MARÇO 2015
MIRÓ A HISTÓRIA DE UM ARTISTA SURREALISTA
Gabriel Ferreira
O GRANDE HOTEL BUDAPESTE
Clara Valentina
ROALD DAHL A FANTÁSTICA FÁBRICA DE IDEIAS
Julio Salazar
R$ 08,00 mês:abril
FORA DE ÓRBITA
Woody Allen
abril_2015
POLÍTICA
CINEMA
ARTE
HUMOR
ÍNDICE
LITERATURA
MARÇO
2 - 3.A FANTÁSTICA FÁBRICA DE IDEIAS
4- 5.FORA DE ÓRBITA
6- 8.A HISTÓRIA DE UM ARTISTA SURREALISTA
9- 10.POR TRÁS DA OBRA DE WE ANDERSON
11-12.REFORMA POLÍTICA
LITERATURA
A FANTÁSTICA FÁBRICA DE IDEIAS Julio Salazar
Roald DAhl A
os 71 anos, Roald Dahl era um autor em plena atividade literária. Na entrevista que deu ao jornalista britânico Todd McCormack, em 1987, três anos antes de sua morte, legou à posteridade não apenas histórias engraçadas sobre como encontrou inspiração para criar seus personagens, mas deu uma aula sobre o quão complexa e ao mesmo tempo prazerosa pode ser a criação de uma história. Se você é do tipo de leitor acostumado a relatos de autores sofrendo em busca de inspiração e vivendo uma relação de amor e ódio com Melpômene (tragédia), saiba que Roald Dahl, apesar de ter vivido alguns dramas na vida pessoal como a perda de uma filha aos sete anos por sarampo, quatro aneu-
hrismas em outro filho e o atropelamento de um terceiro (ele era pai de cinco), andava de braços dados era com Talia, a musa da comédia.“Quando você está escrevendo é como percorrer um longo caminho por vales e montanhas e ver várias coisas ao mesmo tempo. Você pega essa primeira visão e escreve. Então, anda mais um pouco, sobe um morro e vê alguma coisa a mais. Você vai fazendo isso dia após dia e sempre tendo visões diferentes. A montanha mais alta do caminho, obviamente, vai apontar para o fim do livro. Parece fácil, mas é um processo muito lento, longo e requer paciência”, revelou à McCormack na célebre entrevista. No site oficial da Fundação Roald Dahl, mantida pela viúva e herdeiros, é possível ler ou ou-
vir toda a conversa, em inglês. Há um áudio também do escritor lendo um trecho de BGA – Bom Gigante Amigo, livro que ele escreveu em homenagem à filha Olívia, aquela que morreu de sarampo, para quem também escreveu O Fantástico Senhor Raposo. BGA foi um dos livros escritos no “esconderijo” que ele manteve a vida toda no quintal de casa, usado com a única finalidade de mergulhar no mundo da fantasia. A rotina de trabalho do autor, ao contrário do que se possa imaginar, visto que produziu intensamente ao longo de 45 anos, nem era tão árdua. Segundo o próprio Dahl, ainda na entrevvista para Todd McCormack, na criação de seus livros ele trabalhava duas horas por dia, todos os dias da semana, incluindo feriados. Para o escritor, depois de duas horas de intensa concentração, a mente começava a divagar. Autocrítico e perfeccionista, lapidava seus textos com a habilidade de um ourives e levava até um ano escrevendo uma história. Chegou a jogar fora a primeira versão de Matilda, depois de nove meses de trabalho. A inspiração para uma bibliografia tão extensa, tirava da própria infância e de uma capacidade impressionante para olhar a vida pelos olhos da eterna criança que cultivava. Assim, Contos da Vizinhança é autobiográfico e narra situações vividas nos verões passados na Noruega; A Fantástica Fábrica de Chocolate foi escrito relembrando o fato de que ele e o irmão estudaram em uma escola onde todos os anos, uma fábrica de doces enviava novos produtos para serem “testados” entre os alunos; James e o Pêssego Gigante surgiu das inquietações de um Roald Dahl já adulto e intrigado com o crescimento das frutas nas árvores.
