Livro - Para Sempre

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REGINA PRIETO

3ª Edição - Revista Presidente Prudente - SP Impress 2015



FICHA CATALOGRÁFICA Paginação: Gráfica e Editora Impress Capa: Jhonatan Freire jhonatanjhstudio@hotmail.com Revisão: Maria Angélica Crepaldi Martins Impressão e acabamento: Gráfica e Editora Impress DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP) Prieto, Regina Para Sempre / Prieto, Regina. – 3. Ed. – Presidente Prudente Gráfica Impress, 2015 64 p. ISBN 1. Romance.

Índice para catálogo sistemático Direitos Autorais de Maria Regina Prieto Sementino Bomfim da Silva prietosementino@ig.com.br Registro EDA nº 336.815 Escritório de Direitos Autorais Biblioteca Nacional Rio de Janeiro-RJ Respeite o Direito Autoral



ÍNDICE DEDICATÓRIA. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7 AGRADECIMENTOS. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9 APRESENTAÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11 NOTA DA AUTORA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13 INTRODUÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15 “Segue seu caminho, cumpra o seu papel e deixe o resultado de todos os seus projetos nas mãos de Deus.”

I. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17 “A luz brilhou radiante naquele lar.”

II. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19 “A vida nem sempre é justa com todos: mas nem por isso temos que nos acostumar e aceitar este fato. Podemos sempre tentar mudar algo...”

III . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23 “ Você, querendo, pode fazer a diferença na vida de alguém.”

IV . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 29 “ O pequeno voluntário que encantava a todos. ”

V. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 33 “Voltando à realidade...”

VI . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 35 “O inimaginável acontece e para isso é preciso acreditar...”

VII. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 39 “Tudo passa... só o amor permanece...”

VIII. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 45 “Você pode ser a diferença!”

IX . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 51 “...estreita é a porta e apertado o caminho que levam para a vida e são poucos os que a encontram (Mt 7,14).”

X. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 57 5


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DEDICATÓRIA Ao meu marido Wilde e as minhas filhas Vanessa e Gabriela, com amor. Ao meu pai Benedito Sementino com admiração e respeito eternos. A todo aquele que consegue ter um olhar atento às necessidades do outro. E para a alguém especial:

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Com carinho!

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AGRADECIMENTOS Com todo o meu ser, agradeço e agradecerei para sempre a “Deus”: de onde vem todo sopro de vida e de inspiração. Continuo a agradecer àquelas pessoas que leram este livro, enquanto ele entrava e saía da gaveta e me deram incentivo e coragem para que ele se tornasse real: Aline Fernandes Cruz Ana Lúcia Prieto Maria Angélica Crepaldi Martins Odete Zarpelão Chinade Agradeço ainda de todo coração à minha mãe, minhas amigas Neuza e Eurides(in memoriam), minha comadre Neide e a todos que, de alguma forma contribuíram com esse sonho.

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APRESENTAÇÃO Uma história tem o objetivo de transmitir uma mensagem visando a reflexão dos fatos reais. Por conseguinte, vemos na realidade muitos fatos semelhantes a este relato: “Para Sempre”. Por esta razão, nas histórias não se omite o fator principal: a ação daqueles que conseguem perceber a importância da realidade. Quando estamos envolvidos na história, nos passa despercebido a nossa vocação, fato tão ignorado em uma sociedade pós-moderna, mas entre divergências presentes é um fator primordial na compreensão da vida. Inicio assim minhas palavras para apresentar a belíssima obra literária de Regina Prieto: “Para Sempre”. Ela nos introduz um relato, que por sua vez, pode ser o nosso relato tantas vezes omisso, por uma sociedade subjetivista, onde o outro é tratado como qualquer um. Dessa maneira o personagem desta história, Gabriel, nos convida a sermos verdadeiros mensageiros, como ele mesmo é neste relato. Sendo assim este livro nos convida a observar Gabriel que, com suas ações e aventuras, nos faz questionar sobre a nossa realidade, ou seja, o nosso mundo. O pai e a mãe de Gabriel nos transmitem a importância do educar, do estar junto, de estar atento as sensibilidades da criança, e mais, nos ensinam a necessidade de ser família, e priorizar os momentos agradáveis, na compreensão de que os pais são os verdadeiros amigos. Esta história nos convida a nos comovermos com os fatos sociais existentes, uma vez que ela apresenta uma criança, se comovendo e agindo na transformação de 11


uma realidade gritante, mostrando assim que podemos e conseguimos construir e lutar por uma nova sociedade. Nos passos e pensamentos de Gabriel conseguimos nos ver? Conseguimos observar a importância do cuidar, e a entender a dimensão do outro, que por sua vez é nosso irmão? Neste proceder este livro de Regina Prieto nos dá pistas para deixarmos a nossa sensibilidade se manifestar diante de uma sociedade desafiadora. Enfim, “Para Sempre” é uma bela obra em que o personagem principal é você leitor, convidado a não deixar passar despercebido na sua vida aquilo que pode ser significante na construção da sua felicidade. Desta maneira, aprendendo com Gabriel, você estará deixando renascer dentro de você a criança, que outrora dorme diante dos pesadelos e transtornos do subjetivismo. Assim, com a esperteza da criança que almeja, deseja, você possa se comprometer com o outro, aquele que está sempre próximo de ti aguardando sua presença. Marcos Antonio Ferreira Mendes Poeta Presidente da AEITS (Associação de Escritores e Ilustradores de Teodoro Sampaio-SP)

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NOTA DA AUTORA ... A história é contada com a paixão da contadora... A história é ouvida e entendida de acordo com o coração e a vontade do leitor. A história deixou de ser minha e passou a ser sua: leitor. Que ela possa te fazer um bem ou, quem sabe, levá-lo a fazer um bem... Com estas palavras terminei a nota da 2ª edição desse livreto em 2011, e as trago de volta nesta 3ª edição para registrar que a paixão que fez com que o coração dessa contadora registrasse essa singela história há tantos anos, fez, finalmente, com que eu pudesse compreender que ela pode estar fazendo tantos bens quanto os números de vezes pelos quais está sendo lida e contada. A história deixou mesmo de ser minha e passou a ser sua: leitor. Hoje compreendo que ela é ouvida e entendida. Hoje compreendo que ela está fazendo bem. Regina Prieto

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INTRODUÇÃO Impressionante como a vida de uma só pessoa pode mudar a maneira de viver, ou ainda mais, pode transformar para sempre a realidade de várias outras pessoas. Exatamente assim aconteceu comigo quando, meu marido e eu dissemos sim ao sermos convidados a participar de um Encontro de Casais com Cristo, que se realizou na cidade de Presidente Prudente, interior do Estado de São Paulo, organizado por uma Paróquia da igreja católica. No íntimo eu já sabia que aquele sim significaria muito em minha vida. Foi naquela ocasião que vim a conhecer e criar laços de amizade com uma senhora de nome Catarina, que era uma das palestrantes no encontro. Ela, juntamente com o marido, fez a palestra “Sentido da Vida”. Lembrome, como se fosse hoje, que ao final da palestra, nós fizemos questão de cumprimentá-los. Ficamos impressionados, primeiro pela maneira como eles falaram, de modo tão marcante, sobre o amor de Deus pelos homens, em como esse amor, desde que a pessoa aceite e permita, pode agir e transformar sua vida, fazendo-a encontrar seu verdadeiro sentido e levando-a a ajudar outras pessoas a encontrá-lo também. O casal enfatizou muito que a morte não é o sentido último de nossa existência e, ao final da palestra, deu um depoimento acerca de um membro de sua família, alguém que mudou a realidade de todas as pessoas que tiveram o prazer de conviver com ele, através do grande amor que trazia dentro de si, seu nome: Gabriel. 15


Eu sentia como se algo dentro de mim pedisse para que me aproximasse de Catarina. Tudo se passou muito rápido e naturalmente e, como se já a conhecesse há anos, estava eu, depois de apenas uma semana, sentada confortavelmente nas cadeiras de cana-da-índia, no jardim florido e colorido da casa de Catarina, em sua agradabilíssima presença, conversando sobre os mais diversos assuntos. No fundo do meu coração eu sabia, estava ali por causa dele: Gabriel. Após aquela primeira visita, não pude mais me distanciar daquela senhora, pois precisava saber de tudo sobre ele.

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“Segue seu caminho, cumpra o seu papel e deixe o resultado de todos os seus projetos nas mãos de Deus.”

