Desenhos do AnhangabaĂş AndrĂŠ Moreno Bonassa
Desenhos do Anhangabaú Universidade de São Paulo Faculdade de Arquitetura e Urbanismo Trabalho Final de Graduação André Moreno Bonassa orientadora: Vera Maria Pallamin Junho de 2015 Banca: Prof. Dr. Artur Simões Rozestraten Profa. Dra. Myrna de Arruda Nascimento Profa. Dra. Vera Maria Pallamin
Índice
0.1. Introdução
3
1810-1917
1.1. Anhangabaú da primeira metade do século XIX 1.2. O Lugar do vale 1.3. Anhangabaú da segunda metade do século XIX 1.4. Anhangabaú como barreira 1.5. Piques 1.6. Avenida São João 1.7. Rua Florêncio de Abreu 1.8. Viaduto do Chá 1.9. Fundo da cidade
5 7 9 11 13 15 17 19 21
1917-1938
2.1. Três projetos para o vale 2.2. O lugar do Parque 2.3. O parque e o entorno 2.4. Ao oeste do parque 2.5. Ao leste do parque 2.6. Ao sul e ao norte do parque 2.7. Parque Anhangabaú 2.8. Novo Viaduto do Chá
23 25 27 29 31 33 35 37
1938-1982
3.1. Plano de Avenidas 3.2. Sistema “Y” 3.3. O Lugar da avenida 3.4. Verticalização 3.5. Transporte sobre rodas 3.6. Metro 3.7. Conflito
39 41 43 45 47 49 51
1982-2015
4.1. O Concurso 4.2. A laje 4.3. O Lugar da “praça” 4.4. A partir do Viaduto do Chá 4.5. A partir do edifício Mirante do Vale 4.6. A partir do Viaduto do Chá 4.7. Eventos 4.8. Além da laje
53 55 57 59 61 63 65 67
Conclusão
5.1. A dimensão do lugar 5.2. O lugar e o entorno 5.3. O lugar e a cidade 5.4. O lugar e as pessoas
69 71 73 75
Introdução
Esse trabalho nasceu do interesse pelas possibilidades de representação na arquitetura. Durante minha formação na FAU, percebi que grande parte dos croquis, mesmo na fase inicial do projeto, se pareciam com esboços de desenhos técnicos. Dessa forma a representação de uma ideia arquitetônica acaba se orientando pelo desenho “final”, aproximando-se cada vez mais, conforme ela se desenvolve, do projeto executivo. Outras possibilidades menos assertivas não são tão exploradas. Cada ideia, conceito ou experiência se potencializa mais ou menos quando é representado de determinada maneira. Não estaríamos restringindo as possibilidades de criação ao deixarmos de explorar as formas de representar? Assim o desafio que me propus, para entrar em contato com as questões relativas a esse campo, foi o de explorar diferentes formas de se representar um lugar através do desenho. Ao longo dos últimos anos passei muitas vezes pelo Vale do Anhangabaú, principalmente devido a dois estágios que eu fiz na região, um de cada lado do vale. Se alguém perguntasse o que eu pensava daquele lugar seria difícil de responder. Por algum motivo ele causava em mim um estranhamento. Concebia apenas algumas imagens desconexas e dúvidas sobre como o lugar se tornou o que é. Dessa forma escolhi o Vale do Anhangabaú como objeto de estudo do trabalho esperando construir uma compreensão melhor do lugar e da sua relação com a cidade. O trabalho é dividido em cinco partes. As quatro primeiras tratam do vale em diferentes períodos históricos. Na última parte cada período estudado produz uma reflexão e a partir de cada uma delas é proposta uma diretriz para futuras intervenções no Anhangabaú. Espero que os desenhos possam produzir no leitor suas próprias reflexões e mostrar que as formas de representar um lugar não são simplesmente dadas, mas também um campo aberto à criação.
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1.1 Anhangabaú da primeira metade do século XIX
A cidade de São Paulo até o início do século XIX praticamente se restringia à colina situada entre dois rios: o Tamanduateí, “serpenteando através das pastagens úmidas” ¹, ao leste e o Anhangabaú, “simples fio de água” ¹ ao oeste. A colina entre os rios é praticamente plana e, em 1810, quase toda sua área já estava ocupada. Nessa época o meio de transporte dominante no interior do território paulista eram as tropas de animais de carga. São Paulo era um ponto de chegada e partida de tropas e havia se tornado o principal centro de trocas da região. “E São Paulo o que era se não um ponto de convergência de tropas? ” ². Os caminhos que iam em direção ao Paraná, Mato Grosso, Goiás e Minas Gerais estavam associados a pontos de penetração já consolidados no interior do território e às frentes de expansão da economia cafeeira. O caminho ao sul, o mais movimentado, ia até o porto de Santos por onde a produção cafeeira era escoada. O caminho ao leste seguia em direção ao Rio de Janeiro e “representava o elo de comunicação de São 1. Descrição dos rios Anhangabaú e Tamanduateí feita por Saint-Hilaire, botânico, naturalista e viajante francês. apud TOLEDO, Benedito Lima. “São Paulo: três cidades em um século”. São Paulo, Duas Cidades, 1983. p.22. 2. TOLEDO, 1983. p.17. 3. SIMÕES JR, José Geraldo. “Anhangabaú: História e Urbanismo”. São Paulo, FAUUSP, 1995 (tese de doutoramento). p.7. ____________________________________ DESENHO 1.1 Escala 1:10.000 Mapa da cidade de São Paulo em 1810. Caminho das tropas em vermelho. Rio Anhangabaú destacado. Área urbanizada em amarelo.
Paulo com o mundo civilizado da Corte Imperial” ³. Nesse contexto, o vale do Anhangabaú ocupava uma posição periférica na cidade de São Paulo. Em primeiro lugar porque até o começo do século XIX era o limite da cidade ao oeste. Em segundo lugar porque o caminho de maior importância econômica, que ia até o porto de Santos, e o de maior importância simbólica, que ia até a capital do Brasil, não cruzavam o vale.
REFERÊNCIA: Planta da Imperial da Cidade de São Paulo levantada em 1810 [http://smdu.prefeitura. sp.gov.br/historico_demografico/1872.php] Planta da Cidade de São Paulo levantada pela Companhia Cantareira de Esgotos em 1881 [http://smdu.prefeitura.sp.gov.br/historico_demografico/1872.php]
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1842
1.2 Lugar do vale
O que delimita, nesse momento, o lugar ao qual a palavra Anhangabaú está associada? A área do vale ainda não havia sido urbanizada. Ele era um limite para a ocupação da colina em que a cidade foi fundada ou um espaço à ser atravessado. Dessa forma, o nome “Anhangabaú” se associava simplesmente ao vale, sem se confundir com algum outro elemento sobreposto a ele. O vale por sua vez é delimitado por suas características topográficas. Pode se dizer então que o “lugar-Anhangabaú”⁴ coincide com o lugar do vale, ou seja, o Anhangabaú era um dado natural da paisagem.
