Realidade de um sonho
Betto Brito
MENSAGEM “Os: velhos sábios. ensinaram-nos a desconfiar do que vemos, não basta ver para crer. Somos de tal modo sujeito a ilusões que, além de ver, nos convêm verificar. E Deus sabe se até no verificar acertamos.” Cecília Meirelles (190l-1964) poetisa carioca
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Introdução Este livro foi escrito aos 13 anos. Surgiu como um desabafo, uma forma de desnudar o meu mundo. Idéias, experiências, sentimentos e tudo mais que envolva o existir. Ele foi escrito e reescrito várias vezes na época. Primeiro foram páginas e mais páginas escrita de próprio punho nas últimas folhas do caderno escolar. Por este motivo, a primeira versão só poderia ser lida de trás para frente. Em seguida, veio à era da modernidade para mim, a máquina de escrever. Uma Remington 25, meu notebook dos tempos antigos que carregava para todos os lados. Em cada momento livre do dia ou da noite, lá estava eu, catando milho, e datilografando minha pequena obra. O Som da maquina de escrever era mágico. Cada batida, cada troca de linha ou folha soavam como uma orquestra ditando o ritmo do meu trabalho e me empolgando cada vez mais. Muitas das vezes, hipnotizado, ia madrugada adentro. Por fim, todas as folhas datilografadas foram guardadas no fundo de uma caixa de papelão, onde ficavam as coisas importantes. O sonho de publicar o livro foi aos poucos sendo substituído por outros interesses. Depois de alguns anos, surgiu a oportunidade para levar o livro à frente. Torná-lo público. Cursava o terceiro ano do ensino médio, quando a professora de Literatura, entra na sala e anuncia que a nota da quarta unidade seria a criação de um livro. No mesmo instante, as batidas da máquina de escrever ecoaram em minha cabeça e uma euforia tomou conta de mim. Primeiro, por ter a nota da quarta unidade garantida. Segundo, seria a oportunidade de ressuscitar o meu antigo projeto. Nesta etapa, tive o apoio de muitas pessoas que colaboraram das mais diversas formas para tornar aquele sonho antigo, uma realidade. Por não lembrar o nome de algumas destas pessoas, prefiro não citar nomes. Mas, tendo a certeza que seus rostos estão gravados em minha memória com muita clareza. Com visitas constantes à casa de um amigo que tinha um computador, pude elevar minha obra um degrau na escala da evolução tecnológica. Digitei no Word 97, com muitas dificuldades, todo o livro em duas semanas. Tive a ajuda de uma amiga redatora que fez a revisão e correção do meu texto, a mesma, por ser também minha grande mestra de desenho, me deu a honra de ter a capa do livro feita por suas mãos. Outros amigos imprimiram e formataram o livro em tamanho A5. Outros se prontificaram a encadernar o livro e vários outros apoiaram e incentivaram como pôde. Depois do trabalho concluído, o livro se popularizou na escola e fora dela. Várias cópias eram tiradas e distribuídas em salas. Grupos de alunos, de uma forma espontânea, começaram a se reunir nos horários vagos para discutir e debater sobre o conteúdo do livro. Na maioria das vezes era na biblioteca da escola, mas formavam rodas de debate em vários pontos da escola. Aquelas cenas me proporcionaram e até hoje, quando lembro, me proporcionam uma grande satisfação. Junto com as cópias, o livro original passou na mão de várias pessoas. Perdendo-se para sempre. Sobrando para mim, apenas as cópias impressas não revisadas. As mesmas que estão servindo de base para ressuscitar o projeto mais uma vez. O que você está prestes a ler pode ser resumido em duas palavras: Questionamento Existencial. Paulo Brito (Betto Brito) Autor 23 de maio de 2008.
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Prólogo No decorrer da vida nos deparamos no dia-a-dia com situações incríveis, em todos seus aspectos, que chegamos a duvidar da sua veracidade. Por outro lado, ao dormir, temos sonhos ricos de detalhes e sensações que ao despertar, nos pegamos por alguns instantes perdidos, tentando distinguir o real do imaginário. O limiar destes dois mundos é algo tão frágil e sensível a mudanças, que constantemente rompemos suas barreiras. Mudanças essas, que ocorrem em nós mesmos. Controlamos de modo inconsciente os limites destes dois mundos. Onde termina o realismo de nossos sonhos e onde começa o sonho de nossa realidade? A proposta deste livro é por a prova esse mistério da existência humana. Despertar em você o questionamento sobre o que realmente é real em sua vida. Será que vivemos uma realidade? Ou fazemos parte de um sonho que a qualquer momento pode se esvair ao despertarmos para a nossa verdadeira realidade? Será que a morte, tão temida por muitos, seria esse despertar? Ou seriam nossos sonhos os fragmentos da verdadeira realidade? Muitos questionamentos podem pulular em nossas mentes e infinitas possibilidades podem ser formuladas. Muitos podem esperar pelo parecer da ciência, outros aceitar os argumentos religiosos, outros, ainda, podem simplesmente preferir não questionar e viver suas vidas regidas pelo sistema. Buscar respostas para o que realmente somos e o que realmente nos cerca, é, e sempre foi, uma das principais buscas da raça humana. O que escolher? De que lado ficar? O que está em jogo? Eu escolhi ir fundo. Conseguir por todos os meios possíveis entender um pouco sobre a existência, através de depoimentos e experiências tentar formular minha própria percepção de mundo, buscando sempre manter uma imparcialidade dos diversos pontos de vista. Embarque em parte desta jornada. Descobrindo, A REALIDADE DE UM SONHO.
