Romande em debate

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O Romance em debate


Governo do Estado do Amazonas Omar Abdel Aziz | Governador José Melo de Oliveira | Vice-Governador Odenildo Teixeira Sena | Secretário de C,T&I Maria Olívia de Albuquerque Ribeiro Simão | Diretora-Presidenta FAPEAM Universidade do Estado do Amazonas José Aldemir de Oliveira | Reitor Marly Guimarães Fernandes Costa | Vice-Reitora Editora Universitária Lorena Nobre | Diretora Juliana Sá | Editora Assistente Gilson Allefy e Vanessa Marruche | Revisores Andriele Oliveira de Souza | Capa, Projeto Gráfico e Editoração Conselho Editorial Ademir Castro e Silva | Cristiane da Silveira Maria da Graças Vale Barbosa | Otávio Rios Portela (Presidente) Patrícia Melchionna Albuquerque | Sergio Duvoisin Junior Silvana Andrade Martins|Simone Cardoso Soares | Valmir César Pozzetti Esta obra foi editada conforme o acordo ortográfico de 2009. Todos os Direitos Reservados © Universidade do Estado do Amazonas. Permitida a reprodução parcial desde que citada a fonte. Ficha catalogada na Biblioteca Central da Universidade do Estado do Amazonas Catalogação Universidade do Estado do Amazonas

Sales, Germana Araújo S163r O Romance em debate : pesquisa em fontes primárias / Germana Araújo Sales, Wanessa Regina Paiva da Silva.-- 1.ed.-Manaus, AM : UEA Edições, 2013. 224 p.: il.; 23 cm. ISBN: 978-85-7883-233-9 1. Literatura brasileira. 2. Ensaios brasileiros. 3. Crítica. I. Silva, Wanessa Regina Paiva da. II.Título.

CDU 1997 -- 821.134.3(81)-31 UEA Edições Av. Djalma Batista, 3578 - Flores | Manaus - AM - Brasil Cep 69050-010 | (92) 3878.4463


Germana Sales Wanessa Paiva

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Esta obra foi financiada pelo Governo do Estado do Amazonas com recursos da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (FAPEAM).


Germana Sal e s | Wanessa Paiva

Aos queridos, Sancl a yton Moreira e Thiago Souza, companheiros de todos os momentos.


O Romance em debate

Agradecemos à CAPES, ao CNPq e à FAPESPA, que fomentaram essa pesquisa; à FAPEAM, cujo edital proporcionou a publicação desse exemplar e à Editora UEA, pela oportunidade para a divulgação do nosso trabalho; ao prof. Dr. Luís Bueno (UFPR/CNPq), pela leitura e generoso prefácio que abre este volume; ao Thiago Souza, ouvinte atento das discussões aqui expostas. Agradecemos a todos que contribuíram para a realização deste trabalho.


Germana Sal e s | Wanessa Paiva


A avaliação que se faz de uma obra depende de um conjunto de critérios e não unicamente da percepção da excelência do texto. Ler um livro não é apenas decifrar letra após letras, palavra após palavra. Ler um livro é cotejá-lo com nossas convicções sobre tendências literárias, sobre paradigmas estéticos e sobre valores culturais. É sentir o peso da posição do autor no campo literário (sua filiação intelectual, sua condição social e étnica, suas relações políticas etc.). É contrastá-lo com nossas ideias sobre ética, política, moral. É verificar o quanto ele se aproxima da imagem que fazemos do que seja literatura. (Márcia Abreu, Cultura letrada: literatura e cultura).

O passado sintetiza o significado das fontes, competindo-lhe armazená-las, para que se corporifique o sentido do tempo e constitua-se a história. (Regina Zilberman, As pedras e o Arco).



Sumário Prefácio | 11 Capí t ul o 1

A crítica em revista |

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1.1 Breve panorama da crítica em seu percurso histórico | 17 1.2 A crítica no Brasil: o jornal como espaço de debates literários | 23

Capí t ul o 2

Suplemento Arte Literatura: veículo das tendências literárias da década de 1940 | 31 2.1 Belém e o cenário de produção cultural – Belle Époque à década de 1940 | 33 2.2 O suplemento Arte Literatura: diagramação, colaboradores e orientação estético-ideológica | 41

Capí t ul o 3

O lugar do Romance: as discussões sobre as diretrizes do gênero na década de 1940 | 55 3.1 Graciliano Ramos, Jorge Amado, José Lins do Rego e Rachel de Queiroz: o início da carreira literária | 57 3.2 O cenário de produção literária na década de 1940 no Brasil | 71

Capí t ul o 4

A crítica do Romance: regionais, políticos ou universais? A releitura do Romance social sob uma nova perspectiva crítica | 81 4.1 José Lins do Rego e a “falhada” incursão pelo romance psicológico: o caso Eurídice | 86 4.2 Rachel de Queiroz: para além da seca, uma compreensão do humano | 103 4.3 Graciliano Ramos e sua construção do Romance: O homem às voltas com o mundo e com a linguagem | 117

Considerações finais | 137 Referências | 141 Col e tânea | 149


Germana Sal e s | Wanessa Paiva


PREFÁCIO A disciplina História Literária passou por uma crise considerável nas últimas décadas. Foi acusada de sustentar ideias já insustentáveis – centralidade do cânone, conceito estável de nacional, para citar somente duas –, e houve mesmo quem considerasse que era chegado o momento de sua morte. Aos poucos, no entanto, a velha senhora, afinal nem tão velha assim, tem dado sinais de recuperação. É claro que o modelo tradicional, concretizado num compêndio geral que pretende dar conta de todo o corpus (ou pelo menos de todos os principais textos) de uma dada literatura nacional continua parecendo, a esta altura, inexequível, para dizer o mesmo. Acontece que essa não é única forma de se fazer história literária. Não se constrói a história de uma literatura apenas pelo acúmulo totalizador de obras e autores. Nem tampouco é necessário assumir que a nação possui uma identidade estável e una. Se a preocupação com essa identidade nacional teve papel decisivo na criação da disciplina, não é sua condição de existência. Trabalhos como este, de Wanessa Paiva e Germana Sales, são a demonstração cabal de que a tarefa de escrever a história da literatura brasileira está longe de se exaurir – e pode mesmo ser levada adiante em outras bases. A decisão de centrar a atenção num fragmento apenas pode fazer avançar significativamente o conhecimento que temos. Ao escolher um suplemento literário específico, publicado em Belém por um grupo de jovens intelectuais de talento, este livro lança luz sobre o debate literário de um período-chave de nossa vida intelectual, ao mesmo tempo em que enriquece, matizando-o, o conceito de uma identidade brasileira una. Quando se fala em periódico literário, o que vem à mente em primeiro lugar são aqueles veículos – tão presentes em nossa vida literária nos anos 20 – que serviam de plataforma para grupos mais ou menos unificados em torno de certos ideais de renovação estética. Assim se caracterizam revistas diferentes entre si como Klaxon, de São Paulo, Verde, de Minas Gerais, ou Joaquim, do Paraná. Mas há um outro tipo de publicação cultural que passaria a ter cada vez mais importância. São revistas, jornais e suplementos cuja face jornalística é mais evidente e cujo

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objetivo é atingir o leitor comum. Já na década de 1930, uma revista, o Boletim de Ariel, teve esse perfil. Ligado a uma editora importante da época, o Boletim recebeu e discutiu toda uma geração de intelectuais que se firmaria naqueles anos. O Suplemento Literário do Estado de Minas foi outro desses veículos importantes. Como parte integrante de um grande diário da capital paraense, a Folha do Norte, o suplemento Arte Literatura integrou esse tipo de periodismo. Durante cinco anos, ele fez ouvir a voz dos rapazes da terra – alguns dos quais, como Haroldo Maranhão e Benedito Nunes, se tornariam intelectuais influentes em todo o país nas décadas seguintes – e a integrou ao debate que se fazia no centro cultural do Brasil, o Rio de Janeiro, de forma bastante natural. Numa página se estampavam os poemas dos jovens, em outra uma entrevista com um escritor de projeção, ou a polêmica entre representantes de duas gerações distintas – como a que envolveu Lêdo Ivo e José Lins do Rego. Ao descortinar para o leitor esse duplo movimento, este livro contribui para escrever a história da literatura no século XX de forma a dar destaque à composição entre produção local e debate nacional. Com isso, ajuda a nós, seus leitores, a tensionar a visão de que há uma identidade nacional única, sem precisarmos cair em seu oposto, o de só enxergar as particularidades do dado local. Um outro aspecto que marca a contribuição deste trabalho é a possibilidade que ele encontrou de projetar uma inflexão importante da produção literária brasileira e do debate sobre literatura nos anos 40. Ao flagrar a forma como os autores que haviam se consagrado na década anterior, a ponto de ter suas obras reeditadas em conjunto – como é o caso de Graciliano Ramos e Raquel de Queiroz, os quais foram lidos já como autores maduros, e não como os “novos” para quem um bocado de condescendência sempre cai bem – as autoras dão corpo àquilo que muitas vezes parece abstrato na “grande” história literária: a mudança do pensamento hegemônico. Neste caso específico, a passagem da ênfase na função ideológica da literatura para a preocupação com um certo conceito de universalidade a que se deveria aspirar. Vale a pena ainda destacar um outro elemento da vida cultural brasileira – o de nosso tempo – em que este livro faz pensar. A preocupação de localizar, contextualizar e explicar, presente em todas as partes em que ele se divide, é marca da

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origem do trabalho, ou seja, a universidade. A produção que sai dos cursos de pós-graduação hoje se infiltra na vida intelectual do país, e já não há como negar isso ou insinuar que se trata de produção para poucos. Nos últimos anos, além disso, um desdobramento da maior importância tem se feito notar: a descentralização dessa produção. Espalhada pelo Brasil, ela tem potencial para superar na prática contradições que há algum tempo pareciam insuperáveis. Afinal, ao mergulhar no arquivo local e de lá extrair um debate que conta um capítulo da história da literatura brasileira, sem esforço ou alarde, o que se faz aqui é se considerar o cânone sem fetichizá-lo, é de revelar uma identidade múltipla sem ceder ao gosto pelo discurso, é revelar o dado geral pela consideração do detalhe significativo. Em duas palavras, é reescrever a história da literatura brasileira sem excessivas ambições generalistas nem recalque localista. Luís Bueno (UFPR/CNPq)

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Germana Maria Araújo Sales | Wanessa O Romance em debateRegina Paiva da Silva

CAPÍTULO I A CRÍTICA EM REVISTA

C

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A crí t ica em revista


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1.1 Breve panorama da crítica em seu percurso histórico Quando pensamos na expressão “Crítica Literária”, associamo-la quase que involuntariamente aos termos “apreciação” e “juízo de valor”, como se ambos representassem princípios naturalmente ligados àquela atividade. Antoine Compagnon (2006, p. 21-22), por exemplo, afirma que a crítica literária é um discurso sobre as obras literárias que acentua a experiência da leitura, que descreve, interpreta, avalia o sentido e o efeito que as obras exercem sobre os (bons) leitores, mas sobre leitores não necessariamente cultos nem profissionais. A crítica aprecia, julga; procede por simpatia (ou antipatia), por identificação ou projeção: seu lugar ideal é o salão, do qual a imprensa é uma metamorfose, não a universidade; sua primeira forma é a conversação.

Essa afirmação do estudioso francês ratifica uma espécie de imaginário construído em torno da atividade crítica. No entanto, tal ideia considera apenas alguns aspectos que foram relacionados ao termo a partir dos séculos XVIII e XIX, em especial à crítica impressionista ou jornalística, desconsiderando tantas outras acepções a ele relacionadas em outras épocas. Em sua origem, por exemplo, o termo “crítica” remonta à palavra grega kritikós, que significa “juiz da literatura” e, de acordo com Wellek (1963, p. 30), “já aparece em fins do século quarto antes de cristo”. A palavra, nessa época, apresentava um sentido pedagógico, pois os críticos eram os mestres que se debruçavam sobre o estudo dos textos clássicos, sendo chamados ainda de gramáticos ou filólogos. O exercício de crítica consistia na verificação da fidedignidade das cópias e das origens de textos, a partir da comparação com as obras asseguradas pelos costumes. Exemplo desse modo de exercer a crítica pode ser visto já na Poética aristotélica, com a fixação de obras, tanto épicas quanto dramáticas, dignas de figurarem como modelos para a produção posterior: Do mesmo modo, porém, que Homero foi o poeta supremo no estilo sério, mantendo-se iso-

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Germana Sal e s | Wanessa Paiva lado pela excelência da composição e pela qualidade dramática de suas representações da vida, assim também, nas personagens dramáticas que criou, não para a invectiva, mas para abordar o ridículo, foi ele o primeiro a indicar as formas que a comédia deveria assumir; com efeito, sua “Margites” está relacionada com as nossas comédias, da mesma maneira que a “Ilíada” e a “Odisséia” com as nossas tragédias (ARISTÓTELES, 1989, p. 18).

No século XVI, ocorre uma retomada dos preceitos da cultura greco-latina. A ideia de crítica, depois de um período de abandono pela cultura medieval, se reaproxima daquela da antiguidade, ligada à confrontação com as obras clássicas (cf. WELLEK, 1963, p. 32). Todavia, o modo como a atividade de crítica foi concebida na antiguidade, que implicava reverência às regras estipuladas a partir da autoridade de uma tradição, não era mais compatível com o pensamento acerca da arte, da ciência e da cultura advindo com o Renascimento. Dessa maneira, a cultura renascentista reelabora a prática da crítica, não apenas aceitando o material herdado, mas voltando-se sobre ele de modo a exercer mais livremente o racionalismo que se desenvolve no período e que se estende até meados do século XVIII (cf. SOUZA, 2011b, p. 31). Em meados do século XVIII, ocorreram diversas transformações sociais e culturais advindos de movimentos contestadores da ordem vigente. O Iluminismo e as revoluções industrial e francesa são exemplares neste sentido, pois foi a partir da disseminação de seus ideais que se passou a questionar, principalmente, o papel do homem na construção da sociedade e, consequentemente, do saber. O pensamento acerca da arte também passou por essa mudança, influenciado por impulsos em direção a um ideal de liberdade e originalidade ligado a valores próprios de uma época na qual se discutiam as oposições entre público e privado, o geral e o particular, o indivíduo e a sociedade. Dessa forma, a definição de arte pautada em modelos greco-latinos não era mais aceita como algo natural. Alguns pensadores iluministas entraram nessa discussão ao defender que o fazer artístico e, em sua esteira, a prática de crítica, não deveria estar atrelado às preceptivas dos manuais de retórica e poética clássicas, e sim

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terem sua necessidade avaliada e fundamentada pela análise empreendida pela razão. Diderot levanta essa discussão em um ensaio intitulado Dos autores e dos críticos (1773), no qual questiona a quem cabe estabelecer a verdade sobre o Belo e sobre as regras que definem bons ou maus julgamentos a respeito do objeto de arte, uma vez que reconhece a impossibilidade de manter um modelo ideal ao estilo clássico, que pretenda mostrar-se como um “modelo geral ideal de toda perfeição” (DIDEROT, 2011, p. 325). A ruptura com tal regra generalizante conduz Diderot à diversidade própria do humano, o que o leva a expressar, sob a fala de Aristo, seu personagem, um juízo acerca do relativismo, questão presente também em muitos outros pensadores da época: Não há talvez na espécie humana inteira dois indivíduos que disponham de alguma semelhança aproximada. A organização geral, os sentidos, a figura externa, as vísceras, têm suas variedades. As figuras, os músculos, os sólidos, os fluídos, têm sua variedade. O espírito, a imaginação, a memória, as idéias, as verdades, os prejuízos, os alimentos, os exercícios, os conhecimentos, as condições, a educação, os gostos, a fortuna, os talentos, têm sua variedade. [...] Como seria, portanto, possível que dois homens possuíssem precisamente o mesmo gosto, ou as mesmas noções do verdadeiro, do bom e do belo? A diferença da vida e a variedade dos acontecimentos bastariam por si para estabelecê-lo no julgamento (DIDEROT, 2011, p. 493).

O reconhecimento dessa variedade potencialmente relativista, que também se pronunciava fortemente com relação à experiência artística, não anulou o intuito de pensá-la filosoficamente. Acompanhando o desenvolvimento dessa nova percepção e avaliação na arte, surge a Estética, disciplina batizada pelo filósofo alemão Alexander Gottlieb Baumgarten, a qual se debruçará sobre o fenômeno da arte tendo em vista a compreensão de elementos ligados à experiência de fruição artística, como a percepção, a sensibilidade e a imaginação, bem como a reflexão sobre temas de teor mais especulativo, tais como a natureza do belo e do sublime.

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Mantendo estreita relação com os preceitos dessa nova área, a atividade de crítica adquire novo status, cabendo, em certa medida, à figura do crítico, como o indivíduo que lida diretamente com a obra de arte, contribuir nessa empreitada intelectual e ajudar a desvelar, para usarmos os termos de David Hume, o “verdadeiro padrão do gosto e da beleza” (1980, p. 323-324). O século XVIII se configurou como uma época propícia ao surgimento de novas teorias no campo artístico e ainda à reavaliação de paradigmas já em voga. Na transição para o século XIX, apareceram novos movimentos advindos tanto do fortalecimento das tendências racionalistas, agora sob forma explicitamente positivista e cientificista, quanto do aprofundamento do individualismo. Essas duas linhas de força, relacionadas com a consolidação da cultura burguesa, se manifestarão naquelas que serão as principais vertentes críticas do período oitocentista: a primeira, representada pelos estudos de cunho objetivista de Hippolyte Taine, Émile Hennequin e Ferdinand Brunetière; e a segunda, pelas pesquisas biográficas de Sainte-Beuve e pelo impressionismo de Jules Lemaitre e Anatole France. Devemos ressaltar, todavia, que essas duas linhas apontadas não se mostram necessariamente como opostas, tendo em vista que a proposição de Sainte-Beuve, por exemplo, de certo modo as entrelaça ao procurar um critério objetivo da crítica no dado individual do autor. A crítica biográfica idealizada por Sainte-Beuve (2011) propõe um método de recuperação histórica de fatos das vidas de escritores a fim de explicar ou mesmo dar pistas de como ocorreu o processo de composição da obra literária, além de poder dar ferramentas para a sua interpretação. Para esse crítico, a produção artística de um escritor é indissociável de sua vida particular e de suas ações na vida social: A literatura, a produção literária, não é para mim de modo algum distinta ou sequer separável do homem e da organização, posso fruir uma obra, mas para mim é difícil julgá-la independentemente do conhecimento do próprio homem; e direi de bom grado: tal árvore, tal fruto. O estudo literário me conduz assim muito naturalmente ao estudo da moral (p. 521).

Ao partir de uma perspectiva de certo modo historiográfica, a crítica proposta por Sainte-Beuve, relaciona-se com outra

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vertente da crítica literária do século XIX, a crítica histórica de Hippolyte Taine, que tem sua proposição baseada na reconstituição de processos determinantes para o desenvolvimento cultural, social, político e étnico de uma sociedade. Para Taine (2011), nessa reconstituição é preciso considerar três aspectos: a raça, o meio (físico e social) e o momento histórico, por meio dos quais seria possível entender as configurações formadoras de uma nação: Há portanto um sistema nos sentimentos e nas ideias humanas, e tal sistema tem por motor primeiro certos traços gerais, certas características de espírito e coração comuns aos homens de uma raça, de um século ou de um país. [...] Três diferentes fontes contribuem para produzir esse estado mental moral elementar: a raça, o meio e o momento (p. 533 e 535).

Nessa perspectiva, a produção literária se relaciona com a vida do povo, da nação, sendo representativa de seu caráter coletivo. Essa representatividade fundamenta, para Taine, a perenidade de uma obra e seu sucesso: “É representando a maneira de ser de toda uma nação, de todo um século, que um escritor congrega em torno de si as simpatias de todo um século e toda uma nação” (2011, p. 543). Os estudos elaborados por Taine contribuíram para a formulação de novas proposições que passaram a fazer parte do discurso a respeito da obra literária, em especial as da crítica científica, também denominada “estopsicologia”, elaborada por Émile Hennequin. Os esforços iluministas de identificar, a partir da variedade sensível, um “padrão do gosto” se encontram com a ânsia racionalista do cientificismo do século XIX de buscar um critério objetivo de compreensão do fenômeno literário. Todavia, para os estudiosos oitocentistas, as questões relacionadas ao gosto, ao belo, ao valor, à “apreciação” de um modo geral, talvez por seu cunho demasiadamente subjetivo, foram relegadas a um plano inferior em favor da busca pelos fundamentos pretensamente científicos da criação artística. A “estopsicologia” de Hennequin, surgida dessa confluência, entendia a crítica enquanto produto da interação entre a estética, a psicologia e a sociologia na tentativa de desvendar o Homem através do texto literário.

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Germana Sal e s | Wanessa Paiva A estopsicologia não tem por fim verificar o merecimento das obras d’arte e os meios gerais que foram produzidas, missão esta que cabe à estética pura e a crítica literária; não tem a estopsicologia por objetivo encarar a obra d‘arte em sua essência, fim evolução, mas unicamente nas relações que unem as suas particularidades psicológicas e sociais como reveladoras de certas almas; a estopsicologia é a ciência da arte, considerada como sinal da vida interior. (HENNEQUIN, 2011, p. 587).

Como reação ao cientificismo na literatura, emerge a crítica impressionista, que assume como seus pressupostos os elementos rechaçados pelos teóricos da crítica que se quer científica, em especial a emissão de valor sobre uma obra. Essa crítica, que tem nas figuras dos franceses Jules Lemaitre e Anatole France seus principais expoentes, se estabelece no espaço dos jornais, dedicando-se às resenhas sobre obras e autores e desenvolvendo um método de análise da obra literária a partir de suas próprias impressões de leituras. Como afirma Jules Lemaitre (2011, p. 577): Como qualquer escritor, um crítico necessariamente coloca em seus escritos seu temperamento e sua concepção da vida, pois é com seu espírito que descreve os outros espíritos; [...] a crítica é uma apresentação do mundo tão pessoal, tão relativa e tão vã e, por conseguinte, tão interessante quanto aquelas que constituem os outros gêneros literários.

Na passagem do século XIX para o século XX, a atividade de crítica literária sofre outras transformações, adquirindo no novo século uma postura inovadora, principalmente depois do aparecimento das vanguardas, que no início do século XX colocaram em xeque muitas das concepções correntes acerca do artístico, principalmente no que toca à natureza da obra de arte, rejeitando amplamente a noção de obra como referência a uma realidade exterior (seja social ou histórica, seja individual ou psicológica), e defendendo a autonomia da construção artística. Assim, os estudos sobre arte e literatura refutam também tanto a abordagem positivista, quanto a impressionista, pondo em evi-

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dência a falta de aparato teórico da crítica. Respondendo a essa demanda por uma abordagem diferenciada, aparece a Teoria da Literatura, buscando definir as qualidades essenciais (ou a “literariedade”) da obra literária a partir dela mesma e reivindicando para si e para o espaço da Universidade a chancela nas questões referentes à literatura. Assim, no decorrer do século XX, há um debate na crítica literária, a qual se concentra em dois pólos: de um lado, a impressionista, que entra no novo século ainda com bastante força e encontra nos suplementos literários dos jornais seu espaço de atuação; do outro, a Academia, que reivindica para si a tutela dos estudos sobre a obra literária, a partir das teorias que se desenvolveram nesse período. O percurso da crítica no mundo ocidental vem desde a Antiguidade até o século XX quando surgem várias vertentes que se propunham a romper com a ideia de modelo estipulado pela tradição, apoiando-se tanto em proposições científicas quanto em critérios em que se destacam a subjetividade própria ao indivíduo. Mas, e no Brasil, como ocorreu esse processo? 1.2 A crítica no Brasil: o jornal como espaço de debates literários Ao tentar traçar um panorama do desenvolvimento da crítica no Brasil, é preciso levar em consideração que, por aqui, só tardiamente, a partir do século XIX, se desenvolveu de modo mais amplo uma cultura de produção e circulação de material impresso. Esse dado se mostra importante, uma vez que um dos principais veículos de divulgação dos assuntos relacionados à arte e à cultura, consequentemente, à literatura e à crítica, foi o jornal. No Brasil, o processo de revolução cultural do livro e da leitura se deu após a chegada da Família Real, em 1808, pois até esta data era proibida a instalação de tipografias na Colônia. Essa interdição devia-se ao fato de que poderia ser perigosa, para o modelo de colonização da metrópole, uma sociedade letrada. A partir do estabelecimento da Corte na Colônia, fez-se necessária a criação de um órgão responsável pela impressão e publicação de documentos oficiais. É criada, então, a Imprensa Régia, que funcionava como censora e monopolizadora das letras brasileiras, já que continuou sendo coibida a criação de outras casas tipográficas, até 1821, quando é finalizada a censura na

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colônia (cf. LAJOLO & ZIBERMAN, 1996, p. 125). Após essa data houve a ampliação de uma cultura de impressão no Brasil: novas casas tipográficas surgiram, a Impressa Régia passou a publicar também textos não oficiais que não passavam mais pela censura do governo e jornais eram criados para atender à demanda de um mercado leitor que crescia a cada dia. Nesse contexto, a produção de literatura e a atividade crítica encontram-se fortemente ligadas à atividade jornalística, sendo que é na revista Minerva Brasiliense (1843) que, durante o período romântico, a crítica vai se consolidar enquanto atividade regular, tendo como marco as considerações de Dutra e Melo sobre o romance A Moreninha (1844), de Joaquim Manuel de Macedo. Dutra e Melo tem como mérito analisar o romance de Macedo, relacionando-o com as questões contemporâneas do debate sobre nacionalidade que agitava a intelectualidade brasileira, e não apenas conduzir uma discussão sobre esses temas, como faziam os seus pares na Minerva (MACHADO, 2010, p. 278-279). Ao lado das questões políticas na pauta do dia, a atividade crítica nos jornais também se ligava ao jogo das relações pessoais, que colocavam em jogo as simpatias e antipatias entre os pares, convertendo-se em um exercício de adulações e ataques a intelectuais e escritores conduzidos pelas respectivas “capelinhas”, como afirma Brito Broca (1979, p. 73-74), o que refletia na credibilidade da crítica, conforme fica explícito no texto clássico do jovem Machado de Assis, Ideal do Crítico (1865), em que deplora a intriga pessoal dos conchavos que havia se alastrado pela crítica literária nacional, vista por ele como uma atividade “desamparada dos esclarecidos [e] exercida pelos incompetentes” (cf. ASSIS, 1953, p. 11). Esse tipo de crítica à qual se refere Brito Broca, movida por interesses particulares, movimentou bastante as páginas dos jornais do século XVIII no Brasil. Mas também a polêmica entre os próprios escritores foi um elemento bastante presente nas páginas de crítica dos jornais brasileiros. Muitas foram as polêmicas que surgiram nessa época, envolvendo vários de nossos escritores mais importantes do período romântico, como Bernardo de Guimarães, Gonçalves Dias, Teixeira e Sousa, Manuel Antonio de Almeida e José de Alencar. Entre os nomes citados, José de Alencar – que seguiu carreira como jornalista, colaborando em diversos jornais, com alguns de seus romances publicados em capítulos, na coluna folhetim – esteve envolvido em várias discussões políticas e literárias. Ele

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atacou A confederação dos Tamoios, de Gonçalves de Magalhães, numa série de textos publicados no jornal Diário do Rio de janeiro, em 1856, e, posteriormente, foi atacado por Franklin Távora e Joaquim Nabuco. Com este último, protagonizou um dos mais célebres embates literários do período. Joaquim Nabuco deflagrou duras críticas sobre as obras de José de Alencar nas páginas do jornal O Globo, em 1875. Nessas apreciações, notavam-se, além de diferenças estéticas, próprias da transição do período romântico para a época realista, as divergências de ideários políticos entre os dois escritores. Nabuco, como um jovem abolicionista, atacou a produção de José de Alencar por entender que o romancista não problematizara devidamente a temática da escravidão. Nesse sentido, o jovem crítico questionou as obras teatrais: O Demônio Familiar e Mãe, lembrando que o velho romancista era politicamente conservador e a favor da escravatura enquanto atividade econômica. O homem do século XIX não pode deixar de sentir um profundo pesar, vendo que o teatro de um grande país, cuja civilização é proclamada pelo próprio dramaturgo escravagista (seu teatro só abala a escravidão em nosso espírito, não no dele) acha-se limitado por uma linha negra e nacionalizado pela escravidão. Se isso ofende o estrangeiro como não humilha o brasileiro! Aí está o teatro que o Sr. J. de Alencar teve a nenhuma compaixão de fundar! (NABUCO, 1978, p. 106).

Sobre esse clima hostil que dominava a atividade de crítica literária veiculada pelos jornais, Roberto Acízelo de Souza (2010) propõe a ideia de que um dos fatores para a criação de uma cena literária tão propensa aos embates pessoais seria próprio do espaço do jornal, enquanto veículo utilizado nas acaloradas discussões partidárias, em um momento de constituição e afirmação das instituições nacionais, o que propiciaria a “[...] proliferação de polêmicas suscitadas ou alimentadas pelos ensaios críticos, bem como a adoção de linguagem não raro virulenta, pródiga em ironia, sarcasmo e até ofensas” (p. 4-5). Se durante o Romantismo, como já foi exposto, não houve a consolidação de um pensamento formal e aparelhado por critérios conhecidos e compartilhados pelos críticos sobre o es-

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tudo de obras brasileiras, não se pode dizer o mesmo do período que se inicia a partir de 1870, impulsionado pela evolução do pensamento científico que pretendeu elevar a literatura à condição de ciência, com uma nova geração de críticos. Na esteira da tendência de cientificizar o conhecimento das humanidades, julgadas então como demasiadamente subjetivas, surgiram várias teorias no campo dos estudos literários que dialogavam estreitamente com as ciências naturais, essas sim entendidas como modelos verdadeiros do saber científico, pautadas na experiência e em estudos de caso, como os empreendidos por Hyppolite Taine, Émile Hennequin e Émile Zola. Hyppolite Taine e Émile Hennequin tentaram especificar critérios mais objetivos para a compreensão da produção literária partindo de aproximações com a História, a Geografia e a Psicologia. Émile Zola segue o exemplo dos dois outros pensadores, ao aproximar o método de análise da obra literária do apresentado por Claude Bernard em seu estudo de medicina experimental. Em sua teoria do romance, Zola (2011) propõe um método de criação que se baseie na observação dos fatos da vida social e na experiência realizada pelo romancista com o intuito de adentrar os mecanismos subjacentes dessa mesma vida social, como apresenta o escritor: “Partimos dos fatos verdadeiros, que são nossa base indestrutível; mas, para mostrar os mecanismos dos fatos, é preciso reproduzir e dirigir os fenômenos; esta é a nossa parte de invenção, de gênio na obra” (p. 231). Essas teorias chegam ao Brasil e encontram intelectuais que receberão suas influências de modo mais ou menos ortodoxo. Araripe Júnior e Sílvio Romero, dois dos principais nomes da crítica literária brasileira dos oitocentos, partilham de proposições do pensamento de Taine e Zola, adaptando-as às especificidades da cultura nacional. Araripe Júnior se apropria dos três fatores taineanos de raça, meio e momento para avaliar as obras de nossa literatura. O crítico identifica, na relação entre homem e meio, um fator determinante da criação literária em terras brasileiras: Há horas no dia em que o brasileiro, ou habitante de cidades como o Rio de Janeiro, é um homem envenenado pelo ambiente. A falta de tensão do oxigênio tortura-o desmesuradamente, a sua respiração ofega, e a imaginação delira numa deliciosa insensatez equatorial.

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O Romance em debate [...] Agora, responda-se francamente: nessa constate surmenage [fadiga, estafa], quando os corpos, atrelados a uma imaginação superexcitada, a todo o instante gravitam para o leito, a estilo que resista, a correção que se mantenha? O tropical não pode ser correto. A correção é fruto da paciência, e dos países frios; nos países quentes, a atenção é intermitente (ARARIPE JR., 2011, p. 233).

É segundo essa avaliação que o crítico observa a nova fase da literatura brasileira de então, protagonizada pela literatura naturalista de Aluísio de Azevedo. Se há um escritor capaz de incorporá-lo [o estilo vivo dos trópicos] a uma literatura nascente como é a nossa, imprimindo-lhe direção salutar, isocrômica e frutificante, esse escritor é o autor d’O Mulato, em cujas páginas já se encontram audácias dignas dos melhores, e que nos capítulos inéditos d’O cortiço, vai derramando todo o luxuriante tropicalismo desta América do Sul. [...] A fórmula que melhor nos cabe para exprimir a nova fase literária, não pode ser senão esta: O naturalismo brasileiro é a luta entre o cientificismo desalentado do europeu e o lirismo nativo do americano pujante de vida, de amor, de sensualidade (ARARIPE JR., 2011, p. 234).

Assim como ocorreu com Araripe Jr., Sílvio Romero também teve sua proposta de compreensão da crítica influenciada pelos estudos científicos, no entanto, esse autor reavalia proposições daqueles que eram os expoentes da crítica científica. Na tentativa de definir precisamente o que seria a crítica, Sílvio Romero se esforçou em demonstrar que é necessário desvincular o conceito de crítica de outras apreciações que, se confundidos, prejudicavam o claro entendimento de sua especificidade. Seria preciso, portanto, para o autor, separar a crítica tanto dos conceitos de gramática, de retórica e de poética – entendidas como resquícios da tradição greco-latina que já não correspondiam aos fatos do conhecimento moderno –, quanto do de estética – a verdadeira ciência da literatura (ROMERO, 2011, p. 608-610).

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Dessa forma, Sílvio Romero entende a crítica como um processo e não como uma ciência: “a crítica não é um sistema, uma teoria, uma doutrina feita e completa, uma ciência. [...] A crítica é a apenas um processo, um método, um controle, que se deve aplicar às criações do espírito, em todos os ramos de sua atividade” (2011, p. 620). Para ele, a crítica, desvinculada da generalização da ciência, se ocupa da análise dos estudos oriundos desta última: “se escrever um estudo acerca de um poeta ou de uma romancista, ou de um dramaturgo, falarei como esteta, farei o que se deve chamar esto-literatura; se analisar os estudos dos outros a respeito, exercerei função de crítico” (ROMERO, 2011, p. 617). Então, a crítica pode ser entendida como a análise das teorias, doutrinas e interpretações que a ciência, a estética, produz sobre os fatos literários. Essa posição não é encarada como uma desvalorização do ato crítico, o qual se converte na verdade em uma “lógica aplicada”, que julga a própria pertinência das teorias elaboradas pela ciência em sua correspondência, ou não, aos fatos estudados. Outro grande nome da crítica brasileira estabelecida a partir da década de 70 é o de José Veríssimo, que se aproxima de Araripe Jr. e de Sílvio Romero no intuito analítico objetivo de entender a literatura a partir da verificação de seus fundamentos. No entanto, Veríssimo diferencia sua abordagem por privilegiar noções estéticas consagradas, tais como: a emoção como efeito característico do literário, a imaginação como recurso a despertar a emoção e a forma como um meio que viabiliza a expressão da emoção (VERÍSSIMO, 2011, p. 262), buscando sua compreensão da obra literária no universo da própria estética, e não em fatores como “raça” ou “meio”. Apesar de esses três autores produzirem seus pensamentos contemporaneamente, podemos bem observar nas divergências particulares que a noção de crítica permanecia ainda atravessada por certa imprecisão. Adentrando o século XX, e percorrendo boa parte dele, tal situação não encontraria grandes alterações, nem o conceito de crítica maiores esclarecimentos (pelo menos até a consolidação dos espaços acadêmicos a partir da década de 1950). Verificamos que, até a primeira metade do século XX, a crítica literária continuou exercendo sua atividade no jornal. No entanto, esse espaço não se configurava da mesma maneira que no século XIX. Os assuntos dedicados à literatura foram redi-

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mensionados para cadernos específicos, os suplementos literários, em virtude das novas expectativas dos leitores em face de um mundo que se desenvolvia com bastante ligeireza e que demandava cada vez mais atenção a assuntos práticos do cotidiano em detrimento de atitudes que exigiam reflexão e certa disposição contemplativa. Conforme reflete Alberto Dines (1986, p. 26), a linguagem do acontecimento imediato, do noticiário, já não se coadunava com a linguagem do beletrismo. A criação de suplementos literários, voltados para leitores diretamente interessados nos temas da arte e da cultura, não implicou, contudo, perda de qualidade dos textos críticos. Pelo contrário, alguns dos nomes mais consagrados1 da nossa crítica literária exerceram, ou ao menos iniciaram, sua atividade nas páginas desses cadernos. Nesse espaço ainda eram veiculados artigos, ensaios, crônicas e até trechos de romances de escritores que iniciavam suas carreiras literárias a partir da década de 1920, fortalecendo, assim, a atividade de crítica, que exercia a função de informar os leitores sobre os assuntos mais importantes do campo literário ou das artes em geral, como afirma Silviano Santiago: Existe, portanto, um lado positivo na invenção pelos jornalistas do suplemento literário. Foi o modo como o jornal brasileiro, a partir de meados dos anos 1940, deu guarida a uma excelente geração de intelectuais [...]. Se o escritor e o crítico perderam o espaço do rodapé (em geral situado na parte nobre do jornal), continuaram, no entanto, a manter um diálogo frutífero com o público letrado, divulgando novas experiências estéticas, proporcionando o enriquecimento do debate de idéias e disseminando a avaliação cuidadosa de obras literárias do tempo. Estamos nos referindo a alguns intelectuais de peso [...], como, Sérgio Milliet, Lúcia Miguel-Pereira, Álvaro Lins, Otto Maria Carpeaux e Brito Broca. Verdadeiros formadores de opinião, responsáveis pelo sucesso de obras e autores, esses críticos assumiram ainda a tarefa de atualizar e ampliar o quadro nacional e internacional de leituras do Entre tantos nomes que fizeram carreira nos suplementos ou revistas literárias no século XX podemos citar: Álvaro Lins, Antonio Candido, Wilson Martins, Otto Maria Carpeaux e Lúcia Miguel Pereira.

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Germana Sal e s | Wanessa Paiva brasileiro comum. Por outro lado, tinham como pares de suplemento criadores do porte de Mário de Andrade, Oswald de Andrade, José Lins do Rego, Graciliano Ramos etc., que também se arriscavam no exercício ensaístico ou crítico no espaço do jornal, enobrecendo a este com uma crítica judiciosa e opinativa (2004, p. 163).

Os suplementos passaram a fazer parte dos jornais de maior destaque do eixo do debate artístico e cultural do país, composto pelas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo – que concentravam as principais editoras, livrarias e congregavam os nossos autores de maior destaque naquela época – divulgando as principais tendências literárias e artísticas dos anos de 20, 30 e 40. Contudo, a proliferação desses cadernos culturais não ficou restrita apenas aos centros mais desenvolvidos do país, pois se disseminaram em todas as regiões do Brasil, quando grupos interessados em despontar no cenário de produção cultural, utilizando-se dos suplementos e das revistas para vincularem-se ao movimento intelectual em maior escala (cf. COELHO, 2005, p. 17). A cidade de Belém estava inserida nessa revolução cultural promovida por jovens escritores em busca de consagração. Na década de 1940, a capital do Pará viu nascer o suplemento Arte Literatura, do jornal Folha do Norte, caderno cultural que fomentou o debate crítico e a interlocução intelectual entre o Pará e o mundo.

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itulo p a

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Supl e mento Arte Li t eratura : veí c ul o das tendências l i terárias da década de 1940

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2.1 Belém e o cenário de produção cultural – Belle Époque à década de 1940 De meados do século XIX até as primeiras décadas do século XX, a capital do Pará, a cidade de Santa Maria de Belém do Grão-Pará, viveu um momento ímpar em sua história – uma época áurea, de riqueza, pompa e ostentação – sustentada pela exploração do látex nos seringais da Região Amazônica. Com os recursos advindos dessa atividade econômica, que ampliava o contato com outros centros, nacionais e estrangeiros, Belém passou a se desenvolver rapidamente: ganhou nova fisionomia cultural e foi influenciada pelo estilo de vida europeu, em especial os modelos oriundos da França, àquela época, principal centro irradiador de cultura no ocidente. As famílias ricas dos Barões da borracha, dos comerciantes e dos políticos incorporaram o estilo de vida francês; pela cidade, as senhoras desfilavam a moda dos chapéus, dos longos vestidos de tecidos finos e pomposos; as casas ganhavam objetos de decoração trazidos de Paris, assim como tantos outros produtos vindos de além-mar, a exemplo de mobílias, artigos de arte, tecidos e outros produtos de aviamentos, além de livros. Figura 01 – Propaganda da loja de moda e variedades O Propheta, fundada em 1884

Fonte: CACCAVONI (1900, p. 45)

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Germana Sal e s | Wanessa Paiva Figura 02 – Propaganda da loja O Propheta

Fonte: CACCAVONI (1900, p. 44)

A marcante influência europeia modificou também a geografia da cidade, principalmente depois do projeto urbanístico realizado pelo intendente Antonio Lemos, que ficou no poder de 1897 a 1910. Os locais da cidade por onde viviam as famílias influentes ganhavam nova feição: aterravam-se os espaços alagados da cidade; alargavam-se ruas, criaram-se bulevares; calçavam-se as principais vias com paralelepípedos; arborizava-se a cidade com mangueiras. Além disso, muitos prédios foram construídos obedecendo à arquitetura importada e foram implantados os sistemas de transporte por bondes, de iluminação a gás e de água e esgoto. Maria de Nazaré Sarges reconta em seu livro Belém: riquezas produzindo a Belle Époque esse momento de modificação do espaço urbano de Belém e da interferência da cultura estrangeira na vida da elite local, ocasionados pelos lucros obtidos com a atividade econômica de extração do látex: Entre 1849 e 1920, toda a atividade econômica da região passou a girar em torno da economia extrativista da borracha. Em decorrência da nova economia que se instala, novos contingentes chegam à cidade, imprimindo uma amplificação e a modificação na paisagem do seu urbano. Parte do excedente que se originou da economia gomífera foi investido no setor público na área do urbano, como calçamento das ruas da cidade com paralelepípedos de granito importados de Portugal, com a construção de prédios como o arquivo e Biblioteca pública, Theatro da Paz,

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O Romance em debate além de outros, e a própria expansão da urbe com a ocupação das terras altas pelas famílias ricas, favorecendo a criação de novos bairros, como Batista Campos, Marco, Nazaré, Umarizal, onde a elite pode construir suas confortáveis casas (SARGES, 2010, p. 82 e 85).

A vida na capital mudou, e foi necessário criar, também, diversos espaços para o entretenimento da elite. Praças, cafés, teatros e cinema surgiam com esse intuito e, nesses ambientes, desenvolvia-se a vida cultural de Belém, que despontava como um dos mais importantes centros culturais do país. Essa transformação atraiu para a Região Amazônica importantes companhias de teatro, ópera, música e dança, reconhecidas no cenário internacional. Um exemplo da grande vitalidade artística de Belém foi a vinda de Carlos Gomes, ilustre maestro e compositor brasileiro, a pedido do então governador Lauro Sodré, para reger o Conservatório Municipal. Nesse período, quando a efervescência cultural patrocinada pelo capital da borracha estava em seu auge, surgiram vários jornais, tipografias e livrarias, que alimentavam os intelectuais ávidos por novidades ligadas à arte e à literatura, como as livrarias Escolar, Clássica, Universal e Carioca. Esses grupos com interesses voltados à vida cultural se reuniam também em cafés e bares, à moda europeia, para discutir sobre as artes em geral e organizavam saraus para divulgar suas próprias produções. Figura 03 – Propaganda da Livraria Clássica

Fonte: CACCAVONI (1900, p. 43)

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Toda essa agitação, no entanto, não foi propícia ao desenvolvimento das letras locais. Em Belém, mesmo com todos os investimentos oriundos do capital da borracha para elevar a vida cultural da cidade, os intelectuais paraenses não foram necessariamente contemplados, pois, para a elite local, a produção que interessava era de extração europeia. Assim, Belém tornou-se espaço de circulação e consumo de narrativas estrangeiras, das quais se destaca o romance-folhetim2, mas poucas condições eram dadas aos escritores locais. Nesse contexto, eles precisaram organizar-se em agremiações a fim de criarem condições de divulgar suas obras. Nesse cenário, surgiu a associação da Mina Literária (1894), que tentava insuflar nova vida ao cenário literário local, avaliado então pelos “mineiros” como se atravessasse um profundo momento de marasmo. Segundo Eustachio de Azevedo: “Parecia que o Pará tinha morrido intelectualmente. A não ser uma ou outra poesia, um ou outro conto literário, que surgiam pelas gazetas, esporadicamente, nada mais se fazia. Era uma tristeza, era um desconsolo isso” (AZEVEDO, 1997, p. 22-23). Os mineiros ressentiam-se da indiferença da burguesia abastada, que consumindo os produtos importados, não revertiam os lucros econômicos na construção de uma estrutura que desse suporte a todos os intelectuais. Essa situação detectada pelos mineiros só veio a piorar no decorrer dos anos, agravada pela crise financeira que se pronunciou nas décadas seguintes em decorrência da desvalorização da borracha no mercado mundial e falência do modelo econômico sustentado por ela. Sem se preocuparem com uma eventual situação de crise, os administradores públicos esbanjaram com as obras de modernização do espaço urbano; os barões da borracha faliram, e, com eles, a estrutura social que se formou ao longo dos anos. A capital do Pará entrou em decadência. Casarões foram abandonados, bancos e lojas fecharam suas portas. A partir disso, segundo Marinilce Coelho (2005), Belém isolou-se economicamente das outras cidades e teve seu espaço urbano Sobre esse assunto conferir as pesquisas realizadas por Edimara Ferreira Santos (2011), Dumas, Montépin e du Terrail: a circulação de romances-folhetins franceses no Pará nos anos de 1871 a 1880, e Izenete Garcia Nobre (2009), Leituras a vapor: a cultura letrada na Belém oitocentista, as quais estão ligadas ao projeto de pesquisa “Trajetória literária: a constituição da história cultural em Belém no século XIX” (CNPq), coordenado pela pesquisadora Germana Sales (UFPA/CNPq).

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alterado em razão do abandono do poder público e da falta de investimentos estruturais: Por volta de 1920 e de 1930, a decadência econômica era visível na paisagem da capital paraense, onde inúmeros estabelecimentos comerciais faliram e famílias abastadas mudaram-se para outros Estados Brasileiros. [...] Durante o período da segunda guerra mundial, a capital paraense encontrava-se em declínio e abandono, como, por exemplo, desse cenário a situação precária dos transportes coletivos: os primeiros ônibus e a constante falta de gasolina, que obrigava o motorista interromper a viagem quando menos se esperava, e o número reduzido de bondes, - velhos e barulhentos que andavam superlotados (p. 40-42).

Dalcídio Jurandir testemunha as dificuldades enfrentadas pelos escritores locais nos primeiros decênios do século XX, no prefácio de seu primeiro livro, Chove nos Campos de Cachoeira, publicado em 1941 pela Editora Vecchi, do Rio de Janeiro. Nessa obra, o autor evidencia a falta de estrutura de produção e circulação literária em Belém, restrita aos poucos que pudessem recorrer a apadrinhamentos para obterem espaço nos meios de divulgação. O romancista sintetiza tal situação na imagem de um dos principais alimentos que compunham a refeição da população pobre da região, o peixe frito, que simboliza a porção do cenário de produção literária que sobrava ao intelectual desamparado: Ao chegar ao meio dia, o pobre se tem a felicidade de haver arranjado dois mil reis leva um embrulhinho envergonhado de peixe frito para casa. A vida literária do Pará se tem movimentado em torno desse peixe frito. Conheço profundamente esse drama. [...]. A vida do chamado intelectual na província é mais trágica do que se pensa. Bancamos bobos de rei, mas de graça. A não ser a honra de um convite para qualquer chateação literária e mais nada. O resto é peixe frito (JURANDIR, 1941, p. 15).

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Passados mais de dez anos do testemunho de Dalcídio Jurandir acerca da amarga situação das letras provincianas, pode-se atestar que tal problema ainda não havia encontrado solução. Em 1947, Remígio Fernandes, em resposta dada à enquete Posição e Destino da Literatura Paraense veiculada no suplemento Arte Literatura – na qual se questionava a existência de uma geração modernista no Pará e ainda sobre uma possível relação de continuidade estética entre as gerações literárias que por aqui surgiram até aquela época – afirmou que uma das razões pela qual se atestava o minguado desenvolvimento literário na região, seria devido à falta de condições, que levava os intelectuais paraenses a migrarem para outras regiões, nas quais encontravam a infraestrutura necessária a esse processo de produção cultural. Nosso estado mental e cultural podia ser mais intenso e mais brilhante si boa parte dos paraenses intelectuais vivesse em Belém, não emigrando para o sul, levando a outros centros o fruto opíscuo de seu talento. Cito, entre outros, a Pimenta Bueno, o médico sábio, Alcides Gentil, Mecenas Dourado, Abguar Bastos, Dalcídio Jurandir, Felinto Maia, Océlio de Medeiros, Osvaldo Orico e muitos mais, que dão lá fora os frutos de sua lúcida inteligência (FERNANDES, 1947, p. 4).

