Março 2012 Nisan 5772
Ano 16 Ed 01
O caminho para a paz de uma rabina consciente Mussar - O que é? Nossa comunidade: grupo de pais mulheres e a leitura da Torá
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Comunidade Shalom Rabino Adrián Gottfried Rabina Deby Grinberg Rabina Luciana Pajecki Lederman Diretoria Presidente: Enio Lewinski Vice-Presidente:Marcelo Blay
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sumário 29 Mulheres na Shalom celebram a vida lendo da Torá
Rabino Adrián Gottfried
06 Entre chametz e matzá Rabina Deby Grinberg
33 Resenha Michael Pinkuss
09 Coluna do presidente Enio Lewinski
34 A importância do estudo do Mussar
Rua das Fiandeiras, 295 São Paulo SP www.shalom.org.br Tel: (11) 3847 0000 e-mail: shalom@shalom.org.br
riqueza de depoimentos e afirmações de nossas convicções de judeus con-
Pragas, exílios e a passagem para um futuro melhor
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Impressões e lembranças de um encontro inesquecível Clarice Gorenstein
Construção da paz autêntica: Rabina Melissa Weintraub
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“Não tenho o direito de ficar calado” rabino Marshall Meyer
24 Deus está se tornando: consolo em face da tragédia
44 Entrevista com Tamara Steiman
Rabino Bradley Shavit Artson
26 Grupo de pais
Lica Tal e Clarice Gorenstein
48 Coluna do Ensino
Liane Holzhacker, Fabiana e Daniel Sonder e Mariana Gottfried
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Synagogue News
novos membros que imediatamente se entrosaram e enriqueceram o escopo de nossas matérias. Sejam bem-vindas Elca, Liane e Tamara! Confirma-se que a Comunidade Shalom é um celeiro de grandes talentos. Leiam sobre Pessach em matérias rabínicas tradicionais e uma visão absolutamente contemporânea. Emocionem-se com a matéria sobre o ideal da procura pelo encontro do convívio fraternal entre diferentes em circunstâncias muito difíceis e com o depoimento para lá de humano do Rabino Marshall Meyer resumindo suas realizações em vida, quando sabia da gravidade de seu estado
HINENI hineni@shalom.org.br
Monica Fuchs
Rubens Harry Born
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Conselho Presidente: Marcelo Steuer Vice-Presidente: Anita Pinkuss Secretário: José Amarante Shalom Liga Israelita do Brasil
Elca Rubinstein
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Esse numero de Pessach reitera nossa linha editorial. Nele há uma grande temporâneos ancorados na tradição. O corpo editorial se orgulha da adesão de
04 Nutrindo a nossa alma
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Fábio Iguelka . Mirko Lebl Liliana Tal . Mário Grunebaum George Gabanyi . Adriana Netter Clarice Gorenstein . Gunar Hohl Philippe Minerbo . Sandra Durazzo
editorial
Conselho Editorial: Michael Pinkuss Adriana G Netter, Clarice Gorenstein, Elca Rubinstein Liane Holzchaker Liliana Szutan Tal, Moisés Baum, Monica Fuchs, Paulo Zilberman, Rubens Harry Born Sandra B. Durazzo, Simone Raskin Tamara Steiman
de saúde. Há ainda matérias sobre uma visão dinâmica e pessoal de Deus, depoimentos de mulheres que fizeram seu Bat Mitzva depois de adultas e o que isso significou para elas, um texto sobre o Movimento Mussar, o relato da viagem ao Limmud na Inglaterra, colocações de pais de alunos de nosso ensino e sobre como ele influenciou não apenas os seus filhos numa perspectiva da construção de nosso futuro de judeus convictos, e muito mais... Sem modéstia achamos que estamos pondo à disposição dos nossos leitores um número memorável, um retrato de nossa Comunidade que gostariamos de compartilhar. Desejamos uma leitura agradável e engajada.
Jornalista Responsável: Ronaldo G Ferreira - MTB 10651 3
Coluna do rabino Nutrindo nossa Alma Rabino Adrián Gottfried
É preciso a presença da morte para nos despertar para a vida da alma
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Livro dos Salmos diz: “Pitchu li shaarei tzedek, Abre para mim os portais da retidão, para que eu possa entrar e louvar a Deus. Este é o portal de Deus, o Justo pode entrar nele”. Os rabinos do Talmud se perguntavam quando alguém deveria fazer tal pedido? Então criaram uma história como contexto para estes versos: Quando um ser humano morre, o corpo é enterrado na terra, a alma ascende aos céus. Lá, a alma se encontra com anjos que guardam os portões dos céus. Os anjos perguntam: Qual era sua ocupação no mundo?
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E você vai responder: “No mundo fui advogado, ou médico, ou executivo, no mundo eu tinha muito poder”, eles lhe dirão: “Isto é irrelevante aqui.” Mas se a alma disser, “No mundo eu alimentei o faminto”, eles dirão: “Zé ha shaar La Adonai – Este é o portão de Deus, assim, você que alimentou o faminto pode entrar.” Se a alma disser: “No mundo protegi o vulnerável,” eles dirão: “Este é o portão de Deus, você que protegeu o vulnerável pode entrar.” E assim por diante, para os que cuidam dos desprotegidos e para aqueles que fazem atos de chessed, ou seja, atos de bondade e amor. Você que abriu sua mão e seu coração e praticou chessed, pode atravessar o portão de Deus. É um belo midrash. Mas a verdade é que os rabinos não têm a menor idéia do que acontece quando morremos. O midrash realmente não trata disto. Ao contrário, refere-se à transposição de valores que acontece face à morte. Caminhamos no mundo com orgulho de nosso sucesso, sentimos a glória do poder. Então a morte chega e nos ensina que somos criaturas humildes, frágeis, que habitamos este mundo por uma fração de tempo. E neste momento, ganhamos sabedoria. Neste momento todas as medidas convencionais de triunfo, de sucesso pessoal e de vitória são abandonadas. Estamos ocos, vazios. Confrontando a morte, repentinamente compreendemos que somos uma alma. E a alma mede a vida com uma série diferente de valores. Não é interessante que nenhum filho se levante em um funeral para elogiar um pai ou uma mãe e diga, tenho
orgulho de meu pai por tudo que ele ganhou? Ou tenho orgulho de minha mãe por aquilo que ela controlava? Não. O que eles dizem? Tenho orgulho do que meu pai deu, da maneira como ajudou os outros. Tenho orgulho da maneira como minha mãe amou, cuidou e alimentou. Nenhum filho jamais diz, amo meus pais por tudo que eles possuem. Eles dizem, amo os momentos que compartilhamos. Amei os momentos em que estivemos juntos; Desejaria que houvesse um pouco mais de tempo, algumas poucas palavras a mais, mais um abraço. É preciso a presença da morte para nos despertar para a vida da alma. O mestre chassídico Yakov Yosef de Polnoye ensinava que o ser humano é uma escada plantada na terra com seu topo alcançando o céu. Uma escada sugere uma dinâmica, como os anjos, a alma está sempre ascendendo e descendo. A nossa alma está sempre tanto crescendo como encolhendo. Durante o curso da nossa vida, nutrimos a alma ou a fazemos passar fome. A alma que está morrendo de fome nos deixa apáticos, entediados, sem rumo, deprimidos. Nutrir a nossa alma produz um sentido de intencionalidade, de real significado, de importância pessoal e coragem. A vida não é ganhar. A vida é ser capaz de dizer, eu me importo. Eu sou necessário. Eu pertenço. Eu sou amado. Vamos aproveitar o nosso tempo para fazer, aqui e agora, para praticar atos de chessed e assim alimentar a nossa Alma.
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Ilustrações de Michel Kichka
Ao chegar a Israel descobri que as famílias agregavam
dá Israelense “Halaila ha ze” de Mishel e Noam Tzion
textos de diferentes autores israelenses modernos aos
e a sua versão adaptada para o espanhol: “Uma noite
seus sedarim.
de Liberdade”, Hagadá Latina para a família. Estas
E foi assim que escolhi textos sobre chametz u matzá
hagadot são o exemplo vivo de que os textos milenares
para esta edição do Hineni. Textos que me emocionam,
dialogam constantemente com as nossas vidas, com
que me convidam a pensar novamente no significado
novos textos, assim resignificando o nosso relato e a
de Pessach para as nossas vidas e que facilmente po-
criação da nossa história.
dem ser incluídos no seder de cada família.
Convido-os a escolher um ou mais desses textos e adi-
Os textos foram selecionados de duas hagadot que na
cioná-los ao seu seder de Pessach.
verdade têm origem comum e o mesmo autor: a Haga-
Pessach Kasher ve Sameach!
Ha RabItzchak ha Cohen Kuk
Chametz Umatzá O homem deve buscar redenção todos os dias, isso significa sair todos os dias da diáspora pessoal e da escravidão de seus instintos, e expulsar de si mesmo todos os males. Deve preencher sua alma com coisas boas e apegar-se a cada centelha de verdade. Dessa maneira, alcançará a liberdade. Abraham J. Heschel
Entre chametz e matzá Rabina Deby Grinberg
Meu chag preferido no calendário judaico é sem dú-
quenos guias para transmitir de pais para filhos a nos-
vida Pessach. Na preparação para Pessach a família
sa história de povo e liberdade. De sofrimentos e fé.
se reúne para limpar a casa. No dia anterior ao seder,
A hagadá de Pessach sempre foi um relato clássi-
nos reunimos para preparar as comidas e a keará; e
co, aberto aos relatos dos tempos. A cada geração,
certamente nos reunimos na noite de Pessach para
aprendemos a resignificar esses textos.
realizar o seder e ler a hagadá. Esses eventos geram,
Lembro-me que em minha escola na Argentina estu-
além dos costumes das diferentes origens - sefaradim,
dávamos a cada ano textos “modernos” relacionados
ashkenazim, teimanim -, costumes que se enraízam na
a Pessach, relatos e preces relacionados à shoá, o
forma de tradições particulares de cada família.
pedido dos judeus russos para realizar aliá, a ditadura
A hagadá e o relato de Pessach nasceram como pe-
argentina, etc...