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unca esquecerei aquela noite. Encontrava-me lendo um livro relaxadamente no quarto dos fundos da casa que eu morava. Onde eu tinha costumo de passar a maior parte do tempo, apesar de ser um quarto pequeno, de aproximadamente sete metros quadrados. Nele que ficava até altas horas da noite, ouvindo música, desenhando, lendo livros e revistas, procurando entender melhor o mundo à minha volta e a mim mesmo, com toda minha retração para com a sociedade. Naquela noite, algo começou a me consumir por dentro, um calor de uma pequena chama na altura do plexo solar, não demorando muito para esse calor, que parecia abrasar minha alma, se espalhasse por todo o meu corpo, consumindo-me como um sol escaldante. Aquele fenômeno súbito, inexplicável para os meus sentidos, deixou-me entre um gozo preeminente e um martírio férvido. De imediato, tirei minha camisa e procurei abrir a janela para refrescar-me um pouco. De repente, o calor dissipou-se, mas fiquei atordoado perante aquele acontecimento repentino, então procurei acalmar-me. Eram 23h e 13 min de um sábado nos meados do mês de Janeiro. Encontrava-me reprimido em minha cadeira, olhando o quarto à minha volta, os livros na estante, os desenhos na parede e as revistas sobre aquela cama improvisada, que na verdade se tratava de uma velha porta sobre quatro latas de tinta vazias. Após alguns segundos de contemplação, comecei a colocar lentamente sobre essa suposta cama, o livro que segurava em minhas mãos. Levantei-me lentamente e fui em direção à janela, como se algo me conduzisse até lá – Reclinei-me sobre a mesma e vi um céu limpo, sem nuvens, permitindo que as estrelas me presenteassem com seu brilho. Senti naquele momento uma viração cariciando minha face, como se me convidasse a sair desbravando os céus, impulsionado por uma aura errante, que me conduziria a paraísos distantes, dançaria entre as estrelas e viajaria pelo cosmos na cauda de um cometa em direção ao infinito. E foi precisamente o que fiz, impelido por aquele súbito desejo que exercia absoluta dominação sobre meu ser. Após vestir a camisa, desliguei o rádio, peguei o molho de chaves, que se encontrava sobre ele, fechei quarto e saí. Não tinha destino certo. Estava em estado quase hipnótico. Deixei-me levar pelos acontecimentos. Em nenhum momento, me preocupei com o que vestia, saindo como estava, trajando uma camiseta preta sem estampa, uma bermuda jeans ligeiramente desbotada e chinelos Eram exatamente 23h e 41 min, quando deixava a porta de casa. A rua encontrava-se numa penumbra, devido à lâmpada de um dos postes que, graças ao descaso da administração pública, sempre tinha algum problema. Fui andando pela rua até chegar à praça, ficando surpreso ao vê-la vazia e os bares fechados, sem nenhum ser humano à vista. A impressão que tinha era de estar na praça de uma cidade deserta. Após alguns segundos naquele lugar tedioso e sem vida, lembrei-me que sempre tinha seresta em um bar na praia aos sábados onde era de costume as pessoas irem se divertir. Apesar de não ser um boêmio sabia que essas festas noturnas eram bem animadas, com muita dança e muitas garotas, sendo um ótimo lugar para distrair-me um pouco. Esse estabelecimento se encontrava a mais ou menos 1,5 Km dali e pensei que seria uma boa caminhada aproveitando ainda para fazer uma atividade física que há tanto não fazia. Atravessei a praça e fui andando por aquelas ruelas estreitas o silêncio assolava aquele lugar. Aproveitando toda a calmaria que me envolvia, minha mente começou a viajar em pensamentos excelsos que iam além de minha consciência. As imagens que surgiam pululavam como filme em minha mente. Naquele momento, um retrospecto de todas as pesquisas que eu
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vinha fazendo, assuntos religiosos se misturava com ocultismo, que por sua vez misturavam-se com física, química, problemas sociais, psicologia, dentre outros. Aparentemente, uma balbúrdia, mas não, as informações processavam-se de forma ordenada sem se confundirem entre si, algo espantoso. O meu subconsciente parecia formular, enfim, uma conclusão para todas as indagações que há tempo venho fazendo a mim mesmo. Repentinamente, tudo parou em minha mente, o vazio passou a reinar dentro de mim sem explicação, o êxtase que até momentos antes me consumia, parou. Fiquei abobalhado, não pensava em coisa alguma, como se tudo tivesse sido apagado de minha mente. Logrei que pelo menos um fio de pensamento invadisse-me, tirando-me daquele estado não muito agradável. Continuei andando, apesar dos acontecimentos que se sucediam em meu ser. Em nenhum momento me atemorizei com os fatos, as sensações, os pensamentos e até o vazio que sucedeu depois, pelo contrário, fascinavam-me. Então, uma palavra me veio em mente e essa palavra começou a ecoar dentro de mim, como se fosse ela que orquestrasse o universo, desempenhando absoluto domínio sobre o tempo e o espaço, sendo o bem e o mal pertencentes ao seu reino, como se a vida não pudesse existir sem sua regência; essa palavra simples, cujo significado e poder a humanidade ainda desconhecem, mas que procura frustradamente, desde os primórdios, explicar e descrever seu potencial - o amor. Após 10 minutos de caminhada, quando comecei a cogitar melhor sobre aquela palavra, a minha solidão foi quebrada. De uma daquelas ruelas, moveu-se um vulto em minha direção. Freei bruscamente meus passos, meio que atordoado por aquela inesperada companhia. Por um momento, pensei que poderia tratar-se de um brejeiro, figura bastante comum naquela cidade, pois estávamos numa época em que muitas pessoas passavam ali suas férias de verão. Quando aquele ser errante saiu da penumbra e se deixou iluminar pela luz do poste, logo minhas suspeitas se viram negadas, pois se tratava apenas de Samuel, um amigo que ficou surpreendido ao ver-me na rua àquela hora da noite. Após alguns minutos de conversação, ficamos de nos encontrar na seresta para ele apresentarme algumas garotas. Ele estava indo a casa dele fazer uma "boquinha" e convidou-me para ir até lá. Mas preferi ir em frente e espera-Io na festa. Após aquele bate-papo, ele afastou-se, ocultando-se em uma daquelas ruelas e eu continuei a minha jornada. Já passava da meia-noite, quando cheguei à praia depois de certo tempo de caminhada, sem nenhum acontecimento misterioso. O bar ainda ficava a certa distância, mas já dava para escutar a música que tocava e ver o movimento das pessoas. Resolvi seguir o resto do percurso pela praia, tirei meus chinelos e comecei a andar em direção à água na diagonal. No começo, a areia estava fina e fofa, atolando meus pés, dificultando meus passos. Pensei em recuar, mas algo me puxava para a praia, uma força desconhecida, que continuava a me dominar. Minha dificuldade de caminhar logo cessou e a areia foi ficando mais firme e úmida à medida que descia em direção à água. Por fim, cheguei perto da água deixando que as pequenas ondas beijassem meus pés, retirando deles parte da areia e refrescando-os com suas águas frias. Fiquei por alguns instantes em frente ao mar, contemplando sua grande serenidade e suas pequenas ondas; novamente uma viração voltou a acariciar-me, sendo dessa vez mais completamente. Via aquele mar com novos olhos, de uma forma que nunca pensei que enxergaria; contemplava cada oscilação de suas ondas que ritmicamente vinham tocar a areia, produzindo um melodioso som que me fez fechar os olhos, permitindo, assim, que o sentisse em toda sua plenitude. Comecei a indagar do fundo do meu ser: "Como poderia um som, que antes ouvia sem dar muita importância, ter-se transformado em algo tão tênue que afaga meus ouvidos com tanta sutileza? Como pude ter sido tolo em não perceber tão bela música antes? Será que foi aquele som que se transformou ou sou eu que estou passando por uma metamorfose?”. Naquele momento de questionamento interior, comecei a erguer os braços ao longo do corpo, em quase total envergadura, permitindo que a brisa circundasse melhor meu tórax. Lentamente,