4. O termo “lugar-Anhangabaú” é empregado no mesmo sentido em que Pablo Hereñú usa “recinto do Anhangabaú”. HEREÑÚ, Pablo Emilio Robert, “Sentidos do Anhangabaú”. São Paulo, FAUUSP (dissertação de mestrado), 2007. ________________________________ DESENHO 1.2 Escala 1:5.000 “Lugar-Anhangabaú” em amarelo seguindo o desenho da delimitação do vale no mapa. REFERÊNCIA: Mapa da cidade de São Paulo em 1842 Fonte: http://www.arquiamigos.org.br/info/ info20/i-1842.htm acessado em junho de 2015
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1881
1.3 Anhangabaú da segunda metade do século XIX
Em 1860 é organizada a São Paulo Railway Company Limited, que ficou conhecida como “Companhia Inglesa”. A empresa tinha como objetivo construir uma estrada de ferro que ligasse Santos à Jundiaí passando por São Paulo. O projeto se concretizou e em 1965 a ferrovia chega à São Paulo com a construção da Estação da Luz. Se, na primeira metade do século XIX, o principal meio de transporte de mercadorias e pessoas eram os caminhos de tropas, com a chegada da ferrovia esse quadro se altera. “São Paulo estava deixando de ser uma cidade de tropeiros. Agora, o café chegava a Santos mais rapidamente. A viagem da fazenda para a capital é rápida e confortável... O trem que desceu carregado de café pode, agora, subir com material de construção para se fazer uma casa igual àquela vista em alguma capital europeia.” ⁵. A Estação da Luz se constitui como a “entrada nobre” de São Paulo⁶ deslocando os principais acessos ao centro da cidade para o outro lado do vale do Anhangabaú, ao norte e oeste. Além disso, em 1880, começam a chegar, pela ferrovia, os primeiros materiais hidráulicos importados e na década de 1890 passa a haver maior difusão dos sistemas de água encanada para residências. Esses dois fatores contribuíram para que as chácaras ao oeste começassem a ser loteadas, expandindo, para fora da colina histórica, a cidade de São Paulo. Assim, o Vale do Anhangabaú passa a ocupar uma posição 5. TOLEDO, 1983. p.67.
central na cidade.
6. HEREÑÚ, 2007. p.25 ____________________________________ DESENHO 1.3 Escala 1:10.000 Mapa da cidade de São Paulo em 1881. Caminho da Estação da Luz até o centro da cidade em vermelho. Linha do trem em vermelho pontilhado. Rio Anhangabaú destacado. Área urbanizada em amarelo. REFERÊNCIA: Planta da Cidade de São Paulo levantada pela Companhia Cantareira de Esgotos em 1881 [http://smdu.prefeitura.sp.gov.br/historico_demografico/1872.php]
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250m
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1.4 Anhangabaú como barreira
A travessia do Vale do Anhangabaú se torna mais problemática agora que ele ocupa uma posição central dividindo a cidade em duas. O lado ao leste ficaria conhecido como “centro velho”, o lado ao oeste como “centro novo”. Cruzar o vale se tornou uma questão relativa aos deslocamentos intra-urbanos. Dessa forma, o caráter de limite que o vale tinha se transforma em barreira.
____________________________________ DESENHO 1.4 Escala 1:10.000 Mapa topográfico de São Paulo sobre mapa de 1881. Corte indicado em vermelho. REFERÊNCIA Planta Topográfica da área central de São Paulo [AB’SABER, Aziz Nacib. Geomorfologia do sítio urbano de São Paulo. São Paulo: FFCLUSP, 1957. fig.24.] Planta da Cidade de São Paulo levantada pela Companhia Cantareira de Esgotos em 1881 [http://smdu.prefeitura.sp.gov.br/historico_demografico/1872.php] GEGRAN, 1972. [Fonte da base: Bib. FAUUSP]
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1862
1.5. Piques
O caminho “Peabiru” era “uma longuíssima trilha que os índios guaranis percorriam para se deslocar de seu tradicional território (situado hoje no Paraguai) até o mar”⁷. Esse percurso cruzava o vale do Anhangabaú no local onde posteriormente seria conhecido como Piques. Segundo Benedito Lima de Toledo o nome do lugar pode estar ligado a uma numerosa família radicada na região⁸. O Piques era um dos pontos mais movimentados da cidade no século XIX. Havia muitas lojas e todos os dias dezenas de tropas chegavam e partiam de lá. Do lado oeste do rio, o obelisco, conhecido pela população como “pirâmide do Piques”, servia como um marco de referência na paisagem. Lá era o ponto de partida da estrada do Piques, atual rua da Consolação. O obelisco havia sido construído em 1814 em memória de um triunvirato que governou São Paulo naquela época. Junto à “pirâmide do Piques” havia um chafariz que abastecia de água a cidade. Do lado leste do rio, três ruas partiam do Piques em direção a colina central: a rua Dr. Falcão Filho que se juntava à rua Libero Badaró; a ladeira do Ouvidor, que ia em direção ao largo da Sé e a ladeira de São Francisco que ia até o Largo São Francisco. Sobre o pequeno volume de água do Anhangabaú passava a ponte Lorena feita de pedras.
7. SIMÕES JR,1995. p.7. 8. TOLEDO, Benedito Lima. “Anhangabaú”. São Paulo, FIESP/CIESP, 1988. p.26. ________________________________ DESENHO 1.5 Piques em 1862 visto a partir da rua Xavier de Toledo. Mapas referênciando o desenho. REFERÊNCIA: Album Comparativo da cidade de São Paulo 1862 - 1887 - 1914 Fonte: [http://hagopgaragem.com/] acessado em junho de 2015
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1887
1.6. Avenida São João
Na primeira metade do século XIX a avenida São João era a via de comunicação da cidade com as chácaras do interior paulista. Conforme essas chácaras iam sendo loteadas, a avenida se tornava mais movimentada. Até a chegada dos bondes elétricos os carros puxados por mulas cruzavam o vale pela São João. A subida era tão íngreme que era preciso atrelar mais animais para que fosse possível a travessia. Nesse momento cruzar o vale era um desafio que só seria superado com a construção de um viaduto alguns anos depois.