“Sempre quis saber porque uma fruta crescia só até um determinado tamanho e depois parava de crescer. Ficava me perguntando o que aconteceria se ela continuasse crescendo”; enquanto Os Gremlins foi inspirado no folclore britânico, a partir de antigas histórias de geniosinhos travessos que pregavam peças nos soldados da RAF (Real Força Aérea) onde serviu durante a II Guerra Mundial como piloto de bombardeiro. Em A Fantástica Fábrica de Chocolate, Roald Dahl legou ao panteão de personagens inesquecíveis uma das figuras mais carismáticas da literatura infantil: Willy Wonka, o dono meio amalucado e totalmente excêntrico de uma fábrica de doces onde tudo é possível. Quem não queria ganhar uma barra de delícia crocante Wonka quando era criança? E Matilda? Não podemos esquecer dela, uma menina com talentos especiais e criada por pais completamente mesquinhos. Sem contar com o esperto Senhor Raposo fazendo um trio de fazendeiros realmente malvados de gato e sapato. A sensação para quem não conhece o rico universo do autor é de ele exagera na caracterização das personagens, mas o próprio Dahl dizia que a cores para se pintar um quadro para uma criança tem de ser ainda mais vivas que as cores reais. Sendo que ele nunca subestimava a inteligência de seu público. Se alguém é mau nas suas histórias, é realmente péssimo; um gigante bonzinho, é tão bom que até cansa; uma menina inteligente como Matilda, bota Einstein no bolso.
Esse exagero todo porém, nem de longe descamba para o piegas. Textos simples, fáceis de ler, mas de uma complexidavde de relações e situações que muitas vezes só a lógica infantil de pular de uma brincadeira para a outra
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em questão de minutos é capaz de dar conta. A singeleza das histórias do autor faz os leitores pensarem: Poxa, isso aqui é tão fácil, porque não imaginei isso antes! Ao mesmo tempo, o maravilhoso, o irrealizável, como um menino ser esticado numa máquina de chicletes para voltar a crescer depois de ser
miniaturizado, torna-se completamente possível no seu mundo. Poucos autores contemporâneos conseguem escrever com a clareza e a lucidez de Roald Dahl e ao mesmo tempo manterem aquele bom suspense do começo ao clímax da história. Econômico nas palavras, pouco afeito às descrições desnecessárias, completamente lúdico, o que transparece nos textos do autor é que ele era alguém capaz de rolar de rir das próprias piadas, daí sua facilidade em fazer rir. Com um pouco de boa vontade dá para imagina-lo trancado no seu esconderijo, duas horas por dia, divertindose muito com cada nova reviravolta de suas tramas. 2
HUMOR um té em a ou ais b cri– m es or o alh vida i ao senh o, b s ú ue ra o t em d heg ão, o atra eu a u c e r r s pa , e fim, pat me a qu tena o o r u n d o e id en e ar a h ianta do, ao m plic med trão ão. n à o ex ad an i pa aç ind uco . Qu dirig de ntou eu rdin po stido me a fim ume ue m subo pio rís ve io e ick, sa a , o q de in e u e a o t q v tór uchn mas ava inal an o, er esta era m s ast alári a b i a M a b á x h s .J d a m m o n s a mi apr mo u ers meu etro o em ável blem ito u gv e n d m o m u co o do lic pro fe bi l n a c zir parâ de to e lle via exp e o sica, s. O rdia a d m i A u A l u o d é u a í é o i a dy ve re re do n uz, eno. o nal, ar q , a f post rim iênc u t oo i l o i p e W H sob ed da equ com mu , afi a ach sab res pa de c com ca s so o ha ni o o u e da al, m ade to p em ans a s o r st ive and ora das e a eçã in ecâ nto qu locid mui ue, qu a un meç o ag to ros na s ia, m a m ime insve do e é q m a os d c co om , tem neg eira ênc l e d nhe ja E etes mo rdad o co tom ô. C ato cos ça-f equ era co a lo tap ue o s ve raçã de á ndr ig ch ura ter on e g ao in d de ar q do m e pa ade de A ato co rent os b toda m c idad ipara nste dor gnor as, oi i e l v e i a l tid áxia de f p ng, em e, lati