Livro reportagem opostos de um semelhante relatos de três adolescentes infratores5

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Opostos

de um

semelhante relatos de trĂŞs adolescentes infratores

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........... 1ª edição 2012

............................ Capa Daniel Araújo

Fotos e Diagramação

Andresa Caroline Lopes de Oliveira

Orientador Prof. Ms. Plínio Marcos Volponi Leal

Revisão de Texto Daniela Galbiatti

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Aos meus pais Paulo e Margareth por todos os esforรงos que fizeram para que eu cursasse uma faculdade.

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agradecimentos

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edico este livro aos meus pais. Sei o quanto o apoio deles foi fundamental desde 2009, quando ingressei no curso de Jornalismo.

Agradeço ao professor orientador Plínio Marcos Volponi Leal por sua bondade, paciência e dedicação. Foi uma grande honra tê-lo como orientador. A todos os professores do curso de Jornalismo da FEF, que ao longo de quatro anos contribuíram para minha formação. Agradeço a todos os entrevistados que se dispuseram a contar suas histórias, angústias e experiências. Sem esses relatos, este livro não existiria. Deixo meus agradecimentos a todos os profissionais envolvidos com instituições responsáveis pela aplicação de medidas socioeducativas. Por fim, aos que me disseram não. Ao invés de desistir, aprendi a seguir em frente. Muito obrigada!!!

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“Nem sempre os jornais falam claro e explicam as coisas como deveriam�. Gilberto Dimenstein 9


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Sumário Prefácio....................................................................12 Nota da autora........................................................14 Capítulo I

Díspares ruas da jovem Fernandópolis.....................................19

Capítulo II

O que há em comum entre Rafaela, Pedro e Danilo?...............37

Capítulo III

Recuperar: um longo caminho.................................................53

Capítulo IV

Caminhos escolhidos ganham novas perspectivas...................91

Capítulo V

Os opostos de um semelhante...............................................103

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Prefácio

A

inda não sei exatamente os motivos que levaram Andresa Oliveira a me escolher para prefaciar seu livro-reportagem. Não nego, porém, que o convite me trouxe contentamento. Como seu professor e orientador, além de ter participado do processo de produção deste livro, passei a conhecer sua determinação e persistência em todos os aspectos. Começar a vida de escritor com um livro-reportagem não é para qualquer um. Ainda por cima, com um tema tão complexo e delicado que entremeia adolescentes, punições para a criminalidade e ressociabilidade do infrator. A adolescência é tida como a fase mais dinâmica da vida de uma pessoa. Instabilidade, inconstância, dúvidas e incertezas... indecisão. Indecisão das escolhas que aparecem aos jovens. Muitas delas ajuizadas e acertadas, mas nem todas! Algumas são insensatas e imprudentes. Descuidos que podem ser penalizados pela legislação – normas, regras e princípios pré-estipulados que definem os direitos, deveres e limites do viver em sociedade. Fato é que algumas condutas são aceitas, outras não! Este livro-reportagem revela as histórias opostas de três adolescentes Rafaela, Pedro e Danilo... nessa ordem. Se conheço bem a Andresa, essa foi uma escolha arbitrária! A única jovem que representa as mulheres teria um destaque e uma aproximação maior por parte da autora. E isso é percebido e sentido! Esse fato, porém, não inferioriza ou faz com que as histórias dos meninos sejam menos importantes ou irrelevantes. Muito pelo contrário! A apresentação mais minuciosa de uma personagem feminina traz ao leitor um enquadre humanizado e sensível.

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Quem lê o livro é convidado a fazer reflexões sobre a juventude que vem sendo pressionada pelos desejos, anseios e ambições. Ao ponderar sobre a história desses jovens não será mais possível olhar da mesma maneira para os adolescentes que, de alguma forma, se envolveram com o crime. Há muitos preconceitos por parte da sociedade civil. Será que você também tem? Leia e descubra! Se eu pudesse caracterizar a autora em uma única palavra... eu diria que ela é uma pessoa dramática. O drama é sua marca pessoal. Quem a conhece que o diga! Mas agora você poderá conhecer um outro lado dela. Seu drama textual! Sua dramaticidade deram às histórias tão opostas um ar enternecedor semelhante. Assim, da mesma forma como fui convidado a escrever este prefácio... eu te convido a desfrutar-se deste livro-reportagem. Plínio Volponi professor e jornalista

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Nota da autora

O

que há em comum entre três jovens diferentes em vários aspectos? Opostos de um semelhante: relatos de três adolescentes infratores é um livro-reportagem que conta a história de vida de Rafaela, Pedro e Danilo*, moradores da cidade de Fernandópolis-SP que já estiveram em conflito com a lei. Ao escrevê-lo, procurei organizar esses relatos aos poucos para que você os conheça devagar, da mesma forma que eu os conheci: com calma, procurando inserir leveza quando as perguntas das entrevistas eram muito “duras”. Um dos principais objetivos deste livro é retratar, em cinco capítulos, quatro processos que envolvem o ato infracional: o cotidiano familiar, o motivo que levaram esses jovens ao ato infracional, as medidas socioeducativas e as expectativas para futuro. Ao abordar as histórias de vida de Rafaela, Pedro e Danilo, este livro de não- ficção usou recursos do jornalismo literário como a descrição, humanização do relato e status de vida para que a narrativa chegue o mais perto possível do leitor. É como um passeio pelas ruas de Fernandópolis e uma conversa com os três adolescentes. A ideia de escrever um livro-reportagem sobre criminalidade na adolescência surgiu em agosto de 2011 a partir de um projeto de Trabalho de Conclusão de Curso. Ao pensar a escolha do tema, gostaria que o assunto abordado pelo trabalho fosse de utilidade para a sociedade e não apenas para ficar nas estantes de uma biblioteca, à qual têm acesso apenas universitários e professores. Na procura pelo assunto, a notícia de um assalto realizado por adolescentes em São Paulo chamou minha atenção. Pensei: “pode ser esse o tema do meu trabalho!”

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A criminalidade na adolescência é um problema que há anos existe na sociedade. Envolve deveres que não foram cumpridos e direitos que não saíram do papel no qual foram redigidos. Será que um adolescente infrator é realmente igual à assustadora imagem que às vezes é passada sobre ele? No princípio sempre há receio em lidar com um assunto como a criminalidade na adolescência. É um tema delicado que envolve muitos fatores como as condições financeiras, a relação familiar e o estado psicológico. Ainda há muitas perguntas sem respostas, e as histórias variam muito. O trabalho de apuração precisa ser dobrado, ainda mais por se tratar de um livro-reportagem. Dilemas resolvidos, é hora de começar a produzir. Durante a jornada deste livro, nem tudo foi calmo e cheio de rosas. Houve muitos empecilhos para a sua produção. Muitas vezes pensei em desistir. Mas, “quando uma porta fechava, outra se abria”. São os pesares da atividade jornalística. As dificuldades não impediram a gratificação de ser autora deste livro. Durante as pesquisas, entrevistas, visitas e a captação dos dados, pude estar em contato com pessoas completamente diferentes de mim, que vivem com graves problemas na família, no bairro onde moram e com elas mesmas. São experiências que eu pretendo não esquecer. Calma! Já vou encerrar esta breve nota para que você, leitor, conheça Rafaela, Pedro e Danilo. Mas, antes disso, gostaria de reforçar meus agradecimentos às pessoas que foram essenciais para a concretização deste livro: meus personagens. Sem eles, nada disso teria acontecido. Agora sim... Seja bem-vindo à cidade de Fernandópolis, conheça Rafaela, Pedro e Danilo. Não tenha pressa, você vai entrar na vida desses três adolescentes. São pessoas opostas, mas com um semelhante. * Os nomes dos jovens e dos seus familiares são fictícios para proteger a identidade deles.

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Centro da cidade de Fernandópolis-SP, onde se concentra o comércio do município.

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Capítulo I Díspares ruas da jovem Fernandópolis

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ernandópolis, ou “cidade de Fernando”, é um município localizado no interior do estado de São Paulo, a 555 quilômetros de distância da capital. Fundada no dia 22 de maio de 1939, a cidade com terras propícias para a agricultura abriga uma população de 64.696 habitantes1. Conhecida como “cidade progresso” e “cidade das águas quentes”, Fernandópolis também leva fama nacional por sediar uma das mais famosas festas de peão do Brasil. Quem chega às duas principais entradas da cidade é recepcionado com a construção de fábricas e grandes empresas; as três bandeiras hasteadas em pontos altos do município esbanjam idéia de progresso e cidadania; seus cartões postais servem como pano de fundo para retratos dos moradores, que nos dias de verão sentam-se na fonte reformada, que serve como cenário das fotos familiares. Na beira da fonte luminosa lá estão pai, mãe e seus filhos. Click, o flash dispara. Em meio a tanta coisa bonita, Fernandópolis também é dona de um lado obscuro e feio que ofusca todas as luzes que iluminam a arena de rodeio e as suas fontes luminosas. Atrás das fábricas que idealizam progresso, existe muita pobreza em bairros nos quais a população vive em péssimas condições de moradia, saúde, alimentação e, o mais grave: convive com o perigo das drogas na porta de suas casas. ...................... 1

IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), Censo 2010.

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Vista do centro comercial de Fernandópolis-SP.

Recinto de exposições Dr Percy Waldir Semeguinhi: endereço das festividades do mês de maio na cidade.

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“Não vou mentir não, eu moro na frente de uma boca” Rafaela, 13 anos

Araguaia é um nome de origem tupi que significa “Rio da Baixada dos Papagaios”. Em Fernandópolis, Araguaia é o nome de um bairro localizado na periferia da cidade. Suas ruas têm nomes singelos inspirados na natureza, tanto na flora como na fauna. Tem a rua dos Papagaios, dos Periquitos e assim seguem várias espécies de pássaros. O bairro fica próximo a uma das principais avenidas do município. Ele está escondido pelos dois salões de festas mais luxuosos da cidade que, em grandes eventos, recebem autoridades e membros da alta sociedade fernandopolense em glamorosas noites. Quem entra no Araguaia não tem a primeira impressão de que ali existem sérios problemas e perigos. Até parece um bairro organizado, com algumas ruas asfaltadas, bares, salões de beleza, minimercados com grande variedade de produtos, igreja evangélica e casas de diferentes estilos arquitetônicos, desde construções simples a outras um pouco mais elaboradas. Uma das primeiras ruas do bairro Araguaia.

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Mas no mesmo bairro há diversas disparidades. Ao andar cerca de cinco quarteirões, no “coração do Araguaia”, a paisagem não é nada parecida com o local aparentemente organizado e bem estruturado. A imagem de um enorme buraco cheio de mato, envolto por ruas improvisadas de terra, toma os olhos de quem anda por ali. E, em meio ao descaso, crianças brincam.

Ao andar poucos metros, o Araguaia mostra uma paisagem diferente.

Nesse cenário há uma rua asfaltada e arborizada, as folhas das árvores sacodem com o vento. Nota- se uma suave brisa que refresca o entardecer, enquanto a rua é tomada pelo som dos canários. Existe uma casa simples nesta rua, com a grade descascada pela pintura velha, algumas latas de tinta servem de vasos para plantas e outras flores vermelhas, que, mesmo com o inverno, teimam em estar floridas. Nos fundos, uma velha senhora lava a mesa que acabou de ser usada para o almoço.

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Essa é a casa de Rafaela, uma escorpiana de personalidade forte, de olhos assustados e gênio difícil. Com 13 anos de idade, divide a casa com a mãe, Eliana, com a irmã de seis anos, com a avó e com os tios. A casa também é compartilhada com outros moradores: dois cachorros. Um se chama “Neguinho”; o outro é uma cadela, “Luna”; um periquito, dois coelhos e algumas galinhas que ciscam pelo quintal. Pela casa, Rafaela desfila com uma toalha de banho enrolada nos cabelos segurando o cão Neguinho carinhosamente, assim como uma mãe segura seu bebê e diz: “Esse é meu filhinho”. Com certeza, a relação entre Rafaela e Neguinho é das melhores, mas o relacionamento entre Rafaela e sua mãe não chega à perfeição. “Eu e minha mãe, nós não combinamos. Então, nós não podemos ficar perto porque brigamos”, afirma com sinceridade a garota sobre a convivência com sua mãe. Fruto de uma gravidez precoce, Rafaela foi criada por sua avó Joaquina, pessoa com a qual ela mantém uma relação de carinho e amizade. Mesmo com a distância da mãe, a adolescente entende os motivos pelos quais Eliana não esteve presente de fato em sua formação. Com cabelos dourados e olhos parecidos com o da filha, a mãe de Rafaela já sofreu muitos desafios. Aos 16 anos engravidou e teve que deixar a garota aos cuidados de Joaquina para trabalhar. Mas, apesar de já ter a filha, Eliana também tinha as mesmas vontades de uma jovem de sua idade, como frequentar baladas, bares e tantas outras formas de diversão. Motivos que Rafaela compreende, mas mesmo assim prefere a companhia da avó. “Eu entendo o ponto de vista dela, só que eu sempre gostei mais da minha avó. Tipo assim, sempre fui mais apegada com a minha avó”. Joaquina, uma senhora de passos lentos, com as mãos já enrugadas, não poupa esforços para educar a neta e cuidar da casa. Mesmo com o avançar da idade, empenha-se nas tarefas domésticas, lavando a louça, que enxuga no escorredor sob a pia na simples cozinha separada por um armário da sala. Enquanto a avó cuida

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da casa, Rafaela se espreguiça em um dos três sofás que formam conjunto com um grande tapete de crochê e uma mesa de centro com uma toalha, um vaso de flor de plástico e um porta retrato. Na rack, a TV sintonizada na novela da tarde é ansiosamente aguardada pelos olhos verdes de Rafaela, o que mais lembram uma pedra de Jade, nome da protagonista da novela, que é o principal meio de entretenimento da adolescente que com satisfação afirma: “Adoro uma televisão e uma Internet”. Onde mais Rafaela poderia se divertir? Já que no bairro Araguaia não há nenhuma praça para que as crianças e jovens possam passar o tempo com os amigos? Amigos que faltam a adolescente, que teve sérios problemas relacionados às más companhias. Meninas que, como ela avalia, “Não tinha valor pra mim”. Amizades que causavam preocupação a Eliana, que enfrentou os problemas da filha com amizades ruins e atualmente sofre com o temperamento difícil da garota que varia entre crises de teimosia e agressividade. Rafaela é uma menina de fases, ora doce, ora azeda. A casa da garota não é grande. Da sala vê-se o pequeno quarto de porta azul, de madeira, ocupado por Rafaela e sua irmã. A falta de espaço gera alguns inconvenientes. Ouse acender uma luz em hora inoportuna para ver o que acontece. “Ela é assim, se você for lá no quarto e acender uma luz que você precisa acender, ela já acha ruim, né. Aí já grita”, afirma Eliana, falando sobre o temperamento da filha. Será que Rafaela não sente afeto por sua mãe? Serão as características do signo de escorpião? Difícil entender. Mais complicado ainda é o diálogo entre as duas, já que a adolescente nega qualquer tipo de conversa com Eliana, mesmo sobre assuntos como valores morais. Aquele tipo de assunto que toda mãe deveria ter com o filho que está crescendo... “Ela não conversa porque eu não gosto. Não costumo deixar ela ficar falando comigo sobre essas coisas. Mas na minha cabeça eu sei o que é certo e errado, o que é bom pra mim e o que não

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é”, diz Rafaela como se soubesse sobre o rumo que deve tomar em sua vida. Por isso menospreza e nega qualquer conselho que venha de sua mãe. Embora você esteja achando que mãe e filha vivem em um verdadeiro ambiente bélico, saiba que isso é uma versão melhorada do que já foi há pouco tempo atrás, quando Rafaela estava envolvida com más companhias. Tempos em que a agressividade não dava trégua. “A gente se dá melhor hoje do que antes. Antes era uma gritaria aqui dentro. Ela gritava, queria sair. A gente tentava segurar ela aqui. Tinha vez que ela abria a porta e escapava mesmo, a gente tinha que buscar na rua. Foi uma época que teve agressividade mesmo assim, de boca”, relata de cabeça baixa sobre os tempos difíceis entre mãe e filha. E complementa. “Mas hoje, mudou bastante, não tem mais isso não”, com voz de alívio, diz a mãe com o coração sossegado. Mas os desafios da jovem mãe não se limitam apenas a querer mais delicadeza e doçura por parte da filha. O importante é exigir que ela estude, coisa que Rafaela não gosta. Cursando o sétimo ano do ensino fundamental, só o recreio cai no gosto da adolescente que uma vez ou outra gosta das aulas de leitura e interpretação de textos. Sua escola fica longe de sua casa, pois segundo Rafaela, a escola que tem no Araguaia não é boa. “A escola de lá não é muito exemplar não”, afirma a garota. Apesar de Rafaela queixar-se do colégio que tem no seu bairro, dados publicados pela imprensa de Fernandópolis mostram que a escola E.E Barbosa Lima, a qual Rafaela se refere, ficou em 9º lugar no IDESP (Índice de Desenvolvimento da Educação do Estado de São Paulo), em 2010; está entre as dez melhores do estado. A escola não é a única reclamação de Rafaela em relação ao bairro. Para a adolescente, jovens e crianças que moram no Araguaia convivem diariamente com vários desafios a serem vencidos e que para ela, de certa forma, influenciam no futuro de quem nasce e cresce por lá. “Não vou mentir não, eu moro na frente de uma boca. Tem criança pequena, entendeu? E eles já estão, sei lá, crescendo,

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convivendo e vendo, entendeu? Eles estão vendo o mundo como está lá dentro da casa do moço. Mas sei lá, acho que eles vão crescer com um pensamento diferente”, deduz a menina. E não é que Rafaela teve um pensamento diferente? O que há por trás de tanta agressividade que aos poucos se amansa? Por que Eliana agrediu sua filha verbalmente? Quais perigos as ruas do Araguaia ofereciam à garota para que ela fosse impedida de sair de casa? O que mais Rafaela tem a dizer? Antes de saber sobre isso, é preciso ir ao Paraíso.