________________________________ DESENHO 1.6 Avenida São João em 1887 vista a partir da rua São Bento. Mapas referenciando o desenho. REFERÊNCIA: Album Comparativo da cidade de São Paulo 1862 - 1887 - 1914 Fonte: [http://hagopgaragem.com/ acessado em junho de 2015]
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1887
1.7. Rua Florêncio de Abreu
A Rua Florêncio de Abreu desde o século XVIII já era uma rota de comunicação entre a parte norte da colina e o rio Tiete⁹. Com a chegada da ferrovia a rua se torna uma importante conexão entre o centro velho e a Estação da Luz. Mais lotes são ocupados e a pavimentação é melhorada. Um enfileirado de construções ao longo da rua passa a impedir que se perceba o vale enquanto paisagem. A rua voltava suas costas para o vale e ele se relacionava com ela apenas do ponto de vista da topografia.
9. SIMÕES JR,1995. p.49. ________________________________ DESENHO 1.7 Rua Florêncio de Abreu em 1887 vista a partir da parte norte da colina histórica. Mapas referenciando o desenho. REFERÊNCIA: Album Comparativo da cidade de São Paulo 1862 - 1887 - 1914 Fonte: [http://hagopgaragem.com/ acessado em junho de 2015]
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1892
1.8. Viaduto do Chá
A transposição em nível do vale do Anhangabaú já era há muito tempo concebida na imaginação dos Paulistanos. Em 1877, Jules Martin, um litógrafo francês radicado em São Paulo, expôs na porta de sua oficina uma gravura que ilustrava uma possível travessia em nível entre a Rua Direita e o Morro do Chá. O debate público em torno do tema se intensificava e construção de um viaduto que cruzasse o vale parecia apenas uma questão de tempo para se realizar. Em 1880 a Assembleia Provincial deferiu o pedido de construção do viaduto e em 1888 sua construção foi iniciada. O viaduto contribui para a superação do Anhangabaú enquanto barreira e assinala o início da tomada de posição do poder público face às suas responsabilidades sobre as questões urbanas.¹⁰
10. BUCCI, Angelo. “Anhangabaú: o Chá e a Metrópole”. São Paulo, FAUUSP (tese de mestrado), 1998. p.15. _____________________________ DESENHO 1.8 Viaduto do Chá. Parte “alta” da cidade: preto no branco. Parte “baixa” da cidade: branco no preto. REFERÊNCIA: Planta da Cidade de São Paulo levantada pela Companhia Cantareira de Esgotos em 1881 [http://smdu.prefeitura.sp.gov.br/historico_demografico/1872.php]
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1892
1.9. Fundo da cidade
Se até 1880 o vale era ocupado apenas por ruas de travessia e edifícios ao longo delas, em 1907 boa parte dele já estava ocupada. O loteamento do Morro do Chá a oeste se estendeu até a Rua Formosa, dentro dos limites do vale. Ao norte da Avenida São João, o vale passava por um intenso e desordenado processo de ocupação. A parte entre o Piques e a Avenida São João havia sido completamente cercada pelas casas da Rua Libero Badaró e da Rua Formosa. O fundo das casas dava para o que havia sobrado do vale. Lá, o pequeno volume de água do Anhangabaú corria por entre áreas de plantação. Esse local não era visível para quem estava nas ruas. Na publicação “Melhoramentos da Capital”, a situação é descrita do ponto de vista de quem cruza o vale pelo Viaduto do Chá: “Effectivamente, quem, naquela época, se dirigia da cidade para o Theatro via, como primeiro plano do panorama, os fundos das casas da rua Formosa; quem, vindo dos lados do Theatro, entrava na cidade avistava os fundos das casas da face correspondente as ruas Libero Badaró e Dr. Falcão. Não podiam, pois, os dirigentes dos negócios municipais deixar de corrigir o péssimo efeito que produzia o estado em que se achava o valle do Anhangabaú.” ¹¹ 11. Trecho da publicação “Melhoramentos da Capital 1911-1913”, apud TOLEDO, 1983. p.67. ________________________________ DESENHO 1.9 Parte do Vale do Anhangabaú, em amarelo, cercada pelo Piques, Rua Formosa, Avenida São João e Rua Libero Badaró.
Com o crescimento de São Paulo, a cidade voltou suas “costas” para o vale do Anhangabaú. As ruas que cruzavam e cercavam o vale voltavam o fundo de suas edificações para ele. O Anhangabaú foi uma área à espera de mais ruas e edifícios e depois se torna um resquício que não pode ser ocupado.
REFERÊNCIA: Planta cadastral elaborada pela Diretoria de Obras da Prefeitura Municipal de São Paulo para o “Projecto de melhoramentos da zona limitada pelas ruas Libero Badaró, São João, Formosa, Largo do Riachuelo e Ladeira Dr. Falcão”, com data de 15 de outubro de 1907. [HEREÑÚ, 2007. P.80] Planta da Cidade de São Paulo 1895 [http://smdu.prefeitura.sp.gov.br/historico_demografico/1890.php]
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Freire-Guilhem
Samuel das Neves
Bouvard
2.1. Três projetos para o vale
Augusto Carlos da Silva Telles, engenheiro formado na Escola Politécnica do Rio de Janeiro, foi vereador na Câmara Municipal de São Paulo entre 1905 e 1911. Em 1906 publica o estudo “Os melhoramentos de São Paulo” propondo algumas intervenções na cidade, entre elas a reformulação do espaço do Anhangabaú. O estudo recomendava a desapropriação das edificações da Rua Líbero Badaró e da Rua Formosa voltadas para o vale, possibilitando transformar aquele espaço em “um sitio encantador” ¹. A equipe de engenheiros da Diretoria de Obras Municipal, que contava com Victor Freire e Eugênio Guilhem, desenvolve um projeto a partir das ideias de Telles, propondo um grande parque público no Anhangabaú. Devido à falta de recursos para a implantação do projeto, a prefeitura se vê obrigada a pedir um reforço orçamentário para o governo do estado que em meio a um grande debate sobre o futuro do Anhangabaú, contrata o arquiteto Samuel Augusto das Neves para elaborar um projeto alternativo. O projeto de Neves estava muito mais alinhado com os interesses dos grandes proprietários da região como, por exemplo, o Conde de Prates que era seu amigo pessoal². 1. TELLES, Augusto Carlos da Silva, 1907. apud HEREÑÚ, 2007. p.81 2. HEREÑÚ, 2007. p.95 _____________________________ DESENHO 2.1 Esquema com as três propostas para o Vale do Anhangabaú. REFERÊNCIA: Planta da proposta de Victor da Silva Freire e Eugênio Guilhem. [HEREÑÚ, 2007. P.90] Planta da proposta de Samuel das Neves [HEREÑÚ, 2007. P.95] Planta dos melhoramentos para o Vale do Anhangabaú elaborada por Bouvard. [SIMÕES JR, 1995. fig.94.] SARA, 1930. [Fonte da base: Bib. FAUUSP]
Uma grande avenida cruzaria o vale do Anhangabaú comprometendo o projeto de um parque público e valorizando as propriedades nas ruas Libero Badaró e Formosa que não seriam mais desapropriadas. Para a resolução do conflito entre esses dois projetos tão divergentes, o vereador Alcântara Machado sugere convidar o experiente e internacionalmente respeitado urbanista francês Joseph Antoine Bouvard para ser o árbitro da disputa. Bouvard desenvolve um projeto conciliador, porém mais próximo da proposta da prefeitura. O Anhangabaú teria um caráter de parque, mas seriam permitidas algumas edificações ao longo dele cedendo parcialmente ao interesse dos grandes proprietários. O projeto é aceito e sua implantação é concluída em 1917.