I Catarina sabia o que se passava em meu coração. Compreendia minha necessidade, estava ciente de que eu estava ali para saber mais e passou a me relatar, a cada visita, a história daquele ser tão amável. Tudo aconteceu em sua família, naquela mesma cidade de Presidente Prudente, há cerca de 35 anos; quando seu sobrinho Paulo e a esposa Sílvia se mudaram para lá. Paulo descendia de uma família de muitas posses. Era formado em Direito, exercia a profissão defendendo grandes causas por todo país, sendo um profissional bastante respeitado. Ele também administrava os bens da família. Como filho único, cuidava com afinco dos vários imóveis residenciais que possuíam, das fazendas e da Pousada Esplendor, que pertencia a seus pais, localizada no estado de Santa Catarina, a qual era a menina dos olhos do pai de Paulo, o qual por ter uma saúde frágil, já não suportava a viagem até a pousada, deixando aos cuidados do filho o seu patrimônio mais caro, analisado pelo lado sentimental. Sílvia, também filha única, era uma mulher de 34 anos, delicada e meiga, que trazia por trás dos encantadores olhos azuis uma sombra de tristeza, por não ter ainda conseguido tornar real seu maior e mais precioso sonho: 17


ser mãe. Sonho este que acalentara desde o início de seu matrimônio com Paulo. Os pais de Sílvia eram pessoas muito simples, dignas e honestas. Ela casou-se com Paulo aos 21 anos, assim que terminara a faculdade de Psicologia. Os pais do casal também sonhavam com a vinda de um neto, era grande o desejo deles de serem avós. Os anos passavam e a alegria de verem realizado esse desejo partia com eles. Paulo percebia a tristeza da esposa e procurava disfarçar sua própria ansiedade em relação ao assunto, para não magoá-la ainda mais. Sílvia porém, apesar dos esforços do marido, o conhecia muito bem e não ignorava sua ansiedade em ser pai, o que a deixava profundamente entristecida. Mas, sempre com um sorriso nos lábios, ela que tinha uma fé fervorosa e inabalável confiança em Deus; dizia que sua bondade era infinita e, certamente atenderia suas orações, lhe dando um dia a alegria de ser mãe, assim como fizera como Sara, mulher de Abraão, presenteando-a com Isaac (Gn 21,3) e muito tempo depois também foi assim com Zacarias e Izabel, os quais geraram João Batista ( Jo 1, 57). Dois anos se passaram sem que Sílvia engravidasse. O casal então, começou a pensar em adotar uma criança. Quando, já decididos e empenhados no processo de adoção, veio a feliz notícia: Sílvia, finalmente, engravidara.

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“A luz brilhou radiante naquele lar.”

II A família comemora, plena de alegria, a chegada do bebê. Um lindo menino, que recebe o nome de Gabriel, homenagem de Sílvia ao anjo que anunciou a Virgem Maria que ela seria a mãe do salvador dos homens, a mãe de Jesus, o filho de Deus (Lc 1,26-31). A criança era como um raio sol, que com sua luz iluminava e transmitia calor aos corações de todos naquela família. Com ela chegou àquele lar a verdadeira felicidade. O pai sente-se realizado e orgulhoso. A mãe recebe aquela criança como um verdadeiro presente de Deus. Para os avós, o neto era um grande prêmio que a vida lhes oferecera, para alegrá-los e consolá-los na velhice. Paulo, que gostaria de criar o filho com maior tranqüilidade, conversa com a esposa sobre a intenção de abandonar a advocacia, que o mantinha constantemente viajando, afastando-o do lar. Dedicar-se-ia apenas aos negócios da família. Recebe total apoio de Silvia. O casal decide ainda trazer os pais de ambos para residirem com eles. A família mudou-se da casa que ocupava na cidade para a fazenda que possuía naquela mesma região de Presidente Prudente e se dedicava com amor aos cuidados com o bebê. Gabriel, desde bebê, conquistava a atenção das 19


pessoas por onde quer que passasse. Sua beleza radiante, de cabelos claros, olhos azuis como o céu e feições angelicais como seu nome, encantava a todos. O garoto sempre foi dócil, qualidade herdada da mãe. E possuía uma característica marcante: acariciava, abraçava e beijava a tudo e a todos que via, desde uma pequena flor no campo, as pessoas da família e também os desconhecidos que dele se aproximassem. Em seu relato, Catarina lembrou-se divertida de uma das ocasiões que visitara sua irmã, mãe de Paulo e a família na fazenda: era uma propriedade enorme e bem cuidada. A casa era ampla, confortável e aconchegante, tinha flores coloridas e perfumadas por todos os lados, que recebiam os cuidados especiais de Sílvia, havia também um belíssimo pomar, com os mais variados tipos de árvores frutíferas e também muitos animais. Próxima a casa, uma extensa área verde, já reservada pelos avôs para a construção de um parquinho de madeira, que ambos planejavam construir, com suas próprias mãos, para o netinho. Tudo era cuidado com carinho e zelo. Qualquer pessoa que colocasse os pés naquele lugar sentiria o amor e a alegria que habitavam junto àquela família. As manhãs na fazenda eram inesquecíveis e felizes. Todos acordavam muito cedo e, ainda em seus quartos, sentiam o delicioso aroma do bolo de fubá e dos pães caseiros, que já estavam no forno e invadiam a casa. Catarina disse que sua irmã era especialista em preparar deliciosas geléias e manteigas caseiras, que acompanhavam os pães e bolos nos agradáveis desjejuns, acompanhados de leite fresco e café, que era torrado e moído ali mesmo na fazenda e isso regado de conversas agradabilíssimas e muita risada. Nessa visita em especial, depois de se deliciarem 20


com todas aquelas guloseimas preparadas para o café da manhã, Paulo convidou Catarina para um passeio pela propriedade. Levava Gabriel nos ombros. A certa altura do passeio, um boi aproximou-se da cerca e o garoto, que na época contava com quinze meses, jogava o corpinho e os bracinhos em direção ao animal insistentemente, gritando muito feliz: - Papai, o boi...o boi... O pai, que fazia todas as vontades possíveis daquele ser que tanto amava, aproximou-se da cerca e num esforço atlético, esticou-se o máximo que pode, com o filho nos braços, até que este conseguisse o intento de tocar o animal e, sorrindo, acariciava o boi com enorme satisfação. Quando se cansou da tarefa, abraçou o pai afetuosamente, enchendo-o de beijos. Quando Catarina terminou o relato, sua voz estava trêmula e pude perceber que, discretamente, enxugava uma lágrima que lhe escorrera pela face. Seguiu-se um silêncio tranqüilizador enquanto nós duas refletíamos sobre o amor e o carinho entre pai e filho e para que minha amiga pudesse se recompor da dor que as lembranças lhe causavam.

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“A vida nem sempre é justa com todos: mas nem por isso temos que nos acostumar e aceitar este fato. Podemos sempre tentar mudar algo...”

III Catarina continuava seu relato dizendo que a vida seguia feliz e tranqüila naquele lar. Os anos se passavam e Gabriel crescia como um verdadeiro companheirinho, transmitindo alegria a toda família. Qualquer pequena atenção que lhes dedicavam era retribuída com beijos e carícias, repletos do mais puro amor. O garoto era realmente a luz que brilhava naquela casa. Os empregados tinham por aquela criança enorme apreço e se esforçavam em fazer-lhe as mínimas vontades pois também, os menores favores, eram retribuídos com beijos e sorrisos. Gabriel completara sete anos e o pai, que faria uma viagem de negócios à Pousada Esplendor, de propriedade da família, aproveitando que se encontravam no mês de dezembro, sendo férias escolares, resolveu levar o garoto em sua companhia. Conversou com a esposa, que não era adepta de viagens longas, mas concordou em realizar a viagem com toda a família, como sendo uma oportunidade de Gabriel conhecer o local, que era agraciado com uma paisagem extraordinariamente bela. 23