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“Gostava de esconde- esconde. Sabe aquela brincadeira de esconde-esconde?” Pedro, 16 anos

Como você imagina que seja o Paraíso? Um lugar bonito, com praias de águas cristalinas, palmeiras imperiais espalhadas por todos os lados, uma tenda com frutas, na qual você descansa ao som dos passarinhos e balanço das águas. Pedro um menino de pele bronzeada, com jeito de jogador de futebol no auge de seus 16 anos brincava de esconde-esconde nas ruas do Paraíso. Ele vive em um Paraíso bem diferente daqueles que as companhias turísticas vendem em seus pacotes de viagens. O paraíso de Pedro fica na esquecida periferia de Fernandópolis, e é um dos bairros que ninguém gosta de ver, pois não tem nada bonito que sirva de cartão postal. O que se vê por ali são algumas ruas sem asfalto e crianças brincando na terra e em campos improvisados. Há macacos no paraíso? No Paraíso de Pedro há! São macacos que restaram do zoológico desativado que entram nas casas e devoram o que estiver em cima da mesa. Comem como verdadeiros esfomeados; nem mesmo os remédios escapam. Apesar de todos esses problemas, Pedro acredita que o Paraíso é um bom lugar para viver: “Tem o necessário que uma pessoa precisa. Tem um campo lá perto de casa, tem outro campo de areia lá em cima, tem o CRAS, tem o postinho de saúde, tem tudo isso daí”. O CRAS a que Pedro se refere é o Centro de Referência da Assistência Social. É um espaço destinado à proteção social básica como o fortalecimento de vínculos familiares, cadastramento para o recebimento de benefícios como Bolsa Família, Renda Cidadã, além de realizar outras atividades como oficinas de dança, bordados e atividades pedagógicas. A cidade de Fernandópolis possui quatro 27


unidades que estão distribuídas em áreas de maior vulnerabilidade. O CRAS mencionado por Pedro fica localizado no Jardim do Trevo, próximo ao bairro onde o adolescente mora.

Fim de tarde no bairro Paraíso.

Assim como o Araguaia, o Paraíso também apresenta problemas de infraestrutura.

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Pedro divide a casa com a mãe, três irmãos e dois sobrinhos. Aos 12 anos, perdeu o pai, vítima de uma parada cardiorrespiratória. O pai do adolescente trabalhava como pedreiro construindo casas e edifícios para muitas pessoas, mas devido aos obstáculos financeiros, não conseguiu construir uma casa para a esposa e os filhos. As dificuldades com o aluguel é uma das principais preocupações do garoto que estuda de manhã, em uma escola que fica do outro lado da cidade. Depois da escola, Pedro tem a tarde livre para ficar em casa com a mãe, que é dona de casa e jogar bola em um campo de areia que fica próximo à sua casa. Além disso, frequenta clubes públicos com piscinas localizados em outros bairros. Reprovado na escola por duas vezes, Pedro cursa o nono ano do ensino fundamental. Ele deveria estar no segundo ano do ensino médio, ou seja, quase concluindo a fase escolar. O menino gosta de educação física e também de matemática, só que com uma condição. “Gosto de matemática quando eu sei a conta, agora quando eu já não sei, eu não gosto”, afirma o adolescente. O menino magro e de baixa estatura tem os passos mansos, olhos cheios de lembranças. Lembranças de quando era pequeno, de quando seu pai era vivo, de quando andava pra rua com seus amigos. “Gostava de esconde, esconde. Sabe aquela brincadeira de esconde-esconde? Também gostava de ir ao jogo de futebol com meu pai, meu pai sempre ia no estádio. É isso que eu me lembro bastante”. Os olhos de Pedro ganham singelas gotas de lágrimas que ficam contidas, mas não rolam pelo rosto, e um leve sorriso nostálgico ganha a face do menino ao pronunciar a palavra “Pai”. Com a falta do pai, o adolescente mantém uma relação de amizade com sua mãe. Com problemas psicológicos e dificuldades de comunicação, principalmente na escrita, a mãe de Pedro sustenta os filhos através de uma pensão oferecida pelo governo e com a ajuda dos filhos mais velhos. Em breve poderá contar com o salário de Pedro, que diz querer entrar no mercado de trabalho para ajudar

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sua mãe. Para isso, o garoto de 16 anos pretende arrumar emprego durante o período da tarde. Algo comum entre os adolescentes de baixa renda, não só de Fernandópolis, mas de todo o Brasil.

*** Pedro não é o único adolescente que procura no mercado de trabalho uma chance para ajudar financeiramente sua família. Segundo dados publicados na revista Isto É2, foram expedidas 33.173 autorizações judiciais entre os anos de 2005 e 2010 para que adolescentes com idades entre 10 a 15 anos pudessem trabalhar. De acordo com o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), apenas maiores de 16 anos podem ser empregados como aprendizes. Para isso, é necessário que o jovem tenha uma autorização judicial que o permita entrar para o mercado de trabalho. Assim como muitos jovens, Pedro vê na oportunidade de emprego a chance para uma vida melhor. O mercado de trabalho representa a esperança da resolução de todos os seus problemas. O garoto sabe a importância que o emprego representa na vida dele. Você vai saber o porquê. Mas antes é preciso conhecer mais uma rua de Fernandópolis, um lugar mais belo que o Paraíso.

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Revista Isto É, 16 de novembro de 2011, págs. 58, 59 e 60.

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“Procuro ficar junto com os amigos, conversar, beber alguma coisa, distrair, praticar algum esporte, andar de skate, andar de moto” Danilo, 15 anos

As ruas por onde Danilo manobra seu skate não se parecem nem um pouco com o Araguaia de Rafaela ou com o Paraíso de Pedro. As rodas do skate de Danilo giram sobre ruas asfaltadas no belo Jardim Santa Rita, um bairro bonito com árvores, praça iluminada ao longo da avenida, na qual as pessoas praticam exercícios físicos quando o Sol se esconde. A sede de dois poderes públicos de Fernandópolis localiza-se neste espaço. De um lado, a Câmara Municipal; do outro, o Poder Judiciário.

Praça do Jardim Sta. Rita: um dos bairros mais bonitos da cidade de Fernandópolis.

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Residências bem construídas, algumas com belas fachadas. Até as mais simples contam com certo conforto. Não há falta de muita coisa por lá; de abandonado só o antigo “Tênis Clube”, que já foi referência de glamour para a alta sociedade que freqüentava o lugar em tardes de lazer com a família. Hoje o clube, que já foi um dos mais luxuosos da cidade, tem suas piscinas tomadas pelo mato. Fora isso, a paisagem é uma das mais bonitas de Fernandópolis, onde vários hotéis estão localizados em ruas iluminadas e com árvores simetricamente plantadas. Em uma dessas ruas bem planejadas de Fernandópolis mora Danilo, um estudante de 15 anos com um comportamento que varia entre rebeldia e boa educação. O garoto divide a casa com sua mãe e mais dois irmãos. Há oitos anos seus pais se separaram. Depois disso, a relação entre Danilo e o pai nunca mais foi a mesma. “Não é muito boa não. Pouco contato. Vejo ele uma vez a cada dois, três meses, de vez em quando”, conta. Se o relacionamento entre Danilo e o pai não é dos melhores, com a mãe é diferente. Ele mantém uma relação de amizade com ela. “Somos bastante amigos. Conversamos sobre várias coisas”, diz. Cursando o primeiro ano do ensino médio, o adolescente estuda em uma das escolas mais tradicionais de Fernandópolis, localizada no nobre Jardim Santa Helena. A escola tem um prédio grande, com dois andares acessíveis através de uma longa escadaria; no pátio um belíssimo ipê faz sombra nos vários bancos, que formam uma enorme fileira, na qual os alunos descansam entre uma aula e outra. Em uma das salas, Danilo assiste a suas aulas. Algumas ele considera interessantes, outras nem tanto: “Gosto de física, geografia, biologia. Tem algumas matérias que é legal, depende do que a gente está estudando a matéria interessa. Mas são essas matérias mais. Matemática e português, essas coisas não desce”, declara. No período da tarde, Danilo tem o tempo livre para se divertir com os amigos. “Procuro ficar junto com os amigos, con-

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versar, beber alguma coisa, distrair, praticar algum esporte, andar de skate, andar de moto”, conta. Com postura elegante e cabeça empinada, o garoto parece praticar esportes. Carrega um amuleto para lhe proteger de todos os perigos aos quais a juventude está exposta. O esporte favorito de Danilo também exige certa proteção. Mesmo com apenas 15 anos de idade, ele pratica Motocross, uma modalidade esportiva de alta velocidade, na qual, ao realizar o esporte, o piloto desafia seus limites em cima de uma motocicleta aumentando cada vez mais a velocidade. Antes de se aventurar pelos caminhos do Motocross, Danilo já praticou judô, mas agora ele dedica seu tempo às motos e ao skate. É, parece que Danilo gosta mesmo de desafios... Mas só se for no esporte, pois, ao contrário de Rafaela e Pedro, o adolescente não tem muitos “inimigos” a combater. Seu bairro tem mais do que o necessário para uma vida digna, ele nunca teve problemas financeiros e também não precisa trabalhar para se sustentar ou ajudar a família. Disparidades que existem dentro de um único município, no qual todos estão protegidos pelo mesmo céu, comem os frutos da mesma terra e respiram a brisa do mesmo ar. Se Danilo é tão diferente de Rafaela e Pedro, o que eles podem ter em comum? Descubra ao virar a página.

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Rafaela relata como se envolveu com as drogas.

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Capítulo II O que há em comum entre Rafaela, Pedro e Danilo?

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uem vê Rafaela, Pedro e Danilo andarem pelas ruas, nem imagina que eles já cometeram algum tipo de ato infracional ou, como o Art. 103 do ECA define, qualquer “conduta descrita como crime ou contravenção penal”. Ao ver Rafaela, ninguém perceberia que ela já foi usuária de drogas. Seus cabelos impecavelmente penteados não demonstram jamais a imagem de uma adolescente viciada que muitas pessoas costumam ver na televisão ou nos jornais. Rafaela é uma adolescente como qualquer outra. Pedro não aparenta ser um infrator. Quem o vê com seu boné branco e camiseta engomada, nunca diria que ele foi traficante de drogas. Certamente veria o menino como um rapaz de 16 anos, que assim como os outros meninos de sua idade, gosta de jogar bola e andar com os amigos na rua. A imagem do “trombadinha” não tem chance com Pedro. Danilo, com sua educação, porte elegante e linguagem rebuscada, não passa a impressão de um mau aluno. Ninguém ousaria dizer que algum dia o adolescente foi capaz de cometer algum ato de desrespeito à sua professora. Mas fez. É... as aparências enganam. Embora esses três adolescentes não se pareçam com o típico estereótipo do adolescente infrator, mistificado com seus pés descalços, com roupas sujas e aspecto agressivo, cada um deles já esteve em conflito com a lei. De certa forma, os três adolescentes estavam vulneráveis a alguma coisa e gritavam pelo socorro de alguém. A ajuda veio, porém tarde demais, quando o pior já havia acontecido. 37


“Eu fui usuária de drogas, mas só da maconha. Usava de vez em quando, não era sempre” Rafaela Pensamentos diferentes tomavam a cabeça de Rafaela durante tardes ociosas em sua casa. Nem adianta perguntar por que a menina não brincava com os vizinhos, pois o problema de Rafaela está bem em frente à sua casa. “Eu moro na frente de uma boca”, conta a adolescente sobre os vizinhos nada convencionais. A “boca” a que Rafaela se refere, é o nome do local onde acontece o comércio de drogas como maconha, cocaína, crack e outras mais pesadas como a heroína. Apesar de frequentemente encontrada nas periferias das cidades, atualmente, as drogas não têm mais endereço: estão por toda a parte. Rafaela aos 12 anos tinha acabado de entrar na adolescência, idade dos conflitos, das descobertas, de quando se começa a decidir alguns caminhos para a vida. Ela que via o entra e sai na casa da frente, fez uma escolha confusa, às vezes lhe parecia boa, ora parecia destruí-la. Todavia, Rafaela não se envolveu sozinha. Más companhias a puxaram pelo braço e a arrastaram. Depois disso, ela não foi mais a mesma. Apesar da ausência, sua mãe, Eliana, sentia que alguma coisa estava errada com a garota. “Ela começou com muitas agressividades aqui dentro de casa mesmo. Começou a querer quebrar as coisas, não podia vir umas meninas que ela andava junto na época que ela ficava doida para sair. Então, foi onde a gente começou a perceber que ela estava usando drogas”, relata. Rafaela estava vulnerável. A mãe na maioria do tempo trabalhava; a avó estava ocupada com as tarefas domésticas; a rua convidava para o perigo. As drogas serviram à Rafaela como um ponto de fuga para todos os seus dilemas. “Eu falo, se alguém tiver que entrar nas drogas é para fugir dos problemas”, explica Rafaela.