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1930
2.2. O lugar do Parque
Com exceção do trecho em que foi construído o Parque Anhangabaú, a maior parte do vale foi ocupada de forma desordenada ,dificultando a percepção de seus limites topográficos. O nome “Anhangabaú” passa a se associar de forma mais intensa ao parque onde é possível perceber uma unidade paisagística. Assim, o “lugarAnhangabaú” diminui suas dimensões consideravelmente deixando de estar associado à totalidade do vale.
_____________________________ DESENHO 2.2 Escala 1:5.000 “Lugar-Anhangabaú” em amarelo REFERÊNCIA: SARA, 1930. [Fonte da base: Bib. FAUUSP]
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1930
2.3. O parque e o entorno
Se antes o Anhangabaú era uma barreira para os deslocamentos na cidade, essa condição é superada, pelo menos no trecho do vale onde foi implantado o parque. O Parque Anhangabaú articula os espaços públicos do entorno criando um “sistema de espaços livres”.
_____________________________ DESENHO 2.3 Escala 1:2.000 Articulação com os espaços do entorno REFERÊNCIA: SARA, 1930. [Fonte da base: Bib. FAUUSP]
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2.4. Ao Oeste do parque
Já no final do século XIX, São Paulo recebia um número expressivo de companhias teatrais estrangeiras, porém não havia nenhuma instalação que correspondesse às expectativas das elites econômicas. Havia um desejo de se construir um teatro que representasse a prosperidade econômica proveniente do ciclo do café e a superação do passado colonial. Para responder a esses anseios é iniciada em 1903 a construção do Theatro Municipal, projeto de Ramos de Azevedo, Claudio Rossi e Domiziano Rossi. Em 1911 o teatro é inaugurado diante de uma multidão de 20 mil pessoas. Do Parque Anhangabaú era possível avistar o imponente Theatro Municipal ao oeste. Eles se conectavam por uma grande área verde com caminhos curvos e inclinados. Se antes o vale era dificilmente acessado e os edifícios davam seus fundos para ele, agora essa situação se reverte. O Parque do Anhangabaú se consolida como um dos lugares mais valorizados de São Paulo.
_____________________________ DESENHO 2.4 Theatro Municipal ao oeste do Anhangabaú REFERÊNCIA: TOLEDO, Benedito Lima. “Anhangabaú”. São Paulo, FIESP/CIESP, 1988. (fotos do livro)
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2.5. Ao Leste do parque
O projeto de Bouvard previa a construção de dois edifícios na Rua Libero Badaró com a mesma volumetria, fachadas principais voltadas para o parque e implantados no alinhamento do Theatro Municipal. Nas extremidades do conjunto dois caminhos desciam conectando a rua diretamente ao parque. Um deles partia da Praça do Patriarca, aberta em 1924, conforme Freire e Guilhem haviam proposto. Apesar da construção de edifícios desse lado da Libero Badaró ter sido fortemente contestada, Bouvard soube resolver a situação sem criar uma barreira que dividisse completamente o parque da rua.
_____________________________ DESENHO 2.5 Praça do Patriarca Palacetes da Líbero Badaró REFERÊNCIA: TOLEDO, Benedito Lima. “Anhangabaú”. São Paulo, FIESP/CIESP, 1988. (fotos do livro)
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2.6. Ao Sul e ao Norte do parque
O parque conectava em nível, no sentido norte-sul, o Largo da Memória e a Praça do Correios. Apesar de ele ocupar apenas uma parte do vale havia uma forte continuidade espacial com seu entorno. Seus limites não eram tão claros, era como se ele se formasse gradualmente a partir de um lugar e se diluísse em outro. A divisão antes tão marcada entre o que sobrou do vale e cidade que o cercou foi superada com a construção do Parque Anhangabaú.
_____________________________ DESENHO 2.6 Vista a partir do parque em direção a Praça dos Correios Vista a partir do Viaduto do Chá em direção ao Piques REFERÊNCIA: TOLEDO, Benedito Lima. “Anhangabaú”. São Paulo, FIESP/CIESP, 1988. (fotos do livro)
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2.7. Parque Anhangabaú
A construção do parque altera profundamente a relação da cidade com o vale do Anhangabaú. O lugar em que antes era apenas atravessado se torna lugar de permanência. Em algumas vias passavam automóveis, mas em quantidade pequena, possibilitando ao pedestre caminhar tranquilamente pelos caminhos sinuosos. Havia áreas gramadas, bancos, árvores e algumas esculturas pelo parque. O vale do Anhangabaú, pelo menos no trecho do parque, havia se tornado “um sitio encantador” como queria Silva Telles.
_____________________________ DESENHO 2.7 Vistas de dentro do Parque Anhangabaú REFERÊNCIA: TOLEDO, Benedito Lima. “Anhangabaú”. São Paulo, FIESP/CIESP, 1988. (fotos do livro)
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1938
2.8. Novo Viaduto do Chá
Com o aumento do tráfego de veículos a partir dos anos 30 inicia-se uma discussão sobre a substituição do Viaduto do Chá. Argumentava-se que os vãos da estrutura não comportariam uma iminente ampliação da via que passava sob o viaduto. Angelo Bucci diz que o principal fator que contribuiu para a substituição do viaduto foi um preconceito estético encabeçado por Prestes Maia já que as justificativas técnicas não eram condizentes ³. De qualquer forma, em 1934 é realizado um concurso para definir as diretrizes de um novo projeto. O engenheiro-arquiteto Elisário Antônio da Cunha Bahiana vence o concurso. O novo viaduto teria 25 metros de largura, um vão grande de 64 metros e dois vãos secundários de 17,50 metros e seria implantado imediatamente ao lado do antigo de forma que este pudesse continuar funcionado até o final das obras. O novo projeto acaba alterando substancialmente a relação entre a parte alta e baixa do vale. As rampas que partiam do Theatro Municipal e da Praça do Patriarca em direção ao vale foram perdidas para que o novo viaduto fosse implantado. O acesso ao oeste foi substituído por uma pequena escada na cabeceira do viaduto. O acesso ao leste foi substituído por uma passagem subterrânea que ficaria conhecida como Galeria Prestes-Maia.