equ E nd de scu mi o u l e O ga da, e mui ba arec es a re se in. o v e pu inú um ésim cil e m s n e a d í m t p i u a m ho T ão gor ins mo q s o. têm ilio dif ar an pouc do eens ca a de E o fa mo é coisa que m b será deix de g i pr ânti nho jy, Co rso k”, de u mo ê a vida ns to n t e qu e te oom ork. ive lanc imo e co voc gra algu ó? Te er qu n M va Y un de P nés gin , se o a nte, alet ra z o a i p a o m a e o i n e o di t N t bil m ess co ep de , p sa I n o r e e m s de iste rim um tro? sa d o. E de uso qu pa riss a e i r o e é p x e b o a mp o e om d tím co scu ass er c “c simo cen uma a e cess iriam físi o te em n estiv siné um trar inem ela exig re a em, om rco a fí ou de con m c E se nda sob arg m h ba re d T, ien ir nu na? s ai fato na m ara u m no ilag mo T o inc ca ncio ante de ado ue p ome te m a co até uir. fu taur sei par do q o h ecen ead luir seg so res que mem ssa s se ais r alard e inc do a iver O ho epre mai O m da, pod arra o un o do um is d nda sa. cor sso a, n mo mp uma – ai espo a da o”. I ssad e, co is te u ro co m a teori Tud a pa eira i ma me ra o co é a a de man ta-f leve ar o e pa to ca eori da se sex são, ach tard e al “T nte ei na pan para air ão d ador de ord ex tual ez s noç lev aAc tá em habi e f o a o e terr es e o so m com tiva, r no sequ o. Is o e, rela para con r, pã balh o é foi ifícil favo tra baix guei oi d or ue e e pe de f xi. P nte q o tá me ntr qu , on de te ço ir um em e m u m e g ha m fogu o n i h te rox um um ap cide e se velo qu da a luz ma de d e da r e c p a esria r ta
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la- sse de ive re- da a u. C ne isco o e t ara e to ara i p as c p e d h te l i o m men um u ol nete qu rou o i o é e c m ata iu m oto id e v caf e o ex ca no c erd a s c o p e l um qu m a , Nã ro tant téri ar u nha do e dir rece o de a. são e d s a i j in tim ran u t uan çã la? a p pa ela as jun ar . E , q u i ora equa a to ea g as, m as bi ém a E u a o m e l l g m g – a qu vê- ranç : e á rtícu ela tamb e as se as a ar d o u inha s d u o e i a – a m o r d p r u s m es fal – p a m ro a de ao , m lemb me da m ou oas m p spos só q ar u ia e e o a d d p h i u u l b e e m n c s, e m be bil do o mi escu boli o m ão so ago be enha segu inha ícula spen que ade ba pedi linh p o o t D n t e g a r d - um nsi r. N se p té ão e co . M par a d seja ver sou bo y s de er um um aa n e e o co inge nte do s nh e ela as qu iffan o qu ram lema is. A e pa s de rin ma ã röd me da faz o de r o u n a a o n b o T t u d d ç s h q on da as me pro em ce q en it nã , s nu a s o ai Sc ple eu -se mih o da cê v a mu á. as ias ond co z o rks d pare e ev la – ada. d m . i o n o o i p r S ria çã ter ais dela talve qua ela te d te de sug , que ó olu se v ostar e ch respo vand enti cam eu n i m m , r o s s ro r g v e E n é das Ou tem nte rizo pa fo ado usã u – - E ei – , eu múo zer e c Pude adi a qu utri- i on uco. osa ame o ho uma a – goz a f ssoa ao l v d a m e fa rço com pr uet au. o in edi s ne egu po a esp ultim is d o e lgum meio iante r pe que, r se r l r e a ga lês todo coq bi-Y ent à m s seu cons ue o nh ue, ema neg ira to med alqu , po ifíci a o ing om r de ala plam elly s no nte, porq stava é q rto d aco ane form vel qu gros nte d vido n h hr a - C m a de C e aco ita K ábio eme são, eu e roxo pe bu e m um ediá par s ne me o ou pen u c ue co ma te d nhor us l rent fis que lho M , q u um a, d e dá rem elho raco rema rvar des oue k d o t ê for nstan a se me Apa ie de foi um o u a c to o lh ser ons r b ex nse voc ir d vid , ni o n d esco co d nava dos. spéc isso om a. tudo p ão ss ero eu c vita ro, é a co so erg sua car I s d c v a o e m a e fi fr ssi olha a ois ão rno icar im re u n o e e esp a. M foi dent aind r ac e em iver vai trar o n e e and po s v i pre s m r um i dep o ch supe expl ass o e e á p o r u r r a l i r f c q lev em ma g p i a