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E as drogas ofereciam à adolescente um mundo de sensações maravilhosas, no qual tudo parecia calmo, alegre e leve. Todos os seus conflitos se acabavam com elas. As drogas começavam a envolver Rafaela. “Eu me identificava nas drogas. Nas drogas eu relaxava tipo assim, eu achava um relaxamento”, relembra. Mas as drogas são egoístas. Assim como qualquer vício, elas fazem com que o viciado só tenha vontade de usá-las mais uma vez. Diante disso, as mais frágeis criaturas que ainda necessitam do colo materno tornam-se donas de uma independência admirável. “Vó, tia, tio, irmão, você deixa tudo de lado por causa de uma coisa só. Você vira uma pessoa independente, você vira uma pessoa que não tem futuro”, conta. Entendeu o que Rafaela afirmou? As drogas alucinam; não há uma pessoa doce que resista à avalanche psicológica causada por elas. O mel torna-se limão; a fina chuva, tempestade; o respeito, agressividade. E Rafaela diz que ficou neste estado. “Você fica uma pessoa agressiva. Você vai olhar pra si mesmo um dia e vai dizer: Cara eu não tenho futuro. Eu não tenho nada disso, você vai ser só um passado, você vai fazer da sua vida uma porcaria”, explica. Além de causar estragos, as drogas tornaram Rafaela dependente delas. Ela tentava abandonar a maconha, mas não conseguia. “É mó gostoso no primeiro dia. Mas depois você vai vendo que você não quer mais, mas você não consegue parar, entendeu? É difícil parar. Porque você quer, mas seu coração e sua alma já não quer. Você quer, mas o sentimento não”, Rafaela relembra a agonia do vício. As drogas não fizeram só Rafaela a única vítima; quando se tem um familiar envolvido com as drogas, todos sofrem. Na casa de Rafaela não foi diferente, os parentes também eram reféns do vício da adolescente. “Ela saía, nós realmente saía correndo atrás. Só que eu trabalhava à noite, então ficava mais mi-

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nha mãe e meus irmãos atrás dela”, relata Eliana sobre os tempos difíceis que viveu com a filha. Mas não adiantava segurar a adolescente enquanto o perigo continuava rondando a rua onde Rafaela mora. Que tipo de amigas arrastam uma menina de 12 anos para as drogas? Essas más companhias faziam barulho na janela de Rafaela. “A gente buscava a Rafaela, colocava ela dentro de casa. Essas meninas vinham e tacavam pedra na janela para chamar a atenção dela, passava gritando na rua alguma coisa, para ela ter noção que essas meninas estavam ali. Então, foi um momento muito difícil, todo mundo sofreu. Essas meninas entravam aqui dentro. Mandava ir embora, elas não iam. Era umas meninas insuportáveis mesmo.” A feição de Eliana parece esgotada ao contar sobre as companhias de sua filha. Eliana cometeu um sério erro: tentou resolver o problema em casa sem a ajuda de autoridades competentes como o Conselho Tutelar, para que Rafaela se livrasse das drogas. Tudo ficava cada vez pior. Além de usar drogas, Rafaela se envolveu com o tráfico para poder sustentar o vício. “O que mais me prejudicou foi eu tá vendendo”, diz a garota. Triste realidade não só da adolescente, mas de muitos menores viciados. Adolescentes como Rafaela servem de escudo para grandes traficantes de drogas, que usam menores para girar o comércio sem que sejam interceptados pela polícia. Um adulto traficante pode pegar de 5 a 15 anos de prisão pela Lei de Entorpecentes (Lei 11.343/06). Já um adolescente, como Rafaela, poderia pegar até três anos de internação, de acordo com o ECA.

*** O caminho de Rafaela nas drogas não durou muito. Mesmo que Eliana tenha omitido das autoridades a situação da filha, denúncias anônimas trataram de entregar a adolescente. Mas só Rafaela foi punida, as demais companhias não. “Só a minha filha se 40


danou e as outras estão numa boa. O pessoal do Conselho Tutelar chegou a falar para mim que eu tinha que cuidar da minha filha, não da dos outros. Mas era a dos outros que também estava atrapalhando”, sente-se injustiçada Eliana. Em maio de 2010, mês festivo em comemoração ao aniversário de Fernandópolis, Rafaela foi tirada de sua família. Eliana não podia mais cuidar de sua filha; as pernas de dona Joaquina paralisaram. Seis meses de aprendizado estavam por vir.

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“Ah! Vou começar a vender pra ver se melhora minha vida” Pedro Por tempos difíceis Pedro estava passando após a morte de seu pai. Sem casa própria para morar, as despesas de casa tornaramse um desafio para a família do adolescente. Todos os meses, quando as contas chegavam, a mãe de Pedro entrava em desespero. A preocupação não se limitava somente à matriarca; os filhos também sofriam com a situação financeira pela qual passavam. “Acabava a energia, a gente ficava preocupado, minha mãe ficava preocupada”. Uma tristeza surge no olhar de Pedro ao contar. O garoto sempre passava as tardes com os amigos jogando bola ou nadando em córregos. Amigos de molecagem, meninos que andavam pelas ruas sem fazer nenhuma maldade. Mas as dificuldades começaram a fazer Pedro olhar para outros horizontes. O adolescente conheceu novas pessoas, que viviam uma vida completamente diferente da sua. Meninos que não se preocupavam com a conta de energia ou com o aluguel de suas casas. “O modo deles viver que era diferente. Tipo, fui vendo o jeito que eles vivia”, relembra. As novas companhias a quem Pedro se referia, eram usuários de maconha e traficantes. A curiosidade do adolescente fez com que ele resolvesse experimentar a droga. Primeiro a maconha, depois a cocaína. “Eles não me influenciou não, foi mais curiosidade”, afirma. O adolescente não enxergava as drogas apenas como um mundo a ser descoberto. O tráfico passou a representar para Pedro uma chance para que a situação financeira de sua família melhorasse. E então, o garoto era mais um jovem que entrava para o perigoso caminho da comercialização de drogas. “Via que era fácil. Pensei: Ah, vou começar a vender pra ver se melhora a minha vida”, conta o adolescente.

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Pedro não entrou para o tráfico sozinho: seu irmão mais velho também o acompanhou durante o período que esteve envolvido com o tráfico. A casa dos irmãos, no Paraíso, tornara-se um ponto de venda de drogas. Um lugar que sustenta o vício, que destrói famílias e tira filhos de mães. Além de destruir famílias e suprir o vício de muitos jovens, o tráfico de drogas também aumenta o vínculo com a criminalidade. Com o objetivo de conseguirem dinheiro para comprar drogas, muitos viciados começam a furtar a própria casa ou outras pessoas. Os clientes de Pedro sustentavam o tráfico deste modo. A casa do adolescente também tornou-se um esconderijo de bens roubados. “A gente vendia a droga e trocava. Tipo assim, a pessoa dava uma moto, a gente achava que era deles, aí nós ia ver era roubada. Aí trocava por dez, por vinte (reais)”, relata Pedro. O tráfico de drogas estava se tornando um negócio lucrativo para os irmãos. Constantemente usuários frequentavam a residência do adolescente para comprar droga. Pedro e o irmão “trabalhavam” sem sair de casa. “Procurei o caminho mais fácil”, afirma o menino.

*** Há oito anos trabalhando como juiz de direito da Vara da Infância e Juventude, Evandro Pelarin, é conhecido por ter uma postura extremamente contrária ao tráfico de drogas. O magistrado acredita que não existe uma fórmula que resulte na entrada do jovem para a criminalidade, nem mesmo a pobreza. “Não existem só duas alternativas para o jovem. Então, a gente diz assim: Ah, o jovem sem alternativa vai para o crime. Dá a impressão que é determinista. Quer dizer, então o jovem pobre não tem diversão, se ele não tiver, ele vai para o crime. Não, não é assim”, afirma Pelarin. A pobreza não é o único fator determinante para a entrada de adolescentes no tráfico ou em qualquer outro tipo de ato infracio43


nal. Entre livros, estudos e experiências adquiridas com pesquisas na área de ciências sociais, o assistente social Kleber Mascarenhas, acredita que os jovens brasileiros estão desprotegidos de medidas que auxiliem na prevenção da criminalidade. “Faltam muitas medidas de prevenção”, afirma Mascarenhas. Para Pelarin, não adianta passar a mão na cabeça dos jovens. É necessário que os pais estejam presentes e cobrem boas atitudes de seus filhos. “Temos que cobrar mais do jovem, cobrança mesmo. Condutas boas como, por exemplo, atitudes no esporte, atitudes na música, na comunicação”. Em um ponto o juiz concorda com Kleber Mascarenhas: é necessário oferecer mecanismos para que os jovens tenham outras opções ao invés do crime. “Já que nós estamos cobrando, temos que oferecer os meios para que ele possa cumprir. Então, nós precisamos cobrar mais do jovem atitudes positivas e dar a eles os mecanismos para poder exercitar essa cobrança”, afirma Pelarin. A mãe de Pedro convivia com um verdadeiro comércio de drogas dentro de sua casa. Os filhos não trabalhavam, e, diariamente, bens e quantias significativas de dinheiro apareciam em sua casa. O que será que essa mãe fazia? Ela não teve medo de ver os filhos presos ou até mortos? Não desconfiava do dinheiro e dos bens que apareciam em sua casa? Procurada para falar sobre o assunto, a mãe de Pedro negou-se a ser ouvida. Por isso, sua versão está ausente.

*** Em uma tarde tranquila do mês de dezembro, Pedro e os irmãos estavam na sala de sua casa assistindo à televisão. Nesse horário, é difícil usuários de drogas procurarem traficantes, pois podem levantar suspeitas. A porta da sala estava fechada quando de

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repente a entrada de policiais surpreendeu Pedro e os demais moradores da casa. “Já chegou arrebentando porta, agredindo todo mundo. Eu levei uns três, quatro tapas deles lá. Só não agrediram minhas irmãs porque viram que tinha criança lá. Só pararam de agredir na hora que viram criança lá”, relata Pedro. A polícia chegou até a casa de Pedro através de denúncias feitas por moradores. Após investigação, foi constatado que a casa do garoto era um ponto de venda de drogas. “Entrou na minha casa e achou 25 paradas de maconha, achou uma televisão roubada, computador e uma moto roubada também”, diz Pedro. As “paradas” a que o adolescente se refere, são os pacotes de maconha prontos para serem vendidos. Como a polícia encontrou 25 pacotes de maconha na casa de Pedro, ele e o irmão foram autuados pelo crime de Tráfico de Entorpecentes, previsto pelo Art.33 da Lei 11.343/2006. De acordo com essa lei, um traficante pode pegar até 15 anos de prisão. Mas como Pedro e o irmão são menores de 18 anos, eles respondem pelas prerrogativas estabelecidas pelo ECA, que preveem no máximo três anos de medida socioeducativa em regime fechado. Naquela tarde de dezembro, enquanto todas as famílias se preparavam para o Natal, Pedro e seu irmão deram adeus à família e à Fernandópolis. Sete meses de arrependimento estavam a caminho.

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“Eu gravei um vídeo na escola na sala de aula que pegou todos os alunos, professora e eu mais alguns alunos insultando a professora”

Danilo

Em 2008, Danilo cursava a oitavo ano do ensino fundamental em uma das escolas mais tradicionais de Fernandópolis. O colégio que recebe o nome de um dos fundadores da cidade é conhecido pela centenária árvore de sete copas que abriga motivo de muita polêmica na cidade. Vive-se querendo derrubar a árvore cujas raízes destroem encanamentos da escola e de casas no quarteirão, mas os alunos se recusam a deixar que a cortem. Um amplo pátio com praça distrai os alunos nos intervalos, acompanhados pela música que é tocada no palco próximo à cantina. Nos corredores, salas de aulas enfileiradas com carteiras impecavelmente limpas; cartazes incentivam a leitura. Na de História, um desenho na parede feito com lápis de cor, ilustra a evolução da espécie humana como uma linha do tempo. A escola também sempre foi referência no quesito disciplina. Mas a turma de Danilo resolveu pôr fim à paz estabelecida no lugar, ou seja, queria chacoalhar a escola. Foi o dia em que decidiram gravar um vídeo na aula de Língua Portuguesa, com o objetivo de insultar a professora que não era muito agradável com os alunos. Etapas da elaboração de um dano moral A primeira etapa da elaboração do vídeo consistiu no planejamento, Danilo combinou com os colegas o que cada um deveria fazer. “Sabe torcida organizada de festa de peão? Eu cheguei e organizei com a sala inteira, todo mundo igual eu”, conta o diretor do vídeo. Durante a aula, os alunos estavam sentados, e a professora passando conteúdo na lousa quando o plano começou a ser coloca46


do em ação. Naquele momento, começava a gravação do vídeo. As primeiras imagens tiveram direito a fundo musical feito pelos próprios alunos e a coreografia impecavelmente realizada. “Fazia pan, pan, ran, ran. A mão para cá, a mão pra lá”, descreve. Todavia, precisavam de mais material. Danilo queria o ângulo perfeito, a cena como um todo. Foi então, que o adolescente deixou o celular que serviu como câmera para que outro amigo continuasse a gravação. “Eu dei meu celular para um colega meu filmar atrás da porta, aí pegou e filmou. Nós começamos a fazer isso e começamos a zuar, fazer um monte de bagunça e tal”, conta o adolescente. Enquanto isso, a professora mantinha-se atarefada passando matéria na lousa sem tomar de volta a disciplina dos alunos e sem sequer saber o que se passava por trás de suas costas. Após captar as imagens, Danilo e mais dois amigos continuariam a terceira fase da elaboração do vídeo: “A gente colocou na internet. A professora apareceu de costa passando matéria. Os moleques colocaram um comentário assim: ‘O cão passando matéria’. Lá em casa isso”, conta em detalhes. Depois de pronto, o vídeo foi postado para bilhões de internautas no site You Tube. O Cão passando Matéria foi o título. A gravação estava acessível para que várias pessoas comentassem o que bem entendessem sobre a exposição da aula da professora. Danilo e os amigos não pensavam na possibilidade de serem descobertos. “A gente achou que ninguém iria ficar sabendo que era nós, porque tem bilhões de vídeos. Ninguém colocou o nome de ninguém”. Ledo engano, a professora acabou descobrindo o vídeo. Acredita-se que foi através de outros alunos. Diante do ato de indisciplina dos discentes, a professora procurou uma delegacia e fez um boletim de ocorrência. Virou um caso de polícia. Todos os alunos da turma de Danilo tiveram de ir até a delegacia prestar depoimento. Alguns amigos de 47


sala disseram que o adolescente e mais alguns meninos foram os responsáveis pela gravação. Depois de investigações, foi provada a culpa de Danilo e de outros dois adolescentes. Depois que a polícia concluiu o inquérito e ficou provada a autoria, Danilo e os amigos receberam, do promotor, como punição, as duas medidas socioeducativas, a Prestação de Serviço à Comunidade e Liberdade Assistida. Mas a professora não se deu por satisfeita com a punição destinada ao adolescente. Quando procurada para se pronunciar a respeito do assunto, ela declarou que não gosta de falar desse episódio, pois “justiça não foi feita”. Negou-se a dar sua versão sobre o caso, assim como a mãe de Danilo. Justiça feita ou não, seis meses de reflexão esperam Danilo.

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As m達os de Pedro.

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Capítulo III Recuperar: um longo caminho

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afaela fez uma escolha incerta. A opção da adolescente a levou para um lugar distante da família, porém essencial para que ela retomasse sua vida. Maior sofrimento aguarda Pedro. Qual a punição que ele recebeu por traficar drogas? Só dá para adiantar que o menino passou por períodos difíceis. Danilo passou a refletir mais antes de tomar alguma atitude. A brincadeira que o adolescente fez com a professora não acabou bem. O que será que ele aprendeu com seus atos? A demanda de adolescentes em medidas socioeducativas funciona como um termômetro que mede a situação social de um determinado local. Para o assistente social Kleber Mascarenhas, quanto mais jovens em medidas socioeducativas, mais problemas sociais existem. “Se tem uma grande demanda, existe muita pobreza, muita criança em situação de rua. Existe muita criança em situação de violência estrutural que é quando o Estado não garante, então vai para a instituição”, analisa. De acordo com dados do juizado de menores, referentes a dezembro de 2011, Fernandópolis tem 25 adolescentes em medida de Liberdade Assistida, 15 em Prestação de Serviço à Comunidade e 40 entre Semiliberdade e Internação. As medidas socioeducativas catalogadas pelo ECA são divididas em seis: das cumpridas em meio aberto sendo caracterizadas como Advertência, Reparação ao

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Dano, Liberdade Assistida e Prestação de Serviço à Comunidade. Além dessas, as aplicadas em regime fechado: Semiliberdade e Internação. O trabalho socioeducativo tem como finalidade recuperar os adolescentes que cometeram o ato infracional. Mas com esse trabalho é feito? Ele consegue recuperar 100% dos jovens?