Os avós, apesar de contrariados em se privarem da companhia do neto, tendo em vista a idade avançada e saúde frágil, decidiram por não acompanhá-los. O garoto ficou agitado e feliz, pois viajaria com os pais pela primeira vez; muito ansioso, falava sem parar, beijava e abraçava os avós e os empregados a todo momento e dizia que estava deixando um estoque de beijos para que eles pudessem esperar sua volta sem tristeza. Foi neste clima feliz que saíram para a tão esperada viagem, a qual marcou para sempre a vida do garoto. A Pousada Esplendor era localizada no belíssimo estado de Santa Catarina. Pertencia ao pai de Paulo há muitos anos, porém seria a primeira vez que este levaria a família até lá, porque Silvia nunca gostara de viajar, sempre tivera receio, por causa do grande número de acidentes. A viagem começou maravilhosamente bem. Gabriel questionava o pai sobre tudo o que via pelo caminho. Falava muito, gesticulava e mostrava-se satisfeito e encantado com o passeio. Assim que anoiteceu, a pedido de Silvia, Paulo interrompeu a viagem, para que pudessem descansar, evitando a estrada durante a noite e também para que Gabriel aproveitasse melhor o passeio durante o dia, visto que a paisagem era deslumbrante. Pernoitaram em um pequeno hotel, bastante aconchegante, na cidade de Curitiba, capital do estado do Paraná. Gabriel, após tomar banho, mal pôde tocar a refeição que Paulo pedira no próprio quarto: dormiu a noite toda, como um anjo. Logo que amanheceu, após tomarem o desjejum, continuaram a viagem, no mesmo clima feliz do dia anterior. O garoto, totalmente refeito pelo sono da noite, 24


estava novamente animado e feliz, encantado com a paisagem que se pintava à sua frente, modificando-se encantadoramente no decorrer do percurso. Gabriel avistou o mar pela primeira vez e não pôde conter seu espanto e admiração, com o que ele denominou ser “o mundo das águas”. A neblina estava muito densa e o trânsito começou a ficar lento. A certa altura, se aproximaram do veículo vendedores ambulantes e, entre eles, muitos eram menores, que traziam as roupas sujas e os pés descalços. Intrigado, Gabriel perguntava aos pais sobre as crianças: o que faziam elas no meio da estrada, se estavam sozinhas, por que estavam tão sujas e se não possuíam calçados. O pai lhe explicou acerca das necessidades que algumas famílias passavam. Disse que, infelizmente, nem todos os pais tinham bons empregos e, às vezes, necessitavam vender coisas para comprarem comida para suas famílias e traziam os filhos para ajudar. O garoto permaneceu silencioso após as explicações, como se refletisse sobre as palavras do pai. Passados alguns quilômetros, avistaram uma favela que estava localizada à beira de um morro. O menino, surpreso, indagava ao pai sobre as casas tão pequenas e próximas, querendo saber se era ali que moravam as crianças que estavam vendendo os doces na estrada. Paulo, um tanto embaraçado, continuava explicando ao filho sobre a dificuldade que muitos enfrentam para viver e, não tendo casas para morar, passam a construir esses casebres, geralmente em terrenos desocupados, à beira das estradas. Gabriel prestava atenção em cada palavra do pai, sem tirar os olhinhos perplexos da janela. De repente, o garoto solta um grito: 25


-Papai! Veja lá, quantas crianças. Estão brincando perto das casinhas e estão sem roupas e sem sapatos. O pai, meio confuso, avista as crianças. Aparentavam ter de dois a seis anos. Ele tenta distrair a atenção do filho: -Olhe Gabriel, você já pode avistar a cidade! Mais alguns quilômetros chegaremos ao nosso destino, finalmente conhecerá a Pousada Esplendor. O garoto porém, parecia não ter ouvido as últimas palavras do pai. Estava bastante agitado, não desviava os olhinhos das crianças. Os pais nunca o tinham visto assim. Gabriel pedia insistentemente ao pai que parasse o veículo e o deixasse ir até as crianças. A mãe, percebendo a agitação do filho, intercedeu por ele, pedindo ao marido que parasse o veículo. Começou a conversar com o filho, tentando lhe explicar sobre a situação que tanto o transtornara: -Meu querido, como seu pai lhe disse, algumas pessoas passam às vezes por situações muito difíceis e se vêem obrigadas a morar em lugares nem sempre seguros ou bonitos. E também seus filhos não recebem a atenção e os cuidados que necessitam pela precariedade com que vivem. Eu compreendo que esteja triste, mas ir até lá pode não ser uma boa idéia, a estrada é perigosa, não devemos parar o carro aqui. Gabriel ouvia a mãe atentamente e, num ímpeto, abraçou-a muito apertado. Com os olhinhos cheios de lágrimas, praticamente implorou para que os pais o deixassem ir até onde brincavam as crianças. -Mas, meu filho... – começou o pai. Sílvia, que já percebera que isso era muito importante para o filho, olhou para o marido com um olhar suplicante e fez-lhe um sinal positivo com a cabeça. Paulo parou o veículo. Desceu pegando o filho 26


nos braços e andou com ele por alguns metros, porém, quando se aproximavam do local, Gabriel lhe disse: -Obrigado, papai! Eu te amo muito. Pode deixar que eu brinque um pouquinho com elas? Paulo colocou no chão o filho que lhe dirigiu um olhar agradecido e correu em direção às crianças. Os pais nunca souberam o que Gabriel conversou com elas durante os quarenta minutos que permaneceu na companhia das mesmas. Paulo, de onde estava, só pôde observar os rostinhos virados em direção a Gabriel e os olhinhos que fitavam seu filho atentamente e também que todos, inclusive o filho, sorriam muito. Os pais observavam a tudo da beira da estrada, onde esperavam pelo garoto. E, silenciosamente, refletiam sobre o fato de que uma criança percebera o que muitos adultos não conseguiam perceber ou não admitiam, ou não queriam admitir: a tristeza e a urgência que existe na pobreza extrema.... Depois, Gabriel abraçou e beijou a todas; tirou toda a sua roupa e os sapatos e dividiu entre elas, voltando correndo, nu, para os braços do pai, que o carregou, sem dizer nada, de volta ao carro. Entregou o filho nos braços da mãe. Sílvia abraçou fortemente o menino e sentiu em seu coração um misto de alegria e tristeza. A mãe vestiu o garoto e seguiram viagem, sem que Gabriel ou seus pais pronunciassem sequer uma palavra; não havia o que dizer, os fatos estavam gritando, mas são poucos os que escutam. Gabriel também não deu nenhum sorriso, era como se a paisagem, que tanto o encantara, houvesse desaparecido. O movimento nas estradas era intenso e o trânsito 27


lento o que fez com que demorassem ainda quatro horas até, finalmente, chegarem ao seu destino. Gabriel, apesar de visivelmente cansado da viagem, estava mais tranqüilo. Foi apresentado, com orgulho pelo pai, aos funcionários, que já conheciam “o tão famoso Gabriel”, pelas fotos que Paulo sempre trazia e pelas histórias que lhes contava por ocasião de suas visitas. Gabriel não os decepcionou em nada. Com sua beleza angelical e sua simpatia e carisma conquistou a todos, E, como sempre, beijava e abraçava cada pessoa que lhe era apresentada, com muito carinho. A família permanecera por quinze dias na pousada.

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“ Você, querendo, pode fazer a diferença na vida de alguém.”

IV A permanência da família na pousada, foi sempre lembrada, pelos funcionários e pela própria família, como dias felizes e inesquecíveis. Paulo tinha muito trabalho, mas reservava parte de seu tempo para levar a esposa e o filho a passeios encantadores, em locais paradisíacos. Conheceram várias cidadezinhas na região. A paisagem se mostrava cada dia mais surpreendente. Estavam mesmo num lugar privilegiado por Deus: com suas praias de águas transparentes e, algumas delas, ainda desertas, conservando a natureza protegida das mãos dos homens, estes que, muitas vezes, não cuidam dela como deveriam, deixando de lhe dar a devida importância e valor, agindo como se não soubessem que têm necessidades vitais, que somente são atendidas com o que vem da natureza. Os homens não percebem que, ao negligenciarem nos cuidados e na preservação da natureza estão agindo assim com suas próprias vidas e com as gerações futuras; pois o que é destruído na natureza hoje não poderá ser recuperado jamais. O local transmitia muita paz. O amanhecer era deslumbrante: com o sol já radiante em seus primeiros raios a brilhar sobre o mar azul, trazendo com ele a alegria de um colorido indescritível. O crepúsculo era multicolorido, pintando o lugar de maneira 29


suave e encantadora. Silvia dizia que era uma obra de arte viva, criada em cada amanhecer e entardecer, sempre com um encanto indescritível; obra esta, realizada pelo artista mais perfeito: Deus, e de presente para nós, seres tão pequenos e insignificantes, a não ser pelo amor de nosso criador. Os dias se passavam tranqüilos e felizes. Gabriel já era íntimo dos funcionários da pousada e os tratava com muito carinho, porém, já havia eleito seu amigo preferido, o cozinheiro: Sr. Genival. O garoto enfiava-se na cozinha e ficava por lá várias horas, se dizia ajudante do Sr. Genival, o qual deixava Gabriel cheio de orgulho: elogiando seus esforços na preparação das massas e docinhos. O menino provava todas as guloseimas que o cozinheiro preparava, com expressão de entendimento e aprovação. O Sr Genival preparou e renomeou o doce conhecido de Cabelo de Anjo, por Cabelo de Gabriel, o que divertiu muito o garoto. Havia dois fatos no comportamento de Gabriel que chamavam a atenção dos pais, o primeiro: que o garoto isolava-se por horas na sacada de seu quarto, permanecendo muito quieto, como se divagasse sobre algo sério e importantíssimo; o outro: era que o menino pedia para que os pais comprassem tudo o que via pela frente. Gabriel jamais fora uma criança exigente. Tinha, com certeza, tudo o que precisava e algo mais. Nunca pedia ou exigia nada, às vezes até parecia não dar importância aos mimos que sempre recebia dos pais, avós e demais familiares. Porém, desde que chegara à pousada, todas as vezes que saía com os pais para passear, o garoto pedia brinquedos, doces e até mesmo, roupas e sapatos. No princípio, os pais não deram atenção e atribuíram o fato a novidade do lugar. Mas, como isso se 30