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Todos os anos, na noite do seder, quando parto a
matzá ao meio e escondo o afikoman, me sinto tomada pela emoção porque lembro do meu primeiro dia em Israel. Cheguei ao kibutz Kedma junto com outras crianças, todos novos imigrantes que chegaram a Israel sem seus pais depois da segunda guerra mundial. Tínhamos fome, não tínhamos nem uma moeda e estávamos exaustos de tanto andar. Na mesa do refeitório havia toda sorte de comidas deliciosas. Havia verduras em abundância, queijos, pães e podíamos nos servir à vontade. Eu não podia crer em meus olhos. Não podia crer que na próxima refeição também poderíamos comer tanto pão quanto
Os grandes sábios que tratam da halachá a respeito do bedikat chametz, falam sobre onde e como devemos procurar o chametz. Sem dúvida, a revista e limpeza da casa é somente o primeiro passo das limpezas de Pessach. O segundo passo é olharmos para dentro de nós mesmos e perguntar: que coisas em nossa vida, em nosso comportamento, em nossos hábitos, são na verdade, “chametz”?
desejássemos. Houve muitos dias na Europa em que eu não conseguia pensar em outra coisa a não ser o pão, que nunca era suficiente. Houve muitas noites em que fui dormir com fome. Ficava acordada horas com o estomago vazio, sonhando com pão. Mas agora, em Israel, havia tanta comida … O que fiz nesses primeiros dias no kibutz, ao sentar na mesa carregada de tanta comida boa? Tinha tanto medo de no dia seguinte não haver pão… então partia cada pedaço de pão na metade; comia uma metade e escondia a outra no bolso. Não esqueço dos dias em que sentia sempre o medo de não ter pão no dia seguinte. Bina Talitman, em Revivendo o Êxodo
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A história de Pessach começa em um mundo ruim, em meio à escravidão e opressão. O som do momento em que cortamos a matzá nos leva a essa existência fragmentada, e só nos tornamos inteiros novamente ao encontrar a metade cortada, o aficoman, no final do seder. Essa fragmentação não é somente uma condição física ou política. Em hebraico, o Egito se chama mitzraim, o que nos lembra a palavra tzar, estreito. Assim, no pensamento chassídico, mitzraim simboliza o estreitamento interior que detém nossas almas. Claro que podemos encontrar aí um valor único, como nos ensina o dito chassídico: “não há nada mais inteiro do que um coração partido” já que há uma fenda em todas as coisas e é por ela que entra a luz. Rabino Natan Menamirov Aluno de Rabino Nachman de Braslav, Ucrânia, século XIX
A prece de uma mulher para reparar o mundo Deus, criador do céu e da terra, criador da humanidade e de todos os seres vivos, outorga-me a capacidade de sentir o que sentem os outros, de escutar e ouvir, de olhar e ver, de emocionar e de emocionar-me... Mantém viva dentro de mim a memória do meu próprio sofrimento e do sofrimento de todo o povo de Israel, não para estimular em mim uma eterna paranóia, mas para que eu possa entender melhor o sofrimento dos diferentes. Que esse entendimento possa levar-me a fazer tudo que estiver ao meu alcance para aliviar e impedir tal sofrimento. Guia-me pelos caminhos de Tikun Olam, de reparação do mundo. Permite-me ser como Tu, dar de comer aos que têm fome, vestir aos que têm frio, cuidar dos enfermos e confortar os desolados. Ao mesmo tempo em que desfruto de um casamento afetuoso, ajuda-me a não esquecer dos milhares de mulheres que são maltratadas. Ao mesmo tempo em que desfruto da felicidade que me trazem meus filhos e netos, ajuda-me a não esquecer das crianças famintas, privadas de alimento físico e emocional. Que possa sempre haver um lugar em minha mesa para aqueles sem lar. Que a minha satisfação pessoal não se converta em auto complacência impedindo que eu ative meus instintos femininos de interessar-me pelos outros e de sentir compaixão. Que os meus sentimentos sempre me levem a agir. Alice Shalvi Ativista pela educação judaica pluralista e igualitária
Há 300 anos, um barco chamado Mayflower partiu para o novo mundo. Esse foi um grande acontecimento para a Inglaterra e para os Estados Unidos. Mas não há um inglês que saiba a data exata em que o barco partiu, ou um americano que saiba quantas pessoas havia e que tipo de pão eles comiam. Mas há quase 3000 anos os judeus saíram do Egito e todo judeu do mundo sabe dizer o dia em que saíram, 15 de nissan, e todos sabem exatamente que pão comeram, a matzá, e até hoje, todos comemos matzot no dia 15 de nissan. Nos EUA, na Rússia, em Israel, e em cada lugar onde se encontra um judeu. E contamos a saída do Egito, os problemas e desafios dos judeus que saíram para a redenção e a liberdade. Este ano, somos escravos, no próximo, livres. No próximo ano, em Jerusalém. David Ben Gurion,1947
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Coluna do presidente Enio Lewinski
S
er presidente da Shalom é um privilégio. Confesso que por meses, antes de aceitar o cargo, pensava exatamente o contrário. A nova sede foi inaugurada há aproximadamente um ano e coincidiu com o início da atual diretoria. Tenho ao meu lado uma excelente equipe profissional, que passou por alguns ajustes para adequação à nova fase da Shalom. A nova diretoria apenas agregou poucas pessoas ao grupo anterior, deixando claro seu desejo de seguir com todos os projetos em andamento. Como temos um rabino que é o incansável motor desta Comunidade, rapidamente novos projetos e desafios foram aparecendo. Este primeiro ano de sede e de gestão foi cheio de ajustes e aprendizados. Enfrentamos sérios dilemas, entre eles: procura do balanço entre o otimismo e o pragmatismo, agilização de ações dentro dos limites impostos pelo orçamento, aumento da segurança com manutenção do acolhimento etc. Em função de nosso crescimento, passamos a ter maior visibilidade. Vários frequentadores novos tem nos visitado e se encantado com o que encontram em nossa Comunidade. Muitos deles tem se tornado sócios. Mais jovens tem se matriculado em nosso ensino de bar e bat-mitzva e até casamentos, que não eram celebrados em nossa antiga sede, já estão na nossa agenda.
O NOAM, um dos nossos maiores tesouros, com suas peulot semanais e machanot semestrais, é motivo de muito orgulho. Recentemente quatro madrichim voltaram de um ano de Shnat em Israel e há poucos dias, sete madrichot seguiram o mesmo caminho. Lembrando que há alguns anos, outras duas madrichot já participaram deste programa. Isto reforça o vínculo da Shalom com Israel. A OAT segue sendo nosso orgulho de Tikun Olam, merecendo todo o apoio da Shalom, assim como o grupo de Healing. O ZUZ, por enquanto um pequeno grupo de jovens universitários, trabalha para um dia ser um importante núcleo de jovens com atividades culturais, beneficentes e sociais. Muitas ações encontram-se em fase de planejamento, entre elas a viagem de mulheres para Nova York e o Shabaton 2012, além de várias ofertas para eventos em nossa sede, que precisam ser cuidadosamente avaliadas. Este é um pequeno e breve retrato de nossa Comunidade Shalom e aproveito a oportunidade para agradecer aos meus colegas de diretoria, OAT, conselho, profissionais, doadores que confiam em nossos ideais, voluntários, amigos e frequentadores. Todos contribuem para que sejamos uma Comunidade judaica acolhedora, com fartura de emoção, ideias e ideais. Enio Lewinski 9
Pragas, exílios e a passagem para um futuro melhor Pessach, uma chave para lidar com desafios contemporâneos da humanidade
Rubens Harry Born
“Ó mundo tão desigual, tudo é tão desigual, ô ô ô ô . De um lado este carnaval, de outro a fome total, ô ô ô...” (Música “A novidade”, de Gilberto Gil / Bi Ribeiro / Herbert Vianna / João Barone)
É
da natureza humana a busca por condições dignas de vida, tanto no que se refere ao acesso às condições fundamentais de sobrevivência (ter abrigo, alimentos, água etc.), bem como ao convívio familiar, comunitário e ou social que melhor permita o bem-estar e o desenvolvimento das potencialidades criadoras e os atos correspondentes à base ética, cultural ou religiosa de cada pessoa. Entretanto, na busca do “bem-viver”, a humanidade registra incontáveis fatos dramáticos em que indivíduos e povos enfrentaram situações adversas e brutais, ora associadas a fenômenos naturais ou, infelizmente, consequentes a distintos contextos políticos, econômicos ou culturais adversos. 10
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“Pragas” naturais ou de origem antrópica continuam a impactar a vida de milhões de pessoas em nossa era, assim como marcaram a civilização humana desde tempos antigos. Seca, inundações, terremotos, tsunamis, guerras, preconceitos, protecionismos ou privilégios perversos, fome, condições sociais, entre outros, que provocaram o êxodo e exílio, voluntário (ou antecipado) ou inevitável. O povo judeu desde os tempos bíblicos registra diversos momentos em que tiverEm que lidar com o desafio do êxodo para garantir a sobrevivência física e a sua opção em viver de acordo com seus valores e sonhos. Nosso patriarca Abraão fez longa jornada após ter deixado sua terra natal para poder restabelecer-se em condições que permitissem viver com sua crença. Descendentes de Jacó migraram para o Egito na expectativa que lá poderiam ter condições materiais de sobrevivência. Muitos anos depois, os hebreus lograram a superação da escravatura e o resgate da sua liberdade para poder constituir-se em povo organizado e permitir que gerações sucessivas pudessem desfrutar do bem viver em sua sonhada e prometida terra 12
de leite e mel. Bem, desnecessário repetir aqui os detalhes da história e os valores relembrados, anualmente, em Pessach: a celebração para valorizar nossa liberdade em poder escolher os rumos por uma vida melhor. Obstáculos, sofrimentos e dilemas fazem parta da narrativa do êxodo que é marcado também pelas pragas que atingiram o Egito e seu povo. Em vez de tomá-las como uma resposta divina à intransigência do Faraó, prefiro leituras que associam certas mazelas à inércia de sistemas humanos, as quais afetam também milhares de pessoas inocentes e, que dada a conjuntura, não dispõem de condições objetivas de alterar a estrutura política, econômica, social e cultural predominante, por um lado, ou de tomar ações preventivas ou adaptativas às consequências de fenômenos naturais. Vale então lembrar situações contemporâneas ou riscos de futuros exílios, de deslocamentos indesejados e emergenciais e, também, de grande sofrimento para centenas, milhares ou milhões de pessoas. Não há estimativas muito precisas sobre o número de pes-