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fui levantando a cabeça para me deslumbrar com aquela pequena fagulha do cosmos que se encontrava sobre mim, levando-me a entender como somos seres tão pequenos e imaturos ao ponto de sermos vulneráveis a nós mesmos, sendo criaturas frágeis que ainda estão engatinhando. Após alguns segundos de silêncio, comecei a andar em direção ao bar. Caminhava lentamente, meio que chutando as ondas, olhando para baixo, elevando a cabeça às vezes só para ver se faltava muito para chegar. Meus pensamentos se encontravam longe dali, buscando entender o mundo, Tomando como base uma única palavra - AMOR. Seria ele o combustível que faz o planeta girar? Seria ele algo tão grande que o homem se viu na necessidade de dilacerá-Io em pedaços distintos, para tentar assim, algum domínio sobre ele, criando assim várias formas de amor? Entre esse emaranhado de tentáculos temos: o amor paterno, o amor materno, o amor fraterno, o amor religioso, o amor pelo meio, e por que não falar do amor pelos animais, o amor por nossos pais, o amor por nós mesmos, o amor pela vida, etc. Tantas formas de amar, umas até inescrupulosas, que no fundo poderíamos resumir em um só, na que os místicos chamam de Amor Universal. Estava tão preso em meus pensamentos que nem percebi que tinha passado pelo bar. Quando recobrei a consciência e vi que já me encontrava uns 200 metros após o bar, olhei para trás e vi as pessoas divertindo-se com muita dança e bebida. Achei melhor aproveitar aquela noite quente e andar um pouco, ficar um pouco sozinho para poder ordenar melhor as idéias, contemplando aquela natureza magnífica à minha volta. Segui caminho, afastando-me das habitações praieiras, introduzindo-me cada vez mais em praias virgens e desabitadas. Quando estava a ponto de retornar o fio perdido de meus pensamentos, algo me chamou a atenção alguns metros à minha frente; a princípio parecia um tronco, estava um pouco mais acima na areia. Diminuí gradualmente meus passos, não sabia ao certo do que se tratava devido à má visibilidade. À medida que ia me aproximando, comecei a ouvir um som soluçante, foi então que percebi que se tratava de uma pessoa chorando. A pessoa estava sentada com a cabeça entre os joelhos erguidos. Por um momento pensei em seguir em frente, talvez aquela pessoa precisasse ficar um pouco sozinha como eu queria, apesar de aparentemente por motivos diferentes. Segui meu caminho, cabisbaixo, sem atrever-me a olhar para aquele ser melancólico. Mas meus ouvidos traíram meus olhos, no momento que passava em frente daquela pessoa, ouvi mais intensamente seus prantos lamentosos e aquilo me atormentou profundamente fazendo com que diminuísse meus passos; continuava cabisbaixo sem atrever-me a olhar para aquela pessoa tristonha, que por algum motivo, grave ou banal, estava ali, procurando colocar para fora o que a atormentava. Continuei a andar, mas dessa vez andava mais lentamente, com a consciência dividida. Parte dela, a parte mais racional, guiava-me em frente, argumentando que eu deveria deixar que aquela pessoa buscasse dentro de si mesma as soluções para seus problemas; por outro lado, a parte sentimental manifestava-se com uma forte compaixão, indagando se aquela pessoa não poderia estar precisando de uma palavra amiga para confortá-Ia ou de uma pessoa para poder desabafar suas aflições, sendo eu, talvez, a pessoa escolhida para tal tarefa. No meio de tantas indagações mentais, parei alguns metros adiante, olhei para trás e vi que minha presença não havia sido percebida, continuando aquela melancólica pessoa exatamente como antes, com a cabeça enterrada entre as pernas a chorar. Aquela figura, aparentemente uma mulher, deixou-me com remorso por não ter, de imediato, tentado ajudá-Ia de alguma forma. Sentia-me como um verdadeiro algoz, insensível, incapaz de reconfortar um irmão que estivesse aflita. Esse pensamento feriu-me nos mais íntimos pensamentos, forçando-me a retroceder meus passos, dando-me coragem para vencer minha timidez e executar um ato digno de um verdadeiro irmão, um amigo. Um ato que todas as pessoas deveriam praticar mutuamente, como verdadeiras equivalências que são. Aproximei-me vagarosamente daquela alma sofrida e amargurada que tentava, através de lágrimas e do corpo encolhido, proteger-se ingenuamente das agressões que sofria de si mesma; não se mexia, somente soluçava e inspirava fortemente para evitar que o nariz escorresse. Fiquei parado em pé, à sua esquerda, como uma estátua, sem saber se deveria quebrar, com palavras,
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aquela angustiante cena ou esperar ser notado por aquela pessoa que até o momento não aparentava aperceber-se de minha presença ali. Foi quando abri a boca e forçando o ar contra minhas cordas vocais, fiz com que saíssem algumas palavras: - Olá! Passa ajudá-Io em alguma coisa? Está se sentindo bem? Senti que aquelas palavras a atingiram bruscamente, fazenda com que tentasse encolher-se mais da que já estava. Foi nesse instante que percebi que se tratava realmente de uma mulher, quando seus longos cabelos negros oscilaram sobre seus ombros. Provavelmente tratava-se de uma mulher que tinha se deixado abater por uma desilusão amorosa, tão comum na vida das mortais, buscando abrigo numa praia deserta contra a tempestade que a castigava par dentro, em sua total fragilidade feminina. Tentava inutilmente disfarçar seu estado, contendo os soluços e limpando o mais disfarçadamente possível as lágrimas. Permanecia de cabeça baixa todo o tempo, ocultando seu rosto em suas pernas nuas, não respondendo às minhas perguntas. De certa forma compreendia sua atitude. Provavelmente, sentia-se inibida ao estar sendo apanhada em uma situação constrangedora que a deixava tão vulnerável, ainda mais por mim, uma pessoa estranha que tinha aparecido repentinamente em sua frente, tirando-a daquele transe melancólico. Não importava qual o motivo que a calava, o que importava é que sua boca não pronunciou nenhuma palavra, nenhum gemido em resposta as minhas indagações. - Posso sentar-me ao seu lado? Perguntei já sentado à sua esquerda na areia, a alguns centímetros de seu frágil corpo. Permaneci defronte ao mar, contemplando suas ondas mofinas, enquanto esperava uma reação por parte dela. Naquele momento, a areia umedeceu minha bermuda, logo não demorando muito para esfriar minhas nádegas. Aquela espera era inútil, ela ainda não se sentia confiante ao meu lado, comportando-se como um animalzinho cabreiro que se via encurralado em um canto, nem seus soluços ouvia mais... Foi quando resolvi quebrar o silêncio. Girei a cabeça e a fitei. Tentaria mais uma vez, com palavras, fazer com que ela sentisse um pouco de confiança em minha pessoa: - O que levaria uma garota tão bela a se isolar nessa praia deserta, sozinha, em prantos soluçantes que me comoveram profundamente? - quando pronunciava estas palavras, meus olhos viram-se atraídos por aquelas curvas femininas que sobressaltavam ao meu semblante, que se viam sutilmente dissimuladas por um vestido curto, aparentemente negro, não sendo muito aderente ao seu corpo - Creio que não haja motivo tão forte que possa merecer esse refúgio. Ou há? Aquela nova tentativa foi inválida, ela continuava calada, cabisbaixa, como se tentasse vencerme pela fadiga, seu corpo permanecia imóvel, como se sua alma o tivesse abandonado por um momento, saindo a vagar pelo desconhecido Universo. Olhava atentamente para ela, esperando alguma manifestação de sua parte, mas mantinha-se calada como uma laje fria. O que se passaria dentro daquela cabeça que insistia em permanecer enterrada no meio das pernas? Realmente tratava-se de uma mulher muito formosa, que teria um pouco mais que minha idade, uns é 15 anos. Uma fase de muitas tribulações espirituais, onde o corpo e a mente passam por um reconhecimento mútuo de existência, onde as pessoas amadurecem e percebem a verdadeira ligação que há entre essas duas grandezas “corpo e mente” que outrora, na infância, eram de plena harmonia. Muitas pessoas se esforçam para não perder esse elo, mas a sociedade como um sistema monstruoso ideologicamente, o vai enfraquecendo até o ponto em que ele se arrebenta. Transforma assim o indivíduo naquilo que ele quer: um adulto com suas preocupações, cobiças, objetivos e sonhos materiais, que vêm em substituição a uma vida espiritual ativa, recheada com muita serenidade, amor e transparência da infância, que, por sua vez, está ao passar dos anos, se tornando cada vez mais curta, fazendo com que as pessoas se tornem adultos cada vez mais cedo. Carregam dentro de si amarguras que como bombas relógios vão explodir mais cedo ou mais tarde entre elas, levando-as ao sofrimento, à depressão, á violência, fazendo com que elas busquem apavoradamente, respostas para os múltiplos questionamentos. Seria esse o motivo que a teria levado até ali? Realmente, eu não sabia a resposta e ela não estaria disposta a responder-me mais aquela pergunta.