e m z n e a v no ança rceb ndo d uma ode esmo que t es a sem a ve uir s ica. S co n nte ezes, r e e e tav a que a m se a a i alc e pe anta de ca p l, m lher ue ium nseg mús bur elm as v sa v e , t o a e n qu lev anho físi rági a mu porq gr ntir co ra a um ovav muit para co ço sã u qu e, m lio e r p me tam ue a xo f inh oxo ntra s s s ue a po a uro as pr as e ai ub po p p m e , q s S a d J d r e . c do ho q o se a m lho r m co , e ca lado muit dem a o e pu coisa eus mu ento. e tem , e s d i o Ac nos para o o va e nsão m o a co ção um qu ois ue tr eira ctad ei lly ica ar glú m e c a ez h n me ntei com esta expa istra i q ua int mpa . ox ta K . A ú brul dos e mi . r sit um ma v esma algo 8cm s co uei erso em va d p o i a or em em olta d tico c rota a , u m er r i 1 e r e o r h fiq niv não esta m sen bra eria m v rac uân em da que o a faz s de end m ga i qu u ã ra no a v bo e i m q e o u o, e a eu v b i s a t e i nh aço s pa me á pr ado oisa ass nal d rdas eu fraco um únel oten He çã hor E io l c d sp ra m co que bre por m t imp a de con e na .” c s e e 3 ho a co não es. O sma remo s ta nha ra li zar or u uei rtez não dad a o e , c r c i e ído o i s n o a e esl r p fiq ince ir se loci asse m bia d lev nal fi ent dól a m giõe mil a rtos sa sons la, d entra que de a ag a ve caus stafi rim 5 em re 3 o no omp is de o ser ra as leva ão m i pre bó s de e ad ltura cípio deri ão e eu deva tão a aç pa m r va c a t m ton oca sa a prin eu po osiç ente uma so é u ia de por esp iaja age s es não i go cê e nh i nes do mo r a p e rep eja, o? Is r e e elly. v v o do iss mpo ocê o e a ami s vo z Fo tude g. Co ina se d ou s emp olha ta K sculu ela, te se v ers us ma a e vir ber eterm ? E de – ço-t ia hori ia e ipon e , , v d ue ni s s tar m a ja es o l c u o q sen ui d dela arida espa undo sen nerg ra h que e d nd ste , é do es, ê vo o s i é a e r seg atas ngul a no o m te da ma e mbo cho que tas restr voc tox. itó atrav sa gr nte, airia r c r ex a si ptur Tod dian m u ra, e um lher , se o te and Bo es rça nos repe e s ais u a m um ra ru nto. raça er te escu mim mu tasia um qu ar de me m fo se a e de rbit e – pre o s do rulhe m g mulh rgia ara uma a fan r de nco ó r , a co ue iss de mp sem um ci a t o q d r l ba ar se s a Ene oi p do n inh erio e ci eau vo trand igo xplo fora ra se leva o, se locie fic , ma boa. pre f retu Na m o int rant hât os d a e do D l en com a e ara o p nte la v n d o Ah tão sem , sob ida. ara s du de C com veso nsei ura ria p finit a ge outr uma segu rás, ra ica, lante ord -la p cula rafa ado da leo pe la do voa lo in para Por er n por os at ra o a v tét timu brem levá partí gar eu l ando núc tre net o pe zão lar. mo km écul o pa ial? es so esse de ma o s xim seu pla nind a ra celu me mil da s mp per ente e m tem pud ador m u ria a pro to o o e i zu a b fon esse 300 asc no t a I cilm eu eler s co esta se a quan um tele pud ior a uz n ltar Rom Difi l ac nuto eu nta , en o um eu uper r a a v ra a lá? ri o mi fite, qua a luz h ein dia de s tura deri u pa azer do. e f s La ssos de d da ecap e po o o ria f heci , a ente veria r no ida d e á qu ntig eu i con on tivam para feita e r loc A a i d os á la é tod se ito que uém u D p o e e s s é Eg as o a alg as. qu ula elly ond r que onda c í M hari e t mi K a d ca e r z fi ac pa ta t ve c a d
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ARTE
M IRÓ A HISTÓRIA DE UM ARTISTA SURREALISTA
Gabriel Ferreira
I
ntimista, reservado e rigoroso – ou seja,o oposto da mitologia do surrealismo – fazem deste catalão um caso à parte. Entretanto, os seus 85 quadros nas mãos do Estado português continuam pendentes.Joan Miró nasceu a 20 de Abril de 1893 em Barcelona, casou em Maiorca num dia 12 de Outubro com Pilar Juncosa, teve uma filha que nasceu em Junho de 1931 e se chamou Dolores, e morreu em Palma de Maiorca no dia de Natal de 1983. E é tudo.