repetisse em todos os locais que visitavam, Sílvia resolveu interpelar o filho, obtendo deste, a confissão de seu segredo. O menino, depois de perguntar à mãe se iria demorar para que voltassem para casa, e se voltariam pelo mesmo caminho por onde tinham vindo, escutou a reposta: que, em breve, voltariam e pelo mesmo caminho. Gabriel esboçou um sorriso largo, disse à mãe que tudo o que comprara era para dar de presente às crianças que moravam nas casinhas perto da estrada por onde passaram. Disse ter prometido a elas que quando voltasse para casa iria trazer presentes, roupas e sapatos para todas. Sílvia, emocionada, abraçou o filho e, contendo as lágrimas, prometeu que o ajudaria a cumprir sua promessa para com as crianças. Juntos, mãe e filho saíram às compras. Durante todo o dia, os dois visitaram vários comércios na cidade, compraram roupas e sapatos de muitos tamanhos e diversos brinquedos. Depois foram aos supermercados e lotaram a caminhonete cabine dupla de Paulo com alimentos sortidos e, entre eles, uma enorme quantidade de doces. Desde o dia que chegaram, este foi, sem dúvida alguma, o que Sílvia viu o filho mais feliz. A mãe do garoto descobriu que até o Sr. Genival compactuara com Gabriel em seu plano. No dia em que a família deixara a pousada, o Sr. Genival veio entregar sua doação para as “crianças de Gabriel”, como as chamou. Eram várias guloseimas deliciosas, feitas pelo cozinheiro em suas horas de folga. O cozinheiro, no momento de se despedir do garoto, disse que jamais se esqueceria dele, pois o menino tinha conquistado sua mais sincera amizade, para sempre. Os dois se abraçaram e enxugaram as lágrimas um do outro. 31


Gabriel estava agitadíssimo e só se acalmou quando chegaram ao local onde os barracos estavam construídos. Desceu do carro correndo. Apareceram crianças de todos os lados e o garoto, com a ajuda dos pais, entregava os seus presentes. Vieram até eles alguns pais, que agradeciam felizes e perplexos por estarem recebendo tantas coisas daquelas pessoas que nunca tinham visto. Após entregarem tudo, Gabriel ajudou as crianças a abrirem seus brinquedos, ficando com elas por um tempo e, como lhe era peculiar, abraçou-as e beijou-as, voltando ao veículo com os pais, desta vez, porém, com as roupas. A viagem de volta seguiu alegre e tranqüila. O menino disse aos pais que jamais se esqueceria do Sr. Genival, daquelas crianças e do mundo das águas que vira. Disse também, que do cozinheiro e das crianças, estava trazendo um pouquinho em seu coração. E do mundo das águas, estava trazendo um pouco também, e lhes mostrou um vidrinho, contendo a água do mar e numa caixinha, as várias conchas que pegara com a mãe nas manhãs que passearam pela praia.

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“ O pequeno voluntário que encantava a todos. ”

V A chegada da família ao lar foi uma grande celebração. Os avós aguardavam o neto com a ansiedade de verdadeiras crianças. Prepararam todas as guloseimas preferidas do garoto, compraram presentes e fizeram de tudo para demonstrarem a alegria que sentiam em ter o neto de volta ao lar. Gabriel irradiava alegria. Contava os detalhes da viagem: seus passeios, os novos amigos e falou tanto do Sr. Genival que deixou todos com ciúmes. Entregou os presentes que trouxera para os avós e para os empregados, mostrou suas conchinhas e o pouquinho que trouxera do mundo das águas. Omitiu, porém, o episódio das crianças, fato que os avós só souberam mais tarde, pelos pais do garoto. As avós de Gabriel eram senhoras boníssimas. Elas se dedicavam ao serviço voluntário: visitavam asilos, hospitais e davam assistência a um “Lar de Menores Abandonados”. Gabriel, depois da viagem, passou a acompanhar as avós em suas visitas ao Lar. Enquanto as duas se inteiravam das necessidades do local e ajudavam com costuras e na cozinha, o menino passava as horas brincando e conversando com as crianças; 33


dedicava-lhes muita atenção e carinho e sentia que recebia delas o dobro do que dava. Por duas vezes na semana os três se dirigiam ao Lar e Gabriel não trocava essa visita por nada. Era um dos voluntários mais dedicado e perseverante e também o mais esperado pelas crianças, pois sua alegria invadia o lugar. As freiras que cuidavam da instituição, diziam às avós do menino, que depois que ele passara a visitar o lar a tristeza desaparecera dos rostinhos daquelas crianças. Gabriel não se contentava só em brincar com os garotos, pedia às avós que anotassem as datas de aniversário dos amiguinhos e nunca deixava passar nenhuma delas sem que levasse um grande bolo e um belo presente ao aniversariante. O menino visitara o Lar por quatro anos...

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“Voltando à realidade...”

VI Na ocasião de uma de minhas visitas, percebi um ar misterioso no olhar de Catarina. Ela me perguntou, sutilmente, se eu já havia ouvido algo a respeito de um homem, de cerca de trinta e cinco anos, que andava visitando os vários assentamentos na região do Pontal do Paranapanema, haja vista que eu morava por lá. Sabia exatamente do que Catarina falava. Pensei que ela até demorara a me interpelar sobre o assunto. Penso que ela, assim como eu, não queria admitir certas suspeitas que insistiam em visitar nossos pensamentos. Não era possível que fosse a mesma pessoa. Porém, eu não poderia fugir à pergunta e tentei devolvê-la: - Por que me pergunta sobre isso? Você, por acaso, já ouviu algo a respeito desse homem misterioso, Catarina? Na verdade tive medo de dar esperanças falsas a Catarina. - Sim, já ouvi, amiga. E você, por favor, não fuja do assunto. Sei que seu interesse só não é maior do que o meu mas, posso acreditar, ser igual.Vamos lá, não tenha receio por causa da minha saúde, eu ainda posso aguentar muitas emoções. Ademais, seria mais letal para mim a falta de emoções do que o excesso delas. Seja franca e me diga o que sabe. 35


Eu sabia que Catarina, nos seus 63 anos, era uma mulher forte e dinâmica, porém, receava até onde aquelas suspeitas poderiam nos levar. Receava ainda que nos perdêssemos entre o sonho e a realidade, entre o possível e o imaginável. Mas, mesmo assim cedi. Não poderia lhe negar a resposta. - Muito bem, querida amiga! Tudo o que sei, são conversas. Conversas desse povo carente de coisas e de pessoas. E, você sabe, no meio destas conversas um pequeno fato pode crescer, tomando proporções nem sempre reais ou verdadeiras. - Vamos lá! – Disse Catarina, já um pouco impaciente. – Durante as suas visitas só eu falei. É chegada a hora de poder te escutar um pouco. Por favor, não seja injusta. Você sabe que depois de todos esses anos, eu tenho esse direito. Preciso alimentar minha alma de esperança: da doce esperança de ao menos imaginar que poderei um dia reencontrá-lo. Ou acaso pensa diferente? - Não! Claro que não, minha querida! - Respondi de pronto. – Vou contar-lhe tudo o que sei, todas as conversas que tive, todos os fatos que me foram relatados. Mas, já te adianto que tudo isso pode ser apenas imaginação de alguém como eu, que se encantou com um anjo que fez parte da sua vida e ligou essa história de sofrimento e amor a fatos que podem na verdade, não passar de simples coincidências. - Posso começar te confessando que: naquele encontro, Catarina, assim que ouvi seu depoimento acerca de sua família, não pude deixar de ligar os fatos com as súbitas visitas das quais já havia mesmo ouvido alguns relatos. - A primeira visita, dizem, foi numa noite de muita chuva. Ventava demais e, num dos acampamentos dos sem-terra na região, num determinado barraco, 36