Apesar dessa notável falta de condições materiais de produção e circulação das letras paraenses, percebe-se que houve um grande esforço dos escritores locais em não deixar morrer a vida literária da cidade. Na década de 1920, foi criada a revista Belém Nova (1923-1929), dirigida pelo poeta Bruno de Menezes. Novamente, os jovens escritores tentavam impulsionar a produção literária paraense, munidos desta vez de uma intenção renovadora, com a qual se encontram as propostas estéticas do modernismo paulista. Lançando manifestos, os colaboradores dessa revista clamavam por melhores condições de atuação e uma maior valorização da atividade do escritor, além de um levante nortista por uma produção mais expressiva para além dos limites geográficos do Estado. No manifesto À geração que surge (1923), Abguar Bastos (1990) sintetiza as necessidades dos intelectuais:

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O Romance em debate A Literatura equatorial é uma história de mitologia que se anda a contar nos corredores da Academia Brasileira. O Norte tem poder, tem força, tem filhos guerreiros e filhos altruístas! O Norte tem os gênios, os seus estetas, os seus cientistas, os seus filósofos! [...] Ergamo-nos! Criemos a Academia Brasileira do Norte! [...] Publiquem-se os livros! Movimentemos as estantes. Que Bahia, Pernambuco, Alagoas, Rio Grande do Norte, Paraíba, Ceará, Maranhão e Amazonas, se unam, se fraternizem para o apoio da nossa Renascença! (p. 290).

Em 1929, todavia, a Belém Nova encerra suas atividades. A capital esperou por quase dez anos para que surgisse um novo sopro de vida na cena cultural local: trata-se da revista Terra Imatura (1938-1942), que tomou para si a tarefa de reorganizar e mobilizar a intelligentsia nortista. Como observa Ruy Barata (1947 apud COELHO, 2005, p. 94), “a revista contribuiu no sentido de congregar os intelectuais paraenses que estavam dispersos, sem ligação alguma entre si”. No entanto, a empreitada idealizada pelos irmãos Cléo Bernardo e Silvio Braga partilha do triste destino que se abatera outrora sobre a Belém Nova é levada a encerrar suas atividades por conta da escassez de recursos financeiros. Depois do fechamento da revista, por motivos financeiros, pode-se dizer que houve um “desfalecimento” na vida literária local. Somente a partir de 1946 a literatura paraense teve um novo impulso, caminhando em direção a seu amadurecimento, sobretudo com a estréia de uma nova geração que se firmou como poetas, críticos e escritores, publicando no suplemento literário da Folha do Norte, uma produção literária e crítica preocupada com os problemas humanos e sociais contemporâneos. (COELHO, 2005, p. 94).

Em Belém, muitos foram os projetos que pretenderam criar e recriar condições para a prática das letras a partir da reu-

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nião de grupos em torno de órgãos da imprensa – até mesmo pela função privilegiada de circulação e divulgação destes investimentos, que facilitaria à produção literária atingir um maior número de leitores. Contudo, esses esforços se apresentam sempre segundo um padrão de “altos e baixos”: um período de efervescência cultural é precedido pela constatação de um quadro de desfalecimento; ao esgotamento da agitação segue-se um declínio, ao qual outro grupo de intelectuais reagirá, promovendo nova onda de agitação. Eustachio de Azevedo, ainda no início do século XX, já diagnosticara essa dinâmica que se estenderia por boa parte do século: A literatura amazônica, a paraense propriamente dita, tem tido várias fases, de efervescente animação umas e de verdadeiros desfalecimentos outras, que nos fazem pensar na nossa índole de provincianos doentios, propensos a indolência, incapazes de reagir contra a indiferença da burguesia opulenta e farta, causas primaciais do traumatismo intermitente que ataca fundo, em terríveis colapsos, as pobres letras indígenas. (AZEVEDO, 1997, p. 19).

O “traumatismo intermitente” tem como consequência a descontinuidade entre os diversos projetos que, individualizados, não conseguem estabelecer relações que promovam a construção de uma tradição literária. Nesse sentido, quando do surgimento de novos grupos, as bases pensadas pelas gerações anteriores são relegadas ao esquecimento. Esse “desencontro” explica, por exemplo, a afirmação de Benedito Nunes, quando remete à sua geração, como a que descobriu o modernismo tardiamente, apenas nos anos 40. A minha geração incorporou extemporaneamente esse movimento, restaurando as suas fontes, paulistas principalmente e seus derivados cariocas e mineiros, sem entreter a menor relação com os pioneiros paraenses de Belém Nova, excetuando Bruno de Menezes, para nós tão só o autor da poesia da negritude em Batuque (1931), original contraponto à poesia servonegra de Jorge de Lima (NUNES, 2005, p. 291).

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Nessa mesma dinâmica se inscreve o suplemento Arte Literatura, apresentando-se como mais uma expressão da vitalidade das letras locais e como porta-voz das novas tendências artísticas e literárias da década de 1940, em solo paraense.

2.2 O suplemento Arte Literatura: diagramação, colaboradores e orientação estético-ideológica Idealizado por Haroldo Maranhão, o suplemento Arte Literatura surgiu como um importante veículo de divulgação da produção dos talentos paraenses e ainda como um meio de travar relações com os principais centros culturais do país e do mundo. Nessa empreitada, Haroldo Maranhão contou com o apoio de vários amigos, alguns dos quais conheceu no início da década de 1940 e com quem dividiu as aflições e impressões próprias de uma geração ainda iniciante no mundo das letras. Referimo-nos ao grupo que, em 1942, reuniu-se em torno de uma agremiação, a “Academia dos Novos”3, para discutir e refletir sobre os preceitos da poesia romântica, parnasiana e simbolista. Deste grupo, além de Haroldo Maranhão, participavam Max Martins, Benedito Nunes, Jurandyr Bezerra, Alonso Rocha, entre outros, os quais só tiveram contato com o pensamento modernista quando já havia se passado mais de 20 anos do início do movimento. Esses jovens não demoraram a perceber o anacronismo de cultuar ideais tradicionais e logo aderiram às propostas trabalhadas pelo Modernismo. Influenciados pelo modo de fazer literário estabelecido pelos modernistas, os novos escritores paraenses queriam adentrar no cenário nacional de cultura e com esse intento foi criado o suplemento Arte Literatura. Lançado na manhã de domingo de 5 de maio de 1946, o suplemento literário do jornal Folha do Norte trazia para a cena intelectual local o que havia de mais recente entre as tendências da arte e da literatura do contexto pós-guerra. Agremiação literária criada em 1942 pelos jovens poetas Jurandyr Bezerra, Alonso Rocha e Max Martins, aos quais se juntaram outros jovens, como Benedito Nunes e Haroldo Maranhão, interessados em discutir as estéticas parnasiana, romântica e simbolista. A associação chega ao fim quando tais escritores aderem ao movimento modernista, iniciando em 1946 a empreitada de editarem um suplemento para a divulgação da poesia modernista local.

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Germana Sal e s | Wanessa Paiva Figura 04 – Suplemento Arte Literatura

Fonte: Folha do Norte. Arte Literatura

O Suplemento contava com a colaboração de outros escritores locais, advindos de gerações e revistas literárias anteriores e também com a cooperação de diversos intelectuais, poetas, romancistas, historiadores, críticos de arte e de literatura, pintores e pensadores conhecidos nacionalmente. O Suplemento circulou com regularidade, aos domingos, por aproximadamente cinco anos, até janeiro de 1951, quando alcançou a marca de 165 números. Disposto em quatro páginas, nas edições comuns, e em oito, nas edições especiais, o Arte Literatura se apresentava em formato de caderno, dividido em seis colunas verticais nas quais se apresentava uma grande diversidade de gêneros: crítica literária, ensaios sobre pintura e música, poesias, traduções, trechos de romances, anúncios de lançamentos de livros, entrevistas,

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crônicas etc. No Suplemento eram discutidos os assuntos mais comuns da cena artística e literária dos anos 40 no Brasil, principalmente, os temas postos em debate pelas diferentes gerações modernistas. O movimento modernista, que tem como marco inicial a Semana de Arte Moderna de 1922, é comumente dividido em três fases: a década de 1920, com a poesia; a década de 1930, com o romance; e a década de 1940, novamente com a poesia, mas também com a crítica, como observaria Wilson Martins (1967, p. 18). Foi nessa terceira década do Modernismo que apareceu o suplemento da Folha do Norte, seguindo uma tendência forte em todo país: a do surgimento de várias revistas e suplementos literários, do aparecimento de jovens poetas, num período de reformulação dos pressupostos estéticos do movimento e de novas diretrizes para a produção literária brasileira. O florescimento de revistas de novos, no norte, no centro e no sul, a organização de pequenas editoras, o avanço para os suplementos e outros fatores de ordem material, não deixavam dúvidas sobre a presença de uma nova geração, a geração de 1945. [...] Ricos em valores representativos, fecundos em livros e revistas, eis os novos. Em quase todos os Estados surgem nomes e movimentos. Creio mesmo que jamais houve no Brasil um conjunto de jovens tão numeroso e tão apaixonado pela coisa literária. E mais uma vez as províncias dão o que de melhor possuem em suas profundezas: os jovens poetas, com o seu segredo e sua ambição, orgulhosos e informulados (IVO, 1949, p. 1).

Dentro desse contexto de novidades, o Arte Literatura trazia sempre informações sobre os últimos lançamentos de romances, traduções, edições especiais de autores consagrados, ou ainda a indicação de novas leituras, por meio de anúncios, nos quais era possível encontrar também curiosidades sobre a vida de personalidades influentes da história brasileira e mundial. Esses anúncios vinham precedidos das expressões “Próximas edições”, “Últimas edições”, “Curiosidades” e faziam parte da coluna ora denominada “Movimento Literário” ora “Notas Literárias” ou ainda “Vida Literária”, muitas vezes

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assinada pelo pseudônimo “A.U.”4, que se correspondia do Rio de Janeiro. Rio – via aérea (A.U.) “10 Romancistas falam de seus personagens”. Edições Condé lançará por estes dias “10 romancistas falam de seus personagens”, que constituirá sem dúvida um dos mais relevantes acontecimentos literários dos últimos tempos. Trata-se de um original empreendimento artístico, que abrigará em suas páginas a chave explicativa da moderna ficção brasileira. Pela primeira vez em língua portuguesa 10 dos maiores romancistas do Brasil se reúnem em um único livro com a finalidade de falar sobre o processo de sua criação artística. A fim de dar aos leitores uma idéia marcante de seu trabalho cotidiano no mundo da imaginação, os romancistas Amando Fontes, Érico Veríssimo, Graciliano Ramos, Jorge Amado, Rachel de Queiroz e outros famosos autores da literatura brasileira, desfilam neste livro, cada um depondo sobre o mais curioso ou fascinante personagem de sua galeria romanesca. “10 romancistas falam de seus personagens”, foi prefaciado pelo eminente crítico Tristão de Ataíde que em páginas impressionantes pela sua lucidez e pela grata compreensão da atividade estética fundamenta a importante elucidação deste livro. Não obstante isso, os cuidados de que se cercou a presente edição, colocam-na em um plano dos mais altos e honrosos e situam-na como uma realização artística. A edição é apenas de 200 exemplares (FOLHA DO NORTE, 1947a, p. 3).

Sobre esse pseudônimo, é preciso observar que, apesar de ser assinado somente por iniciais, suspeitamos que a autoria da coluna seja de Aurélio Buarque de Holanda. Essa suspeita nasce de alguns fatores, como: entre todos os colaboradores do Arte Literatura, ser ele o único que tenha tais letras no nome; quando são listados os colaboradores da edição e se observa a presença de Aurélio Buarque, não se verifica nenhum texto assinado por ele, além da coluna dos anúncios; e ainda, o fato de sempre trazer comentários elogiosos sobre as obras dos autores nordestinos, como José Lins do Rego e Graciliano Ramos, ambos amigos próximos de Aurélio, a exemplo do que acontece no seguinte anúncio, “Obras completas de Graciliano Ramos, o mais notável dos romancistas brasileiros, que obedecerão ao seguinte plano: Caetés, São Bernardo, Angústia, Vidas Secas e Insônia” (FOLHA DO NORTE. Arte Literatura. Belém, n. 19, p. 3, jan. 1947. Suplemento, grifo nosso).

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Além dos gêneros literários constantemente divulgados no Suplemento, a crítica literária estava constantemente divulgada, normalmente assinada por nomes conhecidos nacionalmente: Sérgio Milliet, Álvaro Lins, Wilson Martins, Lúcia Miguel Pereira, Aurélio Buarque de Holanda e Otto Maria Carpeaux. Dentre esses, destaca-se a participação de Álvaro Lins e sua coluna Jornal de Crítica, na qual se verificava o seu posicionamento judicioso a respeito de autores e obras. Dos ensaios críticos, ganham destaque aqueles relacionados ao debate que se fazia sobre o futuro da poesia e do romance nas letras brasileiras e estrangeiras, sobre o surgimento de novos autores ou sobre as obras de autores já consagrados. Ainda na linha da crítica literária, nota-se a presença de correspondentes estrangeiros que traziam colaborações relevantes sobre assuntos muito caros ao pensamento modernista. João Gaspar Simões, escritor e crítico português participante da chamada segunda geração modernista portuguesa, reunida em torno da revista literária Presença, foi um dos estrangeiros com frequente participação no Suplemento, escrevendo sobre a produção ficcional de Clarice Lispector, a poesia de Cecília Meireles e Jean Paul Sartre e sua contribuição para a nova forma de pensar a literatura. É curioso perceber que entre os colaboradores locais do encarte, não havia muitos que se arriscassem na atividade de crítica literária e na produção de prosa. A maioria deles mostrava interesse preferencial pela poesia, como exemplificado a seguir com duas poesias de autores locais sendo a primeira de Benedito Nunes (1947, p. 6), conhecido hoje por suas grandes contribuições na área da crítica literária e filosófica, e a segunda de Paulo Plínio Abreu (1947, p. 3), um dos principais poetas modernistas do Pará: Mar Estou compondo não o poema do mar Porém o mar todo inteiro E a sua vida já se move nos meus olhos. Vede, companheiros, os rios escorrendo sobre mim E o meu corpo sem vontade de outra vida. Quem poderá agora enxugar essa umidade secular Das minhas mãos que estão no fim? E que sol poderá secá-las?

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Germana Sal e s | Wanessa Paiva

Fragmento de um poema Eu te esperei na vida e na morte e não vieste E eu vaguei como um cadáver Perseguido dos cardumes enormes Quando a luz se apagou sobre o mar.

A poesia, na verdade, era um dos gêneros mais explorados no Arte Literatura, seja pela própria produção dos escritores locais, seja pela tradução dos poetas estrangeiros mais admirados por esse grupo de escritores, como Rainer Maria Rilke, T. S. Eliot e Paul Valéry, seja ainda pela presença dos poetas modernistas brasileiros mais influentes no período. Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meireles e Lêdo Ivo eram, também, assíduos colaboradores, publicando, no dominical encarte do jornal Folha do Norte, tanto poesias quanto crônicas e ensaios. Percebe-se na frequência com que esses poetas apareciam no Suplemento uma forte admiração que exerciam sobre os escritores locais. À Cecília Meireles, por exemplo, foi dedicada uma edição especial do Arte Literatura, a qual trouxe uma entrevista dada pela poetisa a Haroldo Maranhão, além de poemas seus e de textos críticos sobre sua obra assinados por nomes famosos nacionalmente5. Tal exemplar trazia estampado na primeira página uma chamada na qual é possível verificar, no tom elogioso com que o editor Haroldo Maranhão refere-se à obra da poetisa, uma relação de identificação estética que se estabeleceu entre a escritora e a geração dos novos poetas paraenses: Cecília Meireles fala à Folha do Norte A crítica é unânime em considerar Cecília Meireles a maior poetisa da língua portuguesa de todos os tempos. O seu espaço, no quadro geral de valores da literatura brasileira, foi conseguido através da realização de uma poesia pura e sonora, fiel em todos os seus ângulos a uma linha evolutiva própria, alheia completamente à im Com a edição especial dedicada à poetisa Cecília Meireles, colaboraram os escritores Menotti del Picchia, Roger Bastide e Paulo Rónai.

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O Romance em debate provisação e ao fácil. Essa posição solitária que ela ocupa em nossas letras lhe tem ocasionado incompreensões de toda natureza, inclusive pela dignidade de seu exercício profissional, inteiramente afastado da chamada política literária. Nada mais cômodo para nós, portanto, do que a oportunidade dessa homenagem à grande escritora, cuja obra é o testemunho de uma vida consagrada à criação e ao estudo (FOLHA DO NORTE, 1949c, p. 1).

A partir da entrevista com a poetisa, Haroldo Maranhão tematiza os aspectos mais relevantes para o pensamento estético que guiava a produção da geração que surge a partir da década de 1940. Temas como “as raízes espirituais da poesia”, a questão do “culto da forma”, o existencialismo como fonte para a criação literária são os principais focos de interesse do editor na entrevista. Além da presença da escritora mineira, a participação de Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade retrata bem a importância desses dois autores no contexto da poesia modernista no Brasil. Ambos tiveram em suas carreiras o reflexo da evolução dos ideais modernistas ao longo dos anos. Participaram desde o início do movimento, quando as propostas inovadoras divulgadas nas revistas e manifestos da década de 1920 pareciam, aos olhos de muitos, uma afronta ao pensamento acerca do fazer poético. Já a participação de Lêdo Ivo traz uma informação pouco conhecida atualmente: a de que ele era um dos grandes representantes da geração de 45, logo lembrada pelas figuras de João Cabral de Melo Neto e João Guimarães Rosa. No suplemento, encontramos vários textos de autoria de Lêdo Ivo, que refletem bem as discussões em torno da produção literária naqueles idos de 1940, em especial sobre as realizações dos novos poetas. Um desses textos é “A Geração de 1945”, no qual o poeta faz um balanço sobre as conquistas de sua geração, procurando mostrar as diretrizes que marcaram essa produção e o legado que deixam para a história literária, o que nos ajuda a entender um pouco sobre a própria orientação estética do suplemento e a predileção que os autores locais tinham pela poesia. A geração de 45, a primeira que surge sem um “ismo” para carregar às costas, apresenta por

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Germana Sal e s | Wanessa Paiva outro lado várias direções, predominando o intelectualismo que desumaniza tantos poetas sedentos de absoluto e de abstrato e praticamente ausente de suas preocupações a fome da participação na realidade social. [...] Uma geração assim, marcada pela repulsa ou descrença no humano, é claro que só poderia ter essa atitude. Uma geração que não acredita em nenhuma possibilidade de mudança, que não crê nas suas energias e no seu devotamento, não poderia ser outra coisa senão este comício de sonâmbulos, este anjos que publicam livros de versos. [...] Aliás, uma das características mais fortes da vocação inumana dos moços de 1945 é sua adesão quase total ao gênero poético, revelando por outro lado uma certa repulsa pelo romance, gênero mais social e de maior sentido humano (IVO, 1949, p. 1).

Apesar de ter sido um importante veículo de divulgação dos principais direcionamentos artísticos daqueles anos, contribuindo, certamente, para formar toda uma geração de intelectuais, de estar próximo cronologicamente de um período tão tenso de nossa história, como o fim da Segunda Grande Guerra em 1945, e de trazer colaborações de intelectuais envolvidos no debate entre esquerdistas, nacionalistas, católicos e comunistas, o suplemento Arte Literatura, aparentemente, não se vincula a nenhum posicionamento ideológico delineado na época. É possível, ainda, verificar que, neste caderno, quase não se discutiam, pelo menos não por parte dos colaboradores locais, assuntos ligados às problemáticas sociais e à violência dos governos autoritários. Havia entre os escritores locais aqueles que se preocupavam com questões relacionadas à realidade sociocultural do estado, como Levi Hall de Moura, que trouxe uma longa discussão a respeito da evolução da sociedade paraense, e Peri Augusto, que, durante dois meses de 1947, levantou uma enquete em que questionava acerca da existência de uma geração modernista no Pará e do futuro das letras no Estado, a qual foi respondida por intelectuais de gerações literárias diferentes. No entanto, não percebemos um posicionamento político mais crítico dos intelectuais paraenses de um modo geral, diante de uma realidade tão propícia a esses debates de ordem ideológica. Mesmo entre os textos de colaboradores de outras regiões, percebe-se que não são discuti-

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dos temas muito polêmicos, a partir de um posicionamento político e ideológico, à exceção de uma crônica de Rachel de Queiroz, intitulada “Ninguém tem dó”, na qual a autora reflete sobre a capacidade que as pessoas têm de se mostrarem insensíveis diante de tanto sofrimento para não se tornarem, também elas, vítimas da violência. Nesse texto, a romancista ironiza a violência da ditadura varguista, relatando um caso em especial, o de Galina Kock, uma jovem de apenas 18 anos, que foi presa e expulsa do país por sua possível ligação com o partido comunista. Agora, no Brasil, por exemplo. Reparei na frieza com que o povo discute as crueldades deste governo ou daquela polícia – a passividade, até mesmo a indiferença com que as comenta – ou antes, não as comenta. E os próprios governantes, quando não são fundamentalmente maus, hão de traçar em torno de si aquela linha imaginária que separa amigos e inimigos, roubando aos últimos qualquer sinal de humanidade para que os possam destruir sem remorsos. [...] O senhor Getúlio Vargas, do qual não se conhece nenhuma especial aberração da alma, e que provavelmente não assassinaria uma mulher com as próprias mãos, manda friamente que uma pobre mulher, e ainda por cima enferma, e ainda por cima grávida, fosse entregue aos carrascos mais desalmados que a raça humana já produziu, para na posse deles ser torturada até a morte. É o que explica nosso atual governo, composto de homens tão delicados na sua sensibilidade cristã, tão preocupados com a moral das famílias, com o divórcio e filhos bastardos, mandarem prender uma menina de dezoito anos, essa colegial Galina Kock, e a atirarem a um presídio, e deliberadamente resolverem expulsá-la da única pátria que conhece (pois chegou ao Brasil com quatro anos de idade e aqui tem toda a sua família) e a lançarem ao abismo da perdição, de opróbrio e crueldade que, segundo eles próprios exaustivamente o proclamam, é a zona soviética da Europa. Ninguém sabe qual a culpa dessa menina e, segundo dizem os jornais mais transmontanos, não se apurou sequer que pertencesse ao Partido Comunista. E, no entanto, vão desgraçá-la, vão jogá-la às feras

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Germana Sal e s | Wanessa Paiva sem um estremecimento, antes, muito satisfeitos e honrados com o seu gesto – quem? Gângsteres, cangaceiros, barões feudais? Não! O governo responsável pela expulsão da colegial é formado de pessoas como nós, médicos, advogados, padres, deputados, senadores, ministros e presidentes, homens que devem possuir coração, que também têm filhas e as amam, e com justificada razão lhes desejam toda a pureza e todo bem deste mundo, que com horror lhes afastam dos olhos qualquer espetáculo vergonhoso (QUEIROZ, 1948, p. 4).

Nesse sentido, pode-se observar muito claramente que o Suplemento era concebido de acordo com diretrizes artísticas e de pensamento mais próximas dos da geração de 45 apresentados por Lêdo Ivo, compartilhando a preferência pela poesia e um posicionamento menos empenhado diante das questões mais urgentes da época. No entanto, tal orientação essencialmente estética não advém somente de um “espírito de época” da literatura brasileira da década de 1940. Ela se liga a uma configuração específica da estrutura social e das posições dos agentes dentro dela. Assim, é preciso considerar ainda a posição social do principal orientador do encarte literário, o editor Haroldo Maranhão, dentro da sociedade paraense dos anos 40 e a orientação ideológica geral do jornal no qual se publicava o Arte Literatura. O posicionamento ideológico do suplemento e seu reflexo na esfera literária

O jornal Folha do Norte, iniciou suas atividades no final do século XIX, em 1896, criado por Cipriano Santos e Enéas Martins, simpáticos aos ideais republicanos do partido de Lauro Sodré, opositor da política empreendida pelo intendente do município de Belém e dono do jornal A Província do Pará, Antonio Lemos. Desde seu surgimento, o posicionamento do jornal Folha do Norte foi de ataque aos rivais políticos de seus donos. Mesmo quando passou às mãos de Paulo Maranhão, nas primeiras décadas do século XX, a postura conservadora e agressiva continuou. Atacando seus adversários políticos por meio de matérias veiculadas no jornal, Paulo Maranhão acumulou vários ini-

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migos, entre eles Magalhães Barata. Esses ataques jornalísticos eram fortemente repreendidos pelo interventor, que perseguia o senhor Maranhão e sua família. Haroldo Maranhão, neto do dono do Folha do Norte, que desde muito cedo vivenciou essa realidade, tendo que se refugiar junto com o resto da família no único local seguro contra as investidas dos inimigos de seu avô, o prédio onde funcionava o jornal, conforme atesta Juliana Medina (2010, p. 64) sobre essa época na vida do escritor paraense: Durante a infância, Haroldo e seu irmão Ivan, dois anos mais novo, viveram praticamente reclusos no prédio do jornal. Só iam à escola no carro do jornal e as brincadeiras de rua não lhes eram permitidas, tudo por causa das duras críticas desferidas pelo avô e estampadas nas páginas do Folha do Norte contra Magalhães Barata, que tendo ocupado por três vezes a administração do estado, primeiro como interventor, de 1930 a 1935 e de 1943 a 1945, e depois como governador eleito, de 1956 a 1959, moveu perseguição intensa e sistemática ao jornalista e por extensão a toda sua família.

Mesmo com toda a perseguição, o jornal Folha do Norte, sob a direção de Paulo Maranhão, sobreviveu por várias décadas, sendo o espaço de divulgação do suplemento Arte Literatura. Contudo, como já foi observado, mesmo reunindo intelectuais de posturas políticas tão divergentes entre si, no suplemento não havia discussões mais acirradas em torno de temas que poderiam gerar desavenças naquele contexto pós-guerra. Entendemos que isso ocorria porque o posicionamento político-ideológico de Paulo Maranhão, alinhado à direita, não permitia que se criticassem as grandes bases conservadoras da época. Assim, Haroldo Maranhão, como editor, dentro desse contexto, seria o responsável por selecionar aqueles textos que estivessem dentro do ideal estético-ideológico proposto pelo Suplemento, que seria o de estimular as letras locais e adentrar o circuito nacional de produção cultural, mas que não confrontassem aquele que de certo modo proporcionava a realização desse projeto literário. Desse modo, entende-se que a postura de Haroldo Maranhão e, por conseguinte, a orientação estética do Arte Literatura, pode ser compreendida a partir dos estudos de Pierre Bourdieu

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sobre as posições dos agentes dentro da estrutura social e de produção de bens simbólicos. A própria história do jornal Folha do Norte, enquanto veículo de comunicação consagrado e com a linha ideológica já definida, pode ser interpretada como um daqueles índices que “contribuem para formar a representação que os agentes podem ter acerca da representação social de sua posição na hierarquia das consagrações” (BOURDIEU, 1992, p. 154) e com os quais Haroldo Maranhão e seu grupo se depararam na tentativa de, por sua vez, conquistar o espaço de consagração. Segundo Bourdieu, a interpretação da estrutura das relações de posição com base em determinados índices orienta as escolhas e estratégias dos agentes. Tal representação semiconsciente constitui também uma das mediações através das quais se elabora, por referência a representação social das tomadas de posição possíveis, prováveis ou impossíveis (ou, caso se prefira, toleradas, recomendadas ou proibidas) com que se defrontam os ocupantes de cada classe de posições, o sistema das estratégias mais inconscientes que conscientes e típicas dos agentes que pertencem a essa classe e, em particular, o sistema das aspirações e das ambições legítimas para os ocupantes desta classe de posições (BOURDIEU, 1992, p. 154).

Essa discussão em torno da orientação estética do Suplemento, partindo da ideia trabalhada por Bourdieu, encontra-se com as propostas da história do livro e da leitura, quais sejam, de reconstituir as relações que se estabelecem entre o texto literário e os processos de produção, circulação e materialidade que o envolvem, isto é, de entendê-lo como algo que está imbricado nos objetivos pretendidos por todos aqueles que estão envolvidos em seu processo de feitura e divulgação, conforme propõe Roger Chartier em seu texto “Comunidade de leitores”: Deve-se levar em conta, também que a leitura é sempre uma prática encarnada em gestos, em espaços, em hábitos. Distante de uma fenomenologia que apaga qualquer modalidade concreta do ato de ler e o caracteriza por seus efeitos, postulados como universais (1994, p. 13).

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Também o Arte Literatura não está fora dessa dinâmica, sendo preciso entender a percepção de que o próprio suporte material, o jornal, utilizado para a divulgação da literatura local e nacional, é perpassado por intenções que perseguem a consagração em âmbito nacional dos escritores locais e a conquista de novos públicos interessados pelo debate em torno dos assuntos que envolvam arte e cultura. Nesse sentido, fazer o levantamento de informações que nos permitam entender os caminhos que levaram à construção do Suplemento é necessário para compreendermos que os processos de seleção dos textos veiculados por ele não se deram de forma aleatória, mas respeitaram as intenções do grupo de Haroldo Maranhão, que estavam ligadas ao processo de disseminação e valorização da produção local e de divulgação das novas tendências literárias da década de 1940, com as quais esse grupo se identificava. Assim, dando continuidade a esse trabalho de reconstituir e reavaliar a configuração do pensamento literário que se moldou a partir desse período, foram selecionados, entre tantos exemplares encontrados no suplemento Arte Literatura, alguns textos que nos ajudam a pensar as diretrizes artísticas lançadas nessa época e que são fundamentais para entendermos a produção de romance e de crítica que se formou posteriormente. Entre esses textos estão incluídos artigos que tratam da discussão sobre os rumos do romance e sua redefinição diante das alterações de pressupostos estéticos dos anos 40, além daqueles que trazem as avaliações da crítica sobre a produção dos autores que iniciaram suas carreiras na década de 1930 e que figuravam entre os expoentes da produção romanesca do país: Graciliano Ramos, Jorge Amado, José Lins do Rego e Rachel de Queiroz. É no cerne dessa discussão mais ampla acerca das novas diretrizes para o gênero romance que esses textos passam a dialogar entre si, pois a permanência desses autores entre os assuntos mais explorados pela crítica não se dá somente pelo prestígio de seus nomes e obras na cena literária, mas atende às necessidades específicas de um pensamento que se vê na tensão da transição de modelos estéticos e sociais de diferentes gerações.

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Germana Maria Araújo Sales | Wanessa O Romance em debateRegina Paiva da Silva

CAPÍTULO III O LUGAR DO ROMANCE: AS DISCUSSÕES SOBRE AS DIRETRIZES DO GÊNERO NA DÉCADA DE 1940

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itulo p a

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O l u gar do Romance: as discussões sobre as diretrizes do gênero na década de 1940

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3.1 Graciliano Ramos, Jorge Amado, José Lins do Rego e Rachel de Queiroz: o início da carreira literária Na década de 1930, tem início um novo cenário literário no Brasil, que até então se encontrava sob o domínio das inovações modernistas lançadas na Semana de Arte de 22, especialmente no que concernia à poesia, à música, à pintura e às artes plásticas, conforme sintetizou Antonio Candido (2008, p. 125). As novidades propostas pelos modernistas rompiam com antigos ideais artísticos valorizados pela tradição, como o culto a forma e a importação de modelos europeus. A ideia do movimento era revitalizar o quadro artístico brasileiro por meio de um intenso trabalho no nível da linguagem e na pesquisa por temas nacionais, a fim de construir uma arte que representasse a nossa sociedade – mestiça, folclórica e provinciana por um lado, mas industrial e cosmopolita, por outro. Desse esforço intelectual, surgiram obras que condensam as principais aspirações do momento: na poesia destacam-se Paulicéia Desvairada (1922), de Mário de Andrade, Pau-Brasil (1925), de Oswald de Andrade, e Libertinagem (1930), de Manuel Bandeira; na prosa, têm destaque os romances Memórias Sentimentais de João Miramar (1924), de Oswald de Andrade, Macunaíma (1928), de Mário de Andrade, e os contos de Antonio de Alcântara Machado, reunidos no volume Brás, Bexiga e Barra Funda (1927). Além de tais títulos e dos autores já mencionados, outros também contribuíram para o desenvolvimento dos ideais estéticos do modernismo, a exemplo dos poetas Menotti Del Picchia e Cassiano Ricardo. Apesar de alguns autores terem se dedicado também ao romance, a década de 1920 foi, no entanto, marcada mesmo pelo florescimento da poesia e suas experimentações. A respeito do predomínio da poesia sobre o romance no período, Wilson Martins (1986, p. 593) afirmou que entre 1922 a 1928, a história do modernismo se resume na história da sua poesia [...] que obedecia, como é sabido, a duas palavras de ordem: reforma técnica e temática; abandono da regularidade metrificadora dos parnasianos e das suas fontes de inspiração.

O romance esteve em evidência na década de 1930, visto como a solução estética mais adequada ao intenso debate sócio-

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-ideológico que se formou no cenário brasileiro a partir de agitações políticas, econômicas e sociais. Essa época de nossa literatura, chamada “romance de 30”, é considerada uma segunda fase do modernismo, não compreendida, entretanto, como um simples prolongamento dos ideais estéticos do decênio anterior, e sim como um momento mais amadurecido do movimento, nascido justamente daquilo que não encontrou espaço nas preocupações dos primeiros modernistas: o envolvimento mais direto da literatura na vida social. A produção de 30, beneficiando-se das conquistas estéticas de 22, que modificaram o cenário da nossa cultura, ampliando, desse modo, as possibilidades de criação artística, acabou, porém, tornando-se autônoma por utilizar a própria liberdade criadora a serviço de demandas que não se prendessem somente à literatura, adquirindo assim “contornos próprios”, como afirma Luís Bueno (2006, p. 80). A versão mais conhecida da historiografia literária aponta como marco do romance de 30, a obra A Bagaceira (1928), de José Américo de Almeida, pois ela já apresentava elementos que seriam recorrentes nos romances sociais da década seguinte: teor social, ênfase no ambiente como elemento central para o desenvolvimento do enredo, tipos comuns como personagens e tema regionalista. Todavia, há quem indique outros caminhos, como a obra Macunaíma (1928), de Mário de Andrade, ou Sob o olhar malicioso dos trópicos (1929), de Barreto Filho, este apontado por Bueno (cf. 2006, p. 97-98) como um possível iniciador da tendência intimista. Mais importante, neste caso, do que saber qual o marco da produção de 30, é entender como ela se configura em um contexto de grande embate ideológico como foi o dessa década. Nesse período, o mundo se encontrava sob grande tensão devido a crises econômicas e políticas que contribuiam para um clima generalizado de inquietação e incertezas sobre o futuro. No Brasil, a atmosfera não era diferente. As manifestações por modificações nas antigas estruturas político-sociais – como a revolução de 1930, que colocou abaixo a política oligárquica que ainda se praticava no país, levando ao poder Getúlio Vargas; a afirmação do Partido Comunista Brasileiro e a criação da Ação Integralista Brasileira (AIB) – levaram à formação de um contexto de grande polarização ideológica, a qual se reflete nas posturas dos intelectuais da época e, consequentemente, em suas produções.

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O romance de 30 é, tradicionalmente, dividido em duas tendências: romance social (regionalista) e romance intimista (psicológico)6. Relacionado à primeira tendência estão os autores que se alinhavam ou simpatizavam com a esquerda ou que trouxeram em suas obras discussões de problemáticas sociais e coletivas: a denúncia das estruturas de poder tradicionais e da exploração dos pobres pelos ricos, a redefinição do papel da mulher na sociedade e as aspirações das classes trabalhadoras, por exemplo. Já relacionado à segunda, ligam-se os autores da direita, católicos, e as narrativas que se centram nas questões individuais: na atitude do homem diante de dúvidas existenciais, dilemas morais e espirituais. Essa divisão vem sendo questionada por ter um caráter simplificador, não se aplicando a todas as obras publicadas no período. Alfredo Bosi chamou atenção para a limitação dessa nomenclatura que, segundo ele, “acaba não dando conta das diferenças internas que separam os principais romancistas situados em uma mesma faixa” (2006, p. 390). Assim como Bosi, Luís Bueno acredita que essa divisão não consegue englobar todos os romances, pois, para ele, as melhores produções da década são aquelas que dialogam com as duas tendências, não sendo determinadas pelos posicionamentos políticos do autor – desse modo avalia, por exemplo, a produção de Graciliano Ramos, a qual se diferenciaria do montante daquele período justamente por representar a síntese dos romances social e intimista: “Graciliano Ramos se coloca desde sua estreia, como o mais importante romancista da década, ao mergulhar nos problemas sociais e psicológicos sem fazer média com a crítica de seus próprios amigos nem abdicar de uma posição política que sempre estivera muito clara” (BUENO, 2006, p. 243). Mas, dentro da tendência que se convencionou chamar romance social, destacam-se quatro autores: Graciliano Ramos, Jorge Amado, José Lins do Rego e Rachel de Queiroz. Esses autores, que dividiam entre si mais que sua origem geográfica e o ofício da escrita, desde antes de se tornarem os nomes famosos que vieram a ser, já entretinham relações de proximidade que viriam a influenciar a produção de suas obras in Essas terminologias são utilizadas desde as primeiras análises dos romances da geração de 30, como as de Álvaro Lins, Wilson Martins, Sérgio Milliet, entre outros, as quais se encontram ainda nas historiografias literárias, a exemplo da História concisa da Literatura Brasileira, de Alfredo Bosi e Uma história do romance de 30, de Luís Bueno.

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dividuais e suas escolhas na tensa estrutura sociopolítica que se configurou a partir de 1930. José Lins e Graciliano Ramos se conheceram em 1927, quando o primeiro, em andanças pelo interior de Alagoas como fiscal de tributos, chegou a Palmeira dos Índios e conheceu o homem “mais sábio do sertão”, o próprio Graciliano, e desde então estabeleceram relação de amizade. Em 1930, Graciliano Ramos partiu para Maceió, onde conheceu outros escritores, junto dos quais frequentou as rodas literárias da cidade. Maceió, com cem mil habitantes, reunia um grupo de jovens movidos a agitação cultural. A vaga renovadora do modernismo fornecia-lhes o oxigênio, embora não houvesse fãs incondicionais do movimento de 22. Jornalistas, poetas, romancistas e professores, quase todos seguiram carreira literária: Aurélio Buarque de Holanda, Alberto Passos Guimarães, Valdemar Cavalcanti, Jorge de Lima, Aloysio Branco, Carlos Paurílio, Manuel Diégues Júnior, Mario Brandão, Rui Palmeira, Raul Lima, Theo Brandão, José Auto. Sem falar em José Lins do Rego, que viera trabalhar em Alagoas, e Santa Rosa. [...] Graciliano passaria a colaborar com o Jornal de Alagoas e a frequentar o bar do Cupertino, o chamado Bar Central, em frente ao Relógio Oficial. As discussões sobre literatura e política estendiam-se até a noite, regadas a café e cigarro. Graciliano, porém, não desprezava a cachaça e o conhaque. Das conversas resultariam projetos comuns, como a Liga contra o Empréstimo de Livro e a primeira exposição individual de Santa Rosa. (MORAES, 1992, p. 66-67).

Rachel e Maria Luiza de Queiroz também deu seu testemunho acerca da coerência desse grupo, do qual chegou a participar: A literatura em Maceió iniciava um período áureo. Lá funcionavam permanentemente os cafés literários, e éramos todos muito unidos: Graciliano, Jorge de Lima (que logo veio para o Rio), Zé Lins do Rego, eu, Zé Auto, Santa Rosa, Valdemar Cavalcanti, Aurélio Buarque de Ho-

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O Romance em debate landa, Alberto Passos Guimarães. (QUEIROZ & QUEIROZ, 1998, p. 67).

Para além dessa vivência de grupo, o depoimento dos escritores aponta para uma convivência que se dá em um nível bem mais pessoal, como o que permeou a amizade da romancista com Jorge Amado, contada por elas em sua autobiografia: Eu já havia rompido com o Partido quando chegamos ao Rio de Janeiro. Conseguimos alugar uma casa na rua do Curvelo, onde havia morado Manuel Bandeira [...] Embaixo morava Zoia, também simpatizante do Partido, amiga de Nise e Mário. Foi para essa nossa casa de Santa Teresa que Jorge Amado raptou a sua primeira mulher, Matilde (então com dezesseis anos) e a depositou conosco. Casaram-se. Nós, o Santa Rosa, Echenique e todos os demais aqui do Rio apadrinhamos o casamento. (QUEIROZ & QUEIROZ, 1998, p. 63).

O primeiro desses escritores a despontar no cenário nacional foi a romancista cearense, com a publicação d’O Quinze, em 1930. Esse livro, que teve sua primeira edição paga com recursos próprios, causou um verdadeiro rebuliço nas rodas literárias, sendo elogiado pela sua escrita sóbria e muito bem acabada, qualidades realçadas por se tratar do romance de estreia de uma moça de apenas 20 anos. Graciliano Ramos revelou seu estado de surpresa diante de tão singular obra literária: “O Quinze caiu de repente ali pelos meados de 30 e fez nos espíritos estragos maiores que o romance de José Américo, por ser livro de mulher e, o que na verdade causava assombro, de mulher nova” (RAMOS, 1976, p. 137). O Quinze fez estrondoso sucesso, o que resultou em uma segunda edição no ano seguinte, pela companhia Editora Nacional. Por esse romance sua criadora recebeu o prêmio Graça Aranha, em 1931. Na sequência desse romance a autora cearense publicou João Miguel (1932), o qual trouxe alguns contratempos políticos para a escritora, pois Rachel, que era filiada ao PCB e uma de suas principais articuladoras no Ceará, deveria seguir as regras do Partido, as quais previam a leitura dos originais do texto para aprovação dos dirigentes. No entanto, eles não viram com bons

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olhos o enredo, no qual um trabalhador rural é preso por ter assassinado um outro trabalhador. Eles exigiram que a autora fizesse diversas alterações no texto, a exemplo da mudança da condição social do personagem criminoso, transformando-o em um membro da elite rural (QUEIROZ & QUEIROZ, 1998, p. 40). Rachel não acatou as ordens do partido e, por essa razão, foi expulsa, passando a ser considerada inimiga do comunismo e dos interesses do povo. Após uma longa pausa sem publicar, a escritora lançou seu terceiro romance, Caminho de Pedras (1937). Essa obra apresenta toda a movimentação de um grupo de militantes se arregimentando para fundar uma célula de um partido de esquerda em Fortaleza. Apesar de dialogar com a temática do romance proletário, Caminho de pedras foi mal recepcionado pela crítica coetânea. Após alguns anos de entusiasmo dos autores e dos críticos pelo romance social, ao final da década de 1930 houve um declínio dessa produção. Como consequência, o romance de Rachel de Queiroz não encontrou espaço propício para manifestações a seu favor (BUENO, 2006, p. 428). Ao fim da década, Rachel de Queiroz publicou As Três Marias, (1939) trazendo para o centro da cena três personagens femininas, suas aventuras, seus sofrimentos e suas dúvidas quanto ao seu lugar na sociedade. Jorge Amado estreou em 1931, com País do carnaval. Esse autor, que teve uma intensa participação nos debates políticos do país no decorrer de sua vida e trouxe isso para seus romances, não apresentava, entretanto, no momento da estreia, posicionamento ideológico bem definido. Por essa razão, seu romance chegou a ser acusado pela crítica de ser anticomunista ou ainda de ser um romance católico (BUENO, 2006, p. 104). Já em seu segundo romance, Cacau (1933), se percebe mais claramente a tomada de posição do autor, alinhado à esquerda política, partidário do PCB. Com esse romance, o escritor baiano lança a discussão sobre a tendência do romance proletário, incitando a manifestação da crítica com o questionamento na abertura do livro: “Será um romance proletário?” (AMADO, 1982, p. 8). Segundo informa Bueno (2006), a estratégia usada pelo autor de questionar se o romance seria proletário deu certo, pois “todo mundo sem exagero procurou dar uma resposta a Jorge Amado” (p. 161). A partir de Cacau, o posicionamento ideológico nos romances de Jorge Amado, que passou a figurar como o grande

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nome do romance proletário no país, se acentuou. A cada nova realização, surgiam novas denúncias de exploração da classe trabalhadora pela burguesia. Alguns de seus personagens passaram a representar os anseios por mudança, que só viria com a luta social. São exemplares, nesse sentido, os personagens Bauduíno, de Jubiabá (1935), e Pedro Bala, de Capitães da Areia (1937). A estreia de José Lins do Rego se deu com a publicação do romance memorialístico Menino de engenho, em 1932, e provocou tanto alvoroço quanto a escritora cearense quando do lançamento d’O Quinze. E assim como Rachel de Queiroz, também recebeu o prêmio da fundação Graça Aranha. Menino de Engenho conta a história da infância do personagem Carlinhos, no engenho Santa Rosa. Essa narrativa apresenta aos leitores as impressões do nordeste açucareiro do início do século XX, as contradições que permeiam a relação entre a casa grande – onde vivem o menino Carlinhos, seu avô, o coronel José Paulino e outros parentes – e o eito, onde moram os empregados da fazenda, ex-escravos que trabalhavam “de graça, com a mesma alegria da escravidão [...] a mesma passividade de bons animais domésticos” (REGO, 2009, p. 49). Conhecemos a história por meio das rememorações do adulto Carlos de Melo, personagem emblemático na obra de José Lins devido à recorrência com que aparece nas obras que compõe o chamado Ciclo da Cana de Açúcar7. O escritor paraibano, com Menino de Engenho, alcançou um índice significativo de vendas em sua primeira obra, apesar das dificuldades iniciais para publicar o romance como conta o próprio autor, cujo depoimento nos é apresentado por Wilson Lousada (1972, p. 12): O livro foi oferecido há todos os editores nacionais, e de todos recebeu um não seco, quando não me deram o calado como resposta. Só mais tarde uma editora desconhecida, com dinheiro do meu bolso, publicaria a novela. Havia por este tempo a revolução de São Paulo e, apesar da convulsão, esgotou-se em três meses. Uma edição de 2.000 exemplares foi quase toda vendida no Rio.

A produção ficcional do autor não encontrou interrupção durante a década, tendo publicado oito romances, os quais en Compõem o Ciclo da Cana de Açúcar, além do já referido Menino de Engenho, os romances: Doidinho (1933), Bangüê (1934), Moleque Ricardo (1935) e Usina (1936).

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contraram boa acolhida no seio da crítica literária e do público leitor à época (cf. HALLEWELL, 1982, p. 353). Graciliano Ramos iniciou sua carreira apenas em 1933, com a publicação de Caetés pela editora do também escritor Augusto Frederico Schmidt, que já havia publicado livros de autores como Jorge Amado e Rachel de Queiroz. Esse editor interessou-se pelos escritos do romancista alagoano quando teve contato com um relatório da época em que este foi prefeito de Palmeira dos Índios. O famoso relatório foi divulgado em diversos jornais pelo país, chegando ao conhecimento do grande público, inclusive do norte do Brasil, já que foi veiculado pelo suplemento Arte Literatura em 1949. Já nos trechos do relatório se percebe o estilo de escrita do autor, direto, sem rodeios, com estilo que foge às formalidades comuns a textos técnicos: Encontrei obstáculos dentro da prefeitura e fora dela – dentro, uma resistência mole, suave, de algodão, carregada de bílis. Pensavam uns que tudo ia bem nas mãos de Nosso Senhor, que administra melhor que todos nós; outros me davam até três meses para levar um tiro.[...] Dos funcionários que encontrei em janeiro do ano passado restam poucos: saíram os que faziam política e os que não faziam coisa nenhuma. Os atuais não se metem onde não são necessários, cumprem suas obrigações e, sobretudo, não se enganam em contas. (RAMOS, 1949, p. 3).

Segundo Dênis de Moraes, há pelo menos duas versões sobre como se deu o contato de Schmidt com o autor alagoano. A primeira delas alega que o editor lera o relatório publicado em um jornal e, diante da singularidade de sua escrita, inferiu que certamente o autor daquelas linhas era um romancista nato e provavelmente teria “um romance na gaveta”. A segunda versão atribui o contato entre os dois ao intermédio do artista plástico Santa Rosa, que teria apresentado o escritor e seu texto aos amigos no Rio (MORAES, 1992, p. 65). No entanto, nas cartas do próprio Graciliano Ramos encontra-se a sua versão de como Augusto Frederico Schmidt ficou sabendo de sua existência, interessando-se por seus escritos: “Fui eleito prefeito e enviei dois relatórios ao governador.

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Lendo um desses relatórios, Schmidt imaginou que eu tinha algum romance inédito e quis lançá-lo” (RAMOS, 1984, p. 107). De fato, o escritor tinha manuscritos de um livro que vinha preparando desde 1926, era o Caetés (RAMOS, 1984, p. 111), o qual sofreu diversas alterações antes de chegar às mãos do editor, para ser publicado. Em carta remetida à sua esposa, Heloísa Medeiros Ramos, em setembro de 1930, Graciliano Ramos fala da insistência de Augusto Schmidt pelo romance inédito: Vi ontem um daqueles pedacinhos de papel que Schmidt me mandou. Estava pregado num dos vidros da casa de Ramalho. Há outros em outras livrarias. De sorte que o pessoal de sua terra está, com razão, espantado e desconfiado. Há de ter graça no fim, quando compreenderem que o livro não presta pra nada. (1984, p. 111).