soas que, no presente ou no futuro, têm e terão que experimentar a fuga do local em que vivem como resultado das alterações climáticas, da degradação ambiental, da falta de condições de acesso à saúde e à educação, da insegurança. Os números mais frequentemente citados apontam para a cifra de 200 milhões de pessoas – formando uma nova categoria: a de refugiados ambientais – que estarão em migração ou deslocadas em 2050 devido a fatores ambientais. É um número equivalente ao estimado em 2010 do total de 214 milhões de imigrantes em todo o mundo. O êxodo rural fez inchar as cidades nos últimos sessenta anos, tendência em todos os continentes. Mais de 50% da população mundial e 80% das pessoas no Brasil vivem atualmente em cidades. Êxodo rural também está associado aos desafios quanto à segurança alimentar e nutricional de uma população mundial ainda em crescimento. Durante as próximas quatro décadas, o planeta poderá ter mais de dois bilhões de pessoas somadas às sete atuais. Além disso, os dados da FAO apontam que a demanda por alimentos crescerá em 70% até 2050, também devido à superação da pobreza em alguns países e mantidas as atuais condições de consumo e do comércio. Não se trata de retomar perspectivas neomalthusianas, uma vez que há uma cadeia de fatores que interligam êxodo rural e produção de alimentos: preço de commodities, acesso a terra e tecnologias, etc. São intrigantes também os números da ONU: cerca de 1,6 bilhão de pessoas com excesso de peso e obesas e de 1 bilhão em situações de fome. Os países ricos desperdiçam anualmente cerca de 220 milhões de toneladas de frutas e hortaliças. Esse volume é aproximado ao da produção em toda a África. Parte significativa dos movimentos migratórios, sobretudo na África, está associada às dificuldades de soberania alimentar e de acesso a terras e a condições adequadas para práticas agrícolas. Desperdícios no consumo e perdas no transporte, armazenagem e distribuição respondem por outros 25% a 30% dos alimentos produzidos. Tecnologias agropecuárias têm permitido o aumento da produtividade, mas a ampliação do rendimento está se esgotando e há, ainda, graves ameaças da expansão de produção de alimentos no tocante a proteção de ecossistemas, de espécies da flora e da fauna, e da qualidade de rios e dos mares, cada vez mais contaminados também com pesticidas. Além disso, as mudanças climáticas da-
rão nova conformação à geografia e à economia agrícola, entre outros, e afetarão os agricultores familiares mais vulneráveis. A crise ambiental que atinge o planeta, evidenciada pelas consequências do aquecimento global e das mudanças climáticas, pode provocar enormes custos sociais, econômicos e humanos. Nem todas as comunidades e países dispõem das condições para ampliar sua capacidade adaptativa aos efeitos irreversíveis dessas dinâmicas ambientais, e devido a isso se estima que novos e intensos fluxos migratórios poderão ocorrer no futuro. Nos últimos 30 anos, houve redução de quase 20% de geleiras na Ásia (com destaque para o Himalaia), fato que acarreta o aumento no fluxo de águas nos rios Ganges, Amarelo e Mekong e a ocorrência de inundações em diversos países da região. Associado ao aumento do nível do mar e à salinização de águas subterrâneas, esses efeitos das mudanças climáticas poderão adicionar, por exemplo, mais de 20 milhões de pessoas de Bangladesh (95% do país está sujeito a inundações sazonais) aos imensos fluxos migratórios regionais. As negociações globais de nova fase do Protocolo de Kyoto estão emperradas, frustrando a expectativa de cientistas e de ambientalistas que poderíamos limitar o aquecimento global médio do planeta a 2ºC (tudo indica que será superior a 3 ou 4ºC) até 2100. Os modelos de cenários apontam que alguns países insulares não terão mais como abrigar a sua população: de fato, em Kiribati e Tuvalu, por exemplo, atualmente já há a salinização de águas em decorrência do aumento do nível do mar. Daqui a quatro décadas, é provável que todos ou parte significativa dos 300 mil habitantes de Maldivas tenha que abandonar esse país insular. No nosso hemisfério, enfrentaremos, também, enormes desafios, pois diversas cidades sulamericanas, na costa do Pacífico, já iniciaram os estudos para garantir água potável em razão do derretimento de glaciares andinos, de onde captam água, atualmente. Não há grandes debates públicos sobre o impacto da diminuição de gelo andino na formação dos rios das bacias amazônicas, por exemplo, embora se saiba que o aquecimento global combinado com a continuidade do desmatamento poderá ocasionar uma savanização da região e distúrbios no sistema climático global (mais de 50% das chuvas no sul do Brasil, norte da 13
Argentina, Paraguai e Bolívia, regiões de intensa atividade agrícola, dependem da umidade oriunda da Amazônia). O Nordeste brasileiro terá extremos de temperatura mais altos, podendo em algumas regiões ser de até mais 6oC, isso se a temperatura do planeta tiver aumento de até 2oC. Haverá expansão da zona árida e semi-árida, e, se nada for feito para promover a convivência digna e ampliar a capacidade de adaptação dos sistemas econômicos e sociais, veremos aumentar a migração oriunda da região mais pobre do Brasil. No sul e no sudeste estudos científicos apontam para a concentração de chuvas mais intensas em determinados períodos do ano. Em novembro de 2008, mais de 300 mil pessoas foram deslocadas ou atingidas depois de 60 dias ininterruptos de chuvas “anormais” que agravaram os riscos oriundos do desmatamento e ocupação de encostas, pois “dissolveram” morros e assorearam rios e canais de drenagem. Esse número de pessoas deslocadas é equivalente a metade do povo hebreu que saiu do Egito sob a liderança de Moises. Segundo dados citados pelo jornalista Washington No14
vaes, a média mundial de desastres naturais “passou de 15 por ano na década de 1980/90 para 370 na década seguinte e os prejuízos foram 15 vezes maiores que nos anos 50”. Relatório da ONG Oxfam aponta para mais de 2,2 milhões de mortes desde 1975 em “desastres naturais” (que incluem terremotos, tsunamis, etc.), e 250 milhões atingidas a cada ano; essa cifra poderá chegar a 375 milhões em 2015. Estudo da Universidade de Columbia faz prognóstico que até 10 milhões de seres humanos serão deslocados por eventos extremos a cada ano. Para aonde foram e onde estão os refugiados dessas tragédias “naturais”? Quem acolherá os tuvalenses e habitantes de demais países insulares, se os prognósticos científicos se confirmarem e se houver o êxodo completo da população desses países e regiões? Serão refugiados permanentes, ao longo de gerações, em outros países? Perderão direito à identidade cultural e à nacionalidade? Serão cidadãos à mercê da filantropia? No âmbito da ONU já ocorrem debates, mas que despertaram pouca atenção do público e dos diplomatas, sobre questões que permitam organizar ações e programas para lidar com os “novos” problemas e os “refugiados ambientais”: conceito que inexiste legalmente, pois o termo refugiado é aplicado somente para as pessoas que buscam proteção em virtude de temor justificado, de perseguição e de ameaça à integridade física por razões políticas, religiosas, etc. Quem cobrirá os custos de realocação de tais pessoas? As seguradoras? Países poderão ser “refundados” em territórios de terceiros? Qual a responsabilidade dos poluidores ao longo de gerações? Que atitudes nossas podem direta ou indiretamente prevenir ou aliviar as consequências da crise planetária sobre as pessoas mais vulneráveis? O drama de perder parentes, casas, trabalho é mais facilmente percebido quando se considera a perspectiva individual e familiar, embora as aflições, tristezas e sentimentos de cada um se perdem nos olhares daqueles que têm responsabilidades para definir ou gerir políticas públicas e atividades empresariais capazes de beneficiar uma multidão de pessoas. Não obstante, mazelas, exílio e retomada de esperança de passagem para uma vida mais segura e digna estão certamente presentes entre milhões de pessoas já afetadas por essas tragédias “naturais”, que agravam as consequências e os riscos inerentes às formas
Os números mais frequentemente citados apontam para a cifra de 200 milhões de pessoas – formando uma nova categoria: a de refugiados ambientais inapropriadas de ocupação de encostas e de várzeas, do desmatamento e da degradação de áreas relevantes. Faltaram orientações, políticas, alertas, medidas de prevenção e de precaução. Não é mero problema de audição, mas fazer pouco dos alertas parece mesmo ter algum nexo com a ocorrência de “pragas”, assim como na história contada em Pessach. Sim, essa crise ambiental está associada a padrões de consumo e produção assentados na concepção clássica de crescimento ilimitado e de pouca preocupação com a longevidade e eficiência no uso dos recursos. Sim, precisamos e podemos ser mais ecoeficientes, reciclar produtos e resíduos, usar energia renovável, ampliar e melhorar o transporte público, reconfigurar nossas edificações e cidades, etc. Mas, tudo isso poderá ainda ser insuficiente na prevenção de êxodos e catástrofes. Podemos e precisamos fazer mais. Precisamos ir além da aplicação das tecnologias apropriadas que alterem nossas formas de produzir, de se locomover e transportar e de consumir nesse mundo. Precisamos resgatar a preocupação com a dignidade e sacralidade da vida, com a justiça, com a atenção que devemos dar aos mais vulneráveis. Em tempos bíblicos, os profetas diziam que esses eram os órfãos, as viúvas, os pobres. A esses somamos todas as pessoas, das gerações presentes e futuras, impactadas pelas ações e omissões de nossos governos, empresas e organizações que são inertes à adoção de uma maior centralidade aos desafios da convivência harmoniosa, pacífica e calibrada com o planeta. Sim, precisaremos de mais tzedaká, de filantropia e justiça social, de apoio aos necessitados. Mas, precisamos ampliar as atitudes e processos de Tikun Olam, de restabelecer a harmonia, a resiliência e a dignidade da Vida para todos, reorientando nossas vidas e sociedades para ações mais responsáveis uns com os outros e com o planeta. Sim, toda atividade humana gera alguma entropia (desor-
dem) e impactos socioambientais. O planeta tem limites e a humanidade precisa ser capaz de viver na suficiência em vez do crescimento desregrado. A nossa ética, os valores e compromissos judaicos com a Vida (renovados a cada ano nas Grandes Festas e também relembrados cotidianamente) nos oferecem plataforma para estarmos mais atentos aos limites, condições e umbrais de como as sociedades humanas se organizam e distribuem, ou não, o bem-estar e os frutos do labor humano e da natureza. O judaísmo nos ensina a não ficarmos inertes perante as tragédias e pragas. Ele nos ensina a buscar a justiça como forma de trazer harmonia e equilíbrio, rompidos por motivos mais diversos. A zelar pelos mais próximos bem como a zelar pelos “estrangeiros”, os que mesmo não compartilhando de nossos ideais e identidades merecem respeito e dignidade no local, no planeta em que moramos. Aprendemos que devemos ter responsabilidade com a fruição de nosso livre arbítrio, mas essa responsabilidade tem também uma dimensão moral com a Comunidade da Vida, do planeta e de todos os seus seres, ou seja, temos responsabilidade em como e onde vivemos. Não penso ser adequado ficar na zona de conforto do padrão atual de “desenvolvimento”, atitude que parece ser o bezerro de ouro contemporâneo, uma atitude que bloqueia ir adiante a um caminho sustentável, ainda incerto, para um futuro mais justo e saudável para todos. Incerteza não deveria ser um obstáculo para novas opções de vida: não foi para o patriarca Abrão, nem para Moisés, nem para muitos outros. Frente aos sacrifícios evitáveis e aos demais desafios, por mais complexos que possam ser, podemos nos perguntar onde e como nos colocamos? Cabe escolher então respostas firmes como as oferecidas para o Criador por nossos patriarcas: Hineni, aqui estou! Nada temeremos! Seguiremos na jornada em busca de um mundo melhor! Vamos adiante, Lech lechá!