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- Como é engraçada nossa vida - começava a pensar alto, olhando fixamente para o mar - eu encontrava-me em meu escritório, lendo o "Papa e o Concílio", de Rui Barbosa, um livro antigo, de 1877; e agora estou aqui, sentado na areia da praia, que já umedeceu minha bermuda, olhando o mar à minha frente, com toda a sua opulência e essas ondas pequeninas que enleiam entre si. O que faço aqui? Não importa. O importante é que posso ver a dança das ondas vindo oscular a areia, posso ouvir a doce melodia que desse encontro produz, sentindo a maresia penetrando em minhas narinas, como uma fragrância inigualável. E só de pensar que tudo isso descobri nesta noite, quando resolvi sair do meu mundinho e viver outro mundo que estava aqui fora, todo o tempo, tendo só uma coisa que não está me deixando completamente feliz prosseguia minhas indagações, só que dessa vez olhava para ela - que é ter uma pessoa a meu lado, que não sente isso, que se encontrava chorando, provavelmente por mais uma lição do coração, lastimando-se, quem sabe, pelo leite derramado... Enquanto eu passava, perplexo por ter descoberto tantas coisas à minha volta que antes não dava tanta importância - voltei-me novamente a olhar o mar - como fui tolo em ter perdido tanto tempo. Talvez não, talvez tivesse que esperar esse dia chegar, para descobrir essas maravilhas. A natureza... A vida é perfeita para ter deixado perder tanto tempo. O destino deve saber o que faz... Tendo algum significado o fato de estar aqui, ao seu lado, nesta praia deserta, observando o mar, sem falar... - fitando o manto de estrelas sobre nossas cabeças - esse pequeno pedacinho do cosmos que se encontra sobre nós. Como somos seres vivos insignificantes... - disse com a voz baixa e a boca quase fechada. Após alguns segundos em silêncio, abaixei a cabeça e suspirei profundamente, sentindo um grande alívio em meu interior, aproveitando-me da situação para desabafar. - Apesar de não saber o que me traz aqui, estou alegre... Alegre por achar que a partir desta noite, irei viver mais intensamente cada dia da minha vida... Melhor, cada milésimo de segundo, não me deixando abater pelas coisas ruins que possam acontecer, irei aprender com elas, tirando delas tudo de bom que possam ter. - Olha para mim! Parei aqui no intuito de ajudá-Ia e a única coisa que fiz foi ficar aqui falando de mim e das loucuras produzidas por minha mente. Que belo "samaritano" eu sou... - concluí com um sorriso irônico. Depois daquelas palavras fiquei em silêncio, não conseguia proferir mais nada. Pelo menos, sentia que ela estava mais calma não chorava mais. Aqueles segundos posteriores tornaram-se eternos; encontrava-me cabisbaixo, com as pernas cruzadas, olhando fixamente um ponto qualquer na areia, a meditar: "Sempre fui uma pessoa solitária, sem uma companheira, uma pessoa íntima com quem pudesse dividir meus momentos, minhas experiências, meu mundo. Para compartilhar as coisas mais simples da vida, para afagar seus cabelos quando sua cabeça estivesse repousada em meu colo, na varanda de minha casa ou num banco de praça; para poder lhe confiar parte de minha alma e ela me confiar parte da sua também, descobrindo um ao outro, juntos; para poder segurar-lhe a mão em um momento difícil ou estar ao seu lado em um instante de felicidade; para podermos vociferar pelas madrugadas a nossa alegria. Para, em uma linda manhã, tarde ou noite, olhar no fundo dos seus olhos e me ver dentro do seu ser; para poder tocá-Ia através de uma massagem ou de carícias e sentir a energia vital circular em nossos corpos como se fossem uma única essência; para que eu possa ser um ser completo". - Não é pelo leite derramado! Aquelas palavras invadiram meus ouvidos, ricocheteando em suas paredes internas fazendo vibrar meus tímpanos. Por um momento fiquei com dúvida, se aquela voz vinha realmente do exterior ou tratava-se de uma voz interna, manifestação de meu ego ou fruto de minha imaginação maluca. Mas não, estava enganado, tratava-se realmente da voz dela.