De acordo com informações contidas em suas cartas, os “pedacinhos de papel” se tratavam de propaganda de futuras edições, espalhadas pelo editor nas livrarias de Alagoas, anunciando, então, a publicação do Caetés. Apesar da insistência do editor, o romance demorou a ser publicado, o que despertou a desconfiança de Graciliano Ramos, conforme se verifica no excerto que segue, de uma carta de 1932: “Promessas como essa o Schmidt tem feito às dúzias: não valem nada. Escrevi a ele rompendo todos os negócios e pedindo a devolução duma cópia que tenho lá” (1984, p. 130). A demora na publicação do romance tornou grande a expectativa da crítica, que não se mostrou tão favorável ao livro quando finalmente foi publicado (cf. BUENO, 2006, p. 228-231). A narrativa não contemplava a principal discussão do momento, a questão do proletariado e, por essa razão, o livro pareceu antiquado diante das demandas literárias de 1933. Na esteira de Caetés, Graciliano Ramos escreveu mais três romances publicados na década de 1930, São Bernardo (1934), Angústia (1936) e Vidas Secas (1938), os quais dispensaram do autor máxima atenção e cuidado nas correções, feitas e refeitas diversas vezes durante sua produção. Sendo essa uma das principais marcas de estilo do autor, o perfeccionismo ou a mania de cortar os excessos do texto. Cada um dos romances carrega em si enredos curiosos sobre como foram concebidos, revelando-nos um pouco do autor em seu processo criativo.

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São Bernardo começou a ser escrito em 1932, durante uma época turbulenta na vida de Graciliano Ramos, que havia se demitido da Imprensa Oficial de Alagoas, retornando a Palmeira dos Índios com a família, à exceção de sua esposa, que ficou em Maceió para dar à luz o último filho do casal. Sem emprego, o autor pode dedicar-se às suas mais novas companhias, os personagens Ribeiro, Azevedo Gondim, Padilha e Madalena. A despeito do entusiasmo que surgia com o desenvolvimento da narrativa, a preocupação com a falta de recursos e a incerteza com relação ao futuro tomavam conta da sua vida, como atesta trecho da carta em que escreve à esposa: E aqui, com este tempo, não há nada que fazer. Se as coisas continuarem como vão, precisarei cavar a vida em outro Estado. Relativamente à sua doença e à falta de dinheiro, está visto que, eu não sabendo de nada, não lhe poderia mandar o necessário. Apesar da quebradeira, sempre lhe arranjaria alguma coisa. É o que faço agora. Vão cem mil réis. Tenha paciência: é impossível conseguir mais, que estou cheio de embaraços por todos os lados. (RAMOS, 1984, p. 22).

Preocupações à parte, o escritor alagoano continuou empenhado na tarefa de escrever São Bernardo: “Continuo a consertar as cercas do S. Bernardo. Creio que está ficando uma propriedade muito bonita. E se Deus não mandar o contrário, qualquer dia terei de apresentá-la ao respeitável público. O último capítulo, com algumas emendas que fiz, parece que está bom.” (RAMOS, 1984, p. 123). Mesmo afirmando que o romance estava bom, Graciliano Ramos sempre se mostrava reticente com relação aos seus escritos, nos quais encontrava defeitos que precisariam ser retocados: “Vai sair uma obra prima em língua de sertanejo, cheia de termos descabelados. O pior é que cada vez que leio aquilo corto um pedaço. Suponho que acabarei cortando tudo.” (RAMOS, 1984, p. 125). Essa obsessão em reescrever, corrigir, buscar a medida certa da linguagem em seus textos, demonstra como o trabalho de composição literária era encarado pelo autor com extrema seriedade. Às suas obras Graciliano Ramos dedicava muitas horas de trabalho. Esforço que se repetia a cada nova realização. Porém, o autor sempre terminava dizendo que suas obras eram “porcarias”.

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Com Angústia, a cobrança não foi diferente. Na verdade, o autor pensou mesmo em desistir da escrita do romance, apesar dos amigos insistirem que a obra deveria ser levada adiante e publicada. Vou dormir. Em seguida retomarei o trabalho interrompido há cinco meses. Julgo que continuarei o Angústia, que a Rachel acha excelente, aquela bandida. Chegou a convencer-me de que eu devia continuar a história abandonada. Escrevi ontem duas folhas, tenho prontas 95. Vamos ver se é possível concluir esta porcaria. [...] Vou dormir. E, às seis horas , quando acordar, conversarei com Marina e com Luís da Silva, excelentes criaturas na opinião de Rachel e de Zéauto. (RAMOS, 1984, p. 114).

Para escrever esse romance, o escritor contou com o auxílio de alguns instrumentos nada convencionais, além do sempre presente dicionário “Aulete”, indispensável ao trabalho do ficcionista, como revelou Aurélio Buarque de Holanda (1947, p. 6): Surpreendi-o, por mais de uma vez, a escrever ANGÚSTIA. Morava então o romancista numa casa perto do mar, na rua da Caridade, ainda em Maceió. A família estava em Palmeira dos Índios. Eram, quase sempre, aos domingos as minhas visitas. A casa tem um muro do lado direito. Eu olhava pelo buraco da fechadura da porta de entrada, que dava para um alpendre, onde costumava ficar o escritor, sentado a uma pequena mesa nua, na qual se via, entre outras coisas, um maço de cigarros, uma garrafa de aguardente e não me lembro se uma garrafa térmica ou um bule de café. Com a cachaça e o fumo, era o café, por assim dizer, um de seus materiais de trabalho – quase tão indispensável quanto o papel, a pena, o tinteiro, o dicionário de Aulete e uma régua. Aulete era manuseado a cada momento, depois de pronto um capítulo, um trecho do romance, no trabalho penoso para Graciliano Ramos, da correção. A propriedade de expressão é, mais que tudo, o desespero desse escritor; e ele ouvia a respeito do assunto os conselhos do bom dicionarista.

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O romance foi publicado pela Editora José Olympio, com a qual travou contato por meio de José Lins do Rego e Jorge Amado, os quais já eram publicados pelo famoso livreiro. O livro não saiu do modo como esperava: foi lançado com alguns erros que Graciliano Ramos não teve tempo de corrigir, pois, no dia em que terminou a obra e a entregou à datilógrafa, ele foi preso (acusado de ser simpatizante do comunismo) e, na cadeia, não foi possível realizar as alterações necessárias ao texto antes de sua publicação. Mas isso não impediu que a crítica se manifestasse a respeito do livro. O próprio autor revelou, em suas cartas, que acompanhava a movimentação da crítica em torno de Angústia (cf. RAMOS, 1984, p. 173). Após quase um ano na prisão, o autor foi libertado e passou a residir na cidade do Rio de Janeiro, onde já viviam alguns de seus amigos nordestinos, que mudaram para lá com o fim de consolidar suas carreiras literárias. Instalado na capital do país, o escritor passou a colaborar com alguns jornais – prática comum entre os escritores brasileiros, que além de escreverem obras literárias, arriscavam-se no ofício de crítica –, escrevendo artigos e contos, dos quais tirava o sustento de sua família. Durante esse período, se tornou assíduo frequentador da livraria José Olympio, local mais festejado para a reunião dos escritores daquela época, os quais se encontravam para tomar café e discutir literatura e política. Já ambientado na cidade do Rio de Janeiro e vivendo de seus escritos, Graciliano Ramos publicou seu último romance, Vidas Secas, narrativa que congrega capítulos publicados inicialmente como contos (cf. LIMA & REIS, 1992). Tal romance tem como enredo a fuga de uma família de retirantes pelo sertão, como forma de sobreviver à ferocidade da seca que assolava a região. Essa temática já havia sido abordada anteriormente nos romances A bagaceira, de José Américo de Almeida e O quinze, de Rachel de Queiroz. A recorrência desses temas do romance social tornou-se alvo de duras críticas por parte de escritores alinhados à produção intimista, que afirmavam que o gênero teria chegado ao seu limite. No ambiente literário de 30 formou-se um clima de hostilidade entre os autores representantes das tendências opositoras, que faziam seus ataques aos rivais com críticas em jornais referentes aos livros que surgiam.

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Essa rivalidade gerou algumas discussões, como a que envolveu os nomes de Graciliano Ramos e Octávio de Farias8. O que nos interessa dessa discussão é a relação que pode ter com a criação de Vidas Secas. Em correspondência dirigida a João Condé e, posteriormente, divulgada na coluna “Arquivos implacáveis”9, Graciliano afirmou que a ideia de juntar os contos em uma única narrativa, criando assim Vidas Secas, se deu como forma de provar que a matéria de ficção não é esgotável, uma resposta a um artigo de Octávio de Faria no qual este afirmara, nas palavras do autor alagoano, que “o sertão, esgotado, não dava romance” (RAMOS, 1947, p. 4). O depoimento de Graciliano Ramos, datado de junho de 1944, ainda revelou de onde surgiu a inspiração para compor os famosos personagens Fabiano, Sinhá Vitória, Baleia e os meninos sem nomes: Terrível Condé: Atendo à sua indiscrição. No começo de 1937 utilizei num conto a lembrança de um cachorro sacrificado na Maniçoba, interior de Pernambuco, há muitos anos. Transformei o Velho Pedro Ferro, meu avô, no vaqueiro Fabiano; minha avó tomou forma de Sinha Vitória; meus tios pequenos, machos e fêmeas, reduziram-se a dois meninos. Publicada a história, não comprei o jornal e fiquei dois dias em casa, esperando que os meus amigos esquecessem “Baleia”. O conto me parecia infame – e surpreendeu-me falarem nele. A princípio julguei que as referências fossem esculhambação, mas acabei aceitando como razoáveis o bicho, o matuto, a mulher, e os garotos. Habituei-me tanto a eles que resolvi aproveitá-los de novo. Escrevi “Sinha Vitória”. Depois apareceu “Cadeia”. Aí me veio a ideia de juntar os cinco personagens numa novela miúda – um casal, duas crianças e um cachorro, todos brutos.

Sobre esse contexto de rivalidades que marcou a cena literária brasileira na década de 30, especialmente a encrenca entre Graciliano Ramos e Octávio de Farias, cf. BUENO (2006, p. 402-403). 9 Coluna publicada na edição especial do suplemento Arte Literatura (FOLHA DO NORTE, 1947d). 8

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Germana Sal e s | Wanessa Paiva Otávio de Faria, me dissera, em artigo enorme, que o sertão, esgotado, já não dava romance. E eu havia pensado: – Santo Deus! Como se pode estabelecer limitação para essas coisas? Fiz o livrinho, sem paisagens, sem diálogos. E sem amor. Nisso, pelo menos, ele deve ter alguma originalidade. Ausência de tabaréus bem falantes, queimados. Cheias, poentes vermelhos, namoros de caboclos. A minha gente, quase muda, vive numa casa velha da fazenda; as pessoas adultas, preocupadas com o estômago, não têm tempo de abraçar-se. Até a cachorra é um criatura decente, porque na vizinhança não existem galãs caninos (RAMOS, 1947, p. 4).

Com Vidas Secas, o autor alagoano encerrou sua produção de romances, já que a partir dessa década sua obra é marcada pela publicação de outros gêneros, como contos, memórias e histórias infantis. Capitães de Areia foi o último romance dessa década publicado por Jorge Amado. Esse autor, no entanto, continuou a produção de romances e outros gêneros nas décadas seguintes, construindo uma extensa obra. José Lins do Rego encerrou a década de 1930 com Riacho Doce. Apesar do grande destaque que tiveram as obras do Ciclo da Cana de Açúcar, a principal obra do autor, apontada pela crítica é Fogo Morto, de 1943. Rachel de Queiroz se despediu dos anos 30 com a publicação de As três Marias, 1939. Após essa data, a autora publicou mais dois romances, com largo espaço de tempo entre eles, Dôra Doralina, em 1975, e Memorial de Maria Moura, em 1992. Apesar da interrupção na produção romanesca, Rachel de Queiroz construiu vasta obra literária, com crônicas, contos, teatro e histórias infantis, obtendo destaque também como tradutora. Esses autores lançaram tendências e ganharam notoriedade na cena literária brasileira, tornando-se figuras de referência para a produção de romances no país. Cada um deles apresentou contribuições para a chamada geração de 30: Rachel de Queiroz, por exemplo, trouxe para a discussão da época personagens femininas que fogem dos estereótipos tradicionais da mulher em nossa literatura, o da namorada ou o da prostituta (cf. BUENO, 2006, p. 284). Suas personagens questionam papéis impostos à mulher pela sociedade estruturada

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em valores patriarcais; Jorge Amado desenvolveu, como nenhum outro autor do período, o romance proletário, fazendo de sua arte uma bandeira de luta contra a exploração da classe trabalhadora no Brasil; José Lins do Rego, com seu modo de narrar envolvente, seduziu os leitores, tornando-se assim um dos autores de maior sucesso de venda na década; Graciliano Ramos se tornou o principal nome daquela geração, com suas obras que congregam em si um pouco das duas tendências desenvolvidas na época – a crítica social e a análise psicológica mais complexa. A produção desses autores mostra intensa relação com a movimentação política e cultural do país, trazendo à tona aspirações de indivíduos ou classes subjugados pela estrutura social então vigente. Na década de 1940, a partir da consolidação ou mesmo esgotamento de algumas tendências literárias, se iniciou uma nova fase da literatura Modernista, na qual se percebe uma maior concentração em torno de temas individualistas, com influência das correntes existencialistas em voga na Europa e uma rejeição a temas políticos ou sociais. Apesar das mudanças de paradigmas estéticos e literários, foi possível perceber que os nomes desses autores ainda se faziam essenciais para o entendimento da produção ficcional brasileira. Sendo assim, entender o percurso trilhado por esses romancistas até os anos 40 é importante para compreendermos sua permanência nos assuntos explorados por uma nova geração de críticos, como verificamos no suplemento Arte Literatura.

3.2 O cenário de produção literária na década de 1940 no Brasil Na década de 1930, os romances de teor social conquistaram grande espaço nos debates da crítica e no gosto do publico em geral, afirmando, assim, a tendência daquele período, de estreitamento de relações entre a vida social e a literatura. A crítica literária no Brasil até meados do século XX, de modo geral, ainda se configurava como uma atividade autodidata, baseada nas próprias impressões de leituras dos críticos, veiculada nos jornais diários. Nos anos 30, essa atividade ganha uma particularidade, passa a se movimentar de acordo com as posições assumidas pelos críticos dentro do cenário ideológico

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polarizado entre esquerda e direita. Assim, “no geral o problema do crítico era mais simples e se reduzia a louvar os autores alinhados com ele e espinafrar os que não se alinhavam” (BUENO, 2006, p. 172). Por conta dessa postura, alguns autores tiveram maior destaque durante a década em detrimento de outros que não teriam correspondido às expectativas desses críticos. Considerando os próprios autores dos quais temos tratado, percebemos que mesmo sendo reunidos em uma designação comum, entre eles estabeleceram-se diferenças no modo como suas obras foram apreciadas pelos seus pares. Jorge Amado e José Lins do Rego, além do grande volume de publicações, tiveram grande visibilidade e influência por seus livros trazerem para a discussão elementos valorizados pela crítica, como a questão dos desvalidos. José Lins do Rego, por exemplo, era um sucesso evidente, tanto que o editor José Olympio, a fim de atraí-lo para sua casa, propôs-lhe um audacioso contrato editorial, no qual reeditaria Menino de Engenho e publicaria Banguê com uma tiragem de dez mil exemplares, algo muito acima do padrão daqueles anos, que girava em torno dos dois mil exemplares (SOARES, 2006, p. 38). Jorge Amado, com o sucesso de seus romances, passou a figurar como um dos grandes romancistas brasileiros, especialmente após a publicação de Cacau. Ele dividia com José Lins o título de “maior romancista brasileiro naquele momento” (cf. BUENO, 2006, p. 184). Já Graciliano Ramos não alcançou, na década, desempenho nem de crítica nem de público comparável ao de seus companheiros, visto que suas obras não traziam claramente o apelo das problemáticas sociais. O reconhecimento pelos colegas de escrita viria somente ao fim da década (cf. BUENO, 2006, p. 426). Já com os leitores isso demorou a acontecer. Memórias do Cárcere (1953), publicado depois da morte do autor, foi o seu primeiro livro lançado com grande tiragem, de dez mil exemplares, esgotados em apenas 45 dias, o que mostra a boa acolhida da obra junto ao público (cf. SOARES, 2006, p. 162). No entanto, com o passar dos anos, observamos uma inversão de importância desses autores no cânone literário. As narrativas assinadas por Jorge Amado e José Lins perderam espaço nas discussões sobre o romance e passaram a ter seus defeitos realçados pelos estudos posteriores. Já o autor alagoano é frequentemente lembrado como o mais importante do período

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e figura como um dos grandes nomes da literatura brasileira. Podemos, a partir dessas informações, levantar o seguinte questionamento: o que teria ocasionado essa modificação? Ao final da década de 1930 é observado um movimento de declínio na tendência do romance social, o qual adentra a década de 1940 sem a força com que dominou o cenário da produção ficcional do decênio anterior. Os romancistas mais festejados já não publicam com tanta recorrência e os novos autores, os quais não se identificavam nem com pressupostos estéticos nem com o posicionamento ideológico dos mais velhos, trouxeram para a discussão da vez preocupações de outra ordem. Houve uma minimização no envolvimento ideológico e uma maximização das questões estético-formais, como atesta Antonio Candido (2008, p. 134) ao tratar das diferenças que se estabelecem entre as gerações de 1930 e 1945. Essa reconfiguração do cenário de produção literária pode ser verificada em três ângulos que se relacionam entre si: na querela entre os autores de gerações distintas que entram em conflito pela afirmação de seu valor enquanto participantes legítimos e prestigiados (ou que buscam legitimidade e prestígio) no circuito de produção cultural; na reavaliação do gênero romance diante de novas demandas estéticas; e na postura da crítica que, envolvida nessa discussão, busca novos parâmetros de leitura e apreciação das obras literárias. Sobre a querela que se estabeleceu entre as gerações, é exemplar o embate travado entre o já consagrado José Lins do Rego e o jovem poeta da geração de 45, Lêdo Ivo. Os dois literatos trocaram acusações e ofensas publicamente, por meio dos suplementos literários. Não sabemos exatamente quando teve início a discórdia, mas um dos textos escritos por José Lins, veiculado no Arte Literatura, já demonstra a tensão entre os dois autores. Nesse texto, o escritor paraibano responde ao questionamento de um escritor da nova geração, que queria saber se o autor de Menino de Engenho seria contra o movimento de renovação das letras levantado pela geração de 45. Respondendo a pergunta, o romancista afirmou ser a favor dos movimentos de renovação, sem, contudo, precisar “bajular” nenhum dos novos escritores, principalmente a Lêdo Ivo, ao qual se referiu nos seguintes termos: Sou, por natureza, admirador de todos os movimentos de renovação. Agora, o que não sou

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Germana Sal e s | Wanessa Paiva é um bajulador de todos os novos e nem tão pouco levo a sério as atitudes de Robespierre que não pode ver a cor de sangue de Lêdo Ivo, moço de verdadeiro talento criador, mas todo possuído do complexo de Ana Bolena. Isto é, do “leva e traz”, só fuchico como condição essencial para vencer. [...] Para o diabinho Lêdo Ivo não há quem saiba fazer um bom artigo, a não ser ele próprio, ou Rilke, ao tempo de sua vida. Mas tudo isto seria bem interessante, se o nosso Lêdo não se desse aos exageros das indignidades a propósito de tudo, num afã desesperado de homem mais orgulhoso que um Lúcifer. (REGO, 1949, p. 2).

O autor de O acontecimento do soneto foi ainda mais agressivo em seu ataque ao rival, respondendo às acusações, em um artigo no qual chega a questionar o mérito de José Lins enquanto artista da linguagem e sua relevância para os novos rumos da literatura: Nossa geração nada tem de acadêmica a não ser que ele confunda com academicismo certa preocupação artística, aliás ausente em sua vasta obra, isto é, uma certa pesquisa formal que consideramos inseparável do ofício do escritor. [...] Acredito que tenha faltado ao sr. José Lins do Rego serenidade crítica para julgar uma geração que, aliás, não o corteja nem se abeberou em seus livros e talvez nem mesmo em sua frequentação pessoal, mesmo porque o sr. José Lins do Rego não é um guia estético. E mesmo quanto aos ataques pessoais que me fez, atribuindo-me até o complexo de uma rainha de Inglaterra, vejo neles apenas a indócil imaginação de um romancista de costumes, que falha precisamente no momento da colheita da singularidade psicológica, confundindo um efeito natural de espírito – que a idade, a retração de crédito literário e as desilusões poderão corrigir – com um comportamento de moral literária. [...] Finalizando, quero pessoalmente dizer ao sr. José Lins do Rego, solicitando-lhe apenas serenidade e adequação de sua linguagem ao próprio plano que ele ocupa em nossas letras: o lugar que ele

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O Romance em debate possui em nossa literatura, ninguém lhe tirará. Nem minha geração, nem as gerações que vierem depois, nem mesmo – como me dizia um malicioso escritor de sua geração – o seu romance “Eurídice”. (IVO, 1949, p. 4).

Lêdo Ivo toca em um ponto polêmico sobre a obra do romancista, sempre ressaltado pela crítica, daquilo que seria um desleixo com a linguagem artística, abusando do coloquialismo e dos tons regionalistas em seus textos. Para desmerecer José Lins do Rego e sua importância para literatura brasileira, o poeta menciona o romance Eurídice, sobre o qual a crítica se manifestou em 1947 de forma não muito favorável, como veremos posteriormente. No entanto, ressalte-se por agora que, para além das picuinhas pessoais entre os autores, suas atitudes mostram a alteração de valores que perpassam os critérios de avaliação para consagração ou decadência de um autor e sua obra. Essa dinâmica de alterações de valores estéticos entre as gerações se refletiu no âmbito das preocupações de redefinição dos gêneros literários, considerando a possibilidade desses gêneros responderem aos anseios de novo tempos. Interessa-nos aqui as questões levantadas sobre o romance e as tendências que passariam a o definir. A respeito desse tema foram encontrados quatro textos no suplemento Arte Literatura: Quais as diretrizes futuras do romance?, questão proposta por Almeida Fischer e respondida, em dois momentos, por Otto Maria Carpeaux10 e José Condé�; Crise no Romance Brasileiro, de Wilson Martins11; e Depoimento de Valdemar Cavalcanti12. Nesses textos, de modo geral, os críticos fazem questionamentos sobre os rumos que a ficção nacional tomaria a partir daquele momento. O texto de Almeida Fischer ao apresentar a enquete “Quais as diretrizes futuras do romance?” mostra como a dis Austríaco de nascimento, veio para o Brasil em 1939, fugindo das perseguições nazistas aos judeus. Em nosso país atuou como crítico literário, colaborador do Correio da Manhã. 11 Professor e jornalista curitibano, Wilson Martins atuou ainda como crítico literário pelo Jornal do Brasil e O estado de São Paulo. Além de ter escrito as obras: História da Inteligência Brasileira; A ideia modernista, Crítica literária no Brasil e A palavra escrita. 12 Jornalista e crítico literário, o alagoano foi redator-chefe do Jornal de Letras e diretor do ‘Suplemento Literário’ de O Jornal. Atuou ainda nas revistas Vamos Ler, Revista do Brasil, O Cruzeiro, Revista Bancária e Carioca e nos jornais Diário de Notícias, Folha Carioca e Diretrizes. 10

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cussão sobre a modificação de pressupostos estéticos entre as gerações tomava conta da cena literária dos anos 1940. Na abertura da entrevista com José Condé, Fischer já apresenta como algo realizado o fato do romance estar em transição. A enquete se fez necessária, no entanto, para que os distintos representantes de gerações e de funções dentro do campo literário pudessem explicitar como percebiam essa movimentação e apresentar suas opiniões sobre os novos caminhos do gênero. Prosseguimos hoje com o nosso inquérito sobre as diretrizes futuras do romance em nosso país. Não se pode negar que esse importante gênero literário atravessa, no momento, entre nós, uma fase de transição. Difícil se torna afirmar quais sejam os rumos futuros do romance no Brasil, uma vez que essas novas diretrizes estão condicionadas a uma série de fatores, nem todos ponderáveis. Na “enquete” que vimos realizando sobre o assunto, nossos escritores têm expendido os seus pontos de vista a respeito e pela diversidade deles notamos o quão difícil é afirmar-se que o romance seguirá futuramente este ou aquele caminho. (FISCHER, 1947b, p. 2).

Nas entrevistas identificaram-se alguns fatores que foram entendidos pelos entrevistados como os responsáveis pela modificação de valores estéticos do romance e o estado de transição pelo qual passava nos anos 1940: a repetição de temas que levou à constituição de fórmulas, encerramento de um ciclo e a emergência de um novo quadro artístico literário. Sobre o primeiro aspecto, o crítico Otto Maria Carpeaux afirmou: “A inspiração novelística do pós-modernismo já se teria esgotado; os romancistas brasileiros começariam a repetir-se” (FISCHER, 1947a, p. 3). Para ele, a falta de inspiração levaria à repetição de temas recorrentes nas tendências que marcaram a produção do romance até aquele momento, o romance social e o romance introspectivo. Essa repetição acarretaria na exaustão das formas e no aparecimento de meras fórmulas que já não apresentavam a mesma relevância para a produção do gênero. Seguindo a mesma linha de pensamento, José Condé constatou que alguns autores, ao se prenderem em modelos, acabaram pre-

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judicando a evolução de suas obras e, dessa forma, não construíram uma produção sólida e significativa. Acho um pouco precipitado dizer que o romance brasileiro atravessa uma fase de estagnação. Eu trocaria a palavra “estagnação” por esta: “transição”. Em verdade, se examinamos isoladamente o atual panorama de nossa literatura, deixando de lado as generalizações, seremos bem mais prudentes. Vejamos, por exemplo, a posição de José Lins do Rego: autor de uma grande obra de ficção, tendo escrito mais de dez romances em vários anos de trabalho – o melhor livro de José Lins do Rego é justamente o último, “Fogo Morto”. Já com Lúcio Cardoso dá-se o contrário: depois de muito prometer com o terceiro e quarto livros, no transcurso dos demais que escreveu nada de novo acrescentou à sua obra. Nesse caso, sim, podemos falar de estagnação. Ou melhor: de repetição. (FISCHER, 1947b, p. 2).

Continuando a avaliação do contexto de produção ficcional no país, os dois escritores mais uma vez compartilham uma opinião, a de que se encerrou um ciclo da nossa literatura. Carpeaux justifica sua opinião no fato de as duas correntes do romance terem encontrado em Graciliano Ramos a sua realização plena. Apontando, assim, para a concretização de um movimento e abertura para novas possibilidades de escrita e de criação. É um esquema dialético, esquemático demais, portanto, que não deve ser tomado ao pé da letra; não se exclui absolutamente o aparecimento de um ou outro romancista novo, insuflando nova vida a uma daquelas duas correntes. Mas a existência de uma síntese como aquela que Graciliano Ramos representa, já sugere uma afirmação de natureza por assim dizer historiográfica: uma nova fase de evolução do romance brasileiro chegou ao fim. (FISCHER, 1947a, p. 3).

Já José Condé vai ainda mais longe no seu diagnóstico sobre o cenário que se formava em nossas letras. Para ele, não só as contribuições dos autores de 30, mas também o modernismo

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é visto como algo superado, deixando livre o espaço para que novos caminhos fossem traçados: “Transposto o modernismo, já muito bem realizado o papel dos escritores que surgiram depois de 1930 – vamos procurar agora outros caminhos” (FISCHER, 1947b, p. 2). Constatando que a literatura brasileira se encaminhava para novos rumos, os dois autores insinuam as possíveis modificações do quadro artístico literário. Otto Maria Carpeaux acreditava que o romance adotaria a forma realista: O romance futuro não será introspectivo nem naturalista, mas sim realista. [...] A evolução do romance já revela tendência inequívoca para a forma realista: quer dizer, tende para impor, por meio de técnica dramática, uma ordem estética à realidade observada, o que não realizaram nem o neonaturalismo e nem o “Roman-fleuve”, expressões de uma época de caos social. O romance neorrealista corresponde a uma nova ordem social imposta à realidade enfim dominada. (FISCHER, 1947a, p. 3).

Condé acreditava que as mudanças eram fruto das diferenças estético-ideológicas que se delineavam entre as gerações: “Estamos na expectativa de uma renovação de valores e de posições. Ou, como diria o Marques Rebelo, estamos às vésperas de uma terrível batalha literária... O duelo entre a geração mais velha e a geração mais nova” (FISCHER, 1947b, p. 2). Apesar de conseguir identificar as mudanças de perspectivas entre os escritores, José Condé não conseguiu definir bem quais seriam afinal as novas diretrizes do romance. Essa questão, na verdade, não era tão fácil de responder, levando vários outros intelectuais a se pronunciarem sobre o assunto. Valdemar Cavalcanti foi um deles, que falou, em texto breve, principalmente da baixa produtividade dos romancistas renomados e a pouca relevância da produção dos novos autores. Não limitou, entretanto, sua avaliação pessimista ao romance, expandindo-a para outros gêneros que foram frutíferos em outros tempos, mas que não mostravam mais o mesmo vigor, como os escritos sociológicos e a poesia. De modo geral, o crítico define o panorama daqueles anos 1940 da seguinte forma:

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O Romance em debate Parece que a literatura brasileira vai mesmo atravessando um período de vacas magras. Estamos quase a meio do ano e creio que não podemos apontar de pronto e sem hesitação quaisquer obras realmente marcantes que hajam saído, nestes cinco meses, dos nossos prelos. Nada daqueles sinais que, por si sós, caracterizam uma época fecunda e uma safra das boas. (CAVALCANTI, 1946, p. 2).

Wilson Martins também se lançou nessa tentativa de compreensão da situação do romance. No texto Crise do Romance Brasileiro, o crítico e ensaísta detectou os mesmos problemas que os outros autores, o esgotamento do romance pela recorrência de certos temas, a escassa produção dos romancistas renomados e a luta de gerações. Contudo, identificou outros elementos envolvidos nesse debate. O primeiro tem a ver com a suposta derrocada do romance. Para ele isso se deve não somente à falência das tendências que o guiavam, mas, à incapacidade dos autores mais velhos de se renovarem ou se adaptarem as novas demandas artísticas. O romance brasileiro encontra-se em uma encruzilhada: entre a chamada geração de 1930, que, de uma forma geral, demonstra poucas possibilidades de renovar-se, e a novíssima geração de romancistas, pobre em quantidade e paupérrima em qualidade, ameaça sofrer um colapso esse gênero. [...] Na incapacidade de renovar-se, os romancistas brasileiros do “pós-modernismo” passaram a repetir-se, o que representa o primeiro sinal de esgotamento, antes do silêncio total. (MARTINS, 1947, p. 1).

O crítico nomeia alguns autores que fogem a essa generalização, podendo ainda trazer contribuições para o desenvolvimento do romance, seriam eles, Érico Veríssimo, Graciliano Ramos, José Geraldo Vieira e Octávio de Faria. Outro aspecto que chamou atenção de Wilson Martins no contexto da década de 1940 foi a transformação do interesse do novo grupo de produtores, que voltariam sua atenção para o desenvolvimento da crítica literária. Na nova geração sobressairiam os críticos, ao invés de romancistas e poetas: “Circuns-

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tâncias ainda não suficientemente estudadas, fizeram com que a geração seguinte não fosse nem de romancistas nem de poetas, mas de críticos” (MARTINS, 1947, p. 1). Essa geração de críticos, segundo Wilson Martins, iniciou um intenso processo de “meditação sobre o fenômeno literário”, acarretando na mudança de comportamento da crítica diante do objeto de análise. Se na década de 1930 a atividade de crítica era diretamente envolvida nos debates político-ideológicos do período – o que prejudicaria um julgamento mais imparcial de obras e autores, com a reconfiguração do cenário político, dos próprios gêneros e dos produtores –, o que se pode perceber é que a partir da década de 1940 a crítica também se deparou com a necessidade de delinear novas abordagens de apreciação, caminhando para leituras que priorizassem o objeto literário em sua dimensão estética em detrimento de fatores contextuais. O próprio Wilson Martins é quem define a crítica literária estabelecida neste momento como “estética”. A despeito de a orientação geral ser a de privilegiar elementos mais propriamente “artísticos”, cabe observar que a atividade vinha sendo realizada ainda essencialmente no âmbito do jornalismo e carecendo de um aparato conceitual mais sistematizado; não tinha caráter homogêneo, sendo os critérios de julgamentos definidos a partir dos interesses intelectuais particulares de cada crítico (MARTINS, 1986, p. 626). Desse modo, avaliando a conjuntura que se formou na década de 1940, com os embates envolvendo os autores das diferentes gerações, as discussões em torno do romance e as alterações de estratégias e valores da crítica, podemos inferir que o contexto de produção literária nos anos 1940 passava por profundas mudanças no cerne de sua estrutura, o que se refletia diretamente no modo como eram avaliados os autores de 30: Graciliano Ramos passa se destacar dos demais autores de sua geração, sendo o mais elogiado entre eles; em contrapartida, José Lins do Rego e Jorge Amado decaem na avaliação da crítica, sendo este último praticamente omitido de suas discussões. Podemos constatar essa modificação nas análises do próximo capítulo, no qual serão apresentadas as considerações da crítica de 1940 a respeito das obras dos romancistas nordestinos.

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CAPÍTULO IV A CRÍTICA DO ROMANCE: REGIONAIS, POLÍTICOS OU UNIVERSAIS? A RELEITURA DO ROMANCE SOCIAL SOB UMA NOVA PERSPECTIVA CRÍTICA

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Pois quem se mete a escolher e modificar usurpa a autoridade do juiz e precisa demonstrar o erro do que elimina e o bem do que introduz. (Michel de Montaigne, Ensaios).

A presença dos nomes dos autores de 30 nas discussões da crítica nos anos 1940 foi estimulada, entre outras razões, pela publicação de obras inéditas ou ainda de edições especiais, que traziam os romances já conhecidos do público, lançados na década anterior. Os romances de Graciliano Ramos, por exemplo, ganharam uma edição de obras completas, em formato especial e ilustrada pelo artista plástico Santa Rosa, a qual seria publicada pela livraria e editora José Olympio: Algumas notas – Rio, Via Aérea (A.U.) – Acabam de aparecer em cinco volumes, as Obras Completas de Graciliano Ramos, que a Livraria José Olympio Editora apresenta ao público brasileiro. Não será preciso, naturalmente, destacarmos a importância desse acontecimento literário, se levarmos em consideração que Graciliano Ramos é hoje em dia considerado um dos maiores romancistas brasileiros de todos os tempos, não só pelo conteúdo humano de seus livros como também pelo seu admirável domínio sobre a língua. Suas Obras Completas, em cinco volumes, estão assim programadas: I – Caetés; II – S. Bernardo; III – Angústia; IV – Vidas Secas; V – Insônia. Portanto, quatro romances e um livro de contos, sendo este último obra inédita. Esta nova edição das obras do grande romancista, destacam-se ainda pela sua magnífica apresentação gráfica, em volumes de formato grande, com capas de Santa Rosa. (FOLHA DO NORTE, 1947c, p. 2).

Sobre a obra de José Lins do Rego, observamos que a crítica se deteve sobremaneira em seu romance Eurídice, publicado também pela José Olympio em 1947 e anunciado como o grande romance daquele ano, ganhando inclusive uma segunda edição no mesmo ano: “Eurídice, 2ª edição do magnífico romance de José Lins do Rego, sem dúvida alguma a maior sensação literária de 1947” (FOLHA DO NORTE, 1948b, p. 2).

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Rachel de Queiroz, que na década de 1940, não escreveu nenhum romance, mas que trabalhou bastante com outro gênero literário, a crônica, algumas veiculadas também no Arte Literatura, aparecia com frequência nos anúncios como uma de nossas maiores tradutoras, trazendo para o nosso idioma, sobretudo, obras de escritoras inglesas do século XIX: “Morro dos Ventos Uivantes, de Emily Bronte, em comemoração ao centenário de seu aparecimento. Edição da livraria José Olympio, em tradução da romancista Rachel de Queiroz, que é hoje uma das nossas melhores e mais ativas tradutoras” (FOLHA DO NORTE, 1947d, p. 3). Mas não foi por isso que seu nome apareceu nas discussões da crítica, e sim por conta da publicação de uma edição especial contendo três de seus romances do decênio de 1930. O único autor que não mereceu atenção da crítica, pelo menos não na divulgada pelo suplemento do jornal Folha do Norte, foi Jorge Amado, apesar de também ter publicado romances nessa década, a exemplo de Terras do sem fim (1943) e São Jorge de Ilhéus (1944), e ter tido algumas de suas obras reeditadas. Ao percebermos a ausência de informações sobre a produção do autor baiano nesse contexto de revisitação dos romances da geração de 1930, pelos críticos na década de 1940, logo relacionamos esse fato a uma questão ideológica, que perpassa a orientação estética do suplemento Arte Literatura. Sabemos que Jorge Amado foi um dos mais empenhados escritores daquele momento, militando ativamente pelo Partido Comunista Brasileiro, pelo qual foi eleito deputado em 1945. Nesse sentido, é possível entrever que, na ausência de informações sobre as obras desse escritor, há um movimento de omissão de seu nome das discussões sobre arte e literatura por conta de sua posição explicitamente partidária e conflituosa com a posição mais “neutra” do Suplemento. Sobre Jorge Amado, foi encontrado um único documento diretamente ligado ao seu nome, não no espaço do Suplemento, mas em uma página do jornal Folha do Norte. Nesse pequeno escrito, notamos o tom de hostilidade para com o romancista, acusado de trair a sua pátria ao deturpar, segundo a reportagem, a realidade vivida no Brasil durante a década de 1940: O comandante Otacílio Cunha, recém-chegado da Tchecoslováquia, disse que teve ocasião de

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O Romance em debate ali ouvir ecos da propaganda soviética contra o Brasil. Revelou-se, também, a atuação antinacional do ex-deputado Jorge Amado, que injuriou o Brasil e o seu governo nas terras estrangeiras. O sr. Jorge Amado não trepidou em descrever a vida no Brasil como ela seria se os companheiros de credo estivessem no governo: perseguição, políticas com cadeias, ameaças às liberdades elementares, campos de concentração e execuções em massa. Acrescentou o comandante Cunha que um prócer comunista, com quem conversou longamente, perguntou-lhe se esta é realmente a situação do Brasil, tendo ele esclarecido convenientemente. (FOLHA DO NORTE, 1948, p. 1).

É preciso ressaltar, neste momento, que essa postura com relação ao nome de Jorge Amado não era peculiar ao Arte literatura. Ao analisarmos os textos que trouxeram a público as discussões acerca do futuro do romance, foi possível perceber também um clima de animosidade dos críticos nacionais ao se referirem ao escritor e suas obras. Sempre que mencionavam o nome do autor baiano entre os romancistas da década de 1930 que já não mantinham uma produção regular, os críticos não deixavam passar a oportunidade de alfinetar o que seria o sectarismo do autor e as limitações de sua “arte literária”, como se nota na fala de Wilson Martins: O caso de um Jorge Amado, oferecendo-nos continuamente o espetáculo de sua decadência literária, seja por se ter em definitivo deixado empolgar pela política partidária, seja (o que reputo mais provável) por ser rapidamente esgotado as suas reservas de originalidade criadora, me parece ser dos mais expressivos (1947, p. 1).

Sérgio Milliet foi outro crítico que relacionou a orientação político-ideológica de Jorge Amado às insuficiências estéticas de suas obras, como o fizera Martins. Isso se verifica na aproximação que ele faz entre José Lins do Rego e Jorge Amado enquanto prosadores de talento, pecando este último, contudo, na instrumentalização dessa qualidade visando fins políticos.

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Germana Sal e s | Wanessa Paiva Com todos esses defeitos, o livro lê-se de princípio a fim com interesse. É que José Lins do Rego, como Jorge Amado, e sem o desagradável pecado da “orientação” ideológica [grifo nosso], sabe contar, sabe dosar a emoção de modo a preocupar o leitor, a manter viva a curiosidade pela anedota. (MILLIET, 1947, p. 3).

A omissão do nome de Jorge Amado ou a avaliação negativa que se fazia de sua obra ajuda a sustentar a hipótese levantada neste trabalho, sobre a orientação do suplemento Arte Literatura: a de que ela não se fundamentou só em valores estéticos, mas esteve imiscuída de sentidos e estratégias ideológicas que eram comuns ao contexto artístico da década de 1940, de afastamento da literatura das problemáticas políticas e partidárias.

4.1 José Lins do Rego e a “falhada” incursão pelo romance psicológico: o caso Eurídice Em 1947, José Lins do Rego já era um autor consagrado em nossa literatura, havia publicado no decênio de 30 os romances do Ciclo da Cana de Açúcar, entre outros, e iniciara muito bem a década de 1940 com a publicação de Fogo Morto. Com 15 anos de vida literária, lançou o romance Eurídice. Neste romance, que se passa na cidade do Rio de Janeiro, é contada a história de Júlio, rapaz que em criança, ao ser desprezado pela mãe, encontrou na irmã Isidora a substituta ideal para lhe conceder o amor filial. Dessa relação, o menino desenvolveu pela irmã uma afeição patológica que o perseguirá por todo o decorrer da narrativa, interferindo nas relações sociais e afetivas que estabelece ao seu redor, o que o conduzirá ao seu desfecho trágico. Eurídice é narrado em flashback, a partir das rememorações do personagem-narrador Júlio, que, estando preso, sente a necessidade de rever a sua própria vida, passando a narrar “uma história verdadeira”. Não quero que tomem esta minha história como um romance ou que tudo quanto eu ponha neste caderno, notas de uma história verdadeira, dê a impressão de um desejo de trans-

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O Romance em debate formar em peripécias de um conto exótico o que só foi a minha realidade. [...] Podia deixar de escrever o que pretendo escrever. Mas sem nada a fazer, nesta cela úmida, fora de um convívio que e faça fugir de mim mesmo, de meus pensamentos e de minhas saudades, tento encher as folhas deste caderno. (REGO, 1993, p. 5).

O romance é dividido em duas partes, em que são apresentados dois momentos da vida de Júlio: a primeira, intitulada “Uma casa da rua da Tijuca”, e a segunda, “Eurídice”. A primeira parte mostra a infância do narrador, filho temporão, que vive em um ambiente desestruturado por crises financeiras e desentendimentos familiares, agravados após o seu nascimento, como revela o trecho a seguir: Podia ter sido um neto, e o que recebera em meus tempos de menino foram os resíduos de uma maternidade esgotada. [...] Aquele filho que aparecera no momento exato da desgraça quase que viera ainda mais para humilhá-la [a mãe], como se para as duas filhas grandes, moças para casar, uma mãe que tivesse força para um filho fosse uma vergonha ou um desrespeito. (REGO, 1993 p. 6-7).

Nasceu dessa vergonha o desprezo que a mãe sente por Júlio, que sem o amor materno, encontra na irmã, Isidora, uma aliada e substituta para ocupar o lugar da mãe. Tornandose dependente da irmã em todas as situações, o menino se vê perturbado com a certeza de ser abandonado após o casamento dela. Júlio pensa no noivo da irmã como um rival, que vai lhe tirar a pessoa a quem mais ama. Tentando atrapalhar a relação da irmã com o noivo e os preparativos do casamento, o garoto usou vários artifícios, fugiu de casa, rasgou o vestido de noiva, tratou mal o futuro cunhado. Não conseguindo demover a irmã de sua resolução de casar-se com Dr. Luís Moura e Sá, passou a desenvolver um sentimento de desprezo e raiva por ela, desejando inclusive que ela morresse no parto. Como última cartada para estragar a felicidade de todos, pensou que sua morte seria a única solução para dar fim ao seu sofrimento. Mas seu suicídio não se concretizou.

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Germana Sal e s | Wanessa Paiva Isidora, de anjo passara a uma criatura odiosa. Bem que a quisera ver morta, morta de parto, morta, bem morta. [...] Tudo parara de existir, a casa não contava mais; para mim, o mundo inteiro era aquela ideia, viva e avassaladora. Sim, eu podia acabar aquela alegria de minha mãe, eu podia destruir a felicidade de Isidora, eu tinha força para fazer a casa inteira sofrer. Eu podia morrer. Pela morte eu chegaria aonde mais desejava chegar. E posso dizer que não sofreria naquele instante. A ideia era fria, nada me doía, não tinha vontade de chorar, de soltar-me num pranto. Nada. Eu queria fazer todos da casa sofrer muito, acabar aquele casamento, destruir Isidora, cuspir na cara de todos, ver o mundo cair por cima de todos e esmagá-los. [...] Havia no banheiro um vidro com umas pílulas vermelhas que ouvira a tia Catarina dizer que eram veneno. [...] a pastilha vermelha parecia ser um talismã. Morreria, e a minha morte acabaria com os planos de minha mãe, com a felicidade de Isidora. Todos de casa veriam o menino morto, e não haveria o casamento. Isidora com o vestido branco com o véu como numa réstia de lua. E a casa inteira me cercaria no caixão, na sala, estendido como meu pai, coberto de flores. As flores que viessem para Isidora seria para o meu caixão. [...] E calmo, sereno, senhor de mim, engoli a pastilha amarga. E esperei a morte. (REGO, 1993, p. 59-60).

Neste episódio é encerrada a primeira parte da narrativa. Já na segunda, ficamos sabendo que o casamento se realizou e que Isidora morreu pouco depois, no parto. Isto nos é contado pelo protagonista na continuidade de sua rememoração, cuja narrativa é retomada a partir da sua adolescência, agora com dezessete anos. Assim, percebemos que há um salto na narrativa, da meninice para a juventude, do amor por Isidora para a paixão por Eurídice. Após mudar-se para interior de Minas Gerais para viver na casa dos tios, onde se tornou um excelente aluno, disciplinado, dedicado aos estudos, retorna ao Rio de Janeiro na companhia de Faria para cursar a faculdade de direito. De volta à terra natal, o jovem Júlio passa a viver na casa de D. Glória, no bairro

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do Catete. É nesse ambiente que conhece as personagens D. Olegária, Campos das Águas, Noêmia, Jaime e Eurídice, esses três últimos filhos de D. Glória. Faria e Eurídice mantém um romance secreto, que, todavia tem Júlio como testemunha, já que o casal costumava se encontrar no quarto que os dois moços compartilhavam. Dessa situação nasce o interesse do protagonista pela moça. Impedido de demonstrar sua paixão para não revelar o caso dos namorados, não ser tomado como cúmplice e não se indispor com o então amigo Faria, Júlio passa a alimentar sentimentos negativos com relação àquele, vendo-o como um concorrente pelo amor de Eurídice. Cada vez mais transtornado por sentimentos violentos, o protagonista chega a cogitar o assassínio do rival. No entanto, Faria, que militava no integralismo, morre durante a tentativa de invasão do Palácio do governo e, Júlio, então, se aproxima de Eurídice, de quem chega a ficar noivo. Porém, ele começa a perceber uma mudança no comportamento da moça, que passa a evitá-lo. Desesperado, sem compreender a atitude da amada, Júlio, em um arroubo de fúria, assassina Eurídice. Agora o que existia em mim era uma mistura de ira e amor, de asco e desejo indomável. Eurídice falava, falava manso, e a sua voz foi me arrastando para uma espécie de precipício. Queria fugir e não podia. E nos sentamos num recanto escondido. Ouvi bem que ela falava de Faria, e os seus olhos estavam molhados. Procurei beijá-los, e ela fugiu de minha boca. Então, em mim se desencadeou uma fúria que não era uma vontade minha. A fala de Eurídice mais ainda me exasperava. Ouvia-a como se fosse minha mãe. Ao mesmo tempo as palavras pareciam sair da boca de Isidora. Por fim calou-se, e o calor da tarde de março se diluía no correr manso de riacho aos nossos pés. Uma força estranha se apoderou de mim. O cheiro do corpo de Eurídice subia, me afogava. Ela estava ali, quieta, mole, vencida, e senhor de mim, capaz de vencer todos os obstáculos, debrucei-me sobre ela para esmagá-la. Eurídice resistiu, quis erguer-se do chão úmido, mas a minha força era de uma energia descomunal. Sabia que a tinha em mi-

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Germana Sal e s | Wanessa Paiva nhas mãos e que as minhas mãos eram de ferro. E procurei a boca que fugia, que gritava, e aos poucos tudo foi ficando em silêncio pesado. As minhas mãos largaram o pescoço quente de Eurídice. E ela estava estendida, como na minha cama. O corpo quase nu na terra fria. E não senti mais nenhum cheiro de seu corpo. (REGO, 1993, p. 163).

Foi com essa história envolvente de amor, tensão e morte, que José Lins do Rego conquistou mais uma vez os leitores brasileiros. Eurídice foi um sucesso de vendas, conquistando no mesmo ano de seu lançamento uma segunda edição. Em balanço feito por José Condé sobre as atividades literárias de 1947, vários autores e pessoas comuns foram ouvidos em uma enquete para descobrir qual teria sido a melhor obra do ano. Dos livros que concorriam o romance do autor paraibano obteve o maior número de votos, seis dos treze autores ouvidos o escolheram como o melhor livro de ficção. Os melhores livros do ano na opinião dos escritores foram os seguintes: Ficção: Eurídice, romance de José Lins do Rego (escolhido por Jorge de Lima, Carlos Drummond de Andrade, Ciro dos Anjos, Dinah Silveira de Queiroz, Maria Julieta e Manuel Cavalcanti); A túnica e os dados, romance de José Geraldo Vieira (escolhido por Adonias Filho e Maria Julieta); O ex-mágico, contos de Murilo Rubião (escolhido por José Lins do Rego, Marques Rebelo e Maria Julieta); Marajó, romance de Dalcídio Jurandir (escolhido por José Lins do Rego); As Alianças, romance de Lêdo Ivo (escolhido por Ciro dos Anjos); Contos Novos, de Mário de Andrade (escolhido por Carlos Drummond de Andrade). (CONDÉ, 1948, p. 3).