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“A
ntes mesmo de começar, eu quero fazer um retrato concreto do que a Encounter faz, porque acho que é difícil compreender o
Construção da paz autêntica: uma justiça que não é somente para nós Rabina Melissa Weintraub
A rabina Melissa Weintraub fundou a Encounter, uma ONG que proporciona aos líderes judeus de todas as correntes religiosas e políticas da diáspora a oportunidade de vivenciar a realidade Palestina. Baseada nos conceitos de Chochmá (Sabedoria) e Biná (Entendimento), a Encounter tem como missão trazer estes líderes para as comunidades da Cisjordânia onde, através do diálogo entre todas as linhas ideológicas, judeus e palestinos se veem, se falam e começam a ter uma ideia mais real e menos demonizada uns dos outros. A Encounter acredita que esta é a única forma de atingir a paz no Oriente Médio. Em outubro de 2011, a rabina esteve no Grinnell College para receber o prêmio Young Innovator for Social Justice. Esta é a transcrição do discurso proferido por ela no fechamento do evento que a premiou. 16
que fazemos. Imagine essa situação: rabinos ortodoxos e reformistas, colonos religiosos e ativistas anti-ocupação, todos sentados, em frente a uma barreira divisória, com uma família palestina diretamente impactada por esta barreira, debatendo juntos seu significado, com uma escuta mútua verdadeira e respeito recíproco. Imagine os fundadores judeus dos partidos Republicano, Democrata e outros, dormindo em lares palestinos e passando a noite debruçados sobre mapas e histórias. E fazendo suas preces noturnas nas casas de ex-militantes palestinos. Imagine líderes que só tinham se encontrado nas páginas de editoriais em artigos que demonizavam uns aos outros, se desculpando por terem se fechado para ouvir uns aos outros. E aprendendo a viabilizar soluções para problemas de forma criativa e unidos sem qualquer manobra política. Assim, desde a nossa fundação, a Encounter se concentra na criação de espaços nos quais a comunicação é possível. Onde pessoas com posições ideológicas diametralmente opostas podem falar da essência de seus profundos conflitos enquanto mantêm a integridade e a dignidade de todos os envolvidos, onde podem ouvir uns aos outros e até ajudam a abordar questões intensas que preocupam a todos. Ao me preparar para o dia de hoje, pensava sobre o que compartilharia com vocês, de forma a mostrar a essência do que a Encounter tem para oferecer, assim como minha trajetória pessoal como ativista desde a faculdade até hoje. Percebo que no âmago desta trajetória e no âmago do nosso trabalho na Encounter está a transformação de um ativismo baseado no ódio para um ativismo centrado na compaixão. É sobre isso que quero falar hoje. Sobre as limitações de um ódio legítimo, particularmente em um contexto político polarizado no qual todos os lados se enraivecem e o ódio se torna o vernáculo comum. (…) Quero compartilhar com vocês um modelo diferente que criamos na Encounter. Um modelo que é mais eficaz ao recrutar aqueles que não são nossos aliados naturais. Um modelo que, acredito, tem maior chance de gerar inovação e soluções mais inteligentes, mais inclusivas. E um modelo
através do qual nós ativistas sustentamos nossos valores essenciais, como a luta pela dignidade humana, sob o espírito e visão da luta. Falarei sobre minha história pessoal, minha própria evolução como ativista, porque acredito que ela captará concretamente as deficiências do ódio e o poder da compaixão frente ao conflito crescente. Compartilharei como nós incorporamos estas lições à nossa teoria e metodologia de mudança na Encounter. (…) Mas os convido a fazer suas próprias traduções e suas próprias conexões. (...) Como, caso seja possível, um ativismo centrado na compaixão ao invés de guiado pelo ódio pode ser mais eficaz para criar as mudanças que você quer ver no mundo. Mas começo com o poder do ódio legítimo da minha própria história. (…)Cresci numa cidade no meio-oeste, de população predominantemente branca de classe média. Meu primeiro emprego, aos 17 anos, nessa cidade quase homogênea, foi como organizando testemunhas no tribunal de justiça e me questionei por que ali conheci mais homens negros esperando seus vereditos e sentenças do que havia conhecido em toda a minha vida. Essa pergunta ficou ainda mais pungente quando o juiz que proferia as sentenças, que me tinha tomado como sua protegida, começou a praticar descaradamente seu racismo atrás de portas fechadas. Dizendo coisas como, “você e eu não temos como entender estes homens vivendo no mesmo lugar que nós crescemos. Nós não podemos entender sua cultura violenta. Estes homens não podem ser reabilitados. Eles simplesmente precisam ser retirados das ruas.” Este foi um dos meus primeiros momentos de consciência. O juiz despertara meus instintos mais básicos pela igualdade e dignidade universal da vida humana. “Você e eu não podemos compreendê-los.” E minha reação foi indignação e desafio. Passei o verão seguinte trabalhando em um acampamento com crianças afrodescendentes que haviam sido abusadas ou negligenciadas, no sul de Chicago, uma das áreas com a maior taxa de violência e crime dos EUA e com uma das culturas mais acolhedoras e vibrantes que já conheci. “Você e eu não podemos compreendê-los”, ele disse, insinuando a inevitabilidade dos homens negros encherem as cadeias. Então, pesquisei o contexto e as causas primárias e a discriminação, privação de direitos e desvanta-
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gens sistêmicas. Envolvi-me com a educação de presos e a reforma da justiça criminal. Aprendi modelos para efetuar mudanças seguindo os passos de organizadores comunitários e líderes de organizações de suporte que abordavam todas as questões interligadas que haviam levado aqueles homens negros a encherem os tribunais de justiça da minha cidade de brancos. Educação, habitação, o esfacelamento de famílias, a negligência política dos pobres, e assim por diante. Na medida em que minha compreensão da opressão e da injustiça sistêmica crescia, fiquei cada vez com mais raiva. Eu me uni a pessoas que pensavam como eu para perseguir os opressores. E, enquanto atuei entre ativistas que eram como eu, percebi que a indignação legítima é uma força motivadora e contagiante. Nós canalizávamos nossa indignação comum para estratégias de confronto, enfrentando os donos dos cortiços. (…) Eu acreditava que a chave para ser um bom ativista era se perguntar o que o deixa mais indignado e então ir a luta. Assim, quando fui a Israel pela primeira vez, aos 20 anos, e ignorei todos os avisos para não ir à Cisjordânia, é fácil entender que tive motivos de sobra para ficar completamente irada com o que vi lá. Eu tinha sido uma dedicada sionista desde a infância (…) Assim, quando fui à Cisjordânia, eu estava emocionalmente condicionada para desconfiar de tudo o que ouvisse dos palestinos. Mas minha experiência direta atropelou todo aquele condicionamento emocional. Originalmente, havia planejado ficar em Israel somente durante o verão, mas estava tão indignada com as injustiças que vi, que eram imediatamente visíveis ao se entrar em território palestino, e tinha um senso de obrigação tão grande por ser judia, que tranquei a faculdade por um semestre e acabei trabalhando com organizações de paz que administradas através de esforço comum palestino- israelense. O que eu mais fiz naquele semestre foram amigos palestinos. (…) Eu falava com qualquer um que quisesse falar comigo. Eu enchia meu caderno com histórias que ninguém tinha me contado quando criança. Nessa etapa desequilibrada eram basicamente histórias dos palestinos na posição de vítimas. (…) Histórias de jovens palestinos que haviam sido arrancados no meio da noite e mantidos em prisão administrativa indefinidamente, sem qualquer acusação e sujeitos ao que era então chamado eufemis-
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ticamente de “pressão física moderada.” Histórias de mulheres de Jerusalém Oriental separadas de seus maridos residentes na Cisjordânia durante cinco dias por semana, para que elas pudessem manter o acesso à sua nativa Jerusalém ou às suas famílias. Histórias de crianças palestinas que não tinham água em suas torneiras para escovar os dentes enquanto crianças judias nos assentamentos vizinhos desfrutavam de banhos refrescantes nas piscinas comunitárias rodeadas de jardins intensamente irrigados. Vocês já podem sentir meu antigo ódio aparecendo. Talvez como o convertido fervoroso, eu tinha vontade de chacoalhar as pessoas à minha volta para acordá-las. Eu me lembrava frequentemente de uma história maravilhosa chamada “Aqueles que deixaram Omelas”, escrita por Ursula K. Le Guin. É uma história sobre um reino utópico, onde havia tamanha abundância de alimentos e recursos que não havia nada a fazer exceto cantar e dançar e comer e amar e ser feliz. Há descrições sofisticadas da música e das cores e sabores das festividades em Omelas. O único ponto negativo da vida em Omelas é que havia uma criança mantida no porão. Acorrentada, maltratada e que de vez em quando apanhava para que todos vivendo acima dela pudessem desfrutar de alegria e liberdade. O único custo de viver em Omelas era que, uma vez na vida, todos deviam descer ao porão e testemunhar a existência dessa criança. A história descreve as diferentes reações daqueles que descem ao porão. Aqueles que racionalizam e explicam o tratamento da criança e por que ela o merece, aqueles que choram e protestam, mas imediatamente se esquecem da criança ao se envolverem novamente nas festividades do mundo acima. A história termina com a frase “mas de vez em quando há alguém que deixa Omelas.” Fiquei completamente tomada por esta história. Pensava sobre ela quando sentava em um lindo parque em Jerusalém, tomando cappuccino e comendo saladas deliciosas, quando admirava a beleza natural e cultural de Israel. Uma parte de mim ainda queria deixar Omelas, mas eu era sionista demais e ativista demais para simplesmente partir. O que eu realmente queria era levar todos para o porão comigo. Para entender o custo da nossa abundância e liberdade e para explorar ou se comprometer com o que poderíamos fazer para corrigir essa situação. Mas, na maior parte do tempo, meus esforços para le-
...não podemos abrir uma flor com um martelo. Se não um martelo, o que abre uma flor? Uma flor se abre sozinha. var as pessoas ao porão eram infrutíferos. Diferente de outras causas que eu já havia defendido, mesmo causas impopulares como os direitos dos prisioneiros, eu percebi que a minha raiva não era motivadora ou convincente. Ao contrário, ela parecia interromper as conversações antes mesmo que tivessem uma chance de começar. As pessoas me consideravam marginal e ingênua. (…) Parecia que ninguém queria ser levado ao porão para olhar nos olhos da criança maltratada, que eu via como objeto da negação de todos. Pela primeira vez, meu ódio legítimo era totalmente ineficaz. Então comecei a estudar a psicologia da negação em si. (…) Descobri que enfrentar o que negamos, realmente digerir o que evitamos olhar ou sentir por qualquer motivo, é uma atividade dolorosa, dissonante e vulnerável. E descobri que o ódio é a pior das ferramentas para encorajar-nos a fazer isso. Um dos membros do conselho da Encounter, que está conosco desde o início, o Rabino Benjamin Barnett, costuma dizer que não podemos abrir uma flor com um martelo. Eu adoro esta frase. Se não um martelo, o que abre uma flor? Uma flor se abre sozinha. Ela não precisa que forcemos sua abertura, só precisa das condições certas que garantam sua saúde e crescimento, para então abrir-se como quiser. Meu modo de agir teve que mudar. Precisei sair de uma situação na qual eu só mobilizava aqueles que pensavam e falavam como eu, para tentar engajar e transformar aqueles que pensavam de forma diferente. Minha compaixão tinha que ser maior do que minha raiva. Compaixão com todos, incluindo aqueles que eu queria destruir na comunidade injusta ou chacoalhar para que se transformassem em ativistas da paz. Mas quero deixar claro. Eu não suprimi a minha raiva, mas a redirecionei. (…) Comecei a trabalhar na linha do que considero a maior visão de Martin Luther King, a comunidade. Uma visão de redenção e reconciliação, uma irmandade que inclui nossos adversários ideológicos. Uma justiça que não se restringe somente a nós. Não somente nós, os justos, lutando bravamente contra todos esses imbecis
que simplesmente não conseguem entender. Esta é a visão maior que guia meu trabalho e fez nascer a Encounter. Mas quero voltar um pouco e contar a vocês como cheguei lá. Como passei de tentar abrir flores com martelos para tentar criar as condições para que elas queiram abrir-se por si mesmas. De castigar para encorajar. Assim, três fatores interligados alimentaram essa mudança. O primeiro foi pura e simples eficácia. Com a violência brutal da Segunda Intifada que começou em 2000, os acampamentos da paz israelenses e palestinos tornaram-se gradativamente ineficazes e marginalizados. Falo no passado, mas este panorama infelizmente ainda persiste apesar das muitas mudanças que já conseguimos realizar com a Encounter. Esta era uma época de muita polarização, desconfiança crescente e desumanização. Entre os israelenses, “ativista da paz” literalmente se tornou um palavrão. (…) Neste ambiente, o ódio e a adversatidade só iriam reforçar a alienação dos que estavam conosco. Era necessária uma transformação mais ampla que só seria possível com o engajamento efetivo daqueles que não estavam conosco. Nós precisávamos atingir candidatos improváveis. E não poderíamos fazê-lo sem nos relacionar com seus verdadeiros e compreensíveis medos e esperanças. Assim, o segundo fator da minha jornada do ódio à compaixão foi despertar das armadilhas do pensamento eu versus eles, incluindo o meu próprio. Binários bons-maus são o motor do ódio legítimo. Não há nada mais inflamador do que a identificação do perverso inimigo opressor e a transformação deste em nosso alvo. Mas, quanto mais eu vivia no Oriente Médio, menos esses binários branco-e-preto pareciam ter relação com o que realmente causa sofrimento nesta terra. Ficava cada vez mais difícil dividir a situação entre agressores diabólicos e nobres vítimas. A negação raramente é uma via de mão única. (…)Comecei a ver as ações destrutivas de israelenses e palestinos como interligadas numa trágica dança de causa e efeito. Assim, eu agora enchia meus cadernos com histórias comoventes, não só de palestinos que haviam sofrido nas