3. BUCCI, 1998. p.56. _____________________________ DESENHO 2.8 Planta e corte do novo Viaduto do Chá
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3.1. Plano de Avenidas
Em 1929 o prefeito Pires do Rio solicita aos engenheiros Prestes Maia e Ulhôa Cintra uma proposta viária para São Paulo que estruturasse o crescimento da cidade priorizando o automóvel e o ônibus como meio de transporte. No ano seguinte a dupla publica o “Plano de Avenidas”. O trabalho propunha um sistema de avenidas radial-concêntrico. O centro da cidade seria o lugar de onde partiriam as avenidas radiais que conforme se afastavam eram cruzadas sucessivamente por anéis viários concêntricos. Além do caráter técnico do plano havia também uma preocupação estética com a cidade que aparece claramente nos desenhos de Prestes Maia. O Anhangabaú se localizava no centro desse esquema. No vale, o trafego no sentido norte-sul seria pequeno, pois os veículos contornariam o centro através de um sistema de avenidas formando um anel. Dessa forma o Anhangabaú foi pensado como um “recinto fechado” atravessado por uma avenida que naquela região se dissimulava em parque.
____________________________________ DESENHO 3.1 Montagem com desenhos do Prestes Maia REFERÊNCIA: Pormenor do Plano Geral dos Melhoramentos Centrais. [HEREÑÚ, 2007. P.180] Parque Anhangabaú segundo Prestes Maia [HEREÑÚ, 2007. P.182]
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3.2. Sistema Y
Oito anos após a publicação do Plano de Avenidas, Prestes Maia é nomeado prefeito de São Paulo. Entre os anos de 1938 e 1945, em que ele ocupou o cargo, foram realizadas diversas obras de acordo com as ideias contidas no plano. As futuras gestões prosseguiram com as intervenções dentro do modelo consolidado por Prestes Maia. Em relação ao Anhangabaú a proposta do Plano de Avenidas não pôde ser realizada. O Anhangabaú segundo o plano de Prestes Maia além de ser “sala de visitas” da cidade também era o ponto de entroncamento de três avenidas: Tiradentes, 23 de Maio e 9 de Julho. Essas avenidas formavam o sistema “Y” fazendo a ligação norte-sul da cidade. Supunha-se que o destino da maior parte das viagens pelas radiais seria o centro e que a demanda de travessia era secundária. Dessa forma se imaginava um fluxo de veículos no entroncamento do sistema “Y” em que fosse possível conciliar parque com avenida. No entanto, já naquela época, pensar o trafego pelo centro no sentido norte-sul como secundário não condizia com a realidade. O desenho de Prestes Maia para o Anhangabaú não estava de acordo com a função que ele desempenhava dentro do plano. As avenidas do sistema “Y” precisariam ser muito mais largas para acomodar o grande fluxo de veículos cruzando o vale. Dessa forma o Anhangabaú não pode ser Parque-Avenida. O fundo do vale é completamente asfaltado.
____________________________________ DESENHO 3.2. Sistema “Y”, perspectiva sobre mapa GEGRAN. REFERÊNCIA GEGRAN, 1972. [Fonte da base: Bib. FAUUSP]
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1972
3.3. Lugar das Avenidas
Na época do parque, a Rua Anhangabaú seguia aproximadamente o antigo curso do rio. No trecho em que ela passava pelo parque a rua seguia um caminho sinuoso para atravessa-lo. Dentro da lógica do sistema “Y”, essa via foi gradualmente alargada a partir de 1938 recebendo o nome de Avenida Prestes Maia e ocupando todo o fundo do vale. A identidade do Anhangabaú passa a ser definida pela avenida. Dessa forma o lugar recupera sua dimensão no sentido nortesul. No sentido leste-oeste o lugar é delimitado mais pelos edifícios ao longo da avenida do que pela característica topográfica do terreno. A Praça Pedro Lessa com seu formato triangular é resultado de uma das quadras demolidas para a construção da avenida. Ela e a área verde em frente ao Theatro Municipal se associam à avenida para formar o lugar compreendido como Anhangabaú.
____________________________________ DESENHO 3.3. Escala 1:5.000 “Lugar-Anhangabaú” em amarelo. 1972. GEGRAN, 1972. [Fonte da base: Bib. FAUUSP]
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3.4. Verticalização
A partir dos anos 20 São Paulo inicia um processo de verticalização concentrado principalmente em seu centro. É na região do Anhangabaú que surgem os primeiros arranha-céus da cidade, o edifício Sampaio Moreira com 13 andares em 1924 e o edifício Martinelli com 27 andares em 1929. A verticalização alterou profundamente a espacialidade do vale do Anhangabaú. Conforme se construíam edifícios cada vez mais altos nas bordas da avenida a presença do vale se potencializava. O lugar por onde passava o rio fica marcado na paisagem pela área não edificada delimitada por grandes edifícios.
____________________________________ DESENHO 3.4. Perspectiva e corte do Vale do Anhangabaú.
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3.5. Transporte sobre rodas
O plano de avenidas inicia uma fase em que o transporte sobre rodas é priorizado como meio de transporte em São Paulo. Essa decisão produziu grande impacto na paisagem do Anhangabaú. Na década de 70 a larga avenida que ocupa o fundo do vale sofre de constantes congestionamentos. O lugar ao sul do entroncamento do sistema “Y”, onde antes estava o Largo da Memória, se transforma em terminal de ônibus no fim dos anos 70. A maior parte do Anhangabaú é construído para acomodar a o tráfego de veículos que não parava de crescer. As avenidas não davam mais conta de resolver o problema da mobilidade urbana.