Entre os dez leitores comuns consultados na enquete sobre a melhor obra brasileira de 1947 e a melhor tradução, Eurídice foi o único título nacional que obteve mais de um voto. Qual o melhor livro brasileiro de 1947? Qual a melhor tradução?

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O Romance em debate Escolhemos ao acaso dez pessoas de diferentes profissões. Obtivemos os seguintes passos: do Sr. Ary Annan Viçoso Jardim (advogado): “Eurídice”, romance de José Lins do Rego e “O ovo e eu”, de Betty Macdonald; de José Queiroz de Andrade (engenheiro): “Arruar”, de Mario Sette e “Escolhi a liberdade” de Victor Kravchenko; de Paulo Pereira de Faria (acadêmico): “Introdução à Antropologia Brasileira”, de Arthur Ramos e “A rua”, romance americano de Ann Petry; de Elza Ribeiro (doméstica): “Quando os cafezais florescem”, romance de Stella Leonardos e “Arco do triunfo”, romance de Erich Maria Renerque; de Nelson Baptista de Faria (estudante de odontologia): “Como foi perdida a paz”, de Carlos Lacerda e “Escolhi a liberdade”, de Victor Kravchenko; de Maria Elisa de Castro (empregada numa loja de moda): “O oitavo pecado”, romance de Emi Bulhões de Carvalho e “Todos as mulheres são lobos”, de Abner Silver; de José Irineu Lobal (jornalista e redator radiofônico): “Eurídice”, de José Lins do Rego e “O general do rei”, romance de Daphne de Maurier; de Maria Helena de Faria (funcionária do I.A.P.I.): “Olhai os lírios do Campo”, (8º edição), de Érico Veríssimo e “Caminho da Liberdade”, romance de Howard Fost; de Lílio Vieira de Paula (funcionário do I.A.P.B. e estudante de direito): “A veste do tempo”, poesias de Manuel Cavalcanti e “Escolhi a Liberdade”, de Victor Kravchenko; de Silvio Cunha Ferreira (médico): “ Para Dutra ler na cama”, de David Nasser, e “O globo desaparecerá”, de Willian Bullitt (CONDÉ, 1948, p. 3).

Essas informações mostram como José Lins do Rego continuou tendo apelo entre os leitores, mesmo apresentando uma obra diferente em vários aspectos de suas composições anteriores. A obra não se passa na Região Nordeste, não trata da decadência dos engenhos ou de temas regionais, os personagens não são figuras populares e o assunto principal não se relaciona a problemáticas sociais ou coletivas, pelo contrário, em Eurídice ganha relevo problemas ligados ao indivíduo Júlio, suas frustrações, seus medos, seus segredos, seus dilemas diante da impossi-

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bilidade de ser compreendido pelas pessoas que o cercam e de ter seu amor concretizado. A despeito dessas diferenças, a obra se assemelha às outras produções por ter um estilo de escrita e de narrativa característicos do autor, como o uso de linguagem simples, construção de períodos curtos, modo de narrar ágil, mas tenso, que prende a atenção do leitor, além do artifício da memória como recurso para a construção do enredo. Entre o público leitor vimos que o romance obteve sucesso, mas será que garantiu êxito também entre os críticos? De textos a respeito da obra encontramos três artigos de críticos renomados: A sedução de um tema, de Brito Broca13; Eurídice, de Álvaro Lins14, e Eurídice, de Sérgio Milliet15. Ao compararmos os textos, notamos que trazem temas recorrentes, os quais foram divididos para esta análise em dois aspectos: alteração na tendência do romancista e elementos da arte literária. Os críticos mencionados foram unânimes em apontar em Eurídice uma mudança na tendência que guiava a produção do romancista José Lins do Rego até então: do ambiente rural para o urbano; do romance social para uma empreitada pelos caminhos da introspecção, ou ainda, dos temas coletivos para um mergulho nos fenômenos da psique. Brito Broca relaciona a mudança do ambiente rural para o urbano à própria alteração para o enfoque psicológico. A passagem de um ambiente a outro se refletiria na construção dos personagens, já que para ele, haveria uma diferença fundamental entre o funcionamento psíquico do homem do campo e o do homem da cidade. O primeiro seria caracterizado por certa espontaneidade instintiva, e o segundo por sofrer os efeitos das regras que permeiam as relações nos grandes centros urbanos. Com este seu novo romance, “Eurídice”, José Lins do Rego transporta-se não somente para o ambiente geográfico da cidade, como também para o ambiente psicológico. A psicologia do Foi crítico literário e historiador, trabalhou como redator na Livraria José Olympio Editora e na sucursal d’A Gazeta. 14 Um dos críticos literários mais influentes da década de 1940, o intelectual pernambucano foi redator-chefe do Correio da Manhã, de 1940 a 1956. Atuou ainda como professor de Estudos Brasileiros na Universidade de Lisboa e Literatura Brasileira no Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro. 15 Crítico literário, escritor e poeta, participou dos primeiros momentos do modernismo, inclusive da semana de Arte Moderna de 1922. 13

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O Romance em debate habitante urbano é naturalmente, muito mais complicada do que a do habitante rural. Os pequenos agrupamentos sociais não criam os problemas que atmosfera das grandes metrópoles, com a intensidade dos contatos humanos, suscita na mecânica afetiva. (BROCA, 1947, p. 2).

Com os personagens construídos em Eurídice, o autor teria se aproximado de uma nova forma de enxergar o indivíduo em relação ao mundo que lhe cerca. Júlio ilustraria bem essa modificação já que apresentaria uma configuração psicológica complexa em virtude da patologia que desenvolve desde a infância quando se liga por uma afetividade intensa à irmã Isidora, substituta da figura da mãe. Dessa patologia ele desenvolve um modo doentio de se relacionar com as demais pessoas. O complexo de que sofre o herói de “Eurídice”, Júlio pode manifestar-se igualmente num homem do campo, mas é por natureza, um complexo da cidade, onde a civilização determina sempre uma noção mais aguda do superego. Júlio amara a irmã, inconscientemente, e isso vem acarretar-lhe profunda desordem na vida afetiva. [...] Júlio é um jovem estudante, intelectual, aluno aplicado, legítimo produto do meio urbano. Compreende-se perfeitamente as suas hesitações, e torturas sexuais. Depois, tudo se concentra em sua estranha e misteriosa atração por “Eurídice”. (BROCA, 1947, p. 2).

Ao encerrar sua apreciação sobre a obra, o crítico afirma que a morte de Eurídice representa “a desforra do instinto contra a inteligência. A suprema solução de um recalque” (1947, p. 2). O autor não chega a desenvolver essa ideia, mas, considerando o uso explícito de conceitos oriundos da psicanálise, como o “superego” e “recalque”, podemos entender que essa “desforra” significa que Júlio libertou-se das pressões que o reprimiam, deixando-se levar pela ação do inconsciente. Assim, a morte de Eurídice representa finalmente a satisfação de possuir a irmã, por meio da analogia com a morte. O tema da problemática psicanalítica foi detectado também por Sérgio Milliet e Álvaro Lins, os quais, todavia, fizeram avaliações distintas do uso deste elemento na narrativa. Aquele,

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apesar de louvar a iniciativa de José Lins do Rego de se aventurar por um caminho literário diferente do seu habitual, questionou a competência do autor em tratar de tema tão complexo, o qual exigiria uma sólida formação cultural no âmbito da psicologia e da filosofia, presente na cultura intelectual europeia, mas que no Brasil, de acordo com Milliet, não teria encontrado ambiente propício ao seu desenvolvimento enquanto base para o romance de análise, devido à inclinação de nossa literatura para o tratamento de temas sociais. É preciso, por certo, louvar a tentativa do escritor nordestino, mas a tarefa era árdua, dada a possibilidade de um paralelo com as produções da literatura universal em que esse método tem sido ultimamente empregado com excesso. Exigente de sólida cultura psicológica, e, por conseguinte, também filosófica, o romance psicanalítico chegou na (sic) Europa como um aprofundamento do romance psicológico [...]. Entre nós, entretanto, o romance de análise não dera ainda o que podia dar o que teria talvez dado se não tivéssemos saltado essa etapa para nos jogarmos, sem dúvida, em virtude dos movimentos político-sociais, no romance sociológico e no romance de tese. (MILLIET, 1947, p. 3).

Nesse sentido, o crítico, de certo modo, ameniza a falha de execução da análise psicológica no romance de José Lins do Rego. Contudo, não deixa de destacar a fraqueza do trabalho com o viés psicanalítico, principalmente no que diz respeito à construção dos personagens, sobretudo, os femininos. Faltariam recursos ao autor para ir mais além da simples fixação de tipos – que seria marcante na produção de 30 –, e que lhe permitissem criar dramas humanos mais densos: carência que se reflete na pobreza das histórias individuais que surgem na narrativa, as quais não definem bem a função desses personagens no desenvolvimento do enredo, além de não se articularem devidamente com a história do protagonista. As mulheres, com exceção de D. Olegária e da dona da pensão, são inconsistentes ou mal compreendidas. Noêmia, distante de nós, vive uma

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O Romance em debate tragédia sem relevo. Isidora, a irmã que deveria ressaltar, recostada sobre o fundo angustiado do drama, não passa de um fantasma, também como a mãe do herói. Quanto a Eurídice, a fixação do complexo, se por um lado, se apresenta suficientemente vaga para que permaneça um símbolo e não uma criatura de carne e osso, por outro lado vem eivada de pormenores realistas nem sempre muito felizes (MILLIET, 1947, p. 3).

Para exemplificar as afirmações de Sérgio Milliet, podemos nos deter no modo como são apresentadas as personagens citadas: Isidora e a mãe são entendidas como fantasmas, talvez, por não conseguirem corresponder à importância que tem para o surgimento da obsessão de Júlio. A respeito das duas personagens sabe-se muito pouco, apenas que elas se opõem com relação ao tratamento dado ao protagonista – a mãe rejeita o filho, que acaba se tornando o centro da afeição da irmã. Isidora é quem desperta no irmão os sentimentos confusos que definem sua personalidade doentia; porém, ao final da primeira parte da narrativa, a participação dela se encerra de modo brusco, como se verifica no trecho em que o narrador retoma a rememoração dos fatos de sua vida já na adolescência, no qual apenas comenta o que aconteceu à irmã após a última cena em que ele tenta se matar para impedir a concretização do casamento: Muita coisa se passou desde aquele dia do casamento de Isidora. E tudo foi como o desenrolar de acontecimentos que hoje vejo com a maior naturalidade. Quero fixar-me neles, e não consigo. Mas, para que esta história siga o seu caminho, preciso se faz que diga que Isidora morreu de parto do primeiro filho. Isto se deu quando eu estava no interior de alfenas e a notícia que poderia ter arrasado o menino pegajento, foi para ele um fato como os outros. (REGO, 1993, p. 65).

A mãe, que despertava o pavor no menino, é, assim como a irmã, simplesmente eliminada da história com a morte: “quando voltei para as férias já a minha mãe tinha morrido” (REGO, 1993, p. 77), e mais uma vez, sem expor detalhes ou mostrar qualquer tipo de abalo pela perda, dá prosseguimento à história.

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Noêmia, apesar de ser caracterizada como uma mulher sensual e provocativa, que aparentemente desdenha das coisas do amor, se volta contra a família para viver um amor proibido. Essa relação conturbada e sem futuro, traz consequências tristes para sua vida, como um aborto que quase a leva à morte. No entanto, passados esses acontecimentos drásticos, a personagem volta a apresentar o comportamento volúvel e despreocupado, como se os transtornos por que passou não tivessem tido maiores implicações. A respeito de Eurídice, personagem que dá nome ao romance, o narrador revela muito pouco de sua personalidade, insinua apenas que ela tem atitudes ambíguas, as quais chegam a despertar suspeitas nos outros personagens sobre seu caráter. Isso ocorre, por exemplo, nos episódios que se referem à morte de Faria, seu namorado. Quando sabe da notícia da invasão do Palácio da Guanabara, a moça se mostra aflita, preocupada com o desfecho da batalha onde está o homem amado. Ao saber que a invasão havia sido planejada com antecedência, o comportamento de Eurídice muda, ao invés de demonstrar tristeza, ela sente raiva de Faria, por tê-la deixado sozinha e desonrada, uma vez que entre os dois se consumou a relação sexual. Pouco tempo após a morte do jovem integralista, a personagem aparenta já ter esquecido o rapaz, voltando a demonstrar alegria em casa e revelando interesse por Júlio. Noêmia não saíra do quarto, mas Eurídice quando soube da ausência do amigo, começou a chorar [...]. Eurídice não parava, a andar de um lado para outro da sala. [...] Eurídice apareceu e tive força para me conter. Ela, porém, mostrava-se como que possuída de uma irritação que me alarmou. A casa retornara ao silencio, e todos haviam voltado para os seus cômodos. Eurídice agora estava a sós comigo e teve a franqueza de me confessar tudo que lhe ia na alma. Faria se portara mal com ela. Devia-lhe ter falado daquela revolução. E vendo a carta que estava em cima da mesa, leu-a, calma, para me dizer: – Estou desgraçada. Não vi lágrimas nos olhos de Eurídice. Descobri uma raiva desesperada no seu rosto sério. (REGO, 1993, p. 127).

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Passado algum tempo após a morte do jovem, o narrador revela a sua desconfiança com a mudança no comportamento da personagem: Encontrei Eurídice como se nada lhe tivesse acontecido. Eurídice e Noêmia sorriam, não sei de quê. Depois Jaime saiu; não voltaria para o almoço, pois iria ao futebol muito cedo. E sem a presença do filho, d. Gloria sentia-se livre para falar. E o seu assunto continuava a ser o rapaz morto, o pai doloroso [de Faria], e o destino que cada um carregava. [...] Eurídice, porém, me olhava, com olhos que nunca tivera. [...] Descobrira nos seus olhos manhosos que ela alguma coisa tinha para me dizer. No entanto, me defendia de Eurídice. Qualquer coisa me dizia que devia fugir, que procurasse tudo para me livrar do encantamento. (REGO, 1993, p. 136).

Álvaro Lins também reconheceu a fragilidade da construção psicológica em Eurídice, mesmo a obra tendo sido apoiada em algum tipo de estudo científico, identificando nela os estudos de Freud sobre o inconsciente. Todavia, o problema do romance não estaria propriamente na alteração de caminhos e na falta de experiência e recursos de José Lins em tratar com tema psicológico, mas, no que o jornalista identifica como “Arte Literária”. Nessa categoria estaria a verdadeira fraqueza do escritor paraibano. Mas, afinal, o que seria para Álvaro Lins a “Arte literária”? “Arte literária” seria a qualidade de articulação dos elementos propriamente textuais ou estéticos para a construção de uma narrativa uniforme, na qual forma e fundo se relacionam. Para verificar essa qualidade no romance Eurídice, o crítico avaliou o modo como foram explorados aspectos tais como ambiente, personagens, verossimilhança e estilo (linguagem). O primeiro ponto negativo da obra estaria na forma como o ambiente carioca foi retratado, de modo que se teria a impressão de que aquela poderia ser qualquer outra cidade brasileira: Não é que o sr. José Lins do Rego tenha deformado ou caricaturado, com erros fatais, o ambiente carioca. Antes, o que me parece ser a primeira deficiência dessa obra de ficção é que ela não se situa firmemente em nenhum ambiente

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Germana Sal e s | Wanessa Paiva característico seja real ou imaginário, verdadeiro ou verossímil. (LINS, 1948, p. 1).

A impressão que temos é que o crítico se ressente da falta de relação dos personagens com a vida urbana carioca. Há na obra algumas menções a bairros, ruas, elementos conhecidos do Rio de Janeiro: como “a casa da Tijuca”, “a pensão do Catete”, a “Santa Tereza”, aos “bondes da Lapa”, e ainda informações sobre o contexto histórico, como a tensão política do governo Vargas, mas essas referências serviriam apenas como artifício para situar o romance em um espaço e um tempo demarcados, ou como afirmou Álvaro Lins: “As referências objetivas ao Rio de Janeiro são referências simplesmente de nomenclatura” (LINS, 1948, p. 1). Essa falha na caracterização do espaço teria prejudicado a construção dos personagens enquanto indivíduos representativos de um lugar. Não se perceberiam neles características que de fato os tornassem legítimos cariocas, nem um falar típico, nem atitudes ou comportamentos que marcariam os habitantes dessa cidade. A exceção seria o personagem Campos das Águas, talvez porque seja uma figura boêmia, que teve incorporada à sua personalidade os vícios e todas as artimanhas de quem vive na cidade grande. Nem pelas descrições diretas do romancista, que são poucas e generalizadas, nem pelos caracteres das personagens, nem pela linguagem indireta dos diálogos – será possível sentir em “Eurídice”, com firmeza e verossimilhança, o ambiente do Rio de Janeiro. Então, a consequência é que os seres desta obra de ficção apareciam com a fisionomia esbatida dos déracinés, oscilantes e vagos, como aqueles que não se valham de pés fincados na terra. Somente a personagem Campos das Águas, por um destes inexplicáveis mistérios da criação literária, como que desligado do romance e independente nos seus movimentos, consegue impor-se como figura humana. (LINS, 1948, p. 1).

Os outros personagens, de um modo geral, seriam inconsistentes e seus dramas pouco expressivos, não conseguindo revelar todo potencial de figuras humanas. Esta falha na constru-

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ção dos personagens teria ocorrido porque José Lins não teria se empenhado em uma análise psicológica mais profunda, além da falta de recursos estilísticos para a criação de personagens tão complexos – que demandariam um apurado trabalho de pesquisa –, diferentes das suas criações anteriores, tiradas da sua própria memória: Os personagens são esboços ou sombras, inacabados e incaracterísticos, soltos no espaço. Aliás, alguns deles seriam talvez positivas e autênticas criações se o romancista houvesse melhor e mais demoradamente trabalhado na composição de sua obra. Mas o sr. Lins do Rego cometeu o erro de escrever com a sua velocidade habitual um romance de análise, em que tudo deveria ser previsto e elaborado, lentamente, sobretudo se o livro não estava “feito” de há muito na sua memória e na sua imaginação. (LINS, 1948, p. 2).

Um romance que se queira psicológico exigiria, de acordo com a visão de Álvaro Lins, um amplo conhecimento de técnica narrativa que fosse além da simples observação dos fatos e da criação de situações de fácil solução. Ao enveredar pelos caminhos da introspecção, Lins do Rego não teria alcançado resultado positivo, de acordo com o crítico, por Eurídice não ter apresentado os elementos que marcaram sua produção anterior, como o desvelamento da personalidade dos personagens diretamente por meio das suas ações e das suas relações com ambiente exterior, e por não ter conseguido representar problemas de ordem interior, falhando na análise em profundidade da consciência. Em “Eurídice”, por exemplo, o sr. Lins do Rego quis revelar os sentimentos, as paixões e a vida interior das personagens pela direta análise psicológica, isto é, quis fazer a caracterização pela introspecção. Ora, o que me parece é que ele não teve êxito nessa tentativa. A sua maneira de conceber e realizar literariamente não se enquadra neste processo, que exige especialmente o senso da minúcia, a meticulosidade, a paciência, o olhar fixo na sucessão de camadas em direção vertical para baixo ou para cima. O instrumento

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Germana Sal e s | Wanessa Paiva de análise do sr. Lins do Rego não se mostra adequado a essa versatilidade de visão, mediante a qual o personagem se revela mais pela introspecção do que pelos atos. E isto explica, sem dúvida, o tom superficial de “Eurídice”, onde se encontram lançadas situações psicológicas que o autor nem aprofunda, nem resolve em termos de ficção. (LINS, 1948, p. 2).

Assim, Eurídice apresentaria defeitos de composição, já que alguns dos personagens vivem dramas que não contribuem para o desenvolvimento da narrativa principal, tornando essas histórias independentes entre si e trazendo como consequência para o romance a falta de unidade: “em vez de firme unidade interior da estrutura, o que assinala é a composição em quadros e episódios. Está dividido em duas partes, que só se articulam com bastante dificuldades.” (LINS, 1948, p. 2). Nesse aspecto, de certo modo, temos uma aproximação entre as opiniões de Álvaro Lins e Sérgio Milliet, uma vez que este já havia detectado essa falta de contato entre os dramas de alguns personagens e o drama de Júlio. Ainda referindo-se à construção superficial dos personagens, Álvaro Lins aborda a questão da verossimilhança dos comportamentos e dos sentimentos destes. Para o crítico, por não conseguir trabalhar em profundidade os dramas interiores, o romancista não teria conseguido também apresentar as verdadeiras motivações que fundamentaram as atitudes de tais personagens. Desse modo, Lins (1948, p. 2) afirma que: “Os sentimentos dos personagens [...] são destituídos de força e autenticidade, ora convencionais, ora arbitrários”. Nesse sentido, alguns comportamentos são questionados pela falta de justificativas mais plausíveis, apesar de serem essenciais para o desenvolvimento da narrativa: a obsessão de Júlio por Eurídice, que não se sabe em que momento surge; o ódio que a mãe sente pelo filho e a instabilidade dos sentimentos de Júlio por Isidora, ora amada, ora odiada. Por fim, chegamos ao que o crítico entende por estilo, o qual seria a adequação da linguagem ao assunto tratado. O primeiro problema relacionado à linguagem, detectado por Álvaro Lins, seria uma incoerência cometida pelo autor com relação ao personagem Campos das Águas que, segundo informa o próprio narrador, é um literato e por essa razão apresentava uma fala difícil, cheia de palavras desconhecidas, porém, isto não é

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reconhecido por Lins (1948, p. 2) na obra: “Ora, em todos os diálogos, a linguagem do Campo das Águas não tem nada de difícil; é uma linguagem simples, natural, trivial, apenas um pouco romântica”. Essa contradição seria outro resultado da limitação de recursos estilísticos de José Lins do Rego, que não consegue construir falas específicas para cada um de seus personagens: “não há nos romances do sr. Lins do Rego diferenças sensíveis entre a linguagem direta do autor e a linguagem indireta dos personagens.” (LINS, 1948, p. 2). Quanto ao estilo, Álvaro Lins ressalta a perda em Eurídice das qualidades do prosador José Lins enquanto possuidor de uma escrita particular e sedutora: O sr. José Lins do Rego não é estilisticamente um escritor correto, nem exemplar, do ponto de vista acadêmico. Possui, contudo, uma maneira de expressão original, personalíssima, vibrátil, colorida e sugestiva. No entanto quase tudo o que há de particular, de sedutor e pitoresco no seu estilo desapareceu em “Eurídice” no qual se sente a ausência de harmonia entre a linguagem e o assunto. (LINS, 1948, p. 2).

O crítico não deixa muito claro o que seria essa inadequação entre linguagem e assunto, contudo, podemos especular que tal problema passe principalmente pelo desencontro entre a personalidade artística do autor e as necessidades de um romance que se pretenda mais de análise. Em Eurídice é possível notar a mesma forma de escrita dos outros trabalhos de José Lins do Rego, especialmente de Menino de Engenho, ambos caracterizados por uma escrita simples, sem rodeios, com o uso do discurso direto em diálogos curtos. Mesmo na utilização de monólogos interiores pelos narradores-personagens de ambos os romances, há diferenças em sua realização, uma vez que em Menino de Engenho a reflexão do narrador emerge do seu contato com o mundo, ou seja, no que identificaria o crítico como um movimento horizontal das ações; já em Eurídice o alheamento da realidade pelo protagonista demandaria então a construção dos monólogos em um movimento “vertical”, “para baixo e para cima”, segundo os termos de Álvaro Lins, evidenciando esse voltar-se sobre si mesmo e explicitando a complexidade do eu. No entanto, tal efeito, para o crítico, não teria sido alcançado, já que o estilo de escrita do autor não propi-

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ciaria uma abordagem mais profunda da psicologia do personagem. A despeito das limitações apontadas, Álvaro Lins reconhece o sucesso do romance entre o público leitor, embora assevere que esse sucesso é fruto justamente das limitações da obra: Sabe-se, aliás, que está obtendo um extraordinário sucesso, premiado, vendido aos milhares, lido e festejado no seio do público. [...] E talvez esteja obtendo no público o sucesso das próprias insuficiências: é um livro fácil, superficial, sentimental, sem a originalidade que perturba e sem os problemas que fazem pensar. (1948, p. 2).

Em sua afirmação, Álvaro Lins desautoriza o público como instância legitimadora do cânone, mesmo que os próprios escritores estejam entre o grupo de leitores. Nesse sentido, percebemos a discordância entre o juízo da crítica e o gosto do leitor, com o primeiro requerendo para a si a autoridade de legitimar ou não o valor da obra. Nesse posicionamento do crítico podemos entrever os esforços da crítica em tentar se autonomizar tanto em relação aos escritores e ao público quanto a critérios extraliterários de avaliação. Lembremos que era comum a prática de crítica veiculada nos jornais ser exercida por escritores enquanto mais uma atividade ligada à sua convivência com a escrita. Na década de 1940, já ocorre uma movimentação no sentido de profissionalização da crítica, não necessariamente atrelada a uma formação acadêmica, mas já fechada a atividades paralelas. Brito Broca, Sérgio Milliet e Álvaro Lins demonstram em suas leituras de Eurídice, apesar das diferenças de extensão e profundidade de suas avaliações, o empenho de se afastar da mera opinião pessoal ou dos jogos políticos que influenciavam essa atividade por meio de simpatias e desavenças partidárias. Brito Broca e Sérgio Milliet apoiam suas interpretações em conceitos advindos da teoria psicanalítica. Já Álvaro Lins, apesar de também fazer referências a esses conceitos, concentra sua leitura em elementos próprios ao texto literário, tentando estabelecer um método de análise a partir da relação que se estabelece entre os conceitos de forma e fundo. Tendo em vista essas três avaliações do romance podemos distinguir dois pontos a partir dos quais se realiza a valora-

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ção dessa obra: o valor positivo se liga à tentativa de José Lins do Rego em aventurar-se pelos caminhos da introspecção, sendo Brito Broca um entusiasta da obra; o valor negativo se manifesta nas leituras de Sérgio Milliet e Álvaro Lins – o primeiro por ver na obra uma insuficiente construção psicológica, que se reflete na construção dos elementos do próprio romance, sobretudo na caracterização dos personagens, e o segundo por considerar a obra mal realizada do ponto de vista propriamente estético, já que o autor não disporia, pelo seu próprio temperamento de escritor de “costumes”, dos recursos estilísticos para construir uma narrativa de cunho psicológico. Percebemos, então, uma movimentação dos críticos em apontar uma alteração de tendência temática na produção de José Lins do Rego. O título do texto de Brito Broca, “A sedução de um tema”, já nos insinua que aquele narrador da vida nordestina, dos engenhos, do povo pobre do eito, de cangaceiros quase míticos, teria se deixado seduzir por novas paragens, afastando-se dos elementos regionais e sociais que figuravam com destaque em sua produção de 30. No entanto, verificamos que essa tendência de contornar o regional, não ficou restrita ao romancista paraibano. A crítica, ao reavaliar as obras da década anterior, procurou destacar aspectos que fossem além das nomenclaturas “regional”, “social”, em favor de problemáticas que entendia ser mais válidas para compreender o homem em suas dimensões universais.

4.2 Rachel de Queiroz: para além da seca, uma compreensão do humano O lançamento, em 1948, de um volume que reunia três romances de Rachel de Queiroz publicados inicialmente na década de 1930 (O quinze, João Miguel e Caminho de Pedras), e ainda o lançamento de um livro de crônicas inéditas (A donzela e Moura torta) propiciou a releitura da obra de Rachel de Queiroz pela crítica literária nos anos 1940. No suplemento Arte Literatura circularam dois textos que dão conta dessa reavaliação da produção ficcional da escritora, Rachel de Queiroz, de Sérgio Milliet e Três Romances, de Sérgio Buarque de Holanda16, nos quais ainda 16

Historiador, jornalista e crítico literário, foi ainda diretor do Museu Paulista e professor na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (USP).

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se insere além dos títulos já mencionados, o romance As três Marias. Seguindo a tendência geral da crítica de minimizar a presença de elementos regionais e sociais, esses dois textos não se furtam a tal esforço, buscando deslocar a obra da autora para outra matriz interpretativa. No texto de Sérgio Milliet verifica-se que sua leitura leva em consideração o desenvolvimento da obra da autora na medida em que são aprimoradas suas qualidades estilísticas. O crítico procurou ressaltar os aspectos que mais lhe chamaram atenção na construção de cada um dos romances. Ao comentar sobre o romance de estreia, O Quinze, Sérgio Milliet ressaltou a habilidade da romancista em não cair no lugar-comum ao tratar de temas explorados continuamente no repertório de nossa literatura, como o da seca. Para ele, a autora conseguiu construir uma narrativa contundente e realista, mostrando os dramas e sofrimentos dos personagens, os quais se veem em meio a conflitos de várias ordens, coletivas ou individuais, sem, contudo, apelar para o sentimentalismo potencial que essas situações podem ter sobre os leitores. Essa qualidade seria resultado da sobriedade de sua escrita, que seleciona apenas os elementos essenciais para a compreensão de uma realidade, não fazendo dela um discurso para atender fins que não fossem os literários. O tema de “O Quinze” foi explorado por quase todos os romancistas do nordeste, e também pelo Sr. Jorge Amado, na Bahia, mas nenhum deles, parece-me, foi tão contundente quanto Rachel de Queiroz na expressão da tragédia, porque nenhum foi tão puro, nenhum se mostrou mais realista. E nenhum soube evitar, como essa escritora, a grandiloquência a que o assunto impele naturalmente. Rachel de Queiroz não só obvia ao defeito, mas ainda consegue manter-se num ponto de equilíbrio e densidade que nada tem de frio, de excessivamente objetivo, de não participante. Sua simpatia pelos seus heróis é visível e no entanto ela não cai nunca no sentimentalismo fácil, não tenta jamais tirar partido de efeitos retóricos. A narrativa aproveita apenas os fatos característicos essenciais e os dramas são somente sugeridos, com uma intuição da força expressiva da reticência por certo espantoso, na estreante de então. (MILLIET, 1948, p. 1).

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Em João Miguel, Sérgio Milliet identifica uma nova característica do estilo da autora, qual seja, o trabalho com a temática psicológica, diferenciando a construção daquela obra do romance O Quinze. Em “João Miguel”, que se apresenta mais como novela, conto grande, do que como romance, tem-se, no assunto mais original, outra face do talento de Rachel de Queiroz. O aspecto sociológico passa para um plano secundário. O que importa é a análise psicológica e, primeiramente, a fixação de alguns tipos: Santa, Filó, o carcereiro Doca, o milagreiro, que evoluem em torno da figura, xilogravada com muita decisão e felicidade, de João Miguel. (MILLIET, 1948, p. 1).

Neste sentido, podemos entender que em O Quinze não há um personagem que movimente a narrativa. Essa função é desempenhada pelo elemento natural, a seca, que faz com que os personagens, diante de situações hostis, movimentem-se em busca de soluções para os seus problemas. Já em João Miguel, são as ações do personagem principal que levariam ao desenvolvimento da narrativa. Os tipos sociais identificados no romance têm sua existência a partir da relação com o personagem principal, João Miguel. Então, é nessa mudança de foco, do ambiente para o indivíduo, que se dá o aprofundamento da análise psicológica, já que nesse romance as relações se dão do contato dos homens entre si e consigo mesmos. A própria alteração do espaço, de um romance para o outro, propicia esse voltar sobre si, pois o ambiente da prisão impossibilita o contato direto do indivíduo com o mundo exterior, restando ao personagem procurar em si mesmo as respostas para questões que lhe perturbam, a exemplo do que ocorre quando o protagonista se questiona se é ou não um assassino, uma vez que antes do crime que lhe levou à cadeia, não era visto e nem se via como uma pessoa que representasse perigo para a sociedade: João Miguel voltou então ao seu canto, ao canto onde passara a noite, acocorado. Amparou nas mãos a cabeça vazia, vazia... com esforço, como quem recorda uma história de anos, procurava rememorar a tragédia da vés-

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Germana Sal e s | Wanessa Paiva pera, tentando reconstituir o início, o motivo da questão. Mas rebelde, o pensamento lhe fugia, solicitado por qualquer vago ruído que viesse de fora. E então João Miguel sentia, como um remorso, a vergonha de sua indiferença. Quer dizer que a gente mata um homem, vira criminoso – criminoso! – e não fica diferente, sente a cabeça no mesmo lugar, fica como o mesmo coração? (QUEIROZ, 2004b, p. 18).

O crítico reitera seu juízo positivo sobre a escrita de Rachel de Queiroz naquilo que ele nomeia de “bom gosto”, um trabalho de apuramento da linguagem. Esse apuro se refletiria em um cuidado formal, o qual não descamba, entretanto, para o mero formalismo e não descaracteriza o “fundo humano” presente na obra da escritora. Pelo contrário, essa consciência do trabalho artístico faria com que a produção da autora se diferenciasse de muitos dos romances de 30, que em nome de preocupações sociais produziam discursos político-partidários. Às qualidades observadas em “O Quinze” acrescente-se agora outra que aos poucos irá brilhar mais fortemente no estilo da escritora: o bom gosto. Nunca, porém, esse bom gosto dominará a personalidade de Rachel de Queiroz a ponto de fazer de sua arte um requintado jogo de palavras. O fundo humano há de sempre constituir um contrapeso suficiente para mantê-la viva e forte. Esse bom gosto terá, entretanto, como resultado, impedir que o pitoresco ou a ideologia (como em tantos outros romances dos escritores da geração de 30) assuma uma desmedida importância e prejudique o valor literário do conjunto (MILLIET, 1948, p. 1).

Em Caminho de Pedras, o crítico observa com mais nitidez o afastamento de Rachel de Queiroz, enquanto artista consciente do literário, dos jogos políticos que marcaram a produção da década de 1930, considerando que esse romance traz a movimentação de intelectuais, operários e trabalhadores em geral para a criação de uma célula comunista em Fortaleza, apenas como pano de fundo para o desenvolvimento do drama amoro-

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so vivido por Roberto, Noemi e João Jacques, este sim o núcleo do enredo do romance. A observação de Sérgio Milliet é confirmada pela leitura da obra, no decorrer do qual não se presencia a sobreposição das questões políticas aos dramas dos personagens. Sérgio Milliet aproveita seu artigo para elogiar Rachel de Queiroz por ter conseguido se estabilizar enquanto escritora profissional, já que vive do seu trabalho de escrita. O crítico, além dos romances, refere-se a outros trabalhos da autora, como a sua colaboração em alguns jornais por meio da publicação de crônicas, contos e resenhas críticas. Ele relaciona o aperfeiçoamento do estilo de escrita da autora ao fato dela ter se dedicado assiduamente à sua produção tendo sempre consciência do seu ofício. Essa qualidade teria sido demonstrada desde seu primeiro romance, quando todos se surpreenderam com sua escrita original: A estreia de Rachel de Queiroz, em 1930, com o “Quinze” foi uma estreia de mestre. Recordo de Mário de Andrade e Antônio de Alcântara Machado desfazendo-se em entusiasmos diante daquela “pequena obra-prima”. Eu gostava, mas desconfiava. Há tantos autores de um livro só! Quem não escreve no início da vida literária uma biografia aceitável? Quem não tem um caso verídico para contar e que, já pelo fato de ser verídico e ingenuamente puro, comove os espíritos cansados de muito requinte e de muita literatice? Mas “João Miguel” me convenceu. “Caminho de Pedras” era a escritora amadurecida. “Três Marias” revelava uma riqueza de sensibilidade pouco comum. Agora “A donzela e a moura torta”, como remate, comprova as qualidades excepcionais da estilista, da profissional das letras. (MILLIET, 1948, p. 2).

Nesse trecho, observamos que a interpretação do crítico é a de que há uma evolução na obra da escritora a cada nova realização. Sendo que em seu último romance da década, a romancista teria demonstrado uma “sensibilidade pouco comum” na construção da narrativa. Sérgio Milliet não dá muito detalhes do que seja essa sensibilidade, mas entendemos aqui como algo que se relaciona ao modo de apresentação da linguagem, pois,

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mais do que nos outros romances, em As três Marias se revelam os sentimentos mais íntimos das personagens. Fazendo uma análise mais geral da obra da escritora, Sérgio Milliet vê duas tendências que guiam a construção dos romances: o realismo objetivo e o subjetivismo poético. A primeira estaria ligada à capacidade de retratar com minúcias os elementos do ambiente em que se passam as narrativas; a segunda relaciona-se ao trabalho com as questões humanas propriamente ditas, isto é, no desvendar das relações entre os homens e na busca pela compreensão de si mesmo: Sinto em Rachel de Queiroz uma luta permanente entre o realismo objetivo (que é nela auxiliado por um dom de observação muito agudo e uma facilidade extraordinária de descobrir os traços essenciais das situações e das paisagens) e a tendência para o subjetivismo poético, a divagação participante, o amor ao homem como homem, com suas solidões, seus sonhos, suas decepções, suas lutas. (MILLIET, 1948, p. 1).

A confluência das duas tendências estaria presente, em certa medida, no romance As Três Marias, talvez porque nele o ambiente se apresente mais fluido, não atuando, pelo menos não explicitamente, sobre os personagens de forma opressora, permitindo assim uma maior expressão dos seus anseios particulares diante das pressões e dúvidas da vida, por meio de uma linguagem delicada e emotiva, que refletiria poeticamente a subjetividade. No romance em questão, tais características podem ser decorrentes da alteração do foco narrativo da terceira para a primeira pessoa, haja vista que o narrador-personagem, Guta, vivencia de modo muito próximo e intenso os drama daqueles que estão ao seu redor, a partir dos quais expõe suas próprias inquietações. Constata-se essa relação entre Guta e as demais personagens, por exemplo, no episódio do casamento de Glória, que envolve as três Marias do título, quando a noiva, após a cerimônia despede-se das amigas: Maria José, que enxugava os olhos, perguntou-lhe ao ouvido se não tinha medo. Glória sorriu, um sorriso de quem já sabe tudo e tem pena da ingenuidade dos outros. [...]

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O Romance em debate – Não sei como Glória não tem medo... Eu ri. Pensava que todo o mundo era como ela, que nunca deixou um namorado lhe pegar na mão, que nem encarava a perspectiva de casar um dia, como medo de ficar a sós com um homem? – Pode dizer o que quiser, Guta, mas garanto que se fosse você não estava com aquela calma...Parece até que ela nunca fez outra coisa... Eu não me lembrei de que cogitara nisto mesmo, e pensava agora que Glória só se mostrava assim sossegada por que não tem a nossa inquieta imaginação. Contenta-se com o papel que lhe cai por sorte, e trata apenas de se sair bem. Até então fora a órfã, sozinha no meio do mundo, com o seu violino apenas para companheiro. Hoje porém era a esposa, rainha e amante, toda submissão e amor. Para que mexer no Passado? A órfã não cabia mais nos quimonos de seda florada, não poderia calçar aquelas chinelinhas de arminho que nos tinham seduzido tanto... – Por que motivo Glória haveria de ter medo? Não gosta dele? Não o escolheu? Não vivia se beijando com ele pelos cantos? Maria José aborreceu-se, sentindo-se mal compreendida, ou antes a irritou a minha má-fé: – Não é isso que eu quero dizer. Agora tudo é diferente. Antes, todo o mundo tomava conta deles, não havia perigo de nada. Hoje... Se fosse eu, estava me acabando de medo e vergonha. E você também! Encolhi os ombros, sorri: – Eu, medo? Se eu tivesse escolhido e quisesse, como é que haveria de ter medo? (QUEIROZ, 2000, p. 101-102).

Guta inicialmente parece bem resolvida quando se trata da sua vida amorosa, no entanto, quando se vê em uma situação em que a possibilidade da concretização do caso amoroso é real, ela se mostra reticente e, por fim, desiludida, uma vez que nada aconteceu como idealizara: Mas a verdade realmente, é que eu tinha medo. Provocara tudo aquilo e estava agora de coração apavorado, de repente enojada e querendo fugir.

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Germana Sal e s | Wanessa Paiva O automóvel corria, a chuva parece que corria na nossa frente, o chofer não tirava a vista do leque de claridade que o limpador do vidro desenhava no pára-brisa e eu me encolhia de medo, e pensava naquele outro automóvel, no dia do casamento de Glória, e nas palavras de Maria José. Raul me apertava nos braços, falando baixinho, pedindo coisas. Eu ia retirando as mãos, torcendo o rosto aos beijos, afundando-me na almofada, fugindo para o canto mais longe do assento. Ele me decepcionava horrivelmente. Só queria aquilo, aquelas intimidades violentas, sempre de mãos estendidas, sempre ávido. Onde as maravilhosas coisas que seu olhar prometia tanto? [...] Onde as inebriantes palavras que eu esperava, os contos do mundo dos sonhos, a divina embriaguez, abolindo a consciência de tudo, o amor diferente, as carícias sem forma nem peso? (QUEIROZ, 2000, p. 103).

Além da construção do romance em particular, esse diálogo entre as duas tendências teria possibilitado uma maior liberdade de criação a Rachel de Queiroz, que não teria aderido àquilo que o crítico chama de “esquematismos” fáceis da década de 1930; ou seja, ao se preocupar em construir uma imagem mais humana e complexa das figuras que habitam seu mundo ficcional, a escritora teria evitado limitar-se ao mero registro ou ao discurso sobre uma determinada realidade. Uma conciliação das duas tendências surge por vezes em certas crônicas, como surge, até certo ponto, em “Três Marias”. O efeito mais sério, porém, dessa luta tem sido livrá-la dos esquematismos fáceis e tentadores, da subordinação de sua arte às injunções do instante político. Mesmo em “Caminho de pedras”, o mais “interessado” de seus romances, a autora evita o terrível escolho da linha de interpretação “necessária”. Ela é antes de mais nada humana e essa humanidade ela não a sacrifica a nenhuma doutrina. Seus heróis, embora produtos do meio em que vivem, e da classe, conservam sua liberdade de ação e de pensamento, apresentando-se ao nosso juízo não como bonecos de engonço que

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O Romance em debate o romancista manobra à vontade, para provar esta ou aquela tese, nem como autômatos movidos por um determinismo inexorável, mas como homens de carne e osso, capazes “até” de idealismos. (MILLIET, 1948, p. 2).

Considerando a interpretação de Sérgio Milliet, se a escritora optasse somente pelo realismo objetivo, O Quinze seria apenas mais um romance que fala da seca e da pobreza; João Miguel, de violência; Caminho de Pedras, de política e As três Marias talvez nem existisse. É nessa mesma linha de pensamento, de retirar a obra de Rachel de Queiroz do conjunto dos romances sociais/regionalistas da década de 1930, que Sérgio Buarque de Holanda constrói sua interpretação. Buarque faz uma avaliação severa da produção desse período, a qual seria marcada pela recorrência de temas de apelo popular, que atrairiam a atenção mais pelo tom vibrante e sedutor dos enredos do que propriamente pela construção enquanto objeto literário. Por mais de uma ocasião ocorreu-me denunciar o apego quase sistemático desses autores a determinados temas, cenários, ou problemas, que prometendo efeitos brilhantes e coloridos, triunfam com facilidade sobre virtudes literárias mais ponderáveis. Seduzindo à maneira de uma reportagem feliz, muitos desses romances nos deixam insatisfeitos. E que, embora excitantes para a imaginação, faltam-lhes justamente as qualidades severas e exigentes que se apuram num tirocínio atento e muitas vezes penoso. (HOLANDA, 1948, p. 1).

O crítico questiona a aplicação generalizante dessa nomenclatura às obras produzidas no período, simplesmente por apresentarem elementos característicos de uma região. Feita essa ressalva, Holanda (1948) separa dois autores cujas obras não seriam comportadas por tal definição, Graciliano Ramos e Rachel de Queiroz: O defeito dessa tentativa de caracterização do tipo de romance regional que tantos adeptos fez em toda uma geração de escritores, e em particu-

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Germana Sal e s | Wanessa Paiva lar de escritores nordestinos, está em que leva a presumirmos suas obras tomadas em bloco, uma pureza genérica, na realidade inexistente. Os traços que parecem distinguir a maioria delas não se encontram, por exemplo, e sobretudo, nos livros de Graciliano Ramos. E não se encontram nos de Rachel de Queiroz. (1948, p. 1).

Detendo-se na produção da escritora, o estudioso enfatiza o equívoco no emprego da categoria “regional” para direcionar a leitura de seus romances: “Lendo agora, de uma assentada, os três primeiros romances desta escritora, cearense como José de Alencar, sente-se a que ponto é arbitrário, para o seu caso, o epíteto ‘regional”’ (HOLANDA, 1948, p. 1). A partir desta afirmação, Sérgio Buarque de Holanda passa a demonstrar as razões pelas quais ela se distinguiria dessa categorização. O crítico inicia seu argumento afirmando que O Quinze se aproxima, no geral, da produção de 30 por enfatizar as problemáticas sociais relacionadas ao fenômeno da seca. Todavia, em seus romances subsequentes, Rachel de Queiroz prioriza o trabalho com o elemento humano, caminhando para a consideração das condições universais da existência. Se a exploração do motivo da seca domina seu livro de estreia, [...] o certo é que nos seus outros romances tais preocupações deixam de ser obsessivas ou exclusivistas. Os dramas, as paixões, as personagens que neles se retratam, são humanos e universais, antes de serem cearenses (HOLANDA, 1948, p. 1).

No entanto, mesmo em seu primeiro romance, a narrativa se diferenciaria das outras produções, porque o ambiente ali já aparece subordinado aos dramas humanos. Com essa visão, Sérgio Buarque diferencia sua avaliação da de Sérgio Milliet, apesar de ambos identificarem na obra de Rachel de Queiroz um tratamento diferente das temáticas sociais com relação ao restante da produção do período: Milliet ainda entende que, em O Quinze, a atenção dada à seca e às consequências que ela traz para vida dos personagens ainda se relaciona a uma preocupação eminentemente sociológica; Holanda (1948), porém, vê no uso do elemento social, que retrata um ambiente específico, um recurso particular de construção do universo ficcional com o objetivo

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de dar unidade ou ordem ao todo narrativo: “A seca não é aqui a tela, é, muito mais a moldura que a enquadra, ou o elemento de que o autor se utiliza para definir, condensar, organizar seu universo, reduzi-lo a tamanho maneável, dar-lhe forma e raias nítidas” (1948, p. 1). Assim, n’O Quinze a seca aparece como o elemento organizador do enredo, já que será o responsável por relacionar entre si os dramas dos personagens principais, Conceição, Vicente e Chico Bento; esse recurso também se faz presente em João Miguel, no qual o espaço da cadeia também aglutina personagens, impedindo-os de se dispersarem em suas histórias individuais; já em Caminho de Pedras e As três Marias o uso da moldura vai sendo diluído até praticamente desaparecer. No Quinze, a seca, em João Miguel, a prisão, obedecem à mesma função ordenadora e condensadora. No terceiro romance – Caminho de Pedras –, sem dúvida o mais complexo de todos, a moldura é aparentemente menos tirânica. Ela não se insinua sobre os homens com a força de uma fatalidade inelutável. [...] Mais tarde Rachel de Queiroz procurará libertar-se de semelhante recurso. Em Três Marias, aliás o mais desmanchado de seus romances, e que não pertence a este volume, a moldura quase desaparece (HOLANDA, 1948, p. 1).

Nos dois últimos romances, os personagens têm uma maior liberdade de circulação em diversos ambientes, não sendo necessário mais se restringirem a um espaço ou a uma situação social como modo de seus dramas se articularem. No entanto, se o ambiente ou o espaço não são mais delimitáveis, tangíveis, os romances ainda são perpassados por um sentido de opressão. A condição de opressão deixa de se expressar pelo espaço físico, passando se apresentar na forma mais abstrata de normas que regem a vida dos personagens, tanto a partir do exterior quanto de sua interiorização. Essa construção poderia ser constatada, de acordo com Sérgio Buarque, pela personagem Guta, de As três Marias, a qual, ao sair do colégio – onde tinha seu comportamento tolhido pelo conjunto de normas cristãs e patriarcais impostas à mulher –, procura libertar-se dessas amarras fazendo escolhas que supe-

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ram os estereótipos femininos, de filha, mãe e esposa. No entanto, suas opções esbarram o tempo todo naquelas regras, seja por meio das opiniões de Maria José, que condena seu comportamento, seja ainda pela felicidade de Glória, que “contenta-se com o papel que lhe cai por sorte, e trata apenas de se sair bem” (QUEIROZ, 2000, p. 101-102), ou ainda pelas frustrações de suas próprias experiências. Assim, como castigo por ter se rebelado contra algo que é maior do que ela, Guta volta para a casa da madrasta, onde terá que mais uma vez se submeter à vida que repudiava: “E à última página vamos deixar Guta, a mais liberta das Marias, de regresso para casa; a casa da madrasta, espécie de duplicata do colégio, para de novo subordinar-se, e como de castigo, ao império de sino, das rezas, da cama feita” (HOLANDA, 1948, p. 1). Nesse sentido, Holanda observa nessa construção do espaço, um recurso que vai além da exigência literária, atendendo ainda a outra finalidade, qual seja, a de expressar uma compreensão da realidade, a partir da qual Rachel de Queiroz intuiria o aprisionamento dos indivíduos como próprio à condição humana. A necessidade de enquadrar a vida em contornos fixos, que serviriam para condicionar e limitar a trama da narrativa corresponda menos a um recurso artístico do que a uma visão particular da realidade. Nela se reflete um sentimento vivo da estreiteza e desesperança do mundo presente, tudo aqui está medido, murado, compassado no espaço e no tempo, seguindo leis talvez caprichosas, mas ainda assim invencíveis. Somos prisioneiros eternos e se procurarmos afirmar nossa liberdade é por meio de vãos expedientes (HOLANDA, 1948, p. 1).