estavam um casal e seus quatro filhos; o mais novo com oito meses e o mais velho com dez anos. A chuva chegou de repente, acompanhada do vento fortíssimo; era mês de julho e o frio era impiedoso com quem não pudesse dele se proteger. - A lona que cobria o barraco tinha alguns buracos, por onde passava a água da chuva, os pingos gélidos pareciam pedrinhas de gelo nos corpos mal agasalhados de seus desventurados habitantes. - Foi quando ele chegou. Dirigia uma Ford, cabine dupla, vestia roupas brancas. Iluminou o barraco com os faróis da caminhonete e buzinou. O dono do barraco colocou logo a cabeça por uma fenda na lona, como se fosse a porta e um pouco perplexo, perguntou: - O que quer, Senhor? - Estou perdido. – Disse o motorista. – Procuro a saída para o estado do Paraná! Poderia me ajudar? - É só seguir adiante, Senhor. Mais ou menos trinta minutos de estrada quando o tempo está bom estaria lá, mas com essa chuva... - Me permitiria descer e entrar em sua casa? – Pergunta o motorista. O homem esboçou um sorriso desalentado. - Não que me recuse a acolhê-lo, mas acredito que o Senhor estará melhor dentro de seu veículo do que aqui no meu barraco. - Por favor, eu insisto. – Disse o motorista. - Se é assim, pode descer senhor. - O motorista parou o veículo ao longo do acostamento da estrada, bem colado ao barraco e desceu. Explicou ao morador que sua família já tivera uma propriedade naquela região, há muitos anos. Disse que estava indo visitar um amigo no Paraná e, como havia muito tempo que não passava por ali, acabou se perdendo. 37


- O Senhor não se perdeu não moço. Deve ter se atrapalhado um pouco por conta do tempo ruim. Mas faça como lhe expliquei e em breve estará no seu destino. - Falou o morador, cordialmente e ofereceu ao visitante inesperado o caldo que a mulher havia preparado para a janta da família. - O visitante aceitou o caldo e comentou sobre os buracos na lona dizendo que, coincidentemente, tinha na caminhonete uma lona nova. Apesar das negativas do dono do barraco, pediu ajuda para tirar do veículo uma enorme caixa, onde disse que a lona estava guardada. Levaram a caixa para dentro do barraco. - O rapaz agradeceu a informação e a acolhida, despediu-se e seguiu viagem. - No dia seguinte, quando o morador do barraco abriu a caixa, para surpresa de toda a família, dentro dela, além da lona, havia também alimentos, cobertores, ferramentas e remédios. - Ninguém de nenhum outro barraco viu ou ouviu a caminhonete ou seu motorista. Mas muitos viram a caixa e seu conteúdo e, com ele, ajudaram a levantar o barraco novo. - A família não soube dizer o nome do homem, só disse que certamente era um anjo, que se apiedara da miséria deles. - E isso, Catarina, foi tudo o que soube desse episódio. - Não parece muito, não é? – Disse Catarina, pensativa. – Mas você disse que foi tudo o que soube desse episódio. Isso, me parece querer dizer que existiu algum outro ou até mesmo alguns outros episódios, estou certa, minha cara? -Claro que sim, minha querida amiga perspicaz, está certa... 38


“O inimaginável acontece e para isso é preciso acreditar...”

VII - Sabe, Catarina, apesar de residir há algum tempo nessa região do Pontal do Paranapanema, centro do Estado de São Paulo quando se fala em invasões de terra, assentamentos, reforma agrária, enfim...Apesar de meu marido estar como técnico agrícola do ITESP, órgão que dá assistência nos assentamentos agrários do Estado, eu mesma nunca havia visitado um assentamento, que se resume numa área de terra, que o governo divide em pequenos lotes e, através de determinados critérios, cede a algumas pessoas, que vão tirar dali seu sustento e de suas famílias, tentando, dessa forma, começar uma nova vida, com mais dignidade, com mais esperança. - Na verdade, eu nunca havia pensado nos assentamentos ou nas famílias que vivem lá, em suas privações, suas dificuldades, em sua luta pela terra. - Era um sábado, nossa filha estava na casa da avó. Meu marido levantou-se muito cedo e disse que precisaria trabalhar. Explicou que teria de fazer uma visita a um dos assentamentos, pois havia chegado lá, na noite anterior, um caminhão de calcário, que deveria ser distribuído entre os assentados, para fazer a calagem do solo. - Vou com você! – Disse, num ímpeto e saltei da cama. Ele me olhou um tanto perplexo. - Posso ir? – Perguntei. – Se acaso for atrapalhar... 39


- Não, claro que não. Quero dizer: não vai atrapalhar, você pode vir, eu fico até feliz. Só fiquei surpreso pois em todos estes anos foi a primeira vez que você mostra interesse em conhecer um assentamento. - Ele estava certo e não pude lhe dar nenhuma explicação. Até porque eu mesma estava surpresa com minha iniciativa. Vesti-me apressada e nos dirigimos para o assentamento. - Meu marido não imaginava que eu estava ligando o seu depoimento, Catarina, com o ocorrido naquela noite de chuva... Ele, claro, não pensaria nisso e eu não lhe contei o que se passava em minha mente pois, no íntimo, também achava pouco provável qualquer ligação. - Quando chegamos ao assentamento, ele me disse que visitaria vários lotes, bastante distante um do outro. Perguntou se eu gostaria de acompanhá-lo ou se ficaria no local que paramos: era uma espécie de sede, tinha um grande salão, usado como sala de reuniões dos técnicos com os assentados, também como salão de festas, encontros e celebrações religiosas, enfim, servia para tudo. - Próximas ao salão, havia duas casas, onde residiam as famílias que se podiam dizer privilegiadas em relação às demais. Elas eram responsáveis por cuidar do barracão. Agiam, ainda, como uma espécie de líderes ou contatos no assentamento. Também eram beneficiadas com luz elétrica e água encanada, o que ainda não havia chegado aos demais assentados. - Eu sabia que muitas famílias viviam sem água encanada e sem luz elétrica, mas agora: ali... tão próxima dessa realidade; algo me tocou, me sensibilizando acerca dessa situação e, após essa visita, meu olhar para aquelas famílias e suas carências ficou totalmente transformado. Percebi que fazia parte desse mesmo mundo, que aquela situação me afetava... Enfim, Catarina: optei, rapidamente 40


por permanecer ali. - Descemos e fui apresentada às duas famílias, que me acolheram calorosamente. Os homens acompanharam meu marido e as mulheres, duas senhoras de mais ou menos quarenta anos, me convidaram a entrar em uma das casas. No pátio, várias crianças se ocupavam com brincadeiras e pequenos serviços. - Entramos na casa muito simples e limpa. - As senhoras me serviram doce de abóbora com côco, que haviam terminado de fazer. Explicaram que a abóbora e o côco haviam sido colhidos ali no assentamento. - Havia panelas penduradas em ganchos dispostos logo acima do fogão, que era de lenha. Pude observar que não tinha geladeira. Colocada sobre o fogão, uma grande assadeira de alumínio, contendo carne de porco salgada, coberta com um pedaço de plástico. Na sala, duas poltronas simples e algumas cadeiras, o tapete, era um pedaço de jeans velho e muito limpo, com babadinhos de retalhos em volta. Numa mesinha, dois vidros, ambos com cobras mortas, conservadas em formol; uma das senhoras me contou que as cobras foram mortas ali mesmo, quando rastejavam pelo pátio. Confesso que senti um calafrio subir pelas minhas costas e não pude deixar de, numa atitude infantil, olhar em volta com certo receio, que procurei disfarçar inutilmente, pois as duas se entreolharam e, sem tentar disfarçar, riram divertidas. - Foi com aquelas senhoras que eu soube de outro fato ocorrido: - Elas me explicaram que, como meu marido havia dito, os lotes eram muito distantes uns dos outros. A grande maioria das famílias, como ainda não havia recebido os incentivos do governo para a construção de uma casa, levantou barraco, com lonas e madeiras velhas e nele morava, ainda sem luz, nem água encanada. Alguns 41