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“Vieram e levaram ela pra Casa Abrigo” Eliana Quase não se escuta a voz de Eliana ao contar o destino que Rafaela teve assim que o Conselho Tutelar recebeu denúncias de que a menina estava envolvida com drogas. O frio mês de maio tornou-se dolorido para a família, que viu a adolescente ser levada para a deserta avenida do bairro Santa Bárbara, um lugar tão distante e carente assim como o Araguaia. Dona Joaquina não suportou a partida de Rafaela, adoentada, ela ficou acamada. E, por mais uma vez na vida, Eliana precisou munir-se de força para suportar a doença da mãe e a ausência da filha, embora nem toda a coragem do mundo tenha sido capaz de preencher o vazio que a menina deixou. “Minha mãe sofreu mais do que eu. Ninguém queria que ela fosse”, relata Eliana. O pior foi quando a dor se juntou à revolta. Para a mãe, a partida de Rafaela foi algo inaceitável no começo. “Eu não aceitei, a gente não aceita mesmo”, afirma. Para a adolescente, o sentimento foi o mesmo. Ela rejeitava qualquer coisa que viesse da Casa Abrigo. “Eu não gostava, ignorava”, afirma Rafaela. Um lar para quem está em perigo A Casa Abrigo que recebeu Rafaela diferencia-se muito pouco de uma casa comum. Em muitos casos, conta com uma estrutura muito melhor do que as moradias dos adolescentes que são encaminhados para lá. Além disso, sua aparência está longe das instituições de internação, pois não há funcionários fardados, portas de metais com cadeados e nem celas. Logo que se entra na Casa Abrigo de Fernandópolis, vê-se uma sala de paredes cinza e branco gelo, um cartaz com as letras

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do alfabeto recortadas em cartolinas coloridas, uma prateleira que encostada perto da janela, guarda poucos livros. Há também uma mesa de madeira com oito cadeiras, um aparelho de som que garante a música do ambiente. Além dessa sala de estudos, o abrigo possui uma sala de informática. Os adolescentes são alojados em três quartos, dos quais um é para os meninos e dois para as meninas, que são maioria. No refeitório, a primeira coisa que se vê é o quadro da Santa Ceia na parede do balcão onde são guardadas as canecas dos moradores. Várias mesas estão distribuídas pelo local. O barulho da panela de pressão pode ser ouvido em outros cômodos.

Fachada da Casa Abrigo de Fernandópolis-SP.

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Sala de estudos da Casa Abrigo de Fernand贸polis-SP.

Refeit贸rio da Casa Abrigo de Fernand贸polis-SP.

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As atitudes dos adolescentes também remetem a uma casa comum. É possível ver cenas tocantes, como a protagonizada por uma menina de 12 anos que corria pelo corredor com a esperança de que, dentro das sacolas de doações, houvesse uma lata de achocolatado. Ela dizia repetitivamente agarrada nas pernas da psicóloga: “Tem Nescau, tia?, tem Nescau tia?” Apesar da empolgação, não havia nenhuma lata de Nescau naquela sacola. A Casa Abrigo, onde Rafaela passou seis meses, funciona desde 2009 e faz parte dos três projetos da ONG católica Cofasp, fundada em 1971 pela Comunidade das Famílias São Pedro. A ONG também é responsável por mais duas instituições de atendimento ao adolescente em Fernandópolis, a Casa Bem Viver e o Espaço Amigo. A Casa Abrigo não é considerada uma instituição socioeducativa, pois exerce um trabalho de proteção. “É uma medida de proteção; são crianças e adolescentes que se encontram em situação de risco, pela falta de estrutura familiar, evasão escolar, pais usuários, alguns até já estão presos, violência sexual e violência doméstica e que por determinação judicial são encaminhadas para cá.”, explica a coordenadora da Casa Abrigo, Roseli Soares. Também não é considerada uma instituição de internação, pois os adolescentes realizam diversas atividades fora do abrigo. Por exemplo, fazem cursos profissionalizantes, frequentam escola regularmente e passeiam em chácaras. São atividades que proporcionam momentos de alegria aos jovens que desde cedo foram expostos muitas vezes a situações típicas de adultos e não tiveram tempo de serem crianças. “Quando eles têm uma atividade em um parque ou clube, eles se divertem igual criança. Criança pequena mesmo. Adoram uma bola, brincam. A gente sente que eles não tiveram infância. Isso passou na vida deles e a família não percebeu”, observa Roseli. Filhos e filhas da vulnerabilidade, muitos dos jovens que são encaminhados para a Casa Abrigo são frutos de famílias desestrutura-

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das. Muitos tiveram contato com as drogas cedo, alguns começaram a vida sexual precocemente, com 12, 13 anos de idade. Além de todos esses problemas, não têm sequer hábito básico de higiene ou asseio com o próprio corpo. Eles levam um choque quando são encaminhados para o abrigo, pois uma nova rotina de comportamento é inserida em sua vida. “Muitos chegam aqui, a gente tem que embutir a rotina de banho, escovar dente. Porque eles não têm isso, eles ficam por aí sem tomar banho, sem lavar roupa. Então precisa colocar que tem que tomar banho todo dia, colocar uma roupa limpa todo dia, às vezes a gente tem dificuldade. Parece que isso não existe. Mas, na verdade, o nosso trabalho é a base”, relata Roseli. Além da rotina de asseio com o próprio corpo, a casa também insere nos adolescentes, o hábito de organização e limpeza com o ambiente onde moram. Geralmente, os jovens nunca tiveram cuidados de higiene em casa. Para mudar essa realidade, são eles os responsáveis pela organização e pelas tarefas domésticas dentro da Casa Abrigo. Cada um deve arrumar a sua cama, lavar a sua roupa, a louça que suja e sempre manter a casa em ordem. Rotina que se estende para além do abrigamento, e que deixa a coordenadora da Casa feliz com os resultados positivos. “A gente tem experiência das meninas, que não faziam nada de serviço em casa. Quando volta no primeiro final de semana pra casa, limpa tudo na hora e deixa a casa limpa. Pegou o ritmo da Casa. A mãe chega: ‘Nossa, deixou a casa limpinha no final de semana.’ Na verdade, pega-se o gosto pela limpeza, pela organização, sente que isso é necessário”, afirma. Pode parecer que não, mas aplicar todas essas rotinas aos jovens não é uma tarefa fácil, principalmente quando eles acabaram de chegar à Casa. Assim que chegam, muitos estão fragilizados, assustados, vulneráveis em todos os aspectos. Em virtude desse comportamento, a equipe começa um longo trabalho de adaptação com eles. Missão que é complicada e cheia de obstáculos impostos pelos próprios adolescentes que negam ser ajudados. “Eles chegam revoltados na maioria dos casos. Porque tira a liberdade. Para eles, isso daqui é uma prisão, eles têm ho-

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rário pra sair, eles vão para a escola. Atividade que tem fora a gente leva, busca. Depois, eles já vão indo e voltando sozinhos. Então aí eles vão se adequando à Casa, às regras e aos horários”, explica Roseli. O trabalho da Casa Abrigo não é importante apenas para proteger os adolescentes da situação de risco. As famílias dos jovens também recebem cuidados especiais e acompanhamento que é realizado pelo CREAS (Centro de Referência Especializado de Assistência Social). Muitas vezes é necessário resgatar vínculos entre pais e filhos, pois, assim que um jovem sai da Casa Abrigo, ele volta a morar com família. “Tem que resgatar vínculos, relacionamentos. Às vezes, por falta de uma orientação na família, se perde o adolescente”, diz Roseli. Os jovens também são aproximados com a fé. Embora a Cofasp seja uma organização da Igreja Católica, todas as religiões são bemvindas para frequentar a Casa e ajudar os adolescentes através da formação religiosa. Para a coordenadora, ter fé também é muito importante para os jovens que ficam na Casa Abrigo, pois combate os medos e as angústias que eles passam. “Sem essa fé, você não vence”, acredita. Abrigar: uma missão Carinhosamente chamada de “tia” pelos adolescentes, a coordenadora Roseli Soares exerce um trabalho parecido com o de uma mãe. Diariamente em sua sala, ela busca por interesses dos jovens da casa, seja através de parcerias, a procura de novos cursos profissionalizantes ou até mesmo em busca de vagas em escolas. Além dos desafios impostos pelo cargo, ela também precisa lidar com o preconceito de muitas pessoas em relação aos moradores da Casa. “O pessoal tem a impressão que a Casa tem marginal e bandido”, afirma. Lidar com o preconceito é difícil; mesmo assim, a coordenadora não isenta os adolescentes de suas responsabilidades. É necessário ter carinho. No entanto, a disciplina também faz parte do processo de recuperação dos jovens. “A gente pega, vou à escola se precisar. Quando

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eles fazem coisa errada, eu sou dura com eles em termos de exigir responsabilidade”, afirma Roseli. Ao trabalhar em um ambiente como o da Casa Abrigo, não há como não se envolver com cada história que passa por ali. Para a coordenadora, seu trabalho na instituição é antes de tudo, uma missão que ela deve cumprir. “Eu sinto isso como uma missão. Profissionalmente é claro que você precisa de uma realização, mas a gente se envolve muito. Você quer resolver o problema de todo mundo, mas a gente não dá conta. Você trabalha um adolescente e acha que colocou alguma coisinha na cabeça dele. De repente ele pisa na bola e tem que começar todo um processo de novo. Parece que a gente enxuga gelo de vez em quando, mas esse é o desafio. Você não pode perder a esperança nunca”, diz Roseli enquanto seus olhos são tomados por lágrimas. E a missão dela fica concretizada quando ela percebe que, após todo o trabalho, há bons resultados. “Quando você vê as meninas que sai, quando você vê que a família melhorou é gratificante.” E ao falar sobre isso, as lágrimas da coordenadora são substituídas por um sorriso de missão cumprida.

*** Foi nesse ambiente que Rafaela passou seis meses de sua adolescência. Provavelmente pintou algumas caixas de madeira que estão guardadas na sala de estudos. Casa que ela aprendeu a amar. “Você vai para lá e você aprende se quiser, é lógico. Só que lá você tem todos os motivos pra aprender. Você tem todo motivo para buscar, para aprender. Porque lá ajuda, eles não estão prejudicando, eles irão ajudar”, diz Rafaela. Durante o tempo em que esteve na Casa Abrigo, a jovem recebia visitas de sua mãe todas as quintas-feiras. Nos fins de semana, o tio acordava de madrugada para buscá-la no abrigo para passar o domingo com a família. Mas antes que o Sol da segunda-feira raiasse, era preciso voltar.

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Suas breves visitas à casa da mãe não foram suficientes para que a menina participasse de todos os momentos importantes com a sua família. Várias datas comemorativas se passaram, e ela estava ausente. “Deu aniversário da minha irmã, eu estava na Casa; aniversário da minha mãe, da minha vó, dos meus familiares, eu estava presa. Mó festa da minha família por aí e eu estava presa.” O arrependimento é visível na adolescente. O termo “estar presa” utilizado por Rafaela traduz a sensação dos adolescentes que vivem na Casa Abrigo. Muitos jovens não se acostumam com as regras da Casa e acabam fugindo. Para a coordenadora Roseli Soares, não é uma fuga e sim uma evasão. “Eles não estão aqui presos, não é fuga de uma prisão. Às vezes acontece deles sair daqui, ir para escola e não voltar”, explica. Todavia, mesmo que Rafaela se sentisse presa, a passagem pela Casa Abrigo a fez refletir sobre suas atitudes, amizades e principalmente sobre suas escolhas. Só depois de seis meses, a garota esteve pronta para voltar definitivamente para a casa dela. E a data até hoje permanece anotada em um caderno rosa. Em outubro de 2010, Rafaela voltava para os braços da mãe.

*** Assim que voltou para sua casa, Rafaela continuou a ser acompanhada pelas autoridades. Devido ao seu envolvimento com o tráfico de drogas, foi determinada uma decisão judicial, para que a adolescente fosse encaminhada à medida socioeducativa de Liberdade Assistida. Para cumprir a medida, Rafaela passou a frequentar uma instituição que funcionou em Fernandópolis até outubro de 2011. A casa simples localizada no centro da cidade antes de ganhar uma reforma foi sede do Projeto Juventude e Vida, responsável por aplicar a medida de Liberdade Assistida (ou L.A. como muitos costumam chamar).Ao contrário da Casa Abrigo, o Juventude e Vida é uma instituição socioedu-

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cativa. Mesmo assim, suas instalações são parecidas com a de uma casa bem simples. Da rua vê-se a fachada amarela; Quem entra na sala pode ver o telefone que fica na mesa de madeira e o mural de fotos em cartolina azul dão a impressão de uma casa modesta como todas as outras. A casa pode até ser simples, mas o trabalho realizado nos pequenos cômodos sempre foi de extrema importância para os adolescentes encaminhados para o projeto. Em uma das salas dos fundos da casa, Rafaela encontra semanalmente a assistente social Ana Cláudia Bernasconi, que trabalha com o atendimento dos adolescentes do Juventude e Vida. Para a adolescente, a profissional tornou-se uma amiga que sempre esteve disposta a ajudá-la. Relação de confiança essencial para o sucesso do trabalho socioeducativo. Ana Cláudia afirma que a espontaneidade de Rafaela ajudou muito o trabalho da equipe técnica nos primeiros meses de acompanhamento. De acordo com a assistente social, assim que entrou no projeto a adolescente se dispôs a compartilhar todas as suas angústias e medos. Dessa forma, facilitando o trabalho socioeducativo. “É muito fácil trabalhar com ela. Vai à escola, ela ouve o que a gente fala”, conta. Mesmo que Rafaela estivesse disposta ao diálogo, não foi possível afastar a depressão que a pegou de surpresa no meio do acompanhamento. Frequentemente chorava e reclamava de problemas em casa. Mas a adversidade foi vencida e a adolescente continuou frequentando o projeto. Ao contrário de Rafaela, o comportamento de muitos adolescentes em Liberdade Assistida não é tão fácil. Muitos persistem monossilábicos durante todo o acompanhamento, mentem sobre a real situação de suas casas, dizem estar se comportando quando, na verdade, são agressivos com os pais. Quando a equipe técnica vai buscar respostas dentro da casa desse adolescente, a realidade é completamente diferente. “A gente acha que está tudo bem com o adolescente. Quando vai procurar na família, é um menino agressivo dentro de casa. A gente pergunta aqui na Liberdade Assistida, eles dizem: Ah, está tudo bem, estou ótimo”,

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revela Ana Cláudia. Embora seja complicado trabalhar quando o adolescente se recusa a dialogar com a equipe, sempre há muita insistência por parte das pedagogas, psicólogas e assistentes sociais, pois, é através do diálogo que a equipe consegue compreender onde está o problema. Quando isso não ocorre, é praticamente impossível ajudá-lo. Quando se vê um adolescente em medida socioeducativa, quase sempre se imagina um jovem agressivo e mal educado. Mas não é assim; mesmo os adolescentes vindos da Fundação Casa, não são agressivos com a equipe. Segundo Ana Cláudia, ela nunca teve nenhum problema com violência dentro do projeto. A maior dificuldade é sempre fazer com que esses adolescentes cumpram a medida. “Eles não vêm. É difícil esse menino ter acesso dentro do projeto. A gente marca atendimento e ele não vem direito. A gente faz visita aos pais, os pais às vezes se omitem de vir em uma reunião para poder ajudar esse adolescente”, relata Ana Cláudia. O compromisso dos pais com a medida também é um fator determinante para o sucesso do trabalho. Além de acompanhar o jovem, a medida de Liberdade Assistida presta atendimento mensal aos pais através de reuniões com a equipe de psicólogas e assistentes sociais. Eliana, mãe de Rafaela, mesmo que no período inicial tenha discordado das medidas socioeducativas destinadas à filha, passou a sentir-se orgulhosa de todos os meses participar das reuniões. “Não perdi nenhuma até hoje”, afirma Eliana. Para a assistente social, a família é a base para a formação do adolescente. Conclusão que ela tem a partir de experiências extraídas em sete anos de trabalho na Liberdade Assistida. “O adolescente é compromissado quando a família é compromissada também. Quando a gente observa um adolescente que cometeu um ato infracional e faz uma pesquisa familiar a gente vê que realmente existe uma falha na família também. Ou a mãe foi negligente, ou o pai fez falta para a educação e para esse desenvolvimento”, acredita. Existem adolescentes que estão em estado de vulnerabilidade desde o ventre materno. A gravidez precoce é apontada pela assistente