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Levantei a cabeça lentamente, ainda meio desacreditado e dirigi meu olhar a ela. Mas ela continuava com a cabeça entre os joelhos. - Você disse algo? Repliquei tentando confirmar minhas suspeitas. Naquele momento pude observá-Ia levantar a cabeça lentamente, quase imperceptível, devido à má visibilidade. Seus cabelos negros dividiam-se ao meio cobrindo a sua face, impedindo assim que a visse. Fiquei atônito, era a primeira vez, após vários minutos que ela demonstrava uma reação a minhas palavras, aparentemente ela estava mais calma, já demonstrando alguma confiança em minha pessoa. Quando ela já se encontrava de cabeça erguida, com uma das mãos retirou uma das mechas de cabelo que lhe cobria o rosto, permitindo-me vê-Io e almejá-Io. Era lindo... Lindo talvez seja pouco para descrever tão inigualável beleza. Seus olhos fitaram-me e seus lábios atraentes responderam-me: - Sim, disse que não é pelo leite derramado que choro. Ouvia, enfim, sua voz nitidamente, sem nenhuma sombra de dúvida, era sua voz, uma voz doce e harmoniosa, incomparável a todas que ouvira antes, uma voz ligeiramente rouca, talvez pelo fato de ter chorado muito e cansado suas cordas vocais. Mas isso não importava, o que realmente importava é que era linda; muito mais Iinda do que o canto do rouxinol. Após aquele momento, fiquei mudo, só desejava ter mais luz, para poder admirar melhor sua beleza, gravar em minha mente todos os detalhes de seu rosto, poder penetrar em seus olhos e conhecê-Ia por dentro. - Choro por uma pessoa que não merece – prosseguiu ela, olhando a areia à nossa frente e quebrando o transe que me enredava - uma pessoa a quem entreguei meu coração, de quem ouvia palavras bonitas de amor... Estou chorando porque essa pessoa me traiu. Não foi ninguém que me contou, infelizmente foram meus olhos que viram... Como fui tola. . Senti que ela, movida pela forte emoção, estava a ponto de retomar a lamúria. Foi nesse momento que me achei na obrigação de intervir: - Não fique assim - disse-lhe levantando sua cabeça com a mão. - Como você mesma falou, é uma pessoa que não merece mais nenhuma lágrima de seus olhos. Subitamente ela virou a cabeça, provavelmente por vergonha ou acanhamento. E disse: - Meus amigos vinham alertando-me sobre esse fato, mas eu, cega, não queria enxergar, estava iludida, apaixonada, cheguei até a perder algumas amizades por causa dele. Na verdade acho que eu estava com medo de perdê-Io, de acreditar que tudo era fingimento, todas as declarações de amor, todos os planos futuros que sonhamos juntos, como fui tola... Sua idiota, sua lerda, sua burra... - ela dizia, desferindo golpes com a mão contra a cabeça. - Não se comporte desse jeito, - interrompi colocando minha mão sobre seu ombro, não se torture por um ser tão repugnante que não lhe deu o respeito, o carinho e o amor, que tanto você merece. - Como você pode saber que eu mereço? Você não me conhece, não sabe da minha vida, dos meus atos, do que faço de bom ou de ruim. - Não preciso conhecer sua vida diária para lhe dizer essas palavras, basta simplesmente que eu olhe dentro de seus olhos - respondi-lhe com a voz num tom grave. Naquele momento ela se virou para mim, dessa vez seus cabelos não obstruíam mais o rosto, permitindo-me olhá-lo por completo, com todas as suas formas. Quando meus olhos admirados iam analisando cada curva, cada detalhe do seu rosto, ela me fitou profundamente, obrigandome de certa forma a fitá-Ia também, no fundo dos olhos. E neste momento, ela me interrogou com uma voz serena, aparentando um pouco de perplexidade: - Basta simplesmente olhar-me? Por quê?
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- Porque descobri nessa noite algo formidável, como ver as coisas de um modo diferente, conhecendo-as em todo o seu esplendor. - E você viu isso em mim? - perguntou-me com ar de curiosidade. - No caso dos seres humanos creio ser mais complexo. - Complexo por quê? - Simplesmente porque somos seres complicados, diferentes de qualquer outro animal terreno, pois fomos feitos à imagem e semelhança de Deus Pai. Por isso não posso dizer-lhe ao certo sobre todo o seu esplendor, mas posso te afirmar que o que vejo e sinto são sensações tão fortes, não me restando dúvidas de que você é uma pessoa tão linda por dentro como é por fora. Infelizmente não sei explicar essa sensação. - Ensina-me, então, a olhar o mundo desse modo especial de que você fala - implorou-me com uma voz sedutora, deixando pousar suas mãos sobre a minha mão direita, com a firmeza e a convicção de quem realmente via naquilo, a possível solução para os seus problemas. Suas mãos quentes aqueciam o dorso de minha mão, que estava fria e úmida por causa da areia da praia. Elas eram finas e delgadas como uma pluma. - Você me ensina como faço para poder ver, ouvir e sentir as coisas, as pessoas com outros sentidos? Que sentidos são esses? Tenho que criá-Ios? Como é? - interrogava-me incansavelmente, pressionando a cada pergunta, minha mão com mais força. - Calma! Uma pergunta de cada vez - exclamei - Desse jeito, como poderei explicar... - Explicar? - interrompeu-me com um arde satisfação - Então quer dizer, que você vai explicar para mim como se sente as... - Não! Não é isso que eu quis dizer com explicar - interrompi sua comemoração. - Então... ! ? Lentamente, ela foi tirando suas mãos da minha, olhando-me nos olhos tentando compreender minhas palavras. Esperei um pouco em silêncio, depois de ela ter-se recolhido, tentei desembaralhar as dúvidas que provavelmente assolavam sua mente. - O que quero te explicar é que isso não se aprende como as outras coisas da vida. Onde as pessoas, usando o raciocínio lógico, passam seus conhecimentos uns para os outros. Neste caso, não se usa o raciocínio lógico e nem pode ser ensinada de uma pessoa para outra. - Como, então, aprendemos? Murmurou desafiadora. - Na verdade não aprendemos - afirmei - descobrimos. - Descobrimos? Perguntou. -Sim! Des-co-bri-mos. - respondi ironicamente - Descobrimos quando conseguimos resgatar a sensibilidade que tínhamos quando crianças, quando deixamos o espírito agir livremente, quando despertamos o ser humano sensitivo que existe dentro de cada um de nós. Quando isso acontece, nossos olhos, nossos ouvidos, nossa alma se abrem e conhecemos um mundo lindo, que sempre esteve ali à nossa frente e não enxergávamos. - Mas como eu faço para conseguir tudo isso? – perguntou-me serenamente. - Simples - respondi, reclinando-me para trás, deixando· minhas costas entregarem-se ao frescor da areia e com as mãos atrás da cabeça, olhando para o céu estrelado, concluir - Observe. - Observar? Observar o quê? - Tudo. Tudo o que está à sua volta, tudo o que lhe atrai absolutamente tudo, inclusive você própria respondi olhando as estrelas.