tinham que andar quilômetros para conseguir água nos rios ou na sede do assentamento. A vida ali não era fácil, ao contrário, era cheia de dificuldades e provações. Precisavam de muita determinação e força de vontade para permanecerem naqueles barracos, em condições tão precárias, a fim de conquistarem o tão sonhado “pedaço de chão”, para chamarem de seus e, com esse pedaço de chão, poderem lutar por uma vida mais digna. - Essa situação ia de encontro aos muitos comentários que por muitas vezes ouvia, vindo de algumas pessoas da cidade, a respeito das famílias assentadas: que eram pessoas acomodadas, que queriam tudo fácil e de graça. Não era o que meus olhos estavam vendo e meus ouvidos ouvindo. - Mas vou lhe contar, Catarina, outro fato bastante interessante: morava num dos lotes daquele assentamento, um casal, cuja mulher estava grávida. Apresentava uma gravidez de risco e a ela foi recomendado muito repouso e cuidados para que conseguisse ter seu bebê. A pobre mulher já tivera vários problemas e ameaças de aborto. Estava ela no sétimo mês de gravidez quando começou a entrar em trabalho de parto. - O casal já havia sido aconselhado por uma parteira, que morava num outro lote, para que a esposa fosse para a cidade, na casa de algum conhecido, para ficar mais próxima a algum hospital, pois, de acordo com sua experiência, o bebê estava atravessado na barriga da mãe. Mas, infelizmente, eles não tinham família ou sequer pessoas conhecidas na cidade que pudessem acolhê-la. - O marido, lembrando-se das palavras da parteira, desesperou-se ao ver a esposa se contorcendo de dor e, não teve alternativa senão deixá-la sozinha no barraco para ir atrás da mulher, que morava a uma boa distância dali. - Não encontrando a parteira, voltou algum tempo 42


depois, acompanhado de uma senhora que encontrou pelo caminho. Para surpresa dos dois, lá estava a mãe, com o bebê nos braços, aparentemente, ambos estavam bem. - A esposa, ainda muito fraca, contou a eles que sentiu fortes dores e pensou que tivesse morrido quando viu entrar no barraco um homem alto, branco, de olhos muito azuis, vestido com roupas brancas. Segundo ela: só poderia ser um anjo. - Disse que o homem a ajudou no parto e, antes de ir embora, saiu do barraco por alguns instantes e voltou, com uma grande mala, que colocou aos pés da cama. Tirou dela a manta com a qual a criança estava embrulhada. - O marido e a senhora que o acompanhara, apesar de acharem que a mulher estivera delirando pela dor que sentira; não puderam deixar de acreditar em suas palavras ao verem a mala que, para surpresa e alegria do casal, estava cheia de roupinhas cor-de-rosa para o bebê que acabara de nascer, uma linda menina, a qual recebeu o nome de Vitória. - Quando as senhoras terminaram seu surpreendente relato, fiquei ali parada, perplexa e sem palavras. Não conseguia ordenar meus pensamentos. - Meu marido voltou dali a algumas horas, nos despedimos de todos e partimos de volta para nossa casa. - No caminho, perguntei a ele se já ouvira a história. Ele riu, divertido e disse que eram apenas histórias, que as senhoras haviam contado para me distrair.

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“Tudo passa... só o amor permanece...”

VIII Catarina me olhava extasiada. Uma luz diferente brilhava em seus olhos. O tom de sua voz era alto, vibrante e alegre quando falou comigo após ter ouvido atentamente o que contei sobre aquela visita ao assentamento. - E então? – Indagou ela. – Você não acredita que tenha sido apenas uma história para lhe distrair, não é mesmo? Você, como eu, sabe que é algo mais. Sabe que elas disseram a verdade; ele esteve lá! - Ele? O que está dizendo Catarina? Você não acredita realmente que ele... Catarina me interrompeu bruscamente: - Você me pergunta se acredito? Ora, não me faça essa pergunta, pois você mesma tem a resposta. Depois de tudo o que soube em suas andanças pelos lugares onde ele esteve, você ainda duvida? - Não quero que se precipite ou mesmo que se entusiasme demais, minha querida amiga. Mas, realmente concordo que é inevitável... Não posso deixar de pensar nele. - Sabe, Catarina, os episódios que lhe relatei, pode-se dizer que sejam casos isolados, acontecidos com uma e outra pessoa, sem quaisquer testemunhas, exceto os próprios envolvidos. Mas tive notícia de uma outra dessas visitas inesperadas e surpreendentes e essa sim, foi 45


presenciada por muita gente. - Tive a oportunidade de trocar algumas palavras com pessoas que podemos chamar de testemunhas oculares do fato. Por alguns segundos me distraí ao avistar um avião, que parecia ter acabado de decolar, pois ainda o avistara voando baixo, antes de sumir em meio às nuvens brancas num céu maravilhosamente azul, daquele dia radiante... Catarina, muito ansiosa, me repreendeu: - Vamos, por favor, amiga, prossiga. Você sabe o que significa tudo isso para mim. Sim, eu sabia. Por isso estava muito preocupada. Tentava ser cautelosa nas palavras. Por outro lado, não poderia omitir de Catarina o que havia descoberto e que tanto me surpreendia e encantava. - Perdoe-me, Catarina. Você tem razão, vou contar-lhe o que soube. - Sou amiga de uma senhora, responsável pela Pastoral da Criança. Pastoral essa, cujo trabalho você certamente conhece, pela sua importância, magnitude, seriedade e comprometimento diante das necessidades das famílias carentes e, hoje em dia, Graças a Deus, reconhecido internacionalmente. - Pois bem, foi através dessa senhora que soube deste fato que mais uma vez chamou minha atenção: - Segundo ela, uma garota de dezesseis anos a procurou, para pedir instrução sobre os trabalhos da Pastoral e, em especial, sobre a mistura que as agentes preparam, distribuem e ensinam às mães a prepararem para toda família. Uma mistura natural, que através da implantação e divulgação pela Pastoral da Criança, vem salvando muitas vidas da desnutrição. Conforme o relato da garota, mãe de um bebê de oito meses, quem a aconselhou a procurar a Pastoral foi um médico, que parecia um anjo, de tamanha 46


beleza e bondade. Ele apareceu no assentamento que ela mora com a família, numa tarde de sábado, lhes disse que estava fazendo uma pesquisa pela região, que sentiu sede, então viera para lhes pedir água. - Foi esse médico quem aconselhou a garota a se inteirar acerca dos trabalhos da Pastoral, para que ela pudesse ajudar as famílias que tivessem crianças pequenas, assim como ela própria, ali no assentamento. - Era tudo o que sabia aquela senhora. Mas para mim foi suficiente, pois ela também me informou qual era o assentamento. - Na manhã seguinte, deixei todos os meus compromissos de lado, pois nada me parecia mais importante do que apurar acerca dessa visita, e fui para lá. - Tenho que confessar que, no caminho, quase mudei de idéia e voltei. Porém, senti aquela coisa estranha dentro de mim... aquele sentimento... O mesmo que fez com que me aproximasse de você. Podia ouvir meu coração batendo. Sentia um certo temor, uma dúvida. Mas, de repente me senti forte e corajosa. E ainda tinha aquela vontade de saber de tudo renascendo dentro de mim: como uma linda fênix: o pássaro mitológico que renasce das cinzas. A coragem também é como uma fênix: a gente pensa que ela deixou de existir, de repente... uma força nasce dentro da gente e ela renasce, das cinzas do medo... - Catarina, algo me dizia para ir e, é claro, prossegui. Fui pensando no que as pessoas iriam imaginar quando eu chegasse lá e fizesse perguntas sobre o tal médico. O que eu diria para elas? Mas foram pensamentos ingênuos e que só me inquietaram sem razão. - Quando cheguei ao assentamento não tive dificuldade alguma. Todos queriam falar, queriam contar sobre ele e não fizeram pergunta alguma acerca de meu interesse. Ainda bem amiga, pois se me perguntassem 47


algo não saberia como responder, pois, naquela ocasião, eu ainda não tinha a resposta. - A garota não inventou um fato sequer, Catarina. Várias pessoas repetiam o que já soubera por alto, através de minha amiga. Disseram que o Doutor se parecia mesmo com um anjo, tamanha era sua beleza e bondade. No dia de sua visita, a notícia espalhou-se rapidamente por todo assentamento e não demorou muito para que uma enorme fila, de pessoas de todas as idades, se formasse, todos esperando atendimento. E ele os atendeu, a cada um, com calma e, como todos foram unânimes em afirmar, com amor. - Disseram que “o Doutor” chegou em uma caminhonete cabine dupla e que o galpão, num segundo, transformou-se em um consultório, com as coisas que ele tirou de dentro do veículo. - Atendeu o dia todo: consultou crianças com febre, gestantes e idosos; fez curativos, mediu pressão, distribuiu remédios gratuitamente. Os assentados passaram todo o dia por perto do galpão, como se estivesse acontecendo ali uma festa. Levaram para ele comida, água, frutas colhidas por lá mesmo, doces caseiros, todos queriam agradá-lo e ele tudo aceitava, com um largo sorriso agradecido. - No final da tarde, depois de certificar-se de que não ficara ninguém sem atendimento, “o Doutor” pediu que eles se aproximassem e conversou muito com todos ali presentes. Falou, incansavelmente, sobre a grande importância existente no aleitamento materno. Ensinou às crianças noções básicas de higiene, ensinou-as a escovar corretamente os dentes e distribuiu escovas e pastas de dente para todas. Falou sobre a Pastoral da Criança e seu importante trabalho junto às famílias carentes, dizendo que mais pessoas deveriam seguir o exemplo das senhoras desta pastoral, que prestam um serviço voluntário, por 48