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social como um dos maiores problemas na formação de um jovem. “A mãe teve uma mãe negligente. Tem casos de meninas que engravidaram com 15 anos. A mesma coisa aconteceu com a mãe”, observa. “É um círculo vicioso”, completa. Em contraste com a opinião de Ana Cláudia, Eliana não se sente culpada pelas atitudes de Rafaela. Para ela, os conselhos dados à filha foram suficientes para que a menina soubesse o que era bom ou ruim. “As pessoas às vezes culpam os pais por isso. Mas eu não sou culpada pelos atos que ela fez. Eu precisava trabalhar, a maioria do tempo eu trabalhava, não era casada e não tinha tempo de ficar em cima dela”, defende-se. Por mais que Eliana aconselhasse Rafaela, a menina nunca deu ouvidos à mãe. Para que a situação mudasse, a adolescente precisou ser afastada da família, ficar na Casa Abrigo e cumprir medida de Liberdade Assistida que a vigia por todos os lados, desde a frequência escolar até o horário de permanecer na rua. Ela tardou a abrir os olhos, mas conseguiu enxergar. Por pouco não tomou o mesmo destino de suas antigas companhias: que cometeram crimes tão graves que Fernandópolis não foi suficiente para contêlas. “Foi coisas piores. Um chegou a matar, então não podia ficar aqui na Casa”. Os olhos de Rafaela ficam ainda mais assustados ao pronunciar a palavra “matar”. Rafaela estava em um caminho sem volta. Foi preciso muito aprendizado para retomar sua vida novamente. Claro que o tempo que ela perdeu não vai voltar nunca mais. Todavia, a experiência de ter ficado na Casa Abrigo e o acompanhamento da Liberdade Assistida foram de extrema importância para que ela realmente compreendesse e, principalmente, aprendesse o que sua mãe lhe dizia sobre o que era bom e ruim. E ela aprendeu. “Eu aprendi bastante coisa. Uma das coisas que eu aprendi que vai ficar para a vida inteira é que todo mundo tem um passado. Eu levo isso como um passado meu, só que não um passado ruim, é um passado

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bom. Um passado que hoje me ajuda a dar mais valor na minha família, no que eu tenho. Um passado que hoje me ajuda a dar valor na minha mãe, na minha avó, na minha família”, explica. Sobre seu futuro, ela promete ser diferente: “Vou ficar mais dentro de casa, ser uma filha mais presente pra minha mãe”. Coração de mãe nunca se engana. Eliana percebeu que as medidas fizeram uma revolução em sua filha. A menina ainda continua com temperamento complicado, variando o estado de humor, mas a agressividade que a tomava quando ela estava envolvida com as drogas simplesmente desapareceu. Para a mãe, as últimas experiências da filha na Casa Abrigo e na Liberdade Assistida foram as principais responsáveis pelas mudanças no comportamento de Rafaela. “Com o passar dos meses a gente viu que realmente foi bom pra ela. Mudou tudo, porque eu acho que ela não quer mais voltar para lá, eu tenho certeza”, diz a mãe, referindo-se à Casa Abrigo. Mudanças que são comemoradas pela equipe da Liberdade Assistida, pois cada passo que um adolescente dá rumo a um futuro promissor é comemorado pela equipe técnica. “A gente faz muita coisa para recuperar esse adolescente, mostrar pra ele outra visão da vida que ele leva, da infração que ele cometeu. Quando ele vem aqui, ele tem a chance da vida dele de se recuperar através do emprego, do curso profissionalizante e da inserção dele na escola. A gente quer mostrar pra ele o outro lado dessa situação. Entender que não precisa roubar, ficar nessa dependência de droga. São seis meses que a gente luta pra isso, pra ele não infracionar mais, principalmente o uso da droga que a gente combate muito aqui”, explica Ana Cláudia. Sucesso para alguns, fracasso para outros. As medidas socioeducativas nunca conseguem recuperar 100% dos adolescentes. A receita dá certo quando o trabalho das instituições é fortalecido com a supervisão e apoio da família, mas nem todos os casos têm um final feliz como o de Rafaela. Provavelmente Ana Cláudia já deve ter visto vários casos, comemorado vitórias e ficado entristecida com derrotas. Mas tudo isso

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permanecerá apenas em sua mente. Chegou a hora de encaixotar relatórios e dar adeus à velha casa do Juventude e Vida. E Rafaela diz que vai ficar com saudades. “A gente vai sentir falta, porque aqui você aprendeu a gostar, a respeitar como se fosse parente seu, até sua mãe, sua irmã. Aqui você aprende a amar, a ter educação, a gostar das pessoas, aprende a lidar com seus problemas e não fugir deles”. Em 2010, ficou estabelecido que cada munícipio deve ficar responsável pelo atendimento socioeducativo dos adolescentes em medidas de meio aberto (Liberdade Assistida e Prestação de Serviço à Comunidade). Essa prerrogativa tem a finalidade diminuir o número de adolescentes encaminhados para Semiliberdade e Internação, e, além disso, fortalecer os vínculos entre o infrator e a família. Devido à municipalização das medidas em meio aberto, o trabalho com medidas socioeducativas executado pelas ONGs foi transferido para os CREAS de cada cidade. Por mais importante que tenha sido o Projeto Juventude e Vida para Rafaela, outubro chegou, é hora de fechar as portas desse espaço. Enquanto isso, Rafaela não foge mais de seus problemas. Agora é preciso caminhar para um lugar distante, cujo meio de transporte é sua própria vontade. E ela está disposta a chegar lá.

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“Eu fui preso, fui para a Febem” Pedro Pedro lembra-se de como o mês de dezembro tornou-se para ele uma data de reflexão. O adolescente que vendia drogas com seu irmão foi apreendido pela polícia e levado logo em seguida para o centro de internação da Fundação Casa, em São Paulo. A Fundação Casa, extinta Febem (Fundação Estadual do Bem Estar do Menor), é uma entidade destinada a aplicar medidas socioeducativas a adolescentes de 12 a 21 anos, autores de atos infracionais mais graves, como tráfico de drogas e crimes como assassinatos. O único mês que Pedro ficou na Fundação Casa foi suficiente para ele jamais se esquecer o quanto sofreu. “Fui pra Febem, fui maltratado, apanhei lá”, revela o adolescente enquanto seus olhos envergonhados observam o chão. Pedro relata que a disciplina dentro da unidade era rigorosa e dá detalhes de como os adolescentes são tratados pela equipe de segurança. “Lá é assim, é rigoroso. Tem que andar tudo em fila, mão pra trás sempre pedindo licença, não pode nem conversar. Tem hora pra conversar; é só uma hora e é no Sol. Senão dá no fígado, no fígado”, descreve. Sua memória guarda cenas que ele presenciou no período de internação. Gestos e dores que até hoje são difíceis de esquecer. “Quando não tem nada pra fazer você fica no corredor. Mais de 80 menor parado, encostado na parede”, explica. Ao dizer isso, Pedro coloca suas mãos para trás e inclina o corpo para frente como se estivesse revivendo os momentos que passou nos corredores da Fundação Casa. O menino relembra tardes em que uma simples conversa na hora errada tornava-se uma ameaça à integridade física dos internos. “Se um conversa lá do outro lado, o funcionário vai lá e fala 68


assim: ‘Todo mundo vai apanhar por causa dele.’ Aí já vem dando tapa na cabeça dos menor”. Ele abaixa sua cabeça como se recebesse um castigo. “Lá todos paga por um”, afirma. Procurada para dar sua versão sobre as queixas de agressões, a Fundação Casa negou qualquer tipo de contato.

Pedro relata sua internação na Fundação Casa-SP.

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Da Febem à Fundação Casa: uma mancha no passado das políticas de atendimento ao adolescente infrator Os relatos de agressões feitos por Pedro não são de causar muita surpresa. A Fundação Casa parece não ter sido desvinculada da terrível imagem que representava a extinta Febem. Durante muito tempo, a antiga instituição foi palco de diversas rebeliões e imagens chocantes, uma delas, descrita por Gilberto Dimenstein em seu livro “O Cidadão de Papel”. Rebelados, garotos colocaram fogo nas instalações da Febem (Fundação Estadual do Bem Estar do Menor), destinada a infratores. Do lado de fora, um policial, satisfeito com as chamas, comentou na frente dos repórteres: - Deixa pegar fogo. Tô adorando. Dá até para fazer churrasquinho. Reclamando de maus-tratos, dezenas de garotos fugiram. Muitos deles, sem ter para onde ir, acabaram na Praça da Sé, bem no coração da cidade. A maior cidade da América Latina ficou aterrorizada3. A história da Febem tem início na época escravocrata do Brasil. Por volta de 1900, era comum muitos recém-nascidos serem abandonadas pelos pais nas famosas ‘Rodas dos Expostos’, localizadas nos conventos e hospitais. Em 1871, com a Lei do Ventre Livre, a grande quantidade de crianças abandonadas tornou-se um problema para a sociedade. Como resultado desse abandono, muitos desses meninos começaram a infracionar através de pequenos furtos ao comércio. ............................ DIMENSTEIN, Gilberto. O cidadão de papel. 2006, pág. 48.

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Foi nesse contexto que surgiram alguns termos até hoje utilizados quando a sociedade se refere a um menor abandonado ou a um infrator. Meninos carentes eram e ainda são chamados de trombadinhas, bandidinhos e pivetes. Devido ao crescente aumento do número de crianças abandonadas, os conventos foram transformados em instituições que ofereciam amparo aos meninos e meninas carentes. Dessa forma, a Roda dos Expostos transformou-se em Casa dos Expostos, instituições que acolhiam jovens e crianças abandonadas. Demorou muito para que o Estado pensasse em políticas de proteção à criança e ao adolescente. Só em 1889, com a proclamação da República, o Estado pensou em uma política efetiva de proteção ao menor abandonado através da criação do Fundo de Assistência ao Menor, que consistiu em uma política de Serviço Social voltada para o atendimento do jovem abandonado4. Código de Menores: a doutrina da situação irregular Em 12 de outubro de 1927, data em que se comemora nacionalmente o dia das crianças, foi instituído no Brasil, o primeiro Código de Menores ou Código de Mello Mattos. O Decreto nº 17.943/27, primeiro foi estabelecido no Uruguai e depois por toda a América Latina5. O Código de Menores não se aplicava a todas as crianças e adolescentes, mas apenas aos que estavam em uma situação considerada irregular, seja de carência ou infração. Dessa forma, jovens e crianças carentes e autores de qualquer delito estavam sujeitos a ser atendidos pelas políticas do Estado. O primeiro Código de Menores permaneceu em vigor no Brasil até o ano de 1979, quando foi revisto. Mas antes dessa data, o ..................................

Disponível em www.promenino.org.br. Acessado em 13 de janeiro de 2012 às 22h30. 5 COSTA, Antônio Carlos Gomes. Socioeducação: estrutura e funcionamento da comunidade educativa. 2006, pág. 13. 4

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Regime Militar (1964-1985) criou a Lei 4.513/64 que instaurou a Funabem (Fundação Nacional do Bem Estar do Menor), que mais tarde tornar-se-ia Febem e, depois Fundação Casa. A Funabem consistiu em uma instituição responsável pelo atendimento de crianças e adolescentes em situação irregular. Em 1976, o nome da fundação foi alterado para Febem (Fundação Estadual do Bem Estar do Menor). Todavia, a mudança da nomenclatura não fez mudanças na política de atendimento às crianças e adolescentes assistidos pela instituição. Três anos após a instauração da Febem, o primeiro Código de Menores foi revisto em 10 de outubro de 1979, através da Lei 6.697/79. O segundo Código de Menores não se afastava das principais características do instituído em 1927. Todavia, a autoridade judicial ganhou poder ilimitado na revisão do código, tornando a criança e o adolescente objeto de medidas sociais e não de direitos como estabeleceria o ECA em 1990. De acordo com o assistente social Kleber Mascarenhas, o Código de Menores não consistia em uma política de direitos da criança e do adolescente. Para ele, a legislação era voltada apenas para a situação irregular, na qual eram inseridos infratores e carentes. “O adolescente iria ter direitos, mas quando ele estava em uma situação irregular, de carência ou infração”, explica Kleber. O assistente social acredita ainda, que o Código de Menores carrega um passado doloroso e triste para a infância e juventude brasileira. Por esse motivo, a nomenclatura “menor” é abominada pelos profissionais de serviço social. “O termo “menor” já rotula, como uma pessoa de menor de direito e de inferioridade”, explica. Para o Código de Menores, infrator, crianças e adolescentes carentes eram vistos pela mesma óptica. Em 1990, o ECA veio para revolucionar essa situação.

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Uma nova história de direitos para crianças e adolescentes brasileiros O Brasil, em 1990, vivia uma revolução no contexto social e político. Após um período de 21 anos de Regime Militar, finalmente a população pôde de fato eleger um representante para o governo. O país também estava organizado por uma nova Constituição Federal, instituída em 1988, que garantia direitos e deveres ao povo brasileiro, inclusive às crianças e aos adolescentes. Norteado por princípios da Carta Magna Brasileira de 1988, o ECA foi instituído no Brasil em 13 de julho de 1990, pela Lei 8.069/90. O Estatuto prevê que toda criança e todo adolescente tenha direito à proteção da família, da sociedade e do Estado. Era o início do fim do repressor Código de Menores. O ECA estabelece que toda criança e todo adolescente devem ter acesso à educação de qualidade, moradia, alimentação, saúde e lazer. No entanto, após anos de existência, vê-se que suas prerrogativas não são cumpridas como deveriam. Ainda há muitas crianças e muitos adolescentes sem acesso a itens básicos de sobrevivência. Basta lembrar-se do motivo que levou Pedro a traficar. Além de garantir proteção integral à criança e ao adolescente o ECA também regulamentou a situação dos adolescentes em conflito com a lei. Para isso, foram estabelecidas as medidas socioeducativas que são catalogadas em seis: Advertência, Reparação ao Dano, Prestação de Serviço à Comunidade, Liberdade Assistida, Semiliberdade e Internação. Em comemoração aos 16 anos do ECA, em 2004, a Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH), em conjunto com o CONANDA (Conselho Nacional da Criança e do Adolescente) e com o UNICEF (Fundo das Nações Unidas para a Infância), apresentaram o SINASE (Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo), que em 2007, tornou-se projeto de Lei 1.627/07, e em 18 de janeiro de 2012, passou a entrar em vigor através da Lei 12.594/12.

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O SINASE é como uma bíblia que rege todas as instituições que executam medidas socioeducativas. Um dos princípios norteadores da legislação é que as medidas socioeducativas ao invés de terem caráter punitivo, devem contribuir para a formação do adolescente. Seja nos aspectos profissionalizantes, culturais e humanitários. Ao encaminhar um menor para qualquer medida socioeducativa, o principal objetivo é que ele aprenda a se relacionar com ele mesmo, ou seja, saiba lidar com seus conflitos e viver em sociedade de maneira pacífica. Para que isso aconteça, a participação da família é à base do trabalho socioeducativo. Não adianta o adolescente cumprir a medida e quando acabar de cumpri-la não ter o apoio e a atenção da família. O SINASE, assim como o ECA também é muito comprometido com a participação familiar. O SINASE é apenas uma das mudanças trazidas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. Além dele, a Febem foi substituída pela Fundação Casa (Fundação Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente) em 2006, através da Lei estadual 12. 469/06. Será que apenas o nome mudou? Quando foi criada em 2006, a Fundação Casa passou por várias transformações. A primeira delas foi em relação à estrutura. O ECA prevê no Art. 124, inciso VI que o adolescente em regime de internação deve permanecer internado na mesma localidade onde reside ou o mais próxima dela. Para atender a essa prerrogativa, a Fundação Casa descentralizou uma única unidade e a transformou em vários centros regionais. Dessa forma, ao todo são 142 centros socioeducativos distribuídos pelo estado de São Paulo, dos quais: 101 são de internação; 1 de Internação Sanção; 60 de Internação Provisória; 9 de Atendimento Inicial e 25 de Semiliberdade6. ...................................