Ao contrário de quase todos os outros artistas que com ele construíram não apenas o dadaísmo e o surrealismo, mas toda uma forma diferente de observar o planeta - uma coisa inédita e integral como o mundo nunca antes vira (talvez com a excepção alucinada de Hieronymus Bosch) - Miró morreu sem deixar uma mitologia. Deixou apenas a sua obra, surrealista, mas profundamente trabalhada, aprimorada e rigorosa - muito distante da desordem alucinogénia, alcoólica, amorosa e outras com que os seus contemporâneos enchiam numa raiva telas, páginas em branco, películas de filmar e outros objectos indiferenciados, entre os quais
lixo industrial. Joan Miró era antes de tudo um catalão sem ser um catalão. “Jamais voltarei a Barcelona! Paris e o campo até que morra. Não sei por que razão todos os que perdem o contacto com o cérebro do mundo adormecem e se mumificam. Na Catalunha nenhum pintor conseguiu alcançar a sua evolução completa...! Têm de se converter em catalães universais!”, escreveu ao seu amigo e pintor E. C. Ricart (cujo retrato, de 1917, é uma das suas obras mais conhecidas), antes de regressar repetidas vezes. Mas esse regresso - tal como o de Dali, também catalão sem verdadeiramente o ser (pelo menos até decidir perdoar ao governante Francisco Franco) - não importava nada: Miró e os surrealistas desconstruíram e reconstruíram Paris de uma ponta à outra antes de irem à procura dos outros mundos, mais dóceis, mais endinheirados e sedentos da mitologia da capital de França. Introvertido e simples, Miró correu com os seus companheiros todos os recantos da arte, sem contudo se confundir com a cosmologia iconoclasta dos outros. Em certo sentido, acabou por construir um universo pessoal que
o distingue logo ao primeiro traço dos que com ele correram as mesmas ruas e discutiram os mesmos pressupostos: um Miró é definitivamente um Miró, por muito que Paul Klee gostasse de por vezes ser confundido com o catalão.Mas achava-se pouco democrático, vamos dizer assim: a sua obra não era para apreciadores de paisagens mortas, por muito vivas que estivessem. Foi por isso que tentou outras disciplinas: a escultura - onde amiúdes vezes usou sucata para início de conversa - e a cerâmica, que se abriram às suas mãos em 1944 e das quais saíram objectos que pareciam a transformação dos seus quadros na equivalência das três dimensões. Não é fácil descobrir maior democracia nestas outras disciplinas, mas o certo é que há uma evidência tão grande nestas outras artes como na pintura.