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mãos dos israelenses, mas também de israelenses que enfrentavam dolorosas escolhas de cunho moral e político nas fronteiras, nas mesas de negociação e sofriam perdas injustas e indescritíveis. Ao invés de ver agressores cruéis e vítimas inocentes, eu desenvolvi um olhar mais compassivo para com todos nesse conflito, que aplacou organicamente minha raiva unilateral e me dotou de uma maior humildade sobre minha própria opinião incompleta e em constante evolução... Quatro anos depois do início da segunda intifada, as distâncias sociais neste pequeno espaço geográfico eram desconcertantes. (…) Basicamente todos se cercavam de pessoas que pensavam e falavam como eles. Judeus religiosos não se mesclavam com judeus seculares ou palestinos e havia esse tipo de triângulo com núcleos de autoafirmação colidindo em frustração e hostilidade ou não se dirigindo uns aos outros. E eu estava vivendo como que na zona do crepúsculo. Enquanto esta divisão acontecia à minha volta, eu me tornara uma judia observante e praticante; começara um longo processo para me tornar rabina e estava gradativamente mais conectada com os círculos religiosos tanto nos EUA quanto em Israel. Assim, eu me encontrava numa posição extremamente incomum e solitária, conectada pessoal, profissional e emocionalmente com cada um desses enclaves. (…) Em todo lado eu encontrava a tragédia que os sociólogos chamam de pensamento de grupo. Câmaras ressonantes de pessoas que pensam de forma semelhante, reforçando as hipóteses uns dos outros. Bem, cada um perde informações e insights cruciais porque demonizam e desconsideram todos os que são considerados opositores ideológicos. Como homens cegos tocando partes diferentes do elefante – para citar a antiga parábola indiana – e considerando que a trompa ou a cauda são o todo do elefante, nós todos perdemos a noção do conjunto, os déficits da nossa própria análise e, mais importante, maneiras inovadoras de avançar. E ao atravessar estes mundos fragmentados, convenci-me de que todos nós precisamos da perspectiva do outro. De que se os membros de cada um dos grupos puderem considerar o ponto de vista do outro no conflito, nós poderemos alcançar a necessária sabedoria coletiva para resolvê-lo. Fiquei convencida de que alcançar essa sabedoria coletiva iria requerer uma mudança cultural mais
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ampla – à semelhança da mudança pessoal que eu já tinha vivido, do ódio legítimo para a compaixão, da adversatividade para a curiosidade, para além das linhas da diferença dramática. Assim, o primeiro fator foi a eficácia, o isolamento dos campos de paz. O segundo foi o pensamento nós/eles, e o terceiro foi que percebi que meus valores fundamentais exigiam esta transição do ódio para a compaixão. Se fosse para viver à altura de meus valores, como a dignidade humana, que eu sempre disse ser o norte das minhas políticas, eu precisava afirmar a dignidade não somente dos oprimidos, mas também daqueles com quem eu discordava fundamentalmente. Infelizmente, não havia muito disso acontecendo. Ativistas de direita e esquerda sacrificavam seus ideais em nome da obtenção dos mesmos, como eu havia feito sem me dar conta. Há uma história que exemplifica o que estou falando. Logo antes de conceber a Encounter, minha querida amiga e cofundadora Rabina Miriam Margles e eu fomos a um treinamento palestino de ação não-violenta. Depois de simular um confronto com um soldado israelense, uma ativista da paz irlandesa que liderava o treinamento disse “lembrem-se que mesmo o soldado israelense é um ser humano que vai para casa e dá um beijo de boa noite em seus filhos.” Miriam se aproximou e me disse, “é, eu me diverti muito com ele ontem à noite.” Para nós, esse momento foi emblemático. A treinadora tentava humanizar Israel, mas nós achamos aquela forma de humanização fria e vazia. Totalmente distante da integridade e profundidade humana da vida e preocupações israelenses que nós conhecíamos íntima e genuinamente. Esta ativista da paz, como tantos ativistas pró-Israel, pró-Palestina, que são solidários exclusivamente com um dos lados, sem conexão humana com o outro, não reconhece que está se desconectando de seus ideais ao persegui-los. Ela desumanizava um povo no processo de tentar lutar pelos direitos e dignidade do outro. Então nos perguntamos, como seria um ativismo não-violento, um ativismo pacífico nos padrões da visão de Gandhi e Martin Luther King. Ações não-violentas que sejam baseadas em compromisso autêntico com a dignidade e integridade de todos os seres humanos. Não-violência, não somente ausência de violência, mas como um códi-
go de conduta que se recusa a degradar qualquer um de qualquer lado, mas prefere elevar a todos. Defensores de todos: judeus e palestinos, direitistas e esquerdistas, aqueles considerados agressores e as vítimas. Uma visão que sustenta a fé na integridade, na bondade básica, nas preocupações e necessidades daqueles com os quais concordamos e discordamos. Uma visão da comunidade querida que inclui a dignidade dos nossos adversários ideológicos: uma justiça que não se restringe a nós. (…) No outono de 2004, Miriam Margles e eu acendemos as velas de shabat em Beit Sahour, uma vila palestina nos arredores de Belém, com um grupo de ativistas palestinos. (…) Juntos, este grupo de velhos amigos começou a sonhar. (…) Eis a que chegamos: 1. Apoiaríamos o pensamento crítico e criativo dos nossos participantes para que cheguem às suas próprias conclusões, sem impor qualquer agenda política em particular. Nós não forçaríamos as pessoas ao consenso. Nós não evitaríamos nenhuma das etapas que estávamos sendo forçados a enfrentar de todos os lados. Ao invés disso, encorajaríamos as pessoas a expandirem seu campo de visão ao ouvirem de forma indulgente aqueles a quem se haviam anteriormente fechado. 2. Daríamos treinamento em habilidades comunicativas para fortalecer sua capacidade de aumentar sua curiosidade, sua abertura e honestidade por meio da discordância. 3. Criaríamos o espaço mais acolhedor e inclusivo possível em todos os detalhes. Para deixar os religiosos à vontade, incluiríamos elementos judaicos – comida casher, preces e estudo da Torá. Nós daríamos atenção especial a detalhes como as necessidades de alimentação, alergias e medicação das pessoas. Acreditem se quiserem, isto faz com que as pessoas se sintam cuidadas e incluídas. Traríamos um facilitador para cada cinco participantes, muitos deles treinados em programas de suporte espiritual e de aconselhamento, estendendo de maneira pró-ativa cuidados e apoio a cada participante, independentemente do que estivessem vivenciando. Falaríamos sobre o que realmente importa. Nós não contornaríamos os temas difíceis. Isso era algo que a maior parte dos grupos de diálogo dos últimos anos não tinha feito. Eles tinham tentado abandonar os temas difíceis em nome da “reumanização” básica.
Então, dissemos que não haveria fuga ou esquiva. Ao invés de desviar o olhar do que era mais difícil, nós nos debruçaríamos sobre o tema. 4. Finalmente, nossos programas aconteceriam na Cisjordânia. Isto era crucial para nós. Porque até ali, ainda que iniciativas de colocar pessoas frente a frente existissem em 2004, elas aconteciam em Chipre ou no Maine. Primeiro, por questões legais e barreiras de segurança que impediam que as pessoas realmente se encontrassem na região. Mas sentíamos que muito se perdia nestes encontros de elite fora de contexto: todas as conexões viscerais com a terra na qual as pessoas viviam na verdade, e da qual todos falavam a respeito, e a realidade direta de suas experiências de vida. Sentíamos que era essencial também haver presença judaica nas áreas palestinas da Cisjordânia, quebrando o isolamento palestino que descrevi. Encontrar com os palestinos no local onde viviam, dado que a maior parte deles nunca havia visto um judeu sem uniforme militar ou carregando uma arma. Então, faríamos isto tudo durante a Segunda Intifada – embora ninguém soubesse disso naquele momento – trazendo vários ônibus lotados de judeus de direita, esquerda e centro para a Cisjordânia, e todos de uma vez. Eles ouviriam e falariam com ativistas palestinos, oficiais, sheiks e crianças nas escolas. Dormiriam em lares palestinos, digerindo aquilo que nós estávamos vivenciando e facilitando assim o diálogo dentro do grupo de judeus. Todos achavam que éramos loucos. Mas mesmo naquela primeira viagem havia uma lista de espera. Nossos participantes voltaram a Jerusalém usando expressões como indescritível e mudou a minha vida. Eles tinham ouvido histórias de crianças traumatizadas, pais enlutados e humilhação cotidiana. Eles tinham discordado veementemente dentro do grupo de judeus sobre a moralidade do muro de separação, a falência do processo de paz e quem era responsável por isso, o futuro justo de Jerusalém, refugiados e limites dessa terra. Eles não tinham ignorado a dura realidade à nossa volta ou nenhum dos difíceis desentendimentos entre nós. Mas no fim, quando você cria as condições certas, as flores querem se abrir sozinhas. No fim, quando você remove sinceramente a vergonha e coerção e ataques e desprezo da equação, a curiosidade humana para o encontro com o outro é natural e poderosa.
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Eu imaginei dois inimigos sentados frente a frente e conversando; corações amedrontados e fechados se abrindo. Nós criamos um modelo que comporta judeus e palestinos, direita e esquerda, religiosos e seculares, conversando uns com os outros. E com o apoio do nosso modelo cuidadosamente lapidado, nossos participantes confrontaram-se com novas perspectivas assustadoras e desestabilizadoras. E aconteceu que o céu não desabou, mas a terra se abriu. Eles tinham tanto a dizer uns para os outros quando apoiados para fazê-lo. Eles tinham ido em frente, apesar de toda a tendência a se fechar. Eles tinham ouvido pessoas que teriam evitado em outra situação. E estavam já animados com novas possibilidades e pensamentos mais criativos, inovadores. Eles estavam exaustos, chocados e ao mesmo tempo animados e orgulhosos de ter enfrentado o desafio. Um dos participantes me disse, “acho que acabo de me encontrar com o que todos à minha volta estão bloqueando.” E o nome para a Encounter nasceu. Logo Jerusalém estava vibrando. Todos queriam vir numa viagem, então organizamos mais uma e outra e outra, sem saber que estávamos começando uma organização. (…) Agora somos 1.000 participantes e temos 60 viagens realizadas. A Encounter inclui muitos dos mais influentes líderes da vida judaica; lobistas e filantropistas de pontos de vista rivais que redirecionaram seus fundos e políticas de prioridades e hoje impactam milhares de pessoas por meio de seu apoio, sermões, artigos publicados e mudança nas suas iniciativas empreendedoras. Onde tivemos mais sucesso, as pessoas estão buscando um caminho mais compassivo e eficaz através desse conflito, esse intrincado conflito. E eles estão se encontrando, buscando-se mutuamente com humildade e com uma honestidade que deriva naturalmente da inteligência coletiva sobre questões divergentes que se confrontam. (…) Há um maravilhoso discurso do site TED proferido por uma escritora nigeriana, Chiamamanda Adichie. O discurso se chama “O perigo de uma única história.” Adichie descreve o perigo de referir-se a qualquer grupo de pessoas como se elas fossem uma única coisa. A consequência dessa história única é, diz a autora: ela rouba a dignidade das pessoas. Ela torna impossível o reconhecimento de nossa humanidade igualitária. O conflito israelense-palestino é repleto de únicas histórias que roubam a dignidade das 22
pessoas. Há uma única história dos palestinos como violentos, descompromissados, odiadores de judeus, focados na nossa destruição. E há uma única história de palestinos como vítimas inocentes isentos de qualquer ação ou culpabilidade. Há uma única história de israelenses agressivos, brutos, imperialistas militares brutos, insensíveis a qualquer sofrimento exceto o seu próprio. E há uma única história de israelenses como vítimas heroicas, inabaláveis, moralmente superiores. E há únicas histórias que nós, membros da comunidade judaica americana e da sociedade americana como um todo, impomos uns aos outros: extremistas, antissemitas, limitados, estúpidos, etc. Quando eu tentei, impacientemente e com ódio, arrastar as pessoas para o porão, eles não queriam vir comigo porque não se reconheciam na minha história, a história que eu contava sobre eles mesmos, sobre o outro ou sobre mim. Para transformar as atitudes e ações do meu público, eu tive que passar por uma transformação também. Vencer as minhas próprias histórias únicas e até mesmo minha própria negação sobre a integridade e preocupações daqueles que fazem parte desse conflito em pontas opostas. Eu tive que me dar conta de que a minha história não continha toda a história do conflito. O cerne do nosso trabalho na Encounter é abrir essas únicas histórias, a tentação de caricaturizar ou desconsiderar nossos oponentes políticos, mesmo os inimigos, olhando somente sob uma dimensão, impedindo que nos mostrem sua integridade e humanidade. Ou, usando as palavras simples e profundas do nosso palestrante dessa manhã, Morris Dee, “amar e se importar com aqueles que são diferentes de nós.” (…) Eu imaginei dois inimigos sentados frente a frente e conversando; corações amedrontados e fechados se abrindo. Essa é a resposta para as minhas preces. Essa é a enorme visão e bênção que a Grinnell tornou possível. Espero que esse presente permita que milhares de outros corações amedrontados e fechados se abram e nos ajudem a moldar nosso destino coletivo na direção das nossas maiores esperanças ao invés dos nossos medos. Obrigada.”