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"Observar, observar, observar", ouvi-a balbuciar repetidamente baixinho aquela palavra, como se buscasse decorá-Ia e entender o que realmente ela queria dizer qual a razão de eu tê-Ia empregado daquela forma tão seca, tão direta, tão, tão eficaz... Depois o silêncio reinou naquele lugar. Estava com meu corpo relaxadamente estirado sobre a areia, olhando atentamente o céu. Observava o faiscar das estrelas, que confundiam meus olhos, dando-me a impressão de que elas dançavam em um colossal bailado celeste, com toda sua magnificência, expressa em cada movimento ritmicamente perfeito, era sensacional. Fiquei tão deslumbrado que deixei escapar de leve, um sorriso, com a mesma sutileza de um bebê que sorri quando está sonhando, sabe-se lá com quê. Sentia-me em casa, tendo como cama a fina areia da praia, como travesseiro as palmas de minhas mãos, as estrelas do céu como abajur e cobrindo-me com o relento da madrugada. Era uma integração linda, sentia-me cada vez mais pertencente àquilo tudo e sentia-me orgulhoso de fazer parte daquela natureza que tinha começado a descobrir e conhecer naquela noite. Passado alguns momentos, minha meditação foi interrompida por uma voz que a princípio parecia fazer parte daquele mundo mágico que buscava entender. Mas tratava-se da voz dela que, de certa forma, não deixava de pertencer a esse mundo mágico no qual eu vivo. - Estou vendo! Estou vendo! - ela dizia com a respiração ofegante. - O que você vê? - perguntei calmamente, estagnado na mesma posição. - Vejo uma imensa luz surgir entre o céu e o mar por trás de uma nuvem - ela disse com a voz pasma. Deve ser fruto de sua imaginação - disse-lhe sem dar muita importância - Isso já aconteceu comigo. - Olhe você mesmo - insistiu. - Tudo bem. - disse-lhe, levantando-me - Onde você está vendo? - Bem ali, acima daquela nuvem - disse, apontando com o indicador para o horizonte. - Hummm... ! Uma imensa luz que surge por detrás de uma nuvem, né? - disse-lhe passando a mão em meu queixo - Parabéns! Você acaba de descobrir parte de você surgindo por detrás daquela nuvem. - Sério?! - indagou surpreendida - Consegui ver parte de meu ser tão rápido? - Sim - respondi calmamente - É a lua que está nascendo para alumiar toda a praia. - A lua?! Como assim, a lua? - perguntou sem entender nada - Você não disse que era parte de mim que eu havia descoberto? - Disse. - Como agora você vem me dizer que se trata simplesmente da lua? - Simplesmente porque a lua faz parte de você - disse, apontando para a lua - e você faz parte da lua - disse apontando para ela. Não consigo entender o que você quer dizer com isso - murmurou, olhando para a lua, que ainda não tinha dado todo o ar de sua graça. - Simples, é só você fechar os olhos e imaginar que aquela lua surgindo por detrás das nuvens faz parte de seu ser, como se ela fosse seu braço, sua perna... Ou qualquer parte de seu corpo, Será que você é capaz de fazer isso? - Eu acho! - respondeu levantando as sobrancelhas. Ajeitei-me e sentei com as pernas cruzadas, inspirei profundamente e bem lentamente fui expirando. A lua já deixava a praia mais visível com sua luminescência prateada. Seu reflexo já faiscava sobre o mar, estendendo-se até a praia. Nenhuma nuvem lhe obstruía mais o brilho. Ela
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chegava toda majestosa roubando a cena das estrelas que se inibiam. Por um instante nós ficamos em silêncio a contemplar esse fato, não demorando muito para eu recomeçar o dialogo, dizendo: - Você pode fazer isso. Eu sei que pode - afirmei com segurança - Pois tanto você, a lua e eu fazemos parte de um todo, um todo muito grande, um todo perfeito que é regido por uma força suprema, que por sinal descobri esta noite. Somos parte de um complicado organismo vivo, um verdadeiro quebra-cabeça onde somos peças fundamentais, exercendo nosso papel como a lua exerce o dela, como o mar exerce o dele e até como cada grão de areia dessa praia exerce o seu disse, enterrando meus dedos na areia, como se tentasse segurar-me de uma queda, por medo ou temor - Temos que ter consciência de que essa areia - disse levantando a mão defronte de mim, carregada de areia que aos poucos ia escapando entre os dedos, apesar de estar umedecida - faz parte de nós e nós fazemos parte dela. Essa integração existe e, creio eu, desde que o mundo é mundo, sendo uma sincronia completa em si própria, onde os animais e plantas agem por instinto como se já fossem programadas para efetuar suas recíprocas tarefas. As matérias inanimadas, como essa areia - disse deixando escapar o restante de areia que se encontrava em minha mão - são manipuladas diretamente por uma força maior, sem que nós seres humanos prestemos um pouco de atenção em suas ações, talvez porque fiquemos muito preocupados em entender e aprender com as coisas que nós mesmo criamos e os problemas que por ventura surjam com elas. Não nos resta tempo, com isso, para apreciar e aprender com a nossa mãe natureza o que ela tem a nos oferecer. Vivemos em um mundo integrado, onde todas as coisas exercem seu papel em perfeita harmonia. Mas, infelizmente, nós seres humanos, usufruindo de nossa capacidade de raciocinar e transformar o ambiente, danificamos essa harmonia, esse elo que existe entre qualquer criatura e seu meio; mas em toda regra, existe a exceção. - Olhei fixamente para ela e ela para mim e prossegui, dizendo: - Eu procuro fazer parte dessa exceção. Busquei e acho que finalmente encontrei alguma resposta nesta noite, pois já me sinto pertencente a esta areia. Neste momento passava minha mão lentamente sobre a areia, acariciando-a como se fosse um cachorrinho de estimação do mesmo modo que, de certa forma, ela se sente, pertencente à minha pessoa. Da mesma forma que ocorre com a areia, ocorre também com a lua, com o mar, com as estrelas, etc. De algum modo elas interagem, podendo não ser perceptível aos nossos sentidos, mas interagem. Você precisa retirar essa casca seca e grossa que se cria e adere imperceptivelmente em nossas idéias e emoções, bloqueando-nos aos poucos, à medida que crescemos e nos deixamos contaminar pelos conceitos egoístas, únicos e exclusivamente humanos. Só assim, adquirimos o verdadeiro sentido da palavra LIBERDADE. Pois o que impede o homem de ser completamente livre é o fato de não querer ou não conseguir conhecer o meio que o envolve neste tempo e lugar, esperando só que estendamos a mão e nos deliciemos com toda sua opulência que sempre está á nossa disposição. Para quê? Simplesmente para aprendermos nossa própria sabedoria, formulada por nós mesmos em nossas mentes primárias? Será que fazemos a coisa certa? As coisas na vida são simples, mas tão simples que não conseguimos compreender tanta simplicidade. O homem precisa amar a natureza mais do que a si próprio, porque ela é o todo e nós só fazemos parte dela. Naquele momento fui impulsionado a dar um salto, levantei-me e dei alguns passos a frente, sempre sobre a vigília dos olhos atentos dela, que me ouvia silenciosamente. Olhei para ela e prosseguir: - As pessoas têm que buscar dentro de si mesmas esse elo perdido, deixando de lado o materialismo, os conflitos e principalmente os obstáculos que as pessoas que não conseguiram restabelecer esse elo, criaram ao passar dos anos, para que as gerações futuras se inibam e não consigam como eles, reencontrar esse elo perdemos na infância. São essas pessoas que formam a cúpula da sociedade, que ao passar dos anos vêm destruindo sutilmente a infância, transformando as crianças cada vez mais cedo em "adulto-mirins". Se não tomarmos uma atitude imediata para mudar essa situação, iremos, com a ajuda do avanço tecnológico, perder nossos valores espirituais, transformando em um futuro não muito distante, a serenidade, a compreensão, a tranqüilidade, a inocência, a paz, o companheirismo e a harmonia que ainda
