Tarabukin escreveria à época, “o material dita as formas, e não o contrário. [...] Madeira, metal, vidro etc. impõem diferentes construções”.124 Esse seria o fio condutor da produção do artista a partir de então, e “longe de serem ‘arbitrárias’, Tatlin buscava fazer suas composições ‘necessárias’ por meio dessa ‘verdade aos materiais’, uma estética proto-modernista que tendia também para uma ética e, depois da Revolução Russa, a uma política também”.125 Ainda em 1914 o artista desenvolveria seus ‘contrarelevos’, composições de materiais colocadas em cantos do espaço expositivo, que avançam mais ainda na dialética dos materiais, ativando “materiais, espaços e observadores de maneiras novas”.126 Foster identifica ainda três noções fundamentais que guiariam o desenvolvimento do construtivismo na Rússia pré-Revolução. “Se os relevos pictóricos avançavam a noção construtivista de faktura, que [...] reforçava os aspectos mecânicos da marca pictórica, ao invés de seu lado subjetivo, os contra-relevos avançavam na noção construtivista de construção, que [...] reforçava o engajamento ativo com a arte, ao invés da reflexão contemplativa. Ainda por ser desenvolvida, porém, estava a terceira noção construtivista, a de tectônica, a conexão dialética entre as experimentações formais construtivistas com os princípios da organização socioeconômica comunista” 124 125 126
Foster, Hal. op. cit. idem ibidem. p. 127
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Mas esta última noção só seria desenvolvida depois da Revolução Bolchevique.127 Seria com seu Monumento à 3ª Internacional, encomendado por Lênin e cujo projeto foi desenvolvido entre 1919 e 1920 nunca tendo sido construído, que Tatlin alcançaria o auge de suas especulações por meio do uso dos materiais fazendo uma escultura funcional como poucas vistas antes. Vidro e aço se combinam em elementos que abrigam diversas instituições políticas da União Soviética, e giram em ritmos que demonstram a importância de cada uma delas dentro do sistema político em construção. O próprio dinamismo do monumento refere-se à nova sociedade industrial e de homens livres. Para “Mayakovsky, o monumento seria a primeira obra a expressar verdadeiramente a Revolução de Outubro e colocou adiante os princípios básicos do construtivismo. Ele marca a passagem do ‘período de laboratório’ à era produtivista, formulada enquanto tal em novembro de 1921. Começando em 1922-23 a criação artística e a produção industrial seriam sinônimos. O artista deveria verdadeiramente servir à Revolução; a arte deveria ser integrada à vida das massas.”128 Outro artista russo que teve importância fundamental na formulação das práticas que passaram a constituir de maneira geral a vanguarda construtiva foi Kazimir Maliévitch, que também desenvolveu o legado do formalismo linguístico russo nas artes plásticas e também teve de lidar com a crise da representação cubista em seu próprio trabalho. Depois de realizar colagens cujos experimentos avançam com a linguagem do cubismo analítico ele partiu em uma busca formalista daquilo que seriam os fundamentos da prática da pintura, seu ‘grau zero’ – o pictórico enquanto tal. De qualquer modo, suas colagens também participaram na estruturação de materiais que representam a si mesmos no espaço contido da tela, como em seu Guerreiro da primeira divisão, Moscou (1914), no qual elementos gráficos são colados junto a objetos comuns como um termômetro. Mas foi a partir dos grandes planos de cor que aparecem nessas colagens que Maliévitch desenvolveria o que denominou de suprematismo, pois eles seriam isolados pelo
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idem Rowell, Margit. op. cit. p. 108
acima à esquerda Cruz negra (1915) acima à direita Quadrado vermelho (Realismo pictórico de uma camponesa em duas dimensões) (1915) de Kazimir Maliévitch
artista levando-o à sua própria forma de abstração pictórica. Justamente por se ater ao espaço contido pela moldura, ele tomaria o quadrado como forma básica e assim sua Cruz negra (1915) e outras ‘não-composições’ são “pinturas indéxicas; ou seja, a divisão da superfície da imagem, as marcas que ela recebeu, não são determinadas pela ‘vida interior’ ou pelo humor do artista (como era o caso das pinturas abstratas de Kandinsky), mas pela lógica do ‘zero’ – elas se referem diretamente às bases materiais da imagem em si, as quais elas mapeiam”.129 Da mesma forma o artista buscaria o que seria o ‘zero’ da cor, realizando também planos de cores puras pintadas na tela como Quadrado vermelho (Realismo pictórico de uma camponesa em duas dimensões) (1915). Maliévitch, no entanto, tinha uma visão bastante espiritualizada do mundo que reflete em sua obra, também com origem na iconografia russa. Portanto, ele manteve em suas pinturas os traços de seu trabalho e seus quadrados nunca eram perfeitos, demonstrando que sua prática era guiada pela intuição e era, portanto, arbitrária. Ele desenvolveu sua linguagem até chegar a quadrados brancos sobre fundos brancos, o que seria o auge de seu reducionismo em direção ao zero da pintura. Ela então se dissolve no espaço que a envolve, algo que seria perseguido de outras maneiras pelos construtivistas holandeses como será visto a seguir. Também partindo das práticas cubistas, o holandês Piet Mondrian desenvolveu seu próprio método de abstração que teve profunda influência no desenvolvimento das vanguardas construtivas. 129
Bois, Yve-Alain. 1915, em: Art since 1900 – modernism, antimodernism, postmodernism. op. cit. p. 132 [TM]
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Como Alain-Bois coloca, Mondrian, em 1912, “voltou o relógio [da história do cubismo] para o verão de 1910”, quando “Picasso e Braque, tendo se visto à beira de pintar grelhas totalmente abstratas, retrocederam”.130 Isso porque Mondrian, vendo o cubismo analítico por meio de seus próprios interesses no simbolismo do fim do século e na teosofia, perceberia que “aquilo que Picasso e Braque mais temiam (a abstração e a planaridade) era precisamente o que ele estava buscando, já que isso estaria de acordo com a categoria do ‘universal’ que era central para suas próprias crenças”.131 Desse modo ele partiu para sua própria busca do ‘zero’ da pintura e das artes de maneira geral, aproximando-se das relações pictóricas que estabeleceriam o que para ele seria a “essência imutável de todas as coisas”. Ele pensou à época que poderia reduzir tudo a seus elementos fundamentais, “toda figura poderia ser digitalizada em um padrão de unidades horizontais versus unidades verticais e assim se disseminarem na tela; e então toda hierarquia (e também toda centralidade) seria abolida” e dessa forma a “estrutura subjacente do mundo” seria revelada.132 Mais importante ainda foi sua concepção de que, por meio das oposições que guiam tal estrutura, também um equilíbrio atemporal poderia ser alcançado, algo que depois teria desdobramentos fundamentais para a arte do século XX. Depois de tomar contato com a noção de dialética de Hegel, Mondrian percebeu de maneira ainda mais clara que as oposições que estabelecia em suas obras não alcançariam uma neutralização mútua, mas sim constituiriam partes de “um sistema dinâmico movido por tensões, pela contradição”.133 Isso o levou também a constatar que não era exatamente a redução da imagem a um código pré-determinado que guiaria sua produção, mas que suas pinturas deveriam “encenar na tela as leis da dialética que governam o mundo”,134 implicando uma nova direção em seu processo de abstração que havia sido demonstrado em obras como Composição n° 10 em preto e branco (1915) ou Composição em linho (1916-17) que ainda revelam a depuração pictórica do movimento do mar por meio de sua codificação. Utilizando-se desse procedimento, Mondrian acreditava que chegaria à pintura em si, já que seus elementos seriam depurados a ponto de se diluírem no espaço, não por meio de seu desaparecimento como nos quadrados brancos de Maliévitch, mas sim pelas relações entre os 130 131 132 133 134
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Bois, Yve-Alain. 1917a, em: Art since 1900 – modernism, antimodernism, postmodernism. op. cit. p. 148 [TM] idem idem ibidem. p. 149 idem
acima à esquerda Composição n° 10 em preto e branco (1915) acima à direita Composição losangular com duas linhas (1931) abaixo Composição com amarelo, vermelho, preto, azul e cinza (1920) página anterior Composição com grelha n° 9: mesa de xadrez com cores-luz (1919) todos de Piet Mondrian
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elementos como linhas e planos que acabam extravasando o espaço contido do quadro. “Apesar de Mondrian nunca ter abandonado sua posição espiritualista originária, sua arte seria agora, e continuaria sendo, uma das mais elaboradas explorações da materialidade da pintura em si e da análise de seus significantes”, num salto dialético do idealismo extremo à materialidade extrema.135 Isso o levou a radicalizar a grelha modular, mas prendeu-se muito a ela, gerando uma contradição com seus princípios, pois havia homogeneizado demais a pintura em um sistema regular que suaviza a tensão que buscava ressaltar, como sua Composição com grelha n° 9: mesa de xadrez com cores-luz (1919) demonstra. Ao rever tal postura ele finalmente alcançaria o estágio maduro de sua produção, cuja base teórica ele chamou de neoplasticismo. A grelha regular teve de dar lugar de volta à composição restaurando assim a tensão dinâmica da dialética hegeliana para atingir um novo equilíbrio, “que não seria baseado na promessa de equalização das unidades, mas em sua dissonância”.136 O uso de cores primárias também foi uma maneira de estabelecer uma lógica coerente ao seu sistema, e os planos de cores se expressariam enquanto tais por meio de sua separação em células fechadas. As linhas pretas grossas completam esse método e a regularidade desaparece de uma maneira bastante sutil mas eficiente assim como a simetria, que é completamente abolida. Sua Composição com amarelo, vermelho, preto, azul e cinza (1920) revela como o artista demonstrou na prática sua teoria, e como “cada pintura neoplástica funcionaria agora como um microcosmo modelo, um objeto prático-teórico no qual os poderes destrutivos do pensamento dialético são testados cada vez de um modo novo”.137 O auge da depuração de sua linguagem pictórica se daria na pintura Composição losangular com duas linhas (1931), demonstrando que o uso de pouquíssimos elementos já bastaria para desnaturalizar o olhar do observador pautado pela lógica da pintura perspectivista renascentista. Não há simetria possível nessa obra e qualquer campo delimitado pela linha negra funciona como um modelo de um equilíbrio dinâmico, fundando um microcosmo de sua própria utopia sensorial. Essa utopia é também o que leva à ideia da pintura como um fragmento que se desdobra sobre a realidade que a contém, já que, com sua força expansiva ela irradiaria no espaço e assim corrigiria a feiúra circundante, controlando a sala que a abriga. Em seu texto A casa – a rua – a cidade, de 1927, ele demonstra como isso se daria por meio da integração neoplasticista desses três elementos, que devem então constituir uma ‘unidade’. E Mondrian ainda vai além, afirmando que “não devemos mais considerar a residência como uma ‘caixa’. A ideia de ‘lar’ (home, sweet home) deve ser abandonada. Assim como a ideia convencional de ‘rua’: devemos considerar a casa e a rua como a cidade, que é uma unidade, formada por planos que estão compostos em uma
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ibidem. p. 150 ibid. p. 151 idem
acima Estudo para o saguão de entrada da Universidade de Amsterdã (1922) de Theo van Doesburg à esquerda capa da revista De Stijl n. 01 (1917) de Vilmos Huszar
oposição neutralizante, pela qual toda segregação e exclusão são eliminadas”.138 Seu próprio ateliê também foi um modelo do ambiente neoplástico que ele nunca parou de desenvolver de 1920 até sua morte em 1944. Quem se debruçou mais na relação da pintura com o espaço foi seu colega Theo van Doesburg que participou da revista De Stijl, publicada entre 1917 e 1928 e que teve profunda influência no desenvolvimento do neoplasticismo. Por meio desse grupo, as ideias de Mondrian foram colocadas em contato com outros artistas da época que buscavam efeitos semelhantes aos seus utilizando-se da pintura e da arquitetura. De modo mais materialista que Mondrian, van Doesburg seguiu utilizando-se da grelha por toda sua vida, para afastar o arbitrário de suas composições que para ele deveriam ser guiadas por princípios matemáticos. Sua grande contenda com Mondrian, porém foi a introdução da diagonal na pintura, que para este artista “com uma única pincelada destrói o esforço do movimento em alcançar uma integração total de todos os elementos da pintura”139 integração essa que para AlainBois apenas ele conseguiu realizar completamente. Mas os avanços gerais de todos os membros 138 139
Mondrian, Piet. A casa – a rua – a cidade, em: Neoplasticismo na pintura e na arquitetura; Martins, Carlos A. Ferreira. São Paulo: Cosac Naify, 2008. p. 171 Bois, Yve-Alain. 1917b, em: Art since 1900 – modernism, antimodernism, postmodernism. op. cit. p. 156 [TM]
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acima Composição espacial para uma exibição, Berlim (1924) de Gerrit Rietveld e Vilmos Huszar à esquerda Cadeira vermelha e azul (1917-18) de Rietveld página anterior capa da revista Merz n. 8/9 de abril de 1924
do movimento foram sendo desenvolvidos de maneira a criar um corpus teórico-prático que estabelece finalmente uma arte integrada ao espaço no qual transcorre a vida. A abolição da moldura, por exemplo, é um ponto fundamental desse processo e Bart van der Leck foi um dos primeiros a demonstrar como integrá-la ao quadro. Foi também ele quem elementarizou a cor como depois seria aprofundado por Mondrian. A relação com o espaço era um passo natural no percurso teórico dos artistas, mas ele ainda era um espaço antigo e dissociado da pintura neoplástica. Partindo de sua descrença nas artes aplicadas enquanto tais, eles buscaram explorar essa relação e a arquitetura também deveria ser reduzida às suas formas elementares e a pintura deveria ser integrada, e não sobreposta, a ela. A solução encontrada por van Doesburg para o impasse que viveu trabalhando com arquitetos foi a de realizar uma “integração negativa baseada na abolição da arquitetura por meio da pintura” que desintegraria o espaço interior homogêneo das construções, quebrando com qualquer simetria que existia anteriormente.140 Mas foram Vilmos Huszar e Gerrit Rietveld que demonstraram que os próprios elementos arquitetônicos poderiam ser elementarizados “utilizando-se dos cantos como o agente visual da continuidade espacial”. A Composição espacial para uma exibição, Berlim (1924) constrói um interior no qual planos de cores se sobrepõem continuando depois da quina, “criando um tipo de deslocamento espacial e obrigando o
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ibidem. p. 157 [grifo do autor]
espectador a girar seu corpo ou olhar em volta”141 e funda a arquitetura do De Stijl propriamente, já que foi concebida do começo ao fim seguindo seus princípios estéticos, e não aplicada sobre uma arquitetura pré-existente como fazia van Doesburg. Segundo Alain-Bois, Rietveld conseguiu por fim aquilo que van Doesburg tanto temia ou seja, elementarizar a própria estrutura da construção, subvertendo por meio de transformações mínimas as oposições de sustentação/ sustentado que caracterizam as estruturas das construções, como na casa Schröder (1924), que “preserva a ética funcionalista da arquitetura modernista” mas que com suas inversões como “a janela de canto que, uma vez aberta, violentamente abala o eixo estrutural definido pela intersecção das duas paredes”.142 A obra mais famosa de Rietveld, porém é sua Cadeira vermelha e azul (1917-18) que realiza essas violações em um móvel, demonstrando a possibilidade de integração das diversas artes com o ambiente do homem contemporâneo. Schwitters e Lissitzky: novos espaços no encontro do dadaísmo com o construtivismo Essa concepção artística também viveu diversos outros desdobramentos na Europa durante esse período e encontros internacionais permitiram a ampliação dessas ideias em direções bastante diversas. Um encontro muito frutífero que deve ser mencionado aqui é o do russo El Lissitzky com o alemão Kurt Schwitters, que exporia a maneira pela qual o construtivismo e o dadaísmo, por meio da inevitável contradição entre as práticas de ambos os movimentos, poderiam gerar um balanço do espírito da época como analisado até aqui. Schwitters a partir de 1919 envolveu-se em seu projeto Merz, por meio de colagens que uniam elementos encontrados e contrapunham textos, imagens e objetos, contribuindo enormemente para o dadaísmo alemão. O artista buscava a todo custo romper com a experiência contemplativa da pintura e criar o que seria a pintura para a experiência contemporânea, rapidamente criando à sua volta um polo de atração de artistas, mas mantendo-se quase como que uma vanguarda individual em si mesmo. Sua revista Merz teve um papel fundamental também na promoção do encontro entre artistas de diferentes movimentos vanguardistas do período. O número 8/9 da revista, publicado em abril de 1924, tinha como co-editor o próprio Lissitzky e estabelecia as bases de um inusitado encontro programático do construtivismo com o dadaísmo. De qualquer forma, Schwitters percebeu já em
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ibid. p. 158 ibid. p. 159
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acima à esquerda Merzbau no ateliê de Schwitters em Hanover, construída a partir de 1923 acima à direita Sala de demonstração (1926) de El Lissitzky na Landesgalerie em Hanover
1923 que as mudanças que buscava deveriam passar também por uma transformação espacial e apresentou a primeira de suas construções que depois seriam chamadas de Merzbau. Da mesma maneira, Lissitzky já havia desenvolvido sua própria linguagem artística a partir do contato com diversos membros das vanguardas construtivas, tendo participado da elaboração das noções suprematistas com Maliévitch e colaborado com a revista De Stjil, além de ter desenvolvido uma linguagem gráfica acorde com tais movimentos e com a ideia de propaganda política aos moldes da desenvolvida pelos dadaístas alemães como visto anteriormente. Em 1925 ele foi convidado para projetar uma exposição na Landesgalerie em Hanover, cujo diretor buscava avidamente novas formas de apresentação das obras de arte que satisfizessem a lógica compositiva delas. Vivendo na cidade por alguns meses ele aprofundaria sua amizade com Schwitters e os diálogos entre ambos tiveram grande influência no desenvolvimento de suas produções. Assim, Lissitzky apresentou sua Sala de demonstração, um desdobramento de experiências anteriores em outras instituições e na apresentação de seu próprio trabalho que o artista vinha desenvolvendo pelo menos desde 1923. A sala da exposição em Hanover era marcada pela acentuação das características do ambiente, como pelas linhas verticais das madeiras que aplicou nas paredes que também remetiam às obras expostas, bem como colocava a demanda de interação que exigia do público, com obras em gavetas e em prateleiras que o forçava a manipulá-las e estabelecer
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incessantemente novas relações entre elas. “A transformação do espaço expositivo e de seus dispositivos e convenções de exibição o levaram a articular a transformação histórica da instituição do museu com as do estatuto do objeto artístico exibido nesse ambiente. A nova situação deslocou a obra de arte de seu caráter de objeto com origens no culto para uma situação de puro valor de exibição, deixando de ser um objeto de inteligibilidade trans-histórica e passando a ter uma especificidade histórica do tipo necessário para propósitos arquivísticos”.143 Ele também participa, portanto, do deslocamento do valor do objeto artístico liberado de seu papel de culto e indica possibilidades para o público se apropriar dele de maneira ‘iluminadora’ ou emancipatória. Já o espaço proposto por Schwitters, reforçava o caos da sociedade industrial e todo o ambiente exigia o envolvimento cognitivo do observador. Ao contrário do espaço de Lissitzky, o da Merzbau era “reconcebido como especificamente ritualístico, com o objeto e sua exibição amalgamados em um impulso quase wagneriano em direção à Gesamtkunstwerk [obra de arte total], na qual todos os sentidos, todos os elementos perceptivos, seriam unificados em uma forma intensificada de interação visual, cognitiva e somática – ou seja, física – com os objetos, estruturas e materiais exibidos”.144 Os dois espaços criados quase que ao mesmo tempo e informados por diálogos cotidianos entre os dois demonstram as duas maneiras mais radicalmente opostas de lidar com a perda de referências e o mal estar introduzido na sociedade ocidental com a industrialização. De maneiras opostas os dois artistas colocam o observador à beira de alcançarem a ‘iluminação profana’ por meio de elementos ou características extraídas de seu próprio cotidiano.
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Buchloh, Benjamin. 1926, em: Art since 1900 – modernism, antimodernism, postmodernism. op. cit. p. 222 [TM] idem
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a sociedade de consumo espetacular As transformações apontadas até aqui fazem parte do momento inicial da modernização cujo ápice é a industrialização, mas que acabou levando às duas grandes guerras que pairam sobre toda a produção artística e teórica analisadas até aqui. Com a Segunda Guerra Mundial muitos desses percursos seriam subitamente interrompidos ou deslocados espacialmente – como a ida de muitos intelectuais e artistas europeus para os EUA, por exemplo – modificando os rumos de desenvolvimentos que historicamente parecem bastante lineares e com orientações claras, mas que, como pode-se perceber à luz das inúmeras correntes e conflitos esboçados até agora, nada tinham de unívoco propriamente e refletiam diferentes estratégias de lidar com a modernização de maneira geral. Manfredo Tafuri já aponta para uma contradição fundamental do modernismo a partir da análise da produção de Le Corbusier, principalmente da proposta do arquiteto suíço para a cidade argelina de Argel. Tafuri afirma que Le Corbusier estabeleceu as bases do que seria o papel do arquiteto moderno, o de “mediar o improvável com a certeza do plano, compensar organicidade e desorganicidade agudizando-lhes a dialéctica, demonstrar que o nível máximo de programação produtiva coincide com o máximo de ‘produtividade do espírito’”.145 Com a impossibilidade de colocar em prática seus projetos, que em última instância seriam a realização da ideologia burguesa de produtividade e funcionalismo, Le Corbusier evidencia a crise das vanguardas que apareceu de vez após a Segunda Guerra, mas cujas bases já estavam colocadas desde seu princípio. No momento em que o “grande capital industrial supera a sua ideologia de fundo, pondo de parte as superestruturas”146 é que fica evidente essa crise, à maneira como apontado anteriormente a partir do pensamento de Herbert Marcuse que chegara a termos quase idênticos para justificar a liberdade criativa das vanguardas. É quando travam contato com essa contradição fundamental que as práticas artísticas se recolhem de sua força inicial e partem para novas pesquisas. E tal contato se deu de maneira incontornável quando a guerra e a monstruosidade fascista mostraram de vez seu poder e, com a ascensão do stalinismo na URSS as alternativas passaram a ser cada vez mais administradoras e contrárias aos ideais revolucionários da burguesia séculos antes. Jameson aponta uma maneira como isso aparece desde o ponto de vista de nossa perspectiva histórica, ao afirmar que “o nazismo em si, com seu líder carismático e a exploração singular das nascentes tecnologias da comunicação no sentido mais amplo do termo (incluindo transportes e autobahns, bem como o rádio e a televisão), parece representar um período de transição e uma combinação especial de circunstâncias históricas que provavelmente não se repetirão”, já que atualmente “a tortura sistemática e a institucionalização das técnicas de contra-insurgência
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Tafuri, Manfredo. Projecto e utopia – arquitetura e desenvolvimento do capitalismo. Lisboa: editorial Presença, 1985. p. 86 ibidem. p. 92
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provaram-se perfeitamente consistentes com o modelo da democracia parlamentar que costumava ser o contraponto do fascismo.”147 Esse período de transição foi marcado por diversas mudanças nas dinâmicas capitalistas que passaram a integrar um Estado cada vez mais administrador da coletividade, aproximando-se assim do fascismo como colocado por Jameson. Mas isso se deu também por meio da produção de desejos pelos meios de comunicação em massa que se desenvolveram de maneira muito mais veloz a partir de então, chegando a constituir o que Jean Baudrillard chamaria de sociedade de consumo, mas cujas bases já estavam colocadas desde a virada do século pelo menos, como já visto anteriormente. É a coisificação total, até das relações interpessoais que surge como algo incontornável e, senão novo pelo menos sob outra forma, cuja alienação é muito mais difícil de ser revelada. Alguns anos mais tarde o teórico francês Guy Debord ampliaria os efeitos da alienação sob o que podemos chamar de sociedade de consumo espetacular e da administração da vida política pelos Estados totalitários – de direita ou de esquerda. Sua principal noção teórica é a do espetáculo, que em certo momento é definido pelo autor como sendo “o capital em tal grau de acumulação que se torna imagem”148. Partindo da noção de “perda da unidade do mundo”, o autor afirma que a “abstração de todo trabalho particular e a abstração geral da produção como um todo se traduzem perfeitamente no espetáculo, cujo modo de ser concreto é justamente a abstração. [...] O espetáculo nada mais é que a linguagem comum dessa separação. [...] O espetáculo reúne o separado, mas o reúne como separado”.149 Essa reunião se daria por meio de aparelhos que, além de servirem como máquinas de isolar, também acabam cumprindo o papel de reencantar o mundo vazio da instrumentalidade técnica – à maneira como a arte modernista buscou em suas práticas, mas aqui o reencantamento se dá de fato por meio da fetichização da mercadoria. Debord ainda delineia os princípios da teoria revolucionária que guiariam uma verdadeira emancipação do proletariado em relação à alienação que lhes é imposta pelos sistemas unificadores do espetáculo. Ao apropriar-se da noção de história o trabalhador acessa as razões de sua produção dialética. “O projeto de Marx é o de uma história consciente. O quantitativo que surge no desenvolvimento cego das forças produtivas meramente econômicas deve transformar-se em apropriação histórica qualitativa”.150 Debord chega a esse ponto depois de afirmar que Hegel seria a “realização histórica da filosofia”, pois o que ele interpretou não era o mundo em si, mas sim a transformação desse mundo. Portanto, Hegel, ao “atrelar o sentido de toda realidade à sua realização histórica, e ao mesmo tempo revelar esse sentido constituindo-se como realização da história, decorre” do fato de que ele teria buscado “em sua filosofia apenas reconciliar-se com o resultado” das revoluções burguesas. 147 148 149 150
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Jameson, Fredric; em: Aesthetics and politics. op. cit. p. 203 Debord, Guy. A sociedade do espetáculo – comentários sobre a sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. p. 25 [grifo do autor] ibidem. p. 23 [grifo do autor] ibid. p. 53
Debord segue com uma referência a Karl Korsch, que afirma que “nesse sentido, é uma filosofia não da revolução, mas da restauração”. O papel de Marx e Bakunin, por exemplo, seria então o de realizar um confronto crítico com o pensamento hegeliano para que “o pensamento da história” se torne “pensamento prático” para o proletário alienado.151 Ele demonstra também de que forma se deu a falência da socialdemocracia, na Alemanha sobretudo, logo antes da Segunda Guerra Mundial que acreditava em uma educação ‘passiva’ do proletariado, que podemos contrapor ao engajamento exigido pelas práticas modernistas delineadas anteriormente. Para Debord, de maneira geral a organização partidária comunista roubou para si a representação do proletariado, passando a administrá-la de maneira igualmente espetacular, mobilizando imagens da mesma forma que os governos capitalistas. Essa administração também constitui outra característica dos totalitarismos que “quanto mais forte ela é [a classe ideológicototalitarista no poder], mais afirma que não existe, e sua força serve-lhe em primeiro lugar para afirmar sua inexistência”.152 Da mesma maneira, foi no período entre-guerras que tal situação tornou-se evidente e que “o fascismo foi uma defesa extremista da economia burguesa ameaçada pela crise e pela subversão proletária, o estado de sítio da sociedade capitalista, pelo qual essa sociedade se salva e concede a si própria uma primeira racionalização de emergência, fazendo o Estado intervir maciçamente em sua gestão”. O fascismo, se apresentaria como mito, “que exige a participação em uma comunidade definida por pseudo-valores arcaicos: a raça, o sangue, o chefe. O fascismo é o arcaísmo tecnicamente equipado. Seu ersatz [sucedâneo] decomposto do mito é retomado no contexto espetacular dos mais modernos meios de condicionamento e de ilusão. Assim ele é um dos fatores de formação do espetáculo moderno”.153 Essa seria a capitulação final do homem frente ao poder reificador da mercadoria e do encantamento por ela promovido. O mito é reinstalado na sociedade pelos valores que os meios de comunicação repetem à exaustão como as formas válidas e aceitáveis na sociedade ocidental – à maneira que Adorno havia apontado sobre o gosto na apreciação musical. Um dos primeiros pensadores pós-modernos, Jean François Lyotard, também demonstraria como a industrialização aprofundaria o processo de separação dos saberes apontado por Weber, avançando ainda na constituição de uma sociedade baseada na performatividade dos sujeitos administrados pelo Estado e pelo sistema de produção econômica. A ‘atomização social’ também aparece em Lyotard como uma forma de fragmentar ainda mais a experiência do homem contemporâneo e ao mesmo tempo limitar as possibilidades de inovação dentro do sistema capitalista. Para ele “esta ‘atomização’ do social em flexíveis redes de jogos de linguagem pode parecer bem afastada de uma realidade moderna que se representa antes bloqueada pela artrose 151 152 153
ibid. p. 51 ibid. p. 72 ibid. p. 75 [grifo do autor]
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burocrática”.154 Da mesma maneira, essa atomização cada vez maior da realidade social levou ao chamado ‘fim das grandes narrativas’, segundo o autor, já que “o saber é e será elaborado para ser vendido e é e será utilizado para valorá-lo em uma nova elaboração; nos dois casos para ser trocado”,155 como Jorge Glusberg define o estatuto do conhecimento na sociedade contemporânea a partir de Lyotard. Assim, nem as ciências, com sua representação de pura objetividade, está livre da penetração do capital por meio de uma racionalidade instrumental que se transformou em uma busca por produtividade e, portanto, lucro. A própria produção desterritorializou-se principalmente a partir da década de 1970, permitindo amplificar tanto a fragmentação social por meio da financeirização e completa submissão individual aos princípios normativos do capitalismo e também sua reunificação por meio dos aparatos do espetáculo que se tornaram cada vez mais parte do cotidiano. A produção de necessidades artificiais pelo capitalismo e também a necessidade de identificação por meio dos pseudo-valores impostos pelo totalitarismo fazem parte das grandes mudanças vividas pela sociedade ocidental após a Segunda Guerra Mundial. Isso também se acentuou pela mudança do eixo do domínio econômico da Europa, arrasada pela guerra, para os EUA, seus verdadeiros vencedores e que não passaram pela destruição provocada por ela. Diversos aspectos que o capitalismo aprofundou nas últimas décadas aparecem como o cerne da nova mistificação à qual estamos sujeitos atualmente e a cultura aparece como um dos mais problemáticos espaços onde isso aparece. “Nosso presente histórico é caracterizado precisamente pela fusão entre cultura e economia. A cultura não é mais um domínio onde negamos os efeitos ou nos refugiamos do capital, mas é sua mais evidente expressão. O capitalismo tardio depende para seu bom funcionamento de uma lógica cultural, de uma sociedade de imagens voltada para o consumo”,156 como define Maria Elisa Cevasco para introduzir o pensamento de Jameson. O próprio Jameson estabelece como ‘pós-moderno’ a mudança da posição da cultura na sociedade ocidental, na qual “a produção de mercadorias, em particular de vestimentas, mobiliário, edifícios e outros artefatos, está agora intimamente ligada à mudança de estilo que deriva da experimentação artística”157 do modernismo. Dessa forma a cooptação daquele estilo que colocara em xeque os cânones da sociedade burguesa é aceito como norma estilística da era da contingência que a ‘performatividade’ tentará controlar por meio da produção e do consumo de mercadorias. Porém, “a questão é que estamos dentro da cultura do pós-modernismo, a ponto de o seu repúdio fácil ser tão impossível quanto é complacente e corrupta sua celebração igualmente fácil. É possível 154 155 156 157
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Lyotard, Jean-François. A condição pós-moderna. Rio de Janeiro: José Olympio, 2011. p. 31 Glusberg, Jorge. Moderno/Postmoderno – de Nietzsche al arte global. Buenos Aires: Emecé, 1993. p. 142 [TM] Cevasco, Maria Elisa, em: Jameson, Fredric. A cultura do dinheiro – ensaios sobre a globalização. Maria Elisa Cevasco (org.). Petrópolis: Editora Vozes, 2002. p. 9 Jameson, Fredric. Pós-modernismo e sociedade de consumo, em: A virada cultural – reflexões sobre o pós-moderno. op. cit. p. 42
pensar que o julgamento ideológico sobre o pós-modernismo hoje implica, necessariamente, um julgamento de nós mesmos, assim como dos artefatos em questão”.158 Da mesma maneira, um novo tipo de mediação surge com a reconfiguração da organização da produção no capitalismo tardio e “é dentro das possibilidades do capitalismo tardio que as pessoas vislumbram “a sua grande chance”, “batalham por isso”, ganham dinheiro e reorganizam as empresas de novas maneiras”.159 Isso também reforça a incapacidade do homem em atuar de maneira autônoma dentro dessa lógica, que sempre permite inovações que deem aos homens noções de individualidade que o dissociam da massa – o consumo reforça ainda mais essa sensação por meio de seus gadgets personalizáveis na aparência mas que são todos iguais em essência. O estilo de fato tornou-se uma marca para classificar o consumidor. Outra mudança apontada por Jameson é a reconfiguração tanto da relação entre tempo e espaço quanto da relação sujeitoobjeto. Pelo fato de o tempo ser uma função da velocidade, ele torna-se perceptível apenas de maneira relativa, “em termos de seus ritmos e proporções enquanto tais”. Dessa forma, “o que surge é uma certa concepção de mudança sem o seu oposto, e afirmá-lo significa assistir, de modo impotente, os dois termos dessa antinomia dobrarem-se um sobre o outro, já que, do ponto de vista privilegiado da mudança, se torna impossível distinguir o espaço do tempo, o objeto do sujeito”.160 As tecnologias, principalmente as de comunicação, amplificam ainda mais essa sensação, ao tornar o mundo um espaço homogeneizado e próximo, comprimido em sua duração temporal efêmera. Assim, Jameson aponta outro paradoxo da contemporaneidade, que se dá por uma “taxa de mudança sem paralelo em todos os níveis da vida social e uma padronização, também sem paralelo, de tudo – dos sentimentos assim como dos bens de consumo, da linguagem assim como do espaço construído –, o que parecesse incompatível com essa mutabilidade”.161 De maneira oposta, também a lógica do consumo espetacular prontamente se apropria de elementos que podem parecer que escapem ao seu controle, como o fez com o modernismo, e por outro lado exclui como ‘degenerados’ aqueles que não são possíveis de serem adocicados e colocados de volta no ciclo de circulação enquanto mercadoria. Isso fica particularmente claro quando temos em mente os movimentos que passaram a ser conhecidos de maneira geral como ‘maio de 1968’, no qual a libertação social estava em foco e permitiu que novos atores sociais ganhassem expressão. As chamadas minorias sociais – as mulheres, os homossexuais, os negros nos EUA, os estudantes – que conquistaram seu espaço por meio de violentas lutas contra as autoridades, foram rapidamente convertidas no carnaval da diversidade que coisifica as pessoas em termos que organizam sua inserção na produção e circulação de mercadorias. Essa 158 159 160 161
Jameson, Fredric. Teorias do pós-moderno, em: A virada cultural – reflexões sobre o pós-moderno. op cit. p. 58 ibidem. p. 84 ibid. p. 93 ibid. p. 102
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criação de individualidades, que no fim são artificiais e reificadoras, ainda surgirá em muitos outros momentos nos textos de Jameson, como quando ele se postula “como é possível que a realidade social mais padronizada e uniforme da história, por um mero peteleco ideológico, o mais imperceptível dos deslocamentos, surja como o brilho reluzente da diversidade absoluta e das formas mais inimagináveis e inclassificáveis da liberdade humana”.162 T. J. Clark também se refere a questões similares, mas ainda mais recentes ao analisar os atentados ao World Trade Center em Nova Iorque em 11 de setembro de 2001. Ele faz uma profunda análise da relação desse episódio com os meios de controle colocados em prática pelos aparatos de controle do ‘Estado espetacular’. Dessa forma o próprio mecanismo de controle indica algumas possíveis saídas, já que os meios de comunicação permitem que lampejos de contradições apareçam na tela da televisão, apesar de que o autor não leva em conta a capacidade reificadora dessas contradições que o espetáculo tem de modo geral. De qualquer modo, a falta de referências do homem moderno permite ainda o surgimento de diferentes maneiras e em todos os períodos da modernidade, de vontades de retorno ao mundo místico pré-capitalista, tendo nos românticos uma de suas mais profundas expressões estéticas e em Nietzche de suas expressões filosóficas. Após o 11 de setembro, isso se radicalizou ainda mais, após uma longa década na qual nos faziam crer que a história havia acabado e que assistiu ao estabelecimento de um novo mundo de comunicações por meio de novas tecnologias. Fomos então, “de súbito jogados numa época de terrível atavismo, um mergulho em antigas lutas ideológicas e geopolíticas” que “vem acompanhado [...] por uma mobilização política igualmente monstruosa (e a queda na cilada) do aparato de uma moderna, para não dizer hipermoderna, produção de aparências. Interesses e repertório de imagens colidem. Um imperialismo sem máscaras une-se ao controle da ‘informação’”. E em um mundo de imagens “a derrota total na guerra das aparências é algo que nenhuma potência hegemônica da atualidade pode tolerar”.163 Da mesma maneira, o próprio evento permitiu observar que a administração das imagens é bastante complicada, abrindo uma possível brecha para uma contestação ao pensamento dominante, já que “o espetáculo tem uma história em curso e não é automaticamente capaz de assimilar cada evento desestabilizador”.164 A imagem dos atentados acabou tornando-se “a imagem que não deveria ser mostrada nos Estados Unidos” e pela primeira vez até a indústria cultural se calou – algo que não havia ocorrido com outros ‘traumas’ pelos quais o país havia passado como os conflitos raciais ou a crise de 1929.165 Assim, “o Estado americano foi derrotado espetacularmente no dia 11 de setembro. E para esse Estado, a palavra
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ibid. p. 123 Clark, Timothy J. O estado espetáculo, em: Modernismos: ensaios sobre política, história e teoria da arte. op. cit. p. 311 [grifo do autor] ibidem. p. 312 ibid. p. 315 [grifo do autor]
‘espetacularmente’ não quer dizer ‘superficialmente’ nem indica um epifenômeno”.166 Mesmo que os ataques não tivessem por objetivo resultados concretos como um ataque em uma guerra tradicional, eles abalaram a confiança da população, algo que, como lembra Clark, é fundamental para manter os circuitos do capital em atividade, já que eles estão vinculados aos circuitos da sociabilidade. Do mesmo modo, os terroristas se apropriaram da própria lógica do espetáculo para atacar seu funcionamento por dentro, percebendo que podem “apoderar-se por um momento da máquina de imagens – e, por um momento, na câmera de eco intemporal do espetáculo, pode ser eterno – e usála para amplificar, reiterar, acumular a visão pura e simples da derrota”.167 Como forma dominante, a imagem também replica seus signos vazios, símbolos que se referem a si mesmos em uma eterna produção e rotação de significados e referências, outra importante característica do capitalismo que foi aprofundada nas últimas décadas. Assim, “signos que em seu próprio vazio e inutilidade (a arquitetura das torres gêmeas é um bom exemplo disso) governam o mundo imaginário; signos cuja nulidade concentrada e materializada representa uma nova oportunidade para o terrorismo de amedrontar, humilhar e virar o mundo de cabeça para baixo”.168 166 167 168
ibid. p. 313 ibid. p. 314 ibid. p. 315
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Clark identifica ainda uma outra relação entre o desencantamento do mundo e seu preenchimento por meio do consumo, que acaba gerando um retorno do reprimido para suprir essas carências, e dá origem a um novo processo de acumulação primitiva, desestabilizando ainda mais as relações de produção e consumo. Outro momento recente que já esvaziou-se da promessa que trazia foi o do surgimento das tecnologias digitais de comunicação, que prometiam “modificar toda a confiança e agressividade da classe média assalariada. ‘Esperem e vejam. A burguesia está prestes a apaixonar-se de novo pelo futuro.’ E foi isso que aconteceu; durante duas décadas o sonho do mundo digital não foi contestado. [...] Hoje ninguém de menos de trinta anos de idade alimenta a menor ilusão do que poderão obter com seus chatíssimos cursos de informática: com muita sorte, não serão mais que passaportes para tarefas repetitivas – isso se o trabalho para o qual você está sendo treinado não tiver sido terceirizado para Bangalore antes da sua formatura”.169 Hoje os aparatos tecnológicos reincorporaram uma certa promessa por meio das personalizações e individualizações que permitem e promovem. Os gadgets da última década – laptops, smartphones, tablets etc. e seus app’s personalizáveis para cada tipo de consumidor pré-catalogado – e as redes sociais nas quais expressamos nossas angústias cotidianas apareceram novamente com o sentido de reencantar a experiência do homem contemporâneo, mas não prometem mais nenhum mundo novo propriamente, senão pequenas doses de alívio no cotidiano. De qualquer forma essas promessas ainda são contagiantes, e os próprios militantes da Al Qaeda são fruto do encantamento do mundo digital. “No coração do mundo do espetáculo, o mundo-imagem míngua e se volatiliza, mas fora, na fronteira do consumo, converte-se em um dos principais incitadores de uma nova leva de Terror e martírio, pois oferece aos recéminiciados em suas técnicas uma ilusão de eficácia política que, num mundo de fantasmas, parece bastante verossímil”.170 Eis aí mais uma das técnicas de encantamento promovida pelo aparato espetacular, de cujas garras é bastante difícil escapar e que cada vez mais desenvolve meios de apresentar-se como ‘sustentável’ ou portador de felicidade por meio da igualdade entre os homens – da liberdade de consumo seja dito.