esse ponto de vista, é profundamente catalão: por uma razão qualquer, os artistas que atravessaram aquela pálida fronteira nesses anos de início de século (Dali, Tàpies, Ponç, Buñuel) construíram obras que não deixam margem para qualquer dúvida: são definitivamente deles. Da Europa a Nova Iorque Miró fez como quase todos os outros: internacionalizou-se, como hoje é hábito dizer. Mandou primeiro uns trabalhos como se fossem em prospecção (ainda na década de 30 do século XX), a coisa correu bem, e lá se resolveu a atravessar o Atlântico em 1947 - estava a Europa a lamber as feridas que infligira a si própria, numa devastação que o pintor catalão tivera oportunidade de repudiar em tela (O Ceifeiro) já desde a fase de treino bélico (a guerra civil
espanhola, 1936-39). A viagem valeu a pena: o reconhecimento além-mar permitiu-lhe regressar em 1958 para concluir (em parceria com José Llorens Artigas), os extraordinários murais do Sol e da Lua para o novo edifício da UNESCO, em Paris, o que acabaria por catapultar o catalão para, nesse mesmo ano, vencer o prémio da Fundação Guggenheim. E contudo regressava sempre, não à cidade de Barcelona, mas a Mont-roig (o tal campo) - uma espécie de refúgio bucólico e ajardinado que era da sua família fazia muito tempo, família essa que, confessou por diversas vezes, em pouco ou nada influenciaram a sua veia artística. Era aí - porque às vezes o dinheiro não chegava para pagar o aluguer dos ‘ateliers’ na capital francesa que engendrava a sua obra.
O Carnaval de Arlequim
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Traços e cores e pretos e brancos em frente uns aos outros ou então de lado ou por baixo e em cima. Mas nada é por acaso no surrealismo do catalão, nenhum ponto, nenhum traço, nenhuma cor. “Miró tem uma obra distinta de todos os outros surrealistas, nas suas formas e cores de regresso à infância. Utiliza símbolos e signos diversos, como astrais, animais, vegetais, que constituem uma espécie de estranha passagem do mundo do sonho e da imaginação”, explica uma ‘marchand’ que já teve uma pintura de Miró nas mãos e a viu seguir para o Norte do país, pelas mãos de um investidor adianta. m Junho de 2012 essa obra foi vendida pela leiloeira Sotheby’s por pouco menos de 26,5 milhões de euros - três vezes mais que o preço proposto aos endi nheirados e quase sempre anonimos interessados. 26,5 milhões: 73,6% do preço .O pro blema (mais um) é que a extravagância do processo de venda por parte do Estado português faz com que nem sequer os 36 milhões sejam expectáveis: “Os quadros estão ‘queimados’, como se diz na gíria. Os investidores internacionais não costumam querer ter em mãos obras que passaram por semelhante trapalhada”. Eo cancelamento decidido pela Christie’s tentou igualmente evitá-las. E é isto: tinha de vir de Portugal um desassossego que o rigoroso e surrealista pintor catalão nunca quis sentir enquanto vivo.
Mulher na Frente do Sol (1950) Obra de Joan Miró
A Batata (1928) Obra de Joan Mir贸
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CINEMA
POR TRÁS DA OBRA DE WES ANDERSON Clara Valentina
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uitos autores defendem que quanto mais específica for uma história, maior o potencial dela tocar mais pessoas, tornar-se universal. Embora os filmes de Wes Anderson possam soar genericamente repetitivos em suas obsessões estéticas, é sempre o específico que ele procura, e em O Grande Hotel Budapeste essa busca toma a forma de uma boneca russa. A boneca maior, que contém todas as menores, é o espectador, o ponto final de toda obra: no filme, uma fã visita a estátua do “Autor”, tendo em mãos o livro de memórias dele. Quando ela abre o livro, vem a boneca seguinte: alguns anos antes, o tal “Autor”, interpretado por Tom Wilkinson, reconta sua passagem, na juventude, em 1968, pelo já decadente hotel do título, localizado em Zubrowka - república nos Alpes europeus que, embora fictícia,