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resta, em verdadeiras relíquias de museu. O mundo será frio e doente, as pessoas serão verdadeiros robôs sem alma. E nós na qualidade de “neurônios” deste planeta, temos de impedir a acelerada matança desse organismo vivo que é a Terra... Ou melhor, a acelerada matança de nós mesmos - ergui minha cabeça para as alturas com os olhos cravados no infinito do cosmos e murmurei com uma voz sufocada - Isso que estamos vivendo é um verdadeiro suicídio em câmera lenta. Após alguns segundos, imóvel como uma estátua, com a cabeça voltada para cima, senti um filete de frio percorrer por minha espinha dorsal. Neste momento não pude segurar a emoção e nem impedir, com o fechamento de meus olhos, que uma lágrima despencasse do canto do meu olho esquerdo rolando pela lateral de minha face até se perder em um ponto abaixo da minha orelha. Subitamente, senti algo me tocando no tórax exatamente sobre o coração. Abri os olhos lentamente, fui abaixando a cabeça. Era ela, com sua delicada mão direita pousada sobre meu peito. E com uma voz doce e firme, disse: - Ajuda-me a redescobrir meu elo. Vamos juntos reconciliar nossa relação com o nosso meio, vamos juntos nos tornar, pelo menos nessa noite, parte dele. Aquelas palavras firmes daquela garota à minha frente, fizeram-me retroceder em “flashes” tudo que me tinha acontecido, desde o meu quarto até aquele momento. Coloquei minhas mãos levemente sobre seus ombros delicados e frágeis e lhe respondi: - Sim, iremos nos integrar mutuamente ao nosso meio, formando assim, o que realmente somos um único ser em perfeita harmonia. A partir daquele momento iríamos deixar-nos levar por nossos desejos íntimos, permitindo que nossa sensibilidade aflorasse nos conduzindo a um verdadeiro êxtase. Buscaríamos nos relacionar da melhor maneira possível, esquecendo nossos defeitos e virtudes, nossas inibições e temores, deixando nossos corpos agirem por instinto. Segurei a mão dela que estava sobre meu peito e pus-me a conduzi-Ia em direção ao mar. Paramos lado a lado a alguns metros das ondas. Ficamos assim por alguns instantes contemplando a lua e o mar, aspirando juntos, sincronicamente, o frescor daquela maresia. Continuávamos de mãos dadas com nossos dedos entrelaçados. Viramo-nos um para o outro, olhando-nos profundamente nos olhos; seus olhos oscilavam de um lado para o outro, como se tentasse enxergar algo mais que os meus simples olhos. Suas mãos entrelaçadas à minha, emanavam um calor prazeroso, Uma brisa mais acentuada começava a bailar na praia vinda do mar. Sem que percebêssemos, estávamos fazendo um tipo de ritual, um ritual de reconciliação à natureza. Desentrelacei meus dedos dos dela e levei minhas mãos até seus ombros, empurrei as alças de seu vestido em um movimento lento, dirigindo-os ao desfiladeiro de seus braços, deixando cair ao longo de seu corpo, o vestido preto. Neste momento, ela levantou meus braços sobre minha cabeça e começou a retirar minha camisa. Depois, minha bermuda. Era algo mágico, harmonioso, cada movimento executado lentamente, como se o tempo tivesse parado, como se tivéssemos vivendo um momento eterno, tendo como orquestra as ondas do mar e o balançar dos coqueiros e sob um vasto lençol negro bordado de estrelas. Estávamos completamente nus, sem nenhum vestígio de matéria aderindo nossos corpos, nem roupas, nem relógios, nem brincos, anéis ou pulseiras. Estávamos do jeito que a natureza tinha-nos concebido. Começamos a andar em direção ao mar. À medida que íamos avançando, o nível da água ia subindo, engolindo-nos com suas águas, ligeiramente frias. Sentia que dissolvia em cada onda, um pouco de nossa essência, a minha alma entregava-se a um reboliço de sensações. "Estamos realmente nos fundindo com o mar", pensei. Estava completamente entregue aos acontecimentos, o desejo de viver saltitava em minhas veias, o amor pela natureza construía, com todo aquele silêncio, templos de paz em minha mente. Naquele momento, esquecia-me de tudo, de todas as pessoas, de que o mundo tinha seus doentes, seus ladrões, seus estupradores,
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seus psicopatas, seus políticos psicóticos, seus terroristas, enfim, seus problemas. Estava criando com ela ao meu lado, um mundo particular, um mundo que gostaria que se estendesse por todo sempre. De repente, ela solta minha mão e se joga ao mar em um mergulho triunfal. Por um momento, fiquei assustado com o que ela fizera, mas não demorei muito para imitá-Ia, lançando-me ao mar também. Finalmente estava completamente envolvido pelo mar; juntos, efetuamos uma perfeita integração - eu dentro dele e ele à minha volta. Apesar de todos os mergulhos que já tinha dado em minha vida, esse era o primeiro que me deixava tão intrigado. Foi então que percebi: tudo depende de como você vê e sente as coisas. Quando subi à superfície, procurei com os olhos, um pouco embaçados, a minha companheira, mas não a via em lugar algum. Comecei a ficar preocupado, olhando desesperadamente de um lado para outro, enquanto me vinha em mente os mais variados pensamentos e nenhum deles era muito otimista, como toda aquela fantástica realidade começasse a ruir. Subitamente, surgia em minha frente, no meio do reflexo da lua, aquela garota. Ela levantava-se das profundezas do mar como uma sereia, com os cabelos negros sobre a face. Naquele momento, ela impulsionou a cabeça, jogando os cabelos para trás. Fiquei boquiaberto diante da beleza daquela cena, parecia coisa de cinema. Ela veio aproximando-se de mim e, antes que eu pudesse dizer uma única palavra, ela colocou a ponta dos dedos em meus lábios indicando que não precisava dizer nada. E foi exatamente isso que fiz. Ela aproximou-se mais um pouco e abraçou-me. Fiquei perplexo, sentia seus seios tocando meu peito e suas pernas quase enroscadas às minhas, com sua cabeça repousada sobre meu ombro. Meio sem jeito, abracei-a fechando assim o elo. Parecia um sonho tudo aquilo que estava acontecendo, mas um sonho não poderia ser tão perfeito. Aquele calor que abrasava minha alma jamais poderia ser sonhado com tanta precisão, era muito excitante, uma sensação que não consigo descrever com palavras. Não sei se realmente tínhamos alcançado nosso objetivo, só sei que se não alcançamos, chegamos perto, pois sentia a energia circular dentro de nossos corpos, através de nossas correntes sanguíneas. Ficamos assim certo tempo, com os olhos fechados para poder sentir melhor todas aquelas sensações. Depois abri os olhos e levantei o rosto dela. - Conseguimos? Perguntou. - Ainda não acabou... Murmurei baixinho. Fechei meus olhos e lentamente fui aproximando minha boca na dela. Naquele momento, pude sentir o calor e a doçura dos seus lábios tocando os meus, sua língua enroscando-se à minha. Por um instante, senti nossos corpos elevarem-se acima d'água, logo após, pude sentir nossos corpos subir em alta velocidade em direção ao infinito. Enquanto isso, nossas línguas continuavam a dançar em uma harmonia instigante. Muitas sensações invadiram minha mente, estávamos completamente entregues um ao outro em um ritual mágico que nós mesmos havíamos inventado ou descoberto, não importa, o que realmente importava é que nosso êxtase estava elevadíssimo em plenitude. -- Quando abrimos nossos olhos, ficamos pasmos, pois já não nos encontrávamos mais dentro d'água e sim num coqueiro reclinado sobre o mar. Estávamos sentados. A maré tinha subido sem que nós percebêssemos. O lugar onde tínhamos deixado nossas roupas, agora estava completamente submerso. Olhamo-nos sem entender nada. Foi quando olhei para o lado e vi atrelado ao coqueiro um pequeno barco. Levantei-me e fui andando por cima do coqueiro até lá tentando manter o equilíbrio. Cheguei até onde estava presa a corda, agachei-me e comecei a puxar o barco para perto. Quando o barco saiu do meio das palhas na penumbra e se deixar iluminar pela luz da lua, pude observar em seu interior os nossos pertences. - Olha! Olha o que tem dentro do barco - disse feliz da vida.