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ibid. p. 327 ibid. p. 328 [grifo do autor]
as artes e o espetáculo O crítico de arte Hal Foster é outro que indica o estado atual da política e da cultura a partir de visão bastante similar à traçada até aqui. Ele analisa, por exemplo, o discurso ‘pluralista’ do capitalismo tardio e como ele atua como um álibi que permite “pequenos desvios apenas para resistir a mudanças radicais”.171 Da mesma maneira, a descrença à qual foram lançadas as grandes narrativas da modernidade pelas teorias do ‘fim da ideologia’ ou da dialética, ajuda no desenvolvimento do pluralismo enquanto mistificação das liberdades individuais, pois “com a ideologia e a dialética de alguma forma mortos, entramos em um estado que parece ser de graça, um estado que permite, extraordinariamente, todos os estilos”.172 E assim, as novas formas de validação do objeto artístico ganharam força nas últimas décadas e o crítico assume cada vez mais esse papel. Mas velhos valores também são revividos, já que o pluralismo não tem critérios próprios e vai buscá-los naqueles já consagrados historicamente, que são em última instância aqueles “necessários para um mercado baseado no gosto e no conhecimento do especialista, tais como os do visionário, do gênio, da obra-prima”.173 A própria história torna-se uma grande prateleira de mercadorias e não mais algo com o qual devemos romper, uma noção que já fora apontada por Benjamin – e sua noção da história enquanto um continuum – e que hoje parece concretizar-se no hipertexto, onde tudo parece estar acessível a partir de qualquer lugar do mundo e a qualquer momento. Foster também indica a falência do modernismo de uma maneira similar à que seria a promoção do choque enquanto espírito da época, ao afirmar que “as vanguardas ajudaram a reciclar os descartes do capitalismo industrial de volta a seu sistema produtivo, mediando formas proletárias e estilos subculturais [...] guiados pelos interesses não apenas do controle social mas também da produção de mercadorias”,174 indicando novamente que as bases do que hoje vemos acontecer já estavam lançadas desde pelo menos a industrialização europeia. Depois de toda a reconfiguração modernista e da economia que já foi esboçada, a arte entra para suprir nossas faltas de maneira mais profunda mesmo que “até a alienação é transformada em uma imagem para ser consumida pelo alienado”175 ampliando ainda mais o processo de coisificação identificado por Marx na forma-mercadoria. Foster também afirma que dessa forma, “o pastiche e a textualização podem ser sintomas do mesmo colapso ‘esquizofrênico’ do sujeito e da narratividade histórica – como signos do mesmo processo de reificação e fragmentação sob o capitalismo tardio”.176 171 172 173 174 175 176
Foster, Hal. Against Pluralism, em: Recodings. Seattle: Bay Press, 1985. p. 13 [TM] ibidem. p. 16 ibid. p. 17 Foster, Hal. Between modernism and the media, em: Recodings. op. cit. p. 35 [TM] Foster, Hal. Contemporary art and spectacle, em: Recodings. op. cit. p. 83 [TM] Foster, Hal. (Post)modern polemics, em: Recodings. op. cit. p. 132 [TM]
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Em outro momento Foster indica de maneira ainda mais específica como se deu esse processo de colapso simbólico na segunda metade do século XX, principalmente com alguns retornos teóricos e artísticos na década de 1960. No começo da década de 1950 Jacques Lacan desenvolveria sua teoria psicanalítica a partir de Freud, enquanto que no começo da década seguinte Louis Althusser desdobraria o marxismo sob um ponto de vista eminentemente estruturalista. Da mesma maneira artistas do período se utilizavam de referências vanguardistas as mais variadas para desenvolverem suas linguagens próprias. O que Foster ressalta, no entanto, é que nenhuma dessas atitudes visavam chegar à uma ‘verdade final’, mas ao contrário, buscavam “esclarecer sua contingência estratégica, para se reconectar com uma prática perdida com o objetivo de desconectar-se de um modo de trabalho do presente que parecia estar ultrapassado, mal orientado ou por outro lado opressor”.177 O autor aponta ainda que o modo como se deu essa recuperação foi reflexivo, ao contrário do ‘pastiche histérico’ promovido pelos artistas da década de 1980. De qualquer forma, o que aparece na produção mais interessante do período é a oposição a uma cultura cada vez mais afirmativa e unificada por meio do espetáculo e das coletividades artificiais impostas pela sociedade de consumo. E a rejeição do modernismo, ou do alto modernismo como indica Jameson é uma rejeição à forma que foi institucionalizada tanto pelos organismos culturais, que se tornaram cada mais onipotentes no campo cultural, quanto pelo mercado. Da mesma maneira, Foster afirma que “uma reconexão da arte com a vida aconteceu, mas sob os termos da indústria cultural e não da vanguarda, das quais os métodos há muito tempo já haviam sido incorporados às operações da cultura espetacular”.178 Antes de analisarmos algumas práticas artísticas é bom ressaltar duas características fundamentais desse retorno das vanguardas que posteriormente levaria à própria rejeição de suas práticas. A primeira é a redução da importância do objeto artístico, cujo desaparecimento completo chega a ocorrer em práticas como a de artistas conceituais. Isso também se relaciona com a crítica ao papel das instituições artísticas na chancela do objeto enquanto artístico, levando novamente à entrada das mais variadas formas artísticas nos espaços institucionais desde o lixo da cidade até o cocô do artista. A segunda característica de muitas das práticas surgidas no período é em relação à posição do corpo na obra de arte, tanto o corpo do artista quanto o do público. Isso também faz parte da supressão do objeto artístico, mas carrega os resíduos dos movimentos libertários das décadas de 1950 e 1960 e das políticas afirmativas para as minorias que haviam sido prontamente codificadas e cooptadas pelo sistema como vimos anteriormente. O sujeito fragmentário que aparece então clama pelo reconhecimento de suas características enquanto homossexual, mulher, negro, índio.
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Foster, Hal. The return of the real. Cambridge: MIT Press, 1996. p. 3 [TM] [grifo do autor] ibidem. p. 21
momentos das neovanguardas expressionismo abstrato, minimalismo e suas reações Após o eixo político-econômico do mundo ocidental ter se deslocado em direção aos EUA depois da Segunda Guerra Mundial, esse país buscava assumir um papel relevante também na cultura da época, já que as vanguardas chegaram lá de fato apenas por meio de emigrações e nunca teve o impacto no cenário cultural que teve na Europa. Dessa forma, o expressionismo abstrato apareceu como uma luva na estratégia do país de difundir seus valores econômicos – e de maneira mais sutil e conquistadora ainda – por meio da produção cultural. O trabalho principalmente de Jackson Pollock permitia ser divulgado como fruto de um gênio indomável recodificado como livre no imaginário para exportação. Da mesma maneira o crítico de arte Clement Greenberg foi um dos que mais valorizou a produção de Pollock e algumas de suas análises vão diretamente ao encontro de processos de cooptação e valorização artificial vistos até agora. O crítico desenvolvera uma análise do modernismo como uma busca pela elementaridade e encontrava em Pollock o artista que aboliu de vez qualquer ponto focal para o qual o olhar deveria se dirigir, pois em suas pinturas “as tramas, constituídas por linhas puras, a própria substância do desenho, conseguiam minar o objetivo do desenho de conter um objeto pela descrição de seu contorno”.179 A maneira de pintar de Pollock também abriu margem a novas práticas artísticas Autumn Rhythm (Number 30) (1950) de Jackson Pollock
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Krauss, Rosalind. 1949a, em: Art since 1900 – modernism, antimodernism, postmodernism. op. cit. p. 389 [TM]
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e a diversas divagações teóricas, permitindo que a visão se separasse do corpo, rompendo ainda mais com a compreensão tradicional da teoria da gestalt, que afirma que o eixo vertical é que dirige nossa leitura. Outros artistas expressionistas abstratos não chegariam a tal ruptura pois seguiram trabalhando com pincel e cavalete, sem buscar a horizontalidade da tela na hora de pintar. A ação – codificada como action painting pela historiografia – também entrava em cena por meio da pintura agora, reforçando o papel do acaso na composição e retirando também a ideia de uma composição dirigida pela mente de um gênio – a genialidade de Pollock estava justamente em sua ação, influenciando práticas as mais variadas a partir de então. O artista Robert Morris se apropriaria da arte de Pollock valorizando-a por “ter conseguido reter seu processo como parte da forma final de seu trabalho”.180 Da mesma maneira, a tela se comporta como um fragmento de uma totalidade muito maior e inapreensível, se aproximando assim das ideias neoplasticistas de Mondrian e van Doesburg, mesmo que de modo muito diverso. A reação ao expressionismo abstrato veio rápido e já em 1953 Robert Rauschenberg exporia seu Desenho de de Kooning apagado, literalmente uma folha de papel em branco com as marcas do lápis – do artista que desenhou nela – e da borracha – do também artista que apagou o desenho. Como um ‘readymade monocromático’ Rauschenberg estabelece um pensamento que o ligaria ao músico John Cage, que dava aulas na mesma faculdade onde ele estudou. Cage havia absorvido o legado de Duchamp pelo convívio com o próprio artista francês em Nova Iorque e o uniu com seu interesse pessoal no budismo como forma de reflexão e contraponto à vida moderna. Baseando seu trabalho na chance e na aleatoriedade que, segundo ele, comandam o universo, Cage faria da música um “entrelaçamento aleatório de silêncio e música ambiente”181, como é o caso de sua famosa peça 4’33” (1951) na qual o pianista fica diante do instrumento virando as folhas da partitura sem nunca emitir nenhum som que seja propriamente musical. Cage buscava ainda uma “desmilitarização da linguagem”182 à maneira das experiências modernistas analisadas anteriormente. Desse encontro entre Cage e Rauschenberg foi realizado o Marca de pneu de automóvel (1953) que expressa o pensamento dos dois artistas em relação às práticas dominantes nos EUA. A marca indexical introduzida por Duchamp em seu Grande vidro agora faziam parte das não-composições de Rauschenberg que, dessa forma, ampliava as experiências dadaístas. Suas Pinturas brancas (1951) também fazem parte de seu contato com Cage e se colocam como espaços puramente planares e ao mesmo tempo como receptores das sombras e expectativas do observador e do ambiente expositivo. Posteriormente ele ampliaria seu diálogo como o expressionismo abstrato por meio de composições de diferentes telas pintadas à maneira do grupo, mas que reconfiguram sua temática
180 181 182
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Foster, Hal. 1969, em: Art since 1900 – modernism, antimodernism, postmodernism. op. cit. p. 579 [TM] Krauss, Rosalind em: 1953, em: Art since 1900 – modernism, antimodernism, postmodernism. op. cit. p. 406 [TM] Cage, John: O futuro da música, em: Escritos de artistas – anos 60/70; Ferreira, Glória e Cotrim, Cecilia [orgs.]. São Paulo: Jorge Zahar, 2006. p. 341
acima Marca de pneu de automóvel (1953) de Cage e Rauschenberg à esquerda Desenho de de Kooning apagado (1953) de Rauschenberg
pela composição que realizava entre as diferentes pinturas. Isso o levaria ainda a colagens com objetos encontrados que são retirados da circulação de mercadorias. Já não há especificidade do meio na obra de Rauschenberg, o meio é a própria sociedade ou o próprio espaço no qual se insere seu trabalho. Outra reação ao expressionismo abstrato se deu por meio da reapropriação das vanguardas construtivas nos EUA, cujos postulados haviam sido negligenciados pela crítica do país. O movimento chegou lá por meio de figuras como os irmãos Naum Gabo e Antoine Pevsner, que tinham uma visão muito mais idealizada em termos de arte pela arte e não produtivista como os russos vistos anteriormente. Coube a artistas como Donald Judd, Carl Andre e Dan Flavin recuperarem a essência do legado construtivista russo para reverter a imagem do movimento nos EUA e estabelecerem sua própria prática artística em oposição à subjetividade e expressividade do expressionismo abstrato, bem como também romper com a ideia de especificidade do meio propalada por Greenberg. Suas obras literalmente transitavam entre a pintura e a escultura, isso quando não se tornavam instalações ou site specific e ainda introduziam em seu repertório o readymade, pois extraíam seus materiais da indústria ou atuavam conformes a ela. À maneira de Tatlin, Flavin teve como ponto de partida a pintura de ícones russos que viu no Metropolitan Museum e uma das suas obras mais famosas é justamente o Monumento para V. Tatlin (1964) no qual emula a forma do Monumento à 3ª Internacional com lâmpadas fluorescentes – algo que por si só deixa claro o jogo entre o construtivismo e os readymades. A luz fluorescente já havia entrado em seu trabalho alguns anos antes e expressa “dois imperativos contraditórios da arte modernista: por um lado o imperativo de materializar a obra de arte, aqui para declarar a luz como luz e expor seu suporte físico (a fixação fluorescente); por outro lado, o imperativo de desmaterializar a obra de arte, aqui para
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acima Equivalent VIII (1966) de Carl Andre à esquerda acima Sem título (1965) de Donald Judd à esquerda abaixo Monumento I (para V. Tatlin) (1964) de Dan Flavin
irradiá-la como luz, para lavar o espaço com cor”.183 Ao fazêlo, o artista revela também os limites institucionais para obras que interferem no ambiente ‘sagrado’ da galeria, já que as luzes perturbam a leitura das obras que convivem com a sua. Da mesma maneira, Carl Andre se apropriaria de tijolos, blocos de madeira ou placas de metal que combinava para produzir um espaço novo que também se refere aos condicionantes físicos e sociais que expõem – os materiais, a indústria, o consumo e o próprio espaço expositivo. A atualização do construtivismo, aliado à apropriação de elementos dadaístas acabaria levando a um beco sem saída da sociedade de consumo, já que não é mais possível mobilizar o público para um produtivismo desalienado, senão fazer com que ele se dê conta de tal alienação e tente escapar dela nem que atuando de maneira consciente frente à coisificação geral. Sem buscar transcendência e colocando-se como objetos puros, as obras minimalistas acentuam esse impasse e ao mesmo tempo retiram-se da promessa de iluminação de maneira geral, por mais que Flavin crie atmosferas sublimes e encantadoras. 183
80
Foster, Hal. 1962c, em: Art since 1900 – modernism, antimodernism, postmodernism. op. cit.. p. 511 [TM]
Mas em sua maioria, os objetos minimalistas são frios e insípidos. Algo que se modifica na prática minimalista e se coloca como um de seus maiores avanços é a relação que o público estabelece com o objeto artístico, pois se é como uma pintura desdobrada no espaço, então o observador deve caminhar em volta dela para apreendê-la, inserindo assim a duração temporal na obra de arte e também rompendo com a percepção clássica de um objeto unitário e apreensível por meio das relações da perspectiva. O uso dos produtos industrializados permitiam também a retirada do artista da obra de arte, fato que, aliado à ideia de não-composição, aproximavam mais ainda as obras do público, sendo que ela já compartilhava o espaço expositivo com ele pois não tinha nem pedestal nem moldura. Donald Judd foi um dos mais notórios artistas desse movimento talvez pelo fato de ter conseguido em sua obra reunir grande parte dos interesses do grupo e por ter sistematizado essa ‘teoria’ em seus escritos. Já a reação ao minimalismo foi mais rápida ainda, para não dizer simultânea a seu aparecimento, pois no ano de 1966, quando ocorreu a primeira exposição minimalista no Museu Judeu de Nova Iorque foi organizada a ‘Abstração excêntrica’ na mesma cidade que seria “‘uma alternativa emotiva ou erótica’ ao minimalismo”184 segundo a curadora da exposição Lucy Lippard. Artistas como Louise Bourgeois, Eva Hesse e Bruce Nauman estavam entre os escolhidos para a exposição e fazem parte de um grupo bastante diverso com práticas artísticas bastante heterogêneas que passou a ser chamado de pós-minimalista e que abarca movimentos tais como a performance, a body art e a arte povera. O que os liga é a rejeição das ideias minimalistas consideradas reducionistas e que transformariam a arte em um objeto cotidiano. O minimalismo e o expressionismo abstrato, no entanto, haviam colocado o corpo do observador e do artista em novos papéis e isso seria desdobrado por diversos desses artistas, cada qual à sua maneira. E o minimalismo, ao “levar à uma nova preocupação com a percepção [...] leva à uma nova preocupação com o sujeito”, mas o faz desde o ponto de vista fenomenológico, que é “de algum modo antes ou fora da linguagem, sexualidade e poder”, temas emergentes na época como já vimos. “Em outras palavras, ele não toma o sujeito como um corpo sexuado [sexed] posicionado em uma ordem simbólica, muito menos vê a galeria ou o museu como um aparato ideológico”.185 Ou seja, todas as minorias que buscavam reconhecimento naquela época ficam excluídas da obra quando ela se dirige ao que seria o público padrão de um museu – um estadunidense branco e de classe média. Dessa forma Louise Bourgeois, por exemplo, acentua sua diferença formal em relação ao minimalismo em A destruição do pai (1974), uma ‘gruta’ com formas orgânicas que perturbam e ao mesmo tempo encantam o observador e introduzem profundas questões psicanalíticas e ainda autobiográficas. Se os minimalistas tratavam o público como um sujeito abstrato e o autor como uma figura morta, Bourgeois se dirige ao inconsciente do observador e ainda o preenche com dados pessoais, de seu
184 185
Foster, Hal. 1969, em: Art since 1900 – modernism, antimodernism, postmodernism. op. cit. p. 578 [TM] Foster, Hal. The return of the real. op. cit. p. 43
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próprio inconsciente em última instância, já que as formas são pura angústia e trauma reprimido caso eles pudessem ter forma. Apesar do inconsciente ao qual a obra se dirige também ser abstrato como o corpo fenomenológico do minimalismo, a teoria psicanalítica pode justificar, por meio do inconsciente coletivo jungiano por exemplo, mas pela própria formação do sujeito descrita por Freud e desenvolvida por Lacan, que afirma que todos passamos pelos mesmos traumas e faltas.
A destruição do pai (1974) de Louise Bourgeois
o corpo e o vazio De qualquer maneira o período trouxe importantes desdobramentos ‘pós-minimalistas’ e o corpo ganhou papel central em muitas práticas artísticas. A performance foi outra prática que se institui na época como resposta à crise artística da década de 1960, suprimindo tanto o objeto artístico quanto colocando o corpo – real – no centro da obra de arte. As práticas performáticas também são muito variadas, indo desde a construção de uma figura mítica como a de Joseph Beuys, que dialoga de maneira bastante ampla com a produção modernista, até Marina Abramovic que inflige dor e agonia ao corpo visível no palco ou ainda se relaciona com limites físicos e objetos industriais. Veremos adiante como Chris Burden também se relaciona com o pós-minimalismo e estabelece seu próprio repertório performático buscando enriquecer sua própria experiência pessoal, mas dividindo-a com o público de diferentes maneiras. As práticas meditativas aparecem como de fundamental importância para esses artistas de um modo geral, como por exemplo já indicado na prática de John Cage. O próprio Cage participou do grupo Fluxus formado nos anos de 1960 por artistas de diferentes nacionalidades reunidos em torno do lituano George Maciunas e que buscava dissolver a arte na vida de maneira radical. Unindo as práticas das vanguardas construtivistas e dadaístas, o grupo buscou um reposicionamento completo do objeto artístico já que para eles a forma-mercadoria dominante só poderia ser combatida de maneira similar. Mas o próprio fracasso anunciado que representa essa tomada de posição e ainda a impossibilidade de alcançar as propostas sociais das vanguardas “podem ter gerado a singular e paradoxal mistura de melancolia e cômico-grotesco que veio a caracterizar o Fluxus”.186 O grupo ficou marcado pelos eventos que promoveu nos quais uma cacofonia de estilos desfilava, perturbando qualquer possibilidade de apreensão por parte do público, reportando186
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Buchloh, Benjamin. 1962a, em: Art since 1900 – modernism, antimodernism, postmodernism. op. cit. p. 494 [TM]
se a uma coletividade inalcançável e também extremamente abstrata, cujas reações deveriam ser opostas às massas consumistas. Eles reagem de maneira radical ao empobrecimento da experiência na modernidade buscando a ‘iluminação profana’ na subjetividade do observador, daí a supressão do objeto e a antecipação de elementos que caracterizariam a arte conceitual. Faça uma salada (1962) propunha Alison Knowles; ‘simplesmente’ isso: faça uma salada no espaço expositivo. O autor torna-se o observador e a obra converte-se no processo de realização das instruções, da mesma maneira que uma deriva situacionista – outro grupo artístico da época – está relacionada ao percurso e à experiência do público e não necessariamente a um produto final. Um ‘anti-machismo’ também transparece nessa construção coletiva que foi o Fluxus, como na famosa Pintura de vagina (1965) de Shigeko Kubota, na qual ela pintou uma tela com um pincel preso em sua vagina. Todo o falocentrismo e machismo que decorreu das interpretações da obra de Pollock é jogado por água abaixo com esse gesto da artista, trazendo novamente a questão das identidades e subjetividades para a obra de arte. Outro artista do grupo que teve profundo impacto em práticas artísticas posteriores foi o sulcoreano Nam June Paik, que realizou profundas desconstruções das tecnologias mediadoras da realidade, como a televisão, e da música enquanto domínio sensorial estanque. Seu Concerto para TV, Cello e videotapes (1971) é um bom exemplo de uma arte instrucional, já que é realizada por uma terceira pessoa, que tem o corpo como um dos enfoques, por mais que aproxime demais esse corpo do ‘corpo tecnológico’, e aponta também para a arbitrariedade da transmissão televisiva, já que a musicista vai modificando a imagem à medida em que executa a obra. Outro movimento notório do período foi o Novo Realismo, organizado na França em 1960 pelo crítico Pierre Restany, que reuniu artistas com ideias semelhantes, mas que nunca chegou a constituir-se como um grupo propriamente. Todos eles, porém, também buscaram reposicionar o objeto artístico frente à reificação generalizada imposta pela sociedade de consumo. Assim, um dos primeiros eventos marcantes foi a exposição O vazio de Yves Klein realizada em 1957 e 58 na qual a galeria estava completamente vazia, colocando o público em contato direto com o espaço encerrado, que em última instância pode ser considerado como a obra em si. Seu Salto para o vazio (1960) é outra contribuição de Klein para uma atitude irônica que confunde a leitura do observador, já que coloca como real, por meio de uma fotomontagem, uma ação impraticável. Suas pinturas monocromáticas também aparecem como fruto do impasse representacional, esvaziado ainda mais pelo artista, que chega à ficção de declarar que a pintura monocromática foi invenção sua. Da mesma maneira, Jean Tinguely é outro artista ligado ao grupo que coloca questões quase niilistas à sociedade de consumo com suas máquinas autodestrutivas. Homenagem à Nova Iorque (1960) é uma das primeiras dessas máquinas suas que foram construídas com o único objetivo de se tornarem ferro-velho durante seu uso e produzirem um grande espetáculo cacofônico durante o processo – seu valor de uso é achatado a níveis anteriores à própria consciência humana.
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no sentido horĂĄrio a partir do canto superior esquerdo Concerto para TV, Cello e videotapes (1971) de Nam June Paik; Salto para o vazio (1960) de Yves Klein; Homenagem Ă Nova Iorque (1960) de Jean Tinguely; Pintura de vagina (1965) de Shigeko Kubota
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pop! Um dos movimentos que radicalizou da maneira mais irreparável possível o mundo artístico e sua relação com a sociedade de consumo foi sem dúvida a arte pop. Com uma nebulosa origem em um grupo de estudos culturais formado em Londres na década de 1950 em torno do Instituto de Arte Contemporânea, sua estética seria replicada e aprofunda nos EUA na década seguinte. O Grupo independente britânico realizou diversas exposições de objetos os mais variados, desde reproduções de obras famosas até pôsteres e propagandas da época, passando por ambientes surrealistas e obras de artistas do grupo propriamente, tomando toda a produção humana como válida de ser mobilizada com fins culturais, instalando um ‘continuum da história’ humana por meio de sua produção material e também rompendo de vez a barreira entre as chamadas alta e baixa esferas da cultura. A enorme quantidade de imagens agrupadas na exposição é apresentada como em um programa televisivo, ou seja, por meio da recepção distraída do entretenimento. Mas foram Andy Warhol e Roy Lichtenstein que nos EUA melhor traduziriam o espírito da época consumista sob diferentes formas e aspectos. Estabelecendo-se inicialmente também como um contraponto ao expressionismo abstrato, os dois artistas transpuseram para a tela fragmentos de histórias em quadrinho confirmando a máxima greenberguiana da planaridade do meio, mas ironizando radicalmente sua pureza e a economia de meios modernistas. A ‘baixa cultura’ entrava de maneira radical nas instituições artísticas e nunca mais sairia de lá. Lichtenstein não transpunha diretamente o desenho para a tela, mas sim o reposicionava para ajustá-lo ao plano da tela e seu pontilhismo extraído
Blam (1962) de Roy Lichtenstein
das impressões off-set fazem com que seus quadros tornem-se ‘readymades artesanais’. Ao mesmo tempo, ele se coloca como uma totalidade apreensível de uma só vez como um quadro de Pollock, realizando assim “um tipo de curto-circuito visual: ele oferece tanto o efeito de imediaticidade de uma pintura modernista quanto o olhar mediado de uma imagem impressa”.187 Está implícita também a possibilidade de que tudo pode ser codificado nos termos da indústria cultural e da reprodução técnica de imagens. 187
Foster, Hal. 1960c, em: Art since 1900 – modernism, antimodernism, postmodernism. op. cit. p. 486 [TM]
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acima imagem da série 13 homens mais procurados (1964) à direita imagem da série Morte na América, Acidente de ambulância (1963-64) ambos de Andy Warhol
Warhol também tem seus ‘readymades artesanais’, além das pinturas de histórias em quadrinhos que realizou no começo de sua carreira artística. Suas Caixa Brillo (1964) são réplicas exatas realizadas manualmente – na verdade impressas por meio de serigrafia – pelo artista de caixas de sabão em pó disponíveis em qualquer supermercado da época. Mas a arte de Warhol era mais polivalente e alcançaria âmbitos muito maiores da sociedade como um todo, já que o próprio artista alcançou uma notoriedade que quase nenhum outro jamais teve, muito menos em vida. A repetição obsessiva de temas e imagens é uma constante em seu trabalho, como na série Morte na América da década de 1960 que traz diferentes imagens jornalísticas que não puderam ser publicadas por serem chocantes demais. Da mesma maneira as celebridades são outro de seus temas favoritos, mas sempre retratadas em momentos fúnebres ou mesmo póstumos, como no caso de Marilyn Monroe. As implicações de sua obra, no entanto, são difíceis de serem abarcadas, algo que é ainda mais dificultado pela própria figura do artista, um ‘simulacro de si próprio’ que frequentemente enviava sósias em seu lugar para aparições públicas. De qualquer forma, seja como uma imagem esvaziada de significado e reificadora, ou como um confronto à sociedade de consumo, sua produção é uma das que mais se dirige ao ‘estado de graça’ do consumidor contemporâneo. Sua repetição também pode ser vista como uma maneira de absorver o choque traumático da contemporaneidade, sob
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um ponto de vista psicanalítico, mas ao mesmo tempo revela o mecanismo repetitivo ao qual estamos sujeitos no capitalismo tardio. Sua apropriação de diferentes meios e o frequente trânsito entre eles também é notória, tendo ido das pinturas propriamente à instalações, vídeos e fotografias, sempre retratando modelos sociais padronizados, ecoando seu desejo de que ‘todos fossem iguais’, máquinas saídas de uma linha de produção. A ironia atravessa toda imagem da série Pequena cadeira elétrica (1964-65)
sua produção e seu discurso, embaralhando
de Andy Warhol
ainda mais as possibilidades de compreensão de seu trabalho. “Se você quiser saber tudo sobre
Andy Warhol, olhe na a superfície de minhas pinturas e filmes e de mim, e aí estou. Não há nada por trás”, diria o artista. Podemos então, por um momento pensar que sua exposição dos Treze homens mais procurados (1964) poderia ser uma crítica à pena de morte ou ao próprio crime e suas implicações sociais. Ou então que poderia ter à ver com a ambiguidade do título em inglês: os treze homens mais desejados – por Warhol? Por toda a sociedade que tem na representação dos criminosos um misto de inveja e ódio? De qualquer forma o sujeito que emerge de Warhol é um sujeito sem individualidade, fruto da padronização imposta pela forma-mercadoria e seu consumo. Ao mesmo tempo, Warhol representa – e se dirige – as massas por meio de seu ídolos ou então de seus objetos de desejo como a infinidade de latas de sopa Campbell’s. “O desastre e a morte eram necessários para invocar esse sujeito, pois na sociedade do espetáculo o sujeito das massas frequentemente aparece como um efeito da mídia (o jornal, o rádio), ou de uma falha tecnológica catastrófica (um acidente de avião) ou, mais precisamente, de ambos (a notícia de tal falha catastrófica)”.188 E os quinze minutos de fama a que todos nós teríamos direito de acordo com o artista permitem que lidemos com nossa condição de anonimato permanente de maneira mais relaxada. Warhol ainda transformou o artista em um empresário, seu estúdio tornou-se um ponto de encontro da contracultura novaiorquina, mas ao mesmo tempo organizou-se como uma verdadeira fábrica, em inglês The factory, e seu legado nos persegue até hoje.
188
Foster, Hal. 1964b, em: Art since 1900 – modernism, antimodernism, postmodernism. op. cit. p. 535 [TM]
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Gordon Matta-Clark Gordon Matta-Clark é outro artista que deve ser mencionado aqui e que não se enquadra em nenhum movimento artístico propriamente. Em sua curta carreira ele estabeleceu uma relação com a arquitetura que jamais seria alcançada novamente e deixou frutos que até hoje aparecem em muitas práticas contemporâneas. Por meio de ‘sutis violações’189 o artista rompe com toda noção pré-estabelecida que temos dos espaços construídos e da arquitetura em si, como em Splitting (1974), na qual cortou ao meio uma casa que seria demolida em um subúrbio novaiorquino. Da mesma maneira, ele expõe como irracionais os processos de construção da cidade capitalista em seus Fake Estates (1973-74), fragmentos de loteamentos realizados pelo mercado imobiliário e impossíveis de serem vendidos que o artista comprou. A arquitetura – e a cidade – são tomados como readymades e são objetos fadados à efemeridade e à destruição, já que as casas nas quais o artista interveio estavam
condenadas
à
demolição ou à margem do sistema econômico o que acentua mais ainda as contradições que seu trabalho
busca
iluminar.
Sua parede de lixo também é uma das mais importantes contribuições para práticas engajadas
socialmente
e
reflexivas sobre a condição do
espaço
da
cidade
contemporânea e dos usos e controles dela por parte dos agentes envolvidos. Dessa acima Splitting (1974) à direita Splitting: Four corners (1974) de Gordon Matta-Clark 189
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ver: Walker, Stephen. Gordon Matta-Clark – art, architecture and the attack on modernism. Londres: I. B. Tauris, 2009.
forma ele constantemente convoca o público a refletir sobre o espaço que o circunda de modo a rearticular sua compreensão de como se deram os processos que nos trouxeram até aqui. Seu restaurante Food no Soho novaiorquino também foi uma demonstração da prática artística enquanto fundação de comunidade, algo que ressurgiria nos últimos anos das mais transviadas maneiras, mas que na época abalava a compreensão tradicional de arte e objeto artístico. neovanguardas construtivas brasileiras Outra recuperação das vanguardas que modificou a compreensão tradicional do objeto artístico se deu no Brasil por meio da apropriação da tradição construtiva mediada principalmente pelo escultor suíço Max Bill, que visitou diversas vezes o país na década de 1950. Em um típico movimento antropofágico que caracteriza a cultura brasileira, esse legado foi absorvido e reconfigurado por diversos artistas que se relacionaram com essa prática artística. Max Bill havia desenvolvido sua própria noção da escultura construtivista que chamou de concretismo, e foi esse o nome que ganhou no Brasil, onde se desenvolveu em diferentes direções e marcou a produção de toda uma geração de artistas. Em um país onde tudo estava por construir – e estávamos portanto ‘fadados a ser modernos’ como diria Mário Pedrosa – e em meio à uma euforia desenvolvimentista que culminaria na construção de Brasília, as ideias construtivistas encontraram solo fértil. No princípio essas ideias foram exaustivamente trabalhadas e retrabalhadas em diversos meios e a partir de diferentes pontos de vista. Na literatura a poesia concreta e a semiologia dela derivada viram desdobramentos à altura, senão superiores, aos que ocorriam na Europa na mesma época, pelo trabalho poético e teórico-crítico dos irmãos Augusto e Haroldo de Campos, Décio Pignatari, Torquato Neto e Ferreira Gullar por exemplo. Da mesma maneira, à direita Torre (1957) de Franz Weissmann abaixo Sem título (s.d.) da série Corte e dobra de Amilcar de Castro
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na escultura antecipou o minimalismo por meio de Franz Weissmann com sua Torre (1957) e Amilcar de Castro, com seu aço corten dobrado e recortado. A pintura, no entanto, foi o meio no qual o concretismo mais avançou no país e pelo qual se deram os embates teóricos entre as diferentes ideias que acabariam por dissociar de vez paulistas e cariocas grosso modo. Em São Paulo formou-se o grupo Ruptura em 1952 que contou com a participação de artistas como Waldemar Cordeiro – seu líder teórico –, Luiz Sacilotto, Geraldo de Barros, Lothar Charoux, Maurício Nogueira Lima entre outros. No Rio de Janeiro dois anos mais tarde surgiu o grupo Frente em torno do artista Ivan Serpa que reuniu, entre outros, Ferreira Gullar, que tornou-se o principal teórico do grupo, Aluísio Carvão, Lygia Pape, Lygia Clark, Franz Weissmann e Hélio Oiticica, a quem mais tarde se uniriam Amilcar de Castro e os paulistas Hércules Barsotti e Willys de Castro. Nos primeiros anos de existência desses grupos seus trabalhos foram no campo da construção geométrica propriamente explorando de diversas maneiras a abstração geométrica e a modulação do espaço da tela. Os paulistanos chegaram a abandonar o pincel, a tela e a tinta à óleo e pintavam com pistola sobre Eucatex, “evitando portanto, não apenas o material da reminiscência artesanal, como a sua manipulação, por um processo mais diretamente relacionado com a indústria”.190 Basta olhar Desenvolvimento óptico da espiral de Arquimedes (1952) de Cordeiro, ou Função Diagonal (1952) de Geraldo de Barros para ver o cientificismo que está por trás das ideias ali formalizadas. Já no Rio de Janeiro havia uma liberdade maior em relação ao desenvolvimento das trajetórias artísticas pessoais, justificada de diferentes maneiras. A primeira delas é em relação ao dogmatismo de Cordeiro e ao cientificismo excessivo que subordinou a arte à ciência segundo Ferreira Gullar, noção que acabou influenciando também os artistas cariocas. A outra, trazida por Aracy Amaral, seria a condição social da maioria dos artistas de cada cidade à esquerda Função diagonal (1952) de Geraldo de Barros ao centro Desenvolvimento óptico da espiral de Arquimedes (1952) de Waldemar Cordeiro à direita Metaesquemas (1958) de Hélio Oiticica
190
90
Amaral, Aracy. Duas linhas de contribuição: concretos em São Paulo/neoconcretos no Rio, em: Crítica de arte no Brasil: temáticas contemporâneas; Glória Ferreira [org.]. Rio de Janeiro: Funarte, 2006. p. 84
já que em São Paulo a maioria dos artistas trabalhavam em outras áreas – a maioria delas ligadas à produção gráfica, publicidade e arquitetura – para se sustentarem. No Rio de Janeiro, por outro lado, os artistas não foram absorvidos “pelas solicitações profissionais” e puderam manter “uma autonomia individual respeitada, do trabalho isolado, pura investigação desvinculada do utilitarismo que caracterizava as pesquisas do grupo de São Paulo”.191 Os Metaesquemas de Oiticica da década de 1950 evidenciam como de fato há um grau de liberdade maior em sua geometria. De qualquer forma, já em 1956 ficou evidente a dissonância entre os dois grupos, quando realizaram a 1ª Exposição Nacional de Arte Concreta e Ferreira Gullar fez duras críticas ao grupo paulista. Algo que surge dessa divergência é o fato de que os cariocas não eram concretos em sentido estrito – pressupondo que tal exercício de concreção racional de uma ideia deve ser guiada por princípios claros desde o princípio – mas é essa liberdade que os permite dar o grande salto construtivo na década seguinte. Em 1959 é lançado o Manifesto Neoconcreto assinado por Gullar, Oiticica, Clark, Pape, Weissmann, Reynaldo Jardim e Theon Spanudius que se colocam contra o dogmatismo cientificista que teria dominado a produção artística e impedido seu desenvolvimento, já que isso pressupunha um conceito a priori e não uma experimentação criativa por parte do artista. Da mesma forma eles advogavam por uma espacialização da obra e de sua aproximação com o observador, algo que seria perseguido obstinadamente pelos artistas do grupo. Gullar coloca que “o caminho a seguir era levar adiante a crítica da linguagem visual: resolver a contradição figura-fundo pela desintegração e eliminação da figura, da forma-objeto e reencontrar, noutro plano, o vazio malevitchiano”.192 Depois de dissolverem a moldura no espaço da pintura de modo geral, os Relevos espaciais (1959) e os Casulos (1959) foram as respostas dadas inicialmente à dissolução da pintura no espaço por Oiticica e Clark, respectivamente. Lygia Clark daí chegou aos Bichos (1960-64) que já convocam à esquerda Relevo espacial (1959) de Oiticica à direita Bicho (1960) de Lygia Clark
191 192
ibidem. p. 85 Gullar, Ferreira. Arte neoconcreta uma contribuição brasileira, em: Crítica de arte no Brasil: temáticas contemporâneas. op. cit. p. 58
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acima público usando Máscaras sensoriais (1960) de Lygia Clark à direita Caetano Veloso vestindo Parangolé de Hélio Oiticica em 1968
a manipulação por parte do público propriamente – até então, em Oiticica principalmente, tratavase da dissolução da cor no espaço e do movimento do observador enquanto tempo ou percepção à maneira dos objetos minimalistas. Oiticica também aprofunda essas experiências sob a perspectiva indicada acima até chegar nos Parangolés (1964-) que são a dissolução completa da obra de arte em favor da experiência quase catártica do público – tornado agora participador. Os Penetráveis foram o ponto culminante desse processo de dissolução da cor no espaço que passa agora a ser também um espaço “supra-sensorial” para que o público “crie suas próprias vivências”, elaborando “dentro de si mesmo suas próprias sensações”.193 Ao mesmo tempo em que buscava sensações íntimas e pessoais, elas seriam produto de uma criação coletiva, algo que fica mais claro ainda nos Parangolés, desenvolvido com os passistas da escola de samba da Mangueira e propostos como experiência coletiva e não individual. Lygia Clark também chegaria a experiências semelhantes a partir de seu Caminhando (1964) na qual o público recorta uma fita de Moebius seguindo instruções da artista – o produto é o ato de recortar, o papel deve ser jogado fora depois de concluída a fita. Lygia seguiria um rumo de descobrimentos mais íntimos e pessoais para o público, com suas máscaras e objetos transferenciais que fazem parte de seu envolvimento também com a teoria psicanalítica. Lygia Pape por sua vez também realizaria ações que podem ser consideradas como a intersecção de ambas as
193
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Oiticica, Hélio. Sobre Éden, em: Hélio Oiticica Penetráveis (catálogo de exposição). Rio de Janeiro: Centro de Arte Hélio Oiticica, 2008. p. 42
noções de experiência, já que muitas são coletivas como Divisor (1968) mas se situam em um nível mais ‘infra-sensorial’ como as de Clark. Seu Ovo (1968) é uma experiência individual, mas aproximase bastante dos Bólides de Oiticica, por exemplo. Esses artistas avançaram as práticas construtivas para limites que nem os próprios artistas do começo do século poderiam ter vislumbrado, já que envolveram no processo elementos marcantes da cultura brasileira como as favelas e o samba, no caso de Oiticica principalmente. Da mesma forma, chegaram à uma compreensão da arte como processo e envolvimento na qual o objeto artístico torna-se mero meio entre o artista e a experiência que ele busca propiciar ao público – que tem um corpo e uma posição social.