Ao ignorarem essa condição inerente de prisioneiros, os personagens têm a ilusão de que vivem em um mundo ordenado e harmonioso, no qual todas as coisas e pessoas estão em seus determinados lugares. Contudo, alguns personagens da obra de Rachel de Queiroz, ao se depararem com uma situação que quebra a rotina a que estavam habituados, passam a questionar-se sobre a ordem do mundo e sobre os papéis que lhe são estipulados, percebendo-os muito mais arbitrários do que expressivos de suas próprias vontades.

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O Romance em debate Tais expedientes têm, todavia, a missão de tornar a terra habitável e dar-nos a ilusão de que nos movemos por nossa conta dentro do pequenino espaço que nos foi dedicado. Só os mais atilados ou mais experimentados se capacitam de que esse mundo diurno e aparentemente sem mistério, o mundo de ruas barulhentas, das caixas registradoras, dos balcões, das secretarias, e também o das vidas isoladas e particulares – a do caixeirinho que mora numa casa modesta, sua, com cama e rede, a do carteiro de cara magra, que procura um tostão entre os níqueis, e da moça pintada, de vestido de babados, é afinal um mundo de mentira. O universo real é caótico, este fica para além das muralhas das convenções e conveniências, que os homens, em muitos casos, vêm edificando através de milênios de labor anônimo. (HOLANDA, 1948, p. 1).

Dos personagens que se adéquam às normas e papéis sociais, tendo maior ou menor grau de ilusão da naturalidade de seus lugares, destacam-se Vicente, de O Quinze, com o seu sentido de obrigação em cuidar da terra e das pessoas que vivem em sua fazenda; Zé Milagreiro, de João Miguel, que se mostra indiferente para com a sua vida e sua liberdade; João Jacques, de Caminho de Pedras, o qual se conforma ao papel familiar, desistindo de lutar por suas convicções políticas e, posteriormente, pela sua família; Maria da Glória e Maria José, de As Três Marias, sendo que a primeira vive na ilusão da felicidade do casamento como compensação pelas perdas do passado e a segunda, pelo apego aos códigos cristãos ensinados no colégio. Em contrapartida, há os personagens que problematizam a arbitrariedade dos seus lugares ou daqueles lugares a que eles se destinariam, mas estes acabam se encontrando com a frustração e a impossibilidade de uma verdadeira liberdade: João Miguel, ao se questionar sobre o que é ser um “criminoso” e o que o diferenciaria de um “inocente”; Conceição, de O Quinze, Noemi, de Caminhos de Pedras, e Guta de As três Marias, ao se desviarem da conduta considerada apropriada à mulher, são criticadas e marginalizadas pelos indivíduos que as cercam, passando, então, a indagar se suas escolhas são realmente as mais acertadas. Sérgio Buarque de Holanda entende que o conflito íntimo que se estabelece nos personagens após tomarem consciência de que a vida real é diferente da vivida os conduziria à fuga como

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forma de tentar contornar essa situação. Daí, o crítico identificar o que chama de “tema da partida”, recorrente em toda a obra da escritora. Nem todos, porém, toleram sem discutir essas máscaras de liberdade. A nostalgia da vida verdadeira e sem disfarce, isenta de códigos caprichosos, percorre ao contrário toda a obra de Rachel de Queiroz. De onde a importância que geralmente assume nos seus livros o que se poderia chamar o “tema da partida”. Há os que partem em busca de aventuras, há os que fogem da penúria e dos flagelos e também os que simplesmente se alijam da cena, como peças de jogo que devem ser retiradas em determinados momentos, para que a partida prossiga de acordo com as regras. (1948, p. 1).

Essa partida, entretanto, não os levaria a nenhuma resolução. Pelo contrário, a tentativa de fuga se mostra vã, o que só reafirmaria a sua condição de prisioneiro. A verdade é que uma sucessão de despedidas e fugas – fugas para a fantasia, na distância, na saudade, no amor – percorre todas as narrativas. Mas essas partidas terminam invariavelmente no naufrágio ou no sentimento de amarga e irremediável frustração. É inútil tentar superar nossa condição terrena de prisioneiros, já que toda rebeldia está condenada ao malogro. (HOLANDA, 1948, p. 1).

Nesse ponto podemos, mais uma vez, relacionar as duas interpretações da obra de Rachel de Queiroz. Se Sérgio Milliet, talvez no afã de desvincular a obra da autora de uma interpretação político-ideológica, realça a liberdade dos personagens, capazes de agir de acordo com suas próprias vontades, sem os subsídios de uma filiação partidária, Sérgio Buarque problematiza mais profundamente a questão da liberdade, pois na busca por ela os personagens ou aceitam sua condição de prisioneiros, conformando-se a papéis estabelecidos, gozando, desse modo, uma liberdade ilusória, ou, ao tentarem se libertar desses papéis, chegam à conclusão da impossibilidade de concretizar plenamente sua própria liberdade.

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Outro dado importante das duas leituras diz respeito ao destaque que se confere ao romance Caminho de Pedras dentro da obra ficcional de Rachel de Queiroz. Os dois críticos elogiam o “bom senso” da autora em neutralizar o teor político que poderia ser o principal aspecto dessa narrativa. É preciso ressaltar que este romance, na década de 1930, foi duramente atacado pelos críticos de direita, justamente por trazer à discussão um assunto considerado superado já no final dessa década, como as questões do cotidiano partidário. O seu companheiro de atividade literária, Graciliano Ramos, em uma leitura sobre esse romance, comentou sarcasticamente a repercussão negativa que a obra obteve com determinado grupo de leitores: Não sei como irão receber esse livro os figurões gordos que em 30 faziam salamaleques à autora. Por alguns sinais vejo que não estão satisfeitos. E com razão: Caminho de Pedras é uma história de gente magra, uma história onde há fome, trabalho excessivo, perseguições, cadeia, injustiças de toda a espécie, coisas que os cidadãos bem instalados na vida não toleram. Há ali tristeza demais, rostos amarelos, desânimos, incompreensões, desavenças. (1976c, p. 137-138).

Assim, verificamos que, na década de 1940, a alteração de importância de autores, críticos e tendências artísticas no cenário da produção literária nacional propiciou a reavaliação das obras sobre outros prismas. Os textos de Sérgio Milliet e Sérgio Buarque de Holanda dão a dimensão do fechamento para interpretações que priorizassem a orientação política, regional e social e da consolidação de outra postura crítica, na qual se elegeram critérios de valoração diferenciados: as leituras são direcionadas pela avaliação do uso dos elementos que compõem o texto (personagens, espaço e linguagem), a qual, por sua vez, conduz a leitura para a busca de um “sentido humano universal”.

4.3 Graciliano Ramos e a sua construção do Romance: o homem às voltas com o mundo e com a linguagem Assim como ocorreu com José Lins do Rego e Rachel de Queiroz, a crítica literária também se manifestou a respeito das obras de Graciliano Ramos após o aparecimento das obras com-

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pletas do autor, em 1947. Mais uma vez, o Arte literatura foi veículo dessa crítica, nele foram publicados três artigos: Visão geral de um ficcionista17 (partes I e II), de Álvaro Lins; Graciliano Ramos, o Cristo e o Grande inquisidor (I, II e III), de Wilson Martins; e No mundo de Graciliano Ramos, de Paulo Rónai18. Os dois primeiros textos já são clássicos dentro de sua fortuna crítica, ao passo que sobre o último não foram encontradas quaisquer referências nas coletâneas consultadas19. Em Visão geral de um ficcionista, Álvaro Lins procurou fazer uma leitura a partir da comparação entre as obras, com o fim de avaliar a evolução literária do autor. Para tanto, verificou o modo como os elementos de composição (ambiente, enredo, verossimilhança, personagens) foram empregados na narrativa (cf. LINS, 1976, p. 154). Em sua avaliação, Álvaro Lins parece eleger Angústia como a principal obra de Graciliano Ramos, pois nela estaria presente, em seu ápice de realização, aquilo que o autor identifica como a principal qualidade do escritor, que é o trabalho com a análise psicológica. Caetés e São Bernardo serão lidos em sua aproximação com a terceira obra do prosador. Sobre esta, Lins afirma: É o menos “social” dos seus romances, e o mais introspectivo, mais impregnado de subjetivismo, o mais voltado para a vida interior dos personagens, a despeito de alguns aspectos que dizem respeito à organização da sociedade. [...] o seu centro vital é o processo psicológico de um personagem, que vai da normalidade espiritual de um modesto burocrata até a exacerbação de um delírio de criminoso, cercado de problemas e sugestões de dramaticidade. Não obstante este centralizar da ação num só personagem, as situações humanas e literárias se desdobram de tal maneira que logo identificamos esta obra como um au Esse texto compõe o conjunto de artigos dedicados a Graciliano Ramos enfeixados sob o título “Valores e Misérias das Vidas Secas”, na coletânea Os mortos de sobrecasaca (1963), ali aparecendo como “Romances, novelas e contos: visão em bloco de uma obra de ficcionista”. 18 Húngaro de nascimento, Rónai veio para o Brasil buscando escapar das perseguições aos judeus. Atuou como crítico literário, professor e tradutor. 19 As coletâneas referidas são: Obras completas, da editora Record, cujos volumes trazem como posfácio alguns estudos críticos; o volume organizado por Sônia Brayner, da coleção Fortuna Crítica, dirigida por Afrânio Coutinho, e a edição comemorativa de Angústia pelos 75 anos de sua publicação. 17

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O Romance em debate têntico romance. [...] Angústia [...] desdobra-se em vários episódios, que circulam o drama principal, ou com ele se cruzam em múltiplas direções, de modo que a ação se processa em diversos planos, dando-lhes a extensão e amplitude de um romance. Ao lado de Luís da Silva, surgem Julião Tavares e a criada Vitória, que provocam rapidamente o nosso interesse como tipos humanos. (1976, p. 161).

Comparado a esse autêntico romance, o qual se movimenta não a partir de um ambiente, mas sim de um drama individual intenso que se irradia para a construção dos demais personagens, articulando-os a si e contribuindo para o seu desenvolvimento enquanto tipos humanos interessantes, Caetés não passaria de um “livro falhado e sem valor”, uma vez que se caracterizaria sempre pela “vulgaridade de expressão” e pela mediocridade com que foram trabalhados tema, ambiente e personagens: A vulgaridade do ambiente do romance – e todo ele se processa através de coisas reles, pequenas intrigas e conversinhas de uma cidade do interior – parece ter contaminado a própria arte do romancista, de modo que assunto e realização permanecem no mesmo plano medíocre. (LINS, 1976, p. 155).

O crítico não relaciona a limitação do espaço ao problema de realização. Este seria consequência do não aprofundamento dos dramas interiores dos personagens, o que começaria a ser superado em São Bernardo, que, segundo Álvaro Lins (1976), seria a primeira obra psicológica do autor: “O sr. Graciliano Ramos, ao criar e movimentar personagens como Paulo Honório e Madalena, parece ter encontrado, definitivamente, o seu plano de ficcionista: o do romance psicológico” (p. 157). Ele entende que a incursão pela vida íntima dos personagens seria uma forma de contrabalancear a limitação do mundo romanesco do qual o escritor retiraria matéria para seu trabalho ficcional. Se em Caetés, o universo da narrativa é reduzido a uma cidade do interior, seu enredo construído a partir de uma situação banal de adultério e seus personagens não indo além de seres comuns, sem atrativos, em São Bernardo o mundo ficcional seria ainda menor, uma vez

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que é ambientado em uma fazenda, onde se movimentam tipos insignificantes do ponto de vista social, começando pelo próprio personagem principal, Paulo Honório, homem rude e violento. Porém, a construção neste segundo romance, ao contrário do que foi feito em Caetés, se daria em um nível de profundidade psicológica. Desse modo, o assunto aparentemente mesquinho, dos dramas e vivência de Paulo Honório, motivados por sua ambição sem limites de tomar posse da fazenda São Bernardo, ganha dimensão por revelar toda a fragilidade de um homem insensível. A fazenda São Bernardo transfigura-se num autêntico microcosmo. As figuras apresentam humanidade, paixões, dramas, misérias, anseios de felicidade e quedas na irremediável desgraça. [...] O mundo romanesco de Sr. Graciliano Ramos é pobre, limitado, deficiente. O que transmite vitalidade e beleza artística aos seus romances não é o movimento exterior, mas a existência interior dos personagens. Os acontecimentos só têm significação pelos seus reflexos nas almas, nos caracteres, nos pensamentos. (LINS, 1976, p. 157).

A despeito de possuir uma construção psicológica superior a de Caetés, São Bernardo apresentaria um grande defeito, ainda de acordo com Álvaro Lins: a inverossimilhança entre a escrita correta e bem acabada do personagem-narrador e o seu nível de instrução. Paulo Honório, que teve seu aprendizado das letras na cadeia, que nunca lera um livro e detestava as leituras da esposa, não teria conhecimento de recursos de expressão suficientes para construir, através de suas memórias, uma narrativa tão densa quanto a que se configura em São Bernardo: “Uma novela de tanta densidade psicológica, elaborada com tantos requintes de arte literária, não suporta o artifício de ser apresentada como escrita por um personagem primário, rústico, grosseiro, ordinário, da espécie de Paulo Honório” (LINS, 1976, p. 158). Em Angústia, então, Álvaro Lins percebe a superação dos defeitos e o aprimoramento das qualidades dos dois primeiros livros do autor alagoano. Os problemas ligados à limitação do mundo romanesco foram contornados justamente pela constru-

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ção mais complexa do mundo particular de Luís da Silva, que se movimenta mais em sua subjetividade do que em um ambiente exterior específico. Assim, o espaço e o tempo são diluídos, permitindo que ele transite com maior liberdade por lugares e tempos variados, como se observa quando o personagem, diante de uma situação no presente, relembra um fato passado de sua vida, fazendo com que os fatos se entrecruzem, confundindo a sua própria percepção da realidade. Isso ocorre, por exemplo, no episódio em que Luís da Silva flagra o flerte entre sua noiva Marina e o detestável Julião Tavares. Ao perceber a malícia nos olhares dos dois, o protagonista é possuído pela fúria do ciúme, que o faz sentir vontade de estrangular o homem. Essa situação faz com ele rememore uma cena da sua infância, na qual uma cobra enrolara-se no pescoço do avô. Assim, os dois momentos se encontram e Luís da Silva sobrepõe a imagem do avô à figura de seu rival, tendo a impressão que Julião Tavares é quem está sendo estrangulado pela cobra. Ao chegar à Rua do Macena recebi um choque tremendo. Foi a decepção maior que já experimentei. À janela da minha casa, caído para fora, vermelho, papudo, Julião Tavares pregava os olhos em Marina, que da casa vizinha, se derretia para ele tão embebida que não percebeu a minha chegada. Empurrei a porta brutalmente, o coração estalando de raiva, e fiquei em pé diante de Julião Tavares, sentindo um desejo enorme de apertar-lhe as goelas. [...] Lembrei-me da fazenda de meu avô. As cobras se arrastavam no pátio. Eu juntava punhados de seixos miúdos que atirava nelas até matá-las. Às vezes a brincadeira se prolongava, mas afinal as cobras morriam e perto dos cadáveres ficavam montes de pedras. Certo dia uma cascavel se tinha enrolado no pescoço do velho Trajano, que dormia no banco do copiar. Eu olhava de longe aquele enfeite esquisito. A cascavel chocalhava, Trajano dançava no chão de terra batida e gritava: - “tira, tira, tira.”. [...] Estremeci. Os meus dedos contraíram-se, moveram-se para Julião Tavares. Com um salto eu poderia agarrá-lo.

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Germana Sal e s | Wanessa Paiva Pensei em seu Evaristo e na cobra enrolada no pescoço do velho Trajano. Parei no meio da sala, aterrado com a imagem medonha que me apareceu. O pescoço do homem estirava-se, os ossos afastavam-se, os beiços entreabriram-se, roxos, intumescidos, mostrando a língua escura e os dentinhos de rato (RAMOS, 1976a, p. 7274).

A verossimilhança entre o modo de narrar e a figura do narrador, que antes fora criticada em São Bernardo e Caetés, teria sido realizada plenamente em Angústia, no qual Luís da Silva corresponderia muito bem ao papel de narrador já que se apresenta como escritor profissional. Desse modo, não seria incompatível que tal escritor fosse o autor de um romance de construção psicológica tão tensa. Tal como já acontecera em Caetés e S. Bernardo, o romance Angústia está escrito na primeira pessoa, com o personagem principal como narrador. Mas enquanto João Valério, um incapaz absoluto, e Paulo Honório, um bandido rústico, não têm verossimilhança como imaginários autores daqueles dois primeiros livros, Luís da Silva, no terceiro, em nada se choca com as boas regras do jogo literário nessa debatida e complexa questão do personagem narrador. É certo que ele se classifica, logo na primeira página, como um pobre diabo, mas toda a ação do romance, ao contrário do que se observa quanto a João Valério e Paulo Honório, demonstra que existe adequação entre ele e a história que nos oferece o protagonista. (LINS, 1976, p. 161).

Ao comparar Vidas Secas aos demais livros, o crítico aponta uma diferença importante que tem consequências na forma com que se trabalhou a linguagem: a mudança no foco narrativo, da primeira para a terceira pessoa, daria o tom mais humano ao texto, substituindo o tom de amargura e revolta que marcou principalmente os dois livros anteriores de Graciliano Ramos. Álvaro Lins (1976, p. 163) identifica uma aproximação entre o autor e suas criaturas: “Em Vidas Secas, ele se mostra mais humano, sentimental e compreensivo, acompanhando o pobre vaqueiro Fabiano e sua família com uma simpatia e uma compai-

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xão indisfarçáveis”. Essa simpatia seria perceptível na linguagem cuidadosa, expressiva em sua poeticidade de uma solidariedade para com estes seres tão sofridos e abandonados. Álvaro Lins reconhece na poetização da linguagem de Vidas Secas uma patente evolução das qualidades estéticas de um autor que tem a sua escrita marcada pela secura e ironia (cf. 1976, p. 165). No entanto, distingue dois defeitos de técnica narrativa. O primeiro deles estaria relacionado à falta de unidade entre os capítulos, que comprometeria a narrativa enquanto novela, a qual deveria se encaminhar para a revelação de um único drama. O segundo diz respeito à inverossimilhança causada pela desproporção entre as ações dos personagens e sua introspecção. Para ele, em se tratando de personagens que interagem diretamente com o meio exterior, sua apresentação pelo monólogo interior não seria o modo mais aceitável. Vidas Secas apresenta dois defeitos consideráveis. Um deles é que a novela, tendo sido construída em quadros, os seus capítulos, assim independentes, não se articula formalmente com bastante firmeza e segurança. Cada um deles é uma peça autônoma, vivendo por si mesma [...]. O outro defeito é o excesso de introspecção em personagens tão primários e rústicos, estando constituída quase toda a novela de monólogos interiores. A inverossimilhança, neste caso, não provém da substância da novela, mas da técnica. Se houvesse maior proporção entre episódios e monólogos, entre a vida exterior e a interior dos personagens, este problema da ficção teria sido resolvido de maneira perfeita. (LINS, 1976, p. 163).

Em sua leitura, ao lado da análise que faz dos elementos textuais, Álvaro Lins confere grande destaque ao trabalho com a introspecção psicológica no percurso da evolução literária do autor. Para ele, Vidas Secas seria a obra em que melhor se apresentam os recursos de linguagem, empregados para se atingir um nível mais poético. Porém, é em Angústia, segundo sua avaliação, que se encontram reunidas as principais qualidades de ficcionista, as quais têm como objetivo investigar mais profundamente as dinâmicas da vida interior, que, de resto, ainda segundo o crítico, é finalidade das melhores obras literárias. Ao compartilhar da

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opinião de Álvaro Lins, de que na obra de Graciliano Ramos tem destaque a introspecção, Wilson Martins empreende sua leitura buscando ir além da identificação de uma técnica narrativa, percebendo na análise do indivíduo um modo de compreensão dos dramas humanos em uma dimensão transcendental. Ao depreender na obra do autor o que seria uma “preocupação continuamente voltada para o que há de essencial no homem, para o que há nele de eterno” (MARTINS, 1977, p. 3536), Martins considera São Bernardo o romance em que o escritor atinge o cerne dessa preocupação, trazendo-a definitivamente para a sua ficção. Apesar de ter iniciado sua carreira com Caetés, apenas em seu segundo romance Graciliano Ramos se consolidaria como um “romancista psicológico”. O que houve a mais de Caetés foi o corajoso aprofundamento de seu tema, foi o arrojo de mexer no que o homem tem de mais íntimo e de mais misterioso. Isso proporciona a São Bernardo uma universalidade a que poucos romances brasileiros poderão aspirar. O drama econômico da vida social na região e os fenômenos típicos da propriedade só aparecem no livro porque são eles, justamente, que porão a funcionar o complexo Paulo Honório [...]. É um romance psicológico no mais amplo sentido da palavra. Todo o romance existe em torno das reações íntimas de Paulo Honório. (MARTINS, 1977, p. 37-38).

Na intenção de afastar o escritor e suas produções da representação de problemas sociais, Martins enfatiza o cunho psicológico da narrativa, o qual possibilitaria a reflexão sobre as relações entre os homens, englobadas, por sua vez, por uma dimensão moral mais ampla: “é [...] o problema do Bem e do Mal o que atormenta o escritor alagoano, e dito isto terei definido toda a sua obra” (MARTINS, 1977, p. 39). Essa relação entre Bem e Mal que perpassa os dramas dos personagens, teria sido apenas insinuada em São Bernardo, nas dúvidas levantadas por Paulo Honório sobre suas condutas, as quais buscando de certo modo o benefício de uma vida mais confortável teriam causado sofrimento a outras pessoas e o conduzido à ruína. Em Angústia essa problemática seria mais

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explícita e se constituiria no próprio núcleo da obra. Esse processo de revelação do que subjaz às relações entre os homens ganha força com os questionamentos de Luís da Silva sobre o que é “certo” e o que é “errado”. Desse questionamento, o crítico identifica aquilo que seria a indistinção entre Bem e Mal, da qual nasce a confusão de valores da sociedade moderna. É o Luís da Silva, de Angústia, que nos vai colocar de frente com o problema. Não somente o Bem e o Mal preocupam o romancista com uma persistência e com uma inquietude verdadeiramente calvinista: é também a indistinção moderna entre o Bem e o Mal, numa sociedade em que os valores se misturaram de tal maneira que se repete a história do Cristo e do grande inquisidor (MARTINS, 1977, p. 39-40).

Tentando ilustrar a ideia de Wilson Martins buscamos em São Bernardo e Angústia trechos em que os personagens principais inquietam-se diante dos valores que guiam seus comportamentos e dos demais personagens. No primeiro, temos Paulo Honório reavaliando as ambições de sua vida, tudo aquilo que ele julgava ser essencial para alcançar o progresso, é agora visto em seu lado negativo e vazio: Está visto que, cessando esta crise, a propriedade se poderia reconstituir e voltar a ser o que era. A gente do eito se esfalfaria de sol a sol, alimentada com farinha de mandioca e barbatanas de bacalhau; caminhões rodariam novamente, conduzindo mercadorias para a estrada de ferro; a fazenda se encheria outra vez de movimento e rumor. Mas para quê? Para quê? Não me dirão? Nesse movimento e nesse rumor haveria muito choro e muita praga. As criancinhas, nos casebres úmidos e frios, encheriam ruídos pela verminose. E Madalena não estaria aqui para mandar-lhe remédio e leite. Os homens e as mulheres seriam animais tristes. [...] Se eu povoasse os currais, teria boas safras, depositaria dinheiro nos bancos, compraria mais terra e construiria novos currais. Para

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Germana Sal e s | Wanessa Paiva quê? Nada disso me traria satisfação (RAMOS, 1976d, p. 166).

No segundo, Luís da Silva, ao imaginar o que acontece entre Marina e Julião Tavares quando se encontram sozinhos na casa dela, reprova a índole de D. Adélia, que se faz de desentendida diante do comportamento frívolo da filha, já que se beneficia do namoro da moça com o jovem rico: Eu andava para cima e para baixo, o ouvido atento aos mais insignificantes rumores da casa vizinha. Preocupava-me sobretudo o silêncio. Enquanto estavam batendo nos copos, tagarelando, nem por isso. Mas quando se calavam, vinham-me suposições que me davam tremuras. Provavelmente D. Adélia tinha ido à cozinha preparar o café. E os dois aproveitaram o tempo. Sem dúvida. Imaginava o que eles faziam. Era aquilo, sem dúvida. [...]. D. Adélia encostada ao fogão, respirava fumaça, engelhava as pálpebras, gemia uma desculpa: “ É a mocidade.” Estava invisível e escaldava os dedos torcendo o pano de café. Os dois, grudados, cochichavam, esfregavam-se. [...]. Talvez D. Amélia estivesse ali, um pouco afastada, os olhos atentos, observando o que se passava por baixo da mesa. História! Escondia-se e justificava aquela sem-vergonha: – “É a mocidade”. (RAMOS, 1976d, p. 88-90).

Wilson Martins estende essa leitura a Vidas Secas, na qual percebe que a indistinção entre Bem e Mal detectados nos dois romances anteriores não existe: Fabiano, Sinhá Vitória e os meninos mantêm-se puros por conta de sua pobreza material e simplicidade espiritual, que os afastaria do convívio de uma sociedade deturpada em seus valores e os conduziria para o desfecho feliz de suas histórias. A sua concepção pessimista do homem abranda-se em Vidas Secas: sentimos que a sua atitude de descrença se curva à evidência de vidas que não se tornaram possessas do mal e às quais, por isso mesmo, o romancista não nega o benefício da salvação. É o segredo do final feliz

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O Romance em debate de Vidas Secas; o livro que seria aparentemente o mais desesperado, porque preso à fatalidade implacável de uma natureza torturadora, termina como numa aurora, a felicidade e o conforto surgindo aos personagens em plena caminhada na poeira calcinada pelas secas e pelos sofrimentos. (MARTINS, 1977, p. 42).

Aliando à temática do Bem e do Mal a noção de salvação, Martins aproximaria a visão de mundo cristão da obra de Graciliano Ramos: “é estranho que esse escritor comunista se venha encontrar tão visivelmente com a concepção católica do mundo” (1977, p. 40). Uma rápida incursão pelos evangelhos pode nos ajudar a entender a afirmação do crítico, explicitando a bem-aventurança dos personagens de Vidas Secas e a infelicidade dos protagonistas das outras narrativas. O sermão da montanha presente no evangelho de Mateus afirma: “bem aventurados os que têm um coração de pobre porque deles é o reino dos céus! [...] //bem aventurados os puros de coração porque verão Deus” (2010, p. 1288). A versão do Sermão no evangelho de Lucas é complementada com as seguintes palavras: Mas ai de vós, ricos, porque tendes a vossa consolação! Ai de vós, que estais fartos, porque vireis a ter fome! [...] Uma árvore boa não dá frutos maus, uma árvore má não dá bom fruto. Porquanto cada árvore se conhece pelo seu fruto. Não se colhem figos dos espinheiros, nem se apanham uvas dos abrolhos. O homem bom tira coisas boas do bom tesouro do seu coração, e o homem mau tira coisas más do seu mau tesouro, porque a boca fala daquilo de que o coração está cheio. (2010, p. 1354).

Se os personagens de Vidas Secas aproximam-se dos bem-aventurados do “Sermão da Montanha”, Paulo Honório e Luís da Silva têm relação com os maus homens que tiram maus tesouros de seus corações, colhendo para suas vidas a infelicidade e a culpa, uma vez que seus corações estão, para o primeiro, cheio de ambição e sede de poder, e para o segundo, repletos de rancor e revolta.

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Nesse sentido, Wilson Martins procura excluir a interpretação da obra de Graciliano Ramos do viés político e social, aproximando-a de instâncias morais e espirituais: “seu olhar, assim, se dirige para mais longe do que o espetáculo imediato dos homens formigando e defendendo as suas reivindicações de classe. A fonte do problema é uma fonte mais profunda e mais longínqua” (1977, p. 40). Sua percepção levanta dúvidas quanto à capacidade dos “críticos interessados” de compreenderem toda a dimensão humana presente nos romances do escritor alagoano. Espanta-me que tantos críticos interessados não tenham visto na figura de Julião Tavares senão um símbolo político, quando ela é apenas e sobretudo um símbolo moral. Sendo muito mais que um símbolo político, demonstrou a crítica interessada não ter alcançado toda a extensão do pensamento ou das intenções do autor. (MARTINS, 1977, p. 41).

Empenhado em procurar nos romances elementos que corroborassem sua visão, Wilson Martins ignora o tom melancólico e a dúvida que paira sobre o futuro, de figura muito mais nebulosa e não tão resplandecente, dos retirantes de Vidas Secas ao se dirigirem para a cidade grande, forçando, então, a leitura da obra para adequá-la à sua interpretação. Pouco a pouco uma vida nova se foi esboçando. Acomodar-se-iam num sítio pequeno, o que parecia difícil a Fabiano, criado solto no mato. [...] Fabiano estava contente e acreditava nesta terra, porque não sabia como ela era nem onde era. [...]. Que iriam fazer? Retardaram-se, temerosos. Chegariam a uma terra desconhecida e civilizada, ficariam presos nela. E o sertão continuaria mandar gente pra lá (RAMOS, 1976, p. 134).

Retomando algumas informações da própria narrativa, podemos entender esse final de forma bem mais incerta do que o otimismo do crítico pode fazer crer. Se lembrarmos da figura de Seu Tomás da Bolandeira é possível traçar um paralelo entre o destino deste homem culto no sertão e a família bruta na cidade: do mesmo modo que o primeiro se acabou pela inadequação

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de seus conhecimentos à realidade da seca, podemos imaginar o que acontecerá com Fabiano e sua família ao se depararem com uma realidade tão distinta, a qual demanda habilidades e experiências de que eles não dispõem. Nesse mesmo sentido, ao insinuar que a família ficaria presa na cidade, o narrador permite que aproximemos o futuro desses personagens àquela experiência de violência, opressão, humilhação e limitação vivida pelo vaqueiro na cadeia, já que no ambiente urbano se deparará inevitavelmente com outros e variados “soldados amarelos”. No último texto que selecionamos para essa reflexão, encontra-se uma leitura que se diferencia daquelas com as quais temos trabalhado até aqui. Em todos os artigos estudados, percebemos que a discussão envolve, independente do método empregado por cada crítico, a questão da tendência psicológica, a qual evidenciaria uma preocupação em revelar a essência humana a partir de dramas particulares, evitando relações com problemáticas sociais e políticas. Paulo Rónai, entretanto, propõe uma interpretação assumidamente impressionista dos títulos de Graciliano Ramos publicados em conjunto, a qual se concentra na problemática da dificuldade de expressão compartilhada pelo autor e seus personagens: Sempre me faltou coragem para escrever sobre Graciliano Ramos: sua obra me comunicou emoções muito diretas, e sinto constrangimento em falar no que tenho de tão íntimo. [...] Mas os cinco belos volumes da edição uniforme, juntos na estante, junto na lembrança, convidam-me a fixar algumas expressões. [...] No banquete que os amigos lhe ofereceram no seu quinquagésimo aniversário, Graciliano Ramos negou sua identidade com certos personagens seus, mas admitiu semelhanças. Uma dessas é, sem dúvidas, a importância que tem para cada uma delas o problema da expressão. Eles são justamente autobiográficos na medida em que estão atormentados por preocupações estilísticas. (RÓNAI, 1948, p. 1).

O mérito da interpretação do crítico húngaro não se liga à constatação de que nas obras de Graciliano Ramos há aspectos de sua biografia, porque esta relação foi percebida também

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por outros críticos, mas está na contribuição para a compreensão daquilo que talvez seja um dos aspectos mais marcantes nos romances, que, entretanto, não é muito comentado pelos seus estudiosos: a impossibilidade de entendimento como consequência da dificuldade de expressão. O crítico destaca algumas situações em que os personagens se deparam com dúvidas sobre como se fazer compreender pelos que o cercam. O que podemos entender como uma preocupação com a linguagem que perpassa toda a obra de Graciliano Ramos e se comunica com as agruras sentidas pelo próprio escritor no momento de realização dos textos, como já foi comentado neste trabalho. Os personagens-narradores, João Valério, Paulo Honório e Luís da Silva sentem insatisfação por não conseguirem transmitir na sua escrita toda a dimensão das suas experiências nem realizá-la como idealizaram. O estilo brutal e seco, incisivo e propositadamente vulgar de Graciliano Ramos mostra que ele partilha da ansiedade com que seus protagonistas procuram reconduzir os meios de expressão ­à sua finalidade primitiva, desenvolvendo seu sentido inicial às palavras ou abandonando-os sem piedade quando incorrigivelmente deformados pelo abuso do fraseado. (RÓNAI, 1948, p. 1).

Paulo Rónai aponta o momento do confronto entre Paulo Honório e a escrita na decisão do personagem, após a morte da esposa, de contar a sua própria história. Acreditando não possuir as habilidades inerentes a um escritor, o dono de São Bernardo, reúne um grupo que ele julga capaz de realizar essa empreitada. Todavia, feitos dois capítulos, mostra-se insatisfeito com o resultado, o qual em seu rebuscamento não corresponderia às exigências de expressão de seu idealizador. Arriscou-se a revelar suas fraquezas, arranjando colaboradores para um trabalho de que não entende. O malogro da cooperação, não é devido a inibições que lhe paralisam as confidências, mas sim a impressão de pernosticismo que lhe dão os dois capítulos encomendados ao periodista Azevedo Godin. (RÓNAI, 1948, p. 1).

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Diferentemente de Paulo Honório, que se aventura na escrita, os protagonistas de Caetés e Angústia, mais próximos do que seria um escritor profissional, não veem com menos dificuldade essa tarefa: O abismo que existe entre a palavra falada e a escrita, João Valério também o sente. Cada vez que retoma o seu romance histórico sobre os caetés cai no artificial, com ódio de si mesmo; ao relatar a experiência direta de sua vida quotidiana, readquire a naturalidade. Luís da Silva também usa as duas linguagens. Escreveu duzentos sonetos, que despreza, e faz artigos de encomenda, pomposos e vazios, sem se envergonhar disto. O que acha detestável é usar na conversação as frases-feitas de estilo literário. (RÓNAI, 1948, p. 1).

O protagonista de Caetés não se agrada do seu romance há muito começado, o qual não consegue concluir por falta de conhecimentos contextuais mais específicos ao assunto do livro. Essa situação o faz questionar-se sobre sua vocação literária: Ergui-me, procurei pelo tato o comutador, sentei-me a banca, tirei da gaveta o romance começado. Li a última tira. Prosa chata, imensamente chata, com erros. Fazia semanas que não metia ali uma palavra. Quanta dificuldade! E eu supus concluir aquilo em seis meses. Que estupidez capacitar-me de que a construção de um livro era empreitada para mim! [...]. Também aventurar-me a fabricar um romance histórico sem conhecer história! (RAMOS, 1976b, p. 21).

Bem como o protagonista de Caetés, Luís da Silva, com seu temperamento revoltado, desdenha de sua produção, a qual só agradaria a leitores “ingênuos”: Habituei-me a escrever, como já disse. Nunca estudei, sou um ignorante, e julgo que os meus escritos não prestam. Mas adquiri cedo o vício e ler romances e posso, com facilidade, arranjar um artigo, talvez um conto. Compus, no tempo da métrica e da rima, um livro de versos. Eram

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Germana Sal e s | Wanessa Paiva duzentos sonetos, aproximadamente. Não me foi possível publicá-los, e com a idade compreendi que não valiam nada. [...]. Um dia, na pensão de D. Aurora, o meu vizinho Macedo começou a elogiar um desses sonetos, que por sinal era dos piores, e acabou oferecendo-me por ele cinqüenta mil réis. [...]. Desde então, procuro avistar-me com moços ingênuos que me compram esses produtos. (RAMOS, 1976a, p. 43).

A impossibilidade de comunicação, reconhecida por Paulo Rónai nos livros do escritor alagoano, não se restringe ao nível da escrita, ela alcança a esfera das próprias relações humanas problematizadas nas narrativas, como quando o crítico se refere à complicada relação de Paulo Honório e Madalena: “Em suas confidências volta constantemente à convicção de que seus desentendimentos com Madalena se originavam da diversidade de seus modos de expressão” (RÓNAI, 1948, p. 1). Essa dificuldade de entendimento entre as personagens por causa da problemática da linguagem pode ser observada também nos conflitos de Angústia e Vidas Secas: o ódio de Luís da Silva pelos personagens que ele julga desprezíveis e esnobes; a exploração de Fabiano e sua eterna condição de resignado diante das injustiças a que está submetido. Nessa perspectiva, Vidas Secas talvez seja a obra em que isso aparece de forma mais explícita e cruel, já que os personagens “impermeáveis ao pensamento” não conseguem utilizar-se das palavras para defender-se de acusações, reivindicar seus direitos e compreender uns aos outros. Então, por ser algo tão distante e desconhecido de seu cotidiano, o domínio da palavra reveste-se de grande importância, chegando a alcançar estatuto de algo mítico, como acontece com o personagem Tomás da Bolandeira, admirado por Sinhá Vitória e sempre lembrado pelo seu amplo conhecimento e cultura. Em seu texto, Paulo Rónai ainda destaca alguns tópicos de composição já trabalhados por Álvaro Lins e Wilson Martins, porém sob uma ótica diferenciada e até mesmo esvaziada do valor negativo com que os dois críticos os avaliaram. O ambiente em Caetés, por exemplo, não é visto como algo “medíocre” nem o próprio livro é considerado menor no conjunto da obra de Graciliano Ramos:

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O Romance em debate Caetés [...] é longe de ser um livro morto. [...]. Como aquela cidadezinha do interior alagoano reflete todas as cidadezinhas do mundo, e, ao mesmo tempo, como deve condensar a existência estagnada de mil perdidos lugarejos do Brasil. Talvez seja o único livro de Graciliano feito com a intenção de pintar ambientes; os outros, o ambiente emana dos personagens como que a revelia do autor. (RÓNAI, 1948, p. 2).

Aliás, a presença realçada do ambiente não é percebida como algo desvalorizado, pelo contrário, ele serviria para melhor delinear o caráter dos personagens e seus dramas: Paulo Honório não seria quem é se não estivesse presente nele resquícios da hostilidade dos ambientes pelos quais passou; a tensão vivida por Luís da Silva não seria tão expressiva se não fosse o contato constante com minúcias do cotidiano de Marina, possibilitado pela proximidade das duas casas, vizinhas de parede e quintal. Sobre a relação entre o ambiente e o personagem em São Bernardo, Rónai afirma que “evidencia-se nele o indivíduo determinado pelas antecedências e pelo meio, o produto social que se adapta à sociedade como esta lhe parece. Julgava que não tinha outro dever na vida senão subir” (RÓNAI, 1948, p. 2). A respeito de Angústia e a importância do ambiente para o desenrolar do enredo, o crítico observa: A despeito da recusa explícita do escritor a reproduzir o ambiente, este se desprende dos personagens e dos acontecimentos, e acabamos por ver com absoluta nitidez as duas miseráveis casas juntas onde se trama e se desfaz o romance falho de Luís da Silva e de Marina (1948, p. 2).

Além do olhar diferenciado sobre o ambiente, Paulo Rónai retoma a questão da composição em quadros detectada mais de uma vez em Vidas Secas. Ele parece conhecer as circunstâncias em que os capítulos deste livro foram escritos, mas não é por isso que compreende o modo como foram arranjados na narrativa. Para o crítico, a composição em quadros corresponderia à percepção imediata que os personagens têm da realidade por conta da sua constituição primitiva, a qual impede que entendam os acontecimentos como uma sucessão linear e causal.

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Germana Sal e s | Wanessa Paiva A construção parcelada do livro, embora em parte devida a circunstância exteriores, adapta-se perfeitamente às exigências do assunto. Para gente de vida interior tão primária como Fabiano e os seus, não há acontecimentos circunscritos e acabados, nem evolução de rumo determinado. Em cada instante eles estão com sua vida inteira no espírito e nos olhos. Por isso o escritor representou essas vidas secas num quadro contínuo, único, de que ele passa a iluminar ora este ora aquele setor. (1948, p. 3).

Nota-se nas considerações do estudioso húngaro um distanciamento dos parâmetros de julgamento da obra de Graciliano Ramos. Se Álvaro Lins e Wilson Martins deram preferências a leituras em que fossem ressaltados os aspectos psicológicos das narrativas, Paulo Rónai optou por centrar sua interpretação na questão da linguagem, sem enveredar para uma avaliação mais tendenciosa. Os dois primeiros críticos já partem para sua análise com o intuito de verificar as obras sob o viés psicológico, excluindo, assim, interpretações que priorizassem elementos exteriores ao texto, tanto do dado sociológico, quanto do ideológico. Ao escapar dessa matriz interpretativa, Paulo Rónai que chegara ao Brasil na década de 1940, parece não se envolver nas discussões que tratam da alteração dos paradigmas estéticos entre as gerações e da mudança da valoração dos escritores no cenário de produção nacional. A postura divergente do crítico húngaro quanto à eleição dos seus critérios de avaliação nos permite pensar no caráter de grupo dos críticos vinculados aos grandes jornais brasileiros da época e seus suplementos, os quais compartilhavam certos pressupostos de leitura e avaliação, confirmando aquilo que Robert Darnton identifica como um “circuito de comunicação” que perpassa a construção de todo tipo de textos, aqui formado pelos críticos diante do interesse de consolidar seus próprios pressupostos: “Os próprios autores são leitores. Lendo e se associando a outros leitores e escritores, eles formam noções de gênero e estilo, além de uma ideia geral do empreendimento literário que afetam seus textos” (2010, p. 125). Ao estabelecer chaves comuns de leitura, os críticos se configuram como uma classe coesa, consolidada e autônoma

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com relação a critérios extraliterários de interpretação das obras. Nesse sentido, os críticos avaliaram as obras conforme atendiam às suas demandas interpretativas, contrapondo-se às leituras realizadas anteriormente que valorizavam as obras pelo envolvimento de seus autores nos debates políticos daquele momento. Tomando em conjunto os textos críticos sobre os autores com os quais temos trabalhado, percebemos que as obras de Rachel de Queiroz e Graciliano Ramos são mais valorizadas por apresentarem os elementos levados em consideração pela crítica dos anos de 1940 (investigação psicológica, busca por um sentido humano universal, cuidado formal, superação do partidarismo). Já José Lins do Rego, “seduzido” pelas tendências da década de 1940, tentou realizar a “virada” do social para o psicológico, contudo sem conseguir alcançar êxito em sua efetivação, uma vez que lhe faltaria o temperamento apropriado ao tipo de construção mais minuciosa e reveladora da introspecção: o autor paraibano foi, então, aconselhado a se manter, por conta de sua própria vocação, nos limites do romance de costumes, pois nesse tipo de escrita se realizaria plenamente. A Jorge Amado coube a pior avaliação: quando não foi considerado a continuidade e a decadência do que haveria de mais superficial nas obras da década de 1930, por seu apelo social, político e panfletário, o autor teve seu nome simplesmente omitido das discussões, não merecendo da crítica a reavaliação dispensada a seus companheiros de geração e região. A partir dessas considerações, podemos observar que tal grupo de críticos20, ao reavaliar as obras da década de 1930, sobretudo, as de caráter social, sob uma perspectiva crítica diversa, pretendeu consolidar os paradigmas estéticos surgidos àquela altura ao mesmo tempo em que desautorizava os valores literários da geração anterior. Essas transformações podem ser entendidas como as responsáveis pela inversão de valoração que os autores sofreram da década de 1940 em diante: José Lins do Rego, um best-seller21 da década de 1930, perdeu O grupo a que nos referimos é formado por Álvaro Lins, Sérgio Buarque de Holanda, Sérgio Milliet, Wilson Martins, Otto Maria Carpeaux, Brito Broca, Valdemar Cavalcanti e Paulo Rónai, os quais tiveram seus textos publicados no Suplemento Arte Literatura e utilizados como parte do corpus desse trabalho. 21 Consideramos para essa afirmação as informações sobre os números de vendas alcançadas pelas obras de José Lins do Rego, algumas das quais foram apresentadas no capítulo III. 20

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gradativamente o espaço na Academia, circunscrevendo-se às histórias literárias; Rachel de Queiroz, que nos anos 1930 foi do sucesso de O Quinze às duras críticas a Caminho de Pedras, por conta de suas escolhas políticas, teve, na década seguinte, seu nome inserido no panteão dos grandes escritores pela reavaliação de suas obras, dessa vez desatreladas dos jogos políticos e realçadas em seu teor “universal”; Graciliano Ramos, nos textos que vimos sobre sua obra e sobre a discussão mais ampla acerca do romance, sempre aparece como o autor de maiores recursos estilísticos e de melhor realização artística de sua geração, avaliação que faz de suas obras referência indispensável na literatura nacional e nos cursos de Letras de todo o país; sobre a obra de Jorge Amado ainda hoje paira a desconfiança dos círculos acadêmicos, estigmatizada sob os epítetos “maniqueísta”, “populista”, “limitada”, “pitoresca”. Assim, mesmo com o rompimento entre a crítica e o jornal e a hostilidade com que o rodapé passou a ser visto após a consolidação do espaço acadêmico e da tutela deste para com a atividade crítica, observa-se que os juízos construídos durante a década de 1940 não foram apagados pela crítica acadêmica, fazendo-se, durante muito tempo, mais ou menos presentes em avaliações de obras literárias pelas dicotomias entre local/universal, literário/extraliterário, político/estético, das quais ainda hoje não nos isentamos totalmente.

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Considerações finais Nossa reflexão procurou apontar como a crítica literária e seus juízos se relacionam com as movimentações históricas e culturais, atendendo a intenções diversas, como a consolidação de valores, autores e obras. Esses gestos apresentam-se de modo mais claro quando observamos que eles se dão por meio de polêmicas e debates, nos quais se procura efetivar a desautorização dos pressupostos do adversário, ao mesmo tempo em que se busca a legitimação dos seus próprios. João Cezar de Castro Rocha reflete sobre esse movimento duplo próprio da polêmica: “Em outras palavras, com o pretexto de estudar a obra do outro, tratava-se de abrir caminhos para a apresentação dos próprios pressupostos” (2011, p. 259). Essa relação entre a polêmica e a consolidação de novos paradigmas estéticos perpassa à atividade de crítica literária que se veiculava, principalmente, pelo jornal, como ocorreu no Brasil desde o século XIX, quando novos autores, ao atacarem escritores consagrados, buscavam romper o estado de eventos vigentes e inserir-se na vida literária. O jornal se revelou então como local apropriado para o início de debates que levam ao aparecimento de novos ideais estéticos e ideológicos. Na década de 1940 do século XX, o jornal ainda se configurava como esse espaço privilegiado de divulgação da literatura e de suas discussões. Mesmo procurando afastar de suas avaliações o teor de agressividade pessoal que marcou, em muitos aspectos, a crítica do oitocentos, a atividade de crítica dos anos 40 não se esquivou de polemizar, dessa vez, com os valores artísticos e posturas políticas da geração anterior. Nos textos sobre os quais nos debruçamos, tanto os de aspecto mais geral sobre o romance, quanto naqueles de reavaliação das obras de 30 pelos críticos mais eminentes do período, constatamos que as questões levantadas acerca do destino do romance e os juízos emitidos sobre as produções de José Lins do Rego, Rachel de Queiroz e Graciliano Ramos, bem como o teor negativo das referências a Jorge Amado, evidenciam a movimentação da crítica em meio à transição de diretrizes que deveriam guiar a produção ficcional brasileira e sua própria avaliação. Ao declararem a falência do romance social, os críticos entendiam que o cerne da obra deveria, a partir de então, tratar de questões universais, surgidas da inquietação do homem

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diante de si e de suas dúvidas e desvinculadas do contato mais imediato com problemas sociais e políticos. A percepção que procuramos explicitar sobre esse momento da história literária brasileira só foi possível pelo retorno às fontes primárias, onde os textos críticos foram inicialmente veiculados e a partir das quais pode se ter contato mais direto com toda essa discussão em torno das mudanças de pressupostos estéticos e ideológicos que se estabeleceram entre as gerações de 30 e de 45. Essas informações contextuais, que nos permitem uma maior compreensão do movimento e de seus direcionamentos foram esmaecidas quando tais textos saíram de seu suporte de origem para serem inseridos em antologias ou quando esse momento passa a integrar as narrativas das histórias literárias, que, muitas vezes, apresentam a transição de épocas e movimentos de modo linear, sem dar relevo para as tensões no meio das quais se forjam os textos e seus elementos de compreensão e avaliação. O estudo que propomos, ao retomar essa discussão dentro do espaço no qual se deu, compartilha da ideia de Roger Chartier, que afirma: “é preciso levar em conta que as formas produzem sentidos e que um texto, estável por extenso, passa a investir-se de uma significação e de um status inéditos, tão logo se modifiquem os dispositivos que convidam a sua interpretação.” (1994, p. 13). Desse modo, passamos a ver a década de 1940 com outros olhos, diferentes daqueles que subvalorizam suas contribuições artísticas e críticas, pois entendemos que as alterações nos interesses literários que emergiram nessa época vieram a ser fundamentais para muitos aspectos posteriormente valorizados, inclusive nos meios acadêmicos, sobretudo quando se trata da literatura brasileira e sua produção ficcional. Adélia Bezerra reconhece, por exemplo, a importância das avaliações da crítica de 40, representada pela figura de Álvaro Lins, para a consagração de autores que hoje fazem parte do cânone literário, elencando nomes de poetas e romancistas como os próprios romancistas de 30, os nordestinos e os espiritualistas, além dos estreantes daquela década, como Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Murilo Rubião, além dos poetas Lêdo Ivo e Thiago de Mello (cf. BOLLE, 1979, p. 17). A despeito da falta de aprofundamento de certas ideias, o que demandou de nossa parte certa “intromissão” em seus textos para tentar esclarecer pontos nebulosos de suas leituras,

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entendemos que os juízos apresentados pelos críticos dos suplementos literários, mesmo após a emergência e consolidação dos estudos universitários, se revestem de grande significação, mostrando-se presentes ainda hoje em nosso repertório de leitura e de interpretação, como a valorização dos romances pelo sentido universal que alcançam, desvinculado das questões político-partidárias presentes no contexto, e a exaltação dos elementos textuais que contribuem para a construção de uma narrativa mais densa, cujos personagens apresentam-se com uma configuração psicológica mais aprofundada, na qual os seus dramas e inquietações diante do mundo constituem o núcleo da história , a partir do qual se desenvolvem os outros aspectos textuais. Nesse sentido, Rachel de Queiroz, e especialmente Graciliano Ramos, são valorizados por criarem narrativas em que os dramas individuais expressam as dúvidas inerentes ao humano, sobrepondo-se às particularidades sociais, políticas e geográficas. Já José Lins do Rego e Jorge Amado, que de acordo com os críticos não conseguiram construir narrativas expressivas do ponto de vista da introspecção e independentes dos debates ideológicos imediatos às publicações, foram estigmatizados como bons cronistas da vida nordestina e de seus tipos sociais, sem, contudo, apresentar qualidades artísticas mais consistentes, o que restringiria seus romances a enredos simples, de fácil solução e com personagens superficiais. Pensando nisso, o retorno a este momento da vida literária brasileira não surgiu com a intenção de apontar as possíveis falhas de interpretação que a falta de melhor definição do aparato teórico e metodológico e o distanciamento temporal poderiam realçar, mas como uma proposta de reflexão sobre as dinâmicas de uma época em que se delinearam valores fundamentais para o modo como apreciamos determinados autores, em especial aqueles com os quais trabalhamos.