____________________________________ DESENHO 3.5. Desenhos sobre mapa GEGRAN. Detalhe do Terminal de õnibus e “buraco do Ademar”. REFERÊNCIA GEGRAN, 1972. [Fonte da base: Bib. FAUUSP]
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Santa Cecília República
Santana Carandiru Portuguesa-Tiete Armênia Tiradentes Luz
São Bento
Sé
1km 2km 3km 4km 5km 6km 7km 8km 9km 10km 11km 12km
Liberdade São Joaquim Vergueiro Paraíso Ana Rosa Vila Mariana Santa Cruz Praça da Árvore Saude São Judas Conceição Jabaquara
Tatuapé
Pedro II Brás Bresser-Mooca Belém
Anhangabaú
3.6. Metrô
Só em 1966 foi dado o primeiro passo em direção a construção de um sistema metropolitano de transporte (Metrô) com a formação do Grupo Executivo Metropolitano. Dois anos após sua formação o grupo apresenta uma proposta básica para São Paulo. A primeira linha implantada foi a Azul, ligando a cidade no sentido Norte-Sul, inaugurada em 1975. A linha Vermelha começa a ser implantada em 1979 e em 1983, já liga a Santa Cecília ao Tatuapé. Duas estações são construídas na região do vale do Anhangabaú, ao norte, a estação São Bento da linha azul e ao sul, a estação Anhangabaú da linha vermelha. O vale se torna um ponto de rápido e fácil acesso ampliando sua importância metropolitana.
____________________________________ DESENHO 3.6. Rede de Metro de São Paulo 1983. REFERÊNCIA GEGRAN, 1972. [Fonte da base: Bib. FAUUSP]
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3.7. Conflito
O Anhangabaú assume uma enorme importância para o sistema de transportes da cidade. Ele é o centro da lógica radial imposta a São Paulo. Uma quantidade enorme de veículos atravessa o vale diariamente e o pedestre encontra cada vez mais dificuldade para cruzar a avenida. Acidentes de trânsito e atropelamentos se tornam uma rotina. A EMURB, tentando solucionar o conflito entre o pedestre e o automóvel, solicita ao escritório “Croce, Afalo & Gasperini” o projeto de três passarelas sobre a avenida Prestes Maia no início da década de 70. Em 1972 uma dessas passarelas é construída sob o viaduto do Chá. Na opinião de Artigas, “Foi uma lástima casá-lo a uma passarela como se fez, quaisquer que sejam os argumentos já organizados para justificar mais essa demonstração de desespero urbanístico” ¹. O conflito automóvel-pedestre havia se tornado estrutural na região. Uma série de soluções pontuais demonstravam apenas “desespero urbanístico” e não solucionariam a situação. A opinião pública cobrava da prefeitura alguma atitude à altura do problema dos frequentes atropelamentos no Anhangabaú.
1. ARTIGAS, Vilanova. Fundamentos para o Estudo da Reorganização do Vale do Anhangabaú, apud BUCCI, 1998. p.78. ____________________________________ DESENHO 3.7. Viaduto do Chá sobre passarela e Avenida Prestes Maia.
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4.1. O Concurso
Ao longo dos anos 70 a EMURB desenvolveu um grande número de projetos para o Vale do Anhangabaú que tentavam resolver a situação conflituosa do pedestre com o automóvel. Algumas passarelas foram construídas, mas nenhuma das propostas mais abrangentes foi executada. Essa década de indecisões da EMURB é resolvida com a criação de um concurso de projetos em 1981 para finalmente definir o futuro do vale. O projeto da equipe liderada por Jorge Wilheim e Rosa Klias vence o concurso com a proposta de construir uma grande laje sobre a Avenida Prestes Maia entre os viadutos do Chá e Santa Ifigênia. O projeto cria assim um espaço “novo” sobre o antigo Anhangabaú, mais de 70 mil metros quadrados de espaço livre¹, entendendo que a grande questão da região era a ausência de um lugar de permanência.
____________________________________ DESENHO 4.1. Projeto vencedor do concurso. Área da “praça” colorida.
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4.2. A Laje
Grande parte das propostas do concurso, entre elas as três premiadas, adotavam a estratégia de tornar subterrânea parte da Avenida Prestes Maia de forma a separar completamente o automóvel do pedestre. Talvez a popularidade dessa solução seja devido ao fato da situação dos atropelamentos ter se tornado tão traumática que a construção de uma laje enorme sobre a avenida parecia algo razoável de se fazer. Hoje, a pessoa que anda sobre a laje a pé não tem ideia da quantidade enorme de veículos atravessando o vale. A pessoa que cruza a metrópole pela avenida não tem ideia do que acontece sobre o “túnel”. A dimensão local e a metropolitana não se conciliam tanto do ponto de vista funcional quanto do simbólico. “Então o grande problema do projeto do Jorge Wilheim é este, eles não lidaram com o conflito, eles extirparam o conflito”²
____________________________________ DESENHO 4.2. Laje dividindo o carro do pedestre.
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4.3. Lugar da “Praça”
Hoje, quando alguém fala sobre o Vale do Anhangabaú se refere muito provavelmente apenas à nova “praça” sobre a laje e a alguns espaços adjacentes a ela. O projeto de Rosa Klias e Jorge Wilheim divide o espaço que antes era entendido como uma unidade de paisagem em três. Um trecho de avenida ao sul, a “praça” no meio e a continuação da avenida ao norte. O lugar-Anhangabaú sofre uma contração perdendo seu sentido linear do período anterior. Uma questão fica em aberto: já que o projeto optou por construir uma laje sobre a avenida porque ela não se estendeu ao norte e ao sul? Mais uma vez na história do Anhangabaú ocorre uma intervenção que não considera toda a extensão que a topografia do vale marca na paisagem.
____________________________________ DESENHO 4.3. Escala 1:5.000 “Lugar-Anhangabaú” em amarelo. 2006 REFERÊNCIA Mapa Digital da Cidade (MDC) 2006 Fonte: [http://www3.prefeitura.sp.gov.br/ DU0107_MDC/paginaspublicas/index.aspx]
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4.4. A partir do Viaduto do Chá
O Vale do Anhangabaú produz um grande contraste na região central de São Paulo. Quem sai do centro velho com suas ruas estreitas e agitadas e atravessa o movimentado Viaduto do Chá vê na “praça” lá embaixo um contraponto, um espaço de uma escala completamente diferente com uma ocupação dispersa de pessoas. Isso não significa que a “praça” seja pouco utilizada, mas pode ser que quem atravessa ela, apenas pelo viaduto, pense que sim. Quando se está “lá embaixo” percebe-se uma variedade de pessoas ocupando as diferentes partes que compõe a unidade que se vê de cima. A grande área livre no meio é constantemente cruzada por pessoas. Ao longo dela, um longo banco curvo de um lado e três arquibancadas sombreadas por árvores do outro. No banco, as pessoas geralmente sentam sozinhas ou em duplas e nas arquibancadas, bastante utilizadas, pequenos grupos conversando, alguns no intervalo do trabalho, outros usam esse lugar como ponto de encontro. No limite da laje do lado do centro velho a fachada dos prédios não apresenta grande interesse para as pessoas que passam. Há apenas algumas agências bancarias e o acesso secundário dos edifícios da Libero Badaró. O acesso ao vale por esse lado se dá por duas pequenas escadas se comparadas com a dimensão da “praça”. Do lado do centro novo a Rua Formosa não se parece mais com rua se diluindo no projeto como um todo. A Praça Ramos de Azevedo se associa a ela sendo um acesso pouco utilizado à área do Theatro Municipal.