acima Ovo (1968) e abaixo à esquerda Divisor (1968) de Lygia Pape à direita visões da instalação Tropicália (1967) e Éden (1967), reunião de Penetráveis de Hélio Oiticica
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conclusão: anos hipertecnológicos Temos aqui então uma breve história de movimentos artísticos e intelectuais relacionados às tranformações sociais de maneira geral e cujo eco ressoa até hoje nas práticas artísticas. Podemos perceber então o porquê da arte contemporânea ser tratada como um grande ‘vale tudo’ de formas e expressões, já que o que foi apresentado aqui – e os muitos outros movimentos que ficaram de fora – demonstram uma pluralidade no entendimento do que é arte que permite as mais variadas formas de atuação dentro desse campo. Um momento importante a ser destacado dessas últimas anos se deu na década de 1980, quando a estética pós-moderna do pastiche histérico apontada por Foster se estabeleceu na atuação de diversos artistas que se contrapunham ao alto modernismo por meio da conivência e subordinação total aos imperativos do mercado. A isso se associa também um ‘inesperado’ retorno da pintura – a forma mais tradicional das artes plásticas – em todo o mundo e com diferentes abordagens de tal prática. O pastiche histérico teve nela um de seus principais meios, mas também a pintura hiperrealista foi outra resposta dada por diversos artistas por vezes como modo de enfrentar a reificação – em busca do ‘novo realismo’ sugerido por Jameson. No Brasil uma geração inteira que agora atinge a maturidade de sua produção ficou marcada como pertencente à geração 80 que tem como principal característica justamente a pintura como principal meio de expressão. Mas de qualquer modo, informada por todo o repertório artístico exposto aqui, a utilização da pintura não poderia vir sem uma reflexão em relação à tal posição e os caminhos tomados por essa prática foram os mais variados, indo das costuras de Leonílson aos Quadros de Nuno Ramos, passando pelas massas de cor de Rodrigo Andrade e pela pintura hiperrealista de Luiz Zerbini. A produção de objetos, as instalações, as práticas conceituais e as performáticas também ganharam impulso e se misturaram à produção desses artistas que podemos dizer que se recusam a ter um meio específico. Outro movimento importante a ser apontado é o do grafite e da pixação, que se tornaram símbolos da vida nas metrópoles contemporâneas. Esse movimento, que seria uma maneira pela qual aqueles que não têm voz nos grandes meios de comunicação teriam para se expressar, foi prontamente codificado pelo circuito artístico e rotulado como street art. Atualmente obras que eram da rua aparecem em museus e até em bienais e são vendidas em galerias especializadas como simulacros de si próprios – tendo se tornado “seu próprio ritual reificado”194, como diria Hal Foster. Um pastiche histérico pós-moderno codificado pelos experts da cultura como traços antropológicos da marginalidade que pode ser exposta – os que não podem continuam no gueto. Outra prática que marcou a década de 1990 e a de 2000 foi a que o curador Nicolas Bourriaud chamou de ‘estética relacional’ e que hoje inclui muitos dos principais artistas do mainstream da 194
Foster, Hal em: Between modernism and the media. op. cit. p. 51
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arte contemporânea. Para Bourriaud, artistas como Maurizio Cattelan, Dominique GonzalezFoerster, Douglas Gordon, Philippe Parreno e Rirkrit Tiravanija, entre outros, propõem em seus trabalhos práticas que envolvem o público e estabelecem formas de interação interpessoal que escapam à lógica da circulação mercantil e apresentam “modelos de universos possíveis”.195 Segundo seu raciocínio esses artistas criam espaços de convívio e diálogo que fogem à ideia das utopias modernistas e nos ensinariam a “habitar melhor o mundo, em vez de tentar construí-lo a partir de uma ideia pré-concebida da evolução histórica”.196 Da mesma maneira eles atuariam como DJs, reprogramando o mundo contemporâneo,197 ao se apropriarem de elementos que já circularam na sociedade e dando a eles novos sentidos ou usos com finalidades diferentes daquelas para as quais foram projetados, como colocado por Bourriaud em outro livro seu. Claro que Duchamp é figura fundamental nesse contexto, mas ele prefere enfatizar o DJ e o produtor musical como as referências principais para o método de trabalho por ele definido pois os contextos criados por esses produtores têm maior importância do que tinham no simples deslocamento de um objeto para um museu à maneira dos readymades. Bourriaud primeiramente desconsidera práticas ‘relacionais’ ligadas às vanguardas e neovanguardas, apenas se utiliza das referências históricas que confirmam sua ‘teoria’. Segundo, suas colocações lembram a ‘falácia do pluralismo’ na sociedade contemporânea indicada por Hal Foster, pois estabelecem espaços de sociabilidade cujo resultado político seria imanente às relações ali estabelecidas. Claire Bishop, no entanto, também nos lembra de que o consenso é outra forma de acabar com a democracia, que pressupõe que os conflitos sejam sustentados e não apagados, algo que está mais próximo da lógica do espetáculo. As práticas relacionais como apresentadas por Bourriaud não pressupõem a exclusão de ninguém e aceitam a participação ‘de todos’ em uma comunidade criada provisoriamente durante a duração da ação ou exposição, assim homogeneizando o público – que na maioria das vezes são os endinheirados que frequentam as vernissages dos grandes museus. Ela se utiliza da produção de Thomas Hirschhorn e Santiago Sierra para contrapor um modelo de práticas ‘relacionais’ que, ao invés de padronizar o consumo artístico sob formas dóceis como ‘comida grátis’, acentuam as diferenças e os antagonismos sociais existentes nas sociedades e nos contextos culturais. As performances e instalações criadas por esses dois artistas “são marcadas por sensações de incômodo e desconforto, ao invés de pertencimento, pois reconhecem a impossibilidade de uma ‘microutopia’ [termo que Bourriaud utiliza amplamente em seus escritos] e, ao contrário, sustentam uma tensão entre observadores, participantes e o contexto”.198 As práticas desses artistas, por abordarem situações sociais delicadas 195 196 197 198
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Bourriaud, Nicolas. Estética Relacional. São Paulo: Martins Fontes, 2009. p. 18 ibidem subtítulo de: Bourriaud, Nicolas. Pós-produção – como a arte reprograma o mundo contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 2009. Bishop, Claire. Antagonism and relational aesthetics, em: October n° 110, outono de 2004. p. 70 [TM] [grifo do autor]
e conflituosas, “ressaltam as divisões reforçadas por esses contextos”,199 produzindo momentos de não-identificação que trazem verdadeiros questionamentos políticos aos envolvidos e não emanações ‘perpétuas’ e abertas que derivam das relações estabelecidas. Isso porque, depois de todas as reviravoltas nas artes plásticas do século XX, algumas das quais estão indicadas no presente trabalho, “não é mais suficiente dizer que a ativação do observador tout court é um ato democrático, pois toda obra de arte – até as mais ‘abertas’ – pré-determinam o nível de engajamento que o observador poderá ter com ela”200 e, portanto também o grau de politização que derivará de suas propostas. A subjetividade que deve emergir das práticas politizadas atualmente são as que têm como modelo de subjetividade “não o fictício sujeito unificado de uma comunidade harmoniosa, mas um sujeito dividido formado por identificações parciais abertas ao fluxo constante” – as mudanças nas identificações e pertencimentos estabelecidos é que farão com que o político surja das propostas estéticas. Talvez esse seja então o debate realismo/modernismo do começo do século XXI, mas essa é uma discussão que somente poderá ser apreendida em toda sua complexidade daqui a algumas décadas. Podemos ver, portanto, que o debate está longe de se encerrar e sempre retorna sob outros nomes, formas e personagens, mas sempre busca formas artísticas que deem conta de estabelecer uma relação saudável entre o homem e as tecnologias que dominaram a vida pública desde o fim do século XIX. Como vimos, a teoria crítica que tenta lidar com o declínio da experiência na sociedade moderna tem sua origem no primeiro momento no qual uma sociedade de consumo foi esboçada enquanto forma dominante no ocidente. A arte também foi utilizada de diferentes maneiras para lidar com esse desencantamento do mundo secularizado, ora servindo de mito, ora de máquina, ora confundindo ambos, mas sempre como forma de devolver algo da experiência perdida ao homem contemporâneo em busca da ‘iluminação profana’ como colocado por Walter Benjamin. Uma experiência imediada da realidade parece ser cada vez mais difícil e é essa a crise com a qual as artes têm de lidar atualmente, em uma época na qual as diferentes formas de totalitarismo assolaram as democracias ocidentais, aprofundando ainda mais a reificação por meio de seus diversos aparatos individualizantes e personalizáveis. Hoje em dia, mais do que nunca, somos consumidores classificados em meio à massa de produtos a serem consumidos das mais diferentes maneiras e cada vez mais esse consumo é ‘personalizado’. A internet, promessa de um mundo ‘livre’, no qual podemos nos expressar e acessar informações livremente é cada vez mais um espaço restrito no qual as informações chegam até nós por meio de um filtro baseado em nossos padrões de comportamento e interesses. Acabamos presos em uma bolha de mesmices personalizadas para nosso consumo e descarte instantâneos que nada mais fazem do que esvaziar
199 200
ibidem. p. 72 ibid. 78
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ainda mais nossa experiência do mundo. Ainda cabe à arte procurar pelos espaços de liberdade que tragam de volta essa experiência imediada e iluminadora, sem separar-se da realidade, mas tampouco reproduzindo-a para que também seja consumida e coisificada para que possamos tolerar suas contradições. A desnaturalização dos processos ideológicos ainda é algo que deve ser perseguida pelos artistas das formas mais variadas. Aqui foram esboçadas algumas das práticas que formaram a experiência estética do século XX, muitas outras também poderiam ser apontadas, mas essas são algumas das mais radicais e que ainda têm muita influência na produção artística contemporânea, principalmente as que serão analisadas na segunda parte deste trabalho. Hoje, quando a transformação social foi incorporada à lógica da performatividade e refere-se apenas a mudanças pontuais, cabe novamente à arte demonstrar que existe sim uma alternativa ao capitalismo ou então pelo menos destrinchar o cotidiano em busca de suas contradições e espaços que permitam uma atuação crítica diante da realidade.
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Parte 2
obras de arte depois de suas técnicas de reprodução
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introdução Esse repertório analisado na parte 1 tem como principal objetivo apresentar modos de análise social e práticas artísticas que desconstroem aspectos fundantes da sociedade ocidental contemporânea que parecem naturais aos olhos de quem vive o presente. Esse roteiro das discussões teóricas sobre os efeitos da tecnologia na vida coletiva são os fundamentos da análise de práticas artísticas que compõem a parte 2 do presente trabalho. Do mesmo modo que os textos, autores e artistas da parte 1 foram selecionados de maneira a traçar um panorama sucinto relativo ao tema em questão, os artistas da presente seção também foram elencados com base na maneira como abordam questões que decorrem dessas mudanças apontadas pela crítica. Muitos artistas poderiam ser analisados para se compreender como tais mudanças afetaram as artes plásticas de maneira geral e como atuam para se contrapor à lógica mercantil em variados meios e maneiras. Mas a seleção dos artistas que serão apresentados agora acabou sendo pautada por questões que escapam à uma coerência definitiva, sendo fruto de nexos contingentes que apontam para algumas possíveis direções de práticas artísticas situadas no campo oposto ao do espetáculo. Ao mesmo tempo, a ‘lacuna histórica’ entre as neovanguardas e a contemporaneidade é de algum modo preenchida por esses artistas, cujas carreiras partem da década de 1970 e chegam ao século XXI. A obra de Chris Burden permite realizar essa passagem histórica de maneira mais direta, já que sua carreira começou em meio ao refluxo das neovanguardas e à emergência das artes performáticas enquanto tais, como exposto na parte 1. Ele foi selecionado, porém, por trazer à cena artística um embate entre o corpo humano e a tecnologia em muitas de suas performances, como se buscasse vencer a luta contra a tecnologia enquanto essa segunda natureza que foi criada pelos homens, mas que há muito já não controlamos. Essa luta jamais poderá ser ganha definitivamente, mas Burden nos mostra que ao enfrentá-la podemos de algum modo nos fortalecer e enfrentar o cotidiano de maneira mais atenta. Da mesma maneira, o trabalho de Tom Sachs realiza uma desconstrução ‘pop’ de produtos industriais ou de símbolos da sociedade de consumo espetacular que regem nosso fetiche consumista. As marcas aparecem como fruto da exploração do trabalho em sua obra e literalmente descem ao plano da realidade, mesmo que a ironia pop confunda muitas vezes enfrentamento e reificação em seus trabalhos. De qualquer forma ele realiza uma aproximação entre o consumidor-observador e os objetos que lhe apresenta sob roupagem inusitada – suas maquetes tornam mais próximos os produtos industriais, retirando parte de sua fantasmagoria enquanto mercadoria, mas ao mesmo tempo se tornam novamente objetos singulares e a aura é reintroduzida neles. O grupo carioca Chelpa Ferro, por sua vez, parte do som como elemento escultórico para desconstruir ou ressignificar objetos de consumo e tecnologias as mais variadas – além de concorrer para ampliar nosso repertório sonoro de modo geral. Suas obras reconfiguram a apreensão que temos da cacofonia generalizada
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que constitui nosso ambiente contemporâneo e também nos auxilia a enfrentar a realidade de maneira menos distraída. Já as produções de Douglas Gordon e de Philippe Parreno fazem parte de uma geração que ilustra muito bem práticas contemporâneas ‘bem intencionadas’ mas que acabam se sujeitando à lógica do espetáculo e à reificação por ela promovida como apontado em relação à estética relacional no final da parte 1, à qual são frequentemente associados. De qualquer forma a escolha deles se deu por um trabalho em particular, o filme Zidane: un portrait du 21ème siècle [Zidane: um retrato do século 21] (2006). Nessa obra 17 câmeras acompanharam todas as jogadas realizadas pelo craque francês durante uma partida de seu time e assim iluminam diversos aspectos da sociedade imagética na qual vivemos e que constrói figuras espetaculares como a de Zidane. Nessa parte do trabalho também tem uma segunda seção dedicada ao tratamento dado por quatro jovens artistas paulistanos em relação à cidade na qual vivem. Diversos aspectos da metrópole contemporânea são apontados por esses artistas que também desnaturalizam o que seria o habitat humano por excelência da modernidade. Quando se inserem nas ruas da cidade não buscam tornála mais agradável ou gentil, sabem da impossibilidade disso e refletem a ordem irracional que rege a construção de uma cidade como São Paulo. Assim, buscam incitar o passante a rever sua posição em meio a esse fluxo massificado da metrópole. Um móvel inserido por Pique a.k.a. Carango Sá em uma (es)quina da cidade tensiona a apreensão usual que temos daquele local, mas não permite que esse local possa ser usufruído, pelo contrário, suas instalações interrompem essa possibilidade no instante mesmo em que a propõe. Daniel Nogueira, por sua vez, extrai as linhas da cidade por meio de seus desenhos e as reorganiza colocando-as em contato com diversas práticas artísticas desenvolvidas ao longo do século XX. Dessa forma alcança uma linguagem própria e oferece ao público diferentes experiências relativas ao ambiente urbano e à tradição pictórica por meio de seus objetos. Já Raphael Franco chega quase a ser literal na desconstrução das representações da cidade contemporânea que faz por meio de seus registros fotográficos e fotomontagens de grandes obras urbanas. Mas também coloca seu corpo em contato com esse espaço de diferentes maneiras, revelando a visceralidade de sua relação com o ambiente urbano. Por fim, Jan de Maria Nehring coleta os dejetos da sociedade de consumo urbanizada para fazer suas composições que quase chegam a conformar uma nova espacialidade, mas que nunca chegam a sair da parede propriamente. De qualquer modo sua produção põe o observador em contato com seu próprio ciclo de consumo e a construção do espaço no qual habita. Muitos outros jovens artistas têm realizado produções semelhantes, mas já estão condicionados pelo circuito artístico de galerias e grandes mostras e já estão devidamente codificados e enquadrados pelo mercado. Da mesma maneira essa seleção pode ser vista como uma aposta pessoal do autor que só o futuro dirá se foi acertada ou não, apesar de que a repercussão recente de seus trabalhos parece indicar que sim. Como mencionado, muitas outras produções poderiam ter sido levantadas, mas esses artistas representam um recorte que não escapa aos meios tradicionais das artes plásticas de maneira radical,
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e transitam por diversos deles. Eles também buscam muitas vezes fugir dos mecanismos de controle do espetáculo, por mais que estejam sujeitos a eles e não consigam escapar de sua lógica de maneira definitiva. Mas esse é inclusive um dos principais aspectos da arte contemporânea e da sociedade ocidental de maneira geral, como já visto, e os artistas mais consagrados no cenário internacional aqui reunidos são os que apresentam as maiores contradições nesse embate. De qualquer modo há uma revelação das estruturas que compõem a dominação ideológica por meio da mercadoria e da produção industrial de maneira geral que perpassa toda a produção artística aqui analisada e refletem diferentes aspectos desses mecanismos. Essa produção revela alguns dos automatismos aos quais estamos sujeitos no cotidiano espetacularizado e aponta para maneiras de nos inserirmos de maneira refletida na realidade hipermediada da sociedade contemporânea. Os artistas aqui reunidos, cada qual ao seu modo, nos colocam diante de diferentes aspectos da sociedade de consumo espetacular e indicam algumas maneiras de nos apropriarmos criticamente dele.
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Chris Burden: o corpo e as máquinas O artista estadunidense Chris Burden tornou-se conhecido pelas inúmeras performances que realizou na década de 1970, muitas das quais o colocavam em situações de risco ou ainda contestavam a produção industrial e a circulação de seus produtos. As ações realizadas pelo artista também se caracterizavam pelo caráter íntimo e presencial exigido por Burden, que dava pouca importância à necessidade de registrá-las e era bastante reticente em apresentar esses registros. Para ele a ação não é reproduzível e o registro – fotográfico ou em filme – jamais poderia substituir a presença do observador durante a performance. Por outro lado, muitas de suas peças não se dirigem para o público propriamente, pois acabam sendo apenas uma experiência pessoal para o próprio artista que muitas vezes nem chega a ser observado por ninguém. Da mesma maneira algumas de suas ações públicas também têm esse caráter de serem apenas experiências para o artista, complicando ainda mais o sentido da presença do público e a recepção por parte dele. Um fato curioso que evidencia a impossibilidade de reprodução das peças de Burden foi sua recusa em ceder os direitos de sua peça Trans-fixed (1974) para que Marina Abramovic a reencenasse no museu Guggenheim em 2005, quando a artista reproduziu algumas outras ações clássicas da história da performance. A resposta do artista, dada por meio de um ‘porta-voz’, o artista Tom Marioni, dá indícios daquilo que Burden acredita ser o fundamento de sua atuação artística: “a arte da performance no começo da década de 1970 era concreta. Nós fazíamos ações esculturais únicas. Se a obra do sr. Burden fosse recriada por outro artista ela seria transformada em teatro, um artista interpretando o papel do outro”201. A última coisa que o artista gostaria é que seu trabalho fosse visto de maneira teatral, já que a imetiaticidade de suas ações é parte fundamental delas e faz com que ele não queira registrá-las de modo sistemático. Como visto na parte 1, Chris Burden faz parte da geração de artistas que reagiu às formas institucionalizadas das artes plásticas, contestando o estatuto do minimalismo por seu aparente formalismo e asceticismo. Em meio às grandes transformações políticas e sociais apontadas anteriormente e os movimentos pelos direitos civis, a guerra do Vietnã e os protestos contrários a ela nos EUA, o maio de 1968 francês que se espalhou pelo mundo, bem como os movimentos feministas e pelos direitos homossexuais, a arte buscou reocupar um espaço político que parecia perdido pela distância que práticas como as do minimalismo aparentavam em relação a tais eventos. Burden participa, portanto, dessa reordenação artística que se consolidou na década de 1970, afastando-se dos cânones convencionais e buscando novas formas de interação com o público. Assim foi uma de suas primeiras e mais impactantes performances, Five day locker piece (1971)
201
Caroline A. Jones: Staged Presence: on performance and publics, Artforum, maio de 2010. disponível em: http:// artforum.com/inprint/id=25444; consultado em 12.06.2012 [TM]
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apresentada como projeto de conclusão de curso na Universidade da Califórnia. Nessa ação Burden ficou cinco dias trancado dentro de um armário sem se alimentar e apenas com um galão de água no armário de cima e outro vazio no armário abaixo. A partir de um ideal ascético à maneira da meditação budista por exemplo, o artista torna-se um meio de passagem e de transformação da água em excreção. Ao mesmo tempo, porém, está ali em busca de algum tipo
Bed piece (1972)
de experiência pessoal que em parte, mas de maneira radicalmente diferente, é transmitida ao público. “Qual é a pior coisa em que você consegue pensar? E como seria vivenciá-la?” diz o artista em depoimento sobre o trabalho trazendo para o escopo de sua atuação a questão dos limites humanos e a capacidade que temos de nos colocarmos em situações difíceis por escolha própria. O público também deve entrar no ‘jogo’ proposto pelo artista, pois a sala na qual a ação foi realizada estava vazia, apenas os armários escolares estavam lá e o observador só podia vislumbrar um olho dentro de um deles. Mas trata-se, para Burden de uma “escultura emocional”, cujo material é a própria presença do artista. Por isso mesmo é impossível de ser registrada ou reencenada, já que o contexto social também deve ser levado em conta: o hall da Universidade da Califórnia na década de 1970 para onde iam galeristas e curadores em busca das novas práticas que os jovens artistas estavam experimentando ali. Essa relação com o público e a prática escultórica por meio da pura presença do artista também está presente em outras peças suas, como em White light/White heat (1975). Nessa ocasião, Burden ficou vinte e dois dias em uma plataforma triangular no canto e bem próximo ao teto de uma sala da galeria Ronald Feldman em Nova Iorque, segundo ele sem comer nem beber. O público não o via e nem ele ao público, mas sua presença se fazia sentir de uma maneira quase sagrada e bastante intensa. Após aceitar a ideia de que o artista realmente está ali, o observador passa a questionar a veracidade da ação e do acordo que a rege, mas também seus próprios limites são colocados em questão e ele passa a se perguntar como Burden consegue ficar ali por tanto tempo sem se relacionar com ninguém nem comer. Aqueles que visitaram a galeria relatam a força da presença do artista que se fazia sentir na sala e o caráter escultórico que tal ação possuía. Bed Piece (1972), é um trabalho bastante parecido, mas que propõe uma relação mais voyeurística do público com o artista, que também passou vinte e dois dias deitado em uma cama no espaço expositivo. Ao ser convidado para realizar uma ação na galeria ele apenas pediu que a cama fosse colocada lá, sem dar mais nenhuma instrução. Ao meio-dia de 18 de fevereiro de
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1972 ele deitou na cama e lá ficou; a galeria teve o “bom senso”, nas palavras do próprio artista, de lhe providenciar comida durante o período e um penico. Para Burden esse foi seu trabalho mais estranho e interessante pelo que passou ali. Algo que o artista destaca também é a relação que o público estabeleceu com ele, sempre bastante temerosa e distante, como se tivessem medo dele. Segundo o artista os dois primeiros dias foram os piores, absolutamente entediantes, mas depois que estabeleceu uma “rotina mental” ele passou a desfrutar de sua posição e chegou até a considerar ficar além do período combinado, tendo desistido por questões óbvias. Além de colocar seu corpo como meio para algum tipo de experiência, tanto para ele quanto para o público, nas ações nas quais assume riscos, Burden provoca o público a algum tipo de reação, ou ainda motiva reações as mais diversas por parte de diferentes agentes. Em Deadman (1972), por exemplo, ele se colocou debaixo da roda de um carro até que a polícia o interrompesse e ele fosse levado preso e depois a julgamento. Em um primeiro momento o artista diz que ficou bravo com os policiais por terem estragado sua obra, mas depois ficou apavorado com o fato de enfrentar um severo julgamento baseado em uma lei que havia sido elaborada como resposta às revoltas estudantis de 1968 e, portanto, era bastante severa. A ideia inicial de Burden era a de simplesmente ficar debaixo do pneu por um tempo até sair andando como se nada tivesse acontecido, para surpresa dos observadores. Com o fim inusitado da ação, porém, ela acabou iluminando também os limites e relações legais e institucionais, já que o artista foi absolvido e a justiça teve de reconhecê-la como uma obra de arte. Do mesmo modo, em Shoot (1971), uma de suas performances mais famosas e controversas, a relação do público com o artista e com os limites institucionais é de extrema importância e também bastante complicada. Burden convidou algumas pessoas para que fossem à galeria F Space, em Santa Ana na Califórnia, no dia 19 de novembro de 1971, sem dar maiores explicações. O público ficou ali até que o artista entrou com dois colegas, um portando uma filmadora e o outro um rifle .22 mm que se colocou de frente para ele. Sua ideia era de que o amigo lhe acertasse um tiro de raspão, mas no fim a ferida foi mais profunda do que o esperado, aumentando ainda mais as implicações de todos os envolvidos na ação. Como disse o próprio artista, sua confiança em que tudo daria certo era tamanha que ele não levou nem um estojo de primeiros socorros para a galeria. Do mesmo modo, essa sua confiança fez com que todos os envolvidos na organização também acreditassem que nada iria dar errado e que o tiro realmente lhe atingiria de raspão. As leituras correntes dão conta de implicações como as relacionadas à guerra do Vietnã e à violência perpetrada pelo governo dos EUA de maneira geral. O artista, por sua vez, relaciona a obra com o papel da televisão na transmissão de imagens de tiros e outras cenas violentas, e que só podemos saber como é levar um tiro quando levamos um. Como pôde ser visto anteriormente, nos meios de comunicação de massa, e principalmente na televisão, a violência acaba sendo naturalizada e assumida como normal – e por conseguinte é coisificada – quando veiculada repetidamente.
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cenas de Shoot (1971); à direita Burden com o braço sangrando após a ação. “Às 19h45 um amigo meu atirou no meu braço esquerdo. A bala era de cobre com .22 mm de comprimento. Meu amigo estava a cerca de três metros de mim”.
Dessa maneira contribui para que se torne alheia ao observador e para que as guerras e as armas continuem a fazer parte da sociedade. Assim, é como se houvesse um ‘desejo de desmistificação’ da violência que ocorre diariamente quando nos é transmitida para dentro de nossos lares pelos meios de comunicação de massa; o artista leva essa situação para dentro da galeria, implicando no processo todos os envolvidos: artista, galerista, convidados, colaboradores. Para o crítico Frazer Ward é justamente uma questão ética da passividade e permissividade desses agentes em contribuírem para que aquela violência ocorresse, muito menos do que algum tipo de emulação da violência que ocorria no Vietnã propriamente, de que trata a obra – seria então o próprio meio artístico o tema de Burden nesse trabalho. O crítico afirma que “Shoot dependia [...] da passividade e do voyeurismo”202 do público e ao mesmo tempo evoca questões sobre os agentes envolvidos na ação e da responsabilidade compartilhada que deriva de sua atuação. Essa responsabilidade também surge da relação que a obra estabelece com o minimalismo, como ressalta o crítico, pois “oferece um comentário sobre a ‘ausência de sangue’ [bloodlessness] nas investigações fenomenológicas do minimalismo e introduz questões sobre as consequências e sobre a participação e a responsabilidade tanto do artista quanto do observador”.203 Ward ainda afirma que a violência da guerra do Vietnã não deixa de ser um importante elemento da obra, mas que traz justamente a questão da mediação de sua violência por meio da transmissão televisiva, da mesma forma que toda cultura armamentista dos EUA também emerge dessa interpretação. Podemos também afirmar que ocorre algo semelhante ao efeito de um readymade, pois ao ser trazida para o
202 203
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Ward, Frazer. Gray Zone. Watching Shoot, em: October 95, inverno de 2001. p. 125 [TM] ibidem. p. 118
contexto artístico como um elemento extraído do cotidiano, a violência é ressignificada e chancelada enquanto arte. A questão da mediação – televisiva – e das representações por ela criadas voltam a aparecer. Muitas outras performances que levam o corpo ao extremo e o expõe a perigos foram realizadas por Burden na década de 1970, como 220 (1971), uma ação ‘privada’ na qual ele e três amigos ficaram sobre escadas colocadas em uma sala com o chão cheio de água e com fios elétricos desencapados eletrizando a água. Quem se cansasse de ficar sobre a escada teria de tomar um choque de 220 volts para sair da incômoda posição – eles ficaram lá da meianoite às seis da manhã. Outro trabalho é Icarus (1973), no qual ele ficou deitado no chão da galeria com duas tábuas em seus ombros que foram incendiadas por assistentes, a ideia era que ele ficasse ali o máximo de tempo que pudesse suportar com aquelas ‘asas’ incandescentes. Ele
no alto cena de Match Piece (1972)
aguentou muito pouco antes de dar um pulo
acima vista de Samson (1985) em Inhotim
e sair correndo da situação. Já em Match Piece (1972), há um jogo que motiva sua ‘tortura’ com uma artista que irá receber ou não seus fósforos incandescentes. O mecanismo de disparo dos fósforos já é de difícil acionamento e a precisão no controle da direção na qual são lançados é menor ainda, fazendo com que apenas um fósforo fosse disparado por minuto e que menos de quinze deles atingissem a atriz durante toda a performance. Enquanto preparava seus projéteis, o artista assistia a duas televisões alternadamente, colocando em cena novamente seu meio de mediação e reificação preferido. Essas ações mais uma vez colocam o observador em contato com os limites que estão dispostos a romper ou manter, sejam eles físicos ou éticos e legais, já que o sadismo presente em Match Piece pode ser considerado também um tema da obra, ou ainda o papel da mulher em tal situação de dominação. Outro trabalho de Burden que implica em uma responsabilidade compartilhada entre os diversos agentes envolvidos na ação é Samson (1985), na qual o público que entra no espaço expositivo tem de passar por uma catraca ligada a macacos hidráulicos que por sua vez empurram grandes vigas de madeira contra a parede da galeria, processo que se levado a cabo demoliria o local.