Disponível em www.fundacaocasa.sp.gov.br. Acessado em 16 de janeiro de 2012 às 16h50.

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Mudanças foram feitas no visual da instituição. Os velhos blocos sem vida da Febem transformaram-se em unidades parecidas com escolas. A tinta amarela deu destaque ao branco das fachadas e, mesmo com celas, os dormitórios dos adolescentes são mais organizados. A arte foi levada para dentro das unidades, já que os jovens em medida de internação participam de várias atividades artístico-culturais dentro da instituição através de projetos como o “Arte para Todos”. O “Arte para Todos”, consiste em uma parceria entre a Fundação Casa e a ONG GADA (Grupo de Amparo ao Doente de Aids), representada pela Gerência de Arte e Cultura (GAC) da ONG. As ações do projeto são executadas através de atividades pedagógicas com os internos que incluem: oficinas de arte com Dança, Capoeira, Teatro, Fotografia, Circo, Artes Plásticas e Literatura; formação profissional (por meio de palestras, seminários, reuniões) e workshops. Esses projetos visam oferecer formação para os adolescentes. Mesmo que estejam em medida de internação, os jovens também têm acesso à educação, pois as escolas públicas disponibilizam professores não efetivos para lecionar dentro da Fundação Casa. Além das atividades pedagógicas, os adolescentes também realizam cursos profissionalizantes. Durante o tempo em que esteve na Fundação Casa, Pedro conta que havia uma confusão de sentimentos entre os internos. Os mais rebeldes, mesmo com todo o sofrimento afirmavam que continuariam no crime. “Tinha uns que não tinha mais solução, já tava pra essa vida mesmo”, observava Pedro. A virilidade de um adolescente cruel, em poucos dias, transformava-se em arrependimento acompanhado de lágrimas. “A maioria arrependia. Tinha uns que arrependia, chorava, falava que nunca mais ia fazer isso daí”, afirma Pedro.

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Pedro foi um dos que se arrependeu. Em plena era da informática, as letras mal escritas da mãe faziam companhia ao menino que estava a 555 km de casa, através de cartas manuscritas. Folhas de papel faziam Pedro se sentir mais perto de casa. É como se a presença da mãe viesse em cada trecho que ele lia. A solidão e a distância da família fizeram com que o adolescente percebesse que só sua mãe se importava com ele. “Quando eu estava lá, eu vi que foi só a minha mãe que lembrou de mim. Foi só minha mãe que me acompanhou e vai me acompanhar sempre.” Os olhos de Pedro ganham lágrimas ao lembrar. Quanto aos amigos de Pedro... Desses nunca mais se ouviu falar. *** Depois de passar um mês na Fundação Casa na cidade de São Paulo, Pedro voltou para Fernandópolis, mas não para seu lar. Assim que chegou à cidade, em janeiro de 2011, o adolescente foi encaminhado para a Casa de Convivência Bem Viver, um dos projetos da ONG Cofasp com supervisão da Fundação Casa, responsável pela medida de semiliberdade. Com portões vermelhos, a casa parece uma residência como qualquer outra, mas o funcionário fardado que fica no alpendre a diferencia das outras casas do quarteirão. Quando a unidade foi instalada, os moradores do local fizeram protestos com medo dos adolescentes que seriam abrigados pela instituição, mas não obtiveram sucesso com as manifestações. “Eu cheguei, desci da van e entrei. Desci com a mão pra trás, pedindo licença”. Pedro coloca as mãos para trás e reconstitui a sua chegada, mesmo sentado em uma cadeira.

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Ao contrário dos agentes de segurança da Fundação Casa, os monitores e funcionários da semiliberdade demonstraram mais humanidade com os adolescentes que haviam chegado, inclusive com Pedro. “Falaram assim que não precisa fazer isso de pedir licença nem nada, podia conversar a qualquer hora”, compara. O tratamento pode até ser diferente, mas, assim como qualquer outra instituição socioeducativa, a semiliberdade também tem regras. Liberdade pela metade A medida de semiliberdade prevista pelo Art. 120 do ECA geralmente é aplicada como uma forma de transição entre a internação e o meio aberto. Os adolescentes que cumprem essa medida saem durante o dia para a realização de atividades fora das instituições, mas voltam para pernoitar nas unidades onde o regime é aplicado. Nos fins de semana, os adolescentes em semiliberdade podem passar o sábado e o domingo com a família. Mas Pedro sempre sentiu muita dificuldade ao voltar para a Casa Bem Viver. “É difícil, você tá no mundo com sua família e tem que voltar pra aquele lugar de novo”. Ao dizer isso, os olhos do menino paralisam como se ele se lembrasse de algo. Pedro vê a medida como um teste. “Tá testando você. Porque você tá aqui fora e tem que voltar pra dentro.” Mas, ao contrário de Pedro, nem todos voltavam. Quando voltava para a Casa Bem Viver, Pedro encarava a rotina diária da casa que assim como qualquer outra instituição de regime fechado, tem normas a serem cumpridas. E ele se lembra de cada uma delas. “É cinco minuto para tomar banho. Tipo assim, se você quer alguma coisa, quer ligar a televisão, você não pode ligar, tem que falar para o funcionário ligar. Tem hora para sair pra ir na escola, tem meia hora para ir e para voltar. Eles olham tarefa tudo,

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se o caderno está em ordem, vista, põe data para ver o que o adolescente está fazendo na escola”. Pedro descreve a rotina dentro da unidade. Por mais que haja regras, a casa também oferece oportunidades de lazer aos jovens com atividades externas. Momentos que deixavam a medida mais leve para Pedro. “Quando era nas férias, a gente ia no Água Viva, na Casa de Portugal e tinha as atividades pra quem não estudava à tarde, ia na piscina fazer natação”, relembra. Mas só educação e lazer não são suficientes para recuperar um adolescente infrator, é preciso cuidar do lado emocional. Para isso, a Casa Bem Viver recebe semanalmente a visita de uma psicóloga, que presta atendimento aos jovens. Um dia por semana, eles têm a oportunidade de contar todas as suas angústias, medos e expectativas. Pedro viveu essa rotina durante seis meses. Em junho de 2011, ele pode voltar definitivamente para sua casa e buscar novas alternativas para a sua vida.

*** Depois de sete meses entre muitas idas e vindas, Pedro voltou a morar com a mãe. Em virtude de seu envolvimento com o tráfico, o adolescente foi encaminhado a cumprir duas medidas socioeducativas em meio aberto: as de Liberdade Assistida e Prestação de Serviço à Comunidade. Para cumprir as medidas, o jovem frequenta semanalmente uma casa localizada em um dos bairros mais tradicionais de Fernandópolis. Em uma das ruas do elegante jardim Santa Helena, uma casa de portões cinza é a sede do CREAS, instituição municipal responsável pelo serviço de proteção a famílias que tiveram seus direitos violados, a crianças vítimas do trabalho infantil, idosos, mulheres, deficientes e homossexuais vítimas de violência moral e sexual; também atende adolescentes que cumprem 78


medidas socioeducativas em meio aberto. Assim que começou a frequentar o CREAS, Pedro foi recebido pela pedagoga Maísa Ortolan, que faz atendimentos semanais com os adolescentes em medidas socioeducativas. Com voz doce e delicada, a educadora não se parece nem um pouco com os duros agentes de segurança da Fundação Casa. Afinal de contas, Maísa trabalha para que os jovens busquem novos caminhos, não para repreendê-los. “A gente procura refletir, orientando, tanto com relação à medida, quanto em relação à própria vida familiar do adolescente, ao meio em que ele vive e ao ato infracional. O objetivo maior é tentar que não haja reincidência, que o ato infracional termine por ali”, explica a pedagoga. Ao cumprir a medida, Pedro precisa frequentar semanalmente atendimento com a equipe técnica do CREAS por exigência da Liberdade Assistida. Além disso, o adolescente também tem a frequência escolar acompanhada e não pode permanecer na rua das 22h às 5h. Em relação à Prestação de Serviço à Comunidade, o jovem foi destinado a cuidar de uma escola que fica próxima ao bairro onde ele mora. “Fico no livro para as pessoas assinar. Se tiver alguém fumando dentro da escola, eu falo que não pode. O que tiver precisando, eu ajudo”. O menino dá detalhes sobre suas tarefas no colégio. A Prestação de Serviço à Comunidade (também conhecida como PSC), assim como a Liberdade Assistida, é uma medida socioeducativa aplicada em meio aberto. O adolescente pode cumpri-la em um período máximo de seis meses, com trabalho voluntário em estabelecimentos públicos como hospitais, escolas e programas comunitários. É executada aos sábados e domingos, não excedendo a jornada de oito horas. Para aplicar a medida de Prestação de Serviço à Comunidade o CREAS mantém convênio com várias instituições, como escolas e postos de saúde que recebem os adolescentes em PSC. O trabalho é destinado de acordo com as condições de cada jovem.

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Embora com todo o aparato e estrutura necessários para atender os adolescentes, a equipe técnica enfrenta vários empecilhos fundamentados na discriminação. É sempre muito difícil matricular um jovem que cumpre medidas socioeducativas nas escolas de Fernandópolis. “O maior problema que a gente tem é escola. Porque às vezes a escola não quer esses meninos. Tem muitos adolescentes fora da escola porque a escola se recusa. Aí a gente tem que pedir intervenção do Conselho Tutelar para conseguir vaga”, afirma Maísa. É preciso lembrar que é princípio básico do ECA que toda criança e adolescente tenha direito à educação. Então, por qual motivo vagas são negadas a esses adolescentes que precisam de educação? Quando conseguem ser matriculados, na maioria dos casos são vistos com maus olhos. É como se o passado os condenasse. “Depois que eles cometeram um ato infracional, qualquer coisa que acontece dentro da sala ou dentro da escola foram eles, independente de ter sido ou não. Existe uma rotulação bem grande na questão da escola”, a pedagoga analisa. Rotulação que eles percebem e tornam-se motivos de queixas. Reclamações que Maísa está cansada de ouvir. “Às vezes alguns meninos chega e fala: ‘Ah, mas dessa vez eu não estava fazendo nada.”, exemplifica. Além de rotular, a escola não tem cumprido com a sua missão de ensinar, pois muitos jovens não sabem efetuar uma simples conta de divisão. Realidade que assusta a pedagoga. “Um falou pra mim: ‘Eu estou na sexta série e não sei fazer conta de divisão’. Eles têm dificuldade e às vezes não é só falta de vontade de aprender”, argumenta. Não apenas têm dificuldade como também são insultados por isso. Os alunos mais avançados, rotineiramente, fazem chacotas dos adolescentes que não conseguem acompanhar o ritmo da turma. O professor, que tem o papel de ensinar e pôr ordem na sala não cumpre seu dever como deveria. Diante dessa triste reali-

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dade, a escola acaba afastando o jovem. E, diante disso não há expectativa de futuro que resista. Muitos saem da escola e fazem supletivos. Garotos que queriam sim fazer uma faculdade, mas não conseguem vencer as barreiras impostas pela discriminação de um lugar onde a igualdade deveria ser palavra de ordem. Pedro parece ter se adaptado bem às medidas de Liberdade Assistida e Prestação de Serviço à Comunidade. Em contraste com a atitude do menino, nem todos os jovens são receptivos com o encaminhamento ao CREAS. Maísa sabe muito bem como eles reagem. “A maioria chega muito revoltada. Principalmente quando eles têm audiência no Fórum. Eles saem de lá e vem pra cá. Eles chegam muito revoltados, porque é sempre aquela história: eles acham que não fizeram nada, que não tem nada. Chegam com muita raiva”, conta. Quando a ira os domina, é preciso começar um trabalho de conscientização. Os profissionais transformam-se em artesãos que começam a lapidar pedras brutas. Todavia, nem sempre conseguem transformá-las em diamantes. Há aqueles que não aceitam qualquer tipo de intervenção. Calados entram e assim permanecem até que a medida se encerre. Diante deste comportamento, ninguém consegue descobrir o que se passa na cabeça desses adolescentes. Para a pedagoga, felizmente os jovens têm refletido mais sobre seus atos. A inserção no mercado de trabalho tem colaborado muito para que os adolescentes tenham mais responsabilidade, histórias felizes que alegram a ela e a toda a equipe responsável pela recuperação desses jovens. Ainda que existam muitos casos de sucesso, nem tudo acaba com um final feliz. Diariamente há um entra e sai de histórias surpreendentes. E até mesmo a equipe técnica que está preparada para lidar com as situações mais adversas vê-se comovida. “Tem muita história aqui que a gente vai ver e fala: ‘Nossa, não é possível que existem histórias assim’. A gente começa a perceber que esses adolescentes não ti-

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nham uma estrutura para ser diferente. Eles são reflexo daquilo que eles viviam, daquilo que eles vivem, do meio que eles vivem, da sociedade, daquela formação, daquela estrutura familiar. A gente vai percebendo que não tinha como eles serem diferentes. Então, a gente começa a olhar com outros olhos, um olhar menos repressivo”, relata Maísa. E, mais uma vez, a rotulação imposta pela sociedade é vista como injusta. “Geralmente quem vê um adolescente que cometeu um ato infracional acaba olhando ele como bandido mesmo. E a gente vai começando a ver que é diferente. Eu falo que todo mundo deveria trabalhar na assistência um tempo para ver como que é”, aconselha Maísa. De acordo com a pedagoga, a mídia também vem contribuindo muito para a rotulação dos adolescentes infratores, e faz uma crítica. “A gente vê algumas histórias na televisão e pensa. Eu acho que a mídia acaba rotulando muito no geral, não só em adolescente, mas em tudo”. Antes de exigir dura punição a um adolescente infrator sem que ele tenha sido julgado pela justiça, é necessário que se vá além das perguntas que são respondidas pelos jornais. É preciso conhecer o porquê de eles terem feito o que fizeram. “Tem todo um histórico por trás para ter terminado naquilo. Não é assim, nenhum adolescente trafica do nada, ele tem todo um histórico por trás disso, ele tem uma formação na família, dentro do grupo que ele vive, dentro dos amigos que acabou levando ele a isso. Ele não tem onde se apoiar. Ele não tem estrutura melhor para ser diferente”, explica Maísa. Pedro também foi uma vítima das circunstâncias em que vivia. Sem dúvidas, ainda sofre muitos desafios, mas, pelo brilho que tem no olhar, parece não querer parar no meio do caminho rumo a uma nova vida. O adolescente sofreu muito, longe de sua família, mas o sofrimento fez com que ele aprendesse a dar mais valor nas pequenas coisas. Aprendizado que foi concretizado com uma promessa. “Graças a Deus não mexo

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mais com droga, e não quero mexer mais. Fiz uma promessa para mim, para minha mãe e pra Deus que eu não quero mais mexer com isso daí”, afirma. E entre um passe com a bola e uma ajeitadinha no peito até correr para o gol, Pedro deseja jogar em outros campos. Do Paraíso ele pensa no futuro. Mas ele não quer só pensar, ele quer buscar. E ele diz que vai com a mesma raça que corre com a bola até, atééé... O goool!