____________________________________ DESENHO 4.4. Desenhos do Vale do Anhangabaú em 2015.
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4.5. A partir do edifício Mirante do Vale
Do topo do edifício Mirante do Vale percebe-se que a área da “praça” perto do Viaduto Santa Ifigênia tem uma vegetação mais densa. De lá, a lógica do piso fica clara. O edifício dos Correios e o Theatro Municipal irradiam linhas e segmentos de circunferência que com outras linhas mais livres formam um desenho de piso composto por pedras portuguesas de duas cores. Nessa área, a fachada dos edifícios é mais interessante com o comércio e alguns bares. Um dos acessos do Metrô São Bento se abre discretamente para a praça gerando um fluxo considerável de pessoas. Essa parte norte é ocupada em geral por homens mais velhos que ficam conversando, bebendo e vendo as pessoas passarem. Alguns moradores de rua também ocupam essa área. Pode se ver roupas estendidas na grama, as vezes algum colchão em baixo de uma árvore e cachorros que vivem por ali.
____________________________________ DESENHO 4.5. Desenhos do Vale do Anhangabaú em 2015.
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4.6. A partir do Viaduto do Chá
Do topo do edifico Martinelli se enxerga o eixo da São João vindo do horizonte. Ao se aproximar do Anhangabaú, a avenida se transforma em calçadão que é estranhamente é interrompido por um “buraco” no chão. Quem atravessa o vale por lá precisa desviar desse “buraco” onde ninguém passa e nada acontece. Em frente ao edifício dos correios o projeto tentou recuperar o que antes era uma praça deixando uma grande área livre. Na São João do lado do centro velho, bares e o acesso à Rua Libero Badaró deixa a região movimentada. No calçadão em direção ao centro novo o comércio formal e vendedores ambulantes se beneficiam do grande fluxo de pessoas. A área gramada próxima do “buraco” é um ponto em que catadores de material reciclável param suas carroças para descansar e conversar.
____________________________________ DESENHO 4.6. Desenhos do Vale do Anhangabaú em 2015.
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4.7. Eventos
A vida do dia a dia no Anhangabaú periodicamente é completamente alterada. O enorme espaço livre e a facilidade de acesso tornam o lugar adequado para realização de grandes eventos. Estruturas temporárias são erguidas para abrigar shows, feiras, centros de assistência ao trabalho, etc. Muitos desses eventos modificam a circulação na região com grades e tapumes para controlar determinada área criando dessa forma um lugar “dentro” do Vale do Anhangabaú. No FIFA Fan Fest¹, por exemplo, tapumes tapavam o Viaduto do Chá impedindo quem estava de fora da “festa” de assistir aos jogos da copa do mundo pelo telão. Era preciso passar por catracas e seguranças para entrar no evento onde só se vendia produtos dos patrocinadores. Outros grandes eventos modificam menos a vida do lugar, mas há sempre em nível maior ou menor uma reconfiguração do espaço para possibilitar que eles ocorram.
1. As FIFA Fan Fests foram idealizadas e realizadas pela primeira vez na Copa do Mundo de 2006, na Alemanha. A finalidade do evento é reunir pessoas/torcedores para assistir aos jogos da Copa do Mundo. ____________________________________ DESENHO 4.7. Desenhos de eventos no Vale do Anhangabaú. De cima para baixo: “FIFA FAN FEST” em Junho de 2014 “Feira LGBT” em Junho de 2015 “Central de apoio ao trabalho” em Maio de 2015
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Sul
Norte
4.8. Além da laje
O projeto do concurso deixou de fora o a maior parte do vale. Além da laje, pode se ter uma ideia do que o Anhangabaú era nos anos 70. A avenida ocupa a maior parte do vale e cruza-la é uma tarefa difícil. Ao Norte uma estreita passarela com longas rampas é a melhor opção. Ao Sul a circulação de pessoas no térreo é inviável por conta do Terminal Bandeira. Para chegar até ele ou atravessá-lo só é possível através de um confuso sistema de passarelas. Os antigos problemas do Anhangabaú se mantêm até hoje fora dos limites do projeto vencedor do concurso.
____________________________________ DESENHO 4.8. Vista a partir do Viaduto do Chá em direção ao sul. Vista a partir do Viaduto Santa Ifigênia em direção ao norte.
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5.1. A dimensão do lugar
O trabalho comparou as diferentes dimensões do lugar entendido como Anhangabaú em cada um dos períodos estudados. Essa área sempre esteve está associada à algum elemento que dá a identidade ao lugar. Na primeira parte o elemento é o vale e o rio, na segunda o parque, na terceira a avenida e na quarta o projeto vencedor do concurso. Não significa que esses elementos simplesmente substituem uns aos outros. A topografia do vale continuou lá quando as avenidas foram feitas, a avenida continuou lá quando a laje foi construída sobre ela. O que ocorre é uma sobreposição de elementos que em cada momento tem mais força para definir uma unidade na paisagem à qual o nome Anhangabaú é associado de forma mais intensa. Essas intervenções foram ao longo da história do vale se sobrepondo, porém, de forma muito desarticulada. Hoje o “vale” é muito mais uma palavra que designa o lugar do que uma qualidade espacial. O entendimento do vale como um todo se perdeu. Assim, se perde a memória do rio que fez parte da história de São Paulo desde a sua fundação. Uma intervenção no Anhangabaú deve recuperar a compreensão da totalidade do vale.