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O público é forçado a acionar o mecanismo desenvolvido pelo artista e instalado pela instituição expositiva que levaria ao fim o espaço no qual se encontra; como os esforços transmitidos são muito pequenos tem-se a impressão de que esse fim é algo bastante distante. Há uma réplica da obra no Instituto de Arte Contemporânea Inhotim, em Minas Gerais, que por motivos óbvios não transmite o esforço do macaco hidráulico às paredes, acabando com o propósito do trabalho mas ao mesmo tempo ampliando a tensão entre uma obra de grande contestação à institucionalização das artes plásticas e sua recepção por essas instituições. O trabalho está ali apenas como decoração e a ação da qual o público acredita estar participando é apenas uma simulação, não acarretando em nenhuma consequência maior para o espaço no qual está. Há também outra dimensão que surge nessa tensão que é a da própria simulação e mentira na qual o público é envolvido e que suscita um questionamento sobre a recepção da obra já que, caso a mentira não seja revelada, o observador continuará a acreditar que está contribuindo para a demolição da galeria, mas do contrário ele se vê envolvido no próprio jogo institucional que a obra deveria contestar. E mais ainda: se o simples fato de colocar em dúvida o papel da instituição com essa obra, esteja ela ativa ou não, pode ser entendida como a virtude maior e principal valor receptivo do trabalho. A contestação da produção industrial e da circulação de seus produtos que está por trás dos trabalhos de Burden de maneira geral aparece de maneira direta na performance Trans-Fixed (1974), na qual o artista foi crucificado com pregos na parte de trás de um Fusca. Aqui a relação mais evidente é o enfrentamento com o objeto industrial, mesmo que ainda exista a noção de algo doloroso e terrível a ser vivido como visto em outras obras do artista. Do mesmo modo, podemos entender não só uma contestação à sociedade de consumo espetacular por meio de seus bens de consumo de massa, mas também Trans-Fixed (1974)
um embate com a religião e, mais ainda, com o culto relacionado à arte, todos temas que à época da realização da performance se tornavam cada vez mais evidentes como visto na parte 1. A ação foi realizada em plena ressaca de maio de 1968 e no momento em que a economia passava da produção industrial para a especulação financeira como forma hegemônica, podemos inclusive tomar o Fusca como um símbolo dessa economia industrial fordista que estava em declínio. A experiência pela qual o artista passou também foi dividida com seus assistentes que o pregaram ao carro e que tiveram que se manter calmos para
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executar essa tarefa nada convencional. Da mesma maneira, o público que assistiu ao Fusca sair da garagem com Burden pregado a ele teve de rearticular as diferentes imagens que se sobrepõem nessa ação, já que a cruz de Cristo aqui é um automóvel que por si já é bastante emblemático. O carro desenvolvido por ordem de Hitler e um dos principais responsáveis pela disseminação da forma de vida rodoviarista, faz com que o raciocínio do observador se volte também para a construção ideológica por trás desses processos, que no fim dirigem a construção do próprio ambiente urbano. Outro ponto interessante de ser destacado é em relação aos produtos das ações realizadas por Burden. Se o registro é para o artista algo secundário, quase todas as suas performances têm um objeto como resultado, uma relíquia que depois será comercializada pela galeria. Ou seja, se há a ideia do fim do objeto de arte e a quebra com sua circulação na origem das artes performáticas, os artistas muitas vezes são forçados a introduzir um produto material nesse circuito. Burden vende suas relíquias desde White Light/White Heat, quando expôs como produto da ação um pedaço de madeira no qual o artista ia riscando os dias em que estava junto ao teto da galeria à maneira dos estereótipos de presidiários em filmes hollywoodianos. De TransFixed o que foi exposto como produto da ação foram os pregos utilizados na mão do artista. A criação de objetos propriamente ditos por Burden, no entanto, vem desde a década de 1970, quando ele projetou e construiu o B-car (1975), carro individual que “uniria uma bicicleta com uma aeronave, representando um Robson Crusoé high-tech”, nas palavras do próprio Burden. Há nesse trabalho uma forte contestação à indústria automobilística e ao seu modo de produção – que no fim das contas pode ser ampliado para toda a produção industrial no sistema capitalista –, e mesmo que seu objetivo fosse dirigir o automóvel, ele não considerava essa performance como o principal motivo do trabalho, mas acabou realizando duas ações patrocinadas por galerias na Europa. Deve ser destacada também uma certa ambiguidade que aparece aqui, ao termos em mente o vídeo Big Wrench (1980), realizado para a televisão, no qual o artista conta a história de sua relação com um caminhão que ele comprou de um vizinho e que tornou-se um verdadeiro problema para ele, levando-o a vendê-lo depois de pouco tempo por um preço muito abaixo daquele que havia pago. A atração que Burden tinha pelo caminhão é interessante de ser analisada, pois é ela quem faz emergir essa contradição, ou um certo desejo reprimido que o leva a enfrentar os objetos que lhe atraem, algo que depois também ficará claro em outros trabalhos seus. O embate com o rodoviarismo que o artista realiza em obras como essas pode ser considerado parte desse fascínio por automóveis que ele tem – seja visto que Burden possui uma coleção de diferentes carros e máquinas como tratores e escavadeiras. Um de seus trabalhos mais recentes, Metropolis II (2011), também pode ser considerado um objeto, mas mais que isso ele é um dispositivo e liga-se com sua visão distópica da cidade rodoviarista e ainda seu interesse pela função dos brinquedos na sociedade de consumo. Para ele brinquedos “são as ferramentas que a sociedade usa para ensinar e aculturar as crianças para o
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mundo adulto”.204 Esse trabalho jamais poderia ser visto como uma performance do artista, mas pode ser considerado como uma performance em si, ou uma ação mais propriamente, já que é uma grande simulação de um ‘autorama’, ou uma maquete de uma cidade contemporânea fadada ao caos e à falência. Carrinhos de brinquedo circulam por trilhos a velocidades que chegam a mais de 300 quilômetros por hora, mas que ficam retidos em pontos críticos do traçado, como em uma típica cidade rodoviarista americana como São Paulo, ou sua Los Angeles natal. Dessa forma, de diversas maneiras o artista realiza uma crítica pungente em relação à cidade contemporânea cuja construção é dirigida pela primazia do automóvel no espaço urbano. Mas há esse movimento de atração e repulsa que complica a apreensão das implicações de seus trabalhos. De todo modo, esse movimento pode ser observado em outras obras do artista, inclusive na sua relação com os produtos industriais e sua produção. Podemos também compreender uma série de trabalhos de Burden da década de 1980 como um precedente em sua visão – ou exposição – da falência do projeto iluminista, transformado em busca por eficiência no sistema capitalista. Seus Warships surgiram por acaso depois que ele colocou diversos objetos em um móvel que havia encontrado na rua e que depois passaram a ser obras produzidas intencionalmente. Neles podemos ver uma crítica que reúne em um só plano o colonialismo, a guerra capitalista por novos mercados e a própria decadência promovida pela sociedade de consumo espetacular em seus produtos. Da mesma maneira eles trazem os dejetos dessa sociedade ao ambiente da galeria, como fazia Kurt Schwitters, por exemplo, e alguns dos jovens artistas paulistanos reunidos na seção final do presente trabalho. Esses objetos poderiam ser parte de algum filme pós-apocalíptico, como Blade Runner ou mais ainda Waterworld, no qual o mundo está coberto de água e as ‘cidades’ são imensos navios piratas equipados com mecanismos de guerra os mais variados. Há outro conjunto de trabalhos de Burden que podem ser vistos como dispositivos de performances e não como ações propriamente, já que esses sim são construídos para serem reencenados quantas vezes forem desejadas e muitos deles são instalações permanentes em museus, como por exemplo Samson. Tal é o caso de Big Wheel (1979), instalada no MOCA (Museu de Arte Contemporânea de Los Angeles), na qual o artista, ou performer contratado, aciona uma roda de aço do século XIX de mais de duas toneladas por meio de uma motocicleta a ela acoplada. As costas do artista ficam a poucos centímetros de distância desse enorme objeto que, caso fosse tocado, lhe causaria morte instantânea, já que a velocidade máxima que a roda atinge é de cerca de 110 quilômetros por hora. O público assiste estarrecido à ação. Do mesmo modo, The flying steamroller (1996), é um dispositivo performático que estabelece um embate entre homem e máquina, já que trata-se de um rolo compressor de doze toneladas preso a um braço de aço com um contrapeso no lado oposto. O rolo compressor é acelerado até atingir sua velocidade 204
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Campagnola, Sonia e Sansone, Valentina. Face the dragon head-on, Flash art n° 267. disponível em: http://www. flashartonline.com/interno.php?pagina=articolo_det&id_art=380&det=ok&title=CHRIS-BURDEN; consultado em 12.06.2012 [TM]
em sentido horário a partir do canto superior esquerdo vista geral de Metropolis II (2011); Big Wheel (1979); The flying steamroller (1996); 747 (1973)
máxima, enquanto um pistão hidráulico é acionado fazendo com que o rolo ‘alce voo’, ficando suspenso no ar por alguns minutos até que o pistão seja desativado e o rolo pouse suavemente no solo. Assim como em Big Wrench, a ambiguidade da relação de atração e repulsa com os objetos da produção industrial pode ser entrevista nesses trabalhos de Burden. A ação de Flying Steamroller pode ser relacionada a 747 (1973), uma fotografia que registra uma ação na qual o artista disparou diversos tiros em direção a um Boeing 747 – o famoso Jumbo – que decolava do aeroporto internacional de Los Angeles. Para Burden a reação à época foi a de tratar a ação como um gesto terrorista, uma tentativa real de derrubar o avião, e ele pensou que “seria crucificado e desta vez não em um Fusca”. O artista, no entanto, afirma que sua intenção era simplesmente a de realizar aquele gesto quase que niilista, uma ação que realmente não levasse a nada – ele sabia que as balas nunca atingiriam o Jumbo – sua intenção estava naquele gesto, que demonstra a impotência que temos diante de objetos de tal porte mas que são fruto da produção humana. Ou seja, trate-se de um rolo compressor ou de um avião, ou mesmo atualmente de um iPod, o
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artista reforça a relação fantasmagórica imposta nas mercadorias pela alienação do trabalho e pela circulação mercantil que lhes outorga um valor numérico – de troca – e não um valor de uso. Beam Drop, por sua vez, é uma escultura ao ar livre que na verdade é o registro de uma performance realizada por Burden. Ela foi realizada pela primeira vez em Nova Iorque em 1984 e destruída três anos depois. Em 2008 foi refeita em Inhotim, e em 2009 na Antuérpia. Trata-se do lançamento de vigas de aço descartadas em ferro-velhos sobre uma base de concreto ainda fresco, por meio de um guindaste cujos movimentos são indicados pelo artista para o operador da máquina. Um grande balé de vigas de aço enferrujadas ocorre no momento da ação, mas o público irá ver só a ‘escultura’ acabada, a ação acaba não tendo importância na recepção da obra, ou ao menos o artista não busca necessariamente informar o público sobre sua ocorrência. A performance fica, porém, cristalizada nas marcas que as vigas deixam ao atingir o concreto, bem como na aleatoriedade de sua distribuição, que também faz com que cada escultura seja diferente da outra – é por meio desses traços que o público deverá assumir a peça como fruto de uma ação realizada pelo artista. O fato de as vigas que Burden usa já terem servido em construções anteriormente reforçam uma interpretação relacionada à sociedade industrial e aos produtos que esta descarta; as vigas já cumpriram o papel estrutural para o qual foram produzidas e na melhor das hipóteses seria material a ser reciclado ou reutilizado. Do mesmo modo, são elas que estruturam a grande maioria dos edifícios corporativos contemporâneos. O artista se apropria dessas vigas e decreta de vez o fim de sua utilidade, pois estarão a partir desse momento relegadas a um papel “decorativo”. A construção da escultura, a performance que dará origem às suas formas, não pode deixar de ser associada à action-painting de Jackson Pollock, só que em uma escala que acaba por excluir o corpo humano da ação; novamente há um embate com a máquina tanto no uso de vigas de aço descartadas, quanto no ato de produção da obra e em seu resultado. O próprio artista afirma que “a escultura acabada se torna a petrificação de um evento cataclísmico, bastante parecido com Pompeia. Você tem que se lembrar que as vigas de aço são o bloco estrutural de toda a arquitetura corporativa e, portanto, devem ser vistos de maneira séria. Trabalhadores da construção civil nunca podem derrubar as vigas. Jackson Pollock usava a tinta de um modo expressionista abstrato. Eu estou usando pesadas vigas de aço de um modo expressionista abstrato”.205 Esse trabalho, bem como grande parte de suas ‘esculturas’, trazem um caráter formal muito difícil de ser dissociado da estética pós-minimalista e ao mesmo tempo sugerem uma verticalidade e um direcionamento do olhar do observador para o alto, quando está à uma curta distância da ‘escultura’, que dão um tom barroco à obra. Outra referência que também aparece antes de chegarmos no trabalho em Inhotim é dada por um aviso de que em caso de mau tempo a obra pode receber grandes descargas elétricas, lembrando um trabalho icônico 205
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idem
da land-art, o The lightining field, de Walter de Maria, campo de para-raios construído em 1977 no deserto do Novo México, nos EUA, no qual 400 antenas estão dispostas no deserto, aguardando que grandes tempestades as atinjam para que a obra de fato se realize. Beam Drop, no entanto, não tem por objetivo atrair nenhum tipo de tempestade, mas é fruto do pensamento de um artista que conviveu e se formou em meio a modos de atuação bastante diversos. Uma característica que Burden ressalta em relação ao registro de suas performances de maneira geral, é que ele não desejava deixar que elas caíssem nas mãos das grandes corporações da indústria cultural estadunidense. E ele afirma claramente que desejava, com suas primeiras performances, “fazer com que a arte retomasse o controle de suas ações, por isso que não chamei a NBC quando realizei Shoot e um fotógrafo da Time porque eles iriam tomar o controle dela”. Isso em uma clara contraposição à situação que à época tornava-se cada vez mais evidente da promiscuidade entre o circuito artístico e o comercial, que deveriam estar em campos opostos. Partindo dessa sua oposição aos meios de comunicação de massa, o artista realizou diversos trabalhos na década de 1970 nos quais buscarava intervir diretamente na emissão televisiva, como seus TV Ads, comerciais televisivos que promoviam o artista e/ou suas ações e que foram ao ar em emissoras da Califórnia. Também há aqui esse desejo reprimido e revertido, já que todos queremos aparecer na televisão, ter nossos cinco minutos de fama, algo cada vez mais disseminado e que hoje parece ser mais fácil por meio do YouTube e dos smartphones. Seus comerciais fajutos foram ao ar em horários nobres levando imagens que perturbavam a experiência televisiva de quem os assistiu. Logo após uma cena de família feliz em um comercial aparecia o artista rastejando sobre cacos de vidro na Main Street de Los Angeles, trecho da performance Through the night softly (1973). Outras transmissões do artista levaram ao ar poemas e frases sem muito sentido ou anúncios nos quais se autopromovia, buscando apropriar-se de algum modo da transmissão televisiva e perturbar a experiência do telespectador. Ele afirma que não desejava o reconhecimento propriamente, não queria que dissessem “‘oh, lá está o Chris Burden e ele está realizando uma performance’, mas aquilo emergia como um dedo machucado e eu sabia que 250 mil pessoas estavam assistindo aquilo e que seria perturbador para elas”. Um precursor, contemporâneo a Burden, foi o britânico David Hall, que em 1971 levou ao ar na televisão escocesa suas TV Interruptions, nas quais aparecia na transmissão televisiva algo inusitado como uma torneira enchendo uma pia lentamente, mas podemos imaginar que os futuristas e dadaístas adorariam se apropriar de um circuito como esse se ele já existisse em sua época. Uma ação mais radical ainda foi realizada por Burden em 1972, TV Hijack, na qual ele ‘sequestrou’ ao vivo uma apresentadora de televisão durante um programa de entrevistas. Convidado como entrevistado do programa, o artista em dado momento simplesmente levantou-se e ameaçou cortar a garganta da apresentadora caso a transmissão fosse interrompida. Após o ocorrido Burden destruiu a fita da emissora e o único registro que restou é o da equipe de gravação que o próprio artista levou
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à esquerda vista de Beam Drop (2008) em Inhotim à direita cena de Through the night softly (1973)
para o estúdio. Essa ação, no entanto, é denunciada como uma resposta infantil e egocêntrica à recusa da emissora em aceitar propostas de emissão que o artista lhe havia enviado, mas a recepção acaba tendo o mesmo efeito independentemente de sua intenção original. Unindo tanto sua produção de objetos quanto seu interesse pelos meios televisivos, ele produziu em 1977 a obra C.B.T.V., na qual construiu o mecanismo mais primitivo que possibilitou a transmissão de imagens, que havia sido inventado em 1915 pelo inglês John L. Baird. Com esse trabalho Burden revela o mecanismo que rege a produção das imagens televisivas e a ‘simplicidade’ desse mecanismo que é envolvida em uma aura de mistério quando encoberta por uma tela que recebe seu bombardeamento de elétrons. De Bandeja ou Macroondas Sonoras de Pique a.k.a. Carango Sá também realizam procedimentos semelhantes como será visto mais adiante, e ambas ligamse às máquinas autodestrutivas de Jean Tinguely, por exemplo, e toda tradição – nietzschiana poderíamos dizer – da qual deriva sua produção como na parte 1. Podemos perceber, portanto, que o artista tem uma produção bastante plural, fugindo de rótulos fáceis. Se Burden é mais conhecido por suas performances, rapidamente essa definição também lhe escapa, pois suas esculturas, por mais que algumas sejam dispositivos performáticos ou resultados de performances, acabam ficando à vista do observador apenas como esculturas ordinárias, principalmente no caso de Beam Drop, por exemplo, e são elas que marcam a produção mais recente do artista – ele ficou mais de dez anos sem realizar performances propriamente ditas. Há sempre, porém, uma demanda muito grande para que o público conviva e complete as ações do artista, seja em suas performances ao vivo, quando divide com ele a responsabilidade por um acontecimento violento, ou quando apenas solicita a presença do observador para que
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seja contraposta à velada presença do artista; seja em Metropolis II, quando será o visitante do museu que irá acionar a ‘máquina urbana’ que temos à nossa vista. Uma preocupação, no entanto, pode ser extraída dessa ampla atuação de Burden: a sociedade de consumo espetacular estadunidense, ou ocidental, e a circulação tanto de seus produtos, quanto de seus valores mercantis e as mediações estabelecidas nesse circuito. As performances televisivas, por exemplo, são um modo de frear, mesmo que por 10 segundos, a visão distraída de um espectador televisivo e impor algum tipo de reflexão em um dos meios mais contaminados pelo consumo e pela alienação. Do mesmo modo, crucificar-se em um Fusca é denunciar as violências com as quais convivemos passivamente e que já nos foram introjetadas pelos meios de comunicação de massa, como ocorre também em Shoot. Ao mesmo tempo, porém, demonstram as relações ideológicas que regem nossa sociedade, por meio de instituições hegemônicas como a religião em si, a religião do consumo e a religião da valorização e consequente consumo da arte. As performances que colocam seu corpo no centro da ação também têm como finalidade chamar a atenção para o corpo humano vivo, não um corpo abstrato e morto das religiões ou ainda um corpo idealizado como o do minimalismo. Essa relação, porém, apresenta-se de dois modos bastante diferentes, mas complementares no sentido de revelarem essa fragilidade do corpo na sociedade contemporânea, sempre atravessado por pulsões cujas origens não podemos identificar facilmente. Assim, nas suas performances ele como que realiza um fortalecimento desse corpo fragilizado, ao colocá-lo no centro da ação e impingir-lhe sofrimento; por meio dele é que nos fortalecemos e lhe damos as medidas adequadas que depois do estágio do espelho lacaniano já não mais temos, como nos lembra Hal Foster.206 Já em muitos de seus dispositivos ou registros de performances, como The Flying Steamroller ou Beam Drop, a tensão colocada na relação entre esse corpo frágil e os aparatos da produção industrial fragilizam ainda mais nossa posição de espectadores sem controle algum dos rumos de nossas vidas e desejos. Ao explicitar essa relação de dominação, portanto, Burden revela o mesmo que em suas performances, e incita o observador a retomar esse controle, ou pelo menos de agir conscientemente diante dele – o corpo perde a luta concreta, mas simbolicamente o público retoma o controle de suas ações.
206
Foster, Hal. The return of the real. op. cit. p. 210. Foster descreve aqui o processo de formação de nosso ego identificado por Jacques Lacan como uma reação à nossa apreensão corporal diante de nosso próprio reflexo e em relação à figura do outro. “Lacan sugere que essa unidade imaginária [de nosso corpo] do estágio do espelho produz uma fantasia retroativa de um estágio anterior no qual nosso corpo ainda estava em pedaços, uma fantasia de um corpo caótico, fragmentário e fluido, dado a impulsos que sempre ameaçam nos dominar por completo, uma fantasia que nos assombra pelo resto de nossas vidas – todos esses momentos de pressão nos quais um se sente prestes a se estilhaçar. De certo modo nosso ego é requisitado primeira e principalmente contra esse retorno a um corpo em pedaços”. [TM]
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Tom Sachs: as cicatrizes do trabalho Podemos dizer que Tom Sachs é acima de tudo um maquetista, ou um bricoleur como ele mesmo gosta de se definir. Por mais que essas duas atividades se refiram à diferentes escalas – a maquete é normalmente uma redução do objeto representado, enquanto que a bricolagem é relativa a um trabalho em ‘escala real’ –, ambas fazem parte de sua produção e o artista une características das duas atividades nos modelos que realiza. Sachs se formou arquiteto no começo da década de 1990 e trabalhou durante dois anos no escritório de Frank Gehry desenhando móveis para a empresa Knoll, época em que se apropriou da expressão to knoll, que significa manter as ferramentas de trabalho arrumadas em disposições rigorosamente geométricas. Depois de deixar o escritório de Gehry ele trabalhou durante alguns anos arrumando vitrines de lojas na cidade de Nova Iorque, quando foi convidado a fazer um grande arranjo de natal na vitrine da Barneys, em 1994. Esse foi um dos primeiros momentos nos quais expressou de maneira mais radical sua ironia em relação à sociedade de consumo. A vitrine, que ele chamou de Hello Kitty Nativity, expunha um boneco da Hello Kitty com sutiã da Chanel no lugar da virgem Maria, enquanto que os três reis magos eram bonecos de Bart Simpson e a manjedoura estava encimada pela marca do McDonald’s. Sachs dirige sua ironia de uma só vez tanto à religião quanto aos objetos de consumo que a vitrine deveria ajudar a vender e assim aproxima as duas atividades: a prática religiosa e o consumo de marcas e produtos culturais, temas que também aparecem no trabalho de Chris Burden mas sob formas completamente diferentes. Nessa primeira aproximação de Sachs à crítica cultural são os produtos culturais que chamam atenção, e não as marcas que representam o capitalismo contemporâneo como posteriormente em sua produção. Assim, se Bart Simpson é o personagem de um desenho animado que tornou-se um boneco vendido no mundo inteiro em versões autorizadas ou em cópias de qualidade variável, a boneca japonesa Hello Kitty é desde sua criação um elemento ‘genérico’ de uma cultura oriental que Hello Kitty Nativity (1994)
buscava inserir-se no mercado ocidental. A boneca japonesa foi criada em 1980 como produto cultural a ser exportado pelo país que à época se destacava por sua atração pelos elementos pop e pela cultura consumista importada dos EUA. Podemos dizer que a Hello Kitty é um movimento antropofágico de certo modo enviesado, já que expressa a deglutição dos valores mercantis da sociedade ocidental pelo Japão, mas que se destina ao próprio
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mercado ocidental como forma de ‘contra-colonização’ mercantil. A personagem tornou-se recorrente no trabalho do artista que já realizou esculturas públicas de grandes proporções da boneca em bronze ou outros materiais mais nobres do que aqueles que marcam sua produção e a própria produção dos objetos da personagem. Dessa forma ele realiza com a Hello Kitty uma escultura nobre que cria outra camada de significação para a personagem que comumente é produzida em materiais ordinários para ser consumida em massa. A primeira exposição de Sachs veio logo a seguir, no final de 1995, e chamou-se Cultural Prosthetics, literalmente ‘próteses culturais’, evidenciando o teor das obras que exporia. Entre elas estavam réplicas de um revólver Glock em papelão trazendo a marca Tiffany, de uma granada de mão com a marca Hermès, bem como ‘recibos’ das armas Glock. Essas réplicas aproximam o trabalho artesanal às grifes de luxo, que escondem sob suas valorizadas marcas os traços do esforço empreendido na produção de seus objetos. Sobre a exposição, Sachs disse que “‘quando você perde um olho ou uma perna, você coloca um olho de vidro ou uma perna falsa. E quando você perde a cultura, você chega em algumas das coisas que temos aqui... Eu estou tentando fazer substitutos para as coisas que estão faltando em minha vida’’. Ecoando assim “a profecia de Andy Warhol dos anos sessenta de que os museus do futuro se pareceriam cada vez mais com lojas de departamento e as lojas de departamento com museus”. Dessa forma, o trabalho de Sachs “em si se tornaria um artigo de luxo – uma prótese artística cobiçada para todas as necessidades que empresas como Hermés, Tiffany ou Prada não conseguem preencher”.207 Da mesma maneira, a relação entre a ‘perda da cultura’ à qual ele se refere aqui e a introdução das marcas de luxo em suas maquetes fica mais clara quando o artista afirma que “a moda, assim como o fascismo, é sobre a perda de identidade”208 e daí também a relação que ele estabelece com armas, aparatos de controle e o próprio fascismo como em Prada Death Camp (1998). Na exposição havia ainda uma espingarda artesanal com o sugestivo título e inscrição Hecho en Switzerland (1996), aproximando o trabalho dos imigrantes mexicanos nos EUA com a indústria armamentista suíça, uma das maiores do mundo. O interesse do artista por armas é quase que adolescente, principalmente por aquelas que ele mesmo pode construir em seu ateliê e que funcionam perfeitamente. Sachs chegou a vender algumas dessas armas artesanais para o programa de desarmamento da cidade de Nova Iorque, que paga US$300,00 por cada arma entregue. Nesse caso, não só as armas foram construídas com bem menos dinheiro do que o pago pela prefeitura, como o artista insere no circuito armamentista objetos bastante rudimentares que poderiam ter sido construídos por presos brasileiros ou milicianos africanos por escassez 207 208
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Gustorf, Oliver Koerner von. Weapons, status, shopping. Tom Sachs’ ultra-democratic model worlds. db artmag, disponível em: http://db-artmag.de/archiv/2003/e/11/1/96.html; consultado em 12.06.2012 [TM] Solomon, Debora. The way we live now: 3-10-02: questions for Tom Sachs; Designer death camp. New York Times Magazine, 10 de março de 2002. disponível em: http://www.nytimes.com/2002/03/10/magazine/ the-way-we-live-now-3-10-02-questions-for-tom-sachs-designer-death-camp.html; consultado em 12.06.2012 [TM]
acima Hermès Value Meal (1997) ao centro Hecho en Switzerland (1996) abaixo Prada toilet (1997)
de dinheiro ou dificuldade em ter acesso a armas reais. Esse trabalho atinge também o governo novaiorquino que compra, quase literalmente, ‘gato por lebre’, mas que ao mesmo tempo tem o dever de retirar das ruas armas que funcionem, sejam elas produtos da indústria armamentista ou caseiras. É a reconstrução de objetos correntes em
materiais
pouco
nobres
e
com
inscrições de marcas de luxo ou de grandes corporações, no entanto, que marcam a desconstrução ideológica realizada por Sachs e que fazem com que seu trabalho seja um poderoso ataque ao fetiche nutrido pela sociedade de consumo espetacular. Um trabalho seu da década de 1990 que deixa esse procedimento explícito é Prada Toilet (1997), um vaso sanitário feito de papelão e fita adesiva com acabamento bastante rudimentar, como que a expor as “cicatrizes do trabalho”, nas palavras do próprio artista. O ataque à marca é bastante agressivo se tomarmos a imagem da obra em si, mas tamanho é o poder de cooptação e de apaziguamento das contradições do capitalismo contemporâneo que a Prada parece ter se sentido homenageada pelo trabalho e chegou a dar um lote de suas caixas de sapato para o artista. Esse fato demonstra de maneira ainda mais profunda as tramas às quais obras irônicas como a de Sachs estão sujeitas na sociedade capitalista
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contemporânea, já que o que era para ser uma agressão à imagem da Prada se reverte como uma propaganda gratuita, ainda por cima em um circuito no qual estão seus consumidores, as classes altas que frequentam museus e galerias de arte – a resposta da Prada é ao melhor estilo ‘falem mal, mas falem de mim’. Outras obras do artista também ironizam marcas de luxo associando-as a elementos ordinários como a serra elétrica Chanel Chain Saw (1996) e a guilhotina Chanel Guillotine (Breakfast Nook) (1998), ambas com acabamentos rudimentares e materiais ordinários. Outros trabalhos de Sachs produzem confusões entre diferentes marcas, não apenas apresentando produtos diversos com marcas inusitadas como no caso acima, mas também apresentando um Hermès Value Meal (1997), por exemplo, no qual a marca de luxo aparece como a de um fast-food com refeições iguais à do McDonald’s. Inclusive, sob a tinta laranja do lanche podem ser lidas as inscrições de um Big Mac comum. Esses objetos foram feitos com papelão e fita adesiva e os acabamentos também são bastante mal cuidados. O McDonald’s é também um de seus alvos favoritos e em sua série Nutsy’s ele construiu toda uma ‘franquia’ da rede de lanchonetes, só que na forma de carrinhos de vendedores ambulantes. Tudo está no espaço expositivo como uma barraca de cachorro-quente na esquina mais próxima, porém estampa a marca McDonald’s e alguns de seus elementos estão mais associados ao repertório do artista do que à rede de lanchonetes propriamente. Assim, no balcão do atendente vemos garrafas de Jack Daniel’s, que servem para guardar o óleo usado para frituras, e uma arma artesanal com o emblema da rede por exemplo. Ao mesmo tempo, ao lado há uma máquina fotocopiadora à disposição para que sejam impressas as embalagens dos sanduíches: a cópia deve ser feita da bunda do artista, que irá embrulhar os lanches que são vendidos ali. Há ainda um vídeo com as instruções para quem for ‘abrir’ uma franquia de seu McDonald’s e um banco para que o público possa assisti-lo. Novamente o artista embaralha as esferas das alta e baixa culturas de maneira bastante radical, difícil de ser desfeita, mas que faz com que o observador atente para o jogo irônico proposto por ele. Da mesma forma ele introduz seu referencial próprio na obra, o que acaba desestabilizando ainda mais a relação que temos com a marca da grande rede de fast-food. A série Nutsy’s, porém, é um de seus trabalhos de maior vulto, já que trata-se de um grande conjunto de maquetes em diferentes escalas que abordam tanto temas da sociedade de consumo quanto ícones do modernismo, como edifícios de Le Corbusier. A exposição demorou dois anos para ser criada em sua totalidade, já que é composta de inúmeras maquetes e modelos típicos da produção de Sachs. O que literalmente os une é um percurso de autorama cujos carros estão na escala 1:25 e que ditou a escala da maior parte dos modelos que constituem a exposição, que podem ser considerados como obras independentes, como já o foram em alguns outros momentos. Assim, McBusier (2002), coloca lado a lado modelos nessa escala da emblemática Ville Savoye de Corbusier e de loja pré-fabricada do McDonald’s, associando o modernismo corbusiano ao modernismo comercial da rede de lanchonetes. Tal associação deve ser entendida como o
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acima The booth (2003) ao centro Unité (2001) abaixo McBusier (2002)
resquício do funcionalismo e do modernismo como utilizado nos EUA, país no qual essas ideias foram apropriadas pelas grandes corporações, dando origem às lojas da rede de lanchonetes, por exemplo – à maneira da cooptação da estética do alto modernismo como descrito por Jameson. Apesar dessa interpretação que deriva de tal justaposição para o artista, tanto Le Corbusier quanto o fundador do McDonald’s Ray Kroc, foram mal compreendidos e acusados injustamente de quererem substituir aspectos culturais locais por um estilo internacional desumanizado, e que ambos não foram superados até hoje – no melhor estilo ‘irônico-pop’, Sachs apenas ressalta aspectos da vida contemporânea que ele faz colidir em sua instalação. Do mesmo modo, o radicalismo e o purismo ‘quase dadaístas’ de Mies van der Rohe apontado por Manfredo Tafuri, foi transformado no também ‘genérico’ International Style nos EUA que se tornou a forma dos edifícios corporativos do país depois da década de 1950, algo que Sachs também ilumina ao expor o interior do Barcelona Pavilion (2003), de van der Rohe, reproduzido em escala 1:1. Também em Nutsy’s estava presente uma maquete da Unité d’Habitacion de Corbusier, outro ícone da arquitetura moderna, reproduzida também na escala 1:25 em papelão e fita adesiva, e que é uma das principais obras do artista. Unité (2001),
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como obra independente também traz inúmeros dos procedimentos e interesses teóricos de Sachs, como os apontamentos acima sobre o modernismo e seu trabalho de bricolagem metódico. Ao mesmo tempo as feições da maquete artesanal colidem com o ideal cristalizado no edifício de Corbusier, de uma arquitetura racional e padronizada. Por meio dessas reconstruções ‘toscas’, Sachs abala o racionalismo e o funcionalismo expressos nos ideais modernistas. Há ainda referências ao governo dos EUA em The Booth (2003), que contrapõe o selo presidencial estadunidense, como em um palanque no qual os presidentes fazem seus discursos, a estoques de bebidas alcoolicas que aparecem em outras obras suas – era aí onde ficava o DJ que animava as noites de corrida que aconteciam às terças feiras na exposição. Ao termos em mente que essa obra fazia parte do percurso do autorama e era onde se abastecia o carrinho de ‘maconha’ – na verdade uma erva similar que era colocada pelo DJ no carrinho, que depois seria ‘consumida’ em um bong –, o selo presidencial aparece como uma crítica à contradição do fato do governo controlar a distribuição de bebidas e proibir o consumo de outras drogas recreativas. Do mesmo modo, Repair Station (2001), apesar de se parecer com um dos inúmeros dispositivos de controle criados por Sachs, faz parte do autorama, já que seria o pit-stop dos carrinhos. Outra obra que está dentro dessa linguagem é Wall of Surveilance (2001), na qual estão dispostas as câmeras que filmam diferentes partes do traçado do autorama como se fossem câmeras de vigilância de uma grande cidade. A justaposição desses elementos da cultura do século XX criam um ambiente familiar e ao mesmo tempo intrigante para o observador, além de lhe inserir em um ambiente lúdico, já que é um autorama une todos os elementos da instalação. Como colocado por Randy Gladman, Nutsy’s “replica identidade [...] e cria um espaço físico no qual aspectos intrínsecos à cultura popular moderna são condensados e transformados em objetos icônicos. [...] Sachs suja seu mundo com arquitetura modernista, guetos urbanos, música contemporânea agressiva, frigobares e postos de combustível”. Como reunião de parte importante de sua produção recente, a exposição seria uma “apresentação conceitual do estado atual da vida estadunidense, simulando a preponderância dos fast-foods, o tráfico e o consumo de drogas, o monitoramento de segurança, a distribuição de bebidas alcoolicas controlada pelo governo, o hip-hop, a cultura rodoviarista e a arquitetura drive-thru”209. O jogo proposto também incita o público a tomar decisões e a refletir sobre as questões lançadas pelo artista, algo que é colocado diretamente em The choice (2001), onde a pista do autorama se divide entre um parque de esculturas modernistas com diversas curvas no percurso ou uma rua principal – e reta – de um típico subúrbio estadunidense. Essa rua, no entanto, também traz a sujeira típica desses guetos urbanos dos EUA, com lixo espalhado, carros destruídos, bocas de fumo e casas caindo aos pedaços, tudo na escala 1:25. Essa situação
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Gladman, Randy. Tom Sachs; a visit to Nutsy’s, disponível em: http://www.akrylic.com/2003/04/tom-sachs-avisit-to-nutsys/; consultado em 12.06.2012 [TM]
acima La Ville Radieuse (2010) abaixo The Radiant City (2010)
dramatiza o contraste visível nas cidades contemporâneas entre ricos e pobres e suas respectivas áreas de moradia e de circulação. Algumas das maquetes presentes em Nutsy’s foram, inclusive, expostas na Bienal de Arquitetura de Veneza de 2010, para a qual o artista foi convidado a participar. Sachs
introduziu
ainda
elementos
da
Vila Radiosa de Corbusier e a história que narrava ali chegava à queda das Torres Gêmeas nos atentados de 11 de setembro de 2001, que haviam sido projetadas pelo discípulo de Corbusier, Minoru Yamasaki. Yamasaki também projetou outro ícone do fim da arquitetura modernista, o conjunto habitacional Pruitt-Igoe, demolido apenas 16 anos após ter sido construído em 1959 na cidade de Saint Louis nos EUA. O próprio metodismo de Sachs, expresso em sua paranoia com o knolling, também pode ser entendido como uma apropriação das práticas tanto modernistas quanto corporativas em sua busca por eficiência e racionalidade. Os ‘dez mandamentos’ de seu estúdio, expostos no vídeo 10 bullets (2011), revela, de maneira bastante irônica, os fundamentos de uma prática produtiva bastante moderna. Para ele 10 bullets apresenta “as coisas que são simplesmente básicas em qualquer ambiente de trabalho; ‘enviado não quer dizer recebido’ [um dos dez mandamentos] é algo profundo. Metade de nosso trabalho no estúdio é fazer suas
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tarefas, a outra metade é comunicar que elas foram feitas”.210 Essa prática, moderno-corporativa, deve ser entendida, porém, como mais uma das afrontas de Sachs à sociedade contemporânea, já que ele mesmo faz parte dela como um produtor cultural com financiamento quase que ilimitado e com seu próprio grupo de empregados. A exposição em Veneza também trazia diversas reproduções de desenhos e projetos de Le Corbusier, principalmente aqueles da Vila Radiosa e do Modulor, feitas por Sachs, como La Ville Radieuse (2010), que é uma cópia das plantas de um edifício proposto por Corbusier para sua cidade ideal
Presidential Seal (2004)
feita em pirografia sobre madeira. Novamente entram em colisão o ideal modernista de racionalidade e o caráter artesanal do trabalho de Sachs, colocando-o em meio à crise dessa racionalidade modernista instrumentalizada pela sociedade de consumo. Além de seu ataque às marcas de grandes corporações e à falência, ou até promiscuidade, do projeto modernista, Sachs mira outros alvos, como o governo dos EUA, na já mencionada The Booth, mas também em Presidential Seal (2004), na qual ele reproduz em madeira o selo da presidência estadunidense, sempre deixando à vista os elementos que compõem a reprodução – no caso os pregos e pedaços de madeira unidos – e o expõe como um objeto autônomo. Não é necessariamente a figura do presidente que o artista ataca aqui, já que todos os presidentes farão seus discursos em um palanque como o de The Booth – claro que sem as bebidas atrás – com esse emblema à sua frente. Trata-se de fato de um ataque às contradições expressas pelos símbolos de poder traduzidos pelo selo presidencial, como fica claro na peça de Nutsy’s. Quando o símbolo é exposto isoladamente na galeria, no entanto, ganha outras conotações, menos diretas, mas que enfrentam de maneira bastante forte a reificação e o distanciamento das esferas de decisão política impostos pela democracia representativa no sistema capitalista. Outra série de trabalhos seus também problematizam uma das instituições mais valorizadas no imaginário estadunidense: a NASA. A princípio Sachs construiu maquetes de foguetes e espaçonaves utilizados pelos EUA na exploração espacial, como Big Lunar Module (1999) e Saturn V Moon Rocket (1/18 scale) (1999) na escala 1:18. As maquetes foram feitas com materiais comuns como PVC, espuma, madeira e fita adesiva, sempre deixando visíveis os traços dos materiais utilizados na montagem dos modelos. Eles fizeram parte da exposição White na galeria parisiense Thaddaeus Ropac, junto a um modelo em escala real do robô do filme Guerra nas Estrelas R2D2, ‘armas
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Vanderbilt, Tom. Tom Sachs, em: Soapbox – Wall Street Journal. 27 de outubro de 2011, disponível em: http:// online.wsj.com/article/SB10001424052970204644504576653261487906754.html; consultado em 12.06.2012 [TM]
Hermés’ e uma outra maquete da Villa Savoye com um letreiro do McDonald’s em frente. Nesse contexto a justaposição de elementos da cultura moderna dos EUA aparece como a construção de uma ficção a partir de elementos reais – que por sua vez podem ser ficcionais ou não – que desmistifica acontecimentos marcantes da história do país, ou poderíamos dizer que hipermistifica esses acontecimentos para que o público Saturn V Moon Rocket (1/18 scale) (1999)
realize o processo de desmistificação. Não contente, o artista decidiu criar seu próprio
‘programa espacial’, com modelos em tamanho real de diversos dos equipamentos e naves utilizadas na chegada à Lua, que culminou em um grande evento-performance de ‘lançamento’ da espaçonave rumo ao satélite terrestre na galeria Gagosian em Beverly Hills. Na exposição havia um módulo lunar em tamanho real, carregado com o estoque de bebidas alcoolicas, cigarros, músicas e outros elementos ‘de sobrevivência’ que os astronautas-performers precisariam. Apollo LEM (2007) foi construída em compensado, metal e componentes eletrônicos, bem como com fita adesiva que ficou exposta nas faces externas do modelo. Os atores trajavam réplicas de roupas da NASA feitas com materiais bastante similares aos de uma roupa de astronauta real, como a fibra Tyvek, algodão e poliéster. Como não podia deixar de ser, porém, Space Suit (2007) se parece com uma maquete quando olhada atentamente, já que a fita adesiva que une os pedaços de tecido é deixada exposta. O Mission Control (2007) se parece mais a um centro de vigilância com diversos monitores que transmitiam os acontecimentos no interior do módulo de exploração lunar. Um detalhe: de cada lado dos monitores há dois painéis com as inscrições Applause e Quiet, como em um programa de auditório. Além disso, garrafas de bebida e um aparelho de som da década de 1990 completam o centro de controle. Outros objetos constituem a missão à Lua de Sachs como um canivete, emblemas da NASA feitos artesanalmente, jalecos dos ‘cientistas’ que controlaram a missão, câmeras fotográficas ‘como’ as usadas pela NASA – mas esculpidas em madeira – e ainda diversas armas artesanais que os ‘astronautas’ usaram em seu ‘passeio lunar’. Além disso foram coletadas ‘pedras lunares’, pedaços do chão da galeria, que foram levadas de volta para o módulo lunar. A edição do vídeo que representa a performance faz com que ele se pareça de fato com a missão lunar, já que o lançamento e a reentrada do foguete na atmosfera terrestre, por exemplo, foram encenadas usando maquetes menores e todas as outras etapas da missão foram editadas de modo a se parecer o máximo com ‘a realidade’. A apresentação desses elementos do imaginário popular estadunidense e sua combinação com elementos que contradizem as certezas
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acima Mission Control (2007) à esquerda diferentes vistas da Apollo LEM (2007)
neles depositados faz com que a chegada do homem à Lua se pareça com uma emissão televisiva das mais ordinárias. Em breve será aberta nos EUA a exposição Space Program 2.0: Mars, ampliando as relações que Sachs estabelece com o programa espacial do país. Primeiro pela atração quase infantil que transparece nessa sua série de trabalhos com o universo da NASA e dos astronautas. Segundo porque nessa segunda exposição/ performance, o artista coloca em um mesmo ambiente três esferas temporais e simbólicas diferentes. A primeira é o passado do programa espacial propriamente e suas viagens à Lua, bem como o sonho futurista da viagem à Júpiter de 2001: uma odisseia no espaço de Stanley Kubrick. Em segundo lugar é a projeção ao futuro propriamente, já que a NASA tem seus
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planos de enviar astronautas à Marte em um futuro teoricamente não tão distante. Teoricamente porque, e aí entramos no presente, a agência espacial passa por momento difícil de financiamento e teve seus ônibus espaciais aposentados, deixando-a sem meio próprio de enviar astronautas para a estação espacial. Isso evidencia uma outra implicação do programa espacial de Sachs que fica mais clara nessa segunda performance: a promiscuidade entre a NASA e projetos privados de exploração espacial, já que atualmente os astronautas dos EUA têm de ter suas passagens compradas pela agência para irem ao espaço em naves russas e acaba de ser realizado o primeiro voo totalmente privado para a Estação Espacial Internacional. Algo recorrente na obra de Sachs são o que poderíamos chamar de gabinetes, ou armários, repletos de armas, ferramentas ou drogas, como The Booth e Repair Station que estão em Nutsy’s. Essas duas, no entanto, têm implicações diferentes pois estão em um contexto definido, fazem parte do ‘jogo’ proposto pelo artista na exposição e quando esses gabinetes são apresentados individualmente ganham outras conotações. Um exemplo é Master (2008-2010), armário com uma arma artesanal na parte superior, bebidas no nível intermediário, preservativos no nível logo abaixo e pedaços de bonecos como ex-votos na parte debaixo, sugerindo diversas interações entre tais elementos que fazem parte da cultura hedonista contemporânea. Já Hardcore (2008) e London Calling (2004) são gabinetes de armas propriamente, com diversas armas feitas pelo artista e munição para elas. London Calling traz também algumas armas brancas como facões e machados e ainda um martelo e um lápis junto a um caderno de notas. Todo o conjunto tem inscrições pirografadas com as letras, títulos e créditos das músicas do álbum de mesmo nome da banda punk britânica The Clash, gravado em 1979. Saltam à vista duas questões sobre esse amálgama de armas referenciadas com a banda inglesa. Primeiro pelo fato de que The Clash é condenado por alguns críticos musicais de ter tomado parte no processo de diluição do movimento punk, o que fica evidente justamente nesse álbum com suas influências pop e reggae, por exemplo, o que o tornou bastante vendável e o converteu em um dos maiores sucessos da banda. Outra implicação que aparece nessa obra é que Sachs parece ter antevisto o que viria a ocorrer nas ruas londrinas em 2011 quando multidões saíram para protestar contra a morte de um jovem negro em um bairro pobre da cidade pela polícia, gerando dias tensos na cidade. O verdadeiro ‘chamado de Londres’ só se fez sentir seis anos depois da obra de Sachs e mais de trinta depois do álbum do The Clash. Algo em comum entre as armas artesanais de Sachs e as revoltas londrinas é a dimensão de expressão dos que não têm voz nos grandes meios de comunicação contemporâneos, uma revolta espontânea de um grupo social que busca afirmar sua existência. Já Hardcore traz pirografado o registro dos números de série dos objetos utilizados para a fabricação da obra, como as ferramentas Stanley, fita adesiva e canetas; há também outros elementos nessa lista que beiram o surreal como ‘baboseira de político’ e ‘agente laranja’. Ambos os gabinetes parecem mecanismos para serem acionados ‘em caso de emergência’, mas ao
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acima à esquerda Made in England (2008-2009) acima à direita Master (2008-2010) à esquerda London Calling (2004)
mesmo tempo fazem com que o observador perca horas tentando decifrar todos os elementos e referências que estão colocados ali. Do mesmo modo, Made in England (2008-2009), também é uma ‘caixa de sobrevivência’ com armas, ferramentas, bebidas alcoolicas, cigarros, isqueiro e lubrificante. Nesses três gabinetes espelhos como que duplicam os elementos ali colocados ou ainda inserem o observador dentro do trabalho. Essa reunião de elementos correntes da cultura contemporânea no trabalho de Sachs parecem levar o observador a posicionar-se diante de suas próprias armadilhas consumistas, o confronto entre armas e bebidas alcoolicas colocam no mesmo nível o consumo de ambas, que são controlados pelo governo, seja dito novamente. Há outra linha de trabalhos de Sachs que abordam de maneira mais direta as entranhas de aparelhos eletrônicos como no caso de Icemaker (2009), um aparato de produzir gelo construído toscamente e cujo mecanismo está exposto ao público. A curiosidade reside ainda no fato de que o gelo é produzido com Evian, tradicional marca francesa de água engarrafada nos Alpes famosa por seu consumo como produto de luxo. Essa máquina se assemelha bastante também com o banheiro de avião em tamanho real reproduzido pelo artista com materiais como espuma, compensado e fita adesiva. Lav A2 (1999) expõe as entranhas de um componente bastante funcional que encontramos em aviões e nem podemos imaginar como seria fora dele. A estranheza de nos depararmos com tal objeto em um espaço expositivo revela a fragilidade e relativa arbitrariedade
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acima Untitled (CE Wood Leica) (2004) abaixo Sony TR 81 (1996) à direita Lav A2 (1999)
dos produtos industriais – por mais que sejam fruto de projetos minuciosos ainda estão sujeitos à contingência do trabalho humano e podem falhar sem qualquer razão aparente. Por fim, as réplicas de câmeras fotográficas realizadas por Sachs também podem ser consideradas um ‘readymade artesanal’, e, como grande parte de sua produção, se aproximam das Brillo Box (1964) de Andy Warhol, interferindo na relação entre obra de arte e mercado e a recepção delas pelo público. Ao contrário de Warhol, porém, Sachs não quer alcançar a perfeição da cópia, já que deixa expostas as uniões e materiais utilizados em suas réplicas. Sony TR 81 (1996) ou Untitled (CE Wood Leica) (2004) são reproduções bastante fiéis das câmeras originais, não fossem esse acabamento rudimentar e as cores tanto dos materiais usados como as que Sachs pinta nelas. Sony foi feita com caixas de armamentos Winchester, gerando uma inevitável associação entre o poder da filmadora e o de uma arma. Já a Leica foi feita em madeira e suas cores se assemelham mais com cavaletes de trânsito. O artista acaba também invertendo a lógica
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da câmera fotográfica, que deixa de ser utilizada como um instrumento para captar a imagem que será apreciada esteticamente e passa a ser o objeto artístico em si, sendo revelada como algo capaz de atrair por sua beleza que é ignorada sob sua instrumentalização. Novamente as certezas do público são confrontadas e o aparelho que traz em suas mãos para registrar a exposição ganha estatuto semelhante à obra que está diante de seus olhos. A obra de Sachs acaba muitas vezes sendo esvaziada por sua ironia à maneira de grande parte da produção ligada à tradição pop e acaba parecendo ser fruto da mente adolescente do artista. Seu ataque aos símbolos da sociedade de consumo espetacular, no entanto, deve ser vista como uma poderosa desconstrução dos aparatos ideológicos que regem sua reprodução. Ao nos depararmos com um vaso sanitário da Prada ou então com um McDonald’s ambulante, vemos como se dá a construção dos valores que fazem circular os produtos de consumo em nossa sociedade. A confusão entre produtos culturais e mercadorias revelada por Sachs em muitos de seus trabalhos ampliam ainda mais o alcance de sua produção artística, mesmo que ela e o próprio artista também estejam sujeitos à mesma lógica mercantil. Isso tampouco parece incomodar Sachs, que se apropria dessa lógica para colocar em circulação sua crítica a ela, algo que fica claro, como pudemos ver, nas instruções para seus assistentes no vídeo 10 bullets. Do mesmo modo, as “cicatrizes do trabalho” expostas em suas reproduções nos lembram o investimento de esforço humano que residem nos ascéticos produtos industriais, reforçando o caráter contingente e arbitrário de sua produção e circulação enquanto mercadoria. Se Duchamp apenas expunha um objeto industrial em um museu, outorgando-lhe assim a aura artística que o ambiente confere aos objetos em seu interior, depois de Andy Warhol, a figura do artista deve entrar em cena para que isso continue funcionando para o observador. A circulação dos produtos industriais retira deles qualquer traço tanto do trabalho humano que os produziu, quanto dos mecanismos que regem sua produção, seja a construção simbólica de uma marca de luxo ou a disseminação de valores que estão por trás dessas marcas. Sachs não inventa, apenas retira os produtos de seu circuito normal, aproximando-os de nossa mão e assim tornando palpável algo que se esconde por trás de mecanismos impessoais de valores – de troca. “A criatividade é o inimigo” já diria o artista, ecoando Warhol, e hoje em dia às vezes uma reprodução pode ter mais valor do que o objeto original, como é evidente quando imaginamos que um trabalho seu custa muito mais do que o objeto original que o artista reproduziu e que os materiais que utilizou nessa reprodução, mesmo que esse objeto já seja bastante valioso.