Tradição, participação e solidariedade, são as marcas do livro de receitas Cozinha de Pessach - de gereção em geração. Voluntários e aprendizes da OAT - Oficina Abrigada de Trabalho - reuniram, testaram, revisaram e editaram receitas dos pratos que a comunidade judaica brasileira leva à mesa em Pessach. O livro chega assim à terceira edição com 154 receitas, cedidas por 69 pessoas, de diferentes cidades e coletividades judaicas distribuídas pelo Brasil.
Cozinha de
Pessach de geração em geração
A OAT está vendendo pacotes de 10 exemplares a R$540,00 Contato via oat@oat.org.br
Deus está se tornando: consolo em face da tragédia Após a morte de um músico, pai, marido e que era um estudante querido e amigo de muitos no Jewish American University, o rabino Artson descobriu que vários membros da comunidade sentiam-se incapazes de compreender como Deus podia ter deixado essa tragédia acontecer; alguns falaram que se sentiram traídos ou incapazes de rezar. Ele escreveu o seguinte texto para ajudar certos alunos seus a recuperarem sua fé e “entenderem melhor a maneira como o mundo se desvela.” Rabino Bradley Shavit Artson
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u começo com a crença de que percebemos o mundo como uma coleção de coisas – em sua maioria estáticas – objetos isolados que interagem mas permanecem separados. Ser é o núcleo desta ontologia. Creio que a ciência se une à fé para demonstrar que esta percepção é uma distorção. O núcleo da realidade não é ser (que é uma abstração intelectual), mas se tornar, que é a característica fundamental de todos, incluindo Deus. O uni-
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verso é um emaranhado de mudanças sem fim, já que nós e todos ao nosso redor chegamos ao momento presente como o resultado das escolhas que fizemos, as “escolhas” que a criação fez, e a tendência (infundida por Deus) à inovação, à criatividade e à justiça que está sempre nos convidando para a bondade. O pensador da Teologia do Processo, Charles Hartshorne referiu-se a isso não como “ontologia”, mas como “Hiehtologia;” a partir de nome dinâmico de Deus revelado a Moisés, eu estou me tornando no que estou me tornando (Ehié-Asher-Ehié). Eu acredito que Deus, ao escolher criar, criou-nos de verdade. Isso significa que nossa independência não é ilusória ou efêmera. Nós, juntamente com toda a criação, temos realmente poder de ação e as escolhas que fazemos são totalmente desimpedidas, não programadas e imprevistas por Deus. Deus é vulnerável à surpresa e à decepção, assim como nós somos. O universo se desvela de acordo com sua lógica interna; as leis da física entram em ação e Deus não pode/não suspende as mesmas com base em padrões morais. Como diz o rabino Harold Kushner, pedir que o universo o trate melhor porque você é uma pessoa moral, é como esperar que o touro não o ataque porque você é vegetariano. Eu creio que Deus fez um tzimtzum (retraimento) irrevogável, criando a realidade da nossa própria autonomia e poder de ação, juntamente com toda a criação. Acredito que as pessoas interpretam mal a natureza do “poder” divino como sendo coercitivo, como uma onipotência, o que considero um erro filosófico, um desastre religioso e uma fonte de tormento emocional e ético. Pensar em Deus como tendo todo o poder nos deixa sentindo justificadamente traídos e abandonados (“será que eu não era bom o suficiente para que Deus interviesse?”). Isto deixa os teólogos na posição dos amigos de Jó - ignorando nosso fundamental conhecimento ético na tentativa de defender o indefensável. Nós conhecemos o bem e o mal: Deus infunde-nos com essa consciência. E alguém morrer jovem, alguém sofrendo com necessidades especiais, doenças ou pobreza é indefensável, especialmente se Deus for onipotente. Esconder-se atrás de “é um mistério”, ou “nós não podemos compreender”, ou “é tudo para o melhor” é, em minha opinião, intolerável, porque requer que culpemos
a vítima ou neguemos nossa bússola ética. Não acho que temos que abandonar a convicção de um Deus amoroso. Mas eu os convido a que evoluamos para além de um que seja todo-poderoso. Se Deus realmente concedeu à criação a capacidade de fazer escolhas, então Deus não matou o inocente, não atribuiu a deficiência, não impôs a pobreza. Procurar Deus nos efeitos especiais nos leva eternamente à comédia dos erros ou à ficção científica. Deus é encontrado não na suspensão das leis da natureza, mas na intrusão da novidade e da surpresa dentro das leis fixas, na permanente natureza da esperança e no poder transformador do amor (um poder que é persuasivo, não coercitivo). Quando meu amado aluno lutou com o que se tornaria uma doença terminal, eu vi Deus muito ocupado durante toda a sua luta - nos momentos de risos e de canto, na força do relacionamento que nos une a todos como uma comunidade e que manteve meu aluno se sentindo conectado durante seus minutos realmente derradeiros, na determinação de estar lá e de estar presente para a família durante e depois de seu martírio. Eu nunca esperei que Deus fosse garantir um bom resultado ou suspender o que era natural. Eu esperava encontrar Deus na tendência constante e firme na direção das boas escolhas e da responsabilidade. E esse Deus não decepcionou. Um último pensamento: se Deus é o exemplo extremo do processo, da ênfase em se tornar ao invés de ser, então Deus absorve e é afetado por tudo o que acontece, por todas as nossas escolhas, pelas maneiras que a natureza opera. Nossas dores não se perdem - elas permanentemente tornam-se parte do divino. Nossas alegrias e nossas vidas não são esquecidas, elas são eterna e objetivamente reais na mente divina. Dessa forma, posso afirmar que a vida de meu aluno não está encerrada, embora ele já não esteja visível aos nossos olhos. Ele, também, é um processo, e o processo nunca termina. Diante da perda e do luto, eu ofereço a afirmação de que nosso amor e orações e coração nos conectam uns aos outros e à criação – que sentir a beleza que nos rodeia, cheirar seus perfumes, tocar a terra e o céu, se conectar com os outros, trabalhar pela justiça, estes são encontros com todos e o Todo, e eles oferecem o relacionamento e a conexão que é o verdadeiro consolo da vida.
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Grupo de pais Valores de pai para filho
Judaísmo moderno
Liane Holzhacker
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ue educação judaica queremos dar aos nossos filhos? Será que temos ferramentas suficientes? Será que nos sentimos confortáveis para fazer isso sozinhos? Será que temos o conhecimento necessário para dar as respostas aos nossos curiosos? Tenho certeza de que muitos já se fizeram estas perguntas depois da chegada dos filhos. Na medida em que eles vão crescendo, os questionamentos tornam-se mais complexos e quando o assunto é judaísmo, e não matemática e português, parece que se torna mais difícil. Neste momento, é preciso lidar com o nosso próprio judaísmo, as nossas próprias raízes, escolhas e, por que não, o medo do desconhecido... É com o intuito de capacitar os pais com ferramentas práticas e teoria sustentada, que a Comunidade Shalom criou o Grupo dos Pais. Somos pais em busca de inspirações que nos auxiliem no dia a dia da educação judaica de nossos filhos. Estudamos temas como a importância dos rituais e seus porquês, como falar e explicar o que é Deus para as crianças, como ensinar a eles o que é Tzedaká e, é claro, as festas judaicas. Em relação às festas judaicas, a busca é transformar este marco não apenas em um jantar ou feriado escolar, e sim, em atividades lúdicas e marcantes para os pequenos. Nestes encontros temos a oportunidade de trocar experiências, compartilhar momentos marcantes e nos questionar sobre o que queremos para o futuro de nossos filhos. Além destes encontros para os pais, as crianças têm a oportunidade de conviver em várias ocasiões, como no Cabalat Shabat, Shararit, Havdalá, além das celebrações que já existem para a comunidade, como Purim, Rosh Hashaná, Yom Kipur, Sucot, Si26
mchat Torá e o Shabaton, nas quais há atividades voltadas para a faixa etária dessas crianças. Todas são realizadas de uma forma muito especial e divertida. Posso compartilhar que a minha experiência como mãe de dois filhos (Gabriel, 5 anos e Laura, 2 anos) é de que realmente estamos plantando uma semente a cada oportunidade que damos a eles de vivenciar o judaísmo de uma forma lúdica e surpreendente. A resposta vem a cada ida à sinagoga quando falamos: “Crianças vamos para a sinagoga?” E eles respondem “Oba!” e correm para a porta como não fazem para nenhum outro lugar. Ou acordam na sexta-feira e nos lembram: “Hoje é dia de ir na sinagoga, né mamãe?” Ou ainda quando cantam no banho as músicas do Shabat. Investir nos nossos filhos significa aproximar também os avós, tios e primos da comunidade. Desta forma, preservamos os valores que estão por trás de tudo isso e que mantém a nossa corrente viva. Tenho certeza de que o objetivo de construir o senso de comunidade desde cedo tem sido alcançado. À Mariana, Flora e Deia: o nosso muito obrigado!