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Coletanea

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Os textos reunidos neste livro e que compõem esta coletânea foram veiculados pelo suplemento Arte Literatura do jornal Folha do Norte, de Belém, no Pará, entre 1946 a 1951. Esse periódico foi pesquisado nos arquivos da Biblioteca Pública Arthur Vianna, da Fundação Cultural Tancredo Neves, de Belém, na seção de microfilmes, e da Biblioteca Nacional, do Rio de Janeiro, na seção de periódicos, em 2010. A ortografia dos textos foi atualizada de acordo com reforma ortográfica promulgada em 2008.

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Sumário Crítica literária Crise no Romance Brasileiro, de Wilson Martins | 153 A Sedução de um tema, de Brito Broca | 157 Eurídice, de Sérgio Milliet | 159 Eurídice, de Álvaro Lins | 163 No mundo de Graciliano Ramos, de Paulo Rónai | 169 Rachel de Queiroz, de Sérgio Milliet | 175 Três romances, de Sérgio Buarque de Holanda | 181

Crônica Ninguém tem dó, de Rachel de Queiroz | 187

Depoimentos Depoimento sobre Graciliano Ramos, de Aurélio Buarque de Holanda | 191 Depoimento sobre José Lins do Rego, de Aurélio Buarque de Holanda | 197 Novas revelações sobre José Lins do Rego, de Aurélio Buarque de Holanda | 201 Depoimento de Valdemar Calvacanti | 205

Entrevistas Quais as diretrizes futuras do romance? Almeida Fischer entrevista Otto Maria Carpeaux | 207 Quais as diretrizes futuras do romance? Almeida Fischer entrevista José Condé | 210

Outros Gêneros Balanço de 1947, de José Condé | 213 Novos e velhos, de José Lins do Rego | 216 Lêdo Ivo responde a José Lins do Rego | 217 Confissões (Vidas Secas), de Graciliano Ramos | 221 15 anos de Literatura | 222



Crí t ica l i terária Crise no Romance Brasileiro Wilson Martins Curitiba, agosto – O romance brasileiro encontra-se em uma encruzilhada: entre a chamada geração de 1930, que, de uma forma geral, demonstra poucas possibilidades de renovar-se, e a novíssima geração de romancistas, pobre em quantidade e paupérrima em qualidade, ameaça sofrer um colapso esse gênero que, de resto, jamais se distinguiu entre nós por uma vitalidade exagerada. Da brilhante geração “pós-modernista”, tanto os homens quanto os assuntos, e ainda mais a atitude espiritual que mantiveram perante a literatura e o mundo, parecem definitivamente esgotados. Sem entrar, naturalmente, na apreciação particular e detalhada de cada um dos romancistas, podemos concluir, à vista do que produzem atualmente os seus maiores nomes, que pouco se deve esperar dos que, durante uns bons dez anos, dominaram a nossa literatura de ficção. Não é, como sabemos, a produção sucessiva e ininterrupta de livros o que nos dá a medida de vitalidade dum romancista, mas antes a sua possibilidade ou capacidade de “renovar-se” em cada nova obra, sem perder, está claro, nenhuma das características de estilo e de personalidade que lhe marcaram a fisionomia literária. Nem a renovação no romance se mede por qualquer sinal exterior de fraseado, distribuição de capítulos, jogo de estilo ou escolha de assunto, mas se manifesta por sutil processo psicológico, quase impossível de definir logicamente, mas nem por isso menos sensível e atuante. Na incapacidade de renovar-se, os romancistas brasileiros do “pós-modernismo” passaram a repetir-se, o que representa o primeiro sinal de esgotamento, antes do silencio total. O caso de um Jorge Amado, oferecendo-nos continuamente o espetáculo de sua decadência literária, seja por se ter em definitivo deixado empolgar pela política partidária, seja (o que reputo mais provável) por ser rapidamente esgotado as suas reservas de originalidade criadora, me parece ser dos mais expressivos. Escolho desde logo a segunda hipótese, porque o mesmo fenômeno em outros romancistas da mesma geração

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que não desenvolvem atividades políticas tão absorventes ocorre também de maneira inegável, indicando que se trata dum caso coletivo de substituição de padrões literários a que os “velhos” não puderam ou não souberam adaptar-se. O exemplo do Sr. José Américo de Almeida, abandonando a literatura de ficção diante de situação semelhante de extenuação, não se multiplicou ou não se multiplica com a clarividência e o senso de autocrítica que seriam de desejar... De todos os romancistas da década de 1930, apenas três ou quatro me parecem em condições de renovar-se, e, portanto, de permanecer: o Sr. Graciliano Ramos, cuja vitalidade é um dos pontos altos da literatura brasileira contemporânea; o Sr. Erico Veríssimo, por força de um temperamento universal, de campo mais vasto de movimentação; e o Sr. José Geraldo Vieira, que, por trás de sua fraseologia rebarbativa, esconde uma das nossas mais completas vocações de romancista. Quanto ao Sr. Otavio de Faria e ao seu interminável “romance de confessionário” não sei realmente o que dizer; mas acredito que ao volume quantitativo de sua obra não corresponde um grau proporcional de qualidade e permanência. Essa é a crise do romance brasileiro. Um romance que parou em algumas fórmulas e algumas ideias interessantes, muito limitadas no espaço e no tempo, perplexo entre as solicitações do futuro, forçosamente enigmáticas, e as do passado, batidas e cansadas. Pois, como todos os gêneros literários, e possivelmente com maior imperiosidade que os demais, o romance se caracteriza por sua natureza dinâmica, essencialmente infensa à permanência em fórmulas e receitas estagnadas. Por outro lado, aquela geração de romancistas não somente se prendeu exageradamente à terra, ao assunto regional, travestindo-se de uma originalidade exótica que já lhe assinalei um dia, como ainda, transportou para a ficção períodos históricos de interesse resumido, automaticamente esgotados com a própria narrativa. Os famosos “ciclos” que estiveram tão em moda, já indicavam uma curva de durée limitada, e não deixa de ser eloquente o fato de o Sr. José Lins do Rego, seu maior representante, ter abandonado a denominação famosa na reedição de seus romances. É certo que seria difícil prever o simultâneo esvaziamento dos romancistas que os exploraram, fato que naturalmente não suporta uma explicação linear, mas antes se prende a um feixe

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de causas a que não poderei me referir neste estudo de conjunto, sabendo-se que elas podem variar, e certamente variam de romancista para romancista. Ao caráter “histórico[?]”23 do romance brasileiro dos anos 30 podemos atribuir sem dúvida um dos mais poderosos motivos de seu declínio e atual desinteresse. Naturalmente múltiplas causas concorreram para que esse romance existisse tal como o conhecemos: o ideal modernista de impregnação absoluta do sentimento da terra, a literatura de caráter documentário que tanto esteve em favor, a supervalorização dos temas locais e regionais etc. Além disso, circunstâncias ainda não suficientemente estudadas, fizeram com que a geração seguinte não fosse nem de romancistas nem de poetas, mas de críticos e à pletora criadora dos anos 30, estudada, praticamente, por um único crítico, o Sr. Tristão de Athayde, sucedeu um período de intensa meditação sobre o fenômeno literário, enquanto a criação sofria uma queda inegável e hoje alarmante. A curva de evolução do nosso romance sofreu, assim, uma descida brusca e de certa forma inexplicável, ameaçando alcançar ponto zero se neste fim de mais uma década não surgirem os romancistas de que a literatura brasileira tanto necessita. Dos romances escritos pela novíssima geração, nenhum se apresenta realmente com o valor de obra significativa: uns se destacam por sua inteligência – virtude quase negativa na ficção, por se filiar aos fundamentos lógicos, portanto, analíticos do espírito, e não aos sintéticos, próprios da imaginação criadora; outros, por singularidades apreciáveis, mas nenhuma pela unidade e força emocional sem as quais não pode existir o romance. Nenhum deles, pois, permanecerá: são os livros circunstanciais, cuja principal virtude estará, talvez, na qualidade do vient de paraitre. Entre o que se pode salvar da geração de 1930 e a incógnita da novíssima geração, o romance brasileiro arrasta o seu triste destino de gênero em decadência. Em decadência, que tudo indica será transitória, pois é fora de dúvida que os gêneros literários não desaparecem (quando muito se trans O sinal [?] aparecerá em alguns textos e foi utilizado para substituir uma palavra ou letra que não pode ser identificada por conta do estado de deterioração em que se encontravam os exemplares consultados.

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formam), nem o romance desaparecerá como forma fundamental de expressão nas literaturas ocidentais. A intensificação dos estudos críticos me parece significativa de um revigoramento da literatura brasileira, de uma aquisição de importância genuína, pois somente as grandes literaturas possuem um pensamento crítico respeitável. Assim sendo, quando temos motivos para supor que as letras brasileiras se preparam ao desempenho de um papel de relevância no mundo (que legitimamente lhes cabe e do qual estão afastadas por barreiras quase intransponíveis), seria absurdo concluir pelo desaparecimento do romance, essa espécie de (sic) fiel de todas as literaturas. Antes caberia prever, dentro das tendências simétricas do pensamento, que os movimentos pendulares continuarão a se produzir com regularidade, e, assim, como a uma geração crítica, a de 1922, sucedeu uma criadora, a de 1930, a essa uma de críticos, a de 1940 – seguir-se-á à atual uma nova geração criadora, de romancistas possivelmente mais cultos, mais lastrados e certamente “mais” permanentes que a maioria dos que nos deram os bons romances “pós-modernistas”. Por enquanto, o pensamento crítico domina a literatura brasileira. Nos suplementos literários, esses termômetros infalíveis, não passará de dez por cento a proporção de ficcionismo contra a da matéria crítica, nos seus vários aspectos: de literatura e de arte, das ideias políticas, da sociedade... Os editores já não publicam bons romances brasileiros nem em pequena nem em grande quantidade, e não deixa de ser significativa a reedição dos livros dos srs. José Lins do Rego, Jorge Amado e Graciliano Ramos, enquanto nenhum nome novo aparece, da mesma forma porque nos oferece margem para sugestivas considerações o fato de uma editora paulista começar suas atividades com um romance da sra. Lídia Besouchet... publicado na Argentina a dois ou três anos. O crítico não é profeta e geralmente erra nas profecias que aventura: deixemos, pois, em silêncio as previsões que a situação atual do romance brasileiro poderia nos inspirar. Arte Literatura, jornal Folha do Norte, Belém, n. 38, 10 de agosto de 1947.

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A Sedução de um tema Brito Broca Com este seu novo romance, “Eurídice”, José Lins do Rego transporta-se não somente para o ambiente geográfico da cidade, como também para o ambiente psicológico. A psicologia do habitante urbano é, naturalmente, muito mais complicada do que a do habitante rural. Os pequenos agrupamentos sociais não criam os problemas que atmosfera das grandes metrópoles, com a intensidade dos contatos humanos, suscita na mecânica afetiva. O amor para os personagens rurais de José Lins do Rego tem sido mais ou menos uma coisa simples; mesmo o herói de “Banguê”, depois de haver feito um longo estágio citadino e de trazer para a solidão do engenho a inquietude de uma alma trabalhada por todas as saturações urbanas, não chega a ser um complicado. O filho do campo nele subsiste e há uma forte instintividade primária nas suas reações. Já agora em “Eurídice”, encontramos alguns seres de psicologia complexa, principalmente Júlio, o homem que narra sua própria história. Lins do Rego não hesitou em penetrar num novo terreno. O pintor de almas instintivas, de criaturas perto da terra, trazendo em si qualquer coisa das forças naturais, como o vento ou o sol castigante do nordeste, foi tratar, desta vez, com gente difícil, gente influenciada por todas as deformações da civilização. O complexo de que sofre o herói de “Eurídice”, Júlio, pode manifestar-se igualmente num homem do campo, mas é por natureza, um complexo da cidade, onde a civilização determina sempre uma noção mais aguda do superego. Júlio amara a irmã, inconscientemente, e isso vem acarretar-lhe profunda desordem na vida afetiva, drama semelhante ao herói de Lawrence, para sempre marcado pelo apego incestuoso que dedicou à mãe. Júlio é um jovem estudante, intelectual, aluno aplicado, legítimo produto do meio urbano. Compreende-se perfeitamente as suas hesitações, e torturas sexuais. Depois, tudo se concentra em sua estranha e misteriosa atração por “Eurídice”. Quem é Eurídice? Aurélio Buarque de Holanda viu muito justamente nela um ser vago e impreciso. Parece que neste ponto, Lins do Rego sofreu a influencia do “vago e impreciso”, ca-

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racterístico de algumas correntes do romance moderno. Mas foi, em todo caso, uma influência feliz. Talvez “Eurídice” seja um símbolo. Em todo caso, na cena final, no desabafo desesperado de Júlio, estrangulando o seu ídolo fugitivo, em plena mata de Santa Tereza, somos levados a ver a desforra do instinto contra a inteligência. A suprema solução de um recalque.

Arte Literatura, jornal Folha do Norte, Belém, n. 49, 02 de novembro de 1947, coluna “Vida literária”.

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Eurídice Sérgio Milliet

SÃO PAULO – Estamos talvez habituados demais à sabedoria dos romancistas europeus que se valeram dos ensinamentos da psicanálise e o fizeram com grande perícia excepcional cuidado da verdade científica, para não nos sentirmos um pouco decepcionados com o último livro de José Lins do Rego (Eurídice – Livraria José Olympio, ed. Rio, 1947). É preciso, por certo, louvar a tentativa do escritor nordestino, mas a tarefa era árdua, dada a possibilidade de um paralelo com as produções da literatura universal em que esse método tem sido ultimamente empregado com excesso. Exigente de sólida cultura psicológica, e, por conseguinte, também filosófica, o romance psicanalítico chegou na (sic) Europa como um aprofundamento do romance psicológico que já alcançara o apogeu nos mergulhos analíticos de Proust. Por outro lado, numa sociedade doente, traumatizada por várias guerras, o novo método se mostrava como indispensável à compreensão em profundidade de contradições que a psicologia clássica não podia explicar. Entre nós, entretanto, o romance de análise não dera ainda o que podia dar o que teria talvez dado se não tivéssemos saltado essa etapa para nos jogarmos, sem dúvida, em virtude dos movimentos político-sociais, no romance sociológico e no romance de tese. Houve, assim, uma solução de continuidade na evolução da técnica do nosso romance, da qual decorrem um enriquecimento poético e um empobrecimento artístico e literário. Não há como negar que desde algum tempo se vem observando, principalmente entre os mais jovens (estou pensando em Clarice Lispector, Lucio Cardoso, Fernando Sabino, Adonias Filho, Julieta Drummond de Andrade) uma reação interessante contra o realismo, ou o pseudorrealismo do romance dos homens da geração de 30. Nenhum dos romancistas acatados (salvo Graciliano Ramos) havia tentado, porém, sair da contemplação de seu pequeno mundo provinciano, de sabor folclórico às vezes, rico não raro de caracteres regionais e mesmo nacionais, nunca, entretanto muito pródigo de problemas humanos universais. Por isso mesmo, saber contar era qualidade bastante para tornar célebre um escritor. Não se pedia ao romancista um processo de aproximação psicológica requintado, nem se lhe solicitava uma grande cultura geral. O romance era uma espécie de

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poema em prosa, o mais das vezes um ABC em que abundavam as emoções, o que tornava prescindíveis senão impossíveis, as análises tanto quanto as arquiteturas demasiado complexas. José Lins do Rego lança-se agora, após ter assumido a liderança do romance de narrativa direta, na aventura de ficção com alicerce cultural e técnica sutil. Seu novo livro ressente-se da mudança repentina do rumo sem preparação adequada. Em suma, saindo do caso concreto de simples observação, viu-se o romancista forçado a resolver dois problemas: um psicológico, a que foi dada solução algo esquemática, e outro de transplantação de ambiente, do nordeste para o Rio, que me parece ter sido bem compreendido. A análise psicanalítica é sumária, rudimentar mesmo, já pela explanação insuficiente do processo de fixação do complexo de Édipo, que constitui o motivo central do livro, já pelo grosseiro tratamento das personagens em geral e das personagens femininas em especial. Apesar de algumas incoerências, como por exemplo o fato de vir ao mundo “numa casa de comerciante de papelaria que a má sorte reduzira quase à miséria” de repente, sem que nada tenha ocorrido, se ver dono de casa em Niterói, e apólices que “pelo que dizia Laura (eram) uma fortuna”, Julio, o herói, é uma figura viva na sua angústia patológica, na obsessão que o leva ao assassínio. Da mesma forma, o velho Campos com suas gabolices, sua elegância cuidadosa demais, seu linguajar boêmio, sua moral característica, retrata bem uma fauna quase extinta, que todos conhecemos e era preciso fixar. Menos expressivo nos poucos traços do desenho é Farias, o estudante integralista e, mais impreciso ainda, Jaime, o revolucionário. As mulheres, com exceção de D. Olegária e da dona da pensão, são inconsistentes ou mal compreendidas. Noêmia, distante de nós, vive uma tragédia sem relevo. Isidora, a irmã que deveria ressaltar, recostada sobre o fundo angustiado do drama, não passa de um fantasma, também como a mãe do herói. Quanto a Eurídice, a fixação do complexo, se por um lado, se apresenta suficientemente vaga para que permaneça um símbolo e não uma criatura de carne e osso, por outro lado vem eivada de pormenores realistas nem sempre muito felizes. Essa mulher, apaixonada por Farias, entrega-se sem a menor resistência a Julio num momento de decepção, para depois voltar a tornar-se inacessível e distanciar-se dele em sucessivas fugas que são, na

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realidade, soluções masculinas e não femininas. Quanto ao estilo, José Lins do Rego tem escrito coisas melhores. A grande simplicidade que procurou atingir, à maneira de um Graciliano Ramos, não foi sempre alcançada [?]. Noutros caiu na vulgaridade de descrições e anotações que não se compreendem em personagem de sensibilidade patológica como Julio. Assim, quando descreve o noivo de Isidora, seu rival, e seu maior ódio, apenas encontra frases como estas: “Isidora gostava, ia casar-se porque gostava mesmo daquele homem magro”... “o mesmo homem tímido e triste, que continuava a olhar Isidora como seus olhos medrosos e vagos”... “os olhos miúdos do noivo, aquela alegria de besta, me alucinavam”... etc., frases que além de incolores, se contradizem muitas vezes. Com todos esses defeitos, o livro lê-se de princípio a fim com interesse. É que José Lins do Rego, como Jorge Amado, e sem o desagradável pecado da “orientação” ideológica, sabe contar, sabe dosar a emoção de modo a preocupar o leitor, a manter viva a curiosidade pela anedota. O partido que tira das menores ocorrências é espantoso, e com uma intuição admirável, consegue, em poucas linhas, às vezes, esboçar um quadro sugestivo que vale a mais profunda análise. Veja-se o fim de Eurídice, a cena do assassínio: “é procurei a boca que fugia, que agitava, e aos poucos tudo foi ficando em silêncio pesado. As minhas mãos largaram o pescoço de Eurídice. E ela estava estendida como na minha cama. O corpo quase nu na terra fria. E não senti mais nenhum cheiro de seu corpo”. Uma poesia forte, ainda que rudimentar na sua essência, e sem matizes, domina o texto sóbrio, limpo, desse fim de tragédia. A última anotação principalmente é cheia de sentido, marcado, como marca, a libertação do recalque. O complexo incestuoso que não pode ser sublimado no amor por Eurídice encontra sua solução na eliminação do objeto da transferência, o que acarreta a punição procurada inconscientemente, a autopunição necessária. É possível que o autor de Eurídice não tenha desejado escrever um romance psicanalítico propriamente dito, mas tão somente valer-se de um tema curioso e perturbador que lhe permitisse contar sem se repetir. Entregava, dessa maneira, humildemente, um caso digno de interpretação ao psicólogo e não chocava os seus leitores com uma literatura “Huxleyant”, pelo menos inesperada em quem soube por tantos anos explorar o campo dos sentimentos primários e das histórias simples. Não

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posso avaliar com exatidão as intenções do romancista, daí a timidez de minha apreciação. Como quer que seja, Eurídice será discutidíssimo. Haverá quem considere a obra um malogro e quem a julgue admirável. Bem pesados os defeitos, as qualidades, acho que sem lhe prejudicar a fama, nada acrescenta à sua produção. Continuo a preferir “Fogo Morto”, a mais bela de suas realizações, “Pedra Bonita”, documento sociológico notável e “Menino de Engenho”, livro de incomparável vivacidade e poesia. Arte Literatura, jornal Folha do Norte, Belém, n. 49, 02 de novembro de 1947, seção “últimos livros”.

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Eurídice Álvaro Lins (especial para a Folha do Norte, neste Estado) Algumas pessoas, leitores e críticos, procuram explicar o motivo de ser “Eurídice” o romance porventura menos valioso do sr. José Lins do Rego, com a circunstância de haver o seu autor se afastado ao ambiente nordestino dos engenhos, buscando situar enredo e personagens no espaço diferente da grande cidade. (1). Trata-se de uma explicação bastante arbitrária e simplista, ainda menos razoável quando aparece envolvida em propósitos condenatórios. Não é esta a primeira vez que sr. José Lins do Rego procura material romanesco fora do Nordeste: a ação de “Água-mãe” se desenvolve em Cabo Frio, e este é um de seus livros afirmativos e bem realizados. Não é esta a primeira vez que o sr. José Lins do Rego realiza um romance urbano. “O moleque Ricardo” se desenvolve na cidade do Recife, e este é um de seus melhores e mais importantes romances, um ponto alto na grande obra de ficção que é o “Ciclo da Cana de Açúcar”. De qualquer maneira, a circunstância de se ter voltado o sr. José Lins do Rego para novo ambiente e novo processo, quando poderia explorar indefinidamente o inesgotável mundo de sensações e reminiscências que traz dentro de si próprio, não deve ser tomado como motivo de censura, mas de louvor. Ela indica que este romancista tão festejado e coberto de sucesso, ainda sente inquietações, ainda se movimenta por impulsos idealistas, revela que este escritor, com uma dúzia de livros ainda se acha animado de anseios de renovação e disposto a entregar-se à perigosa aventura de uma troca de caminhos. Ora, com “Eurídice”, o sr. José Lins do Rego se situou na cidade do Rio de Janeiro e buscou a criação literária em plano um pouco diferente daquele que adotara em obras anteriores. Louvamos a coragem da experiência, embora sem aceitarmos o seu resultado. Contudo, uma das causas que determinam a fragilidade de “Eurídice” na categoria arte literária, aparecendo o romance a olhos experientes, como uma realização vaga e incaracterística, não é que o sr José Lins do Rego tenha deformado ou caricaturado, com erros fatais, o ambiente carioca. Antes, o que me parece ser a primeira deficiência dessa obra de ficção é que ela não se situa firmemente em nenhum ambiente característico seja real ou imaginário, verdadeiro ou verossímil. Os atos dos personagens e os aconte-

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cimentos gerais de “Eurídice” se ligam ao Rio de Janeiro como poderiam ligar-se a Porto Alegre ou Fortaleza, Salvador ou Belo Horizonte, Recife ou São Paulo. As referências objetivas ao Rio de Janeiro são referências simplesmente de nomenclatura. A não ser uma ou outra frase do personagem Campos das Águas, nada existe aqui a assinalar o meio carioca. Aquela pensão da Rua do Catete – a dórica pensão de uma viúva com filha solteira – poderia ser transposta para várias outras cidades do Brasil. Nem pelas descrições diretas do romancista, que são poucas e generalizadas, nem pelos caracteres das personagens, nem pela linguagem indireta dos diálogos – será possível sentir em “Eurídice”, com firmeza e verossimilhança, o ambiente do Rio de Janeiro. Então, a consequência é que os seres desta obra de ficção apareciam com a fisionomia esbatida dos déracinés, oscilantes e vagos, como aqueles que não se valham de pés fincados na terra. Somente a personagem Campos das Águas, por um destes inexplicáveis mistérios da criação literária, como que desligado do romance e independente nos seus movimentos, consegue impor-se como figura humana. Quer dizer: o sr. José Lins do Rego não se empenhou resolutamente no assunto e nos problemas deste romance como o fizera nos outros, nos quais revelara aquele “poder de se encarnar profundamente em seus personagens, levando para eles toda a agonia e a vibração de seus nervos”, segundo a anotação do sr. Olívio Montenegro. “Eurídice” é um romance mais anedótico do que agônico; em vez de firme unidade interior da estrutura, o que assinala é a composição em quadros e episódios. Está dividido em duas partes, que só se articulam com bastantes dificuldades. E o próprio autor parece ter sentido embaraços na colocação de uma ponte entre a primeira e a segunda parte, tanto assim que lançou na boca do personagem narrador a seguinte frase: “volto hoje as minhas anotações e não sei como encadear a infância que a memória desenterrou de profundeza tão escura com o que mais parece que seja essencial da minha existência”. Aí se encontra, aliás, o sentido de “Eurídice”: a morbidez da ação do personagem Júlio, herói e narrador do livro, determinada por acontecimentos e sensações da infância. Na primeira parte, temos a sua existência de menino; na segunda, o drama da paixão e [?], que o arrasta, pelo crime, à prisão, onde rememora a sua existência em forma de diário. Embora afirmando desatentamente que nada fez além da “mesquinha” normalidade – e

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como teria, neste caso, uma estória para a ficção? – Júlio é um doente dos nervos, do caráter, da imaginação. O sr. José Lins do Rego teve bom gosto e o senso correto de se conduzir dentro do esquema de alguma tese científica, fazendo o seu herói sair de uma ficha de clínica psiquiátrica. Ele não se refere nenhuma vez à psicanálise ou a qualquer outra doutrina. Contudo, e tanto quanto me é possível neste terreno, creio que Júlio corresponde de certo modo a uma das teorias de Freud, aquela que serve de base para o conceito de clínica de fixação. Freud tinha ideias e experiências muito nítidas a respeito da inexistência do tempo para o inconsciente, partindo-se daí para a hipótese sobre o caráter compulsório da repetição. Eis a fórmula que pode se aplicar a Júlio de “Eurídice”: “O conceito de não existência do tempo para o inconsciente significa que temores e desejos, devido à repressão, se dissociam da continuidade do presente, não participando do desenvolvimento do indivíduo e não são influenciados pelo crescimento ou experiência ulteriores”. É o que acontece com Júlio, segundo o que revela de sua própria existência nas memórias da prisão: ele ficara marcado pelas sensações mórbidas de uma infância infeliz, filho retardatário de um casal de velhos empobrecidos, com uma paixão anormal pela irmã, detestado pela mãe – “filho de velhos”, “podia ser neto”, “filho de uma derrota”. Depois, na existência de adulto, estará cercado e dominado por esses fantasmas, insatisfeito e impotente, fraco da vontade e incapaz para o amor. Posto em presença de Eurídice, sente-se tomado por uma espécie de obsessão por essa criatura vagamente misteriosa, que lhe exacerba ainda mais os nervos descontrolados, com as suas fugas, terminando por matá-la entre as árvores do alto de Santa Tereza. Disposto e desenvolvido de um ponto de vista científico ou objetivo, este romance se mostra, no entanto, insuficiente e frágil do ponto de vista literário. O personagem central é porventura uma sensibilidade, uma inteligência, um caráter? Não. É um ser amorfo e inacabado na arte romanesca. “Eurídice” nem revela a vida interior de criaturas humanas, como nos romances em que predomina o processo de análise psicológica, nem revela uma época ou ambiente, como nos romances em que predomina a crítica de costumes e a apresentação de aspectos sociais. O sr. José Lins do Rego decidiu-se dessa vez pelo primeiro processo, quando sua natureza humana e a forma de seu talento de escritor são mais propícias ao segundo, devendo-

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-se assinalar que nenhum deles é superior ao outro na história universal do romance, que apresenta obras-primas equivalentes nos dois tipos. De resto, nem no romance psicológico deixa de haver ambiente ou sentido social, nem no romance de crítica de costumes faltam análise, caracteres e personagens vivos. Há apenas nos dois planos uma situação de predominância e uma questão de método. Em “Eurídice”, por exemplo, o sr. Lins do Rego quis revelar os sentimentos, as paixões e a vida interior das personagens pela direta análise psicológica, isto é, quis fazer a caracterização pela introspecção. Ora, o que me parece é que ele não teve êxito nessa tentativa. A sua maneira de conceber e realizar literariamente não se enquadra neste processo, que exige especialmente o senso da minúcia, a meticulosidade, a paciência, o olhar fixo na sucessão de camadas em direção vertical para baixo ou para cima. O instrumento de análise do sr. Lins do Rego não se mostra adequado a essa versatilidade de visão, mediante a qual o personagem se revela mais pela introspecção do que pelos atos. E isto explica, sem dúvida, o tomo superficial de Eurídice, onde se encontram lançadas situações psicológicas que o autor nem aprofunda, nem resolve em termos de ficção. Ao contrário, o processo sr. Lins do Rego, do qual já nos ofereceu resultados positivos e magníficos em obras anteriores, consiste no desdobramento da ação romanesca em sentido horizontal, surgindo a psicologia de cada personagem através dos seus próprios atos, diálogos e aspectos exteriores. Um Carlos de Melo, um Vitorino Carneiro da Cunha, um moleque Ricardo, cada um deles nasce, cresce e existe em ligação com o mundo dos engenhos, de modo que se caracterizam junto às feições dos personagens e o ambiente social em que se movimentam. Em “Eurídice”, não; os personagens são esboços ou sombras, inacabados e incaracterísticos, soltos no espaço. Aliás, alguns deles seriam talvez positivas e autênticas criações se o romancista houvesse melhor e mais demoradamente trabalhado na composição de sua obra. Mas o sr. Lins do Rego cometeu o erro de escrever com a sua velocidade habitual um romance de análise, em que tudo deveria ser previsto e elaborado, lentamente, sobretudo se o livro não estava “feito” de há muito na sua memória e na sua imaginação. E ainda neste ponto encontramos um argumento de contraindicação temperamental: o sr. José Lins do Rego não é um general que trace planos e manobras para as suas batalhas literárias, mas um general que avança no escuro, só vendo a necessidade de uma marcha ou

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escaramuça quando terminada a anterior. Assim, um Fontes, um Faria, um Júlio, personagens com tantas possibilidades, ficam apenas esboçados, sem atingirem o plano das completas realizações; uma Eurídice, envolvida no problema do mistério, fica mais fluida do que propriamente misteriosa. Os sentimentos dos personagens, por outro lado, são destituídos de força e autenticidade, ora convencionais, ora arbitrários. Lembre-se, por exemplo, de que a obsessão de Júlio por Eurídice aparece um pouco pálida, sem que o leitor sinta a agitação interior, o frenesi que lhe seria peculiar. Também aquele ódio da mãe pelo filho se torna inverossímil pelo excesso, a não ser que houvesse a explicá-lo uma causa extraordinária ou demoníaca, que não encontramos, todavia, no temperamento da velha senhora, nem em qualquer ponto do entrecho. Isidora, por sua vez, passa arbitrariamente de criatura amada a odiada, numa brusca e inexplicada mudança de sentimentos por parte de Júlio, o que é lícito na arte da ficção, com suas exigências e leis psicológicas muito menos livres, ou muito mais complexas do que as da vida natural. Deixei para o fim a referência ao personagem Campos da Águas, que é sem dúvida a figura mais viva e melhor caracterizada do livro. Nos diálogos, algumas das suas frases são marcantes pela propriedade, graça e pitoresco. Intelectual [?], mas generoso, com seus impulsos cavalheirescos e seus ridículos, ele nasceu talvez da sugestão do Alencar, de “Os Maias”, como já lembrou o sr. Aurélio Buarque de Holanda. Campos das Águas representa o que há de mais sugestivo nas páginas de “Eurídice”. Contudo, falta-lhe ambiente, ou desenvolvimento para viver plenamente. O próprio romancista classifica-o errada e desatentamente, em certo sentido. Encontramos referências como estas: “Não gostava do velho Campos. Implicava mesmo com o homem de tantas palavras difíceis” [...] “ o falar difícil era para tudo”. Ora, em todos os diálogos, a linguagem do Campo da Águas não tem nada de difícil; é uma linguagem simples, natural, trivial, apenas um pouco romântica. Ele fala na linguagem do próprio romancista. Aliás, não há nos romances do sr. Lins do Rego diferenças sensíveis entre a linguagem direta do autor e a linguagem indireta dos personagens. Esta é, aliás, uma deficiência de quase todos os romancistas brasileiros, pois uma arte do romance é fazer cada personagem exprimir-se verbalmente com o estilo peculiar e sua maneira de ser. Além do mais, quanto ao estilo e a linguagem, como este último romance se acha empobrecido, desvalorizado, em com-

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paração com outras obras do autor! O sr. José Lins do Rego não é estilisticamente um escritor correto, nem exemplar, do ponto de vista acadêmico. Possui, contudo, uma maneira de expressão original, personalíssima, vibrátil, colorida e sugestiva. No entanto, quase tudo o que há de particular de sedutor e pitoresco no seu estilo desapareceu em “Eurídice”, no qual se sente a ausência de harmonia entre a linguagem e o assunto. É que, em “Eurídice” não se encontra refletida a personalidade do sr. Jose Lins do Rego: nele não se encontram nem as grandes qualidades nem os grandes defeitos, uns e outros característicos e personalíssimos, do seu autor. Este é um livro morno e neutro. Sabe-se, aliás, que está obtendo um extraordinário sucesso, premiado, vendido aos milhares, lido e festejado no seio do público. Na qualidade de amigo do sr. José Lins do Rego, e dos que mais o estimam e valorizam, rejubilo-me com os seus sucessos. Como crítico literário, porém, só posso exprimir a opinião de que “Eurídice”, sendo um livro de leitura agradável e até atraente, não se acha, contudo, na categoria da obras de valor e importância. E talvez esteja obtendo no público o sucesso das próprias insuficiências: é um livro fácil, superficial, sentimental, sem a originalidade que perturba e sem os problemas que fazem pensar. Apresenta sem dúvida vários trechos excelentes e algumas páginas valiosas mas que não determinam o conjunto. Ao mesmo tempo que “Eurídice”, já em segunda edição, estão aparecendo, igualmente reeditados, os volumes de “Ciclo da Cana de Açúcar”, sobre os quais vou escrever proximamente. Neles, sim, encontramos o autêntico José Lins do Rego – presente também em livros como “Pureza” ou “Água-Mãe” – com a sua tão notável contribuição para o romance brasileiro, oferecendo-nos, com uma obra de artista, a história social e o espírito de uma região nordestina, naquele complexo mundo de memória e ficção, em que já não se podem separar os fatos reais e as situações imaginadas, pois são em verdade romances os volumes do “ciclo da cana de açúcar”, e o verdadeiro romance é vida e sonho. Arte Literatura, jornal Folha do Norte, Belém, n. 63, 18 de janeiro de 1948, coluna “Jornal de Crítica”.

_____________ (1) José Lins do Rego – Eurídice – Livraria José Olympio – Editora – Rio – 1947. Pra remessa de livros – Praia de Botafogo, 46.

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No mundo de Graciliano Ramos Paulo Rónai (Copyright E. S. I. com exclusividade para a Folha do Norte, neste Estado) – Sempre me faltou coragem para escrever sobre Graciliano Ramos: Sua obra me comunicou emoções muito diretas, e sinto constrangimento em falar no que tenho de tão íntimo. Por outro lado, o exemplo do romancista leva a gente a empregar as palavras com muita cautela, a desconfiar dos epítetos, a abafar o enternecimento e a admiração. Mas os cinco belos volumes da edição uniforme, juntos na estante, juntos na lembrança, convidam-me a fixar algumas expressões. Não interpretações, absolutamente: a obra de Graciliano, embora densa e complexa, se me afigura de uma transparência cristalina; suas diversas partes se complementam, explicados entre si e pela autobiografia, cujo primeiro volume faz aguardar os outros com impaciência. No banquete que os amigos lhe ofereceram no seu quinquagésimo aniversário, Graciliano Ramos negou sua identidade com certos personagens seus, mas admitiu semelhanças. Uma dessas é, sem dúvidas, a importância que tem para cada uma delas o problema da expressão. Eles são justamente autobiográficos na medida em que estão atormentados por preocupações estilísticas. Paulo Honório, o herói sombrio e rude de São Bernardo, apesar de sua atitude permanente de desconfiança, à vista de possíveis tocaias, resolve, depois do suicídio da mulher a quem amou e tornou infeliz, contar a sua história. Arriscou-se a revelar suas fraquezas, arranjando colaboradores para um trabalho de que não entende. O malogro da cooperação, não é devido a inibições que lhe paralisam as confidências, mas sim a impressão de pernosticismo que lhe dão os dois capítulos encomendados ao periodista Azevedo Godin. Este lhe explica, amuado, que “uma artista não pode escrever como fala” e acrescenta: “Se eu fosse escrever como falo, ninguém me lia”. Paulo Honório resolve então sozinho contar a sua história, como quem fala. Em suas confidências volta constantemente à convicção de que seus desentendimentos com Madalena se originavam da diversidade de seus modos de expressão: “O que eu dizia era simples,

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direto e procurava debalde em minha mulher concisão e clareza. Usar aquele vocabulário, vasto, cheio de ciladas, não me seria possível”. O abismo que existe entre a palavra falada e a escrita, João Valério também o sente. Cada vez que retoma o seu romance histórico sobre os caetés cai no artificial, com ódio de si mesmo; ao relatar a experiência direta de sua vida quotidiana, readquire a naturalidade. Luís da Silva também usa as duas linguagens. Escreveu duzentos sonetos, que despreza, e faz artigos de encomenda, pomposos e vazios, sem se envergonhar disto. O que acha detestável é usar na conversação as frases-feitas de estilo literário. “essas coisas a gente diz no jornal e nenhuma pessoa medianamente sensata liga importância a elas. Mas na sala de jantar, fumando, de pernas trançadas, é falta de vergonha”. A língua escrita, comercial e vazia, quer sair da letra de forma e impor-se às pessoas vivas, forçando-as a separarem-se da realidade e a participarem de um conluio estilístico. O herói do conto A testemunha falava como toda a gente, mas “o juiz lhe traduzia a prosa vulgar nessa linguagem arcaica, pomposa e errada”. Só um analfabeto como Fabiano inveja às pessoas cultas, simbolizadas por seu Tomás da Bolandeira, a sua capacidade de enfileirar palavras compridas e arrevesadas. Luís da Silva odeia essas palavras que o afastam de outras miseráveis; e começa a antipatizar com Julião Tavares pelos clichês que este usa. O estilo brutal e seco, incisivo e propositadamente vulgar de Graciliano Ramos mostra que ele partilha da ansiedade com que seus protagonistas procuram reconduzir os meios de expressão ­à sua finalidade primitiva, desenvolvendo seu sentido inicial às palavras ou abandonando-os sem piedade quando incorrigivelmente deformados pelo abuso do fraseado. Caetés, desservido pelo próprio autor, que não deixa passar ocasião para qualificá-lo de fracasso, e pelos seus outros romances, com os quais sustenta mal a comparação, é longe de ser um livro morto. Anima-o um fôlego intenso. Apenas o protagonista é pálido demais ao lado de comparsas delineados com traços vigorosos. Quanta vida em Padre Atanásio, diretor da Semana, no tabelião Miranda Nazaré, no farmacêutico Neves, no mitônomo Nicolau Varejão, e em todos aquelas palestras inconcludentes, tortuosas, cheias de desvios e disparates! Como aquela cidadezinha do interior alagoano reflete todas as cidadezinhas do mundo, e, ao mesmo tempo, como deve condensar a

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existência estagnada de mil perdidos lugarejos do Brasil. Talvez seja o único livro de Graciliano feito com a intenção de pintar ambientes; os outros, o ambiente emana dos personagens como que a revelia do autor. Se Caetés, em muitos pontos lembra contactos com leituras e talvez até com modelos, já anuncia o romancista das vidas falhas e dos gestos murchos, dos quartos sem ar e das ruas sem horizonte. Anuncia também o virtuose do estilo, de espantosa segurança. A carta anônima pela qual Adrião Teixeira vem a saber da infidelidade da mulher é um dos pontos altos do romance: contém uma resumida história íntima de quem a escreveu; sua carolice, suas limitações intelectuais, suas atitudes políticas; evoca o ambiente que a torna possível e a determina; e revela também no autor do romance a força ao mesmo tempo corrosiva e construtora de uma ironia congênita, velada mas atroz. Leio São Bernardo pela terceira vez, e cada vez fico mais subjugado. Paulo Honório seria grande personagem em qualquer literatura. Por que milagre esse mandante de assassínios, senhorio brutal, causador do suicídio da mulher, homem completamente amoral, suscita compaixão e simpatia? Evidencia-se nele o indivíduo determinado pelas antecedências e pelo meio, o produto social que se adapta à sociedade como esta lhe parece. Julgava que não tinha outro dever na vida senão subir; esbarra em obstáculo imaterial e frágil, que não consegue vencer, e que, finalmente, lhe escapa das mãos; e ei-lo, num dos espetáculos mais patéticos já exibidos por um escritor, a procurar o sentido da vida gorada, empunhando a caneta com os dedos emperrados, contendo a custo as odiadas expansões de sua ternura. Apesar de toda a pureza de linhas deste romance, cada releitura revela sempre novas zonas na alma supostamente primária de Paulo Honório. Também há isto: que o romance não é só dele. Leiamo-lo como a história da vida e morte de Madalena, ou da decadência de Padilha, ou das transformações na fazenda São Bernardo, e teremos outros tantos romances diferentes embora igualmente dolorosos e verdadeiros. A técnica do romancista talvez tenha atingido aqui a maior perfeição. Aquele momento de serenidade de Paulo Honório subindo na torre da igreja; sua repentina isenção de alma ao contemplar, de quinze metros de altura, as coisas do mundo: depois, mal chegando ao solo, a nova ofuscação do seu espírito; a últi-

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ma explicação com Madalena, e o desfecho brutal, aterrorizador apesar de já sabido e esperado, graduam a emoção e resolvem a tensão como num fim de tragédia grega. --Retomando Angústia sinto-me preso novamente, desde o início, na barafunda infernal de uma imaginação hipertrofiada. Nenhum livro é tão fiel à impressão provocada pelo título. Esse Luís da Silva, que não vive, que nunca viveu transfere todas as suas capacidades para o campo da vida imaginativa. Mas a sua imaginação não lhe fornece sucedâneos da vida não vivida, como para a maioria dos introvertidos e dos tímidos, ela funciona unicamente para atormentá-lo, envenenar-lhe as feridas e mantê-lo num quase delírio. Acostuma-se a ver nas pessoas além do que são, o que foram, o que serão, o que poderiam ser, e em seu espírito as diferenças entre esses estados desaparecem progressivamente. Primeiro prolonga em sonho qualquer realidade, depois prolonga em realidade um sonho, e executa de verdade o assassínio que tantas vezes já cometeu mentalmente. Há neste livro, ainda mais que em São Bernardo, uma atmosfera de inevitável que torna o pesadelo ainda mais opressor. A despeito da recusa explícita do escritor a reproduzir o ambiente, este se desprende dos personagens e dos acontecimentos, e acabamos por ver com absoluta nitidez as duas miseráveis casas juntas onde se trama e se desfaz o romance falho de Luís da Silva e de Marina. Em ambos os livros as personagens agem e debatem-se como dentro dos muros de uma prisão; ambos formam como que um círculo fechado, e vão acabar no ponto de onde partiram. ... Em Vidas Secas, por necessária reação contra suas criaturas anteriores, mais ou menos autobiográficas, todos saídos pelo sentimento ou pela ideia, o romancista apresentou um grupo de personagens impermeáveis ao pensamento. É uma tremenda prova para um escritor de inteligência agudíssima e de doentia sensibilidade apresentar seres embotados e quase irracionais de tão toscos. Graciliano Ramos venceu-a magnificamente neste livro de extrema simplicidade. A construção parcelada do livro, embora em parte devida a circunstância exteriores, adapta-se perfeitamente às exigências do assunto. Para gente de vida interior tão primária como Fabiano e os seus, não há acontecimentos circunscritos e acabados, nem

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evolução de rumo determinado. Em cada instante eles estão com sua vida inteira no espírito e nos olhos. Por isso o escritor representou essas vidas secas num quadro contínuo, único, de que ele passa a iluminar ora este ora aquele setor. Fato bem característico da arte de Graciliano Ramos: a primeira vez que ele exprime explicitamente um sentimento de compaixão para com suas criaturas, fá-lo no caso de personagens em que menos incluiu do próprio eu. Outra maneira essa para medir a carga autobiográfica dos protagonistas de Graciliano, a qual aumenta na proporção da crueldade com que são tratados. ... Assim, Infância, é o seu livro mais cruel. Luís da Silva, que se considera “uma criaturinha insignificante, um percevejo social acanhado, encolhido para não ser empurrado pelos que entram e pelos que saem”, julga-se com mais piedade de que Graciliano a si mesmo, aos seus e à própria mocidade. A sua máscara ríspida, desconfiada, propositadamente insensível, é mais que suficientemente explicada por uma infância tão sem alegria, tão subjugada por medos irracionais e, entretanto, motivados; o que é espantoso é a capacidade de compreensão humana que aquela criança pisada e desprezada pode armazenar e salvar através de tantas atribulações para depois abranger num sentimento fraterno todos os infelizes que há dentro e fora dos seus livros. Vários capítulos dessas memórias relacionam experiências do autor com cenas de seus romances; a palavra “inferno”, que tão estranha repercussão provoca no cérebro obtuso de menino maior em Vidas Secas, já produziu anteriormente reviravolta análoga no pequeno Graciliano. As etapas da evolução interior desta criança, lentas e desiguais, iniciam-se quase sempre em seguida a alguma frase pronunciada por alguém sem intenção e que no espírito da criança percorre caminhos tortuosos, desembocando em consequências imprevisíveis. Da mesma forma, em seus contos uma frase convencional (“esta menina sabe onde o diabo dorme”) vem a moldar o caráter da pequena Luciana; outra frase fortuita (“fomos criados juntos como dois dedos”) ilude um solicitante sobre a verdadeira natureza de suas [?] com um poderoso. Até uma palavra bem ou mal pronunciada pode exercer influência decisiva sobre uma alma informe, em ebulição.