amor ao próximo e, com isso, salvam muitas vidas. Citou ainda, a Campanha da Catarata, realizada pelo Lions, clube de serviço, onde os associados trabalham voluntariamente a serviço do próximo, aconselhando os idosos, com problemas de visão, que procurassem algum membro deste clube na cidade mais próxima. Alertou as mulheres sobre a importância da higiene com alimentos, para o bem da saúde de toda a família. Orientou aos jovens que se informassem acerca da importância do saneamento básico e que cobrassem das autoridades iniciativas nesse sentido. Falou sobre o problema das drogas, como as famílias se destroem e como os jovens estão entregando suas vidas, sem valorizá-las e sem lutar por elas por causa do vício e de como muitas pessoas se aproveitam dessa situação, aliciando, inclusive crianças para o tráfico. - Depois ele pediu que todos ali nunca se esquecessem do amor de Deus por nós. E, que ao se lembrarem deste amor, lembrassem também que nós devemos nos amar uns aos outros, respeitando cada pessoa, pois cada ser humano é um filho especial de Deus, que nos ama a todos de igual forma. Disse que quando as pessoas se amam elas passam a viver melhor, pois o amor é um sentimento que faz muito bem e que até ajuda a evitar doenças. Disse que cada vida deve ser respeitada e cuidada, pois a vida é um dom precioso de Deus e ninguém tem o direito de tirar uma vida ou de privar alguém de viver. - As pessoas contaram Catarina, que enquanto “o Doutor” falava do amor, parecia que uma luz brilhava mais forte em volta dele e ninguém conseguia desviar a atenção de suas palavras. Que continuou falando coisas maravilhosas sobre o amor, que é o sentimento de maior valor e importância no mundo, que aquele que ama, com amor verdadeiro, sincero e desinteressado jamais será infeliz e nunca se perturbará interiormente, pois quem 49


ama a tudo e a todos pelo simples fato de existirem e serem criações e criaturas de Deus, está sempre trabalhando pelo bem, conquistando assim prêmios valiosíssimos: a paz interior e um mundo melhor. Disse que o amor vem de Deus e volta para Deus, sendo, portanto, um sentimento que perdurará para sempre. - Todos os assentados com os quais conversei, homens, mulheres, jovens e crianças, disseram que aquele “Doutor” era mesmo um anjo em forma de médico e que jamais se esquecerão dele, de suas palavras e dos seus ensinamentos.

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“Você pode ser a diferença!”

IX

silêncio.

Catarina permaneceu, por alguns instantes, em

Apenas olhava para mim com uma expressão serena. Depois me questionou, calmamente: - Você, minha amiga, que assim como eu, tem os livros como companhia para muitos momentos agradáveis, já teve o privilégio de ler a obra prima de Thomas Kenneally, “A Lista de Schindler”?1 - Sim, Catarina. Felizmente tive esse privilégio. – Respondi. - Pois bem, Oskar Schindler, como soubemos, através e graças ao livro, usando as palavras do autor: “foi um herói do holocausto; um ser generoso e que fez a diferença na vida de centenas de pessoas, que em meio a toda tristeza e desespero da Segunda Guerra Mundial, encontraram uma alma dotada de supremacia admirável”. - Num tempo e lugar, minha amiga, onde tudo era medo e sofrimento para aquele povo judeu, aquele homem fez a diferença. - Com certeza Catarina, essa sua citação nos leva a relembrar um passado que jamais será esquecido, tendo em vista as terríveis marcas de dor e sofrimento que deixou. E onde existiu um homem muito especial e digno de ser 1 A Lista de Schindler: Keneally Thomas,1935 – A Lista de Schindler (Um Herói do Holocausto) – 13º Edição – Rio de Janeiro: Record,1995.51


lembrado, capaz de praticar o bem e o amor, deixando seu exemplo para o mundo. - Isso mesmo, minha querida amiga. Penso que todas as pessoas são especiais e têm sua importância, mas existem aquelas que nasceram com um amor tão grande dentro de si, que suas existências marcam para sempre a vida de quem tem o privilégio de conviver com elas, pois esse amor que carregam as transcendem, sendo um sinal de luz e esperança para o mundo. Essas pessoas, devem ser um exemplo para todos, pois essas existências privilegiadas não podem deixar de ser lembradas, ao contrário, a lembrança delas deve ser cultivada na mente de todos. E Catarina continuou: - O amor é capaz de transformar lágrimas em sorrisos, desespero em esperança. Ele é uma arma poderosa, a única que todos nós deveríamos querer verdadeiramente poder usar, como proteção e defesa. E eu conheci alguém, que com sua existência curta, porém marcada por esse amor verdadeiro, também transformou a vida daqueles que tiveram o privilégio de conhecê-lo e desfrutar de sua companhia. - É com prazer, minha amiga, que volto a lhe falar sobre Gabriel. Sim, essa criança fez a diferença na vida de todos que conviveram com ela: - Suas visitas, juntamente com as avós, ao Lar de Menores, durante quatro anos, como lhe disse, transformaram aquele local e a vida daquelas crianças para sempre. - Gabriel se inteirava das necessidades das crianças e não lhes deixava faltar nada. Conseguia tudo o que elas precisavam através dos pais, que passaram a ser colaboradores da instituição, arcando com todas as despesas necessárias para que as crianças fossem atendidas da melhor maneira possível. 52


- Em certa ocasião, Ivan, um dos garotos do Lar, adoeceu. Foi acometido de pneumonia e precisou ser internado num hospital para receber cuidados especiais. Gabriel entristeceu-se muito com a doença do companheirinho. - Durante o tempo que Ivan passou no hospital, Gabriel já não sorria e nem brincava como era de seu costume. Ele tinha um carinho especial pelo garoto e, todas as noites, antes de dormir, o colocava em suas orações, pedindo pelo seu restabelecimento. Somente se despreocupou quando, após onze dias de internação, o amigo voltou curado para o lar. - As avós acompanharam o neto para uma visita especial ao amigo no Lar. Gabriel abraçou forte o amigo e já estava feliz novamente. Conversou muito com todos, distribuindo ao ambiente a alegria que lhe era peculiar. - Naquela noite, após a visita ao Lar, a família estava reunida à mesa para o jantar e Gabriel disse aos pais que tomara uma decisão muito importante. Todos se entreolharam, disfarçando o divertimento causado pela postura séria adotada pelo garoto. - Paulo, com a mesma expressão do filho, que na época contava com onze anos, indagou: - Muito bem meu filho, estamos curiosos a respeito dessa decisão. Imagino que vai nos participar dela. - Sim, papai. Depois que Ivan adoeceu, eu percebi como nossa vida é frágil. Hoje nós estamos todos aqui reunidos, felizes e com saúde, mas não sabemos se amanhã estaremos sofrendo com doenças ou outras tristezas. Por isso, descobri que temos de viver muito bem todos os dias; sendo felizes e fazendo felizes e cuidando das pessoas que convivem conosco. Depois, quando Ivan se curou eu fiquei muito feliz e foi quando também decidi o que quero ser para sempre. 53


Todos se entreolharam, curiosos e espantados pela maneira séria como Gabriel falava. Então ele continuou: - Decidi papai, que quero salvar as pessoas de doenças e do sofrimento, quero cuidar delas, tirar a dor, fazer com que elas não sofram e que fiquem felizes. Por isso, quero ser médico. A família estava emocionada com as palavras do garoto e surpresa pelo amadurecimento que ele demonstrava. Após alguns minutos de silêncio o pai disse: - Parabéns, meu filho! Fez uma excelente escolha! Tenha certeza que farei de tudo para que realize seu desejo. Principalmente pelos motivos nobres que o levaram a escolha desta profissão. Sílvia dirigiu-se até o filho e abraçou-o apertado, sem proferir palavra alguma, novamente aquele misto de alegria e tristeza lhe invadia a alma. Os avós, como sempre, sentiram-se orgulhosos e felizes e a cada dia amavam e admiravam ainda mais aquela criança tão especial, que só lhes trouxera alegria. - Mas não pensem vocês que só o Gabriel tem o que anunciar. – Disse Paulo com um tom de suspense na voz. – Agora é minha vez, também tenho um comunicado a fazer. - O que é, papai? Por favor, conte logo. – Pediu o garoto curioso. - Está certo. Sua mãe e eu estivemos conversando e decidimos que, como você encerrou maravilhosamente o ano escolar, vamos levá-lo a uma visita à Pousada Esplendor. Gabriel pulou de alegria. Correu até o pai e lhe abraçou, dizendo: - Papai, parece que você leu meus pensamentos! Faz já algum tempo que venho sentindo muita vontade de 54