Fabiana e Daniel Sonder
Há pouco mais de 2 anos nos juntamos a um grupo maravilhoso e diverso de jovens pais da Shalom para buscar aprender um pouco mais de judaísmo através das lentes da relação pais-filhos, que sintetiza bem nosso momento de vida atual. Neste período, sob a inspirada liderança da Rabina Luciana Pajecki Lederman e das educadoras Mariana Gottfried e Flora Zyman, temos tido a oportunidade de nos educar sobre nossa tradição espiritual abordando temas como ética, valores, festas, costumes, sempre com o objetivo de incrementar a vivência judaica com nossos filhos, em casa, e na Shalom. O Grupo dos Pais evoluiu, criando uma agenda dinâmica e rica de atividades organizadas e estruturadas pelo próprio grupo e suas coordenadoras. Para nós, os encontros mensais têm sido uma experiência de rara qualidade, que nos permitiu forjar novas amizades com pessoas que compartilham nossos valores, nos aproximar da Shalom, e nos preparar para entregar aos nossos filhos doses maiores e mais interessantes de judaísmo moderno ‘à la’ Shalom.
O grupo de pais da Comunidade Shalom Mariana Gottfried
Uma das metas da Shalom através de seu projeto espiritual é criar “comunidade”, ou seja, uma unidade em comum, pessoas que se sentem parte do mesmo grupo. É justamente desse termo que deriva a palavra comunidade.
A nossa Shalom é um lugar que reúne muitas famílias jovens, que estão iniciando a construção de seus lares e a criação de seus filhos. Junto com a rabina Luciana, tínhamos o sonho de criar um 27
Uma das metas da Shalom através de seu projeto espiritual é criar “comunidade”, ou seja, uma unidade em comum, pessoas que se sentem parte do mesmo grupo.
espaço para os jovens pais por vários motivos: - acreditávamos que os laços entre as pessoas se criam convivendo e compartilhando vivências. Assim queríamos proporcionar um ponto de encontro entre os casais que estavam no mesmo momento de vida: a formação de uma família; - queríamos fomentar uma rede entre as famílias jovens da nossa comunidade, entre os pais e entre os filhos, para que pudessem sentir o valor de pertencer a um lugar onde se compartilha o desenvolvimento da vida, e desta maneira, poder também ampliar o universo de amizade e relacionamentos; - acreditávamos que tínhamos que formar um lugar onde as pessoas pudessem se cumprimentar com carinho, sabendo que cada um é significativo e importante para o outro, criando uma comunidade de relacionamentos; - como instituição judaica, queríamos ajudá-los a incorporar um olhar judaico dentro dessa formação. Percebíamos que a vontade e o interesse eram muito grandes, mas que havia uma sensação de falta de recursos para poder desenvolver Jewish Parenthood; - acreditávamos fortemente na importância do protagonismo dos pais na criação judaica de seus filhos e entendíamos que o lugar da sinagoga não tinha que ser um lugar “para delegar” essa educação, mas sim o espaço para fornecer as ferramentas judaicas para esse propósito; - queríamos criar uma comunidade onde seus membros, neste caso os jovens casais, estudassem, conhecessem, discutissem seu judaísmo com alto nível, a partir de uma perspectiva adulta, da mesma maneira que discutem sobre os outros assuntos de suas vidas profissionais; 28
- queríamos promover um espaço onde os casais jovens pudessem trocar experiências, dúvidas, angústias, desejos, conquistas e dificuldades em relação à educação judaica dos seus filhos; - queríamos criar um espaço para motivar os membros da nossa comunidade a oferecer o que eles têm de melhor, para desta maneira formar uma instituição que tenha a cara dos seus integrantes. Hoje, após três anos e meio, ver o que almejávamos transformado em realidade, nos enche de emoção, alegria e satisfação. Vale a pena todo o esforço, cada reunião para preparar os encontros, cada e-mail enviado, cada livro lido, cada handout criado. Ver os casais jovens da nossa comunidade, junto aos seus filhos, num feriado judaico ou num Shabat, seja à noite ou de manhã, ou trazendo as sacolas de mishloach manot confeccionadas em cada casa, interagindo entre eles e entre as crianças, organizando uma noite de Sucot sobre o tema educação, nos motiva a continuar pensando no que oferecer para nossa comunidade e para os nossos sócios. Depois de ter vivido esta experiência tão especial, decidimos continuar com o projeto abrindo um novo grupo, para oferecer esta oportunidade a outros casais da nossa comunidade. Este novo grupo será acompanhado também por casais do grupo fundador. Com o grupo inicial, continuamos nosso caminho, como eles mesmos dizem: temos muito a refletir sobre como educar os nossos filhos judaicamente. Definitivamente, na Shalom esse conceito já esta incorporado!
Os encontros do grupo de pais jovens acontecem às terças feiras, das 20h às 22h. Mais informações com: leny@shalom.org.br
Mulheres na Shalom celebram a vida lendo da Torá Elca Rubinstein
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omos o povo do livro, o povo da Torá! Na Comunidade Shalom isso é levado muito a sério. E as mulheres levam essa questão ao pé da letra e consolidam essa relação ao tirar a Torá do Aron hakodesh, abrir os rolos, e ler diretamente dos pergaminhos. Ouvir vozes femininas lendo os textos sagrados não é uma novidade na Comunidade Shalom. O caminho foi aberto pela Morá Rachel e pela Rabina Luciana, e vem sendo trilhado por dezenas de bat-mitzvot que, desembaraçadas, leem a Torá como uma coisa normal. Na sequência, vieram Liliana, Valéria, Julia, e Elzinha, que, numa iniciativa pink, têm lido a Torá no Rosh Chodesh, o inicio do mês lunar. A novidade na Shalom é a tendência, que se confirma cada vez mais entre mulheres mais maduras, de aproximarem-se fisicamente da Torá para lê-la na celebração especial de datas marcantes na vida de cada uma. Nos últimos anos foram sete as mulheres com mais de meio século de vida que aceitaram o desafio de se prepararem para subir ao púlpito e ler, ou melhor, cantar, já que a leitura da Torá deve ser feita com uma melodia própria, a cantilena. Adriana, Ana, Elca, Esther, Lica, Marcelle e Sima fazem seu depoimento ao Hineni contando um pouco do que foi o processo de cada uma, e da transformação que a leitura da Torá provocou em suas vidas. Todas elas estão abertas para conversar mais sobre esse assunto. É só mandar um email para elas compartilhando suas próprias experiências ou marcando um bate papo.
Todos os depoimentos falam de uma emoção ímpar, sentida ao longo do processo e no momento da leitura. Para muitas, essa leitura representou o resgate de um bat-mitzva que não haviam tido. Para algumas, o movimento foi de busca de uma conexão íntima com nossas tradições e sabedoria, e a possibilidade de uma aprendizagem mais profunda e de um diálogo pessoal com as fontes bíblicas, com o reconhecimento da Comunidade. Para outras, a possibilidade de assumir uma posição igualitária ainda tão difícil de ser conquistada e mantida no mundo atual. Para todas, um caminho que se abre e uma experiência a ser repetida, num processo profundo de transformação pessoal. Num momento em que algumas comunidades ultra-ortodoxas israelenses fazem um movimento retrógrado em relação às mulheres, fechando portas que já se encontravam abertas, e impedindo mulheres de se apresentar cantando, é um privilégio fazer parte desta Comunidade Shalom, onde a questão igualitária é tão importante e respeitada, e onde as mulheres lêem da Torá. Do ponto de vista prático, o assunto talvez seja mais fácil do que pode parecer, como atestam os depoimentos das “coroas”. O Beny, diretor musical da Shalom, está com uma nova turma para ensinar os taamim, que são a escrita musical da cantilena, o que facilita bastante o processo das novatas. Fica aberta a porta para quem quiser experimentar, de forma que as mulheres na Shalom continuem ganhando voz, do alto da bimá. 29
Adriana Lila Albertal - Parashá Pinchas Participo da Comunidade Shalom desde 2003, integrada às atividades do Núcleo de Healing. Dois anos atrás, ao virar sexagenária, senti que chegava o momento de fazer uma conexão mais profunda com o fluxo da minha ancestralidade para que, como árvore que sou e busca alimento através da sua raiz, pudesse continuar crescendo. Filha de pais judeus, com um avô materno mohel e um bisavô rabino, fui criada como atéia na época pós-holocausto. Provavelmente, meus pais acreditavam que ser judeu não levava a bons caminhos. Eu não fiz bat-mitzva nem recebi um nome em hebraico. Conectada com minha ancestralidade e inspirada pela memória do meu avô, quis formalizar meu compromisso com a Torá e a Comunidade. O ritual significava para mim um aprofundamento nas práticas espirituais judaicas des-
tinadas à transmissão do fluxo da vida que considero de relevância universal. Intuía também que seria um processo de desenvolvimento em vários níveis. Escolhi os nomes hebraicos de Chaia = Vida e Shiphrah = transgressora destemida a serviço da proteção da vida. Demorei em definir a data pois queria me sentir segura ao ler a Torá em hebraico e em público. Como nunca estava pronta, a Rachel me empurrou para marcar logo a data para o meu Brit-Torá, e aceitei a única disponível em julho: sábado 3/7/2010, Parashá Pinchas. Segundo uma interpretação cabalística da Parashá Pinchás, temos o poder de restaurar nosso corpo através da intenção e da consciência e a leitura dessa Parashá pode ativar nosso poder de auto-cura e renovação. Foi essa minha vivência. Desde o início do estudo até o momento de ler a Torá, senti uma profunda reorganização interior e um fortalecimento da minha identidade judaica. Foi um processo transformador. - adriana@sevenidiomas.com.br
Ana Szutan - Parashá Pinchas Após o falecimento de meu pai, mudei de sinagoga para ficar mais próxima ao judaísmo da Shalom, que me permitia rezar o Kadish. A partir daí, iniciei lentamente um mergulho no estudo e na prática do judaísmo de uma forma prazerosa, intensa e constante. O mesmo judaísmo que tão entusiasticamente era ensinado e discutido com meu pai, e que me fazia muita falta. A consequência natural seria ler na Torá. Estava claro que não seria só um ato de ler, mas um degrau a mais que estaria dando em direção à minha busca judaica. Comecei a participar das rezas matinais. Passei a me alimentar de forma casher, e senti necessidade de usar talit e kipa. Mas vesti-los sem realizar a primeira leitura da Torá não teria sentido! Eu estava pronta para o meu bat. Conversei com 30
o Rabino Adrian, e a Rachel passou a me dar aulas. Já estava quase lá. Um pouco antes da data, a Estherzinha iniciou um questionamento de tfilim com a Rachel. Logo me juntei às conversas. Decidi então usar o tfilim que meu pai havia comprado ao meu filho mais velho, para seu bar-mitzva. Estava me sentindo ainda mais “atada” ao judaísmo e às tradições. Após alguns encontros, na quinta-feira anterior à minha leitura, nós duas colocamos o tfilim pela primeira vez em público. Acho que fomos às primeiras mulheres a colocar tfilim na comunidade! Era Chanuca de 2001. Foi muito emocionante ser participante deste momento especial das mulheres da Shalom. Para a leitura fiz questão de convidar minha família mais próxima – filhos, mãe, tio e primos. Queria que fosse público e não um ato escondido. Tive a oportunidade de ler em outro momento com o mesmo sentimento. Sem dúvida, cada vez que escuto esta Parashá sinto uma nova emoção. szutan@uol.com.br
Elca Rubinstein - Parashá Bo Sempre soube que a cerimônia do meu bat-mitzva, realizada na CIP em 1958, tinha sido meio falsificada: uma fachada para satisfazer as aspirações da geração feminista que se anunciava. Na ocasião, não coloquei talit nem tfilim, e não li da Torá. Só 50 anos mais tarde, inspirada pela Rabina Luciana e por outras mulheres especiais da Comunidade Shalom, dei-me conta de que era possível resgatar o que ficara faltando nesse evento da minha adolescência. Comecei a me preparar com carinho: voltei a estudar hebraico, comecei a participar do grupo de estudos aos sábados de manhã e, amparada e fortalecida pelos companheiros do miniam das terças-feiras, fui sentindo o gosto