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Chelpa Ferro: a dimensão sônica do mundo O coletivo artístico Chelpa Ferro foi formado em 1995 pelos artistas plásticos Barrão, Luiz Zerbini e Sérgio Mekler, depois de Barrão ter sido convidado a realizar uma apresentação no evento CEP 20.000, organizado pelo poeta Chacal e que reúne diversos artistas das mais variadas artes. Ele então convidou os amigos que já haviam trabalhado antes em algumas poucas oportunidades e que desejavam aprofundar essa colaboração. A apresentação do grupo nessa ocasião já esboçou o que viria a ser a prática do Chelpa Ferro, com diversas guitarras sendo tocadas ao mesmo tempo e luzes ofuscando a plateia que produziam uma verdadeira cacofonia sonora e visual. A primeira exposição do grupo também foi fruto de experimentos que continuaram o interesse dos artistas pela produção sonora e os levou a gravar separadamente em um estúdio sons produzidos por variados instrumentos, que depois foi editado e compilado em um álbum – Chelpa Ferro (1997). Como era um amálgama de sonoridades diversas, o disco era impossível de ser reproduzido, e para tanto eles construíram seus primeiros aparatos que produzem sons que foram instalados no Paço Imperial do Rio de Janeiro em 1997. O acaso que deu origem ao grupo, bem como o nome – escolhido a partir de papéis com anotações diversas que Barrão tirou do bolso logo antes da primeira apresentação – confirmam o que diz o crítico Moacir dos Anjos em relação à produção do grupo, que não reflete diretamente o trabalho individual de cada um deles, mas sim o interesse que os três têm por “juntar pedaços de vários lugares e em mídias as mais diversas”, evidenciando “uma coerência que é forçosamente arbitrária e provisória, tornando-se índices da impermanência das relações entre as coisas e as ideias”.211 Zerbini e Barrão são artistas plásticos que começaram suas carreiras junto à chamada Geração 80 de artistas brasileiros que promoveram uma guinada na produção artística brasileira. Zerbini é pintor, mas sua carreira deixa clara sua busca constante por diferentes formas de expressão dentro desse meio artístico. Se na década de 1980 suas pinturas eram hiperrealistas, no começo da década seguinte passou a realizar obras mais abstratas e que exploravam técnicas alternativas como, por exemplo a técnica chinesa de pintura embaixo da água. Zerbini também se utiliza de diversos suportes em seus trabalhos, como vidro, acrílico e compensado de madeira, criando pinturas tridimensionais que não chegam a ser nem esculturas nem instalações mas se aproximam e confundem ambas as técnicas. O artista também se apropria de elementos obsoletos como slides ou então busca colorir todo o ambiente que abriga uma exposição sua, intervindo dessa forma em todo o espaço expositivo. Barrão, por sua vez, reúne em seus trabalhos elementos díspares para criar esculturas familiares e grotescas ao mesmo tempo. No começo de sua carreira eram eletrodomésticos e outros dejetos da sociedade de consumo e mais recentemente ele passou 211
Anjos, Moacir dos. O barulho do mundo, em: Chelpa Ferro. São Paulo: Imprensa Oficial, 2008. p. 167
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a unir utensílios e objetos feitos de cerâmica em suas esculturas. Dessa forma ele introduz o universo kitsch dos bibelôs e louças domésticas, ou os elementos que já circularam pela sociedade enquanto mercadoria, na esfera da chamada alta cultura. Assim, Delícia Tropical (2009), ou Pato Aguado (2010) nada mais são do que enfeites de mesa e outros objetos de cerâmica colados juntos que geram formas diversas que ganham nova conotação no ambiente da galeria de arte. Sérgio Mekler, por sua vez, é montador e editor de imagens e já trabalhou em grandes produções na televisão e no cinema e também realiza trabalhos mais autorais. Se em última instância seu trabalho é técnico, sua escolha de imagens e os encadeamentos dados a elas sempre surpreendem o espectador e deixam clara a atenção aos detalhes que esse trabalho exige. Daí a leitura de Moacir dos Anjos sobre a reordenação de elementos que marca a atuação do grupo. As intervenções sonoras como a que deu origem ao Chelpa Ferro e a produção de aparatos como os feitos para o Paço Imperial marcam o trabalho do grupo. Suas performances ao vivo trazem tanto instrumentos musicais, quanto objetos domésticos como um liquidificador, como também esses aparatos que eles próprios construíram, extraindo as potencialidades sonoras de todos esses elementos indiscriminadamente. Há ainda obras que são apenas índices de algum som possível, seja em potencial, seja como registro de uma ação ocorrida. Uma obra exposta nessa primeira exposição do grupo, Onda quadrada (1997), demonstra o desejo dos artistas em dar forma às ondas sonoras, em fazer com que elas sejam visíveis e não apenas transmissoras de som, tornando-as assim a própria matéria de suas esculturas. Os alto-falantes deitados no chão do espaço expositivo têm sobre eles bolas de ping-pong que vibram na frequência da vibração das caixas, que seria produzida pela emissão sonora, expondo a energia do som. No entanto não há som emitido propriamente, e assim a energia sonora é exposta em sua pura latência, torna-se material tanto quanto as bolinhas que ela faz vibrar. Já Acqua Falsa (2005) também expõe a materialidade da energia sonora ao torná-la visível, mas busca ainda aproximar a ‘experiência ambiental’ da cidade de Veneza com o espaço expositivo, trazendo para dentro dele a água dos canais que acaba por igualar as condições acústicas de ambos os lugares. Uma grande caixa de som sobre o espelho d’água dentro do pavilhão brasileiro emitia ruídos eletrônicos em sincronia com lâmpadas na parede oposta, mas a caixa de som e as luzes só podiam ser vistas separadamente, dissociando – ou confundido – a apreensão visual da sonora do público. Como afirma Moacir do Anjos, “som e luz estão em sincronia: de um lado a representação visual do ritmo; do outro, o som”.212 Outro modo semelhante de utilização do som como elemento escultórico por parte do grupo aparece em uma série de trabalhos mais recentes que exploram os efeitos da captação e da reprodução sonora por meio de aparatos eletrônicos como microfones e caixas de som. Em Acusma (2008), por exemplo, pequenos alto-falantes que emitem gravações de vozes solfejando 212
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Chelpa Ferro, em: Chelpa Ferro. op. cit. p. 112
acima à esquerda Onda Quadrada (1997) acima à direita Acqua Falsa (2005) abaixo à esquerda Acusma (2008) com Pêndulo (2009) ao fundo abaixo à direita Microfônico I (2009)
os números de um a sete foram colocados dentro de vasos de diferentes formatos que acabam reverberando o som cada um de um modo diferente. O som refere-se primeiramente às sete notas musicais, mas também acabam parecendo ser uma contagem redundante do tempo, ou ecos de um canto gregoriano contemporâneo. A dimensão contemplativa do som é ampliada ainda mais pelo fato do espaço expositivo ser tomado por esses pequenos objetos, à altura dos olhos não há nada; o som preenche a galeria e serve ao grupo como meio expressivo em si. A distribuição da gravação em trinta canais também realiza uma outra composição sonora, pois distribui o eco por todo o ambiente e, ao caminharmos entre os vasos, escutamos de diferentes maneiras os sons por eles emitidos, que de fora da galeria parecia uniforme. Dessa forma, a ‘música’ aqui produzida se torna cambiante como a argila de que estão feitos os vasos, ou
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então como o próprio ruído urbano, que nunca expõe com clareza suas fontes e se modifica a cada esquina que alcançamos. Tampouco conseguimos distinguir com clareza o que dizem as vozes, já que a mixagem e a distribuição embaralham o sentido das palavras. Outro trabalho que explora essas mesmas propriedades de captação e emissão sonora por aparatos eletrônicos é Pêndulo (2009), apresentado junto com Acusma na galeria Progetti. Trata-se de um microfone suspenso alguns metros acima de dois vasos com diferentes formatos. Quando seu mecanismo pendular é acionado e o microfone passa por cima das aberturas dos vasos, diferentes ruídos são emitidos, gerando uma microfonia que a própria vibração do ar dentro dos vasos produz e de maneira diferente em cada um deles. Do mesmo modo, Microfônico I e II (2009) exploram efeitos semelhantes dos aparatos de captação e reprodução sonora. Nesse caso o microfone está suspenso em um trilho que passa sobre as aberturas de vasos de diferentes formatos ou jarros de vidro transparentes com água em diferentes níveis dentro. Ao percorrer o trajeto sobre esses recipientes a microfonia gerada vai sendo modificada de acordo ou com o nível da água ou com o formato do vaso da mesma maneira que em Pêndulo e em Acusma. A exposição da latência sonora que os objetos possuem é outra característica de alguns trabalhos do grupo. Em Moby Dick (2003), o grupo apenas expõe uma imensa bateria, composta pelos mesmos elementos daquela que John Bonham tocou em 1969 com sua banda Led Zepellin a música de mesmo nome, na qual o baterista realiza um longo solo. Chelpa Ferro, porém, apresenta o instrumento sem baquetas, deixando claro que o objeto não está ali para ser tocado, apenas para ser visto. Emerge daí esse sentido de uma lembrança que ativa a memória sonora que possuímos daquele artefato, pois “a bateria é apresentada aqui, de fato, apenas como potência de som que a visão icônica do instrumento ativa na memória. Ou como barulho que, inscrito na lembrança de uma forma, pode, diante da imagem dessa, ser recordado”.213 Essa ativação é algo que perpassa a produção do grupo e muitas vezes ela se dá por meio de confrontos simbólicos com elementos que fazem parte da sociedade contemporânea, como nesse caso. Esse confronto simbólico é ainda mais radical na ação Autobang, realizada pelo grupo na abertura da 25ª Bienal de São Paulo, em 2002, na qual se utilizaram de um automóvel Maverick de 1974 para extraírem dele todos os sons que a lataria de um carro poderia conter, ou para simular a batucada que todos realizamos em um veículo estacionado em uma esquina qualquer, como afirma Sergio Mekler.214 A escolha do carro para a realização da performance foi feita por essa capacidade potencial como instrumento percussivo e mais ainda pela carga simbólica que contém, principalmente o modelo escolhido pelo grupo – segundo Mekler, “quando começou a rolar o boato de que íamos destruir o carro as pessoas falavam, poxa, mas vocês vão mesmo destruir esse carro?”215 Nas palavras do próprio grupo, “um 213 214 215
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Anjos, Moacir dos. op. cit. p. 168 entrevista concedida por Sergio Mekler ao autor no Rio de Janeiro em 27.04.2012 idem
à esquerda ação Autobang durante a abertura da 25ª Bienal de São Paulo (2002) acima Maverick destruído exposto ao público da Bienal depois da ação
carro que despertasse algum tipo de desejo latente nas pessoas, que tivesse um apelo sexual implícito, essas coisas que só carros, baterias e guitarras elétricas produzem”216. A ação iniciou-se com os membros do grupo e convidados seus batucando no carro com os mais variados tipos de baquetas – de baquetas propriamente à ferramentas que fazem parte do universo do automóvel, passando por ossos e marretas com bustos de compositores clássicos como Chopin. Eles assim parecem unir em uma mesma ação fontes variadas de representação da produção industrial, que aqui é tomada como mais um estágio da história da cultura humana, inserindo o trabalho no continuum da história benjaminiano. O batuque aos poucos foi ganhando força e as batidas aumentando em intensidade, cada vez agredindo mais a superfície-fetiche do Maverick. No clímax da ação o público acabou entrando na batucada que ecoava pelo prédio da Bienal e preenchia seu espaço monumental, extravasando também sua vontade de destruir um objeto do tipo, algo que não temos oportunidade de fazer normalmente – em um sentido similar à vitória do ator sobre a câmera apontada por Benjamin.217 Após a performance, a carcaça retorcida do carro ficou exposta junto com os instrumentos utilizados, como que a guardar os traços daquele evento-ritual de ampliação
216 217
Chelpa Ferro. op. cit. p. 51 ver nota 28
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de nossa perspectiva sônica e, neste caso especificamente, da dimensão material do mundo que se apresenta a nossos olhos. Além deste ataque simbólico ao desejo expresso e cristalizado pelo automóvel, Chelpa Ferro coloca o público diante da fragilidade do material que constitui esse objeto ao qual damos tanta confiança. O grupo se utiliza do carro por sua capacidade percussiva mas o toma também como base para a desconstrução das certezas e seguranças trazidas pelos produtos industriais, de um modo similar ao realizado por Tom Sachs quando ele coloca um banheiro de avião no espaço expositivo. O Maverick exposto aos visitantes da exposição como objeto quase autônomo amplia essa dimensão da obra, mas ao mesmo tempo serve como indício da ação e do som que ela produziu, de maneira semelhante à ativação sonora produzida por Moby Dick. O vídeo 100 metros rasos (2006) também expõe alguns dos principais interesses do grupo, como a exploração e identificação de diversas fontes sonoras em diferentes contextos. A vida urbana permeia esse vídeo, bem como parece emanar de toda a construção sonora do Chelpa Ferro. Nesse caso, ao contrário do que ocorre em Acusma, no qual as fontes estão escondidas, o grupo revela diversas delas que estão pela cidade, como que buscando construir o retrato sonoro de uma grande cidade contemporânea. Tanto fontes sonoras do ambiente urbano, tais como uma concretagem em uma construção, um carro em um lava rápido ou pessoas nadando em uma piscina olímpica, como também objetos criados pelos artistas com o fim de produzir sons variados, são justapostos na apresentação dos vídeos, transmitidos cada um por um projetor independente que acabam por gerar uma composição aleatória, pois os tempos variam de acordo com o play dado em cada um dos aparelhos. A instalação audiovisual acaba tendo valor tanto por seus aspectos sonoros quanto por seus aspectos visuais e assim o grupo rompe mais uma vez com a primazia da visão em relação aos nossos sentidos. Mas não buscam dar ao observador uma experiência sinestésica no sentido estrito do termo – por mais que muitas vezes isso acabe acontecendo –, mas antes afirmam a correlação entre eles e o potencial criativo que cada um encerra em sua relativa autonomia perceptiva. Os aparatos que constroem para produzir sons também participam de diversas maneiras nos trabalhos do grupo, sendo tanto objetos autônomos quanto instrumentos para performances ao vivo, ou ainda personagens de 100 metros rasos, como Mesa de Samba (2008) que, a partir de uma máquina de costura ligada ao molinete de uma vara de pescar cuja linha bate em uma caixa de bateria, produz um ‘batuque de bêbado’, nas palavras dos próprios artistas. Dessa forma, seus trabalhos transitam por suas produções, sendo ampliados ou ressignificados a cada nova apresentação ou contexto no qual são inseridos. Não são estudos propriamente, mas revelam a perpétua instabilidade da produção do Chelpa, que nunca se contenta em definir definitivamente suas obras, deixando-as abertas a novas possibilidades de uso. Os aparatos que constroem também podem ser expostos nas paredes de museus e acabam interferindo em todo o ambiente. Chuvas (2003), e Nadabrahma (2003), por exemplo, simulam no espaço expositivo o som de uma tempestade por meio da vibração transmitida por motores
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acima imagens de 100 metros rasos (2006) acima à direita Chuvas (2003) abaixo à direita Jungle Jam (2008)
a galhos de árvores com sementes que soam como chocalhos. O mesmo tipo de dispositivo é o da obra Jungle Jam (2008), só que aqui, ao invés de árvores, os chocalhos são sacos plásticos colocados em movimento de maneira aleatória por um aparato pré-programado, enquanto que nos dois primeiros é o observador que aciona o motor por meio de um pedal, da mesma forma que ocorre em Microfônico e Pêndulo. Jungle Jam ou Chuvas e Nadabrahama, apesar de produzirem sons bastante diferentes, pela maneira como são organizadas no espaço expositivo, acabam tendo uma relação formal inescapável, para além do fato de trazerem para a galeria ruídos e elementos que em última instância não pertencem ao local. As direções para as quais esses trabalhos apontam, porém são bastante diversas. Os galhos – elementos naturais utilizados para produzirem barulho – não fazem parte do ciclo de consumo da sociedade capitalista propriamente, talvez apenas enquanto obstáculo ao progresso. Já os sacos plásticos trazem a marca da circulação de produtos em nossa sociedade, tanto que se tornaram símbolos do desperdício de materiais. É interessante o fato de que o trabalho tem ‘vida própria’ em Jungle Jam, enquanto que os galhos dependem do visitante para serem acionados, como se a fantasmagoria da mercadoria estivesse presente nessa obra e a sanha destruidora do homem estivesse presente nas outras duas. Chelpa Ferro dá grande importância à participação do público, não apenas pelo acionar de
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um motor, mas também em obras interativas propriamente, como Totó treme terra (2006), na qual o jogo de pebolim é usado para acionar uma série de gravações que variam de acordo com os pontos em que a bolinha bate na mesa. O público, quando percebe que está produzindo os sons, começa a controlar o jogo para dirigir a produção sonora, envolvendo-se ainda mais na construção da obra. Já em Maracanã (2003), o observador é convidado a entrar em um círculo de caixas de som que emitem os ruídos gerados pelo próprio público, modificados ou não. Novamente a percepção de que os ruídos são fruto de seus movimentos ali dentro não é imediata e quando ela ocorre o visitante sente-se ainda mais instigado a colaborar com a criação deles. A própria natureza do som já traz uma dimensão corporal – e portanto relativa ao observador – inescapável, seja pelo fato de que um som só existe se tiver alguém para escutá-lo, como no velho paradoxo filosófico, seja pela capacidade que tem de penetrar e ultrapassar nossos corpos. Como colocado pelo músico e teórico Vijay Iyer, tais procedimentos, os quais ele chama de “ação encarnada” situam “o observador no ambiente; assim ele deve interagir com seu eu encarnado também”218. Isso acaba trazendo de volta a dimensão corporal que perdemos no processo de formação de nosso ego como descrito por Lacan.219 Mas esse redimensionamento corporal ocorre de maneira negativa, pois o
acima Maracanã (2003)
som seria como uma pulsão que nos atravessa
abaixo Totó treme terra (2006)
218 219
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Iyer, Vijay: On improvisation, in: Miller, Paul D. (org.). Sound Unbound. Cambridge: MIT Press, 2008. p. 208 [TM] ver nota 206
sem que tenhamos certeza de sua origem, mas ao fazê-lo nos permite readequar nosso corpo por meio dessa interação com nosso ‘eu encarnado’. Além de exporem muitas vezes fios e cabos soltos e sem função, revelando os mecanismos que acionam os aparatos elétricos, como em Sem título (2003), outros trabalhos do grupo propõem uma constante reflexão sobre aparatos tecnológicos obsoletos como, por exemplo De língua (2005), na qual duas fitas cassetes colocadas lado a lado na parede da galeria têm suas fitas magnéticas entrelaçadas como em um beijo. Do mesmo modo, em On/Off Poltergeist (2007) aparelhos televisores à beira da obsolescência são colocados um ao lado do outro transmitindo imagens captadas no mesmo momento. O som aos quais as imagens estão associadas, no entanto, não saem dos televisores, já que seus alto-falantes foram retirados e colocados em outro canto da sala, separando assim som e imagem, confundindo uma vez mais os sentidos viciados do observador. Nesse caso tanto a obsolescência dos aparelhos, quanto a instabilidade da imagem são apresentados ao público, remetendo-nos ao ciclo de consumo a que nos sujeitamos e ao mesmo tempo contestando a verdade que as imagens nos apresentam da realidade. De diferentes maneiras o grupo se relaciona com a produção artística do século XX sem nunca se restringir a uma determinada corrente, já que “a gente já vem depois disso tudo e podemos nos relacionar de diferentes maneiras”220 com esse passado. Assim, eles oscilam entre duas principais abordagens que marcam as práticas sonoras de artistas do século passado que variam entre expor ou esconder as fontes sonoras, e ainda entre produzir aparelhos emissores de som ou captar sons produzidos na realidade. Como exposto na parte 1, tais práticas têm como origem o trabalho de Luigi Russolo e suas máquinas de produzir sons, bem como os recitais futuristas e dadaístas das décadas de 1910 e 1920 que geravam cacofonias semelhantes às que o Chelpa produz em suas apresentações ao vivo. Outro artista de fundamental importância nesse repertório é o francês Pierre Schaeffer, que na década de 1940 elaborou a noção de ‘música concreta’, realizando inúmeras composições a partir do registro de diferentes fontes sonoras, como por exemplo os sons de uma via férrea. Desse modo, ele abordava uma característica fundamental da reprodutibilidade técnica do som e de sua “transmissão radiofônica: a capacidade de separar os sons de suas fontes visíveis”, assim “subvertendo a hegemonia da visão para tornar possível a experiência do ‘som enquanto tal’”221. Para o músico John Cage, por sua vez, isso seria desastroso, pois ele via o uso dos ruídos como forma de ativar novos modos de sociabilidade e para tanto as fontes emissoras seriam inseparáveis dos sons que produzem. Nesse sentido, expressa termos opostos aos de Schaeffer em relação à gravação e à reprodução sonora: “a popularidade da gravação é desastrosa, não só por razões musicais, mas por razões sociais: permite 220 221
entrevista concedida por Sergio Mekler ao autor Cox, Christoph. Lost in Translation – Christoph Cox on sound in the discourse of synaesthesia, em: Artforum, outubro de 2005. p. 237 [TM]
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acima detalhe de On/Off Poltergeist (2007) acima à direita Sem título (2003) abaixo à direita De língua (2005)
que o ouvinte se isole do resto das pessoas”222. Em tempos de iPod as palavras de Cage ganham contornos proféticos, ainda mais quando ele afirma que no futuro produtores e consumidores musicais se confundirão cada vez mais na mesma figura. A noção de música concreta de Schaeffer serviu também de inspiração a outra prática concretista, na qual Cage também teve papel preponderante, e portanto diferenciou-se da de Schaeffer, que foi a do grupo Fluxus, já apresentado na parte 1. Para George Maciunas “um som material ou concreto é reputado como tendo estreita afinidade com os objetos materiais que o produzem”223, colocando-se ao lado de Cage e expressando características comuns nas práticas de muitos artistas do grupo. Essas práticas são identificáveis principalmente na obra de artistas como Nam June Paik, La Monte Young e George Brecht, que envolviam muitas vezes a linguagem e os meios de comunicação como materiais de seus trabalhos. Outro artista que teve atuação fundamental nessa ampliação de nossa paisagem sonora foi Max Neuhaus, que na década de 1960 abandonou sua carreira de músico para explorar as
222 223
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Cage, John. op. cit. p. 337 Maciunas, George: Neodadá em música, teatro, poesia e belas-artes, em: Escritos de artistas – anos 60/70. op. cit. p. 79
implicações sonoras na vida cotidiana. Assim como Russolo, Neuhaus dizia-se descontente com os rumos da música de sua época e partiu para uma exploração do “contínuo do sonoro” que marca nossa existência. Sua prática colocava o campo sonoro das artes visuais em um mesmo patamar que tinham a escultura e a pintura por suas propriedades materiais. Em suas instalações sonoras, termo estabelecido por ele em 1967, Neuhaus manipulava os sons enquanto tempo que se desenvolve no espaço, reintroduzindo-nos neste espaço, agora aurático, de suas práticas sonoras. Suas instalações modelam o espaço no qual estão inseridas, mas, ao contrário de esculturas, que se inserem pontualmente no espaço expositivo, elas o preenchem por completo. “O observador precisa gastar pelo menos algum tempo andando em volta de uma escultura, mas mesmo se o objeto se sujeita a essa necessidade ele tenta transcender o tempo com uma inércia exemplar. As figuras auditivas cambiantes de Neuhaus comprometem-se com o tempo. Elas se infiltram nele”224. É o mesmo que Chelpa Ferro realiza em muitas de suas exposições. Da mesma maneira, as apresentações ao vivo do grupo trazem muitos elementos extraídos da circulação de mercadorias que são justapostos com guitarras elétricas ou os aparatos construídos pelo próprio grupo para ampliar nossa percepção sonora e os limites daquilo que chamamos de música. Esse uso também desestabiliza as certezas funcionalistas que neles depositamos da mesma maneira que o fazem os readymades. Assim, em uma apresentação do Chelpa Ferro uma guitarra pode coexistir com um liquidificador e produzirá uma sonoridade à qual não estamos acostumados. A experiência imediata da realidade também foi bastante atacada com os meios de registros eletrônicos dela e de transmissão de dados que tanto marcam a existência contemporânea. Assim, em tempos de fragmentação exacerbada do mundo sensível no qual vivemos, de perda de escala tanto física quanto temporal, Chelpa Ferro intervém para devolvernos as dimensões apropriadas à realidade. Suas obras fazem parte de uma trajetória marcada por esse redimensionamento do sensível, de uma volta ao corpo fragmentário do pós-estruturalismo. Vivemos em um tempo e em um espaço. Através da dimensão sônica225 do mundo o grupo nos situa novamente na realidade, modificando nossa apreensão dela, fazendo com que passemos a dar maior atenção aos detalhes que passam despercebidos no cotidiano corrido de uma cidade.
224 225
Ratcliff, Carter. Max Neuhaus: Aural Spaces, em: Art in America, outubro de 1987. p. 160 [TM] Anjos, Moacir. op. cit.
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Douglas Gordon & Philippe Parreno: Zidane: un portrait du 21ème siècle Douglas Gordon e Philippe Parreno são artistas de uma geração que atualmente está em alta no mercado internacional e que compartilham diversos interesses e práticas. O primeiro nasceu na Escócia em 1966, enquanto que o segundo nasceu na Argélia em 1964 e construiu sua carreira na França. Ambos são figuras centrais da ideia de estética relacional desenvolvida pelo crítico de arte francês Nicolas Bourriaud, trabalham frequentemente de maneira colaborativa – quase todos os projetos de Parreno são colaborativos e cada um com um parceiro diferente – e muitas vezes se apropriam de ‘imagens encontradas’ em seus trabalhos. A aproximação que Bourriaud faz entre os DJs e os artistas contemporâneos que reconfiguram materiais produzidos anteriormente ao inseri-los em contextos diferentes parece bastante apropriada para definir grande parte do trabalho de Gordon. Esse artista se utiliza das imagens como ‘readymades temporais’, pois distorce sua duração no tempo e ressignifica a apreensão que temos delas, muitas vezes parte de repertórios famosos como os filmes de Alfred Hitchcock. É esse o procedimento que ele utiliza em 24 Hour Psycho (1993), vídeo no qual a velocidade de projeção do filme Psicose de Hitchcock foi reduzida para que dure vinte e quatro horas. Ele se insere assim no que o crítico George Baker chama de “campo expandido da fotografia”226 já que o filme é reduzido ao quadro individual que o observador poderá reconhecer, algo que não ocorre tradicionalmente no cinema – somos bombardeados por vinte e quatro quadros a cada segundo de filme. Dessa forma, Gordon reposiciona ao mesmo tempo tanto a fotografia quanto o cinema, revelando seu caráter de ‘fotografia em movimento’. Não à toa ele é um dos artistas mais importantes para compreender as práticas artísticas da década de 1990, marcadas pela característica de um período no qual as imagens ganharam importância ainda maior da que já tinham na sociedade ocidental. Parreno, por sua vez, muitas vezes também se apropria de imagens de terceiros em suas obras, mas se interessa mais pelas questões históricas que envolvem tais imagens como veremos adiante. Não é esse interesse, no entanto, que informa seu projeto colaborativo com Pierre Huyghe, No Ghost Just a Shell (1999), no qual eles se apropriaram de um personagem de animê colocando-o em outros circuitos e fazendo com que ganhe novas implicações, à maneira de um DJ que coloca o jazz em contato com o hip-hop, por exemplo. 226
Baker, George. Photography’s expanded field, em: October 114, inverno de 2005. p. 120-140.