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- Nossas roupas... Que bom - falou aliviada. Quando entramos no barco, ela olhou para mim e perguntou: - Por que aconteceu isso tudo conosco? Como podemos estar em um lugar e de repente estamos em outro? Estou ficando com medo. - desabafou, abraçando-me fortemente. - Não tema. - sussurrei em seu ouvido enquanto acariciava seus cabelos - É somente a natureza presenteando-nos com um de seus misteriosos e virtuosos prodígios. Aproveitemos esse momento mágico antes que ele acabe. -- Não, eu não quero que acabe. Eu não quero separar-me de você. - disse levantando-se bruscamente de meu peito e fitando-me com os olhos arregalados. - Ficaremos juntos para sempre, pois somos uma só criatura, - sussurrei olhando fixamente para ela. Após aquelas palavras, nos beijamos como se fosse à última vez. Ela deitou-se sobre nossas roupas e pude assim, contemplar aquela escultura feminina à minha frente, banhada pela luz prateada da lua, convidando-me a concluir aquele ritual de integração. Beijei centímetro por centímetro de seu corpo, nos amávamos de uma forma inacreditável, tínhamos todos os sentidos agindo orquestradamente com o mesmo propósito: elevar o corpo e a alma a um plano superiormente fantástico. A cada movimento, a cada carícia, a cada afago, a cada posição encontrávamos em um lugar distinto. No primeiro momento, estávamos no meio de um campo florido, vendo o sol nascer. O perfume das flores contaminava-nos até a alma, sufocando-nos de prazer. Em outro momento, estávamos sobre uma pedra, ao lado de uma cachoeira, com uma queda incrível de aproximadamente oitocentos metros de altura, no meio de uma mata virgem ao som de araras selvagens e pássaros silvestres. Em outro momento, estávamos no fundo do mar, no meio de corais e algas. Podia sentir o gosto da água salgada em nossos beijos, ao som dos cantos das baleias e golfinhos e tendo os peixes a bailarem à nossa volta. Nesse momento, sentia todo o meu corpo molhado e sem nenhuma necessidade de respirar. Em outro momento, já estávamos no meio de um deserto em um oásis, com dois camelos ao nosso lado; e o calor escaldante enxugava nossos corpos molhados. Num outro instante, já nos encontrávamos no cume de uma montanha, sobre rochas afiadas, que deram uma pitada de masoquismo ao nosso relacionamento. O vento era forte, fazendo com que os cabelos dela ondulassem e se espalhassem no ar. Já víamos o sol se pôr no horizonte. Quando estávamos perto de chegar ao nosso clímax, desfrutamos de uma imagem indescritível. Estávamos na superfície lunar tendo o planeta Terra como nosso panorama cósmico, sob o silêncio absoluto. Naquele momento, todas as imagens pululavam uma após outra em uma velocidade estonteante. Tínhamos chegado ao auge de nossa fusão fantástica. Ficamos inconscientes por algum tempo, não sei muito bem quanto, mas isso não tinha menor importância. O que realmente importava era que ela estava ali, debruça da em meu peito, tentando acreditar assim como eu, em tudo aquilo que tinha acontecido, estava acontecendo e poderia acontecer. Afagava-lhe carinhosamente os cabelos em movimentos leves, com pensamentos distantes, buscando absorver melhor todo o teor daquela magia que envolvia nossos corpos, o barco, o mar e o céu que por sua vez começava a clarear com o brilho da estrela mais poderosa para nós, o sol. O dia começava a nascer. O sol com seus extensos raios iniciavam a coloração do céu com um tom dourado que surgia no horizonte do mar e espalhava-se por toda parte. Ao perceber o fenômeno, ela levantou a cabeça e entre as palhas do coqueiro, buscava ver o sol surgir de dentro das águas do mar, que no início daquele dia deixava de formar ondas mofinas e esbravejava-se cada vez mais. Ela olhou para mim com um olhar interrogativo, talvez buscando em meus olhos alguma resposta.
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- Achei que poderia estar sonhando. - murmurou com a voz um pouco rouca. - Mas vejo que mais um dia surge e a vida continua. E agora? O que iremos fazer? ' Coloquei novamente sua cabeça em meu peito, e lhe disse: - Vamos continuar vivendo essa magia. - Mas, até quando? - indagou. Fiquei em silêncio, pois não sabia responder-lhe aquela pergunta. Estava tanto quanto ela, perplexo com tudo que estava acontecendo. - Quero lhe dar um presente. – disse, esticando o braço e colocando a mão no meio das roupas no fundo do barco. - Um presente por tudo o que de bom aconteceu essa noite. - Eu só fiz o que minha intuição pediu - disse humildemente. Após revirar algumas peças de roupa com a mão. Ela levantou-se do meu peito, ficou sentada ao meu lado e estendeu sua mão defronte ao meu rosto e ao abri-Ia, disse: - Aceite como uma prova de que conseguimos juntos restabelecer o elo perdido em nossas infâncias. Dentro de sua mão estava um lindo búzio, com aproximadamente quatro centímetro de comprimento. Sua coloração era mesclada, indo do bege até o marrom, com alguns traços acinzentados, formando linhas e pontilhados, figuras geométricas triangulares de vários matizes. Levantei-me e sentei. Segurei aquela jóia em minha mão e fiquei por alguns segundos admirando aquela preciosidade da natureza. Enquanto isso, os raios solares, que driblavam as palhas do coqueiro, acariciavam meu rosto. - É lindo! - disse-lhe maravilhado, dando-lhe um beijo Obrigado querida... Qual é mesmo seu nome? - Meu nome? Meu nome é (...) - “Bom dia ouvintes da FM mais badalada da região...” Aquela voz irritante do locutor no rádio despertou-me para uma realidade que eu queria esquecer. Quando abri meus olhos, deparei-me com meu quarto; com sua estante abarrotada de livros, os desenhos na parede, minha suposta cama forrada com algumas revistas e livros. Por um momento queria fechar os olhos e tentar voltar àquele sonho, Àquela minha realidade alternativa deixando de lado, principalmente, aquela perturbadora dor no pescoço, ocasionada provavelmente pelas várias horas naquela cadeira plástica nada confortável. Começava a ficar irritado comigo mesmo, por ter sonhado com tudo aquilo. Não queria de forma alguma acreditar que estava em minha cadeira com o livro do grande Rui sobre minhas coxas, aberto na página 103, onde eu iria começar a ler sobre o livro dos papas. Quando abaixei a cabeça, para conferir se o livro continuava na página em que eu tinha deixado, não acreditei no que viram meus olhos. Cheguei a achar que fosse uma peça pregada por eles, mas para a minha felicidade, não era. Era real, absolutamente real. Era o búzio, ele estava ali no meio do livro, entre as páginas 102 e 103, eu peguei com uma das mãos e com a outra coloquei o livro sobre a cama, o livro estava até com um pouco de areia. Dirigi-me até a janela, olhei em direção ao sol nascente e naquele momento, brotou em meus lábios um suave sorriso inexplicável, de alegria e ternura.
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