visitar a pousada, principalmente porque gostaria de rever meu bom amigo Sr. Genival. O clima só não foi de total alegria porque os avós, como crianças, não conseguiram disfarçar o descontentamento pelo fato de se distanciarem do neto. Mas claro que reconheceram a necessidade dos pais de passearem com o garoto e logo se conformaram, ou pelo menos, fingiram que se conformaram. Os preparativos para a viagem começaram no dia seguinte. Silvia cuidava para que tudo permanecesse em ordem na casa e para que nada faltasse aos seus pais e sogros durante a ausência da família. Ainda cuidava das malas de todos e dos presentes que Gabriel fazia questão que levassem para os funcionários da pousada. Paulo organizava os negócios e delegava pessoas para resolverem os problemas que porventura surgissem. Gabriel tratou logo de dirigir-se ao Lar dos Menores para usufruir a companhia das crianças o máximo que pudesse. O garoto passou os cinco dias que antecederam a viagem, praticamente o tempo todo no Lar, como se pretendesse recompensar os amigos pelo tempo que ficaria fora.

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“...estreita é a porta e apertado o caminho que levam para a vida e são poucos os que a encontram (Mt 7,14).”

X Catarina fez uma pausa e enxugou as lágrimas que lhe escorriam pela face. Abracei-a carinhosamente. - Perdoe-me, amiga. Ainda sinto uma grande dor quando me lembro desses fatos. Tudo volta a minha mente como se fosse hoje e não há exatamente vinte e quatro anos atrás. - Minha irmã contou-me, depois de alguns anos, que o descontentamento que ela e o marido sentiram, assim como os pais de Sílvia, quando souberam da viagem, atribuíram, a princípio, ao fato de se privarem da companhia do neto. Depois de tudo, quando conversaram sobre o assunto, os quatro descreveram o mesmo aperto no peito, a mesma tristeza inexplicável, como se fosse uma dor; o que calaram, por atribuírem a egoísmo. - O dia da partida da família para a viagem se deu como há quatro anos antes, quando o garoto, pela primeira vez, visitara a pousada. - Gabriel estava agitado e ansioso com a viagem. O garoto falava muito e fizera questão de passar o maior tempo possível com os meninos do lar. Recomendara muito às avós que não deixassem de ir visitar as crianças, como se fosse ele próprio o responsável por todas elas. Na verdade, era assim que o garoto se sentia. Pediu ainda às avós que cuidassem dos garotos como se estivessem 57


cuidando dele. - Mas o momento da partida não se deu como da outra vez...Gabriel abraçou os avós e assim permaneceu por um longo tempo, sem dizer sequer uma palavra. Depois os beijou, deu um sorriso terno e cheio de luz e lhes disse: - “Para sempre estarei com vocês”. E assim partiu, para sempre... Passadas quinze horas da partida da família, os avós receberam a notícia acerca do acidente: um telefonema da polícia, informando que encontraram a bolsa de Sílvia na serra do mar, próximo ao local em que testemunhas avistaram o veículo, a caminhonete cabine dupla de Paulo que, sem controle, desceu pela serra, até cair no mar. - Tudo se passara como um pesadelo. Na época eu tinha trinta e nove anos, minha amiga. – Disse Catarina, com a voz embargada. – Minha irmã, pobrezinha, sessenta e seis. Eu pensava e me perguntava, por que ela tem que passar por toda essa dor, por todo esse sofrimento? Fomos, meu marido e eu, até o estado de Santa Catarina, cuidar de tudo. - A polícia levara cerca de sete horas para resgatar os corpos de Paulo e Sílvia. Nós cuidamos do traslado dos corpos para Presidente Prudente e de todo o necessário para o funeral dos dois. - Quanta tristeza, minha querida amiga, quanta dor! - Tínhamos a impressão de que os pais de ambos não resistiriam a tanto sofrimento. Aqueles dois casais, como que se amparando, estavam ali partilhando a mesma dor de enterrarem seus filhos únicos. - Mesmo que eu quisesse, não teria palavras para descrever a você o que foi aquele dia para toda a família. - Porém, não estava terminado. A dor, o sofrimento, a angústia da espera...esperávamos por ele: Gabriel. 58


- Dias e dias se passaram em buscas intermináveis. Os avós do garoto só viviam para isso e por isso: encontrar o menino. - Porém, todo o esforço foi inútil. As buscas foram encerradas. Tudo o que poderia ser feito, foi feito e não se obteve êxito na localização de Gabriel. - A tristeza tomou conta daqueles avós amorosos e dedicados. Toda a alegria havia desaparecido por completo juntamente com o neto. - O pai de Sílvia e meu cunhado, que já contavam com uma saúde frágil, só viveram por menos de um ano após o ocorrido, não suportaram o peso daquela dor. - Minha irmã e a mãe de Sílvia se agarraram, com todas as poucas forças que lhes restaram, aos trabalhos junto ao Lar de Menores. Cuidavam dos garotos e assim atendiam ao pedido do neto, como que para agradá-lo, estivesse ele onde fosse. - Durante o restante dos anos de vida que tiveram, as duas viveram para aquelas crianças do Lar. Quando deste mundo partiram, deixaram para cada uma delas uma significativa doação, a ponto de garantir segurança e estudo a todos os doze garotos do Lar, além de uma doação em nome da instituição. - Sabe minha amiga, Gabriel fez grande diferença na vida daquelas crianças e de outras que mais tarde vieram a ser acolhidas por aquela instituição. - Para toda a família foi muito difícil aceitar como morto aquele ser adorável e que vive ainda, até hoje em nossas memórias. - Talvez agora você entenda o porquê de minha ansiedade em saber sobre essa pessoa que aparece e desaparece misteriosamente em alguns lugares, ajudando a quem precisa, fazendo o bem, salvando vidas... um médico, o que ele queria ser para sempre. 59


- Eu, que junto com meu marido, fui até o local daquele acidente com a notícia de que tinham sido encontrados dois corpos, um homem e uma mulher; fiz aquela viagem com a esperança de trazer Gabriel com vida. Não o encontrei, não o trouxe de volta até hoje, nem com vida, como gostaria e nem mesmo morto. - E é por isso que me sinto no direito de mantêlo vivo, mesmo que seja apenas em minha mente, fazendo parte de minhas recordações. São muito vivas as lembranças daquela criança tão amável e que permaneceu por tão pouco tempo entre nós, mas que, por ser como era, por ter tanto amor, mudou a vida de muitas pessoas com sua existência. - Posso te afirmar, minha amiga, que esteja Gabriel onde estiver seu amor ainda está vivo no meio de nós. Seu amor puro, sincero, desinteressado, um amor doação, capaz de levar sorriso e felicidade por onde quer que passasse. - Será minha amiga, que um dia você ou alguma outra pessoa que ouvisse nossa história teve ou terá a alegria de conhecer alguém assim como ele? - Gabriel disse que seria médico para sempre, talvez possa estar agora, neste exato momento, curando algum coração doente ou quem sabe endurecido pelas tristezas desta vida. - Existem realmente vários tipos de médicos: aqueles que curam o corpo e aqueles que curam a alma e eu, posso te afirmar, com toda segurança, que aquela criaturinha serviria ou serve para curar o corpo e a alma. Pois ele tinha o mais poderoso dos remédios: o amor, que para quem o possui em abundância, cura qualquer enfermidade. - Sobre este bom médico que anda por aí, seja ele quem for, faz o que Gabriel certamente faria, pois ele 60


distribui amor e bondade. Então minha amiga, garanto a você que Gabriel está vivo nele e em todas as pessoas que amam com o amor que Deus espera que amemos. Pois Deus, espera de nós apenas isso: que o amemos sobre tudo e ao nosso próximo como a nós mesmos. A mim, resta este doce consolo, de ter, mesmo que por tão pouco tempo, usufruído desse amor e a certeza de que é um amor totalmente real e possível e que pode ser partilhado com todos.

Fim

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OUTROS TÍTULOS DA AUTORA ANTOLOGIA - MAPA CULTURAL PAULISTA 2011/2012 – CONTO “ENGANO”

ANTOLOGIA – VI CLIPP – CONTO “ROUPA BRANCA”

TUDO POSSO AOS QUINZE ANOS

Contato com a autora: prietosementino@ig.com.br www.facebook.com/mariaregina.prieto www.facebook.com/groups/222422261249209/?fref=ts 63



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