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Os bons contos de Graciliano Ramos, encontrei-os num pequeno volume pouco conhecido. Tanto mais preciosos quanto os lábios severos do autor se abrem aí num raro sorriso, malicioso, mas alegre. No volume Histórias de Alexandre, ele teve a feliz ideia de pedir ao folclore o assunto de um livro para crianças. Esse Alexandre, inventor de histórias maravilhosas e inverídicas, é um Munchausen que aparece aqui sobre as troças do matuto brasileiro. Suas saborosas lorotas evocam a fala, os costumes, os homens e os ciclos do nordeste. Os ouvintes acocorados em volta dele – sua mulher Cesária; mestre Gaudêncio curandeiro; seu Libório cantador de emboladas; Das Dores, benzedeira de quebranto, e, sobretudo, o cego preto Firmino, que, de vez em quando, timidamente, opõe aos exageros de Alexandre a voz da razão – formam um grupo de pitorescos notável. As crianças devem ler esse livro deliciadas; os demais admirarão que o menino sem infância, o menino a quem os sofrimentos transformaram tão precocemente em adulto, soube-se acertar tão bem o tom difícil da literatura infantil. Arte Literatura, jornal Folha do Norte, Belém, n. 88, 18 de julho de 1948.

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Rachel de Queiroz Sérgio Milliet A reedição dos romances de Rachel de Queiroz e o livro de crônicas que ela acaba de publicar (A donzela e a moura torta – Liv. José Olímpio – Rio, 1948) deram-me o ensejo de reler algumas páginas excelentes dessa grande escritora. Reli de uma assentada seus três primeiros romances. “O Quinze”, “João Miguel” e “Caminho de pedras” e o que me impressionou agora, mais do que antes, foi a sobriedade admirável de seu estilo. O tema de “O Quinze” foi explorado por quase todos os romancistas do nordeste, e também pelo Sr. Jorge Amado, na Bahia, mas nenhum deles, parece-me, foi tão contundente quanto Rachel de Queiroz na expressão da tragédia, porque nenhum foi tão puro, nenhum se mostrou mais realista. E nenhum soube evitar, como essa escritora, a grandiloquência a que o assunto impele naturalmente. Rachel de Queiroz não só obvia ao defeito, mas ainda consegue manter-se num ponto de equilíbrio e densidade que nada tem de frio, de excessivamente objetivo, de não participante. Sua simpatia pelos seus heróis é visível e, no entanto, ela não cai nunca no sentimentalismo fácil, não tenta jamais tirar partido de efeitos retóricos. A narrativa aproveita apenas os fatos característicos essenciais e os dramas são somente sugeridos, com uma intuição da força expressiva da reticência por certo espantoso, na estreante de então. Em “João Miguel”, que se apresenta mais como novela, conto grande, do que como romance, tem-se, no assunto mais original, outra face do talento de Rachel de Queiroz. O aspecto sociológico passa para um plano secundário. O que importa é a análise psicológica e, primeiramente, a fixação de alguns tipos: Santa, Filó, o carcereiro Doca, o milagreiro, que evoluem em torno da figura, xilogravada com muita decisão e felicidade, de João Miguel. Às qualidades observadas em “O Quinze” acrescente-se agora outra que aos poucos irá brilhar mais fortemente no estilo da escritora: o bom gosto. Nunca, porém, esse bom gosto dominará a personalidade de Rachel de Queiroz a ponto de fazer de sua arte um requintado jogo de palavras. O fundo humano há de sempre constituir um contrapeso suficiente para mantê-la viva e forte. Esse bom gosto terá, entretanto, como resultado impedir que o pitoresco ou a ideologia (como em tantos outros romances dos escritores da geração de 30) assuma

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uma desmedida importância e prejudique o valor literário do conjunto. É o que se confirma, por exemplo, em “Caminho de Pedras”, romance em que a autora nos mostra, paralelamente a uma discreta história de amor, a atividade partidária de uma célula comunista. Em todas essas obras de criação e mais nas crônicas ora reunidas em volume, revela-se Rachel de Queiroz uma escritora em plena posse de seu instrumento de trabalho. E isso merece um aplauso especial, nestes tempos de soltura estilística. Nas crônicas, sobretudo, o domínio da língua e a justeza de expressão se evidenciam nitidamente. Há páginas que são perfeitas pela adequação exata da forma ao fundo. Leio, ao acaso, e caio no retrato de padre Cícero: “Ele era feio, baixinho, corcunda. Parecia um desses santos de pau que a gente venera nas igrejas antigas, feitos grosseiramente pelo artista rústico, a poder de fé e engenho. A cabeça enorme descaía no ombro sungado e magro, a batina surrada acompanhava em dobras amplas o corpo diminuto. Só a carne do rosto, muito alva, lhe dava aspecto de vivo: o rosto e os olhos azuis, límpidos e místicos, que cravavam na gente, penetrantes como uma chama.” Boa parte dessas crônicas fixa de maneira precisa e sintética panoramas do nordeste, são páginas de reminiscências, tão claras e falantes na sua singeleza limpa que constituem magníficos documentos para os sociólogos e os linguistas. Se compreendemos melhor os romancistas do nordeste lendo o sociólogo Gilberto Freyre, os estudos deste se esclarecem e se complementam com a literatura de Rachel de Queiroz. Desse ponto de vista, é indiscutível que essa região do Brasil foi privilegiada. No sul, ainda informe em virtude da imigração e das mudanças econômicas em andamento, não tivemos a mesma literatura expressiva nem os mesmos trabalhos de exegese psicológico-social. Os tipos não estão fixados no sul; eles ainda comportam um aspecto caricatural que pode servir de tema a contos deliciosos, como os de Antonio de Alcântara Machado, mas nada tem de definitivo que permita o desabrochar de uma força representativa, como no nordeste. Quanto aos estudos sociológicos, estamos na fase das monografias técnicas, que o ciclo do café não se fechou, e já o ciclo industrial se abriu numa superposição de dificílima análise. Acredito que dentro de pouco tempo teremos, também, uma produção literária curiosa, quando os efeitos do marginalismo de uma parcela grande de nossa população começarem a

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preocupar nossos escritores. E quando esses mesmos marginais tiverem invadido as letras, quando os nomes estrangeiros principiarem a surgir entre os mais acatados. Por enquanto, há um desnível entre os que escrevem, a gente culta de tradição bandeirante, e os temas vividos em nossa sociedade. Os poucos mamelucos das letras ainda se sentem obrigados a tratar de temas antigos e que lhes são alheios, porque é uma maneira, essa, de se acomodarem, de se protegerem contra os grupos mais ou menos fechados no meio dos quais precisam viver. Para o paulista tradicional, o filho de imigrante é um exotismo que ele só entende superficialmente. E para o imigrante a mentalidade tradicionalista é uma coisa hostil, impenetrável, que ele necessita fingir que assimilou. Para ser respeitável, tem que ser purista e sua expressão se falseia, se convencionaliza. A intimidade com o tema que aguarda seu romancista escapa a ambos. Por isso, as melhores páginas de Antonio de Alcântara Machado são de “Ana Maria”, tema tradicionalista, e os mais agudos aspectos do marginalismo foram fixados por Mário Neme em certos contos de “Donana Sofredora”. Mário de Andrade também conseguiu exprimir um pouco de São Paulo, mas em geral foi brasileiro demais e mais nacionalista do que regionalista (no bom sentido). Os outros criaram uma literatura voltada sempre para a Europa nos seus requintes. E ambiciosa de universalidade. Os raros aspectos honestamente espelhados (Ribeiro Couto nos seus contos; Menotti em muitos trechos de seus romances) dizem respeito ao ambiente mais estratificado do interior do Estado. Outra coisa desejo apontar com este comentário que não pretende apresentar-se como crítica à literatura de Rachel de Queiroz, porém como homenagem por ocasião do aparecimento do primeiro volume de suas obras completas: é a intensa atividade profissional da escritora. Nosso mundo literário não está acostumado a isso. Em geral, poetas e romancistas são, entre nós, amadores. Não no sentido pejorativo da palavra, mas no seu sentido real. Não fazem do ofício uma profissão; não vivem da pena. Daí a estranheza com que olham os que, como Rachel, Lins do Rego, Gilberto Freyre, escrevem regularmente nos jornais e revistas além de publicar romances e estudos, de fazer conferência e de se interessar por todos os assuntos relacionados com a literatura. Quantas e quantas vezes, a esse respeito, ouvi dizer “Fulano escreve demais”, para justificar uma opinião contrária a certo artigo pu-

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blicado ou, mais comumente, para desculpar a própria preguiça. No entanto, ninguém se lembra de censurar a atividade literária de um Gide, de um Mauriac, de um Thierry Maulnier. Sartre publica dois livros no mesmo ano e escreve em tudo quanto é revista e não passa pela cabeça de ninguém em França apontar um defeito nessa capacidade de trabalho. Mas entre nós a vida de cafés perturba a produção, rouba ao escritor tempo não só para escrever, mas também para ler, o que é mais grave. Sem leitura e sem cultura, tudo o que escrevem tem que ser arrancado da fonte muito limitada e caprichosa que é a inspiração. Ora em grande parte o artigo, a crônica nascem do acervo de conhecimentos e também da riqueza humana dos autores, porque esses gêneros são uma espécie de conversa do escritor com o leitor. Para essa conversação são necessários dois elementos: um comentador interessante e um leitor interessado. Este é mais fácil de se encontrar do que muitos supõem, porém o comentador, se lhe faltar bagagem ou se for indigente de meios de expressão, transformará em monólogo insosso o que deveria ser um diálogo apaixonante. Rachel de Queiroz não carece de nenhuma das qualidades do cronista que a gente lê com prazer. Tem, mesmo, a mais, um dom de poesia que dá a seus artigos em alcance maior que o da simples crônica. A personalidade de Rachel de Queiroz é muito homogênea. Daí nunca se esquecer a cronista de que é principalmente romancista e serem as suas crônicas, não raro, pequeninos contos, densos de enredo e de significação. É o caso de “O caminho de seu Silveira”, entre outros, construído classicamente como uma novela de Maupassant. O mesmo se diria de “Chuvas no Ceará”, amputado no nariz de cera. E também de outras crônicas, como “O capote”, “Mr. David, professor de inglês” etc. Referi-me a Maupassant. É bem o Maupassant dos pequenos contos, diário da vida francesa no fim do século passado, que nos lembra do novo livro de Rachel de Queiroz. Suas histórias são, com efeito, anotações de notícias diversas, instantâneos da vida normal, narrativas de cenas características de um dado ambiente. Sente-se que de cada uma delas poderia a autora, se quisesse, tirar material para um romance ou contribuição para o retrato de uma personagem típica. “A donzela e a moura torta”, por exemplo, que emprestou o título à obra, é na sua conclusão um esquema de grande romance (o tema já foi aproveitado por outros [?]).

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Gosto também dos comentários mais descosidos que faz a autora dos fatos do momento. Há neles, sempre, uma grande simpatia pelos homens, as coisas, a vida enfim, uma natural compreensão dos problemas em que nos debatemos, e um cepticismo, não isento de tristeza, porém nada amargo. A estreia de Rachel de Queiroz, em 1930, com o “Quinze” foi uma estreia de mestre. Recordo de Mário de Andrade e Antônio de Alcântara Machado desfazendo-se em entusiasmos diante daquela “pequena obra-prima”. Eu gostava, mas desconfiava. Há tantos autores de um livro só! Quem não escreve no início da vida literária uma biografia aceitável? Quem não tem um caso verídico para contar e que, já pelo fato de ser verídico e ingenuamente puro, comove os espíritos cansados de muito requinte e de muita literatice? Mas “João Miguel” me convenceu. “Caminho de Pedras” era a escritora amadurecida. “Três Marias” revelava uma riqueza de sensibilidade pouco comum. Agora “A donzela e a moura torta”, como remate, comprova as qualidades excepcionais da estilista, da profissional das letras, e dá-nos a esperança de que o novo romance anunciado será uma das grandes obras de nossa moderna literatura. Mais uma reflexão para terminar. Sinto em Rachel de Queiroz uma luta permanente entre o realismo objetivo (que é nela auxiliado por um dom de observação muito agudo e uma facilidade extraordinária de descobrir os traços essenciais das situações e das paisagens) e a tendência para o subjetivismo poético, a divagação participante, o amor ao homem como homem, com suas solidões, seus sonhos, suas decepções, suas lutas. Uma conciliação das duas tendências surge por vezes em certas crônicas, como surge, até certo ponto, em “Três Marias”. O efeito mais sério, porém, dessa luta tem sido livrá-la dos esquematismos fáceis e tentadores, da subordinação de sua arte às injunções do instante político. Mesmo em “Caminho de pedras”, o mais “interessado” de seus romances, a autora evita o terrível escolho da linha de interpretação “necessária”. Ela é antes de mais nada humana e essa humanidade ela não a sacrifica a nenhuma doutrina. Seus heróis, embora produtos do meio em que vivem, e da classe, conservam sua liberdade de ação e de pensamento, apresentando-se ao nosso juízo não como bonecos de engonço que o romancista manobra à vontade, para provar esta ou aquela tese, nem como autômatos movidos por um determinismo inexorável, mas como homens de carne e osso, capazes “até” de idealismos.

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A decisão e a coragem com que escolheu esse caminho honesto e difícil merece mais do que uma simples crítica favorável. Arte Literatura, jornal Folha do Norte, Belém, n. 97, 19 de setembro de 1948.

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Três romances Sérgio Buarque de Holanda (especial para a Folha do Norte, neste Estado). A publicação recente, em um único volume (3 romances: O Quinze – João Miguel – Caminho de Pedras, livraria José Olimpio Editora, Rio de janeiro, 1948), de três romances de Rachel de Queiroz, leva-me a repensar velhas ideias sobre a moda do regionalismo – e também da novela documentário social – que empolgou tanto dos nossos escritores durante os anos de 30. Por mais de uma ocasião ocorreu-me denunciar o apego quase sistemático desses autores e determinados temas, cenários, ou problemas, que prometendo efeitos brilhantes e coloridos, triunfam com facilidade sobre virtudes literárias mais ponderáveis. Seduzindo à maneira de uma reportagem feliz, muitos desses romances nos deixam insatisfeitos. E que, embora excitantes para a imaginação, faltam-lhes justamente as qualidades severas e exigentes que se apuram num tirocínio atento e muitas vezes penoso. Por estranho mal entendido, a atitude, no fundo aristocrática, de tais escritores, pois que renega a monotonia de esforço lento, bom para artesãos e proletários, em favor de uma natural e desordenada vocação, que os eleva à altura de príncipes do espírito e privilegiados da sensibilidade, alia-se, entre nós, constantemente, a doutrinas igualitárias, de sabor quase ascético. Nada mais característico, a esse respeito, do que a coloração furiosamente romântica e individual de quase toda a nossa literatura de inclinações socialistas. Só assim, se explica, com efeito, como o anarquismo sentimental de Jorge Amado para fornecer matéria prima para obras que se presumem inspiradas naquelas doutrinas. O que enaltece e canoniza essas obras não é, certamente, o operário vítima da opressão burguesa e capitalista, mas ao contrário o vagabundo sem lei nem patrão, rebelde pela própria natureza, rixento (embora de bom coração), desordeiro, macumbeiro, grande amigo do mulherio, de sambar e não trabalhar. Por vezes acontece, é verdade, que esse revoltado descuidoso e sorridente consegue comover-se ante espetáculos como o da greve vitoriosa, fruto de um esforço habitualmente concertado e de uma disciplinada vontade, vontade de que ele próprio não se sentiria capaz. Então, Antonio Balduíno, exultante com os cento e vinte mil réis que ganhou no bicho, começa finalmen-

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te a aprender que a luta não é ser malandro, viver livre e sem emprego. “Nem Jubiabá sabia que a luta verdadeira era a greve, era a revolta dos que estavam escravos. Agora o negro Balduíno sabe. E por isso que vai tão sorridente, porque na greve recuperou a sua gargalhada de animal livre”. Mas então já estamos no fim do último capítulo, e o romance vai terminar. O defeito dessa tentativa de caracterização do tipo de romance regional que tantos adeptos fez em toda uma geração de escritores, e em particular de escritores nordestinos, está em que leva a presumirmos suas obras tomadas em bloco, uma pureza genérica, na realidade inexistente. Os traços que parecem distinguir a maioria delas não se encontram, por exemplo, e, sobretudo, nos livros de Graciliano Ramos. E não se encontram nos de Rachel de Queiroz. Lendo agora, de uma assentada, os três primeiros romances desta escritora, cearense como José de Alencar, sente-se a que ponto é arbitrário, para o seu caso, o epíteto “regional”. Se a exploração do motivo da seca domina seu livro de estreia, e se esse livro, publicado pouco depois da Bagaceira de José Américo de Almeida, e talvez um pouco sob seu estímulo, e influência, foi dos pontos de partida da literatura, regional nordestina, o certo é que nos seus outros romances tais preocupações deixam de ser obsessivas ou exclusivistas. Os dramas, as paixões, as personagens que neles se retratam, são humanos e universais, antes de serem cearenses, e só alguma coisa as distâncias de tantas outras criações desse tipo de literatura, é precisamente o pequeno espaço que nelas ocupa o interesse pitoresco da “cor local”. Mesmo no caso isolado do Quinze, o tema da seca não corresponderia, de preferência, à vontade, talvez inconsciente, de por ordem e arte num mundo naturalmente caótico, inacessível em estado bruto a uma visão simples? A seca não é aqui a tela, é, muito mais a moldura que a enquadra, ou o elemento de que o autor se utiliza para definir, condensar, organizar seu universo, reduzi-lo a tamanho maneável, dar-lhe forma e raias nítidas. Corresponde, de qualquer modo, a certa exigência de sobriedade, de harmonia, senão de disciplina exterior, que nenhum dos seus companheiros de geração partilha, talvez, no mesmo grau, com Rachel de Queiroz. O recurso que se serve neste caso para tornar suscetíveis de expressão artísticas contradições do mundo e da vida dos homens é bem conhecido, de resto. Mesmo na literatura de

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nossos tempos ele parece em obras tão díspares e distanciadas entre si, como a Montanha Mágica de Mann ou A peste de Camus. Mais característica de Rachel de Queiroz é apenas a constância desse artifício, que deparamos, mais ou menos visível, ao longo de toda a sua obra de ficção. A ponto de se poder dizer dela, que não conhece, talvez, – e não vai aqui nenhuma censura – outro modo de dar unidade e sentido a sua criação romanesca. No Quinze, a seca, em João Miguel, a prisão, obedecem à mesma função ordenadora e condensadora. No terceiro romance – Caminho de Pedras –, sem dúvida o mais complexo de todos, a moldura é aparentemente menos tirânica. Ela não se insinua sobre os homens com a força de uma fatalidade inelutável; é, ao contrário, criatura de suas próprias devoções e de sua liberdade. Quem não sente, porém, que a “organização”, onde se congregam intelectuais e operários, “gravatas” e “tamancos”, envolve os indivíduos em sua teia complicada, como se fosse um destino trágico, superior aos caprichos pessoais e independentes deles? Mais tarde, Rachel de Queiroz procurará libertar-se de semelhante recurso. Em Três Marias, aliás, o mais desmanchado de seus romances, e que não pertence a este volume, a moldura quase desaparece. Mas se o ambiente colegial não se acha realmente presente, do começo ao fim do livro, sua sombra, ora protetora, ora ameaçadora, continua a pairar sobre as personagens, presidindo a todos os seus pensamentos, palavras e obras. E a última página vamos deixar Guta, a mais liberta das Marias, de regresso para casa; a casa da madrasta, espécie de duplicata do colégio, para de novo subordinar-se, e como de castigo, ao império de sino, das rezas, da cama feita. A exigência de coesão ou disciplina formal, que parecem refletir nestes romances não é, ou não é apenas, uma exigência intelectual. Provem antes de um temperamento singularmente sensível que absorvendo a vida em seu movimento e nas suas sinuosidades, procura, no entanto, restituí-la, não por meio de análises ou descrições meticulosas, mas através de uma visão singela e largamente compreensiva. A arte consumada de seu estilo, que atinge à culminância nas crônicas mais recentes, algumas delas reunidas agora no volume intitulado A donzela e a Moura Torta, busca atingir um pouco a conclusão daqueles emblemas antigos, que – dizia um tratado seiscentista – são como imagens dadas aos espíritos superiores, capazes de representar em um momento e por uma noção simples e desenvolta, o que as nos-

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sas só podem propor sucessivamente, numa longa sequência de expressões formadas umas após as outras, embaraçando-se em vez de ajudar-se pela sua multidão. O vulto de Roberto, em Caminho de Pedras é definitivamente apresentado em meia dúzia de traços e não poderíamos esperar, neste caso, imagem mais significativa: “Conversa banal de apresentação. Um pouco de malícia nos olhos interessados do homem; talvez faceirice do lado dela. E a outra, a que apresentara, queria ir embora. Noemi afinal se resolveu, e o rapaz foi indo com elas. Andavam devagar, ele fumando baforadas longas atirando a fumaça para o ar. Noemi olhou-bem, assim de perfil, enquanto ele caminhava, silencioso. Era alto e triste. Parecia que estava sempre de folga, andava em longas pernadas que comiam o caminho. Tinha um ar de quem vai embora e quando dizia “até logo”, era distante, como se dissesse adeus. Noemi notou isso quando ele se despediu, à porta da fotografia. Não era frio, nem seco, era fugitivo; isolava-se de repente, cortara a comunicação”. É bem possível, aliás, que nas suas novelas, a necessidade de enquadrar a vida em contornos fixos, que serviriam para condicionar e limitar a trama da narrativa corresponda menos a um recurso artístico do que a uma visão particular da realidade. Nela se reflete um sentimento vivo da estreiteza e desesperança do mundo presente, tudo aqui está medido, murado, compassado no espaço e no tempo, seguindo leis talvez caprichosas, mas ainda assim invencíveis. Somos prisioneiros eternos e se procurarmos afirmar nossa liberdade é por meio de vãos expedientes semelhantes ao daquele pichador de trilhos, em Caminho de Pedras, que se afasta da frente do bonde com uma lentidão que parece deliberada, enquanto os passageiros esperam: “Na obrigação a gente anda devagar, a fim de provar que é livre!” Tais expedientes têm, todavia, a missão de tornar a terra habitável e dar-nos a ilusão de que nos movemos por nossa conta dentro do pequenino espaço que nos foi dedicado. Só os mais atilados ou mais experimentados se capacitam de que esse mundo diurno e aparentemente sem mistério, o mundo de ruas barulhentas, das caixas registradoras, dos balcões, das secretarias, e também o das vidas isoladas e particulares – a do caixeirinho que mora numa casa modesta, sua, com cama e rede, a do carteiro de cara magra, que procura um tostão entre os níqueis, e da moça pintada, de vestido de babados, é afinal um mundo de

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mentira. O universo real é caótico, este fica para além das muralhas das convenções e conveniências, que os homens, em muitos casos, vêm edificando através de milênios de labor anônimo. É um pouco essa intuição o que parece exprimir nas Três Marias, o símile da vida a bordo do navio, “a pequena casca de ferro, fumaçando e correndo sobre centenas de metros de água profunda, negra, traiçoeira, gelada”; “qualquer ínfimo peixe anônimo daquele mar, era maior, mais forte, nadava mais, circulava livre e seguro naquele hemisfério que, para nós, era só pavor e morte. No entanto, não valiam nada, nasciam e morriam como se brotasse da água e depois se dissolvessem na água, transitórios e inumeráveis como as ondas que quebram na praia. E, nós, pequeninos, pusilâmines éramos, entretanto, homens obstinadamente cônscios cada um da sua importância e da sua singularidade, identificávamo-nos, preocupávamo-nos, procurávamo-nos através de léguas e milhas de terra, de mar, amávamos em único, uma pequena unidade de homens, marcada com um nome, amarrada inflexivelmente a leis e deveres de remotos e discutíveis origens.” A vida circunscrita por fronteiras precisas como a amurada do navio pode mesmo tornar-se tranquila e ditosa, graças a certos maquinismos que os homens inventaram para se defender da tensão e da angústia. A elas pertence a ideia vulgar do tempo, o artifício do calendário, que torna possível o esquecimento e, ao cabo, uma aquiescência mansa às misérias presentes. “A grande causa do esquecimento” diz-se em João Miguel, “a responsável pela pouca constância no arrependimento, é o tempo não ser como o espaço, uma coisa onde se ir e vir, sair e voltar... o que se passa no tempo, some-se, anda para longe e não volta nunca, pior do que se estivesse do outro lado da terra e do mar. Afinal quem pode manter no espelho a imagem que fugiu?” Nem todos, porém, toleram sem discutir essas máscaras de liberdade. A nostalgia da vida verdadeira e sem disfarce, isenta de códigos caprichosos, percorre ao contrário toda a obra de Rachel de Queiroz. De onde a importância que geralmente assume nos seus livros o que se poderia chamar o “tema da partida”. Há os que partem em busca de aventuras, há os que fogem da penúria e dos flagelos e também os que simplesmente se alijam da cena, como peças de jogo que devem ser retiradas em determinados momentos, para que a partida prossiga de acordo com as regras. No Quinze temos Chico Bento, escorraçado pela seca

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e que “vai para o desconhecido, para um barracão de imigrantes, para uma escravidão de colonos.” Em João Miguel, o embarque do cabo Salu, destacado para o joazeiro. Há ainda a partida de João Jacques, em Caminho de Pedras, forçado a abdicar da mulher e do filho, depois de ter renegado as antigas ideias políticas, e em Três Marias há a fuga de Tereza do colégio, que escala o muro do colégio para ir juntar-se ao namorado. O tema da partida não se esgota, entretanto, nesses poucos casos. A verdade é que uma sucessão de despedidas e fugas – fugas para a fantasia, na distância, na saudade, no amor – percorre todas as narrativas. Mas essas partidas terminam invariavelmente no naufrágio ou no sentimento de amarga e irremediável frustração. É inútil tentar superar nossa condição terrena de prisioneiros, já que toda rebeldia está condenada ao malogro. “Para que vencer o medo, o horror instintivo? Só o medo e o horror é que são justos.” A vitória final há de caber ao colégio, à cadeia, à casa da madrasta, à vida “metrificada, regulável, imutável.” Esta visão de mundo responde bem a uma forma literária onde todas as peças se ajustam entre si para construir uma unidade superior. Nas obras de ficção de Rachel de Queiroz, é em vão que procuramos um “caráter” bem definido, capaz de viver por si só, fora do entrecho que o comporta e de algum modo o determina. Nenhuma de suas personagens, nem João Miguel, nem Guta, de Três Marias, se sustenta sem imediata referência ao conjunto de que participa. Pode-se dizer que, para o sentimento resultante, de equilíbrio pleno, conspira toda a sua arte. A qual é feita justamente de integração e contensão, virtudes muito raras entre escritores brasileiros de hoje ou de qualquer tempo. Arte Literatura, jornal Folha do Norte, Belém, n. 104, 07 de novembro de 1948, coluna “Crítica Literária”.

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Crônica Ninguém tem dó Rachel de Queiroz (Copyrigh E. S. I. com exclusividade para a Folha do Norte, neste Estado) Rio – Não, ninguém mais tem dó. Decerto não é maldade nem coração duro, é que hoje cada um tem que vestir uma couraça protetora, senão ficava doido ou se matava. Tanta coisa ruim, que acontece, tanto sangue derramado neste mundo – que se há de fazer? Que podemos fazer pelos gregos ou pelos que lutam na palestina, pelos milhões de criaturas que morrem de fome na Índia, pela China estraçalhada em vinte anos de guerra, pela própria miséria que pede esmola à nossa porta e morre tísica no nosso quintal? Afinal, a primeira obrigação de quem nasce é cuidar dos outros, é cuidar de si, dar conta da tarefa de viver com o mínimo de dano possível, desfrutando o máximo possível de bem. E, então, para cumprir com esse dever principal, a gente se encouraça, porque, se fosse pensar em cada um dos milhões de sofredores e moribundos, como é que conseguiria continuar vivendo e que possibilidade de felicidade poderia encontrar. Quando lemos histórias de dois os três séculos atrás, nem se compreende direito como é que homens de bom coração e donzelas delicadas suportavam o infame espetáculo que era cotidiano em Londres, Paris ou Lisboa, dos enforcados apodrecendo nos patíbulos, os esquartejados com a cabeça e os pedaços sangrentos espetados em postes às portas da cidade e no longo dos caminhos, secando ao sol e comidos pelos bichos. Como é que um cristão assistia a suplício público, sem morrer de horror? E todos nos parecem bestiais desalmados, não mulheres e homens nossos irmãos, mas alcateia de lobos e lobas sedentos de sangue, sem noção de piedade nem sequer de humanidade. Bastaram, contudo, estes poucos anos de guerras e lutas políticas para que desses ferozes antepassados nós nos aproximássemos e a eles nos igualássemos como uma mão com a outra; que feras somos agora, em que este mundo nos tornou! Às vezes suponho que entendo o dogma do pecado original quando penso em que há realmente uma espécie de respon-

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sabilidade coletiva nos pecados dos homens, uma sorte de contaminação de maldade e crueldade, como há contaminação de moléstia. Todo crime cometido desprende em redor de si uma aura que vai infeccionar os outros em torno, espalha uma onda de peste, apanhando maus e inocentes sem distinção, acumpliciando-os ao malefício, e indo tão longe que nem se lhe pode medir o raio. E a única defesa que têm os homens contra a miasma é endurecerem o coração, fugirem ao contacto não pensando naquilo, procurar lavar as mãos como Pilatos lavou. No fundo, o que todos sabem é que a carga é pesada demais para as forças do nosso fraco coração. Bem cedo, os da nossa geração começaram a sua aprendizagem de defesa. Os primeiros pogroms contra judeus na Alemanha nos deixavam transidos de revolta e compaixão. Depois – meu Deus – a gente se lamentava e escrevia a respeito, e os que podiam lutar, foram lutar contra os nazistas, mas lá no íntimo nos esforçávamos por não saber demais, não nos interessar demais pelos sofrimentos dos judeus, não lhes conhecer com maior proximidade as misérias e as dores pavorosas, pois sabíamos que não tínhamos de onde tirar forças para enfrentar de olhos abertos. E, passo a passo, fomos nos empedernindo. Tivemos muita experiência para nos calejar – uma guerra atrás da outra: a da Espanha, e da Abissínia, a da China, e cada qual mais feroz. Assim, quando veio a segunda grande guerra estávamos tão habituados a bombardeios e morticínios quanto os súditos de Maria Tudor com os enforcados da rainha. Não que nos desinteressássemos da luta, pelo contrário, por ela nos interessávamos apaixonadamente. Mas por outro ângulo. Encarávamo-la dum ponto de vista estatístico, líamos gravemente o número de mortos e feridos nos telegramas dos jornais com a mesma impassibilidade com que líamos o número de quilômetros adiantados ou atrasados nas investidas. Nos afundamentos, o que nos preocupava era a tonelagem perdida e a possibilidade da sua substituição, – e não os náufragos e afogados e o seu pavor e a sua morte horrível. Depois, como, apesar de tudo, a alma continua sensível e gosta de comover-se dentro de certos limites, já que não podíamos arcar com o peso esmagador dos sofrimentos dos homens, passamos a chorar, não por carne, mas por pedra, pelos tesouros da civilização e os edifícios ilustres que a guerra destruía. E assim choramos Coventry arrasada e o mosteiro de Cassino

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destruído; os mil anos de história daquele convento feitos caliça e ruína nos doeram com muito maior intensidade do que os milhares de soldado enterrados debaixo dos seus escombros. O fato é que o coração sabe inventar muitas astúcias para se abster de sofrimento; cria diferenças entre o gênero humano, separa-o em várias camadas, emprestando a cada grupo diverso a vulnerabilidade, a sensibilidade, e até mesmo a realidade que lhe convém. Primeiro, se o caso é de guerra, logo traçamos um rico divisório entre amigos e inimigos e imediatamente deixamos de sentir qualquer emoção ante a destruição mais cruel e desumana que sofra o inimigo. Inimigo não é gente, é uma simples abstração ameaçadora, micróbio daninho que somos obrigados a liquidar a fim de sobreviver. Em seguida, quando nos começa a magoar o sofrimento dos nossos soldados, tratamos de nos sugestionar com a ideia de que ao se tornarem soldados ficam os rapazes de certo modo diferentes, como se a farda os imunizasse às dores e à fadiga. Como os amamos, transformamo-los desta vez não em micróbios, mas em semideuses inacessíveis aos nossos males, e só os imaginamos em arrancadas gloriosas, sobrenaturalmente protegidos, e não pensamos na lama, nem nos pés machucados, nem no peso do equipamento, nem no cansaço, nem no sono, nem no frio, nem na saudade que eles sofrem, nem no medo, coitadinhos, no grande terror que hão de sentir os pobre meninos de armas na mão, em terra estrangeira, tendo que matar e morrer. Para nós são todos Hércules com a sua clava, dotados de coragem, e de força sobre-humana tão acima de nossa miserável condição que já nem nos lembramos que entre nós nasceram. Na vida cotidiana, é uma linha de pensamentos bem semelhantes que nos habituamos a alimentar em relação aos pobres: não admitimos que partilhem eles da nossa sensibilidade e da nossa delicadeza. Convencemo-nos de que fome e doença e frio “acostumam”, que eles não reagem a essas desgraças como nós reagiríamos – nós os delicados, os sensíveis, os sutis, os privilegiados. De raro em raro, desconfiamos de que essa convicção seja mentira – mas logo afastamos tal ideia para que não nos maltrate ou impressione em demasia e nos envenene a doçura de viver e a paz do bem-estar. Agora, no Brasil, por exemplo. Reparei na frieza com que o povo discute as crueldades deste governo ou daquela polícia –

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a passividade, até mesmo a indiferença com que as comenta – ou antes, não as comenta. E os próprios governantes, quando não são fundamentalmente maus, hão de traçar em torno de si aquela linha imaginária que separa amigos e inimigos, roubando aos últimos qualquer sinal de humanidade para que os possam destruir sem remorsos. Só assim se explica a rainha Dona Maria I, de Portugal, mãe de família e devota, mandar enforcar e esquartejar homens, e ainda louvar a própria clemência porque indultou alguns. Ou o senhor Getúlio Vargas, do qual não se conhece nenhuma especial aberração da alma, e que provavelmente não assassinaria uma mulher com as próprias mãos, mandar friamente que uma pobre mulher, e ainda por cima enferma, e ainda por cima grávida, fosse entregue aos carrascos mais desalmados que a raça humana já produziu, para na posse deles ser torturada até a morte. É o que explica nosso atual governo, composto de homens tão delicados na sua sensibilidade cristã, tão preocupados com a moral das famílias, com o divórcio e filhos bastardos, mandarem prender uma menina de dezoito anos, essa colegial Galina Kock, e a atirarem a um presídio, e deliberadamente resolverem expulsá-la da única pátria que conhece (pois chegou ao Brasil com quatro anos de idade e aqui tem toda a sua família) e a lançarem ao abismo da perdição, de opróbrio e crueldade que, segundo eles próprios exaustivamente o proclamam, é a zona soviética da Europa. Ninguém sabe qual a culpa dessa menina e, segundo dizem os jornais mais transmontanos, não se apurou sequer que pertencesse ao Partido Comunista. E, no entanto, vão desgraçá-la, vão jogá-la as feras sem um estremecimento, antes, muito satisfeitos e honrados com o seu gesto – quem? Gângsters, cangaceiros, barões feudais? Não! O governo responsável pela expulsão da colegial é formado de pessoas como nós, médicos, advogados, padres, deputados, senadores, ministros e presidentes, homens que devem possuir coração, que também têm filhas e as amam, e com justificada razão lhes desejam toda a pureza e todo bem deste mundo, que com horror lhes afastam dos olhos qualquer espetáculo vergonhoso, e morreriam de mágoas se as vissem ameaçadas com a sorte que, muito cônscios da sua justiça e do seu direito, tencionam dar àquela desgraçada, desprotegida menina. Arte Literatura, jornal Folha do Norte, Belém, n. 63, 18 de janeiro de 1948, coluna “Crônica”.

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Depoimentos Depoimento sobre Graciliano Ramos Aurélio Buarque de Holanda Rio, “De sífilis terciária um dia, enfim, morreu. Este de alcoice imundo ignóbil filho espúrio, E a terra que o comeu Entrou logo a tomar injeções de mercúrio”.

Claro que isto não é um epitáfio no túmulo de Graciliano Ramos, que está bem vivo e nada tem de sifilítico. – “Mas de quem é a sátira?” – perguntarão. De Graciliano Ramos. Pois não sabem que também foi poeta? Poeta, sim senhores: cantou a civilização egípcia, as galeras gregas, Cleópatra, alguns deuses mitológicos, provavelmente a saudade e o amor, o diabo a quatro. Espinafrou inimigos em quadras como aquela. Sempre diz que o conhecimento da metrificação, educando-lhe o ouvido, lhe foi de grande utilidade para a prosa. – “Para ser bom prosador é preciso saber fazer versos” – é opinião sua. “Onde figura a produção poética do escritor?” – hão de querer saber. Dispersa em jornais do interior de Alagoas, em publicações de Maceió e do Rio. Tudo, porém, com pseudônimo. Tanto o verso como a prosa. Algumas vezes, com as iniciais. Em exposição feita no centenário da imprensa alagoana, vi um semanariozinho de Viçosa um trabalho assinado “G.R.”. Chamava-se de PEQUENO PEDINTE e era de Graciliano Ramos. Por uns cálculos meus, o autor andaria beirando os quinze anos quando escreveu aquilo; ele, porém, me assegurava que não passava dos onze: – Vá para o inferno! Publicar uma peste daquelas com quinze anos! Um fumo! Atira coisas assim, e piores, irreproduzíveis, sempre que insisto no caso. Porque é meio desbocado, o homem, diga-se de passagem. Rachel de Queiroz já observou que às vezes “o velho”, como nós dizemos, fica sozinho, sentado, nos fundos da Livraria José Olympio, a murmurar entre dentes, na sua maneira incisiva de pronunciar tais coisas, as palavras mais cabeludas. – “Tudo” – acrescenta Rachel – “só para se distrair”. Não é, aliás,

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um boca suja por simples depravação. Em parte será o trato dos clássicos, a consciência dos valores antigos de certas palavras, da sua perdida pureza, que o leva a preferi-las a outras, mesmo em conversas um tanto cerimoniosas. Curioso, a tal respeito, o seu gosto de usar o expressivo verbo hoje substituído geralmente por “dar à luz”. Diretor da Instrução Pública em Alagoas, costumava dizer, falando a professoras que lhe iam pedir licença para fins menos justificáveis: – Não pode ser. A lei não lhe dá o direito, não é assim? Agora se a senhora precisar de parir, é possível. É que o romancista bem sabe quanto era frequente o verbo entre os velhos clássicos mais puros – puros na língua e na moral. Que culpa lhe cabe de a palavra se haver sujado com o correr do tempo? Conversa puxa conversa – vai aqui outro fato de seus tempos de diretor de Instrução – entre 1932 a 1936. Iam professoras do interior solicitar-lhe remoção. Que não estavam satisfeitas lá no seu município; aborrecimentos com o juiz de direito por causa do filho dele, menino impossível da escola – uma coisa era ouvir, outra contar; desarmonia com o presidente da junta escolar, que parecia ter o rei na barriga; indisposição com vizinhos, fuxicadas... O diretor bem sabia o que era lugar pequeno – um inferno! Queria remoção. Sem paletó, camisa arregaçada, coçando no cotovelo uma perebinha quase vitalícia, meio cabisbaixo, ouvia a lenga-lenga, pontuando-a, aqui e ali, com um neutro balançar de cabeça, afinal: – Está bem. A senhora não está satisfeita em Quebrangulo, pode-se dar um jeito, não é assim? A senhora vai para Jacaré dos Homens. A professora arregalava os olhos: – Mas pelo amor de Deus, seu diretor! Um fim do mundo! É sair do purgatório para cair no inferno. E arriscava, receosa quanto ao efeito da expressão popular nos ouvidos do diretor, homem de tanto saber: – Um calcanhar de Judas! O diretor, grave, num jeito muito seu, tirava um cigarro da carteira, batia-o na mesa devagar, arrancava-lhe minuciosamente todo o fumo da ponta de cortiço, acendia-o, puxava uma tragada: – A senhora exagera. Tomava de um pequeno mapa do Estado:

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– Está vendo? – perguntava apontando Quebrangulo com um dedo e Jacaré dos Homens com outro. – É perto, não é assim? Muito perto. A senhora exagera. Puxava nova tragada. No mapa, realmente, não era longe... Aí por fins de 1934 – era eu secretário do então prefeito de Maceió, meu amigo Edgard de Góis Monteiro – chegou-me um dia, mandada por este, uma senhora já idosa, que desejava uma apresentação de Edgard para o diretor da Instrução Pública: candidatava-se a um lugar de florista da Escola Profissional Feminina. Datilografei uma carta a Graciliano. O prefeito assinou-a, e lá se foi a mulher. Momentos depois volvia à minha presença com um cartão de Graciliano à diretora da Escola: – Olhe seu secretário, eu não posso levar este cartão. Já não sou menina, mas nunca na minha vida sofri uma desfeita. Aquele homem quis fazer pouco de mim. Li o cartão. Mais ou menos assim: “D. Carmen. – A portadora pretende um lugar de florista nessa Escola. Há disso por aí? Diz ela que sabe fazer flores tão perfeitas que enganam as abelhas. Criado de V. Ex.ª – Graciliano Ramos”. Todos em Portugal somos excelências – diz o Eça como se sabe pela boca de Fredique Mendes, criticando o abuso de “Vossa excelência” entre seus patrícios. Para Graciliano Ramos quase todas as senhoras eram excelências. Vê-se o tratamento solene no bilhete à diretora da Escola Profissional; “o velho” utilizava-o a cada passo – até ao tratar com senhoras amigas. Jogando pôquer em casa de José Lins do Rego, com este e outras pessoas, entre as quais Gilberto Freyre e Olívio Montenegro, a passeio em Maceió, e várias damas, volta e meia Graciliano Ramos soltava: – V. Ex.ª quer cartas? Ou: – Como diz V. Ex.ª ? O hábito creio que lhe há de ter nascido da convivência com portugueses num jornal do Rio, onde trabalhou de foca de revisão quando, ainda muito moço, veio aqui tentar a vida. Homens de extremos, como se vê: palavras cabeludas – e vossa excelência. Nos seus julgamentos, literários ou humanos, a mesma coisa: “péssimo”, “não vale nada” – e “muito bom”, “excelente”. Costuma dizer:

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dade.

– Amigo meu não tem defeito, e inimigo não tem quali-

Pende mais para o julgamento pessimista. O pessimismo leva-o, não raro, à maledicência mais dura. Então, depois de cortar na pele dos vivos, põe-se a exumar defuntos respeitáveis – e os Manes de Rui Barbosa, Machado de Assis, Euclides da Cunha, passam maus quartos de hora. Quando chegou a Maceió, em 1930, feito diretor da Imprensa Oficial, fazia nas suas xingações largo consumo de certos vocábulos e frases que depois viria a desprezar: BORRACHEIRA, CAMPANUDO, PALHADA, PÊLE-MÊLE, ABAIXO DE PÉSSIMO... – O ATENEU? Uma borracheira, não é assim? CANAÃ é abaixo de péssimo. Eça é um dos meus deuses, mas às vezes tem muita palhada. A respeito do BRÁS CUBAS (dizia nunca ter lido nada de Machado de Assis) ouvi-lhe, em dois dias seguidos, dois julgamentos opostos. No primeiro dizia: – Ótimo. Já passei da metade. Formidável, não é assim? Que simplicidade, que força! O desgraçado do velho escrevia bem com todos os diabos. Que HUMOUR! E no dia seguinte: – Uma palhada, não é assim? Uma borracheira! Muito lugar-comum disfarçado! Negro burro, metido a inglês, a fazer umas gracinhas chocas, pensando que tem HUMOUR! Não vale nada! Uma porcaria! Essas conversas geralmente começavam à tarde, em seu gabinete, nos fundos dos prédios da Imprensa, onde Graciliano Ramos passava quase o tempo inteiro, entre os afazeres da repartição, ou conversando, lendo, revendo os CAETÉS, que trouxera prontos de Palmeira dos Índios. Ao anoitecer, trancava as janelas, que davam para uma pobre paisagem de telhados e quintais. De uma delas se divisava uma fábrica de bebidas; viam-se ali operários, garrafas e dornas, e ali terá descoberto Graciliano o “homem triste que enche dornas” e a “mulher que lava garrafas” do seu romance ANGÚSTIA. Fechadas as janelas, o calor, pelo verão, tornava-se forte, agravado por uma lâmpada de pelo menos duzentas velas, para a revisão a que o diretor submetia rigidamente os originais do DIÁRIO OFICIAL. Um dia – nossas relações ainda eram recentes – queixei-me do calor e insinuei com jeito:

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– Não gosta de olhar telhados, os fundos de quintal? – Telhados? Para ver amores de gatos? Não tardou, porém, a perder o costume de trancar-se mal anoitecia. Mas eu ia falando de sua maneira de julgar. Às vezes oferece aspectos singulares. Querem ver? Há cerca de três anos, publicou-se no Brasil, com vivo ruído, um romance de estreia. Encontrei-me com “o velho” poucos dias depois de lançada a obra. – Já leu?... – Indagou-me com invencível entusiasmo. – Formidável, não é assim? Bota num chinelo tudo que é de romancista brasileiro! – Escreva um artigo sobre o livro para a REVISTA DO BRASIL... – Artigo? Eu? Quem sou eu para escrever sobre uma coisa daquelas? Formidável! Li o diabo do livro – 400 páginas – quase num dia. Formidável! Eu sentia-me aterrado: – Mas o quê, senhor? – É isso mesmo! Formidável! É mal escrito como todos os diabos, cheio de lugar-comum, os tipos são todos falsos, sem verossimilhança, a coisa tem muito de dramalhão e de romance policial, podia-se cortar metade das páginas – mas é formidável! E era um agitar de mãos e de quase todo o corpo, como eu nunca tivera ocasião de ver em homem de gestos habitualmente tão medidos. As mãos se moviam num jeito de quem finca – como se Graciliano quisesse fincar na gente aquelas inegáveis impressões críticas. Surpreendi-o, por mais de uma vez, a escrever ANGÚSTIA. Morava então o romancista numa casa perto do mar, na rua da Caridade, ainda em Maceió. A família estava em Palmeira dos Índios. Eram, quase sempre, aos domingos as minhas visitas. A casa tem um muro do lado direito. Eu olhava pelo buraco da fechadura da porta de entrada, que dava para um alpendre, onde costumava ficar o escritor, sentado a uma pequena mesa nua, na qual se via, entre outras coisas, um maço de cigarros, uma garrafa de aguardente e não me lembro se uma garrafa térmica ou um bule de café. Com a cachaça e o fumo, era o café, por assim dizer, um de seus materiais de trabalho – quase tão indispensável quanto o papel, a pena, o tinteiro, o dicionário de Aulete e uma régua. Aulete era manuseado a cada momento, depois de pronto

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um capítulo, um trecho do romance, no trabalho penoso para Graciliano Ramos, da correção. A propriedade de expressão é, mais que tudo, o desespero desse escritor; e ele ouvia a respeito do assunto os conselhos do bom dicionarista. Também quanto à grafia, ia com Aulete em toda a linha: ANCIA, DEFUNTO, CANELA... E a régua? A régua servia-lhe para os cortes de palavras, frases, períodos inteiros considerados inúteis. Que Graciliano não se limitava a riscá-los a mão livre, não: era um minucioso trabalho de desenhista: aplicava a régua na parte correspondente ao extremo superior das letras, passava um traço; depois, no extremo inferior, novo traço; depois enchia de tinta, inutilizando-o, sereno, com vagar, acaso com volúpia, o espaço entre os dois riscos. Como que se tomava de ódio àquilo que escrevera em vão, e nem queria ver a “palhada”. Arte Literatura, jornal Folha do Norte, Belém, n. 27, 25 de maio de 1947.