não passou incólume pela influência sovíética no pós-guerra. Do proprietário, o escritor escuta um relato que remonta a 1932, quando o hotel, no seu auge, foi palco de um imbróglio envolvendo o concierge Gustave (Ralph Fiennes), uma viúva rica (Tilda Swinton), herdeiros ardilosos e uma pintura inestimável. Wilkinson diz em cena que escritores não inventam histórias, mas reproduzem o que veem e o que escutam. É a senha para Anderson fazer seu longametragem mais cinefílico, reconhecidamente em homenagem às comédias do diretor Ernst Lubitsch, como Ser ou Não Ser (1942) e A Loja da Esquina (1940). Assim como Lubitsch, que ambientava tramas na Europa sem filmar no continente, o filme de Anderson se passa numa versão da Hungria mas é rodado na Alemanha. A maior similaridade entre O Grande Hotel Budapeste e as comédias de Lubitsch, porém, são os diálogos. Escritos na era pré-Código de Hays em Hollywood - quando filmes passaram a ser
vigiados em 1930 por suas insinuações de sexo, violência e “imoralidade” alguns roteiros de Lubitsch tratavam a pompa da época com ironia: personagens trocavam diálogos rebuscados, respeitosos, mas cheios de termos e sugestões “ofensivos”. Aqui, Anderson coloca na boca de Fiennes esses diálogos; o concierge tem ambições de poeta mas solta palavrões o tempo inteiro, e o efeito cômico, ajudado pela interpretação precisa do ator, é imediato. Essa analogia com as bonecas russas se estende à própria maneira que Anderson escolhe filmar, respeitando as janelas de projeção usadas nas épocas em que a trama se passa, desde o 1.85 dos dias de hoje até o 1.33 dos anos 1930 - formato mais quadrado que espreme a tela e, de fato, parece uma boneca russa mais compacta. Mas não é a menor: em algumas cenas em 1932, Anderson recorre a miniaturas e animação em stop-motion para filmar cenários e cenas de ação, como a perseguição na neve. Expor o artificialismo da sua encenação sempre foi uma constante nos filmes de
Anderson, e quando ele faz um recorte no cenário para revelar todos os cômodos de um local (como nos planos-sequências dentro do submarino de A Vida Marinha, por exemplo) seus filmes de fato não parecem ir além da brincadeira de uma casa de bonecas. Mas há uma meia-dúzia de temas universais que se revelam nesse processo de desembrulhar coisas, que é a experiência de ver O Grande Hotel Budapeste (um filme que não por acaso envolve realmente pacotes e embrulhos cheios de segredos), desde o trauma da guerra até a pequena história de amor de perdição. No fim, nesta pequena comédia que emula as velhas tramas de mistério e assassinato, o whodunit é o que menos importa. O que importa é a memória do que permanece, de tudo aquilo que se vê e que não se esquece, como uma luz que se acende uma única vez para iluminar um rosto - efeito que Anderson usa um par de vezes ao longo do filme e que já resume em si só todo o encantamento que o cinema provoca.
Cena do filme “O Grande Hotel Budapeste” de Wes Anderson.
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POLÍTICA
REFORMA
POliTICA por que, para que e para quem
Fábio Trad
A
s cenas são diferentes, mas o roteiro é igual: todo início de legislatura federal traz consigo a ideia de reforma. Olhem por cima do muro da História e verão no corredor de passado não muito distante as pegadas de sucessivos impulsos reformistas: reforma do Estado, reforma financeira, reforma econômica, reforma tributária, reforma urbana, reforma rural, reforma da saúde, reforma do Judiciário, reforma fiscal, reforma constitucional e tantas outras que confirmam esta relação de reflexo condicionado entre ambos. Nesta legislatura, a palavra de ordem é reforma política. O Legislativo já queria, mas depois que o Executivo estimulou a ideia - discurso da Presidente Dilma na solenidade de abertura do ano legislativo do Congresso Nacional – deputados e senadores imediatamente deram início aos trabalhos.
Por que? Porque o atual sistema está degradado, esgotado, viciado, corrompido e totalmente deslegitimado. Em regra, os eleitores não votam nas ideias e propostas dos candidatos na mesma medida que os candidatos não pautam suas campanhas por debates e ideias programáticas. O uso de dinheiro nas campanhas eleitorais faz e desfaz candidaturas: ter é mais que ser.. Os eleitos não se sentem fiscalizados pelos eleitores, até porque a grande maioria dos eleitores não acompanha o exercício do mandato. Os partidos políticos estão enfraquecidos e os membros-filiados desconhecem e por isso descumprem seus princípios estatutários.