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à esquerda filme AnnLee in Anzen zone (2000) de Dominique Gonzalez-Foerster à direita filme Anywhere out of the world (2000) de Philippe Parreno, ambos do projeto No ghost just a shell página anterior 24 Hour Psycho (1993) de Douglas Gordon
AnnLee era um desenho ‘genérico’ produzido por uma empresa de animação para ser usada como figurante em algum jogo ou desenho animado. Huyghe e Parreno então compraram os direitos de uso da personagem e pediram para que outros artistas lhe dessem vida da maneira que desejassem. Dezessete versões foram realizadas por artistas como Dominique GonzalezFoerster, Rirkrit Tiravanija, Liam Gillick e os próprios Parreno e Huyghe, entre outros. As histórias dadas à personagem foram as mais variadas, mas parecem sempre abordar o vazio do signo que AnnLee representa, muitas vezes dirigindo-se ao vazio que nós mesmos representamos, dado que, “como muitos de nós, ela foi concebida para ser um extra”227 em histórias maiores. Daí deriva também o aparente fortalecimento de uma identidade frágil que os artistas procuram exaltar como o resultado desse trabalho. Da mesma maneira, a libertação de AnnLee de sua forma-mercadoria é outra característica do trabalho destacada pelos artistas. Esse uso vazio dado pelos artistas que realizaram os filmes, porém, acabam exercendo o efeito oposto, coisificando ainda mais a personagem e o próprio observador, que recebe AnnLee como um signo abstrato e distante – uma apreensão ‘aberta’ que não conduz propriamente a lugar algum. A discussão sobre as ambiguidades das práticas relacionais como definidas por Bourriaud apresentada na parte 1 parece bastante pertinente também nesse trabalho, já que a personagem do animê acaba participando como mais um membro – fantasmagórico – da comunidade idealizada pelos artistas. Do mesmo modo, ao dirigir-se à constituição das subjetividades contemporâneas, esses filmes acabam caindo ainda mais no ‘vazio dos signos’ que representa. Ao pressupor que o observador irá preencher AnnLee com seus próprios significados, frutos de uma subjetividade 227
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Nobel, Philip. Sign of the times, em: Artforum, janeiro de 2003. p. 105 [TM]
plena, os artistas ignoram que tal subjetividade já foi ela própria colonizada pelo capital, como nos lembra Tom McDonough. “A subjetividade [...] foi colocada para trabalhar e, não menos que o valor econômico, o sujeito agora é produto do regime de trabalho imaterial. Se esse espaço [a subjetividade] antes era visto como um potencial lócus de resistência à produção capitalista, ou pelo menos um espaço de interioridade ainda não submetido à disciplina do local de trabalho, hoje essa colonização é total”.228 Assim, No Ghost Just a shell acaba reforçando a própria submissão do sujeito aos fluxos da sociedade de consumo espetacular e o pasteuriza sob a imagem vazia daquele ‘puro signo’ que a nada se refere. Outro ponto que por acaso aproxima Gordon e Parreno é o fato de que ambos já reeditaram obras de Andy Warhol, cada qual uma diferente e com uma intenção própria. Gordon, em um de seus mais famosos trabalhos, Self-portrait as Kurt Cobain, as Andy Warhol, as Myra Hindley, as Marilyn Monroe (1996), fez uma releitura dos famosos autorretratos de Warhol vestido de drag queen. Gordon, no entanto, adiciona diversas camadas de significado ao colocar no título não apenas o próprio Warhol e a atriz cuja imagem o artista pop mais explorou em sua obra, Marilyn Monroe, mas também o ícone da música pop morto no começo da década de 1990 e ainda uma famosa assassina britânica, Myra Hindley. Se Warhol, por meio de seus autorretratos, embaralhava as noções de definição de gênero, autoria e originalidade da obra de arte, Gordon não refaz a imagem warholiana simplesmente, mas desdobra suas implicações em novas direções. E essas direções parecem inclusive apontar para algumas que o próprio Warhol poderia ter assumido, já que Gordon aproxima a fama a criminosos e ao glamour do mundo do espetáculo em uma mesma imagem – o que o artista pop fez em inúmeras imagens ao longo de sua carreira, o artista escocês parece tentar realizar em uma única. Estamos diante não apenas de identidades marginais ou reprimidas, mas sim de imagens de personalidades fruto das massificações impostas pela indústria do entretenimento, como a do próprio Warhol, a de Marilyn e a de Cobain. A figura da assassina Hindley reforça o caráter trágico tipicamente warholiano que todas essas personalidades de alguma maneira têm – dois que morreram jovens de overdose e o artista pop com sua figura vazia e melancólica. Algo que reflete diretamente o vazio ‘sígnico’ no qual vivemos e o incessante desejo de termos nossos quinze minutos de fama prometidos por Warhol são as inúmeras releituras desse trabalho de Gordon realizadas por anônimos que estão na internet. Parreno, por sua vez, se apropriou das Silver Clouds (1966) do artista pop em sua instalação Speech Bubbles (1997), dando-lhes uma leitura bastante ‘relacional’, já que as nuvens nessa instalação do argelino são na verdade balões de falas de histórias em quadrinho vazios à espera de que o visitante os preencha. Se Warhol, com seus balões, pretendia propor um espaço animado e uma nova forma de experiência e relação com a arte, Parreno convida o público a refletir sobre 228
McDonough, Tom. No ghost, em: October 110, inverno de 2004. p. 113 [TM]
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acima à esquerda Self-portrait in drag (1980) de Andy Warhol acima no centro Self-portrait as Kurt Cobain, as Andy Warhol, as Myra Hindley, as Marilyn Monroe (1996) de Douglas Gordon acima à direita Andy Warhol em meio à suas Silver Clouds (1966) à direita Speech Bubbles (1997) de Philippe Parreno
as formas do discurso contemporâneo e os usos que os meios de comunicação e a indústria cultural dão a ele. Outras versões de Speech Bubbles em cores como dourado e preto dizem mais ainda sobre a censura e o controle dos discursos, bem como sua colocação em circulação como mercadoria na sociedade de consumo espetacular. Mas novamente o esse discurso contestatório recai em seu próprio vazio pela suave aparência das nuvens de Parreno. Do mesmo modo, “uma impressão de que a tela de um laptop está sempre pairando entre o artista e o observador”229 aparece nesse trabalho que tenta estabelecer uma forma imediada de comunicação, mas que aprofunda as mediações existentes na sociedade contemporânea. Um trabalho de Parreno que evidencia sua prática colaborativa, bem como a ‘abertura’ da obra de arte a significados variados, é The boy from Mars (2003), realizado com Kamin Lertchaiprasert e Rirkrit Tiravanija, um de seus colaboradores mais frequentes. O filme, que podemos considerar como uma ‘ficção mitológica’ foi realizado na fazenda experimental que Tiravanija mantém na Tailândia, seu país de origem. Nele, um pavilhão comunitário especialmente construído para a
229
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Kelsey, John. “theanyspacewhatever”, em: Artforum, março de 2009, disponível em: http://artforum.com/ inprint/id=22123; consultado em 12.02.2012 [TM]
no alto cena do filme June 8, 1968 (2009) de Parreno abaixo à esquerda vista da instalação Play Dead: real time (2003) de Gordon abaixo à direita cena de Invisible Boy (2010) de Parreno
obra é o cenário no qual um boi puxa cordas em um esforço aparentemente inútil e luzes estranhas aparecem no céu. A arquitetura é produto e é produzida pela situação criada pelos artistas e também faz parte do projeto de ocupação da fazenda pelos artistas e camponeses convidados por Tiravanija, The Farm. A descrição da obra quando foi exposta no MIS-SP (Museu da Imagem e do Som de São Paulo) em 2009 é reveladora do vazio no qual a obra confortavelmente se insere: “The boy from Mars é uma ode à luz, ao claro escuro, e à quietude do instante” – ou seja, é pura contemplação e pode querer dizer tudo e nada ao mesmo tempo, ela simplesmente está lá. Já o filme June 8, 1968 (2009) traz implicações mais interessantes e podemos dizer que também se insere no campo da ‘fotografia expandida’, pois refaz o percurso que o caixão de Bobby Kennedy fez de trem entre Washington e Nova Iorque a partir das imagens da população em luto que acompanhavam o cortejo fúnebre registradas pelo fotógrafo Paul Fusco. Os olhares perdidos da população que o fotógrafo registrou estaticamente são reencenados e animados por Parreno, que
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desta forma não apenas modifica a relação do observador com a imagem – que ganha movimento e o atinge de maneira distinta – mas também transforma o próprio evento em mais uma de suas mitologias. Esse evento histórico é utilizado como um readymade temporal de Gordon e se coloca no mesmo nível das construções históricas que sempre são feitas pelos vencedores e cujo olhar (subjetivo) pode ser dirigido pelas decisões do diretor de fotografia. O filme Invisible Boy (2010), por sua vez, também poderia ser uma ‘ficção mitológica’, pois conta a história de um garoto chinês que vive ilegalmente em Nova Iorque e é assombrado por monstros. A temática em si já aborda temas delicados e relevantes para a política internacional contemporânea, porém os monstros que aparecem no filme são desenhados diretamente na película, criando um efeito de assombração ainda maior, já que os fantasmas são verdadeiros ruídos na imagem. Mas a ficção construída por Parreno não chega a tensionar tais questões, pois se coloca como um conto de fadas, ou melhor, de assombração, que contamos para ensinar – e aculturar – as crianças em relação às contradições do mundo e nossa impotência diante delas. Os riscos na película também reforçam a ideia da fotografia enquanto índice introduzido por Duchamp nas artes plásticas como abordado na parte 1. Dessa maneira os monstros passam a ser realmente imaginários, sem corpo algum, e portanto não oferecem verdadeiros riscos a ninguém – são tão doces quanto o boi de The boy from Mars. A expansão temporal que Gordon realiza em suas obras é acentuada pela maneira como ele organiza o espaço de algumas de suas exposições, como no caso de 24 Hour Psycho e também em Travail with my Donkeys (2008). No espaço expositivo o vídeo é dividido entre duas telas de projeção e uma televisão que mostram burros explorando o espaço de um galpão abandonado, em closes e a partir de diferentes ângulos. Além disso, o próprio movimento dos animais tem diferentes tempos que dilatam e contraem o tempo de suas ações que não são controladas pelo artista, já que os burros estão sendo conduzidos, mas são eles próprios que determinam seus movimentos em última instância. Algo parecido ocorre com Play Dead: real time (2003) no qual um elefante realiza truques dentro da galeria Gagosian e depois o filme é projetado, também em três canais, no mesmo espaço no qual foram registradas as imagens. O observador diante de enormes telas com um animal de tal porte parece sucumbir ao poder da imagem e do tempo que ela estabelece. Outro trabalho de Gordon que explora esse poder da imagem audiovisual e se refere também aos limites da criação artística é Pretty much every film and video work from about 1992 until now. To be seen on monitors, some with headphones, others run silently, and all simultaneously [Praticamente todos os trabalhos em filme e vídeo de 1992 até agora. Para serem vistos em monitores, alguns com fones de ouvido, outros sem som e todos simultaneamente] (1992 até o presente) que reúne em uma grande instalação toda sua obra audiovisual desde 1992, como diz o próprio nome da obra. O título também praticamente dá as instruções de como a obra deve ser exposta e vista pelo público. Ao mesmo tempo esse é um trabalho que jamais estará completo, apenas quando o artista decidir encerrar sua produção audiovisual. O público se vê diante de uma quantidade enorme de monitores e é ele quem escolherá a qual irá dirigir sua atenção, já que seria impossível assistir atentamente a todos os
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vídeos presentes na mostra. Tampouco Gordon parece direcionar o observador para alguma conclusão lógica e o deixa perdido nesse fluxo incessante de imagens as mais variadas possíveis, tão perdido quanto ele já se encontra na realidade da sociedade de consumo espetacular. Há um trabalho que Gordon e Parreno fizeram juntos que merece ser analisado com maior atenção. Trata-se de Zidane: un portrait du 21ème siècle [Zidane: um retrato do século 21] (2006), no qual o meia Zinédine Zidane é tomado
vista geral da obra Pretty much every film and video work
como o personagem principal de um jogo de
from about 1992 until now. To be seen on monitors, some with
futebol entre Real Madrid, time no qual jogava
headphones, others run silently, and all simultaneously (1992
à época, e Villareal pelo campeonato espanhol
até o presente) na 29ª Bienal de São Paulo
de 2005. Dezessete câmeras passaram a partida inteira apontadas para o jogador nascido na Argélia e consagrado na França, por cuja seleção chegou a ser campeão mundial em 1998 nos 3 x 0 contra o Brasil. Além de ter sido o primeiro título mundial da França, Zidane teve participação fundamental no jogo, marcando dois gols de cabeça, se redimindo de uma atuação violenta e não muito produtiva até então naquela Copa. Foi também eleito melhor jogador do mundo pela FIFA nesse mesmo ano e ainda em 2000 e em 2003, tornando-se um dos maiores ídolos da história do futebol francês, rivalizando apenas com Michel Platini. Ao mesmo tempo sua personalidade, por mais que pudesse ser temperamental dentro de campo como seu ‘compatriota’ Eric Cantona, sempre foi a de um discreto imigrante africano que passou sua infância nos subúrbios de Marselha. Sua carreira ficou marcada, não apenas pelos três gols que fez em finais de Copas do Mundo, juntando-se ao seleto grupo no qual estão Pelé, Vavá e Paul Breitner, mas também por algumas atitudes violentas, como na final da Copa de 2006 quando deu uma cabeçada no italiano Marco Materazzi, que teria ofendido sua irmã. Foi seu último lance dentro de um campo, mas o fato não prejudicou sua imagem de ídolo na França e Zidane foi recebido como herói em sua volta ao país, mesmo sem a taça de campeão. Sua vida fora de campo, porém, sempre foi marcada por uma discrição que hoje em dia parece ser difícil de ser mantida por tanto tempo por uma figura pública como ele. Por isso que Richard Williams, em crítica para o jornal britânico The Guardian, afirma que a escolha do jogo pode ter sido aleatória, já a do personagem não. Essa escolha é reforçada ainda mais pelo fato do próprio Zidane ter nutrido uma relação voyeurística com seu ídolo de infância, o uruguaio Enzo Francescoli jogador do Olympique de Marseille, e cujos passos o argelino seguia fixamente durante os jogos aos quais assista desde os terraços de Marselha. Segundo Williams,
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“com Zidane, não era possível que o filme se tornasse um projeto de vaidade.”230 Ao longo dos noventa minutos de partida a relação que o observador estabelece com o personagem central vai se tornando cada vez mais próxima e íntima. Se já temos uma imagem de Zidane dada pelos meios de comunicação, ela acaba se tornando outra e ali vemos pela primeira vez essa celebridade – um tanto quanto impessoal e rasa, como todo produto da indústria cultural – tornar-se uma pessoa novamente, com as angústias e aflições às quais qualquer trabalhador está sujeito. O próprio futebol também acaba sendo exposto como uma profissão qualquer, na qual os trabalhadores estão sujeitos às contingências específicas de sua especialidade e participam apenas de uma parte do processo de produção – vemos um jogador que mal toca na bola e fica a maior parte do tempo à espera de que ela chegue a seus pés. No segundo tempo, Zidane dribla a zaga do Villareal e passa para o brasileiro Ronaldo marcar o primeiro gol do jogo; a estrela do filme, no entanto, se mantém impassível e mal comemora o tento. O mesmo se dá no segundo gol do Real Madrid. Algo bastante curioso e próprio do filme é assistirmos ao gol acompanhando apenas um jogador, já que, sem termos uma visão mais ampla do campo, pouco sabemos como foi a jogada e como o gol foi marcado, apenas as ações de Zidane nos dizem o que aconteceu. Já próximo do fim da partida, um desentendimento na área de defesa do Villareal, que tampouco entendemos muito bem, leva o craque a entrar na confusão que se inicia e o vemos armando um soco e sendo seguro por seus companheiros de time. A confusão é logo desfeita mas, para acalmar os ânimos e deixar que o jogo continue, o juiz chama Zidane e Quique Alvarez, do Villareal, para um canto e lhes mostra o mais temido dos instrumentos de um juiz de futebol: o cartão vermelho, interrompendo o filme antes que a partida acabe. Zidane tampouco esboça
230
152
Williams, Richard. Pitch invasion, disponível em: http://www.guardian.co.uk/film/2006/sep/22/1; consultado em 12.02.2012 [TM]
acima cenas de Fussball wie noch nie (1970) de Hellmuth Costard página anterior cena de Zidane: un portrait du 21ème siècle (2006) de Gordon e Parreno
alguma reação maior nesse momento e segue sozinho rumo ao vestiário; a câmera sobe para a arquibancada e os créditos finais do filme aparecem na tela. Talvez no fim das contas a escolha da partida realmente tenha sido bastante acertada pelos diretores. O projeto de Gordon e Parreno tornou-se rapidamente um símbolo da atração exercida pelos jogadores de futebol alçados a celebridade pelos aparatos do espetáculo ao qual estão sujeitos atualmente. No entanto, ele é uma releitura de um filme realizado pelo alemão Hellmuth Costard, Fussball wie noch nie [Futebol como nunca antes] (1970) no qual, em um jogo entre o Manchester United e Coventry City, sete câmeras foram direcionadas para o astro britânico George Best, camisa 11 do time de Manchester. A primeira diferença entre os filmes, porém, já se dá no número de câmeras e na tecnologia e infraestrutura empregadas. Enquanto Costard trabalhou com um baixo orçamento e poucos recursos tecnológicos, Gordon e Parreno tiveram o apoio do estúdio hollywoodiano Universal e duas das câmeras de alta definição usadas por eles eram de uso exclusivo do exército dos EUA e tiveram que ter seu uso fora do país autorizado pelo Pentágono. Do mesmo modo outros elementos saltam à vista quando comparamos os dois filmes. Um desses elementos, que é exterior aos filmes propriamente, são as diferenças de personalidade de cada jogador. Enquanto Zidane tinha comportamento explosivo dentro de campo, mas vida discreta fora dele, pode-se dizer que Best era o oposto. Bem-comportado dentro de campo, o jogador britânico teve sua vida privada exposta quase que de forma deliberada por ele próprio – gerando um outro tipo de celebridade espetacular que nunca atingiu Zidane propriamente. O alcoolismo, que levaria Best à morte precocemente em 2005, marcou sua vida e foi a principal causa dos escândalos nos quais se envolveu depois de deixar os gramados, como quando falou ao vivo para o apresentador
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da emissora britânica BBC Terry Wogan que gostava mesmo era de transar, tendo que se retratar posteriormente. Outra diferença fundamental entre os dois filmes é o uso dado à trilha sonora por seus diretores. Em Zidane... ela é quase constante e é usada para acentuar ainda mais a atmosfera do filme, dramatizando as ações do jogador e impondo uma leitura dos diretores sobre o que acontece no jogo. O canto da torcida e a narração da televisão espanhola também são usados de maneira bastante precisa ao longo do filme, pontuando os acontecimentos em campo. Já em Fussball..., a trilha sonora aparece poucas vezes e apenas pontualmente, de fato para marcar acontecimentos do jogo ou o andamento do filme. Apenas na encenação do intervalo é que ela se faz presente de maneira mais intensa. O intervalo do jogo, inclusive, é outra diferença marcante entre os dois filmes. Em Fussball... vemos Best saindo do gramado com
no alto Screen Test: Ann Buchanan (1964) de Andy Warhol
seus companheiros de time e logo ele cruza uma
acima George Best encara a câmera no intervalo
porta do que parece ser uma oficina mecânica –
do jogo de Fussball wie noch nie
um logotipo da Ford é o principal indício disso – para seguir em direção a uma sala onde ele irá encarar fixamente a câmera por alguns minutos. Seu olhar é inquieto e logo foge da câmera, para buscá-la novamente em seguida. Costard deixa clara sua intenção ao fazer isso: estamos de fato diante de um verdadeiro escrutínio da imagem do atleta, aos moldes de Andy Warhol. Sem dúvida uma referência para o diretor alemão, os Screen Test realizados na década de 1960 pelo artista pop eram filmes de quatro minutos nos quais celebridades da época encaravam a câmera o mais fixamente possível. Poucos sentem-se à vontade em tal condição, mesmo aqueles cuja profissão era a atuação diante de câmeras. Esse desconforto parece ser o tema principal de Warhol e ele reaparece aqui com Best que, de um olhar a princípio altivo logo passa a sentir-se incomodado com a presença da câmera. Outra peculiaridade desse ‘show do intervalo’ é o fato de que a cena claramente foi gravada em momento distinto daquele da partida, pois Best aparece mais barbudo do que na partida e sem uma gota de suor em seu rosto; isso reforça ainda mais a intenção de desconstrução da imagem do jogador que Costard pretende realizar.
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cena do intervalo de Zidane: un portrait du 21ème siècle
Já em Zidane..., não acompanhamos o jogador ao vestiário, ele some atrás dos colegas e uma narrativa com fatos do sábado 23 de abril de 2005 aparece na tela. “No Brasil, na praia de Ipanema um marionetista dá vida a Bob Marley. Centenas de casas são destruídas pelas piores inundações que atingiram a Sérvia-Montenegro nos últimos quarenta anos. Elian Gonzalez fala à televisão cubana. Os últimos testes do Airbus A380 são realizados no aeroporto de Toulouse. [...] Um atentado com um carro bomba deixa nove mortos em Najaf após uma escalada na violência no Iraque”. As imagens não necessariamente ilustram os fatos descritos, mas em meio aos escombros dos atentados no Iraque surge um garoto com uma camisa de Zidane, relacionando assim as diversas imagens que aparecem na tela com o jogador retratado no filme. Não apenas notícias ‘cotidianas’ são relatadas pelos artistas, mas também uma relacionada à sonda Voyager, que à época chegava à fronteira do sistema solar e outra que destaca lançamentos de jogos de videogame, por exemplo, aparecem nesse relato do sistema do espetáculo midiático do dia 23 de abril de 2005. Por fim a narrativa chega ao fim: “eu tinha que fazer alguma coisa hoje...a cúpula Ásia-África termina em Jacarta. Quem poderia imaginar que no futuro nós vamos poder nos lembrar desse dia extraordinário como um passeio no parque”. Dessa forma, os artistas reforçam a leitura que buscam dar ao filme, que seria justamente a desconstrução dos mecanismos do espetáculo que levaram à criação de uma imagem como a que Zidane possui atualmente. No entanto eles deixam menos margem de reflexão para o observador, que tem sua atenção dirigida por esses eventos, legendas e a trilha sonora que compõem o filme – no fim, nos relacionamos propriamente apenas com a imagem de Zidane. No mesmo sentido, o ‘passeio no parque’ ao qual eles se referem conforta o observador diante dos horrores expostos, do mesmo modo que a televisão faz no cotidiano como visto na parte 1.
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Em Zidane... aparecem em diferentes momentos legendas que narrariam alguns de seus pensamentos, ou pelo menos reflexões que o jogador poderia ter feito em alguma entrevista ou conversa com os diretores. Isso amplia ainda mais a identificação que ocorre entre o observador e o jogador, a aproximação descrita no começo, já que assim ‘suas’ aflições são colocadas de maneira explícita. Bastaria a imagem para que reflexões de tal sorte acontecessem, mas os artistas insistem em tornar literal a sensação que desejam provocar no público. Da mesma maneira, a apresentação de Zidane... em mostras de arte trazem outras relações entre o observador e o filme, já que ele é exibido em duas telas que separam e ampliam as ações do astro francês. A própria exibição em duas telas, também traz um efeito de readymade temporal como em obras de Gordon descritas anteriormente, já que a duração do jogo e das jogadas ganha outra dimensão em relação ao tempo no qual decorrem. Do mesmo modo a tatilidade e a sensação de proximidade, que Walter Benjamin descreve como sendo importantes características da recepção do cinema, com a imagem e seu personagem central ampliam os efeitos que em última instância são os mesmos que Costard buscava em seu Fussball... Como exposto na parte 1, os mais de trinta anos que separam as duas produções foram marcados pelo aumento vertiginoso das tecnologias de comunicação disponíveis e dos gadgets que sustentam a reprodução e a disseminação dos mecanismos da sociedade de consumo. O espetáculo globalizado alcançou quase todas as partes do globo e o futebol, como parte importante dele, faz com que uma figura como a de Zidane seja conhecida no mundo inteiro, como prova a imagem do garoto iraquiano. Do mesmo modo, a própria construção da imagem de uma celebridade tornou-se muito mais poderosa e realmente é difícil pensar em um jogador de futebol contemporâneo como uma pessoa comum, como ainda era possível na década de 1970. De qualquer forma, ambas as produções dizem muito sobre os efeitos que os aparatos espetaculares podem ter sobre as pessoas – tanto os famosos retratados por Gordon, Parreno, Costard e mesmo Warhol, quanto da população em geral que os assiste sempre extasiadas de alguma maneira pelo encanto que a imagem em movimento possui. A despersonalização que a fantasmagoria do cinema produz é de algum modo perturbada por obras como essas e por um momento o espetáculo é freado. Assim, a mesma imagem que encanta pode suscitar a reflexão sobre ele, por mais que Gordon e Parreno imponham suas próprias reflexões ao observador e façam com que a estética relacional ganhe, dessa forma, contornos totalitários moldados pelo espetáculo.
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o ar da cidade liberta: jovens artistas paulistanos “O ar da cidade liberta”, diziam no fim da Idade Média, época em que a cidade realmente abria às pessoas a porta do contato com o outro, uma das maiores marcas da modernidade. O comércio era a base da vida citadina, que logo iria assumindo papel cada vez maior na modernização social. As fábricas vieram para completar o processo, já impulsionado por diversos outros fatores, e o campesinato empobrecido e expulso de sua própria servilidade veria nas cidades a única possibilidade de sobrevivência. A Comuna de Paris, porém, revelou que a concentração e consequente troca de ideias que a cidade propiciava era perigosa para a manutenção do status quo. Daí deriva um dos novos modelos de cidade moderna que nortearia muitas outras reformas urbanas pelo mundo. Sobre a trama da cidade medieval, rasgos monumentais foram abertos ‘para facilitar’ o tráfego, mas tendo em vista também controlar as revoltas e vigiar os cidadãos. Foi essa a cidade que tanto ocupou Walter Benjamin, ao analisar sua sempre subjacente representação na poesia de Baudelaire. No entanto, estava por surgir uma segunda cidade moderna nesse preciso momento. A cidade centrípeta era o modelo de desenvolvimento urbano até então. Os deslocamentos eram os mínimos necessários e o crescimento das cidades europeias se dava muitas vezes de maneira explicitamente radial, a partir de seu centro antigo – via de regra medieval. A produção de automóveis individuais, porém, viria a desestabilizar essa história ‘linear’. A paixão pela velocidade e pelo novo que marcaram o fim da Segunda Revolução Industrial, teria o automóvel como objeto de seu ideal e as cidades seriam a partir de então construídas para ele. Como toda a história humana, esses processos nunca foram tranquilos ou incontestes, mas sempre dirigidos e proporcionados por situações específicas, e às vezes até respondendo a necessidades reais. Como vimos, uma das grandes mudanças ocorridas no começo do século XX, no entanto, é justamente a criação de necessidades para que mercadorias sejam consumidas vorazmente e o estabelecimento de um discurso unificador propalado pelos meios de comunicação de massa que demonstrava o progresso como algo linear e inevitável, como parte da evolução natural da espécie humana. O rodoviarismo que marca uma cidade como São Paulo com certeza não é algo ‘natural’, mas fruto de demandas impostas pelo capital sobre seu espaço. Sua construção é portanto fruto de um não-projeto que norteia essa forma de cidade que se reproduz pelo mundo e o transforma cada vez mais em uma grande rede urbana. As avenidas paulistanas não são resultado de um projeto previamente definido, mas são respostas – sempre ‘urgentes’ – à proliferação de automóveis despejados pela indústria e aos imperativos de uma circulação desimpedida que exigem. Edward Dimendberg, em seu The will to motorization: cinema, highways, and modernity revela como a Alemanha nazista instituiu o rodoviarismo no país por meio de intensa campanha cultural que visava justamente à criação da ‘necessidade de se ter um carro’ e que era apresentada como expressão da liberdade individual e como forma de se apossar da velocidade crescente dos
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tempos modernos. A própria construção da rede de autoestradas alemãs – as famosas Autobahn sem limites de velocidade em muitos trechos – criou a demanda por automóveis, que ainda eram muito pouco presentes na vida dos cidadãos e um luxo para poucos. Logo depois o Fusca seria lançado e as autoestradas se tornariam mais um elemento cotidiano imposto em nossas vidas. Dimendberg analisa a relação entre o cinema e as autoestradas que contribuíram para consolidar a imagem da cidade centrípeta no imaginário popular e no próprio espaço. Ele busca de tal forma desconstruir a “suposta vocação utilitarista [das autoestradas que] é imaginada como produto de engenheiros de tráfego e planejadores de transportes desinteressados”231. O primeiro momento no qual ocorre essa relação é justamente no período de construção das Autobahn alemãs logo antes da Segunda Guerra Mundial. A criação dessa necessidade é algo que os filmes de propaganda nazista da época enfatizavam bastante ao insistir nas ‘maravilhas’ das novas pistas que ainda enfrentavam controvérsias entre a população. Dessa forma, esses filmes introduziam no imaginário alemão a noção da velocidade e agilidade que as autoestradas expressavam, mesmo que a demanda ainda fosse bastante restrita. No filme há uma fala de Hitler que ilustra essa criação da demanda a partir da construção das estradas. Em meio à polêmica relacionada à construção de um trecho da autoestrada em Irschenberg, próximo a Munique, Hitler proferiu: “você acredita que não haverá tráfego quando estiver pronto? Não são os estoques que provocam a demanda, mas sim as condições que são constantemente modificáveis”, querendo dizer que a novidade inevitavelmente atrairia usuários e os automóveis se popularizariam a partir de então; é aí que entra seu projeto de carro popular que a Volkswagen consagrou em seu mundialmente popular ‘besouro’, nosso Fusca. Esse tipo de situação é bastante ilustrativo daquilo que Jameson coloca sobre o nazismo ser uma espécie de transição na sociedade ocidental entre os governos liberais e as democracias totalitárias do pós-guerras.232 De qualquer modo, o que interessa para o homem contemporâneo sobre essas colocações é justamente a desnaturalização da ideia de um ambiente urbano como produto de imperativos racionalistas e não como um processo ideológico como os outros tantos que caracterizam a sociedade. Muitos foram os artistas que buscaram dar novas possibilidades de apreensão da cidade para o público, alguns dos quais elencados na parte 1. Para uma nova geração de artistas paulistanos esse tema parece inescapável e dirige seus olhares para a essa impressionante construção que é São Paulo. Ao invés de buscar artistas que já estão inseridos no circuito de galerias e mostras de arte e portanto, já tem suas produções customizadas para satisfazer às expectativas dos colecionadores, a presente seção desse trabalho explora produções que ainda não estão completamente codificadas pelo circuito comercial da arte. Assim, Pique a.k.a. Carango Sá, Daniel Nogueira de Lima, Raphael Franco e Jan de Maria Nehring apresentam ao público
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Dimendberg, Edward. The will to motorization: cinema, highways, and modernity, em: October n° 73, verão de 1995. p. 93 [TM]
ver nota 147
olhares sobre o espaço urbano que desestabilizam a lógica com a qual estamos acostumados no cotidiano. De diferentes maneiras eles dialogam com esse espaço, seja intervindo diretamente nele, seja emulando em ambientes expositivos a experiência da vida na metrópole, esses artistas reconfiguram a representação que temos do abstrato termo ‘cidade’. A fragmentação espacial da cidade contemporânea e os fluxos do capital que produzem seu espaço – como as pulsões que nos atravessam e as quais não controlamos – fazem com que seja mais necessário do que nunca dimensionar o espaço urbano e a lógica que rege sua produção. Por meio de sua produção visual esses quatro jovens artistas paulistanos nos reintroduzem na cidade de maneira mais atenta e precavida, não permitem que sigamos no fluxo do cotidiano irrefletidamente. É a reflexão sobre esse espaço que buscam trazer para o campo das artes visuais, sempre dirigindo nosso olhar para pontos obscurecidos da realidade que nos circunda.
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Pique a.k.a. Carango Sá: (es)quinas de São Paulo Podemos dividir as obras de Pique a.k.a. Carango Sá em dois momentos bastante claros, mas que nem por isso são estanques ou rígidos, permitindo contaminações e cruzamentos entre si. O primeiro deles é o que poderíamos chamar de sua produção ‘para espaços expositivos’, composta por colagens bidimensionais e objetos tridimensionais, alguns dos quais também podem ser considerados colagens, já que são arranjos realizados a partir de elementos encontrados em caçambas ou espaços abandonados da cidade. O segundo deles é a sua série de intervenções urbanas, que como veremos também comportam uma pluralidade de modos de inserção no espaço urbano, bem como cruzamentos com seus objetos ‘para espaços expositivos’. Uma importante característica da produção dos quatro jovens artistas reunidos nessa seção aparece já aqui, que é a maneira como eles tratam a cidade como um enorme repositório de readymades que podem ser recombinados ou sintetizados e expostos em outros contextos. Assim como ocorre com esses artistas, os objetos que Pique encontra pelas ruas da cidade não apenas perturbam elementos de uso cotidiano como chaves, gaiolas ou cédulas de dinheiro antigo, mas também têm grande conotação conceitual ligada a temas essencialmente relacionados à vida em uma grande cidade capitalista. Em Qual é o preço da Liberdade? (2008), por exemplo, o artista apresenta diversas notas diferentes abarrotadas em um gaiola trancada com um pequeno cadeado, como que a nos provocar a roubá-las – por mais que estejam trancadas e sejam notas antigas e sem valor. Ao mesmo tempo, o artista acaba com o poder de compra do dinheiro, já que nem todo o dinheiro do mundo servirá para trazer felicidade ou liberdade a ninguém. Do mesmo modo, Cada coisa tem seu preço (2011) nos mostra a armadilha contida no esforço de ganhar o sustento e transforma aquela nota, presa em uma ratoeira e emoldurada, em um objeto inútil, como que reificado. Na utilização que faz do dinheiro, Carango Sá promove essa reificação, ou melhor ainda, ele promove a reificação do próprio poder de compra e da venda da força de trabalho que ele simboliza, dramatizando a relação do valor de uso com o valor de troca presente na forma-mercadoria. Inclusive é interessante pensarmos na moeda como a primeira forma de virtualização simbólica produzida em larga escala pela sociedade para ampliar as implicações envolvidas nessas obras. Se “o valor de troca [que a moeda expressa] depende da agência humana de maneiras sociais e políticas para alcançar seu significado e manter valor”233, é aí que o artista intervêm. Ou seja, na agência humana mediadora da relação entre o sujeito e o objeto dinheiro – este por sua vez é mediador entre o sujeito e o objeto que deseja comprar, consumir. É uma ação desestabilizadora de nossas próprias certezas materiais, que nos levam a trabalhar oito horas por dia em escritórios
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Betancourt, Michael. A aura do digital, in: Perissinotto, Paula [coord.]. Teoria Digital: Dez anos do FILE – Festival Internacional de Linguagem Eletrônica. São Paulo: Imprensa Oficial, 2010. p. 46
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em sentido horário a partir do canto superior esquerdo Qual é o preço da liberdade? (2008); Temprisão (2008); Greve (2008) e Cada coisa tem seu preço (2011)
desconfortáveis e padronizados, sempre em busca da promessa de felicidade que o dinheiro traz. Ao nos depararmos com a fragilidade simbólica do dinheiro essa desestabilização é aprofundada ainda mais e essas promessas se esvaziam por completo. As notas antigas reforçam ainda mais essa arbitrariedade da forma-moeda, pois nos revelam que o dinheiro nada mais é que papel impresso embutido de uma função mediadora. Temprisão (2008), por sua vez, desestabiliza outro elemento fundamental na vida imposta
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pela sociedade capitalista e intimamente ligado com a venda da força de trabalho: o tempo. Não por acaso a máxima time is money imediatamente nos vem à mente quando vemos essa obra, mas também podemos pensar nas formas mais sutis de sujeição de nosso tempo aos ritmos do trabalho e da sociedade, já que o tempo é abstração tão grande quanto o dinheiro e também uma formalização mediadora de nossa experiência sensível da realidade. Ambos são, portanto, construções humanas realizadas para disciplinar o universo do trabalho e não são palpáveis na natureza da maneira como os nomeamos, as horas e os minutos só existem pois precisamos deles para padronizar o tempo trabalhado. Já Greve (2008) chega a ser mais literal ainda em seu enfrentamento com o universo do trabalho na sociedade capitalista. Ao colocar uma carteira de trabalho sob um relógio de ponto há muito inutilizado o artista rejeita qualquer relação trazida por esse universo. Quando o observador se depara com essas situações provocadas pelo artista ele entra em contato com a relatividade de suas ações, marcadas pelo fluxo inexorável do cotidiano e de suas pressões sociais e monetárias. Na intersecção entre os dois momentos de seu trabalho, surgem as colagens de mapas realizadas por Pique e que têm origem justamente na primeira intervenção urbana que ele fez, a série Não vá se perder por aí (2007), na qual montou as páginas de um guia de ruas de São Paulo na parede de trás de uma banca de jornais com uma lupa que servia de convite à exploração desse mapa por parte do transeunte. Ao mesmo tempo em que o artista propõe um auxílio a quem passa por ali, ele dá vazão à sua própria fascinação com os mapas em um tentativa vã de apreender o espaço de uma cidade como São Paulo. Algo oposto ocorre em uma das séries mais recentes que vem desenvolvendo, A nova ordem cartográfica (2010), na qual uniu a justaposição de objetos encontrados com essas bases cartográficas que sempre lhe atraíram. A própria construção cartográfica que Pique realiza também parte do princípio da justaposição de diferentes formas urbanas, pois ele une fragmentos de mapas de diferentes cidades do mundo de modo a configurar sua própria cartografia imaginária. Sobre esse novo mapa são colados objetos que representam situações próprias da cidade, ou ainda enfrentamentos e desestabilizações em relação à sua forma. Esses objetos desestabilizadores, sobrepostos ao mapa imaginário ou genérico de uma grande cidade contemporânea, convergem no trabalho de Pique para a desnaturalização do espaço urbano que os habitantes da cidade já trazem internalizados. Se no início do século XX as grandes transformações urbanas ainda impressionavam e ‘chocavam’ os cidadãos, hoje em dia a velocidade com que se dão tais mudanças, ainda mais em uma cidade como São Paulo, são tão rápidas que passam despercebidas na maioria das vezes e parecem fazer parte da ‘natureza’ do espaço urbano. Do mesmo modo, os guias de ruas que normalmente servem para nos orientar aparecem nessa obra como arbitrários, formas que pouco querem informar. A justaposição promovida pelo artista, portanto, também abala a certeza que depositamos nas representações cartográficas, sem nos darmos conta que elas próprias são construções simbólicas humanas.
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acima à esquerda Não vá se perder por aí (2007) acima à direita mapa da série A nova ordem cartográfica (2010) abaixo objeto da série A nova ordem cartográfica (2010)
Um ponto bastante interessante na relação entre seus objetos ‘para espaços expositivos’ e suas intervenções urbanas é que, ao contrário de Não vá se perder por aí, que visava localizar o transeunte no espaço da cidade, essa sua cartografia imaginária serve para deslocalizar o observador. Acaba funcionando mais para que ele se localize em outra esfera que não a física que o circunda e de certo modo também constroem uma outra espacialidade, mesmo que apenas na recepção por parte do público. São mapas para se perder que Pique nos apresenta nessa obra, mas ao se perder neles, o observador recompõe sua própria cartografia interior de maneira autônoma, reconfigurando-a por meio de uma mediação mais livre daquela que nos é imposta pela ideologia dominante. Ao mesmo tempo parece que no espaço público seus mapas ganham uma função
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acima à esquerda De bandeja (2011) acima à direita Macroondas sonoras (2011)
social clara, a de auxiliar os passantes, enquanto que no espaço expositivo perdem essa função e atuam como verdadeiros readymades ou assamblages que abrem brechas que expõem a ideologia por trás da produção dos objetos expostos. Outra série desestabilizadora de certezas que o artista vem desenvolvendo recentemente são suas ‘máquinas’ radiofônicas, que reorganizam partes de rádios e vitrolas antigos criando objetos estranhos mas que ainda emitem sons como qualquer rádio comum. Se em De bandeja (2011), há um tom jocoso em relação aos elementos que compõem sua máquina radiofônica, pois uma xícara de café serve de caixa para os alto-falantes por exemplo, em Macroondas sonoras (2011), esse tom assume outra dimensão, posto que quem abriga o aparato mecânico da vitrola é a caixa de um microondas. Essas duas formas tecnológicas que convivem aí geram um conflito entre si, desconstruindo ambas na chave da obsolescência tecnológica à qual estão fadados os objetos industriais na sociedade de consumo. Frente aos iPods e outros aparatos individualizantes de reprodução audiovisual, Macroondas surge como oposto em sua essência, já que é um objeto personalizado retirado do circuito comercial tradicional e que não busca mais ser uma novidade que deverá ser consumida por milhões para pagar o ciclo de sua produção. Se os gadgets da sociedade de consumo espetacular, que devem ser personalizados para serem consumidos, escondem na sua aparência os componentes padronizados que os compõem, Macroondas inverte essa situação, já que personaliza algo que não terá serventia comercial. Ao mesmo tempo, ao invés de esconderem os componentes eletrônicos, revelam seu modo de funcionamento da mesma maneira que a vontade de Daniel Nogueira em expor o que está por trás da parede como será visto adiante. De bandeja, por sua vez, também ironiza essa estetização espetacular pela qual os produtos industrializados devem passar hoje em dia para ganharem o mercado e expõe ainda mais os mecanismos de funcionamento desses aparatos. Nenhum deles tampouco propõem uma
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imagens do Projeto bem-estar (2007)
experiência sonora individual, mas sim coletiva ao modo dos velhos rádios do começo do século XX que eram o ponto central das casas, criando um espaço de socialização entre os ouvintes. Também podemos associar esse desmonte dos aparatos tecnológicos a outras experiências artísticas já apontadas anteriormente como as máquinas autodestrutivas de Jean Tinguely, por exemplo, ou ainda a exposição das entranhas do mecanismo de funcionamento do aparelho televisivo que Chris Burden faz em C.B.T.V.. A maior parte das intervenções urbanas que Carango Sá realiza, por sua vez, apesar de terem implicações diferentes, não podem ser dissociadas de seus objetos. Assim como sua cartografia aparece primeiro em espaço urbano, para depois ir para o espaço expositivo, alguns de seus objetos quase que migram desse espaço para o ambiente urbano. Sua primeira aproximação a esse ambiente ainda é bastante simples, tratando-se apenas de uma apropriação criativa dos blocos de concreto que a prefeitura de São Paulo utiliza para interditar imóveis em Projeto bem-estar (2007). Apenas uma almofada, um tapete e uma pequena mesa ou mesmo um caixote já servem para que o artista transforme aquele lugar tão desprezado pelos passantes em um convite ao convívio – um verdadeiro exercício de ‘gentileza urbana’ que também aparece em Não vá se perder por aí. Ao colocar elementos de uma sala de estar em frente a um bloco de concreto que tem como função inutilizar o acesso à edificação que violou os códigos da prefeitura, Pique subverte o uso que é dado a esse objeto e propõe que os passantes que se instalem ali. Seja um travesti, um vendedor ambulante, ou mesmo um bêbado vagando pela noite do bairro boêmio paulistano da Vila Madalena, aquele local é instantaneamente ressignificado pela ação do artista e abre uma brecha – tanto espacial quanto temporal – nesse espaço que, se não fosse por isso, seria abandonado pelos circuitos urbanos. Desse modo ele é ativado e passa a compor um repertório de cenas inusitadas e poéticas que por vezes pontuam a cidade, tal como em uma ação situacionista na qual os artistas buscavam reinterpretar o uso e o conhecimento empírico do espaço urbano.
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acima à esquerda Nomadismo urbano (2006) acima à direita Xeque mate (2007) à esquerda Datilofagia (2007)
Situação diferente é a provocada pela outra série de intervenções que Pique realiza na cidade, nas quais móveis recortados são inseridos em (es)quinas da cidade. Essas obras não têm como serem utilizadas pelos transeuntes; o convite que fazem ao convívio em uma primeira apreensão, é interrompido pela impossibilidade de usar o mobiliário ali exposto. A função simbólica, no entanto pode ser considerada similar, já que também ressignifica aquele local e o passante não poderá ficar passivo diante daquela intervenção – novamente o espaço acaba sendo ativado nessa série de trabalhos de Carango Sá. Do mesmo modo, as qualidades formais da obra chamam a atenção do pedestre e participam desse processo de convite e interrupção descrito acima. Uma característica importante que aparece nesses trabalhos é a transposição de ambientes domésticos ou privados para o ambiente urbano, tais como um escritório em Datilofagia (2007 e 2011) ou uma mesa de jogos em Xeque mate (2007) e Dominado (2010). O habitante da cidade contemporânea se vê nessas obras como que sem escapatória do ambiente anônimo do espaço urbano, mesmo no retiro de seu lar. A cidade lhe invade a sala que também está aberta para o ambiente público. Mesmo que os muros que cercam sua casa lhe impeçam de ter qualquer contato visual com ela, sua presença se faz sentir, por mais que isso se dê apenas na forma de negação ou de retirada deliberada – de qualquer forma no mínimo o som da cidade irá entrar em seu quarto.
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Dominado e Datilofagia também são nomes que ampliam as implicações contidas nessa série de trabalhos. O primeiro nos apresenta uma mesa de jogo de dominó que é tão corrente como atividade de aposentados nas praças da cidade – o tratamento dado pela sociedade capitalista contemporânea aos seus idosos e anciãos ecoa de maneira inevitável nessa instalação. Mais uma vez é a sujeição do cidadão às imposições ideológicas da sociedade que o artista expõe nessa obra. Ela também lança luz na situação urbana que representa o jogo de dominó em uma praça, um dos últimos bastiões do convívio no espaço público pelos habitantes das zonas mais ricas da cidade – os outros já migraram para dentro dos condomínios de prédios que foram construídos sobre antigas casas populares. Datilofagia, por sua vez, traz um tom jocoso com o próprio procedimento utilizado pelo artista nessa série, já que todas essas instalações podem ser consideradas como uma forma de deglutição da (es)quina na qual está inserida. Ao mesmo tempo a datilografia era uma atividade que consumia milhões de pessoas em seus escritórios até meados da década de 1990 e que logo caiu em desuso com a introdução dos computadores pessoais – hoje em dia todos somos datilógrafos. Assim, não só o datilógrafo é consumido pela máquina de escrever, mas também ele e a máquina foram consumidos pelas invenções tecnológicas das últimas décadas, tendo sido abandonados pelos ciclos de produção da sociedade contemporânea. São tão obsoletos quanto os idosos em volta de uma mesa de dominó. Nomadismo urbano (2006) também é outra obra com fortes implicações que se entrecruzam. Para além do fato de inserir tal composição junto a uma ponte da marginal Tietê, o próprio título ajuda a desestabilizar algumas das relações à maneira das colocadas por essa série que foram descritas até agora. Se essas obras já não funcionam como espaços de convivência propriamente, pelo menos representam situações mais ou menos estáveis e familiares, com seus ambientes conhecidos. Nesse trabalho, porém, a situação relativamente estável colocada nas outras intervenções é interrompida, pelo fato de que o ‘dono’ daquele local está prestes a fugir com a mala colocada ao lado da mesa e da cadeira, ou então acaba de se instalar ali. De qualquer modo, o título da obra, a mala e o local escolhido para a intervenção – de passagem por excelência – representam essa situação transitória, não é uma casa permanente que é representada nesse trabalho, senão uma residência temporária tal qual vemos nas periferias de uma grande metrópole contemporânea. Os precários locatários dessas periferias é que são os verdadeiros habitantes dessa obra, situação amplificada pela presença de um mendigo com seu colchão que aparece em uma das fotografias. Nomadismo urbano também evidencia a própria condição do trabalho na sociedade contemporânea e da reprodução do capital, nômades que a cada momento podem estar em um lugar diferente de acordo com as condições financeiras oferecidas pelos estados. O observador, se chegar a ver aquele ambiente no espaço público, será instigado a refletir minimamente sobre sua condição, ali preso em um engarrafamento da hora de pico da metrópole. E caso veja o registro fotográfico em uma galeria de arte, também será colocado em contato com seu deslocamento
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e sua participação na reprodução do capital e nas dinâmicas desse capital que guiam a construção do espaço urbano. Na obra Quanto custa a liberdade? (2010), que remete diretamente ao seu objeto Qual é o preço da liberdade? fica evidente a relação que Pique estabelece entre suas intervenções no espaço urbano e seus objetos ‘para espaços expositivos’, já que a primeira é um desdobramento direto da segunda. No Quanto custa a liberdade? (2010)
entanto, além do fato de que as composições são diferentes, suas implicações também são
modificadas quando inseridas no espaço público. Se no ambiente controlado da galeria a obra tem como primeira função a desvalorização do dinheiro e a contestação de sua forma-valor, em uma (es) quina da avenida Paulista são as relações impostas pelo trabalho assalariado que ganham o primeiro plano das significações colocadas pela obra. Essas chaves e notas presas em uma gaiola se dirigem desde o princípio a um público diferente. No espaço urbano não há controle de quem irá observar aquilo como pode ser previsto em um ambiente artístico. O trabalhador que passar por ali em sua jornada de trabalho terá dificuldades, nem que apenas por um instante, de seguir no seu curso semiautômato. Alguma influência esse objeto terá na certeza que depositamos nos valores relativos ao universo do trabalho e provocará reflexões que normalmente são deixadas de lado pelas exigências do cotidiano. Sua geometria também pode ser tomada como expressão de ordem que o resto da composição parece querer negar, ampliando a dialética formal que os elementos do objeto ativam. Podemos ver dessa forma, como os trabalhos de Carango Sá se contaminam e se informam mutuamente e do mesmo modo que Chelpa Ferro, servem como estudos conceituais para trabalhos futuros e transitam entre suportes e materiais, seguindo preocupações similares entre si. Se Quanto custa a liberdade? não deixa de ser um desdobramento de Qual é o preço da liberdade? – característica que é reforçada ainda mais pela semelhança entre os títulos – não podemos dizer que este é propriamente um estudo para aquele, já que ambos funcionam como obras autônomas e independentes, apenas ao analisarmos toda a produção do artista é que essa relação fica clara. Da mesma maneira, uma leitura cronológica ou linear da produção de Pique acaba diminuída justamente por essas contaminações e cruzamentos colocados por sua produção – o próprio fato de uma obra como Datilofagia ter sido realizada duas vezes, mesmo que com algumas diferenças formais entre ambas, evidencia esse trânsito que Pique realiza dentro de sua própria produção. É interessante destacar também o modo como o artista se utiliza das tecnologias de modo geral em seu trabalho. De bandeja e Microondas são as obras que colocam essa questão de maneira mais direta,
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como descrito anteriormente. No entanto, suas intervenções urbanas iluminam outra questão relacionada às técnicas de (re)produção de imagens na arte contemporânea quando pensamos na recepção das obras por parte do público. Por estarem no espaço público e sempre cambiante da cidade, essas obras são efêmeras e têm sua duração imposta por dinâmicas que fogem ao controle do artista. Desse modo, seu registro é o que ficará para o futuro, e é difícil admitir que uma instalação dessas será colocada em um ambiente expositivo – por mais que seu formato permita isso, a obra perderia muitas de suas implicações e se tornaria um objeto artístico ‘para espaços expositivos’ simplesmente. Assim, é a fotografia o elemento da intervenção urbana que não mais existe que será exposto em uma galeria, levantando-nos a questão da força que ela terá, que seguramente será menor do que o contato direto com a obra no espaço público da cidade pois a mediação da obra pela fotografia acaba retirando parte de seu conteúdo. De qualquer forma sua representação deve ser o resíduo principal daquela intervenção e é ela que irá informar o público das colocações trazidas pelo artista.