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“Fui chamado na delegacia e fui falar com o promotor. Aí ele já deu a medida, as duas medidas L.A e Serviço Comunitário” Danilo A injustiça defendida pela professora de Danilo foi a punição de Liberdade Assistida e Prestação de Serviço à Comunidade (PSC), destinada ao adolescente e aos seus amigos que participaram da gravação do vídeo que a insultou. Danilo foi destinado a cumprir serviços comunitários em um posto de saúde no bairro Paraíso. O garoto de classe média, acostumado com conforto, teve contato com um mundo completamente diferente do seu. Ao invés de ver gente saudável e bem vestida , o adolescente viu as dificuldades da população carente de um bairro onde falta muita coisa básica para que as pessoas tenham uma vida decente. O Paraíso não lembra nem um pouco as ruas bem planejadas do Jardim Santa Rita. Danilo não só conviveu com a carência do bairro como também precisou incluir a palavra “respeito” em seu vocabulário. A PSC o encarregou de recepcionar, no posto de saúde, pessoas que, além de respeito, mereciam atenção. Além de ajudar na recepção, o adolescente fazia visita aos enfermos do necessitado Paraíso, com um estagiário de medicina. Isso fez com que o jovem se apaixonasse pela área. “Tirei uma base como que é lá no postinho e tal, gostei da profissão”, afirma sobre a sua vontade de seguir carreira como médico. Com apenas 15 anos, o garoto que só pensava em andar de skate pelas ruas de Fernandópolis teve contato com pessoas debilitadas pela doença. “Já vi paciente em estado vegetativo, com a perna amputada, braço amputado, estado debilitado mesmo”. O olhar viril de Danilo se entristece ao lembrar as cenas que presenciou. O principal objetivo da Prestação de Serviço à Comunidade é fazer com que o adolescente reflita sobre seus atos. Para que a medida 84


tenha efeito, a principal variável é a vontade do próprio jovem. Quando o adolescente se dispõe a cumpri-la, os resultados tendem a ser muito positivos. Mas quando o jovem não tem interesse, o trabalho prestado à comunidade transforma-se em um motivo de revolta e obrigação, ou seja, ele apenas cumpre, mas nada de bom lhe é acrescentado. Maísa sempre buscou que os jovens em conflito com a lei refletissem mais sobre as ações deles. “A gente busca uma reflexão por parte deles. A gente tenta fazer eles buscar, até para eles começarem a refletir sobre o que eles querem para a vida e começarem a pensar um pouco antes de agir, porque eles são muito impulsivos. Alguns a gente consegue, outros não. Não é 100%”, explica. Por sorte, Danilo faz parte daqueles que conseguem tirar algum proveito das medidas socioeducativas. Conviver com pessoas diferentes e necessitadas de cuidados médicos, de amor e carinho, fez com que o adolescente refletisse sobre as suas atitudes. Ele passou a tomar uma nova postura. “Não se ganha nada ofendendo alguém, principalmente professor. No mundo que a gente tá, tem que prestar muita atenção nas coisas que a gente faz”, aconselha. Para o adolescente, uma brincadeira que parece inocente pode trazer sérios resultados. “Na maioria das vezes você faz alguma coisa e acha que não vai acontecer nada. Mas na hora que você para pra pensar, podia ter acontecido coisa muito mais grave”, reflete. Aprendizado que ela leva para o futuro. É preciso pensar mais e falar menos, é necessário se colocar no lugar do outro antes de tomar alguma atitude. “Eu falo que tem que medir os atos, as palavras, as consequências antes de você fazer qualquer coisa”, afirma Danilo.

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Apesar de tudo, histórias com um final feliz Rafaela, Pedro e Danilo erraram no passado, mas como ninguém nasceu sabendo, cada vitória que os três adolescentes conquistam é um passo para o futuro. Conseguindo recuperar ou não 100% dos adolescentes, as medidas socioeducativas de uma forma ou outra procuram contribuir para que os jovens procurem opções melhores para o futuro deles. Em alguns casos obtém êxito, em outros não. Os resultados das medidas muitas vezes chegam a surpreender até mesmo as autoridades. Além de recuperar, o trabalho socioeducativo busca inserir expectativas de vida nos jovens que já estiveram envolvidos com algum tipo de crime. Mesmo quando tudo conspira contra a recuperação do jovem, de repente uma boa notícia vem à tona. “A maioria se recupera bem. Tem meninos que a gente vê e não dá nada, mas cumprem a medida e saem bem dela”, observa o juiz da Vara da Infância e Juventude Evandro Pelarin. Em meio a derrotas e vitórias, há sempre histórias que tendem a ter um final feliz. Muitos adolescentes buscam inclusão no mercado de trabalho, empenham-se nos estudos e em cursos profissionalizantes, outros participam de grupos formados por projetos de grupos musicais ou de teatro. Projetos sociais, o trabalho socioeducativo, o apoio da família e das instituições de atendimento ao adolescente, inserem perspectivas para a vida dos jovens que já estiveram envolvidos com a criminalidade. Com Rafaela, Pedro e Danilo não é diferente. Mesmo que os adolescentes não participem desses projetos, eles têm sim muitas expectativas de futuro. E assim como qualquer adolescente, eles buscam oportunidades de uma vida melhor.

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Pedro ao olhar pela janela pensa nos seus desejos para o futuro.

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Capítulo IV Caminhos escolhidos ganham novas perspectivas

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oda vez quando a lua está alta no céu, as pessoas encostam a cabeça no travesseiro e sonham com alguma coisa. Há noites em que os pesadelos tomam o lugar dos sonhos. Lembranças ruins também podem fazer alguém perder o sono. Mas mesmo que a noite não tenha sido boa, sempre há tempo para sonhar. Os sonhos permitem que as pessoas sejam por algumas horas aquilo que sempre quiseram ser. Sonhar não custa nada. Todos são iguais perante os sonhos, não importa cor, credo ou classe social. Assim como todas as pessoas, Rafaela, Pedro e Danilo também têm seus sonhos. Eles não nasceram para o crime, mas sim para um grande futuro. Qual será o maior sonho desses adolescentes? Com o que Rafaela sonha quando ela fecha seus olhos arregalados? Será que ela sonha em ser protagonista de novela? Será que Pedro tem algum sonho? Como joga bola a tarde inteira, ele deve deitar-se muito cansado pelo esforço que faz correndo com a bola de um lado para o outro. Mas mesmo com o cansaço, ele deve ter algum sonho. E Danilo? Ele deve se sentir voando em cima de seu skate. Será que ele tem sonhos radicais assim como as manobras que faz? Além de sonhar, o que mais toma os pensamentos desses três adolescentes quando eles encostam a cabeça no travesseiro? O que eles aprenderam com as experiências? Quais conselhos dariam aos jovens de suas idades? São perguntas que serão respondidas agora... 91


“Meu maior sonho é ter minha casa própria, ser independente”

Rafaela

Cada passo que Rafaela dá rumo a um futuro melhor a faz refletir o quanto as drogas só prejudicaram sua vida. Não adiantava usar drogas para correr dos problemas. De uma forma ou outra, eles sempre voltariam para causar-lhe pesadelos. “Não tem como fugir. Você vai perceber. Vai sair daqui, que tem um problema aqui. Você vai pra lá. Lá você vai ter outro problema”, analisa. Hoje recuperada, ela sabe que os conflitos em sua vida continuarão existindo. Todavia, o amor pela família deve ser mais forte do que tudo, inclusive dos dilemas da adolescência. Mesmo que Rafaela seja jovem, ela arrisca-se a dar conselhos para garotos e garotas não apenas da mesma idade que vivem os famosos conflitos da adolescência, mas para todos aqueles que um dia poderão ter um encontro com as drogas. Simples palavras de uma menina de 13 anos, mas com vasta experiência. “Não usem a droga, não experimentem e não deixem quem vocês têm de mais importante do lado, que é a família”, aconselha. Rafaela pede que os jovens não estraguem suas vidas com as drogas. Afinal de contas, só se tem uma vida e ela não pode ser descartada com qualquer coisa. “Tem muito jovem que tem dinheiro, carro, tem vida boa. Meu conselho é para eles não jogar fora. Porque vai ser a mesma coisa que você pegar um papel, amassar e jogar no lixo. É isso que eles vão fazer com a vida deles”, aconselha a garota. Os conselhos da menina também são em relação aos amigos. Rafaela sabe muito bem como más companhias podem arruinar a vida de uma pessoa. “Se a gente tá no buraco, amigo nenhum vai tirar. A única pessoa que vai lá estender a mão é a mãe, o pai e a família”, avalia. 92


Enquanto caminha, a menina gostaria de consertar muitas coisas que ela fez. Mas isso não é mais possível. “Se eu pudesse voltar atrás, eu tinha corrigido muitos erros. Hoje não dá pra corrigir, só que antes dava. Muita coisa que eu devia ter vivido e eu não vivi”, arrepende-se. De fato Rafaela gostaria de voltar atrás. Mas não adianta ficar presa ao passado. É preciso buscar um futuro, concretizar planos e realizar sonhos. A menina que já esteve envolvida com drogas nem de longe aparenta a imagem desgastada e sem expectativa de uma viciada. Toda vez que encosta sua cabeça no travesseiro, seu pensamento vai longe. Ela sonha em ter um espaço só dela. “Meu maior sonho é ter uma casa própria. Ser independente, me sustentar pra quando eu casar, eu ter minhas coisas.” A casa dos seus sonhos não precisa ser muito grande: basta um lugar que caiba Rafaela e o orgulho de ter conseguido buscar um caminho melhor. “Eu quero fazer uma faculdade, ter o meu trabalho, ter minhas coisas. Para que eu possa bater no peito e falar que é meu”, planeja. Rafaela mais do que ninguém sabe os desafios que sua mãe enfrentou quando engravidou. Com esse exemplo dentro de casa, a menina não quer de maneira nenhuma repetir a mesma história de Eliana. “Não quero casar e, muito menos, ter filho cedo”, afirma. Mas nem todos os sonhos de Rafaela são iguais aos de muitas meninas de sua idade. Para ela, casar na igreja vestida de noiva, sonho que muitas meninas têm, virou passado. “Eu não tenho vontade de casar na igreja. Eu acho que essa ilusão não existe, já passou há muitos anos”. Embora o casamento dos contos de fadas não seja o sonho de Rafaela, ela tem outros planos. Assim como qualquer outra garota, quer um dia tornar-se uma profissional, ter seu emprego e sua independência financeira. O amor que Rafaela sente pelo cão “Neguinho” a faz pensar em ser veterinária.

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Eliana também tem muitos sonhos para Rafaela. “Eu imagino que daqui alguns anos ela esteja bem melhor, estudando pra ela ter um futuro melhor na vida dela. Futuro que eu não tive, gostaria que ela tivesse. Eu falo pra ela ser alguém na vida, tentar ser alguém na vida”, deseja a mãe. Rafaela está disposta a conquistar seu futuro. Para isso, contará com a ajuda de cadernos e lápis. “Eu quero estudar. Não sou uma aluna exemplar, mas também não sou uma aluna péssima. Eu não deixo de ter minhas notas, não deixo de fazer minhas provas. Eu pretendo chegar até o futuro estudando e eu quero estudar muito, muito e muito pra conseguir o que eu quero”, planeja. Assim como os sonhos de Rafaela são grandes, os desafios que ela terá de vencer também são vários. A adolescente vai continuar com o perigo morando em frente a sua casa, com más companhias a cercando de todos os lados. Mas se depois de tantos erros, ela conseguiu enxergar que as drogas apenas prejudicaram a sua vida, espera-se que ela continue sua caminhada em busca de seus objetivos. Que daqui alguns anos, suas mãos salvem a vida de muitos animais. Se ela quiser, vai conseguir.

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“Meu sonho é ser mecânico”

Pedro

Enquanto Pedro corre de felicidade ao fazer o gol, seus desejos são tão certeiros e fortes como o chute que coloca a bola dentro da trave. É tão bonito ver seus olhos brilhando! Mais parecem fogos de artifício em dia de decisão de campeonato. De vez em quando a bola bate na trave e não na rede. Em momentos como esse, o garoto se arrepende do que fez. “Meu maior arrependimento foi ter vendido droga, ter usado. Foi o maior erro da minha vida”, afirma. Por um instante, ele gostaria de ter feito outra jogada, ter tido outra estratégia de jogo. Ah, se ele pudesse voltar atrás, disse que faria muita coisa diferente. “Não teria entrado pra essa vida que eu estava. Saí graças a Deus, mas eu não queria ter entrado. Queria ter mudado tudo. Em vez de traficar, ter arrumado um serviço, ajudado mais minha mãe, ter tido outras amizades. Mas não tem como voltar”, arrepende-se. Realmente o tempo que passou não volta, mas há como redefinir o jogo e até o placar. Basta pegar a bola de volta e correr, correr e correr com muita raça rumo ao gol. Isso pode ser demorado, exige força de vontade e perseverança. Pedro pode até cair no meio do caminho, mas ele sabe muito bem como se reerguer, pois a vida lhe deu muito aprendizado. “A lição que eu tiro é que o tráfico não é bom pra ninguém. Foi uma lição que eu tive. Porque se eu não caísse (ser preso), eu não iria aprender. Eu iria continuar traficando. Como eu fui preso, eu vi.” O passado de Pedro vai ficar como um aprendizado, como uma estratégia de jogo que não deu certo, uma experiência que adquiriu depois de muito sofrimento. Hoje, ele aconselha que os jovens não usem a mesma tática por ele usada quando se envolveu com o tráfico de drogas. “Eu aconselho que os

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jovens deem valor na família deles. Dar valor no que eles têm. Não seguir o caminho errado. Andar para frente e não pra trás”, aconselha. Andar para frente é o que o garoto quer fazer. Ele busca sua realização profissional. “Meu sonho é ser mecânico. Ter minha oficina mecânica mesmo. Começar aprendendo, montar uma mecânica, o barracãozinho, tipo arrumar um serviço meu”. Os olhos de Pedro enchem-se de entusiasmo ao falar de sua futura profissão. Os sonhos de Pedro não param por aí. O menino pensa em realizar aquilo que seu pai não conseguiu concretizar em vida. Ao fazer seus planos, o jeito moleque do adolescente toma uma face de adulto. Mas Pedro continua sempre com o mesmo sorriso iluminado pelos dentes branquíssimos. Pedro também não se esquece da mãe. Um de seus maiores sonhos é dar um lar para que a mãe nunca mais passe necessidades. Ao imaginá-lo, ele não pensa em muito luxo. De grandioso só o seu sorriso ao contar como ele desenha a casa em sua mente. “Ah, imagino ela simples. Uma casa que seja da minha família já tá bom demais. Imagino uma casa mesmo com cinco, seis cômodos, normal mesmo. Mas tem que ser nossa”. Pedro planeja sua morada. Não importa. Seja o tamanho que for, sonhos são sonhos. E ele diz que vai buscar os seus seguindo adiante, como alguém que pega a bola depois de uma jogada errada e recomeça tudo novamente. É assim que ele pretende concretizar seus planos: “Indo até o fim. Tem que sempre que andar para frente, não para trás. Quando você quer, basta você querer. E eu quero e se Deus quiser eu vou ter”, acredita Pedro. O garoto sabe bem que a vida não é tão simples como uma partida de futebol. Diariamente, a juventude tem que lidar com adversários fortes que constantemente testam até aonde

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podem ir seus limites. São inimigos invisíveis, mas perigosos e para combatê-los é necessário ter muita força de vontade. O caminho que o adolescente precisa percorrer é longo. E lá vai Pedro, com seus passos ligeiros e apressados em busca do que deseja. Que a pressa de Pedro seja para um futuro bom.