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Depoimento sobre José Lins do Rego Aurélio Buarque de Holanda (exclusivo para a Folha do Norte neste Estado) RIO – Passei diversas vezes recentemente, pela última casa onde morou José Lins do Rego, em Maceió. Olhando para aquela porta e duas janelas em frente ao mar, eu reconstituía episódios, conversas, cacoetes, traços físicos do José Lins de então. Dos caracteres físicos, o predominante, e de que o escritor veio com o tempo despojar-se, foram as costeletas. Costeletas longas e largas, que lhe davam um jeito pedante, agravado pela eterna presença do monóculo. Era José Lins do Rego ainda bem moço, ao chegar a Maceió; andaria pelos vinte e seis anos. Talvez por trás do monóculo e das costeletas se escondesse o intento de ampliar, com uma aparência mais notável, a autoridade que lhe conferia a sua colaboração domingueira no “Jornal de Alagoas”. Aqueles artigos, escritos em linguagem quase oral, transbordantes de pitoresco, deram-nos a conhecer – a Valdemar Cavalcanti, a mim e a vários outros – figuras como Gilberto Freyre e Manuel Bandeira, e aos poucos deitou por terra o nosso culto dos antigos valores. Graças a eles começamos a aceitar a poesia moderna; a enxergar outras zonas poéticas acima do parnasianismo, cuja superioridade era para todos nós ponto pacífico. Um domingo – lembro-me bem – José Lins desancou um poeta semiparnasiano da terra, apontando-lhe à inspiração novos caminhos. Aquilo me deu um abalo dos diabos, mas de certo modo me agradou. No domingo seguinte, novo artigo. Agora republicando ao poeta, que se defendera, zangado. Aí o escritor revelava. Além do espírito crítico, a posse de um talento polêmico dos mais devastadores que já vi. José Lins estava, pois na minha admiração, embora eu não concordasse com alguns dos seus deslizes e desmandos em matéria de linguagem e estilo, Tanto assim que, quando um velho atado às lutas gramaticais atacou de rijo, numa “carta sem selo”, publicada no jornal católico “O semeador” certos descuidos do crítico, entre os quais um “pés felinos de gato”, eu dei razão ao velho. Corre o tempo, continua a elaboração, José Lins do Rego cresce aos nossos olhos. Um dia apareceu prefaciando os “Poemas” de Jorge de Lima – 1927. Já éramos capazes – e o prefácio

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ainda mais capazes nos tornou – de compreender e aceitar plenamente aqueles versos, de não reagir ante eles como um ano atrás reagíramos em face da publicação do “Mundo do menino impossível”, do mesmo poeta. Admirando assim o escritor. Eu não tinha, contudo, aproximação com ele. Um contato rápido, em seguida a uma apresentação que dele me fez Aloísio Branco, como que lhe deitou as costeletas e o monóculo. O ar de superioridade irônico proveniente desses tremendos apêndices cresceu de ponto, e, apesar de amáveis as suas palavras, senti-me encaramujado e murcho numa timidez quase sem gestos e sem língua. Que interesse poderia ter José Lins do Rego na amizade de um vago aspirante a escritor, tão vago que a bem dizer nada escrevera afora uns versos infamíssimos? Contentei-me, pois, com a devoção à distância do ídolo. Aloísio Branco, Valdemar Cavalcanti, contavam-me as esquisitices do homem, falavam-me dos seus modos bruscos, dos seus livros, da sua letra miúda e ruim. Da letra, aliás, tive eu também notícia pelo comentário de um professor de francês que ensinava a José Lins e com quem Valdemar e eu estudávamos juntos. Esse prof., francês de origem, merece algumas linhas. Magrinho, velho, barbicha grisalha em ponta, como para rimar com o nariz, fino e também pontudo, esbanjava a palavra “filosofia”. Topava filosofia a torto e a direito nas composições de seus alunos. As mais cândidas banalidades os mais coçados lugares comuns, tão naturais em quem escreve, tateante, em língua que não domina, eram para o bom do velhinho – “filosofia”. Pois lá um dia o velho, depois de nos agraciar, mais uma vez com o título de filósofo, graças a umas vulgaridades que eu e Valdemar escrevêramos sobre “Le mariage”, acrescentou, com a sua voz frouxa e meio sibilante, por entre os cacos de dentes: – José Lins também tem muita “filosofia”; mas a letra... Uh!... Essa revelação, a propósito da letra, está claro que me interessou bastante; porém o que mais me feriu a curiosidade foi a filosofia de José Lins de Rego. A despeito da largueza com que o velhote distribuía a palavra, picava-me o desejo de conhecer o filósofo. Não somente o filósofo, mas também – e, sobretudo – o sabedor de francês. Sempre imaginava que José Lins estivesse bem mais adiantado que nós outros, seus admiradores. Que coisas em bom francês não escreveria sobre o casamento

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ou as suas ocupações diárias! Confessando a Valdemar a minha curiosidade, ele prometeu-me ver se, numa das próximas visitas ao escritor, lhe examinava o caderno de exercícios de francês. E dias depois me declarou: – Eu vi os exercícios de José Lins. Ele erra um bocado bom, como a gente. Senti-me muito desiludido, mas um pouco desafogado. Reduziam-se as barreiras entre a minha timidez e as costeletas do grande homem. A frugalidade dos conhecimentos de francês apequenava sensivelmente as costeletas arrogantes, humilhava a ousadia do monóculo. Mais ou menos por esse tempo, Valdemar levou-me à casa de José Lins do Rego. Não era ainda a casa da Avenida da Paz, mas a da rua São Félix, muito perto. Estava ele concluindo um longo ensaio sobre Gilberto Freyre, do qual nos leu alguns trechos – e que mais tarde rasgaria, por insatisfação do estudado. Arrisquei, se não me engano, umas observações, que o escritor ouviu com atenção simpática, mas apesar da simpatia e da atenção, a camaradagem com José Lins do Rego, ainda dessa vez não deitou raízes. As raízes brotariam bem mais tarde, em fins de 1932, com o aparecimento do “Menino de Engenho”. Não me foi dado ler o original, como a Valdemar Cavalcanti, que o datilografou. Mas, publicado o volume, recebi um exemplar. Certa noite o romancista encontrou-me na rua. Cumprimentamo-nos, e eu lhe falei sobre a novela. Ele pegou-me pelo braço e não me largou durante mais de meia hora. Comentei diversas passagens e aspectos da obra – e notava que, embora as observações não fossem de qualidade, pareciam tocar fundo o outro. Talvez pelo sentido lírico, meio sentimental, de que vinham carregadas. Referiam-se a tipos e fatos comuns a minha meninice, a paisagens tão paraibanas quanto alagoanas, José Lins é um romântico, e as minhas palavras estariam resolvendo lembranças que ele transportara para o livro. Mas naquele enternecimento haveria, talvez, acima de tudo, um alvoroço de paternidade primeira e recente. A ligação era já estreita quando eu, durante umas noites dormir, com Valdemar, em casa do escritor, cuja família se achou ausente. A casa era grande e José Lins temia a solidão. Não, contudo, por medo, mas certamente por alguma irregularidade nervosa, que ele às vezes, sem querer, nos despertava, gritando palavras desconexas, nos sonhos muito seus. Mas, afora o

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hiato desses pesadelos, seu sono decorria normal e repousante; tanto assim que ele, madrugador, às seis horas já estava, infantilmente alegre, aos berros pela casa inteira. Tínhamos mesmo de acordar: – Valdemar Cavalcanti e Aurélio Buarque de Holanda conhecidos “Chantas”! “Chantas” era a abreviatura de “chantagistas” – palavra muito frequente na boca de José Lins do Rego, em relação a seus amigos. Porque ninguém mais chegado a brincadeiras – de toda a espécie. Verbais: apelidos, anedotas e mentiras a respeito dos companheiros e conhecidos. Físicos: petelecos atrás da orelha, um golpe com o joelho por trás do joelho da pessoa com quem vai andando; verga-se a perna da vítima; que parece cair, e José Lins dá uma gargalhada: – Ô rapaz, você está fraco. Precisa comer feijão! Das brincadeiras verbais há uma curiosa. Em frente a um café onde habitualmente se reunia o nosso grupo, e hoje imortalizado nas páginas de “Angústia”, achava-se um dia José Lins, com diversos outros amigos, entre eles Graciliano Ramos, chagado de Palmeira dos Índios desde 1930. Anoitecia; e um morcego – vindo ninguém sabe donde nem como – pousou mansamente no ombro do romancista alagoano. Não vale investigar as razões íntimas e sutis da preferência do bicho. Os morcegos ao que parece, são dados a essas visitas literárias. Como se sabe. Um deles já entrou no quarto de Augusto dos Anjos, à meia-noite. O certo é que o morcego passou – àquela hora, que não era a da meia-noite como a escolhida pelo outro para visitar o poeta paraibano, ou pelo corvo para bater à porta de Edgar Poe – no ombro de Graciliano Ramos, com a mesma naturalidade com que a ave preta pousou na busto de Palas. Surpreendeu-nos aquele pousar; e de surpresa logo passamos ao riso. Então José Lins tomou a palavra: – Sim, senhor, seu Graciliano! Cultivando seu morcego, heim? E voltando-se para os outros: – Isso é um morcego domesticado que o velho usa para se poder dizer que ele é um infeliz, que “um morcego pousou na sua sorte”. Arte Literatura, jornal Folha do Norte, Belém, n. 36, 27 de julho de 1947.

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Novas revelações sobre José Lins do Rego Aurélio Buarque de Holanda RIO – Aquela casa da Avenida da Paz, a que me referi em artigo anterior, trouxe-me ainda outras lembranças de José Lins do Rego. Recordou-me outros fatos que, como os anteriormente narrados, poderão servir para o estudo da complexa personalidade do escritor. Não foi somente o caso do morcego que arrancou de José Lins uma pilhéria com o velho Graciliano Ramos. Há mais alguns. Vejamos um deles. O romancista de “São Bernardo” tem, como nem todos ignoram, tinturas mais ou menos fortes de coisas de ciência. Geografia e história parece que ele sabe como gente; discreteia de vez em quando sobre economia política; e não raro, com aquele ar manhoso de modéstia, aventura-se a digressões acerca de antropologia. São os seus “conhecimentos de almanaque” como ele costuma dizer. Para muito lhe serviram os ócios de comerciante e político em Palmeira dos Índios. Ora, um dia caminhavam José Lins do Rego e Graciliano Ramos por uma das ruas de Maceió, quando passava uma jovem paraibana, conhecida do primeiro. Moça branca, branquíssima, com todos os indícios da mais rigorosa branquidade, José Lins cumprimenta-a, e logo depois Graciliano atira à queima-roupa: – Preta! – Preta coisa nenhuma, seu Graciliano! Conheço a família da moça como a palma das minhas mãos. Gente branca dos quatro costados. Não está vendo logo pelo jeito da pequena? – Não importa. Preta. Não viu o sinal? Sintoma das raças inferiores... José Lins calou-se. Daí há dias cruzam os dois com um dinamarquês, um desses brancarrões tremendos, de cabelo de milho. Tinha no pescoço um sinal enorme. Então José Lins puxa pelo braço de Graciliano, aponta disfarçadamente para o dinamarquês, e desfecha: – Preto! – Mas... – Preto! Não está vendo o sinal, seu Graciliano? José Lins triunfou. E contava o caso às gargalhadas, terminando sempre desta maneira:

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– Sim, senhor! E eu que passei três anos ouvindo com a maior atenção tudo o que Graciliano dizia! Às vezes ficava de queixo caído; para mim o diabo do velho era um mestre. Agora é que vi: Graciliano Ramos não sabe nada... “Preto!” Homem, te dana... E vinham novas gargalhadas: – A mim é que aquele velho não me pega mais com a ciência dele... --Fiscal de selo adesivo, atrapalhava-se muito quando, no exercício das funções, tinha de fazer cálculos. Tomando, certa vez, os livros de uma casa comercial, procurou dignamente conferir a exatidão das contas. Pôs-se a garatujar umas parcelas. O lápis incansável povoava de cifras o papel. José Lins, que não sabe ler nem fazer contas em perfeito silêncio, batia os beiços, murmurando números e números. Porém os cálculos não davam certo, não conferiam com os assentamentos do livro – e os olhos do fiscal, de ordinário tão serenos e bons, faziam-se duros e frios, na entrevisão de um dolo. Foi quando interveio o empregado do estabelecimento: – Dr. José Lins, me desculpe... mas parece que há um engano do senhor... o senhor não botou as parcelas em ordem; está somando dezenas com unidades, centenas com dezenas. É um engano não é? O digno fiscal não se aborreceu com a observação; deu por finda a conferência, lamentando-se, numa ligeira gaguez: – É... eu não sou muito forte nessa história de matemática, não... De repente, em plena sessão de um dos cinemas de Maceió, José Lins do Rego aponta, na tela, um artista muito magro e idoso, e grita: – Aquele sujeito é direitinho o Mascarenhas! Mascarenhas era um velho, pernambucano, que andava em Maceió, metido com uns negócios de usinas. De outros tipos José Lins descobriu sósias no cinema, e anunciou a descoberta com o mesmo gesto e o mesmo ruído. Uma das suas manias – que não sei se já perdeu – era a de tirar fiapos dos bolsos da calça e ficar mastigando-os. Já vi umas calças de José Lins inteiramente sem bolsos nas laterais. Costuma dormir cedo, entre nove e meia e dez horas. E se lhe acontece ir a uma reunião em casa de algum amigo, é mui-

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to frequente que depois das nove comece a falar menos, e em seguida a bocejar. Dos bocejos vai passando, aos poucos, a uma posição extremamente cômoda na cadeira em que se acha sentado; espicha-se bem, recosta-se à vontade – comodista que só ele; nota-se-lhe uma séria e desusada economia de gestos, risos e palavras... Daí a pouco está o homem a roncar. Roncar, positivamente. Alguém ri, fala mais alto e ele abre os olhos assustado. Dá uma palavrinha – e põe-se a concitar os outros à retirada. Este hábito se tem desenvolvido, bastante, aqui no Rio. É uma das manifestações de seu egoísmo – egoísmo infantil. Outro aspecto marcante de sua individualidade humana, e que se deve prender a essa infantilidade, é a tendência para a caricatura. Quando, em conversa, se refere a tipos curiosos de suas antigas relações – sobretudo dos tempos do engenho – o exagero entra em cena. Se o sujeito é bochechudo, José Lins põe as mãos à distância de meio metro das faces para exprimir-lhe as saliências das bochechas; se é um barbaças, no gesto de José Lins a barba desce abaixo dos joelhos. E com esta mesma tendência caricatural, reproduz as barrigas volumosas, as vozes finas ou grossas, os olhos aboticados. É uma deformação ingênua, mas que faz rir, pelo espírito de que a anima o escritor, pelas suas próprias risadas, tão saudáveis – convite ao riso geral. Muito dado a confissões – particularmente a respeito da sua obra. Um dia lhe mostrei a minha surpresa ante a facilidade com que ele escrevia um romance: fizera “Menino de Engenho” e “Doidinho”, cada um em cerca de um mês. José Lins me explicou: – Não há dificuldade nenhuma. Tudo o que eu boto nos livros está dentro de mim. Quando escrevo aquilo vai correndo com a maior naturalidade; é como se furasse uma pipa. Naquele tempo – e nos primeiros anos de Rio de Janeiro, para onde se transferiu em 1935 – José Lins do Rego usava chapéu. E usava tanto, que até nas casas em que era recebido costumava entrar de chapéu na cabeça, na casa de uma família de sua grande intimidade ele assim entrava (sem dar bom dia, como tem por hábito) e dirigia-se à cozinha, onde levantava as tampas das panelas a ferver – com a maior naturalidade e o chapéu sempre na cabeça. Uma casa não é só umas tantas portas e janelas, teto, piso, paredes, que encerram friamente vidas sobre vidas. Entre as paredes de uma casa se conserva, impalpável, mas nítida, alguma

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coisa dos seus antigos habitantes – sobretudo daqueles que a marcaram com a longa moradia e com a sua personalidade. O tom neutro do apartamento, espremido e confundido, entre vários outros iguais, esbate e anula mais de pronto as presenças humanas que com ele conviveram. Não assim a casa: com a sua fisionomia própria, única, assimila e absorve profundamente as vidas que lá viveram parte das suas dores e alegrias. Aquela casa da Avenida da Paz, fronteira ao mar, conserva ainda hoje – volvidos quase doze anos – um pouco do romancista que nela escreveu os seus três primeiros romances. Nunca lhe vi abertas as janelas, quando por lá passei ultimamente; mas vi por trás das janelas cerradas – aquela maneira de ver tão grata a Baudelaire – a estante preta de José Lins do Rego, que veio depois a ser minha, os seus numerosos livros, alguns de primeira ordem, os seus quadros, e em meio a tudo isso a figura do escritor, muito menos gordo então, bem mais jovem, já sem costeletas e o monóculo pedante substituído pela simplicidade dos óculos. Por vezes tive quase a sensação física da presença de José Lins do Rego. Pois além das impressões visuais – a mesa de trabalho, o tinteiro de tinta Sardinha, a caneta, o caderno onde ele escreveu o “Banguê”, naquela sua miúda letra garranchenta, espalhando-se por linhas e entrelinhas – não tinha eu a impressão de ouvir os gritos apavorados de seus pesadelos? Uma vez até me aconteceu ver José Lins do Rego saindo de casa comigo, à tardinha, para sentar-se num dos bancos da Avenida da Paz, e ali, diante do mar, com os olhos cheios de uma emoção que o vidro dos óculos mal disfarçava, declamar versos de um poeta pernambucano das suas admirações dos tempos de Academia: Tarde para se ler a “Imitação de Cristo” E os versos dos poetas infelizes! Ou aqueles extraordinários versos do poema: “A Vida”, de Antonio Nobre: Ó grandes olhos outonais! Místicas luzes! Mais tristes do que o Amor, solenes como as cruzes! Ó olhos pretos! Olhos pretos! Olhos cor da capa d’Hamlet , das gangrenas do Senhor! Arte Literatura, jornal Folha do Norte, Belém, n. 37, 3 de agosto de 1947.

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Depoimento de Valdemar Cavalcanti RIO, via aérea (A.U.) Nesta breve entrevista, Valdemar Cavalcanti dá as suas impressões sobre o panorama literário brasileiro no presente momento. Disse-nos o conhecido crítico e ensaísta: – Parece que a literatura brasileira vai mesmo atravessando um período de vacas magras. Estamos quase a meio do ano e creio que não podemos apontar de pronto e sem hesitação quaisquer obras realmente marcantes que hajam saído, nestes cinco meses, dos nossos prelos. Nada daqueles sinais que, por si sós, caracterizam uma época fecunda e uma safra das boas. E prosseguindo: – O que acontece com o romance, pode-se dizer que é bem típico. Os veteranos andam na moita, exercitando-se noutras atividades ou escrevendo devagar, em silêncio. Um José Lins do Rego, que safrejava todos os anos, anda de fogo morto, só produzindo pequenos artigos de jornais. Graciliano Ramos promete suas memórias de homem feito para daqui a quatro ou cinco anos. Jorge Amado não pode ter tempo de cuidar de seu anunciado romance dos emigrantes do São Francisco: as suas atividades de deputado são absorventes. E o mesmo acontece com Amando Fontes. Calado se conserva Érico Veríssimo, desde que chegou dos Estados Unidos. De José Geraldo Vieira, Marques Rebelo, Otávio de Faria, Lúcio Cardoso, apenas promessas. E o mesmo acontece com os calouros do romance. Sabe-se apenas que é possível ainda apareçam este ano os primeiros produtos de Lêdo Ivo, Luiz Jardim, Breno Aciolli e outros. E que fazem os poetas? Bem pouco – continuou Valdemar Cavalcanti. Apenas distribuem as suas mercadorias por cabotagem – pelos suplementos. Um outro reúne as suas poesias completas como quem arruma bagagem. Até um rapaz de seus trinta anos, Odorico Tavares, já fez isso, como se já houvesse dado conta do recado e sentido estanque a sua admirável veia lírica. Os homens das ciências sociais, esses não tiram os olhos da política, preocupados, ao que parece, com os trabalhos da Assembleia Constituinte. Nem há notícias daqueles que, em plena guerra se davam a pachorra de estudar a psicologia do cafuné. E sentimos este fenômeno alarmante: já não aparecem no mercado os ensaios de 500 páginas, os livros grossos, que tanto respeito infundem e criam de repente glórias intangíveis.

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É isso, meu caro amigo. Vacas magras: com pouca carne e pouco osso, como nos açougues – concluiu Valdemar Cavalcanti. Arte Literatura, jornal Folha do Norte, Belém, 16 de junho de 1946.

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Entrevistas Quais as diretrizes futuras do romance? Almeida Fischer entrevista Otto Maria Carpeaux Homem de letras dos mais ilustres, dono de vastíssima cultura literária que abrange não somente as literaturas românicas, germânicas e anglo-saxônicas, mas também, as de língua eslava, Otto Maria Carpeaux já se situa entre os mais legítimos representantes da literatura brasileira. O depoimento do autor de “As cinzas do purgatório”, nome bastante familiar a todos quantos se preocupam no momento com a literatura entre nós, sobre as diretrizes futuras do romance, reveste-se da maior importância, dado o seu profundo conhecimento sobre o assunto.

Graciliano – Síntese de duas correntes Iniciando seu depoimento sobre as diretrizes futuras do romance, entre nós, o grande ensaísta disse: – A inspiração novelística do “pós-modernismo” já se teria esgotado; os romancistas brasileiros começariam a repetir-se; e quais eram as novas tendências, as diretrizes futuras do romance nacional? O termo “Pós-modernismo” define bem certas tendências da poesia contemporânea no Brasil; mas não serve igualmente bem para definir a arte novelística da mesma época. Verifica-se, neste terreno a coexistência de duas correntes antagônicas: o romance social de estilo neonaturalista representado pelos romancistas José Lins do Rego e Amando fontes, e o romance introspectivo, de fundo metafísico, representado por Octávio de Faria e Lúcio Cardoso. Será possível classificar desta maneira os outros romancistas de valor ou renome que apareceram na mesma época, os srs. Jorge Amado, Dionélio Machado, Cyro dos Anjos, Cornélio Pena – todos menos um: a arte de Graciliano Ramos representa aquilo que parecia impossível, a síntese das duas correntes num equilíbrio definitivo. É um esquema dialético, esquemático demais, portanto, que não deve ser tomado ao pé da letra; não se exclui abso-

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lutamente o aparecimento de um ou outro romancista novo, insuflando nova vida a uma daquelas duas correntes. Mas a existência de uma síntese como aquela que Graciliano Ramos representa, já sugere uma afirmação de natureza por assim dizer historiográfica: uma nova fase de evolução do romance brasileiro chegou ao fim.

“Romance panorâmico” e “Romance dramático” Prosseguindo em seu depoimento, Otto Maria Carpeaux afirmou: – A verificação de um novo trend na evolução dos fenômenos literários exige evidentemente novos critérios. Certas alternativas que pareciam fatais no passado, já perderam a razão de ser. Hoje, já não há discussão sobre a alternativa “romance regional” – “romance universal”, o conceito de “um mundo só” precisa ser aplicado à literatura euro-americana, de modo que já não se pode falar em “imitação” ou “reflexo” quando a literatura de determinado país acompanha as evoluções da literatura universal. O romance brasileiro tampouco poderá evitar o trend geral: nem seria vantagem. Doutro lado, aquela alternativa, “romance social” ou “romance introspectivo”, também já perdeu a atualidade, não será possível tirar dela os critérios para definir a arte de Hemingway, Malroux, Graham Greene, romancistas enormemente diferentes quanto aos assuntos e ideologias, mas semelhantes pelo emprego da técnica ‘dramática’, construindo os seus romances de reduzido número de capítulos aos quais cada um representa dramaticamente uma cene. Aí está o critério que não se aplica apenas a determinadas fases da história do romance moderno. Percy Lubbock, o grande crítico inglês, verifica em toda história do gênero a distinção entre “romance panorâmico” e “romance dramático”.

“O Romance futuro será realista” – Naquela fase do romance contemporâneo que se aproxima do fim – declara Otto Maria Carpeaux – estava dominando a técnica panorâmica: tanto no romance social, de estilo neonaturalista, oferecendo grandes quadros da história da nossa época, como no romance introspectivo que, como Roman-fleuve, transformou em fluxo histórico a análise das almas. Essa técnica pa-

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norâmica chegou nos seus representantes extremos, em Proust e Joyce assim como Dos Passos, às fronteiras das possibilidades novelísticas, ao ponto de já se falar em “fim do romance”. Mas não foram meros caprichos técnicos. A forma panorâmica do romance corresponde exatamente ao caos de transição social pelo qual passa o mundo. O novo trend favorecerá, conforme todas as probabilidades de análise dialética, a forma dramática. Esta, por sua vez, está historicamente ligada às fases realistas do romance moderno (Balzac, Dickens). A conclusão seria: o romance futuro não será introspectivo nem naturalista, mas sim realista. Logo se pensa no neorrealismo, atualmente em voga na Rússia. Mas não convém generalizar; e entre os Pilniak, Leonov, Kataiev, Cholokhov também existem diferenças. O romance brasileiro também poderá conservar, dentro da corrente universal, na dependência realista, admitindo-se diferenças individuais. Mas em geral a evolução do romance já revela tendência inequívoca para a forma realista: quer dizer, tende para impor, por meio de técnica dramática, uma ordem estética à realidade observada, o que não realizaram nem o neonaturalismo e nem o Roman-fleuve, expressões de uma época de caos social. O romance neorrealista corresponde a uma nova ordem social imposta à realidade enfim dominada. Arte Literatura, jornal Folha do Norte, Belém, n. 26, 18 de maio de 1947.

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Quais as diretrizes futuras do romance? Almeida Fischer entrevista José Condé (Uma terrível batalha literária... – A novela inglesa o romance brasileiro – escritores que já possuem muito de si mesmos). Prosseguimos hoje com o nosso inquérito sobre as diretrizes futuras do romance em nosso país. Não se pode negar que esse importante gênero literário atravessa, no momento, entre nós, uma fase de transição. Difícil se torna afirmar quais sejam os rumos futuros do romance no Brasil, uma vez que essas novas diretrizes estão condicionadas a uma série de fatores, nem todos ponderáveis. Na “enquete” que vimos realizando sobre o assunto, nossos escritores têm expendido os seus pontos de vista a respeito e pela diversidade deles notamos o quão difícil é afirmar-se que o romance seguirá futuramente este ou aquele caminho. Para o presente número colhemos o depoimento do escritor José Condé, autor da novela “Caminhos na Sombra” figura de relevo da moderna geração de ficcionistas brasileiros. O escritor pernambucano, que é nome bastante conhecido de nosso público, mantém há exatamente um ano, uma seção literária no suplemento do “Correio da Manhã”. José Condé, que é irmão de outro Condé – o dono dos “Arquivos implacáveis” – está escrevendo no momento um romance, ainda sem título, cuja história se desenvolve numa cidadezinha do interior fluminense, que vem sendo aguardado com muito interesse nos círculos intelectuais metropolitanos. Seu volume de estreia, que foi muito bem recebido pela crítica e pelo público brasileiro, encontra-se quase esgotado.

“Uma terrível batalha literária” O novelista de “Caminhos na Sombra”, tomando parte em nosso inquérito sobre as diretrizes futuras do romance em nosso país, declarou: – Acho um pouco precipitado dizer que o romance brasileiro atravessa uma fase de estagnação. Eu trocaria a palavra “estagnação” por esta: “transição”. Em verdade, se examinamos isoladamente o atual panorama de nossa literatura, deixando de lado as generalizações, seremos bem mais prudentes. Vejamos,

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por exemplo, a posição de José Lins do Rego: autor de uma grande obra de ficção, tendo escrito mais de dez romances em vários anos de trabalho – o melhor livro de José Lins do Rego é justamente o último, “Fogo Morto”. Já com Lúcio Cardoso dá-se o contrário: depois de muito prometer com o terceiro e quarto livros, no transcurso dos demais que escreveu nada de novo acrescentou à sua obra. Nesse caso, sim, podemos falar de estagnação. Ou melhor: de repetição. O que estamos assistindo é um período de transição. Estamos na expectativa de uma renovação de valores e de posições. Ou, como diria o Marques Rebelo, estamos às vésperas de uma terrível batalha literária... O duelo entre a geração mais velha e a geração mais nova. Transposto o modernismo, já muito bem realizado o papel dos escritores que surgiram depois de 1930 – vamos procurar agora outros caminhos. Que caminhos serão estes? Bem. Isto é outra coisa. O futuro do romance no Brasil, na China ou na Inglaterra depende de tantos fatores que o “profeta” se vê obrigado a botar a viola no saco...

A novela inglesa e o romance brasileiro Em seguida, mostrou-nos José Condé um exemplar de “New Writing and Daylight” para 1946. E comentou: – Alguns depoimentos de grandes escritores contemporâneos foram reunidos. Esses escritores não encaram com otimismo o futuro da novela inglesa. Apoiam suas declarações na existência de inúmeros fatores que têm concorrido para o desprestígio do gênero: o cinema, o rádio, a pequena história, a biografia. Segundo o crítico V. S. Pritchett, “é de se levar em conta um fator que invalida a ficção e compromete o seu futuro. E este é a incontrolável porção de experiência oral enviada pelo écran e pelo rádio diretamente ao público, sem cerimônia, experiência que eram monopólio do novelista, que se encontra na posição similar da do pintor quando surgiu a fotografia”. A mesma opinião é endossada por Arthur Koestler, Walter Allen, Rose Maucaley. Naturalmente que com uma ou outra restrição. E, prosseguindo: – O mesmo podemos dizer do romance brasileiro. Não somente as tendências dos escritores que virão, mas também aqueles fatores de ordem externa, talvez possamos dizer, terão

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influência decisiva no futuro e consequentemente nas diretrizes do nosso romance de amanhã. De qualquer forma, seria uma ingenuidade tentar afirmar que o romance será dessa forma ou daquela outra... Somente o futuro poderá responder com segurança à sua pergunta. Eu não posso e creio ninguém poderá. Isto porque – repito – o romance, como aliás todas as manifestações de arte, são o resultado de muitas experiências acumuladas e do processo mesmo de desenvolvimento e transformação da sociedade. E dizendo isto estou repetindo um lugar comum.

“Escritores que já possuem muito de si mesmos” Após breve pausa, continuou o escritor pernambucano: – Alguns palpites poderão ser dados, tendo em vista o atual movimento literário brasileiro. Depois de 1930, um grupo de bons escritores tem conservado em seu poder o que há de mais significativo no romance nacional. Decorridos mais de dez anos, todavia, poucos valores vieram incorporar-se àquele grupo. Há muita promessa e nada mais. Não surgiu porém nenhum escritor que ultrapassando aquela experiência tomasse rumos diferentes, abandonando as águas já tão intensamente percorridas. De uma forma ou de outra, os novos romancistas seguiram as mesmas pegadas dos que os antecederam. – Hoje, entretanto – continua José Condé – as mais recentes estreias nos colocaram diante de escritores que já possuem muito de si mesmos e que, embora nem sempre bem sucedidos nas suas tentativas, enveredaram por outros rumos e trouxeram sem dúvida uma mensagem de certo modo nova. E isto é uma grande coisa. E, concluindo: – Seus livros, no futuro, responderão acertadamente que diretrizes terá o romance brasileiro de amanhã. Arte Literatura, jornal Folha do Norte, Belém, n. 27, 25 de maio de 1947.

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Outros gêneros Balanço de 1947 José Condé Rio – Via aérea – Apresentamos o balanço das atividades literárias de 1947. É difícil afirmar se 1947 superou com qualidade 1946. De qualquer forma, foi assinalado por bons lançamentos e por acontecimentos de bastante significação na vida cultural do país. Outra observação nos sugere este confronto: se em 1946 tivemos maior número de estreias (boas estreias, diga-se de passagem), 1947 marcou o reaparecimento em livro de vários escritores já consagrados cuja atividade intelectual parecia temporariamente paralisada. Os leitores terão a seguir – de forma resumida e dentro do que nos foi possível realizar – o balanço literário de 1947, feito independentemente de qualquer política de grupo.

Na opinião de 13 escritores Quais os melhores livros do ano? Essa pergunta foi feita a treze escritores. Não foi estabelecido o critério de um livro para cada gênero. Nem todos os escritores interrogados puderam ler todas as obras aparecidas em 1947 e nesse sentido apresentam justificativas (Ciro dos Anjos, Dinah Silveira de Queiroz, Aníbal Machado e alguns outros). Alguns escritores votaram apenas num só livro. Os melhores livros do ano na opinião dos escritores foram os seguintes: Ficção: Eurídice, romance de José Lins do Rego (escolhido por Jorge de Lima, Carlos Drummond de Andrade, Ciro dos Anjos, Dinah Silveira de Queiroz, Maria Julieta e Manuel Cavalcanti); A túnica e os dados, romance de José Geraldo Vieira (escolhido por Adonias Filho e Maria Julieta); O ex-mágico, contos de Murilo Rubião (escolhido por José Lins do Rego, Marques Rebelo e Maria Julieta); Marajó, romance de Dalcídio Jurandir (escolhido por José Lins do Rego); As Alianças, romance de Lêdo Ivo (escolhido por Ciro dos Anjos); Contos Novos, de Mário de Andrade (escolhido por Carlos Drummond de Andrade). Poesia: “Menino de Luto”, de Marcos Konder Reis (escolhido por Jorge de Lima e Lúcio Cardoso). “Poesia Liberdade”,

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de Murilo Mendes (escolhido por Aníbal Machado, Manuel Cavalcanti e Jorge de Lima); “Poemas, sonetos e baladas”, de Vinícius de Morais (escolhido por Carlos Drummond de Andrade, Marques Rebelo e Maria Julieta); “A Veste do tempo”, de Manuel Cavalcanti (escolhido por Adonias Filho e Nicina Coelho); “Um dia depois do outro”, de Cassiano Ricardo (escolhido por Marques Rebelo e Adonias Filho); “Lira Paulistana”, Mário de Andrade (escolhidos por Carlos Drummond de Andrade). “Dia e Noite”, de J. Etienne Filho (escolhido por Ciro dos Anjos); “O morto debruçado”, de Rangel Moreira (escolhido por José Lins do Rego). Outros gêneros Literários: “Jornal de Crítica”, de Álvaro Lins (escolhido por Ciro dos Anjos e Manuel Cavalcanti); “Interpretação do Brasil”, de Gilberto Freyre (escolhido por José Lins do Rego e Jorge de Lima); “Introdução de Machado de Assis” (escolhido por Vieira Coelho); “Tempo dos Flamengos”, de José Antonio Gonçalves de Melo Neto (escolhido por Manuel Cavalcanti e Vieira Coelho); “Forma e expressão do Romance Brasileiro”, de Bezerra de Freitas (escolhido por Adonias Filho); “Geografia dos Mitos Brasileiros”, de Luís de Câmara Cascudo (escolhido por Marques Rebelo); “Problema de trabalho”, de Alceu Amoroso Lima (escolhido por Vieira Coelho).

Na opinião dos leitores – Qual o melhor livro brasileiro de 1947? Qual a melhor tradução? Escolhemos ao acaso dez pessoas de diferentes profissões. Obtivemos os seguintes passos: do Sr. Ary Annan Viçoso Jardim (advogado): “Eurídice”, romance de José Lins do Rego e “O ovo e eu”, de Betty Macdonald; de José Queiroz de Andrade (engenheiro): “Arruar”, de Mario Sette e “Escolhi a liberdade”, de Victor Kravchenko; de Paulo Pereira de Faria (acadêmico): “Introdução à Antropologia Brasileira”, de Arthur Ramos e “A rua”, romance americano de Ann Petry; de Elza Ribeiro (doméstica): “Quando os cafezais florescem”, romance de Stella Leonardos e “Arco do triunfo”, romance de Erich Maria Renerque; de Nelson Baptista de Faria (estudante de odontologia): “Como foi perdida a paz”, de Carlos Lacerda e “Escolhi a liberdade”, de Victor Kravchenko; de Maria Elisa de Castro (empregada numa loja de moda): “O oitavo pecado”, romance de Emi Bulhões de

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Carvalho e “Todos as mulheres são lobos”, de Abner Silver; de José Irineu Lobal (jornalista e redator radiofônico): “Eurídice”, de José Lins do Rego e “O general do rei”, romance de Daphne de Maurier; de Maria Helena de Faria (funcionária do I. A. P. I): “Olhai os lírios do Campo”, (8º edição), de Érico Veríssimo e “Caminho da Liberdade”, romance de Howard Fost; de Lílio Vieira de Paula (funcionário do I.A.P.B e estudante de direito): “A veste do tempo”, poesias de Manuel Cavalcanti e “Escolhi a Liberdade”, de Victor Kravchenko; de Silvio Cunha Ferreira (médico): “Para Dutra ler na cama”, de David Nasser e “O globo desaparecerá”, de Willian Bullitt. Arte Literatura, jornal Folha do Norte, Belém, n. 61, 4 de janeiro de 1948, seção “Vida Literária”.

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Novos e velhos José Lins do Rego Pergunta-me em carta um tanto agressiva, um novo de Porto Alegre. “Afinal, o sr. É contra ou a favor da Literatura da mocidade?” E eu respondo através desta coluna: “Meninos, sou a favor até demais”. Há pouco o mestre Graciliano Ramos, em entrevista a uma revista, dizia mais ou menos o seguinte: “José Lins do Rego, recebe um original, não lê e gosta”. O que exprime em grande exagero, mas que define a atitude de nenhuma inveja e medo dos novos. Sou, por natureza, admirador de todos os movimentos de renovação. Agora, o que não sou é um bajulador de todos os novos e nem tão pouco levo a sério as atitudes de Robespierre que não pode ver a cor de sangue de Lêdo Ivo, moço de verdadeiro talento criador, mas todo possuído do complexo de Ana Bolena. Isto é, do “leva e traz”, só fuxico como condição essencial para vencer. Há pouco me dizia o malicioso mineiro Ciro dos Anjos: “o Lêdo Ivo diz com muita graça: O Lins do Rego não lê um livro e, no entanto, pode escrever um bom artigo sobre o tal livro”. O bom é do Ciro, porque para o diabinho Lêdo Ivo não há quem saiba fazer um bom artigo, a não ser ele próprio, ou Rilke, ao tempo de sua vida. Mas tudo isto seria bem interessante, se o nosso Lêdo não se desse aos exageros das indignidades a propósito de tudo, num afã desesperado de homem mais orgulhoso que um Lúcifer. Ao novo de Porto Alegre eu direi com toda sinceridade: “Sou de vocês, gosto de todas as suas irreverências, mas nada de mesquinharias, porque isto não é particularidade da mocidade, mas vício de velhos. E de velhos ordinários”. Arte Literatura, jornal Folha do Norte, Belém, n. 115, 13 de março de 1949, coluna “Vida literária”.

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Lêdo Ivo responde a José Lins do Rego Em seu último número, a revista “Orfeu”, do Rio, acusou o escritor José Lins do Rego de descambar para um ocaso acadêmico, e essa assertiva deu causa a que o romancista, em artigos sucessivos, nos jornais em que colabora, fizesse o revide visando especialmente o jovem poeta e romancista Lêdo Ivo, cujo nome figura no conselho consultivo da revista. O caso não poderia deixar de obter a repercussão que o caracterizou e o suplemento LETRAS E ARTES tomou a iniciativa de ouvir Lêdo Ivo em face do incidente. Declarou o autor de “Ode ao Crepúsculo”: – Inicialmente, não em atitude de desculpas, mas em pura observância dos fatos, gostaria de lembrar que, não tendo sido o inspirador nem tendo qualquer responsabilidade com a matéria de “Orfeu” considerada ofensiva, deveria ser a direção da revista o objeto das iras do sr. José Lins do Rego. Contudo, parece-me honrosa a escolha feita, pois há algumas semanas atrás, os meus sonetos foram equiparados pelo popular romancista aos de Elizabeth Barret Browning; e a própria revista “Orfeu”, antes de atacá-lo, já fora por ele considerada como uma publicação de “jovens mestres” merecedora, aliás, de uma erudita alusão a Goethe. Em seguida, desejo recordar que, nas páginas de LETRAS E ARTES, já tive oportunidade de censurar a direção de “Orfeu” pela virulência de seus ataques pessoais a escritores mais velhos, vendo nisso uma precária visão estética e humana. Não seria eu, que me levantara contra companheiros de geração quando estes desciam à arena inglória do ataque pessoal, que deveria ser considerado como responsável por ataques idênticos, mesmo porque pertenço apenas ao conselho consultivo da revista, e como prova de que esta função é decorativa poderia apontar o ataque feito a José Geraldo Vieira, a quem estou ligado pela mais viva admiração literária e a mais comovida fraternidade humana.

Não somos uma geração acadêmica Continuando, salientou o entrevistado: – Contudo, examinando o ataque feito ao sr. José Lins do Rego, vejo que o mesmo, que o considera descambado em um ocaso acadêmico, nada tem de insultuoso uma vez que ex-

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terna uma opinião que o atacado poderia e deveria refutar em outros termos. Aliás, essa opinião dos jovens de “Orfeu” me pareceu flagrantemente injusta quando aplicada a uma figura de vanguarda literária como o sr. Sérgio Milliet. Portanto, isso não constitui motivo para que o sr. Lins do Rego injuriasse uma geração inteira, acusando-a de acadêmica, apenas porque alguns de seus componentes libertos do ingênuo e irrisório preconceito antiacadêmico, foram premiados pela Casa de Manchado de Assis. Aliás, pessoalmente não entendo a obsessão antiacadêmica do sr. José Lins que o leva aos maiores exageros e sobressaltos, citando-a a propósito de tudo e insistindo em que na mesma há algumas nulidades, quando o próprio limite das poltronas de Petit Trianon nos leva a considerar que, fora da Academia, o número de nulidades é centenas de vezes maior. Se a academia não lhe interessa, porque ele se interessa tanto por ela? Uma coisa, porém, posso dizer ao sr. José Lins: nossa geração nada tem de acadêmica a não ser que ele confunda com academicismo certa preocupação artística, aliás ausente em sua vasta obra, isto é, uma certa pesquisa formal que consideramos inseparável do ofício do escritor.

A luta de gerações – A propósito dessa luta entre gerações, quero lembrar aqui uma lúcida observação de Jean Cocteau, que após considerar a frequentação da juventude como uma “higiene” para os escritores mais velhos, pois sua insolência e severidade administram neles duchas frias, declara: “...la jeunesse saites e qu’elle ne veut avant de saver ce qu’elle veut. On, ce qu’elle ne veut pas c’est ce que nous voulons”. Este é o nosso drama, sabemos o que não queremos, antes de saber o que queremos, e isso é que cria os conflitos, os choques, as incompreensões. E quando falo em juventude, em nova geração, não me refiro aos inermes, aos conciliadores – não é este rebotalho de gerações que está presente no meu pensamento, mas aqueles que pelo menos têm a coragem de errar e acertar, pouco importa, criando o que nos diferencia dos que vieram antes. Isso porque a nova geração não é um conjunto homogêneo como pareceria a princípio. Nela, há trigo e joio, há os que caminham vivos e os que caminham mortos. É exatamente, embora em ponto menor, como a geração a que pertence o sr.

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O Romance em debate

José Lins do Rego. Toda geração tem os seus problemas, os seus ídolos, os seus objetivos, que se delineiam numa antecipação à obra realizada. Quero crer que a atitude do sr. Rego, escritor responsável, reside justamente no fato de não ter notado isso, limitando-se a elogiar a atitude dos mais novos quando coincidem consigo e o louvam, e verberá-los nos momentos de choque. Devo notar ainda a intransigência do sr. José Lins do Rego, que não tolera o menor ataque nem a mais leva restrição ao seu nome e aos seus livros. O autor de “Riacho Doce” é que pode ser configurado nesse orgulho luciferiano que me atribuiu, em segunda mão, aliás, pois ele mesmo já o atribuía meses atrás ao poeta Paul Valéry. Quero salientar, ainda, que os escritores mais velhos, nesse conceito de geração, são mais ortodoxos do que eu. Não creio em gerações. Creio em figuras representativas que emergem das gerações e as criam numa espécie de mito literário. E estas figuras, estes jeunes monstres, surgem necessariamente hoje ou amanhã, com uma responsabilidade tanto maior porque, para eles, é um “valor de Estado”, uma tradição nacional que eles continuam e transmitem, criando-o segundo as leis de sua natureza, de seu talento e de sua formação. Portanto, acredito que tenha faltado ao sr. José Lins do Rego serenidade crítica para julgar uma geração que, aliás, não o corteja nem se abeberou em seus livros e talvez nem mesmo em sua frequentação pessoal, mesmo porque o sr. José Lins do Rego não é um guia estético. E mesmo quanto aos ataques pessoais que me fez, atribuindo-me até o complexo de uma rainha de Inglaterra, vejo neles apenas a indócil imaginação de um romancista de costumes, que falha precisamente no momento da colheita da singularidade psicológica, confundindo um efeito natural de espírito – que a idade, a retração de crédito literário e as desilusões poderão corrigir – com um comportamento de moral literária. Mesmo porque, se se fosse revelar publicamente o que se diz nas portas de livrarias e cafés (coisas que não frequento) até o finado Djalma Viana ficaria horrorizado. Engana-se o sr. José Lins do Rego a julgar a nova geração justamente pelos seus aspectos mais exteriores, o das revistas e artigos. Na minha opinião, essa parte é justamente a mais inexpressiva porquanto atende à natural necessidade de agrupamento. Aliás, o sr. Álvaro Lins já acentuou que a nova geração está fazendo sua aprendizagem literária nas revistas e nos suplementos, o que uma vez por todas lhe define a imaturidade.

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Pertenço a uma geração que deu poucos frutos, incerta, ainda em processo de culturização e criação. Apesar de ser um de seus componentes, esclareço que não compactuo do entusiasmo desmedido da maioria dos rapazes, uma vez que, dia a dia, mais me convenço de que o que salva a geração não é a sua quantidade, mas a qualidade das mensagens isoladas que a formam. Há uma febre entre todos os jovens em torno do que é uma fatalidade biológica, isto é, o poderio literário do futuro. Ora, parece-me que os artistas autênticos criam por uma fatalidade interior, porque este é o seu destino, sua justificação diante da vida, e não visando objetivos imediatos. Estes podem vir como uma consequência da obra realizada. E sabemos que o poderio literário é bastante ilusório: o direito de publicar livros em grandes tiragens, escrever três artigos diários, doar sangue a instituições municipais diante de fotógrafos, pertencer a um clube de futebol e acusar de ingratidão e incultura os que surgirem depois. O triste das gerações é este: criar belezas e defeitos e, mesmo refugiado nos abrigos antiaéreos da glória artística e editorial, investir contra os jovens. Finalizando, quero pessoalmente dizer ao sr. José Lins do Rego, solicitando-lhe apenas serenidade e adequação de sua linguagem ao próprio plano que ele ocupa em nossas letras: o lugar que ele possui em nossa literatura, ninguém lhe tirará. Nem minha geração, nem as gerações que vierem depois, nem mesmo – como me dizia um malicioso escritor de sua geração – o seu romance “Eurídice”. Arte Literatura, jornal Folha do Norte, Belém, n. 117, 27 de março de 1949.

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Confissões (Vidas Secas) Graciliano Ramos Terrível Condé: Atendo à sua indiscrição. No começo de 1937 utilizei num conto a lembrança de um cachorro sacrificado na Maniçoba, interior de Pernambuco, há muitos anos. Transformei o Velho Pedro Ferro, meu avô, no vaqueiro Fabiano; minha avó tomou forma de Sinha Vitória; meus tios pequenos, machos e fêmeas, reduziram-se a dois meninos. Publicada a história, não comprei o jornal e fiquei dois dias em casa, esperando que os meus amigos esquecessem “Baleia”. O conto me parecia infame – e surpreendeu-me falarem nele. A princípio julguei que as referências fossem esculhambação, mas acabei aceitando como razoáveis o bicho, o matuto, a mulher, e os garotos. Habituei-me tanto a eles que resolvi aproveitá-los de novo. Escrevi “Sinha Vitória”. Depois apareceu “Cadeia”. Aí me veio a ideia de juntar os cinco personagens numa novela miúda – um casal, duas crianças e um cachorro, todos brutos. Otávio de Faria me dissera, em artigo enorme, que o sertão, esgotado, já não dava romance. E eu havia pensado: – Santo Deus! Como se pode estabelecer limitação para essas coisas? Fiz o livrinho, sem paisagens, sem diálogos. E sem amor. Nisso, pelo menos, ele deve ter alguma originalidade. Ausência de tabaréus bem falantes, queimados. Cheias, poentes vermelhos, namoros de caboclos. A minha gente, quase muda, vive numa casa velha da fazenda; as pessoas adultas, preocupadas com o estômago, não têm tempo de abraçar-se. Até a cachorra é um criatura decente, porque na vizinhança não existem galãs caninos. A narrativa foi composta sem ordem. Comecei pelo nono capítulo. Depois chegaram o quarto, o terceiro etc. Aqui ficam as datas em que foram arrumadas: Mudança, 16 Julho de 1937; Fabiano, 22 Agosto; Cadeia, 21 Junho; Sinha Vitória, 18 Junho; O Menino mais novo, 26 Junho; O Menino mais velho, 08 Julho;

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Inverno, 14 Julho; Festa, 22 Julho; Baleia, 4 Maio; Contas, 29 Julho; O soldado amarelo, 6 Setembro; O Mundo coberto de penas, 27 Agosto; Fuga, 6 Outubro. Dou estas minúcias porque me dirijo a um homem curioso, que guarda convite para enterros e cartas de cobrança. Adeus, Condé. Um abraço. Graciliano Ramos. Rio – junho – 1944. Arte Literatura, jornal Folha do Norte, Belém, 18 de maio de 1947, Seção “Os Arquivos Implacáveis”, de João Condé.

15 anos de literatura Com a publicação de “Eurídice”, José Lins do Rego atinge um plano poucas vezes igualado em nossa literatura moderna. Sua obra de romancista, não só reproduz a voz da terra, em sua comunhão com o homem, como a também a própria voz do homem livre de todas as relações e colocado em face de si mesmo. Ligado do início às paisagens do nordeste, evoluindo no pequeno mundo de uma aristocracia decadente, mas inexoravelmente fundida com o cenário de sua própria força e derrota, José Lins do Rego, identificou-nos com esses tipos de autênticos barões feudais com essas populações miseráveis e tristes que lhe formavam a corte. Levantou das ruínas do passado o mundo rural da cana de açúcar, dos engenhos, dos banguês, das usinas. Arte Literatura, jornal Folha do Norte, Belém, n. 49, 2 de novembro de 1947, seção “Vida Literária”.

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Este livro foi impresso sobre papel P贸len Soft 80 gramas (miolo) e cart茫o triplex 300 gramas (capa), em Garamond 11,5 pt, pela Gr谩fica Zil贸 para a Editora da Universidade do Estado do Amazonas, em fevereiro de 2013. Tiragem: 500 exemplares.


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