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Daniel Nogueira de Lima: o que está por trás da parede Para compreendermos melhor as implicações trazidas pelo trabalho de Daniel Nogueira é interessante analisarmos brevemente sua monografia de conclusão de curso realizada para a Faculdade Santa Marcelina. Esse livro de artista finalizado em 2005 traz o fundamento de sua prática artística e descreve sua forma de observar e dissecar a cidade por meio de sua representação. As 17 xilogravuras que o compõe são construídas e se constroem a partir do desenho simplificado das formas da cidade, como ele próprio descreve no texto que conforma o desenho. “Certo é que meu trabalho é baseado na realidade de onde vivo. Cidade de São Paulo. Na observação da cidade é onde eu penso as relações do meu trabalho” lê-se na primeira página com a forma de uma placa de rua paulistana; logo uma citação ao cantor pernambucano Chico Science é a frase cujas letras definem o desenho de uma luz de trânsito no lado oposto: “trago as luzes dos postes nos olhos”. Essa luz que o ‘homem urbano’ de Daniel Nogueira traz em seus olhos é a mesma que ilumina as esquinas que o artista representa em seus trabalhos e que propicia o foco desconstruidor que ele irá depois passar ao papel. A desconstrução que ele realiza parte da linha como formadora do espaço urbano que será registrada como desenho no papel – que nada mais é do que linhas organizadas no espaço bidimensional. Mas suas linhas são as dos postes “que percorrem todos gravuras da monografia de conclusão de curso apresentada para a Faculdade Santa Marcelina em 2005
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os ambientes da cidade [e] possibilitam a vida aqui dentro. As linhas nos integram com inúmeros aparelhos que hoje são naturais em todos os momentos dos homens urbanos”. O artista já indica aqui sua vontade de desnaturalizar aspectos do cotidiano de uma grande cidade, bem como o uso desmesurado e hoje em dia onipresente de aparelhos eletrônicos que são ligados à alguma fonte de energia elétrica. Esses aparelhos colocam-se também como extensão de nosso corpo e mente, realizando funções antes desempenhadas por nossas mãos, e servindo eles próprios para nos conectarem com lugares distantes e também nos colocando necessidades antes inimagináveis e muitas vezes bastante supérfluas. Do mesmo modo a vida aqui dentro também parece indicar para a relação corporal com o ambiente construído estabelecida pelo artista e que ele aborda de maneira mais direta em outros trabalhos seus. Da mesma maneira pode ser lido como o corpo do habitante de uma grande cidade que a percorre como se o próprio espaço urbano fosse seu local privado. Pode ser visto ainda como o oposto, já que sob o viés dos aparatos tecnológicos, esse aqui dentro seria o espaço aprisionador dos aparelhos e do ciclo de consumo da sociedade contemporânea, do qual devemos de algum modo escapar – nem que seja apenas por meio de uma reflexão e um uso consciente deles. Assim, a linha que sai do seu corpo (como a tatuagem que decora seu braço há anos) percorre o espaço que o circunda e passa a compor a paisagem urbana que buscou registrar em seus desenhos e pinturas do começo da década de 2000. O desenho de postes e esquinas a partir das linhas que os compõem e a integração da escrita com a imagem demonstram o tipo de retrato subjetivo que o artista buscava realizar em sua monografia. A insistência de Daniel nos elementos que iluminam o ambiente urbano nessas suas primeiras obras podem dar uma pista do caminho que sua produção iria assumir, dando preferência às luzes da cidade que acabaram incorporadas em seus trabalhos posteriores. Já temos aqui dois elementos fundamentais na produção do artista: a pintura e a luz elétrica que em sua produção mais recente se combinarão de modo a nos apresentar uma outra visão da cidade, de seus elementos e da própria pintura como meio expressivo contemporâneo no ambiente controlado de uma galeria de arte, como veremos mais adiante. De seus desenhos do começo da década passada podemos destacar DES Linhas Públicas 013 (2002), que deu origem à pintura Linhas Públicas (2003), demonstrando que também para Daniel os desenhos podem como estudos, mas apenas em um segundo momento, já que inicialmente eles são obras autônomas. Eles não são necessariamente estudos formais para pinturas, mas sim estudos temáticos ou conceituais que o artista elabora no papel em um primeiro momento e depois de alguma maduração ganha outra forma na pintura – da mesma maneira que o trânsito dado por Chelpa Ferro e Pique a seus diversos objetos que participam e se transformam de diferentes maneiras. Esses registros evidenciam novamente seu interesse pelas linhas que conformam o espaço público e que nos ligam a redes muito maiores do que as cidades nas quais vivemos. Do mesmo modo seu interesse pelo corpo como indicado acima fica evidente em sua série de 2003 Ser
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Humano, composta por desenhos de figuras humanas ligadas de algum modo com os elementos da rede elétrica urbana. Posteriormente o artista voltou a abordar o corpo humano em pinturas como Ser Humano (2006) e PINT Ser Humano (2009). Se Ser Humano nos apresenta um corpo envolvido por formas geométricas e em movimento, PINT Ser Humano retrata um momento no qual o corpo já se fundiu com a rede elétrica que o circunda, e é conformado por linhas que o confundem com o poste à frente do qual está. A linguagem utilizada pelo artista também chama atenção por sua pluralidade, espontaneidade e domínio técnico. Em PINT Ser Humano, por exemplo, a técnica é bastante dirigida pelo acaso do escorrimento da tinta na superfície, mas Daniel mantém um controle muito grande sobre esse escorrimento, permitindo que ele chegue ao resultado desejado. Do mesmo modo, Ser Humano tem uma expressividade que a afasta bastante de sua produção posterior, que é mais marcada por uma retirada da figura do artista da obra à maneira das práticas ligadas às vanguardas construtivistas. Mas talvez esteja justamente aí o ponto de contato entre seu interesse pelas práticas das vanguardas construtivas e a expressividade da qual seus desenhos e pinturas parecem não conseguir escapar, como será abordado mais à frente. Da união entre o interesse ‘figurativo’ de Daniel em retratar as linhas da cidade e a função dessas linhas – iluminar as ruas e lares – deriva a série de desenhos ‘em camadas’, que pode ser considerada como um amadurecimento desses interesses e a descoberta de uma linguagem própria para seu trabalho. Nelas o artista se apropria de lâmpadas que iluminam as camadas transparentes de seus desenhos que são transformadas em layers de um programa de computador. As linhas das esquinas e das paisagens urbanas se misturam em nossos olhos e se transformam em uma malha única de fios e ângulos retos que são o que em última análise configuram esse cenário. Para quem observa o ambiente urbano com maior atenção, já disposto a dissecar esse à esquerda DES Linhas Públicas 013 (2002) ao centro Linhas Públicas (2003) à direita PINT Ser Humano (2009)
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emaranhado, as camadas surgem como uma opção singela mas bastante eficaz para revelar ao observador a visão precisa que o artista deseja lhe oferecer da cidade na qual habita. Os LLC CR (lâmpada, luz, cor – cruzamento de pontos de observação) nada mais são do que diferentes vistas de uma mesma esquina de São Paulo desenhadas em transparência e sobrepostas, iluminadas por trás por lâmpadas coloridas que realçam as linhas e acabam conformando a composição. Dessa forma os postes e os fios retratados revelam-se emaranhados ainda mais caóticos do que aqueles que vemos normalmente no ambiente urbano. Essa seria a fase mais literal de sua obra, já que ainda tratam-se de desenhos de observação cujos resultados continuam sendo representações figurativas da cidade. Do mesmo modo que em sua monografia, é a luz do poste em seus olhos que ilumina esses ambientes da cidade que ele retrata, e é essa a luz que acaba iluminando o próprio objeto que temos diante de nossos olhos. Do interesse pela geometria e pela luz é que surge também outra série de Daniel, a Homenagem a Willys de Castro (a série HOW), na qual o artista refaz alguns Objetos Ativos de Willys, mas se apropriando apenas de suas formas e inserindo luzes no lugar das cores que o artista neoconcreto utilizava. Se a ‘ativação’ do objeto de Willys se dava por meio do jogo de cores nos volumes criados pelo artista, Daniel usa a luz para fazer isso. Deste modo o artista alcança uma outra discussão do papel da pintura na arte contemporânea, já que na década de 1950 e 1960 a questão colocada pelos neoconcretos estava mais próxima da própria superação da pintura de cavalete como visto na parte 1. A tridimensionalidade e a introdução das lâmpadas nos HOW por Daniel, subverte completamente a função do Objeto Ativo de Willys e pode então ser vista como uma completa ressignificação da pintura, aceitando sua superação e buscando uma posição para ela no contexto atual. A tecnologia também acaba por tensionar a relação com o trabalho artesanal do artista, já que reposiciona de certa forma a busca construtivista por uma arte industrializada e cujo autor deveria estar ausente dela. Em HOW tudo é manual, a mão do artista se faz visível nos encaixes e no acabamento que ele dá a suas peças, aproximando assim a expressividade que traz em seus desenhos e pinturas com o interesse pelos procedimentos construtivistas de ativação das sensibilidades contemporâneas. Dessa forma, esses procedimentos ganham aliados em seu propósito de ativação e a tecnologia também pode servir para ativar um elemento inerte na parede da galeria e, tal qual um objeto de Dan Flavin, irá interferir nesse espaço no qual é inserido. Esse ambiente ‘neutro’, ao ser afetado, imediatamente se aproxima do ambiente externo, ou seja, o da cidade. Mas também não é uma preocupação tão evidente do artista em chamar atenção para a dita neutralidade desse espaço, como podia ser visto nas obras das neovanguardas da década de 1960. Trata-se mais de direcionar a atenção do observador para a construção que rege seu ambiente ‘naturalizado’ do que buscar subverter o espaço da galeria expositiva – a discussão continua sendo eminentemente urbana. Mas, para além da reprodução da ambiência urbana, a introdução das lâmpadas fluorescentes nos trabalhos de Daniel também parece nos dizer bastante dessa
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em sentido horário a partir do canto superior esquerdo HOW 004 (2009); LLC CR 002 (2009); LLC GR 002 (2011) e LLC Plano 002 (2011)
relação problemática que a pintura traz na atualidade à qual o artista sempre volta a se referir em seus trabalhos. As cores que vazam de suas obras acabam revelando um procedimento bastante pictórico, banhando o espaço que as abrigam e realizando um procedimento que na tradição artística esteve sempre reservado às pinturas. Como um quadro de Mondrian que, ao se colocar como um fragmento ou fração de um espaço maior, buscava tomar conta desse espaço social maior do que aquele circunscrito pelas bordas da tela, como visto na parte 1. Um raio de luz, no entanto, não pode ser de maneira alguma emoldurado, ou então Daniel nos mostra formas de emoldurá-lo quando recorta aberturas que direcionam o vazamento de cores das lâmpadas fluorescentes, algo que ficará mais claro em obras que serão analisadas mais adiante. PELS 006 (2011), por sua vez, já é o desdobramento dessas experiências em um trabalho que não se refere diretamente nem a uma obra de Willys, nem ao ambiente urbano propriamente, mas combina essas diferentes formas para simular uma situação bastante urbana – seria uma primeira
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síntese em sua trajetória artística. As lâmpadas fluorescentes seriam exploradas por Daniel de maneira cada vez mais direta como elemento perturbador do espaço em outros trabalhos seus. Muitas vezes derivando de seu interesse pelos meios pictóricos propriamente, outras sob formas que emulam referências urbanas e que chegam a lembrar-nos uma maquete de um edifício qualquer na paisagem paulistana, como em LLC Plano 002 (2011). Da mesma série ainda podemos destacar LLC GR 002 (2011), que também perturba o espaço da galeria, mas de novo essa perturbação está menos relacionada a um questionamento desse espaço e dirige-se de maneira mais direta ao reposicionamento da pintura nas práticas
PELS 006 (2011)
artísticas contemporâneas que ele realiza. Há ainda uma certa emulação do ambiente urbano nessa obra, que o artista novamente combina com a discussão da pintura contemporânea. Essa discussão surge também pela combinação de cores que realiza nesses trabalhos, revelando como a mistura das cores-luz (RGB) produzem cores diferentes daquelas produzidas pelas cores-pigmento (CMYK), com as quais estamos mais acostumados e cujos resultados conhecemos melhor. A cor na parede, direcionada por Daniel por meio dos chassis que ele utiliza para abrigar as lâmpadas como em LLC GR 002, ou por meio das aberturas que faz em PELS 006 ou em LLC Plano 002, nos revela uma outra forma de pintar tendo os meios tecnológicos atuais como material plástico. Nas ações de live painting realizadas pelo artista em museus ao longo dos últimos anos essa discussão reaparece de outra maneira, com o som também participando da composição. A pintura ao vivo com luzes e baterias sendo tocadas mesclam uma forma de action painting com a cacofonia das metrópoles contemporâneas, buscando aproximar esse ambiente ‘neutro’ do contexto pelo qual o habitante de uma grande cidade circula em seu cotidiano; é a cidade invadindo a galeria com suas luzes, cores e barulhos, como ocorre nas performances do grupo Chelpa Ferro. Apesar de ser outra a discussão trazida por Daniel nessas esculturas luminosas, é importante ser destacada a absorção do legado de Dan Flavin e de sua perturbação das obras vizinhas e do espaço que as abrigam, dificultando a apreensão deles por parte do público. Chama atenção uma observação realizada pelo artista em relação a essa prática estabelecida por Flavin e que pareceria já ter sido absorvida pela historiografia da arte contemporânea. Quando colocada em contato com as
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instituições artísticas, porém, a tensão que o artista minimalista provocava com suas obras parece ressurgir, pois até o momento nenhum salão artístico aceitou uma obra de Daniel que tivesse luzes, reduzindo sua média, que era de três envios para uma aceitação, a catorze envios para nenhuma aceitação.234 Isso revela o quanto as instituições artísticas estão despreparadas para receberem obras que interfiram no ambiente ‘neutro’ que buscam preservar como último reduto da arte autônoma – a cidade não é bem-vinda ali. LLC Linha e Plano (2011) também deve ser destacada nesse conjunto de obras, por se distanciar do repertório urbano que marca o trabalho de Daniel. Linha e Plano parece ser mais o desdobramento de suas homenagens a Willys de Castro e sua consequente fusão com o trabalho de Dan Flavin, outra síntese em sua trajetória. Isso deve ter surgido como uma associação quase inevitável para o artista, reforçando ainda mais a filiação do artista com a tradição construtivista nas artes e aproximando-a do século XXI por meio das implicações urbanas que trazem. Por mais que Linha e Plano seja um objeto que poderia fazer parte do cenário urbano, ele acaba sendo mais um avanço na pesquisa artística de Daniel, inclusive desde o ponto de vista da tradição modernista da pureza dos meios específicos das artes plásticas, já que tal objeto poderia ser considerado uma das essências de sua produção quando reduzida a seus elementos mínimos. Mas apenas a partir dessa ótica ‘essencialista’, já que sua produção não tem um meio específico propriamente. Cabe ainda destacar um último trabalho dessa série, o LLC Organizado (2009) que pode ser visto mais ainda como a essência dos LLC, já que nele o artista expõe as lâmpadas que iluminam seus LLC CR e os fios que as alimentam de maneira independente e organizada, sem nenhuma camada desenhada sobre elas. Novamente aparece a tensão entre o trabalho artesanal dessa obra e a frieza dos produtos industriais, algo que se destaca ainda mais pelo fato de que poucas instalações elétricas são tão organizadas como as que Daniel expõe aqui – ela pode ser considerada o extremo oposto dos ‘gatos’ que vemos nas favelas brasileiras. Ao mesmo tempo o LLC Organizado pode ser visto como uma transição entre essa série e o LLC GR 002, por exemplo, pois contém elementos de ambos, tais como as lâmpadas fluorescentes dos LLC e o chassis de madeira que envolve e determina a difusão da luz nos LLC CR. Outras obra deve ser mencionada também, já que é importante para entendermos essa trajetória aqui explicitada. É LLS (2009) (Luz Lâmpada Sombra), que depois foi renomeada como LLC Parede, tendo sido assim incluída nessa outra série. Essa insegurança do artista em classificála evidencia ainda mais seu caráter de transição entre diferentes etapas de sua pesquisa artística. É um dos primeiros momentos em que surge no trabalho de Daniel o interesse pelo uso da luz por si só, sem estar ligado a algo mais figurativo como nos LLC CR ou no PINT CA. Do mesmo modo, também podemos ver em LLC Parede algo da essência de sua produção como em LLC Organizado, já que segundo o próprio artista, sua vontade seria a de revelar “o que está por trás da 234
entrevista concedida pelo artista ao autor em São Paulo em 30.03.2012
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parede”235, ou seja os fios que trazem a energia elétrica para as lâmpadas que acendemos com um toque no interruptor. Isso reaparecerá adiante em trabalhos mais recentes do artista, ligando-se também com a questão da produção da energia. Algo interessante de ser destacado à luz dos LLC e dos LLC CR é o procedimento de desconstrução dos aparatos tecnológicos empreendido por Daniel. O artista não apenas nos apresenta um mecanismo tecnológico, senão apresenta ao público elementos que compõem esses mecanismos aos quais estamos acostumados a acessar por meio do pressionar de um botão. Em um LLC CR o desenho encobre o aparato eletrônico e se destaca, já que a luz tem essa função específica. O mesmo acontece em outros LLC, nos quais, mesmo que as luzes estejam bastante expostas, elas servem como o elemento pictórico que os LLC CR têm de uma forma mais figurativa propriamente. Em LLC Organizado a exposição das lâmpadas e dos fios, que estão escondidos nos LLC CR, faz com que eles sejam a própria essência da obra, pois estão ali para difundir luz, não para iluminar uma transparência (com ou sem desenho). Dessa forma, o próprio aparato eletrônico é exposto enquanto obra de arte, aproximando-se de objetos ordinários do cotidiano e desnaturalizando sua construção, algo com o que o público irá se defrontar e reparar suas certezas e seguranças, como também ocorre em LLC Parede. Do mesmo modo, em sua
acima LLC Organizado (2009) à esquerda LLC Linha e Plano (2011)
235
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idem
primeira exposição individual, apresentada em março de 2012 na galeria Jacqueline Martins em São Paulo, o trabalho de Daniel parece abraçar essa questão da tecnologia da lâmpada fluorescente sob uma perspectiva diferente. Nas obras da série Linha e Geometria, por exemplo, a lâmpada se confunde com o próprio mecanismo que a sustenta, como se o gás que a preenche e a faz funcionar percorresse todo o circuito dos canos de cobre. Para o observador o que ocorre é algo inverso à tentativa de desnaturalizar algo consolidado socialmente. É justamente um processo de ‘hipernaturalização’ realizado pelo artista, pois se temos uma ideia de como funciona um circuito elétrico e uma lâmpada fluorescente, esse trabalho concorre para confundir essa noção, já que lâmpada e cano de cobre tornam-se um sistema uno e parecem constituir um circuito fechado. Circuito esse que por sua vez também revela algo desconhecido até então para o observador, posto que a desestabilização que o artista propõe desses mecanismos faz com que a reflexão volte-se novamente ao aparato tecnológico e às certezas e seguranças que o envolvem. Talvez o papel da luz deva ser novamente destacado nessa obra em relação à desnaturalização realizada pelo artista, como colocado por Cauê Alves no texto que apresenta a exposição: “Tudo se passa como se a lâmpada fria formada por gases, estivesse em todo o interior do cano de padrão industrial e não apenas na parte interrompida. Como os líquidos, a luz dificilmente pode ser contida num recipiente vazado e possui sempre uma forma provisória. Ela não escorre entre nossos dedos, mas reflete o suficiente para contornar obstáculos, chegando a dissolver espaços e até as sólidas estruturas sociais. A luz não possui uma forma definida, mas está sempre pronta para reconfigurar e transformar seu entorno.”236
O crítico destaca a capacidade da luz em se espalhar pelo espaço e dessa forma, não apenas o colore e o redefine, mas também abala as certezas impostas pela ideologia dominante – essa é uma das maneiras pelas quais se dá a desnaturalização realizada pelo artista já comentada. A outra série de trabalhos expostos por Daniel na galeria Jacqueline Martins pode ser considerada um desdobramento mais direto de suas maquetes que emulam no espaço expositivo o ambiente urbano tal como em LLC Plano 002. Assim, OSOS Banco - praça pública (2012) é como que a expansão dessa obra mas com um caráter mais propositivo e funcional, já que trata-se de um modelo em escala 1:1 de um elemento do mobiliário urbano, um banco de praça no caso. O outro OSOS Banco - praça pública (2012) também pode ser entendida dessa forma, mas a estrutura vertical que une os dois bancos acaba por ampliar sua função de modelo, já que a aproxima de uma simulação e não de uma função de uso propriamente. Só poderíamos pensar que trata-se de um objeto funcional se o virmos como um totem informativo
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Alves, Cauê. Daniel Nogueira: a construção da luz, texto da exposição “Objeto Processo” de Daniel Nogueira. Galeria Jacqueline Martins: São Paulo, 2012.
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série OSOS (Olhar sentir observar sentar) acima à esquerda De trânsito acima à direita Banco - Praça pública à esquerda De trânsito à direita série Linha e Geometria - amarelo
associado ao mobiliário urbano, o que aproximaria esse trabalho de uma proposta vinda da área do desenho industrial. Esse trânsito entre o design e a arte parece ser bastante frutífero nesse caso, já que a obra será exposta em uma feira de design em breve e Daniel prepara projetos de arte pública para viabilizá-la em praças, feitas de concreto e dotadas de sistema de geração de energia elétrica próprio, como cataventos ou painéis fotovoltaicos. A geração de energia será tanto para acender as lâmpadas contidas no trabalho, como para alimentar tomadas no totem que ficarão à disposição de qualquer um que queira utilizar energia para carregar algum equipamento eletrônico ou para que um morador de rua ouça seu rádio. De qualquer modo reaparece aqui o desejo de Daniel de ‘revelar o que está por trás da parede’, ou seja, revelar os mecanismos de transmissão de energia elétrica e o funcionamento das lâmpadas em todos os seus aspectos.
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Essa obra, porém, parece estar mais próxima de um modelo mesmo, fato reforçado pelo OSOS De trânsito (2012) que vemos na entrada da galeria e que seria o desdobramento no espaço de LLC Plano 002, propondo desse modo também uma experiência temporal ao observador, mas ao mesmo tempo podendo ser a maquete de uma instalação pública. Um visitante que desconheça a trajetória de Daniel poderia crer inclusive que a maquete à frente da qual está é de um Penetrável de Hélio Oiticica. Cabe ainda uma análise mais detida sobre as implicações dessa obra. No espaço expositivo tal objeto deve ser encarado em sua relativa autonomia, como esse ‘objeto instalativo’ que ativa aquele local e banha as paredes com sua luz, remetendo-nos tanto à cidade em si quanto à tradição da pintura e das instalações nas artes plásticas. Podemos também aproximar essa situação daquela que Pique a.k.a. Carango Sá introduz em suas intervenções urbanas quando convida o transeunte para se apropriar daquele espaço, mas interrompe esse convite ao não permitir que ele faça uso dos móveis que estão encaixados na (es)quina. Se Pique simula o ambiente privado no espaço público da cidade, Daniel faz o oposto, simulando o espaço urbano no ambiente controlado de uma galeria de arte. De todo modo, estamos diante de reconfigurações das noções que temos desses espaços e que tratamos com naturalidade em nosso cotidiano. Ao mesmo tempo, sabendo do desejo do artista em inserir esse objeto em um espaço público da cidade, podemos ver como realmente estamos diante de uma maquete um pouco menor do que a escala 1:1. A obra é um modelo daquilo que será reproduzido em um praça pública, mas da mesma maneira que seus desenhos são estudos conceituais e não formais, essa maquete pode ser vista como um protótipo e a instalação pública não será necessariamente uma reprodução em escala maior dos mesmos elementos. Algo curioso que Daniel ressalta é justamente esse trânsito entre diferentes escalas expresso nesse objeto. Ao referir-se a ele o artista aponta para a série de pinturas CR demonstrando as diferentes escalas que busca reproduzir em seus trabalhos, indo do ponto de vista do pedestre que observa os fios em uma esquina nos LLC CR e chegando à escala de uso de um objeto construído em escala real que serve de protótipo para um objeto a ser inserido no espaço urbano. No meio estão os CR que são o ponto de vista de um viajante no banco de um automóvel observando a paisagem descortinar-se pela janela – Daniel congela esse instante fugaz ao representar um viaduto de uma estrada qualquer. O destaque de um elemento da infraestrutura rodoviária nos leva a pensar em outra escala ainda, a que atinge o planejamento regional, e não apenas o urbano, no qual estávamos até então. Há ainda outro ponto que merece ser destacado em relação aos CR que refere-se à pintura em si e que marca a trajetória de Daniel e a tensão que ele coloca nas práticas da tradição construtivista ao deixar exposto a marca de seu trabalho nas superfícies de suas obras. Apesar de em um primeiro momento a referência à essa tradição saltar aos olhos quando vemos um trabalho de Daniel como os HOW, uma atenção maior aos seus detalhes mostram a rusticidade do trabalho que não se encaixa muito bem em tal tradição.
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É como um traje espacial de Tom Sachs com a fita adesiva exposta, ou então a explosão que Jan Nehring coloca na parede; é o que da tradição construtivista e funcionalista ainda podemos ter quando vemos que a promessa de progresso e felicidade contida na maioria das vanguardas do começo do século XX não foi, nem será, realizada tão facilmente. Assim a decadência aparece, ainda mais se tomarmos como pano de fundo a cidade contemporânea, marcada pela falência do projeto modernista e pelo consequente triunfo do automóvel e da ‘morte’ do pedestre. Um projeto de longa duração do artista nos mostra de forma bastante particular como ele lida com esse legado e o projeta adiante. Trata-se da reprodução do quadro Esportistas (1928) do pintor suprematista Kazimir Maliévitch, no qual se veem quatro esportistas perfilados em formas bastante simplificadas. Daniel, porém, irá reproduzir a pintura com apenas três figuras, e prepara em seu corpo a base do que será o quarto esportista: uma tatuagem que reproduz as formas elaboradas pelo artista russo em todo seu tronco – o quarto elemento será o próprio artista. Assim, além da expressividade de sua pintura, ao introduzir uma pessoa na obra ele a reconfigura e dota o quadro de um elemento teatral que está longe das aspirações suprematistas, mas que no entanto parecem bastante apropriadas para o contexto atual no qual o corpo está no centro da cena e o suprematismo parece estar restrito aos livros de história da arte. Mais uma vez não há uma distinção clara entre etapas da trajetória artística de Daniel e as obras de cada fase se imbricam de tal maneira que torna-se difícil separá-las em categorias dissociadas. É notório também o fato de que o artista segue uma lógica de classificação bastante concreta e clara na nomeação de suas séries, tais como as referidas LLC (Lâmpada Luz Cor) e PELS (Pintura Espaço Luz Sombra) por exemplo. Ao realizar essa sistematização há um desejo do artista em agrupar diferentes manifestações expressas em seu trabalho, mas que pouco ou nada têm de cronológico e fogem de um conjunto claro e coerente de obras individuais, tornando muito mais interessante uma leitura transversal de sua obra do que uma análise individualizada e cronológica de seus trabalhos. Assim, a pintura e a cidade perpassam sua produção, bem como sua inescapável referência a artistas ligados aos movimentos das vanguardas construtivas do século XX. As aparências, porém, enganam o observador mais desavisado, pois seu tema no fim das contas é o ambiente urbano e a arte aparece como consequência dessas ferramentas teóricas que o artista utiliza.
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Raphael Franco: as vísceras da cidade A produção de Raphael Franco pode ser entendida como uma verdadeira dissecação da cidade contemporânea. A série fotográfica Cirurgia urbana, que o artista realizou entre 2008 e 2011, deixa clara sua intenção de literalmente expor as entranhas escondidas da cidade que aparecem quando obras de infraestrutura urbana são realizadas. Se Gordon Matta-Clark realizava suas intervenções em edifícios abandonados pelo capital na década de 1970 para depois expor o registro ou então se apropriava de locais que estavam no limite entre a produção do espaço capitalista e seu consequente abandono, Raphael Franco registra espaços em transformação que o capital considera como valiosos nas grandes cidades contemporâneas. O interesse por espaços abandonados pelo desenvolvimento urbano também são de extrema importância para o artista e foi partindo desse interesse que seu olhar se dirigiu para as transformações da cidade. Um artista que lhe serve de referência é o paulistano Rubens Mano cuja influência é notável em fotos da série Cirurgia urbana, especialmente se tivermos em mente por exemplo sua fotografia Casa Verde (1997) que registra uma casa em processo de demolição no bairro de mesmo nome na cidade de São Paulo. O procedimento artístico de Mano de um modo geral também pode ser aproximado do repertório dos artistas incluídos nessa seção, sempre tentando levando o espaço urbano ao ambiente expositivo – seja por meio de sua representação e simulação da experiência nesse espaço como em Contemplação suspensa (2008) ou pela perturbação da galeria que Mano abre ao público presente em Vazadores (2002), por exemplo. A fotografia é o principal meio do trabalho de Raphael e ele se utiliza dela de diferentes maneiras, seja apresentando o registro fotográfico em si, manipulando fotos ou então realizando fotomontagens que sempre têm em comum a representação e a desnaturalização dos espaços nelas registrados. Vale destacar sua série Vísceras (2011), um desdobramento da Cirurgia urbana que também expõe as entranhas da cidade durante grandes obras, mas cujo produto são impressões manipuladas pelo artista com aquarela sobre o papel fotográfico. Esses usos diversos que ele dá à fotografia evidenciam seu interesse pelo próprio meio fotográfico e as possibilidades de manipulação – e coisificação – da realidade que ele possui. Seja em um registro dito neutro – a fotografia em si –, ou por meio das montagens e manipulações produzidas pelo artista, a imagem torna-se mais próxima e palpável. Dessa forma, Raphael realiza seus procedimentos de desnaturalização da ideologia que regem os processos sociais por meio da desnaturalização, e também desrealização, das fotografias que utiliza em seu trabalho. Ao mesmo tempo em que expõe a lógica que rege a construção da cidade, o artista também expõe a arbitrariedade do meio utilizado para o registro dessa mesma paisagem. Foi em um edifício abandonado que Raphael realizou seu primeiro projeto de vulto em conjunto com o coletivo artístico Cadeira Branca. Projeto Apartamento (2006) foi uma tentativa
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acima fotocolagem da série Cirurgia urbana Oxford Street (W1) (2010) abaixo à esquerda série Cirurgia urbana Largo da batata (2009) abaixo à direita série Vísceras (2011)
de dar um uso a um prédio de apartamentos cuja construção foi interrompida pela falência da construtora Encol em meados da década de 1990. A estrutura de concreto armado ficou abandonada por mais de dez anos em meio a um bairro residencial da zona oeste paulistana servindo a churrascos ocasionais de estudantes da vizinha Universidade de São Paulo (USP) além de abrigo esporádico para moradores sem teto da região. A ideia do artista, depois encampada pelo coletivo, foi a de mobiliar um andar dessa estrutura com móveis encontrados em
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imagens da série Projeto Apartamento (2006)
caçambas e simular um apartamento com todos seus ambientes. Aos poucos esse apartamento foi sendo configurado como tal e em pouco tempo passou a ser usado pelos artistas e por outros frequentadores do edifício. A ‘sala de jantar’ e ‘de televisão’, o ‘quarto’, a ‘cozinha’ e até a ‘cobertura-jardim’ – na verdade restos das formas utilizadas na estrutura de concreto armado que foram abandonadas no último pavimento e criaram um substrato para que plantas crescessem – foram usados como espaço de discussões e descanso até que os verdadeiros donos do edifício conseguiram organizar-se para finalizar a construção, interrompendo a experiência estética que havia começado cinco meses antes. Hoje em dia famílias fazem seus jantares e assistem à televisão sem nem imaginarem que pouco tempo antes aquele local havia servido a propósitos tão diferentes na essência, mas ao mesmo tempo tão semelhantes em sua forma. A ideia contida nesse trabalho era justamente a de revelar a função social à qual o prédio deveria servir e induzir a vizinhança a utilizá-lo de uma maneira comunitária e como espaço de lazer e reflexão para todos. O projeto, que acabou sendo interrompido e portanto não pode ser realizado em sua totalidade, previa diversos usos para a estrutura como a criação de outros ambientes como os que chegaram a ser implementados. Além disso estavam previstas diversas ações de aproveitamento dos recursos energéticos ali disponíveis e dos elementos orgânicos que permitiram que plantas crescessem na cobertura e também nas lajes dos andares, que já se encontravam em processo de colonização por musgos e outras pequenas plantas. A ação – possibilitada e interrompida pela dinâmica da cidade capitalista – acabou ficando apenas como registro ao ser apresentada pelo artista e pelo coletivo em algumas ocasiões, mas o público não pode ter contato direto com aquele ambiente, algo que tornaria a ação mais interessante e lhe daria outras implicações. De todo modo a recepção parece sempre afetar o observador, que passa a enxergar de maneira diferente as estruturas abandonadas existentes pela cidade e chega até a pensar em adentrar esses espaços carregados de simbologias e potencialidades.