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“Eu não tenho um sonho de conquista; nunca parei para pensar”

Danilo

Diferente de Rafaela e Pedro, Danilo parece não ter que lutar muito para conquistar seus sonhos. Sua vida nunca foi repleta de muitos desafios para vencer, pois, não precisa estudar longe e muito menos se preocupar com os problemas financeiros da casa dele. Enquanto a realidade dos outros dois adolescentes é cheia de desafios, o garoto tem a oportunidade de aproveitar da melhor forma possível seus 15 anos de idade manobrando seu skate pelas ruas bem asfaltadas de seu bairro. Como pretende ser médico, Danilo terá um longo período de estudos pela frente, afinal não é nada fácil passar no vestibular de medicina. Para conseguir esse feito, o adolescente diz que vai pegar firme nos estudos. “Eu quero começar a fazer cursinho específico para medicina, estudar de manhã e fazer cursinho à tarde ou à noite”, conta com entusiasmo. Mas o adolescente não está disposto a entrar sozinho na batalha do vestibular, a ajuda dos tios que são professores será muito bem vinda à hora dos estudos. “Tem dois tios meus que dão aula, eles irão ajudar eu também”, afirma. Aprender alguma coisa na vida realmente é muito difícil, principalmente quando a pessoa precisa rever alguns conceitos e opiniões. A professora de Danilo pode até não ter sido a professora que eles esperavam, mas de uma forma ou outra, ela estava lá para ensiná-los. Ofendê-la não causaria nenhuma modificação no comportamento dela. Mas as consequências dos atos de Danilo fizeram sim efeito no modo dele ver a vida. Depois desse aprendizado, o adolescente sente-se apto para aconselhar jovens da sua idade que vivem a rebeldia e impulsividade da adolescência. “Eu falaria para eles prestar bastante atenção nas coisas, o que eu não fiz. Eu fui muito na ideia dos outros e 98


acabei me ferrando. Então tem que prestar mais atenção nas coisas”, aconselha. É preciso ter suas próprias opiniões e não deixar levar-se por pensamentos alheios. Ao planejar seu futuro, o adolescente ainda não se definiu, mas quer montar seu consultório. O garoto pensa em formar uma família, ter esposa e filhos. Danilo tem a imagem da tradicional família em sua mente. Formação familiar que ele não tem desde os oito anos de idade, quando viu seu pai e sua mãe se divorciarem. “Eu não tenho um sonho de conquista, nunca parei para pensar. Eu penso que é me formar, ter minha família e seguir minha vida”, supõe. E ele segue a sua vida fazendo movimentos arriscados com seu skate, se sujando com as manobras radicais do MotoCross, divertindo-se com seus amigos de escola e aproveitando a sua juventude sem preocupações maiores com o futuro. O futuro do menino é um ponto de interrogação. Como certeza, só fica a sua vontade de ser médico, que só se concretizará com muitas manobras, assim como se anda de skate.

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Muitos opostos, um semelhante.

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Capítulo V

Os opostos de um semelhante

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arece que Rafaela, Pedro e Danilo aprenderam muita coisa durante o tempo em que ficaram em medidas socioeducativas. O trabalho de ressocialização fez com os jovens refletissem mais sobre o que fizeram. Além de trazer reflexão, as medidas também mostram aos adolescentes que há outro caminho além do ato infracional. Os beneficiados vão além de Rafaela, Pedro e Danilo. Geralmente, muitos adolescentes entram em uma instituição socioeducativa sem nenhuma expectativa de sucesso. Com muito esforço a equipe dessas instituições consegue recuperar muitos jovens acompanhando-os e inserindo-os no mercado de trabalho, e fazendo com que o adolescente pense em estudar, trabalhar e buscar um futuro promissor. De acordo com os dados do Juizado de Menores de Fernandópolis, a taxa de reincidência de jovens para a criminalidade é considerada baixa. “De cada dez adolescentes, três voltam a infracionar”, diz o juiz da Vara da Infância e Juventude, Evandro Pelarin. Embora com todos esses resultados, ainda é preciso buscar uma maneira que previna a entrada do jovem na criminalidade. Mas como isso pode ser feito? Essa é uma pergunta que ainda não tem respostas definidas. Como você pôde observar ao longo dos capítulos anteriores, há muita coisa por trás de um ato infracional. Assim como é difícil determinar um motivo responsável pela entrada do jovem na criminalidade, também é muito complicado estabelecer uma fórmula que evite a infração.

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Mas enquanto estudiosos e autoridades buscam as respostas e principalmente, uma solução para o problema, possíveis caminhos são propostos. É importante lembrar que são apenas sugestões e não uma fórmula com resultados exatos. Por muitos caminhos andará a juventude brasileira até que a solução para a criminalidade seja de fato encontrada. Assistentes sociais e juízes caminham de um lado para o outro em busca da solução. Enquanto o mapa não é traçado, duas alternativas são propostas: O caminho da responsabilidade familiar Um único motivo não leva um adolescente para o crime. A pobreza muitas vezes vem acompanhada da falta de atenção dos pais que não conversam com os filhos sobre assuntos básicos como a importância do estudo e a atenção que devem ter com alguns tipos de amizades. Além dos fatores físicos, há os psicológicos e os conflitos natos da adolescência. De uma forma ou outra, um menino ou uma menina que se envolve com algum ato infracional provavelmente está carente de alguma coisa. “Pai e mãe devem estar muito presentes na vida dos filhos. Tem que sair junto. O jovem quer sair, o pai tem que estar junto. Não é cada um levar uma vida distante do outro. Tem que se misturar mais”, abre um caminho o juiz Evandro Pelarin. É preciso cobrar mais atenção dos pais com seus filhos. Eles devem ficar atentos ao comportamento dos filhos, e principalmente, interessar-se pela vida deles. Nenhum ser humano vive sem diálogo. Então, por que há tantos pais que não conversam com seus filhos? Essa situação precisa mudar. Embora Rafaela dissesse a Eliana que sabe o que é bom ou ruim, é preciso insistir. Rafaela, com seu gênio difícil, tinha uma relação complicada com a mãe. Aos 13 anos, qualquer adolescente possui uma visão emotiva da vida. É a fase dos experimentos, de quando

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quer-se viver todas as sensações que o mundo proporciona. As drogas serviram para a adolescente como um ponto de fuga. E lá foi Rafaela... Quase em um caminho sem volta. Pedro via sua mãe agoniada com as dificuldades financeiras da família. Ao invés de procurar alternativas, encontrou no tráfico de drogas a solução mais rápida para seus problemas. Mesmo com todas as condições necessárias para viver, Danilo estava vulnerável. O ato de desrespeito praticado contra a professora é prova de que a pobreza não é um fator determinante para que um adolescente cometa um ato infracional. Também faltou a Danilo a atenção dos pais que se separaram quando ele tinha oito anos. Mas o que fazer quando os pais precisam trabalhar para sustentar dos filhos e não têm tempo para vigiá-los 24 horas por dia, como propôs Evandro Pelarin, o juiz da Vara da infância e Juventude? Nestes casos, entra o apoio do Estado através das políticas públicas oferecendo projetos que acolham os adolescentes em atividades educativas após o período escolar. Ocupações como aulas de música, teatro e outros idiomas além de entretenimento trariam formação e enriquecimento cultural para os jovens que estariam nas ruas expostos às drogas e a violência. O caminho das políticas públicas Além da atenção e dos cuidados da família, os jovens necessitam de amparo oferecido pelo Estado. Para isso, o trabalho realizado nas unidades dos CRAS (Centro de Referência da Assistência Social), é muito importante para acolher os adolescentes que moram em áreas de vulnerabilidade social, através de atividades que fortalecem o vinculo entre pais e filhos, além de oferecer distração e formação para os jovens que ficariam nas ruas expostos a vários perigos. As medidas socioeducativas também exercem um papel de grande importância não só para a recuperação do jovem infrator, mas

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igualmente para a família. As reuniões na Liberdade Assistida fizeram com que Eliana se aproximasse mais de Rafaela e ficasse atenta às companhias e ao comportamento da filha. A inserção de Pedro no mercado de trabalho pode contribuir muito para que o adolescente ajude a mãe dele com as despesas da casa. Além disso, o jovem já está encaminhado para uma profissão assim que terminar os estudos. O aprendizado de Danilo com as medidas de Liberdade Assistida e Prestação de Serviço à Comunidade não contribuíram apenas para que o adolescente aprendesse a respeitar as pessoas. O trabalho dele no posto de saúde além de fazer com que ele tivesse mais responsabilidade, o encaminhou para os estudos. Todavia, mesmo que o Estado e as medidas socioeducativas disponibilizem mecanismos para a recuperação do jovem infrator, ainda falta muito investimento público-social para garantir que o adolescente não entre no crime. “Vendo experiências de países que investem em políticas públicas de forma geral, como auxílio maternidade de dois anos, pode se ver uma redução na taxa de criminalidade. Quando você investe na ressocialização de um preso adulto, coloca arte em um presídio. Quando se investe em política pública, você tem, em contrapartida, um índice de violência muito baixo. Com isso, a gente tem menos índices de adolescentes envolvidos com drogas e violência de uma forma geral. Defendo que essas políticas sejam oferecidas pelo Estado, não pelo terceiro setor. Porque a gente pode cobrar que sejam oferecidas com qualidade e com base no direito”, propõe o assistente social Kleber Mascarenhas O dever de cobrar direitos Enquanto um mapa definitivo não é elaborado, a sociedade pode contribuir de forma efetiva para que os direitos garantidos pela Constituição saiam do papel e sejam cumpridos. Não adianta olhar

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para um adolescente infrator como um sujeito sem direitos. A sociedade não pode passar a mão na cabeça de um menino ou uma menina que cometeu um ato infracional. Por outro lado, não deve condenar. Todo adolescente infrator recebe uma pena das autoridades judiciais competentes para julgar cada caso. De fato, muitas situações causam grande revolta nos cidadãos. Todavia, antes da sociedade partir para uma condenação moral, como as que são intencionalmente promovidas pela mídia7. É necessário lembrar que os crimes cometidos por jovens não ficam impunes. A sociedade e a mídia também podem contribuir para que muitos direitos garantidos as crianças e aos adolescentes sejam cumpridos pelo Estado. A opinião pública ao invés de acalorar e encher as páginas dos jornais através de discussões contrárias as legislações voltadas para o atendimento ao adolescente infrator, poderia cobrar das autoridades políticas sociais que contribuam para que a situação de vulnerabilidade social seja revertida através de programas que insiram famílias carentes no mercado de trabalho e de mecanismos que controlem altas taxas de natalidade na adolescência. Assim como as medidas socioeducativas, a sociedade deve mostrar a esses adolescentes que há outros caminhos: não é necessário usarem drogas para fugir de conflitos, nem traficar para resolver problemas financeiros ou insultar professor como forma de protesto. Toda vez que um adolescente se recupera, não é só ele o beneficiado: a sociedade também ganha com isso. Daqui alguns anos, Rafaela, que já foi uma viciada ou “maconheira” como muitos dizem, pode salvar seu cachorro. Esse é o plano dela para o futuro: cuidar de cachorros! ...............................

Um vídeo com reportagem do Jornal Hoje da Rede Globo, trouxe imagens de um assalto realizado por crianças de 7 a 13 anos assaltado um hotel na cidade de São Paulo no dia 23 de agosto de 2011. O vídeo foi postado no You Tube por um internauta que o titulou: “Flagrante de Trombadinhas de 7 a 13 anos fazendo arrastão em hotel de São Paulo”. O vídeo recebeu 19 comentários. Em um deles, um internauta chegou a desejar pena de morte para as crianças que estavam envolvidas no assalto. 7

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Quando seu carro quebrar no meio da estrada, Pedro poderá consertá-lo e de recompensa abrir um grande sorriso por isso. Danilo pode lhe tratar com grande respeito se algum dia você precisar ser hospitalizado. Decerto você sairá do hospital dizendo: “Como esse médico é educado!” Essas realizações, no entanto, só serão possíveis se Rafaela, Pedro e Danilo não desviarem do caminho rumo a um futuro promissor. Fica a torcida para que cada um siga adiante sem qualquer tipo de desvio. A estrada que têm pela frente não é curta. Além de longa tem muitos obstáculos. Para conseguir chegar onde pretendem, é necessário ter muita força de vontade.

*** Rafaela, Pedro e Danilo são diferentes em vários aspectos. Não apenas no bairro onde moram, mas também no temperamento, e principalmente, nos sonhos. Todavia, mesmo que exista um abismo de diferenças entre os três, eles têm um ponto semelhante: o ato infracional. A história de cada um é muito particular desde o cotidiano familiar ao ato infracional; no que cada medida socioeducativa significou individualmente para Rafaela, Pedro e Danilo. No entanto, são relatos que podem ser iguais aos de muitos adolescentes brasileiros que diariamente estampam as páginas cinza dos jornais e também convivem com o perigo das drogas próximo a suas casas. Fernandópolis não é alheia a esses problemas. Embora seja uma cidade de pequeno porte, pois possui menos de 100 mil habitantes, o município não está isento de muitos males pelos quais padecem a juventude. Existem muitas garotas iguais a Rafaela no Brasil. Adolescentes que, como ela, têm o gênio difícil e acham que sabem tudo sobre a vida. Há muitas jovens de 13 anos morando em frente a pontos de venda de drogas pelas ruas das cidades brasileiras. Atualmente, a pro-

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pagação do tráfico desmistificou o conceito de que droga só existe nas periferias das grandes cidades. Infelizmente, jovens como Pedro continuam acreditando que o tráfico de drogas é uma opção rápida e eficaz para qualquer tipo de problema financeiro. Frequentemente casos como o dele são noticiados pelos jornais. Eles querem ter aquilo que sua família não pode oferecer, como a casa própria. O caso de Danilo estampa as condições em que muitos professores convivem em sala de aula. Embora com várias situações de desrespeito, ainda há muitos educadores que acreditam no ensino brasileiro. Todavia, os dados não são animadores. De acordo com o relatório de Educação para Todos, realizado pela UNESCO (Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura), em 2010, o Brasil ocupou a posição de 88º lugar no IDE (Índice de Desenvolvimento Educacional), no qual participou 127 países8. A educação é apenas um dos agravantes da situação que se encontra a juventude brasileira. Como foi visto, há uma sucessão de fatores que levam um adolescente ao ato infracional. Todavia, os relatos de Rafaela, Pedro e Danilo são apenas um exemplo de tantas outras histórias possíveis de ser encontradas por todo o Brasil. Assim como as drogas estão em todos os lugares, também há muitos adolescentes vulneráveis pelas cidades brasileiras, tanto grandes como pequenas. Os problemas pelos quais passaram Rafaela, Pedro e Danilo refletem a situação de muitos jovens brasileiros. Mas nem sempre as pessoas conseguem enxergar que o caráter de cada adolescente é influenciado pelo meio em que ele vive. Há sim jovens extremamente pobres que vencem na vida sem usar ou traficar drogas. No entanto, a diferença está em um ponto essencial fundamentado nos valores que cada pai e mãe passarem para seus filhos. A escola não pode e nem deve preencher o vazio que é deixado pela educação familiar. O professor está em sala de aula para trans...................................... UNESCO. IDE (Índice de Desenvolvimento Educacional), 2010.

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mitir conhecimento e cultura. Todavia, o Estado pode contribuir para a formação dos jovens através de um ensino mais atrativo que além de trazer teoria, também aplique a prática para que o adolescente se interesse pelos estudos e saia da escola com uma formação para o mercado de trabalho. Um adolescente infrator é o resultado de todas as privações que ele passou. É a prova de que muitos direitos garantidos por lei não foram cumpridos. E isso não é apenas em relação às políticas de distribuição de renda, acesso a escolaridade e à saúde. A família desse jovem também deixou de cumprir muitos deveres, como os de dialogar, ter atenção e exigir responsabilidade dos filhos. Os pais desses jovens também não tiveram acesso a muitas políticas sociais e a educação é uma das principais delas. Cada situação pode ser oposta, cada adolescente infrator tem a sua história. Mas sempre há um ponto em semelhante com outros jovens. Ah! Se os jornais parassem para ouvir cada menino e menina que se envolveu com o crime. É possível que encontrassem tantos relatos opostos, mas semelhantes aos de Rafaela, Pedro e Danilo. Conhecendo cada personagem que faz parte das notícias, será possível saber aonde está o problema. Só assim a sociedade, as autoridades e os estudiosos poderão chegar cada vez mais perto da fórmula que afaste de vez a adolescência do crime. Todavia, o dia está tão corrido, que não há tempo para isso. Na verdade, os relatos seriam tantos que não caberiam nas páginas apressadas dos jornais.

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Esta obra foi composta na tipologia Calibri em corpo 14/18 e111 Minion Pro em corpo 12.


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