____________________________________ DESENHO 5.1. Escala 1:5.000 “Lugar-Anhangabaú” em cada um dos quatro períodos tratados no trabalho. REFERÊNCIA Mapa Digital da Cidade (MDC) 2006 Fonte: http://www3.prefeitura.sp.gov.br/ DU0107_MDC/paginaspublicas/index.aspx
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5.2. O lugar e o entorno
Apesar do Parque Anhangabaú, construído em 1917, ocupar uma pequena parte do vale, ele era muito bem integrado na cidade. Havia uma continuidade espacial entre os lugares próximos do parque, a Praça do Patriarca e a Praça Ramos de Azevedo se conectavam diretamente a ele por largos caminhos inclinados. No sentido nortesul o parque ia se formando gradualmente a partir da Praça dos Correios e depois se dissolvia no Largo da Memória. Hoje a situação não poderia ser mais diferente. A nova “praça” é uma espécie de ilha na região. A Praça do Patriarca a perdeu a rampa se acesso ao vale e agora se conecta pelas escadarias da Galeria Prestes Maia que está completamente subutilizada. O novo Viaduto do Chá acabou substituindo a rampa que ligava a Praça Ramos de Azevedo ao vale por uma discreta escada. A laje marca claramente no sentido norte-sul o limite do lugar. O projeto do concurso é completamente desarticulado do entorno. A única exceção é o calçadão da Avenida São João que vai até o Largo do Paissandu. Uma intervenção no Anhangabaú deve se articular com os lugares do entorno criando um sistema de espaços livres, diluindo os limites entre o “dentro” e “fora” para superar a condição de fragmento na cidade que hoje a “praça” tem.
____________________________________ DESENHO 5.2. Lugares no entorno do “Praça”.
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5.3. O lugar e a cidade
O Vale do Anhangabaú pode ser entendido em duas escalas. Na escala metropolitana, é lugar onde passam duas linhas de Metrô que cruzam a cidade, lugar de onde partem centenas de ônibus todos os dias, onde milhares de pessoas atravessam sobre viadutos, em que avenidas articulam o transporte no sentido norte-sul. Na escala local, é uma praça isolada de toda essa complexidade, um refúgio da vida urbana frenética do entorno. “A praça para “eventos e manifestações públicas” é um espaço especializado e isolado da “vida” da cidade”. ¹ Essas duas escalas do Anhangabaú se opõem radicalmente. A pessoa na praça não vê a quantidade enorme de carros passando sob a laje, a pessoa na avenida não vê o que acontece sobre ela. O Terminal Bandeira fica isolado, só se chega a ele por um confuso sistema de passarelas. O projeto vencedor do concurso não se articulou com as estações de metrô. A circulação de pedestres é completamente livre no trecho da laje e fora dela cruzar a avenida ainda é um desafio. Uma intervenção no Anhangabaú deve conciliar a construção do “lugar” com a dinâmica da cidade na escala metropolitana. Um projeto que resolva os conflitos existentes no território ao invés de se isolar deles.
1. BUCCI, 1998. p.56. ____________________________________ DESENHO 5.3. Avenida, terminal de ônibus, metrô, viaduto, passarela e edifícios.
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5.4. O lugar e as pessoas
“O vale, hoje, ficou reduzido a um espaço de um desinteresse absoluto, para todas as funções” ² Esse é o depoimento da professora Regina Meyer em 1998. Não sei se naquela época esse desinteresse total em relação ao vale era real, mas hoje, isso com certeza não é verdade. Muitas pessoas vivem aquele lugar todos os dias. Não há uma densidade de pessoas tão grande quanto o entorno, mas parece que isso faz sentido dado o caráter de “refugio” que o lugar tem. De qualquer forma aquele é um lugar que faz parte da vida das pessoas que o frequentam de forma mais ou menos intensa. “A baixa variedade de grupos de usuários, funções e atividade fazem com que o Vale seja aproveitado por poucas pessoas ao longo do dia. A presença de muita gente faz as pessoas se sentirem mais seguras. Poucos usuários ou a dominação por pequenos grupos podem criar sensação de insegurança. Conforme aumentar a quantidade de gente que desfruta do vale, mais pessoas virão.” ³ Essa é uma das avaliações da prefeitura de São Paulo sobre o Anhangabaú. Ela diz que a variedade de “grupos de usuários” é pequena e dá a entender que alguns “grupos de usuários” “dominam” o vale e geram a sensação de insegurança. Em primeiro lugar não são poucos os grupos de usuários que frequentam o vale. Por lá pode se ver jovens, velhos, trabalhadores da região, frequentadores dos bares, vendedores ambulantes, moradores de rua, profissionais do sexo, 2. MEYER, Regina Prosperi. “depoimento”. São Paulo, FAUUSP, 25/03/98. apud BUCCI, 1998. p.101. 3. Uma das avaliações da Prefeitura de São Paulo sobre o Vale do Anhangabaú para orientar o projeto de “requalificação” da região. Fonte: http://gestaourbana.prefeitura.sp.gov.br/ vale-do-anhangabau/ acessado em Junho de 2015 ____________________________________ DESENHO 5.4. Desenhos do Vale do Anhangabaú em 2015.
pessoas que simplesmente passam por lá, pessoas que estão lá todos os dias, outras que vão apenas para algum evento. Qual é o critério usado para determinar um grupo que possibilita dizer que eles são poucos na região? Em segundo lugar, porque é que a apropriação do espaço por certas pessoas é tida como positiva e de outros é entendida como uma “dominação”? Realmente, é possível perceber que pessoas diferentes ocupam lugares diferentes no vale. Há o lugar de encontro dos catadores de recicláveis e o lugar do “happy-hour” das empresas da região; o lugar dos vendedores ambulantes e o lugar do comércio
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5.4. O lugar e as pessoas
formal; o lugar dos jovens que conversam e fumam e o lugar da base policial. Em que caso a prefeitura entende como dominação e em que caso como apropriação adequada? Essas questões revelam que por trás do discurso da “sensação de insegurança” existem alguns valores que orientam o entendimento da vida urbana do Anhangabaú. É preciso entender que esse discurso esconde uma lógica que beneficia certos “grupos” em detrimento de outros. Não é possível pensar o uso que se faz do espaço de forma isolada, sem considerar que ele é reflexo de questões que envolvem a cidade como um todo. Mudar o “público” do Anhangabaú pode ser simplesmente esconder problemas da cidade que aparecem representados no lugar. Uma intervenção no Anhangabaú deve beneficiar as pessoas que frequentam o vale respeitando suas formas de ocupar o espaço.
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Bibliografia
TOLEDO, Benedito Lima. “São Paulo: três cidades em um século”. São Paulo, Duas Cidades, 1983. SIMÕES JR, José Geraldo. “Anhangabaú: História e Urbanismo”. São Paulo, FAUUSP, 1995 (tese de doutoramento) HEREÑÚ, Pablo Emilio Robert, “Sentidos do Anhangabaú”. São Paulo, FAUUSP (dissertação de mestrado), 2007. BUCCI, Angelo. “Anhangabaú: o Chá e a Metrópole”. São Paulo, FAUUSP (tese de mestrado), 1998. TOLEDO, Benedito Lima. “Anhangabaú”. São Paulo, FIESP/CIESP, 1988.
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