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imagens da série Habitando à esquerda Village Park (2006) à direita Herthband St, London (2006)
Nesse trabalho podemos ver dois elementos que marcariam e caracterizariam definitivamente o trabalho de Raphael. Um deles é sua fascinação por caçambas e pelos dejetos da construção de uma grande cidade, o que o levaria a vê-las como espaços que poderiam ser ocupados com fins diferentes do que o mero descarte de resíduos. Dessa fascinação é que surge a série Habitando, realizada entre 2006 e 2008. Nessa série o artista fez diferentes ações caseiras dentro de uma caçamba, como ler um jornal, tomar um café ou simplesmente sentar em um sofá que estava ali depositado ou até mesmo diretamente sobre o entulho. A série compreende fotografias tiradas no momento da ação, não podendo ser consideradas como uma performance propriamente, já que não havia o interesse do artista em provocar o passante, senão o de registrar a cena inusitada para depois expô-la e provocar o observador de maneira semelhante à que ocorre no Projeto Apartamento. É interessante também frisar que uma das primeiras fotografias que o artista incluiu na série foi realizada durante o Projeto Apartamento, Village Park (2006) e é a única que não é uma ocupação de caçamba. Essas imagens inusitadas fazem com que o observador novamente reconfigure sua visão em relação a esses objetos que fazem parte da ‘natureza’ da cidade e que simbolizam em primeira instância o descarte de materiais durante seu processo de transformação. A outra série que pode ser vista como fruto do Projeto Apartamento é Introduzindo novas espécies, realizada entre 2010 e 2011 na cidade de Londres, onde o artista reside atualmente. Dessa série, porém há outro precedente que a relaciona também com Habitando, que foi uma árvore que Raphael plantou dentro de uma caçamba cheia de terra em 2007, Plantando árvore em caçamba. Introduzindo novas espécies, no entanto, une seu interesse tanto pela vegetação que brota em meio ao concreto de uma grande cidade, como ocorria no edifício abandonado do Butantã, quanto pelos espaços abandonados pelo capital em meio às cidades contemporâneas que também caracterizava o edifício
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do Projeto Apartamento. O primeiro passo dessa série foi, inclusive, um levantamento das espécies de plantas que já existiam em um galpão abandonado da cidade de Londres após algumas visitas nas quais o artista apenas explorou aquele espaço. Depois de elencar algumas plantas, buscando seu nome científico e adicionando a eles o epíteto específico matus urbanus, Raphael passou a criar canteiros em conjunto com o grafiteiro Milo Tchais. As formas das plantas colocadas nas jardineiras que criaram se confundem com os traços orgânicos do grafite que foi realizado na ocasião. É preciso destacar ainda que a região na qual está esse galpão encontra-se no eixo no qual serão realizados os Jogos Olímpicos de 2012 e que está passando por intensa transformação. A dinâmica do capital nessa área está portanto bastante evidente e as obras são lideradas pelo poder público, na construção do Parque Olímpico, mas seguidas de perto pelo capital imobiliário, pressionando a população local – de imigrantes e ingleses com menor poder aquisitivo – a venderem seus imóveis. As plantas também forçam uma aproximação entre a natureza em si a essa ‘segunda natureza’ que rege a construção da cidade e é desnaturalizada pela intervenção do artista. Do mesmo modo que Introduzindo novas espécies pressupõe um olhar atento e quase que microscópico para cantos desses espaços abandonados, uma das séries mais recentes de Raphael, Arquitetura de canos e cabos (2011), também demanda esse olhar dirigido para os detalhes da cidade que normalmente nos passam despercebidos. Dessa forma o artista, do mesmo modo que Daniel Nogueira – é significativo o fato de Raphael tratar também dos cabos que marcam a paisagem urbana –, ilumina a cidade com seu olhar de ‘ser urbano’, fazendo com que o público também passe a olhar para esses locais com novos olhos. As fotografias resultantes dessa série acabam mostrando a poesia que podem ter as formas esquecidas da infraestrutura urbana quando atentamos para os detalhes. Novamente, elas revelam o olhar distraído e naturalizado pelo homem contemporâneo, quando ele se depara com uma montagem na qual visualiza um beco emoldurado por cabos e canos, por exemplo. Há no percurso de Raphael um momento que poderíamos considerar de transição que se deu no ano de 2009 quando o artista passou a se interessar pelos instrumentos utilizados nas reformas urbanas e nos operários que as executam. Esse interesse também deriva da série Cirurgia urbana em um primeiro momento, quando passou a registrar e elencar os papéis desempenhados por esses operários nos canteiros de obra. Desse registro surgiu a série Funções sociais dentro da cirurgia urbana (2008-2009) cujas fotografias trazem o nome da função que o trabalhador retratado está desempenhando no canteiro. Esses nomes, porém, são na maioria das vezes figurativos e não reais, já que o Guerreiro (2009) ou o Fotógrafo (2009), nada mais são do que um operário carregando pontaletes ou então mirando em uma estação total topográfica, respectivamente. Assim, novamente Raphael desnaturaliza a produção da cidade, mas por outro meio, expondo diretamente o trabalho necessário para sua realização e as relações de dominação existentes no canteiro de obras. A fantasmagoria que esconde o trabalho existente por trás das mercadorias –
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acima à esquerda Arquitetura de canos e cabos (2011) acima à direita imagem da série Função social dentro da cirurgia urbana - Guerreiro (2009)
nesse caso o ambiente urbano, que sob o capitalismo também torna-se mercadoria – é revelada de maneira direta pelo artista. Ele assim, enfrenta uma teoria corrente na atualidade de enxergar a cidade como um ‘organismo vivo’ independente das forças que regem sua produção espacial, sempre marcadas pelas contradições inerentes aos fluxos de capital. O momento de transição apontado acima coincide com a mudança do artista para Londres que mudou sua relação com o ambiente urbano e portanto teve impacto também em sua produção. Por mais que uma cidade como Londres seja planejada de um modo mais coerente com o bem-estar de seus habitantes, ficou claro para o artista que há toda uma mitologia em torno da ideia do estado de bem-estar social, ainda por cima pelo fato de estar vivendo e sentindo por si mesmo os efeitos da crise financeira que assola a Europa desde 2008. De qualquer forma, a dinâmica da construção da cidade em Londres é bastante diferente da de São Paulo. Por mais que a metrópole paulistana tenha um volume enorme de obras em andamento e áreas inteiras são completamente transformadas em muito pouco tempo, a tecnologia e as marcas disso pela cidade são muito menores do que em Londres. Lá o planejamento se dá em uma escala de décadas e ele é seguido à risca pelas autoridades públicas, dando um ar de eficiência e racionalidade que parecem ser o tema principal que interessa ao artista. A construção da cidade, no entanto, segue um padrão de otimização da circulação do capital e Raphael nos mostra que por trás desse padrão existem pessoas que seguem ordens e se organizam segundo rígidas estruturas hierárquicas. Do mesmo modo, seu interesse pelo que ele chamou de ‘instrumentos’, as máquinas do canteiro de obras, também deu origem a diversas séries fotográficas. O primeiro momento
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também foi o do simples registro dessas máquinas em meio à série Cirurgia urbana, dando origem à série Instrumentos (2008-2009). Posteriormente, partindo da ideia de simulação desses mecanismos de construção da cidade, Raphael realizou diversas fotografias com máquinas de brinquedo em cenários inusitados, como em cachoeiras de Pirenópolis, em parques londrinos ou no quintal de sua casa. Mais uma vez, esse procedimento desestabiliza a compreensão usual que temos de tais aparatos, pois quebra com a aura de eficiência produtiva que eles carregam, já que aqui elas se tornam máquinas ou instrumentos ilusórios e lúdicos e dessa forma também perdem sua função ‘produtiva’ e são transformados simbolicamente em meros brinquedos. No processo de recepção dessas imagens pelo público as máquinas ‘de verdade’ também acabam sendo contaminadas por essa carga simbólica. Ecoam aqui também as palavras de Burden sobre o papel de naturalização dos processos sociais que têm os brinquedos na educação das crianças. Ao serem apresentadas isoladas em meio à natureza simulando as funções para as quais foram produzidas, essas máquinas acabam sendo ainda mais mistificadas. Isso ocorre, porém, no mesmo momento em que são desmistificadas pela aproximação que o artista realiza delas com o observador. O título da série, Atividade, reforça ainda mais essa confusão que o artista pretende provocar, já que destaca a função de tais máquinas, mas a atividade aqui é simulada e no fim não tem propósito prático algum dentro dos circuitos da reprodução do capital. Na série Artefatos (2008), por sua vez, Raphael também interfere com a mistificação que há por trás do trabalho em grandes obras urbanas ao colocar esses mesmos tratores de brinquedo semiencobertos por areia, abandonados no que poderia ser um cenário pós-apocalíptico. Ao mesmo tempo, as posições nas quais estão os brinquedos e as relações que estabelecem entre si não dão margem à ideia de abandono propriamente, impondo uma noção de trabalho à ação. Assim, não é o simulacro de um ferro-velho o que vemos nessas imagens e a própria inutilidade desses objetos é o que chama a atenção em um primeiro momento. Outras duas séries realizadas pelo artista parecem ir nesse mesmo sentido, Alimentando (2008-2009) e Experimentações fotográficas (2006-2009). As duas também podem ser relacionadas à série Vísceras da Cirurgia urbana, já que expõem as entranhas da cidade como vísceras humanas ou animais. Em Alimentando há a simulação disso com suas máquinas de brinquedo e pedaços de carne, como se as máquinas empreendessem um embate com vísceras verdadeiras, ora ganhando, ora perdendo esse embate, como ocorre em Indigestão (2009). No caso das Experimentações fotográficas o artista força a associação entre carne ou vísceras e o espaço urbano por meio de manipulações em fotografias como realizadas na Cirurgia urbana. Seja por meio de fotomontagens ou de manipulações feitas diretamente sobre o papel fotográfico com tinta ou caneta esferográfica, Raphael busca criar a mesma estranheza que nas simulações de Alimentando, só que aqui são as máquinas reais – por vezes também quase que transformadas completamente em desenhos – que entram em embate com as vísceras da cidade, causando um estranhamento cujo pano de fundo não é simulado, mas sim a própria cidade. Do mesmo modo a carne, ou
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acima à esquerda imagem da série Artefatos (2008) acima à direita imagem da série Atividade (2009) à esquerda Alimentando - Indigestão (2009)
vísceras tomando edifícios remetem a esse embate entre o orgânico e o mecânico e sugerem ainda uma relação bastante visceral entre o próprio artista, sua obra e o ambiente urbano construído que o circunda. Novamente ele intervém nas fotografias quebrando com a noção de realidade nas imagens para transmitir essas sensações. Da mesma maneira que Adriana Varejão transforma a arquitetura e seus elementos em algo surreal quando expõe suas ‘vísceras’, Raphael faz isso na escala urbana. O trabalho de Varejão, porém, provoca muito mais repulsa no observador, já que é na escala real do espaço expositivo que ela constrói suas obras colocando o público à frente de suas próprias vísceras que escorrem da parede como em sua Azulejaria em carne viva (1999). Outro trabalho que merece destaque foi realizado dentro do programa de residência artística UNIDEE na Itália. Durante os quatro meses de 2011 nos quais residiu em Biella o artista realizou diversos projetos utilizando-se da bicicleta como meio de transporte para conhecer e mapear a região. Esse processo culminou em seu projeto final, Landscape absortion system (2011), no qual o artista acoplou uma carreta com uma câmera filmadora em sua bicicleta. A câmera está apontada para um espelho e portanto registra as costas do ciclista e os lugares por onde ele já passou e pelos quais ainda irá passar. O cenário que a câmera capta são apenas fragmentos das fachadas de edifícios e o recorte do céu definido por eles. Ao mesmo tempo é possível ver o fundo, aquilo que está atrás do espelho, ou seja, a cidade ‘real’, o que acaba perturbando a apreensão de ambas as imagens. O foco está no espelho, mas o fundo intervém nessa leitura e não sabemos mais
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para onde olhar, ainda mais pelo fato de que ambos fazem parte de um mesmo movimento, mas cujas imagens estão literalmente espelhadas. O fato de o espelho ser redondo perturba ainda mais essa apreensão. O nome também traz uma ideia de apropriação desse cenário que o artista parece pretender, como que se ao registrar essas imagens ele tomasse posse delas e do ambiente urbano, novamente trazendo à tona a relação visceral que ele tem com esse espaço. Outra vez a performance que o artista realiza não é feita para quem passa por ali, senão como forma de registro desse ambiente; a ação é realizada para produzir o vídeo que será mostrado ao público posteriormente. As imagens que temos no final do trajeto é um panorama visual e sonoro da região, mas que é perturbado pelo caráter surreal das imagens e pela música colocada na edição. O vídeo nos apresenta lampejos da paisagem urbana sem nunca revelá-la por completo e a distorção causada pelo espelho convexo também acentua a atmosfera de irrealidade presente nas imagens, agindo para desnaturalizar tanto o registro das imagens quanto o ambiente registrado nelas. Outra pesquisa que o artista começou recentemente por meio de passeios de bicicleta é o Mapping private public spaces (2011-2012), que lembra os Fake Estates de Gordon Matta-Clark. Nesse trabalho, Matta-Clark comprou diversos terrenos inutilizáveis, sobras de loteamentos, em leilões realizados pela prefeitura de Nova no alto Cyclevice (2012) à esquerda cenas do vídeo Landscape absorption system (2011)
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Iorque, os registrou e os colocou novamente no mercado, demonstrando a arbitrariedade da propriedade fundiária urbana e ao mesmo tempo satirizando o processo de construção do espaço urbano. Raphael também tem em mente a arbitrariedade da produção do espaço urbano fruto da especulação imobiliária mas nesse trabalho ele elenca os espaços que as corporações acabam cedendo ao uso público na cidade de Londres. Motivado pelos movimentos anti-globalização surgidos em 2011, primeiro em Nova Iorque e depois por diversas cidades do mundo, ele voltou seu olhar a essa forma bastante temerária de disponibilizar áreas públicas para a população. Essa tensão ficou evidente por exemplo pelo fato do Zuccotti Park, ocupado pelos manifestantes em Nova Iorque, ser de propriedade da incorporadora multinacional Brookfield Properties, e é ela, e não a prefeitura, quem tem o poder de expulsá-los por meio de reintegração de posse. Da mesma forma, a City londrina não tem espaços públicos propriamente, todos são de alguma corporação financeira que opera na região. Assim, os manifestantes acabaram sendo abrigados em frente à Catedral de Saint Paul, em uma praça cedida pela igreja. Daí surgiu sua ideia de revelar ao público a contradição que existe, já no próprio nome da lei da prefeitura novaiorquina – ‘espaços públicos de propriedade privada’ – e que garantem regalias ao construtor tais como o aumento do potencial construtivo do terreno entre outras contrapartidas dadas pelo poder público. A contradição maior, porém, está no fato de que esses espaços estão constantemente sob vigilância privada e são os agentes privados que em última instância têm o controle sobre a circulação ali. Esse trabalho de Raphael também tem a característica de ser uma ação que ele realiza de bicicleta com o apoio de suportes tecnológicos como um aplicativo em seu iPhone que registra sua rota e no qual ele marca na hora esses espaços que vai encontrando no trajeto. Outro exemplo recente do uso que o artista faz desses aparatos tecnológicos é Cyclevice (2012), obra cujo produto é um mapa com a trajetória que o artista percorreu de bicicleta durante certo tempo sempre refazendo o mesmo trajeto. As linhas vermelhas que se sobrepõem são o resultado do trajeto registrado pelo GPS de seu telefone que é transmitido para seu computador. Esse trabalho traz algo do que Daniel Nogueira diz em relação ao seu trânsito entre diferentes escalas. Apesar do trabalho de Raphael já se dar na escala da cidade, ele sempre é seu registro e representação, ou seja, está sempre na escala da fotografia, por maior que uma fotomontagem possa ser. Em Cyclevice, mesmo que seu resultado não tenha dimensões definidas a princípio, e por isso sua escala é arbitrária, o desenho se dá na escala urbana em si. É interessante no trabalho de Raphael a dimensão do trabalho colaborativo. Desde o Projeto Apartamento, até os trabalhos que realizou na Itália, a colaboração com outros artistas é muito importante, e no caso de Mapping private public spaces, não há uma colaboração propriamente, mas sim uma preocupação que surge de uma ideia de coletivo e de público que muitas vezes são utilizadas de forma equivocada pelo senso comum e que sempre merecem ser revistas de tempos em tempos. Sua mudança para a cidade de Londres também traz a ideia de uma preocupação
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mais coletiva, no sentido de que os espaços públicos lá têm uma qualidade muito maior do que os de São Paulo, mesmo podendo ser alvo das críticas já apontadas. Mas de qualquer modo, parece ser a ideia de eficiência e racionalidade que o planejamento nessa cidade transmite que mais interessam a Raphael. Ou melhor dizendo, tal racionalidade e eficiência é o alvo preferido das críticas à modernidade, e o artista entra nessa discussão registrando a força das transformações em curso na cidade que este ano receberá os Jogos Olímpicos e cujo eixo norte-sul ao leste do centro está sendo profundamente modificado com um planejamento que foi elaborado há mais de dez anos. Raphael assiste a tudo isso com um ar de incredulidade e não quer que nada fique
Experimento multigeográfico (2012)
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sem ser registrado para que no futuro possamos nos lembrar como se deu a construção da cidade que um dia nossos netos irão chamar de Londres. Mas, novamente, o próprio registro dessas transformações concorrem para que não as vejamos como naturais, muito pelo contrário, estão sujeitas à contingência como qualquer produto da ação humana. Experimento Multigeográfico: Raphael Franco e Daniel Nogueira Um trabalho que merece ser apresentado por fim é Experimento multigeográfico (2012), realizado em conjunto com Daniel Nogueira e no qual também podemos ver uma tentativa de abarcar o território da cidade na escala real e de definir os contornos de uma experiência urbana. O percurso desenhado no mapa foi registrado em tempo real por um aplicativo em seus celulares que também registra os dados expostos como altitude, tempo e velocidade. Os contornos da experiência urbana que os artistas buscam definir se revela como literal já que, ao delimitarem os anéis de circulação que envolvem as áreas mais centrais das cidades de Londres e de São Paulo, eles acabam reforçando a noção de um centro com infraestrutura consolidada na qual circulam em contraposição com uma periferia menos favorecida – por mais que as duas cidades tenham dinâmicas espaciais muito diferentes e o subúrbio londrino não possa ser considerado exatamente pobre. Inclusive aí está um dos interesses que aparece quando é estabelecida essa comparação entre as cidades. De qualquer modo a relação que ambos têm com o espaço urbano os leva à essa tentativa de abarcar em sua totalidade o território por onde circulam. Essa tarefa está inevitavelmente fadada a fracassar como o mapa em escala real descrito por Borges que encobriu todo o império e que acabou abandonado à ruína pelas gerações sucedâneas. No processo de construção dessa cartografia desmesurada, porém, muito foi revelado sobre as bases nas quais se estabeleceram os paradigmas científicos que nos trouxeram ao atual estágio de desenvolvimento humano, justamente revelando sua arbitrariedade e contingência inescapáveis. Da mesma maneira, o mapa de Raphael e Daniel nos mostra como a racionalidade instrumental gerou uma forma urbana na qual o homem perdeu seu lugar e cuja escala é quase impossível de mensurarmos.
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Jan de Maria Nehring: um lance de dados jamais abolirá o acaso O trabalho de Jan de Maria Nehring pode ser visto como o de um catador de uma grande metrópole contemporânea; é de caçambas, de construções e do lixo da cidade de São Paulo de onde ele retira a matéria prima para suas obras. A partir desses resíduos da cidade ele realiza suas composições abstratas, arranjos desses materiais ou colagens de pedaços de madeira sobre a parede. Da mesma forma que o trabalho de Pique, a produção de Jan de uma maneira geral pode ser divida em dois grupos principais: as obras realizadas no local da exposição, como seus arranjos na entrada da galeria Casa da Xiclet ou em praças da cidade, e aquelas ‘transportáveis’, quadros ou objetos a serem expostos no espaço expositivo propriamente. As obras que integram o primeiro grupo chamam a atenção por sua geometria expansiva, ou até explosiva, e formalmente também remetem às vanguardas construtivas do século XX, com suas geometrias precisas que expressavam a ordem da sociedade industrial. Como visto na parte 1, essa ordem já se mostrou bastante frágil e suas promessas de conforto material universal foram desmascaradas, e portanto as composições de Jan invertem a lógica dessas vanguardas e acabam estando mais próximas mais daquela empregada pelos dadaístas, que atacavam a ordem racional da sociedade ocidental. Kurt Schwitters é uma referência inevitável que perpassa toda a produção de Jan, algo que é reforçado também pelo papel exercido por esse artista de aproximar dadaístas e construtivistas na Alemanha antes da Segunda Guerra Mundial. O espaço criado por Schwitters em suas Merzbau pode ser diretamente relacionado com aquele que Jan estabelece em Construção e Construção II que realizou na Casa da Xiclet, em 2010 e 2011 respectivamente. O próprio nome da obra se refere às vanguardas construtivas, bem como formalmente também sugerem vagamente a organização construtivista, mas o caos que acaba tomando conta da composição sugere de modo muito mais enfático a desordem dadaísta. Podemos, portanto, dizer que esse grupo de trabalhos do artista se encaixam nesse encontro de vanguardas clássicas, atualizando seu repertório para a cidade de São Paulo no começo do século XXI. Vela (2010), outra instalação site specific também insere-se nesse conjunto, mas amplia seu alcance por se tratar de uma obra pública, realizada na praça das Corujas em São Paulo, e pelo fato de estar suspensa no ar e não presa a um suporte plano. Ela parece ser um móbile, só que fixo, emoldurado pela típica paisagem paulistana e seus elementos são menos rígidos que os das Construção e portanto mais orgânicos. O fato de estarem suspensos e unidos por fios pendentes de uma árvore também acaba por aproximá-la do ambiente no qual está inserida, reforçando ainda mais o lado dadaísta da composição. Já as Construção, com sua geometria que acompanha a arquitetura da entrada da galeria, parece ter sido lançada ao acaso ali, como se fosse uma action painting que parece ser fruto de uma composição precisamente dirigida. Mas também é daí que vem sua força expansiva ou explosiva e sua consequente aproximação com as vanguardas construtivas. Mas de qualquer modo
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acima Construção II (2011) à esquerda Vela (2010) página seguinte Gratidão (2011)
essa composição não é tão precisa, já que o próprio Jan comenta que em última instância ele “joga uma moeda” para definir alguma coisa em seus trabalhos, fazendo assim com que o jogo ou o acaso se infiltre em seus trabalhos. A tridimensionalidade que aparece nessas ‘instalações de parede’ também é interessante de ser ressaltada, pois essas obras parecem retirar-se do espaço bidimensional de uma pintura e quase que chegam a emular um espaço naquele local, claro que de maneira bastante indireta e abstrata, mas quase chegamos a acreditar que essa é a representação presente no trabalho. De qualquer modo, o próprio artista comenta sobre seu “desejo espacial”, e que não é à toa que cursa arquitetura, mas ressalta que apesar de grande parte de seus trabalhos “quererem sair [da parede] eles ainda não saem” e destaca a diferença de seu trabalho para o de Henrique Oliveira, que configura espaços de fato com suas ‘cavernas’ de tapume nas quais o visitante entra.237 Ao mesmo tempo, a representação que se oferece de maneira mais direta é a de um mapa imaginário, quando visto de frente, mas uma maquete quando visto lateralmente. Dessa forma, parece que estamos diante de um dos Quadros de Nuno Ramos, por exemplo, que não se contentam com a bidimensionalidade da tela e vão ‘escapando’ da parede. Ou então, é o próprio espaço urbano decadente e abandonado que surge desse mapa que vislumbramos aqui e, do mesmo modo como Pique nos apresenta a cidade em sua Nova ordem cartográfica, estamos diante de um mapa imaginário comum a todos os habitantes de São Paulo, que nos abrem portas 237
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entrevista concedida pelo artista ao autor em 02.05.2012
imaginárias para percorrê-los com a vista. O espaço criado por Pique em suas instalações urbanas também pode ser vislumbrado aqui, já que o espaço que Jan cria também tem uma dimensão de um convite e uma interrupção imediata na possibilidade de uso daquele local. Um trabalho recente do artista parece enfatizar ainda mais seu ‘desejo espacial’ e se insere nesse conjunto de obras site specific é Gratidão (2011), um arranjo de entulhos em uma sala comercial do edifício Copan em São Paulo, realizado para o projeto Imóvel. Esse arranjo tem linhas de força que também remetem às vanguardas construtivas mas se espacializam de maneira mais clara, chegando a configurar um espaço propriamente, mesmo que não seja possível utilizá-lo. As diagonais criadas pelo artista também modificam a apreensão que temos do trabalho, pois já não podemos interpretálo como uma representação cartográfica, parece que estamos de fato diante de uma Merzbau – diante, e não dentro como no caso das obras de Schwitters. Aparece aí novamente essa ideia de convite e interrupção ao uso daquele espaço, fato que reforça um certo pessimismo contemporâneo: como não podemos mais ter experiências que não sejam mediadas, também esse espaço não poderá ser fruído, ele está ali apenas para ser contemplado. Assim, esse impedimento estabelecido pelo artista coloca-se como uma mediação entre o observador e o espaço que ele contempla – uma mediação velada poderíamos dizer, já que o que parece ser uma aproximação direta ao objeto artístico na verdade serve como uma barreira à utilização desse espaço configurado no trabalho. Outras obras de Jan que foram realizadas para espaços expositivos tradicionais também têm a particularidade de serem uma intersecção entre ambos os momentos da produção do artista.
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O carrinho de supermercado cheio de objetos encontrados que colocou na galeria Casa da Xiclet em 2011, Chile (2010) e Escultura Bidimensional (2010) que também são a organização de materiais encontrados nas ruas da cidade, mas não são arranjos para parede, e sim objetos móveis ou até de fato transportáveis, como no caso do primeiro. Esse, inclusive é quase que um carrinho de um andarilho urbano, que carrega consigo todos seus pertences e aqueles que vai reunindo ao longo do caminho. Para Jan, no entanto, esse elemento foi coletado e serviu para coletar os objetos que contém e é deixado exposto estaticamente para a contemplação do observador – o artista não irá mais precisar dele para seguir seu caminho. Há ainda uma curiosidade sobre esse trabalho que o artista deixou no espaço expositivo para depois reorganizar os elementos que estão dentro do carrinho. A dona da galeria, porém, achou que a obra estava terminada e os dois concordaram em expô-la do jeito que estava. E assim, o que está na parede em suas instalações é agora visto como um amontoado no meio do espaço expositivo. Também Chile tem essa dimensão, apesar de que nesse caso o que vemos é quase um cesto de lixo na galeria de arte. Já Escultura Bidimensional acaba por referir-se mais à arte em si pelo seu nome um tanto ambíguo. Jan afirma inclusive que essa ambiguidade deriva de sua própria insegurança em realizar uma escultura propriamente e assumir o caráter tridimensional de seus arranjos. Mas os três realizam essa entrada dos resíduos urbanos no espaço ‘sagrado’ da galeria de arte e ao mesmo tempo, quando inseridos nele constroem uma espacialidade nova, tal como as Construção ou Vela – um espaço inusitado e impenetrável construído para que o observador se depare com a noção de espaço que traz à galeria carregada de conceitos pré-estabelecidos. Novamente esse procedimento pode ser remetido às Merzbau de Schwitters e àqueles utilizados e ampliados pelas neovanguardas da década de 1960, principalmente pelos artistas estadunidenses Gordon Matta-Clark e Robert Smithson. Ao exporem em galerias esses artistas levavam registros de outros locais por meio de elementos retirados desses lugares como um fragmento da casa demolida que Matta-Clark havia recortado, ou então a noção de site e non-site empregada por Smithson – o primeiro termo sendo relativo ao lugar dos trabalhos que realizava na paisagem e o segundo termo referindo-se aos elementos que ele expunha na galeria. É interessante notar como essas práticas de fato acabam construindo outro espaço, algo que fica bastante claro nessas obras de Jan, já que são inseridos na galeria como objetos espaciais. Mesmo uma caixa com pedras e areia de Smithson, ou um telhado de Matta-Clark, desestabilizam o ambiente expositivo pois trazem para dentro dele elementos que não lhe pertencem e que se referem a um espaço exterior a esse. Assim, cria-se uma ligação direta para fora da galeria e ela tem uma janela aberta para fora, mesmo que de maneira indireta já que caberá ao observador realizar essa conexão em última instância. É interessante notar ainda outra proximidade com a ideia de construção que Schwitters traz em Merzbau e que o próprio termo construtivismo e Construção colocam. Os materiais que Jan Nehring utiliza nessas obras, por mais diversos que sejam, acabam ofuscados pela grande
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à esquerda Carrinho de supermercado (2011) no centro Escultura bidimensional (2010) à direita Chile (2010)
quantidade de restos de tapumes e ripas de madeira, que nos remetem imediatamente a uma obra arquitetônica. Mesmo que não sejam apenas os tapumes e as ripas os elementos que se destacam, os pedaços de móveis e de cavaletes da CET (Companhia de Engenharia de Tráfego) também configuram essa emulação de urbanidade presente em seu trabalho. Seja o ambiente público ou privado, a cidade se faz presente nas obras de Jan por meio de seus resíduos, e não quaisquer resíduos, senão os resíduos que muitas vezes fazem parte do seu processo de renovação e modernização. Sendo assim, os tapumes são os índices das reformas que vemos no espaço urbano, bem como as ripas e os pedaços de cavaletes de trânsito (esses podem ampliar ainda mais as implicações que trazem), e os móveis são os indícios da modernização e transformação do ambiente privado da casa ou do escritório. Se foi possível interpretar os trabalhos de Jan até agora por meio de referências à tradição modernista das artes plásticas, o segundo grupo, por mais que formalmente também estabeleça essa relação, são muitas vezes nomeados pelo artista e acabam introduzindo um segundo nível de interpretação, ampliando as implicações e referências trazidas por eles. Desse modo, suas colagens de papel, que podem inclusive lembrar algumas de Schwitters ou de Robert Rauschenberg – outra importante referência para o artista –, ganham nomes como Mulher e Filha (2009 e 2011), que muito podem ter de pessoal para Jan, e induzem o observador a uma outra interpretação do trabalho, diferente daquela que se daria apenas por suas características formais. De todo modo, podemos afirmar que os traços femininos que vislumbramos nessa obra são reforçados por seus
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à esquerda Normal (2012) abaixo Romance (2010)
títulos e o artista nos induz a aceitá-los como a principal representação que está implícita ali. Normal (2012) é outra obra que suscita questionamentos interessantes, pois o que é normal? E ainda mais, o que há de normal em placas de acrílico coloridas pregadas sobre uma base de madeira amarela? Formalmente podemos até aproximá-la das tradições construtivistas, mas o título perturba essa interpretação e deixa as perguntas abertas para o observador responder. Da mesma maneira isso ocorre em algumas de suas montagens com objetos encontrados pela cidade, ou o que seriam suas ‘colagens tridimensionais’ – aquelas que “querem sair mas não saem da parede”. Em Romance (2010), por exemplo, não há uma referência direta ao termo que pode ser depreendida a partir da observação do trabalho; o artista novamente acaba nos induzindo a ver a obra sob esse ponto de vista e nos incita a tentar entender onde está a referência ao termo que ele propõe, como em muitos trabalhos abstratos que não se contentam com o nome de Sem Título. Dessa forma, o ‘romance’ que o artista expressa nesse trabalho poderia se dar entre os elementos ali organizados; na sobreposição das tábuas poderia haver uma dimensão erótico-romântica que Jan quer nos fazer enxergar. Ou então simplesmente esse era seu estado quando realizou a obra e não se contentou em deixá-la sem título, querendo induzir o observador a esse estado que o artista vivenciava naquele momento. De qualquer forma há um traço da poesia e ressignificação surrealistas que perturbam o entendimento corrente que teríamos da obra e assim ampliam os desdobramentos que pode ter para o público. Já Afeto (2010) tem um título mais literal, já que é uma mão acariciando um braço ‘afetuosamente’. Esse braço, porém, não tem mão e assim o
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acima Afeto (2010) abaixo à esquerda Sem título (2010) abaixo à direita Composição (2009)
trabalho torna-se mais sombrio, pois o carinho afetuoso que está cristalizado ali é na realidade autossuficiente, o dono do braço é o mesmo dono da mão, que está se auto-acariciando. Estamos num beco sem saída do afeto na contemporaneidade de tão mediado que ele está. Esse afeto mediado é como quando em uma rede social expomos nossas conquistas para nós mesmos alimentarmos nosso ego que poderá ou não receber respostas de nossos ‘amigos’ nessas redes, algo que no fim faz pouca diferença, pois pelo simples fato de compartilharmos tal informação já estamos alimentando nosso ego. É diferente por exemplo do que ocorre em Composição (2009) e Composição #7 (2009) que, assim como em Sem Título (2010), referem-se aos próprios objetos ali organizados e é o observador quem irá interpretá-los e tirar suas conclusões. Sem Título é ainda mais interessante nesse sentido pois não se trata de um arranjo feito pelo artista, senão de um objeto encontrado e exposto tal qual foi retirado da rua. Desse modo, nem o motivo pelo qual o artista o expõe fica muito claro para o observador, já que acabamos contemplando a obra por suas qualidades formais e seu caráter de dejeto da cidade, de maneira mais direta – imediada – e menos dirigida. Isso é algo que
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à esquerda Dá (2011) à direita O que aprendi com Beuys e Rauschenberg e não aprendi com Tom Sachs (2012)
ocorre em todos os seus trabalhos sem nomes figurativos propriamente; o que temos na nossa frente não é um ‘romance’, e sim uma composição de elementos retirados do lixo da cidade, que acabam se expressando por si só e levantam para o observador questionamentos em relação às implicações que geram, sejam elas formais ou conceituais. Já a obra Dá (2011), tampouco traz uma interpretação maior do que a formal, pois o nome refere-se à palavra que aparece escrita na pasta da marca de persianas Luxaflex encontrada na rua e inserida na composição. A interpretação continua sendo, portanto, aquela que temos ao observar o trabalho, o título não acentua nenhuma implicação externa à obra e acaba por reforçar a interpretação formal que teremos do objeto, mesmo que ele ainda nos remeta aos dejetos da cidade. No entanto, há uma ampliação das implicações da obra gerada pelos elementos que a compõem. Como todos que Jan usa em seus trabalhos, esses elementos já circularam pelo circuito mercantil mas acabaram sendo descartados e hoje são como que párias obstruindo o caminho do progresso – devemos levá-los para o local mais longe possível a fim de escondê-los de nossa vista. Assim, uma pasta da Luxaflex deixa essa marca da circulação mercantil mais clara já que se trata realmente de um objeto utilizado com fins comerciais. Outra obra curiosa e que une em seu título dois artistas mais ligados ao neodadaísmo e a um ‘pop contemporâneo’ é O que aprendi com Beuys e Rauschenberg e não aprendi com Tom Sachs (2012) colocando diretamente em um trabalho três das referências fundamentais para sua prática artística. E realmente essa obra está muito mais próxima de uma caixa de Beuys ou de uma assamblage de Rauschenberg do que das maquetes de Sachs. Composição sem título (2009) é outra obra interessante, pois também é um objeto achado
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apresentado pelo artista como encontrado na rua, mas cujo nome acaba induzindo o observador a pensar que a composição foi realizada pelo artista. Há assim uma quebra com a ideia de autoria que nos remete novamente aos objets trouvés e aos readymades das vanguardas do começo do século XX. Ao mesmo tempo, se suas composições são assemblages realizadas a partir desses elementos encontrados, essa obra especificamente não o é e então objeto encontrado ou o arranjo deles acaba tendo o mesmo estatuto para o artista. Pouco importa se Jan organizou os elementos ou não, o mero fato do artista inseri-los no espaço expositivo já configuram seu procedimento artístico – ele olhou para eles e os designou como portadores de alguma propriedade estética. Cadeira (2010) também foi transposta pelo artista da rua diretamente para a galeria, sem intervir nela e seu título refere-se simplesmente àquilo que o objeto é: uma precária cadeira de pedreiro. Já Composição escolar 1 (2010) e Composição escolar 2 (2009), são mais figurativos de fato, pois os elementos nelas reunidos foram retirados de algum modo do ambiente ao qual o título se refere, mesmo que também tragam por exemplo um pedaço de cavalete de trânsito que apenas no alto Cadeira (2010)
se aproxima da escola quando colocado pela
abaixo à esquerda Educação (2010)
CET na frente dela para organizar o tráfego
abaixo à direita Composição escolar 2 (2010)
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dos pais que buscam seus filhos de carro e dos pedestres que ali circulam. No entanto, há uma ironia de fundo que rebaixa o ambiente escolar ao nível dos rejeitos que encontramos em uma caçamba, seja isso fruto de uma intenção do artista ou não. Assim, a escola passa a fazer parte do mesmo ambiente que os dejetos da grande cidade, reforçando mais uma vez a falência do ideal de progresso e esclarecimento encerrados nas práticas modernistas do começo do século XX. Essa ideia aparece também em Educação (2010) que, pelo título dado por Jan, acaba nos remetendo a um livro ‘fracassado’, impossível de ser acessado e corroído pela passagem do tempo. O que está presente em seu trabalho de modo geral, bem como nos dos outros artistas reunidos nessa seção, é uma reordenação da apreensão do espaço urbano que temos normalmente. Ao inserir esses elementos que trazem a marca da circulação que tiveram na produção da cidade em espaços controlados de galerias de arte, o artista desestabiliza o observador em relação ao ambiente sempre cambiante, mas aparentemente estático que o circunda. Daí também outra dimensão interessante da força expansiva que Construção traz, já que a aparente instabilidade da obra reforça esse caráter desestabilizador que o artista traz em sua produção. É como se suas peças animassem o espaço da cidade por meio da reordenação de elementos que nela encontram-se dispersos; sua atuação tem como pano de fundo a organização fragmentária da cidade contemporânea, mesmo que o acesso que o artista dá à ela seja por meio de pedaços de tapumes ou cadeiras abandonadas pelos seus donos. Da mesma maneira esse desequilíbrio forçado que aparece aí também remete à composição lançada ao acaso e que participa de seu trabalho desde o momento fortuito no qual ele escolhe um objeto na rua para levar à galeria – o acaso dirigiu seu encontro com esse objeto e a maneira como ele irá apresentá-lo também será decida pela chance. O trabalho, e a pessoa, de Jan constantemente nos lembram que um lance de dados jamais deterá o acaso.
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conclus達o
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O roteiro teórico da parte 1 evidencia as principais transformações na cultura ocidental promovidas pela introdução dos meios de (re)produção tecnológicos na sociedade como um todo. Ele pontua também algumas contradições e conflitos entre os autores que mais se debruçaram sobre esses aspectos, evidenciando as contingências às quais qualquer teoria está sujeita. A mediação da realidade e a atrofia da experiência trazidas por essas mudanças tecnológicas não comportam definições estanques e demonstram como a evolução histórica está longe de ser um movimento linear. Da mesma maneira, as práticas artísticas analisadas, que acompanham esses desenvolvimentos, expressam diferentes posturas que sobressaem na sociedade ocidental e assim podem ser vistas como seu retrato subjetivo, ao contrário das análises teóricas que buscavam apreender verdades objetivas que muitas vezes eram encaradas como definitivas. A dialética entre a estrutura material da sociedade e as ideologias construídas para justificar seu desenvolvimento são iluminadas pelas artes visuais desde pelo menos meados do século XIX e suscitaram o debate colocado pelos pensadores da primeira parte do trabalho, aqueles que fundaram os modos de análise relativos à indústria cultural e que ainda definem seus principais modos de funcionamento – ou seja, de cooptação e de reificação. No vácuo do misticismo religioso as mercadorias e os produtos culturais acabaram sendo utilizados pelo mercado para reencantar a experiência do homem moderno – e esse encantamento enquanto epifenômeno é o que os autores reunidos nessa seção analisaram. Walter Benjamin estabeleceu um modo de olhar esses processos e enfrentar o poder de encantamento promovido pelas artes tecnicamente produzidas, aceitando como fato concreto essa nova posição da cultura na sociedade ocidental e buscando extrair dela os elementos que pudessem dar ferramentas de ação frente à alienação generalizada na qual vivemos. Mesmo depois de passado quase um século seus escritos mantém um vigor que ainda dirige-se a nós de maneira contundente. Adorno por sua vez tem um tom mais lamurioso e seus escritos refletem um pessimismo diante da cooptação promovida pela indústria cultural que parecem vislumbrar o estado de encantamento alienado generalizado que atingiríamos atualmente. De qualquer modo, as bases do desenvolvimento tecnológico que hoje assistimos multiplicar seus produtos já apareciam na Alemanha de Weimar e esses autores estabeleceram um corpo teórico inescapável para se compreender a estética contemporânea. As vanguardas artísticas do período, por sua vez, buscaram integrar novamente o homem fragmentado da modernidade, mas suas práticas ultrajantes acabaram sendo apropriadas pela estética do establishment, demonstrando que o espetáculo tem por princípio a perpétua contingência de suas formas e pode rapidamente absorver os elementos que o perturbam, resultando em um processo de ‘achatamento’ das contradições. Aquela era uma época revolucionária e inclusive foi o auge do período revolucionário que estabeleceu a burguesia como classe dominante. A democracia representativa e o ideal de igualdade entre os homens nesse contexto surge para reforçar o estabelecimento da contingência como marca maior da sociedade ocidental e desde então vivemos tentando lidar com suas
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consequências. Mas esse ideal de igualdade é administrado pela própria burguesia, servindo para controlar as representações sociais que regem o funcionamento da sociedade e que comporta disrupções pontuais que não atinjam o âmago da dominação de classes exercida por ela. Na arte essas disrupções se manifestam com maior frequência, mas são prontamente codificadas enquanto um domínio alheio à realidade social e se tornam mais uma mediação ou representação construída e logo devem ser colocadas em circulação enquanto mercadoria. As práticas artísticas apontadas ao longo desse trabalho se relacionam de diferentes maneiras com esse estado hipermediatizado instituído pela produção fabril no qual a racionalidade técnica foi convertida em performatividade e registra somente os avanços que possam gerar lucro. Mesmo sujeitas à tal lógica, as artes buscam reposicionar seus objetos e o sujeito diante da profusão de imagens que o envolvem em seu cotidiano. As mudanças das últimas duas décadas aprofundaram o sistema de dominação do espetáculo levando-o muito além do que Debord poderia imaginar na década de 1960. Hoje todos portamos aparelhos reificadores o tempo inteiro sem nos darmos conta do mundo que estamos construindo ao utilizá-los. Um mero compartilhar em uma rede social é tido como revolucionário ou progressista, mas pouco realiza de fato, senão a própria simulação de um progressismo esvaziado de conteúdo e sentido. É esse tipo de atitude que as práticas ligadas à estética relacional acabam promovendo por meio de suas configurações de comunidades harmoniosas e de sua atitude ‘positiva’. Da mesma maneira esses artistas acabam sequestrando as representações sociais do mesmo modo que os aparatos do espetáculo fazem, ao invés de incentivarem a construção dessa representação de maneira autêntica pelos indivíduos – reais e não em sua forma-consumidor. O achatamento das contradições existentes na sociedade capitalista é um dos principais efeitos culturais dos mecanismos mediadores da realidade, pois ao tornar o distante próximo, reforça sua distância enquanto diferente e exótico, codificado como folclore e portanto ‘morto’. O tensionamento dessas diferenças é algo cada vez mais necessário já que a ideologia da globalização busca justamente construir a noção de uma única cultura humana, mas impõe barreiras para que uma sociedade nesse termos de fato possa ser constituída – somente a circulação de mercadorias é livre nessa aldeia global. Os movimentos anti-globalização que surgiram no fim da década de 1990 em resposta às rodadas de negociação de livre comércio da OMC (Organização Mundial do Comércio) pareciam ser verdadeiramente progressistas, mas eles mesmos já foram codificados e retidos como uma excentricidade do sistema – mais um folclore à maneira como o comunismo foi transformado desde o fim da URSS. Assim, os movimentos Occupy..., que tomaram o mundo em 2011, participam da reificação final da transformação social e, por maior que tenha sido o impacto que tiveram em Nova Iorque ou em Oakland, não propõem mudar a sociedade de fato, apenas demandam condições mais favoráveis para a reprodução do capital. Justamente por virem na esteira de uma grave crise econômica eles parecem esvaziar-se de sentido no momento mesmo em que nascem.
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De tão atrofiada que está nossa experiência da realidade, nada mais podemos esperar das artes do que espaços de contemplação nos quais nos seja permitido apreender ângulos da realidade encobertos pelos aparatos midiáticos. Nesse sentido a internet é uma mostra da liberdade controlada à qual estamos sujeitos e onde as grandes corporações agem sub-repticiamente de modo a construir uma representação de um espaço público, mas que na verdade está mais sujeito do que qualquer outro aos controles do mercado. Atualmente, para atuar em espaços tão controlados e vigiados, inclusive por nós mesmos, é preciso estar atento e em busca de novas formas de mediação que reponham parte da individualidade perdida na contemporaneidade. Aliás, uma das maiores antinomias da pós-modernidade é justamente a contradição entre o individualismo e as individualidades. Se o individualismo é o que mais esfacela os últimos traços de uma sociedade unificada, a individualidade seria o que nos permitiria realizar os verdadeiros ideais iluministas, dotando os indivíduos de modos de dirigir suas vidas de maneira autônoma, sem representações construídas. Mas em tempos como os atuais, o que deveria ser um modo de atuação da esquerda converte-se no discurso do livre mercado irrestrito enquanto forma de liberdade individual – o libertarianismo cresce a olhos vistos em tempos de crise europeia. Em uma sociedade na qual a individualidade é marcada pela personalização de seus produtos massificados nossa representação acaba se resumindo à cor de nossos smartphones sem que nem possamos parar para pensar que existem maneiras de nos apropriarmos de nossa própria experiência. Formas de devolver as medidas adequadas da realidade são esboçadas por artistas analisados no presente trabalho e dessa maneira indicam algumas saídas para que os homens possam, pelo menos, apreender a realidade e suas próprias vidas de maneira adequada.
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