A prática clientelista dos pequenos favores (ajuda de custo, pedido de cargos, patrocínio de festas e formaturas, transporte de doentes do interior para a capital, pagamento de mensalidades escolares, etc) reduz a Política a uma sucursal do fisiologismo privado, igualando a todos – nós políticos e os eleitores – a posição de cúmplices diretos de um sistema que alimenta a corrupção, a subserviência eleitoral e o mais grave a própria negação da Política, uma vez que assim, os eleitos deixam de ser os melhores Políticos, mas os “melhores” prestadores de favores. A atividade política deixa de ser ideológica e passa a ser uma prática comercial em que a moeda de troca é a gratidão pelos favores prestados. Todos estão, foram ou serão atingidos pelos vícios do atual sistema. Se não for modificado agora, com coragem e civismo, a políti-
ca se confundirá com o mercado e a cidadania será mercadoria cujo preço só poderá ser pago mediante empréstimos em que a garantia será a dignidade da própria pessoa.
Para que? A finalidade é óbvia, mas precisa ser explicitada. A recuperação da militância partidária ideológica fará ressurgir uma figura em extinção na política brasileira: o partidário. Notem, partidário não é necessariamente sectário, embora todo sectário seja partidário de alguma causa. O partidário tem convicções: busca dialogar, sabe ouvir, aceita compor, procura o entendimento, mas não abdica dos princípios que tipificam a sua agremiação partidária. Com a reforma, será possível resgatar o debate, o discurso, o compromisso, a ideia e o ideal dos partidos. Teremos uma campanha de partidos através dos candidatos; não mais de candidatos personalistas que usam partidos como escora. Se conseguirmos, através da reforma, fortalecer os partidos, criando um ambiente propício para o diálogo discursivo das diversas correntes ideológicas formatadas nas siglas criaremos condições para acabarmos definitivamente com a figura do “cabo eleitoral remunerado”, excrescência apavorante de um sistema político tão marcadamente mercantil que aceita remunerar até mesmo a consciência daqueles que - isto é o pior – aceitam ser comprados para acreditar nos candidatos. Quanto mais uma campanha política se firmar em conceitos políticos e posturas programáticas e ideológicas, menos espaços terão os que se diferenciarem da maioria dos partidários quando adotarem práticas que hoje são tragicamente comuns. Por consequência, é natural concluir que neste novo cenário que pretende fazer assepsia no atual sistema, recursos de campanha devem ser exclusivamente públicos, pois tão danoso quanto os pequenos favores de candidato para eleitor são os grandes favores de empresas para candidatos.
março_abril
Para quem? A Reforma Política deve ser feita para o País, não para os políticos. Ela tem um destino certo: o futuro do sistema representativo e a legitimidade da democracia política. No bojo das discussões em ambas as comissões, percebe-se com certo desalento e apreensão a voz dos que querem uma reforma recauchutada, meia-sola para 2012 e 2014, apenas para acomodar interesses subalternos deste ou daquele partido.Se os instintos de sobrevivência eleitoral de lideranças ocasionais prevalecerem, a atual legislatura do Congresso Nacional será apenas mais uma dentre tantas medíocres que se deixaram levar pela tentação dos interesses imediatos e casuísticos. A Reforma Política deve ter em mira as futuras gerações para que as mudanças deflagradas por ela, ainda que lentas, sejam progressivas e fomentem uma nova cultura política no país. Depende de cada um dos atuais legisladores federais que os filhos dos filhos dos nossos filhos nos evoquem com o orgulho de quem reconhece grandes feitos dos grandes homens. Mas, é possível também, que nos futuros livros de História, a atual legislatura seja lembrada apenas no rodapé das páginas reservadas ao recorrentes tema da falta de visão nacional e futurista dos parlamentares que, podendo e devendo mudar de verdade, preferiram mudar para tudo ficar como está. Portanto, a Reforma Política não é para os partidos, mas para o povo; não é para desembaraçar ou evitar desconfortos na ocupação de espaços políticos, mas para chocar, colidir, confrontar, quebrar e destruir este sistema que está corroendo e desfigurando a verdadeira Política, a única pela qual vale a pena lutar e morrer.
Festival de Cinema
10 a 20 DE ABRIL CINEMATECA DE CURITIBA
WWW.FUNDACAOCULTURALDECURITIBA.COM.BR
informações: (41) 3653-0894 / 3845-6978
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