de uma energia que era nova na minha vida. Li da Torá oficialmente na celebração do meu Simchat Chochmá – a alegria da sabedoria – no dia do meu sexagésimo quinto aniversário: 8/1/2011. Ritual de passagem poderoso, essa celebração abriu portas que eu sequer desconfiava que existissem. Minha Parashá foi BO, cuja tradução no texto bíblico é ‘vai!’ e no hebraico moderno é ‘vem!’. De qualquer forma combinou com o imperativo do movimento de transformação que se operava dentro de mim ao longo de todo o processo. Repeti a dose na comemoração do meu aniversário neste ano, e já vou começar a me preparar para ler novamente em janeiro de 2013, ou antes disso, se aparecer uma oportunidade. Continuo cada vez mais interessada no estudo da Torá e mais atraída pela magia que emana da leitura desse livro maravilhoso. elcarubi@yahoo.com.br
Esther Dzialowski Amarante - Parashá Cântico dos Cânticos Ler a Torá foi um sonho que emergiu no convívio com essa Comunidade igualitária e participativa. Quando eu me aproximava dos 50 anos, fiz meu bat-mitzva e a li, profundamente sensibilizada, pela primeira vez, numa cerimônia íntima. Tempos depois, aprendi a cantá-la com as cantilenas tradicionais. Sempre muito emocionada e feliz, li algumas vezes trechos da Torá: nos aniversários, no “ofrif” do meu filho, antes do meu casamento com o Zé e em alguns Shabatot. No ano passado, a proximidade dos 60 anos trouxe um novo desejo: viver um ritual espiritual que marcasse essa passagem e que fosse diferente das experiências já vividas. Com a Rabina Luciana, decidimos que eu faria um “sium”, cerimônia que marca a finalização do estudo de uma porção da Torá, o compartilhamento com a Comunidade do que se aprendeu, brachot tradicionais, e uma refeição fes-
tiva. Processar cada etapa foi importante: a escolha do objeto do estudo, um pequeno livro, o “Cântico dos Cânticos”, a avaliação comparativa de várias de suas traduções em discussões quinzenais com a Lu, durante um ano; a preparação da fala de compartilhamento e outras reflexões sobre o envelhecimento espiritualizado. Especiais também foram os processos de pensar e definir detalhes que criariam a atmosfera do evento, a escolha das músicas, a composição da refeição, elementos que trariam símbolos do Cântico. A experiência desse encontro foi uma das emoções mais fortes da minha vida. Ficou em mim uma sensação forte de poder, por ousar e realizar sonhos tão importantes no seio desta querida Comunidade. Sinto-me uma mulher transformada por essas oportunidades que construí e me construíram. Profundamente grata. E, quem sabe, um pouco mais sábia por ter atendido, vezes seguidas, aquela voz interna que me levou até momentos tão enriquecedores. Ah, os chamados da alma... estheramarante@gmail.com
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Lica Tal - Parashá de Sucot “Doss ist nisht far meidel. Isto não é para menina”. Acho que o caminho que me trouxe até a leitura da Torá data de um momento decisivo em minha vida quando pedi aos meus pais para ter meu bat-mitzva. A resposta deles foi essa: isto não é para menina. Eu, que já na época era uma pré-adolescente irrequieta e contestadora, tomei esta negativa como um consentimento para me afastar do judaísmo e de toda forma de religiosidade. Entretanto, parece que aquela mesma Polônia ficara encravada em minha alma. Desde pequena, aprendi a rezar com minha avó e isso compunha parte das bases para que eu chegasse na bimá. Passaram-se mais de quarenta anos para que eu pudesse ter esse rito de passagem. Foi uma jornada e tanto. Apai-
xonei-me e casei-me com um rapaz cuja formação judaica era profunda. Educamos nossos filhos em escolas judaicas e dentro dos ritos tradicionais, e a amizade de meu pai com diversos rabinos de São Paulo fazia com que as tradições e rituais continuassem constantes em minha vida. Cheguei na Shalom através do grupo de Healing e encontrei meu lar espiritual. Foi aqui onde consegui conciliar minhas várias vertentes e foi nesta minha casa que tive a felicidade de conquistar um direito que não sabia ser meu por quase meio século. Minha querida e até mesmo idolatrada mãe deve estar feliz. Consegui chegar até o bat-mitzva exercendo o van-
A primeira vez que li a Torá foi em outubro de 2004, para comemorar os 50 anos do bar-mitzva do Paulo, meu marido. Apesar de eu ter crescido em uma casa bastante tradicional, o bar-mitzva não fez parte da minha educação judaica. E quando a Rachel começou a ensinar a leitura na Torá para um pequeno grupo que já tinha conhecimento de hebraico, achei que esta seria minha oportunidade de iniciar. A leitura era da Parashá Noach. Posso dizer que, embo-
cantilena, não foi fácil. Outras oportunidades apareceram e de lá para cá li em várias ocasiões. A leitura que mais me marcou foi a do Shabat da formatura da Luciana em Nova York, na Sinagoga do Jewish Theological Seminary - JTS, diante de um público de rabinos e professores. O trecho que li, Os Dez Mandamentos da Parashá Itró, é considerado de grande importância. Foi muita emoção. Este ano, no Yurtzait do Paulo, me propus a ler um trecho da Parashá Beshalach. Como se tratava de uma homenagem, aceitei a sugestão da Rachel e li um trecho muito longo – o Shirat Haiam –, que exigiu muito estudo e dedi-
guardismo que ela sempre esperou de mim, porém aliando-o à ancestralidade de nossas tradições. No ano passado, no momento em que lia a Parashá daquele Shabat Chol Hamoed de Sucot, senti-me orgulhosa e feliz. E apesar de não ter mudado minha prática religiosa, sinto que hoje sou um pouco mais completa.
ra eu tivesse lecionado hebraico por mais de 20 anos, aprender a entonação característica da leitura na Torá, a
cação. Agora que retomei, pretendo continuar sempre que possível. - morasima2@hotmail.com
lilianalicatal@gmail.com
Marcelle Hohl - Parashá Ree Quando o Beny Zekhry, diretor musical da Shalom, me convidou para ler uma das Aliot no Shabaton de 2009 - Parashá Ree, custei a acreditar que ele falava sério... Afinal, era um evento grande, com convidados internacionais, e eu nunca havia aprendido os Taamei Hamikra, os sinais que funcionam como uma partitura para o leitor da Torá. Mas aceitei o desafio, pedi ao Beny que gravasse a Aliá que eu leria e, a partir da gravação e do texto em hebraico, estudei incansavelmente durante duas semanas. No dia da minha leitura, o Shacharit Shabat foi realizado ao ar livre, num lindo dia. Foram chamados para a Aliá que eu leria justamente os convidados de honra, o Rabino 32
Sima Pajecki - Shirat Haiam
Ed Feinstein e a Rabina Nina Feinstein, a primeira mulher a ser aceita no seminário rabínico do JTS... Que chutzpa a minha, pensei, quando os vi na bimá... Será que vou conseguir? E consegui, com uma emoção indescritível, ler minha primeira Aliá a contento. Depois disso, participei do excelente curso de leitura de Torá ministrado pelo Beny, e houve muitas outras leituras... Cada vez que leio, penso no enorme privilégio que é poder contar com uma comunidade igualitária como a Shalom, que não somente aceita, como também incentiva a leitura da Torá por mulheres. E sempre penso em quantas mulheres, em comunidades em Israel e no resto do mundo, são privadas desta experiência tão maravilhosa... Adoro pertencer a Comunidade Shalom, onde eu tenho lugar para dizer, com orgulho e em voz alta: “Baruch ata Adonai,
she assani ishá (Bendito seja Deus, que me fez mulher)”.
“Entre Elos Perdidos” resenha do livro de David Leo Levisky Michael Pinkuss
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avid Levisky é conhecido dos leitores de nossa Hineni por matéria que escreveu versando sobre a vila de Carção, em Portugal, cujos habitantes de origem marrana empreendem um reencontro com suas origens judaicas. David encantou-se com esse retorno, ocasião em que, sendo médico psiquiatra, dedicou-se a um estudo intenso de Maimônides, nascido em Córdoba no século XII. Trata-se de um livro de ficção que amarra diversas realidades. O interesse do autor (em sua formação freudiana) gira em torno da saga e a atualidade do pensamento de Maimônides como médico, filósofo, comentarista talmúdico e pensador religioso do judaísmo. Associado a esse tema surgem: a função da religião como moderadora das paixões humanas na necessidade de equilíbrio entre o fascínio do novo e o convívio social ordeiro; a limitação do racional como explicador da realidade que nos cerca; o ideal do convívio entre pessoas de origens étnicas distintas cultivando clima respeitador do pluralismo; e por fim, a importância do conhecimento da própria identidade através do conhecimento das suas origens, focalizando também a saga dos Marranos na Península Ibérica. Tudo isso para manter o interesse do leitor médio, amarrado por uma história de amor. Para quem se interessa pelos tópicos é uma leitura cativante e reveladora, um pouco extensa. O autor cita numerosa bibliografia, entre elas nossa revista Hineni quando tratou sobre a presença dos judeus em Portugal. Editora Imago, São Paulo, 2011, 377pgs.
marcelle@hohl.com.br
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A importância do estudo do
Mussar Monica Fuchs
O movimento Mussar “Mussar” significa “correção” ou “instrução” (no sentido de disciplina), denotando não somente medidas corretivas, mas, sobretudo os objetivos pedagógicos que aquelas tentam atingir. Mais tarde, entretanto, “Mussar” passou a significar ética ou moral. Em termos de literatura, “Mussar” refere-se aos escritos bíblicos e aos tratados éticos citados na coluna ao lado.
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movimento Mussar procurou estudar a constituição da alma humana e sugerir uma série de técnicas que ajudassem a minimizar a separação tão frequente entre nossos ideais e nossas ações. Israel Salanter acreditava que a busca da perfeição ética – cujo valor supremo é o serviço e a responsabilidade perante os outros – é um processo que encontra resistências por parte de nossa personalidade. O objetivo da prática do Mussar é o de libertar a luz que existe na alma humana. A raiz de todas as ações e pensamentos pode ser encontrada além do alcance da consciência, no mais íntimo da alma. O método inclui a leitura de textos específicos, um diário, a auto-reflexão, a dinâmica de grupo, a meditação, exercícios e a entoação de cantos. A prática do
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Mussar também demanda que nossas ações sejam ancoradas nos preceitos da Torá e nas mitzvot. Já na época de Salenter, a comunidade ortodoxa adotou o Mussar como uma forma de superação dos obstáculos interiores que impediam as pessoas de viverem com integridade os mandamentos judaicos. Nesse sentido, apesar de ter uma vocação universal, pois fala à natureza humana como um todo, o Mussar é considerado por muitos como inseparável das crenças e práticas religiosas. O Mussar não foi divulgado em ampla escala, em parte porque os discípulos de R. Salanter privilegiaram as yeshivot e não as outras comunidades. Também porque muitos rabinos e líderes hassídicos se opuseram à sua prática, pois afirmavam que qualquer coisa que não fosse o estudo tradicional da Torá seria uma distração inútil. Contudo, desde o princípio de nosso milênio, um interesse renovado pelo estudo do Mussar tem se desenvolvido, estimulado em grande parte pelo lançamento do livro do autor canadense Alan Morinis – “Climbing Jacob’s Ladder” – onde ele conta a respeito de suas próprias descobertas – e de suas viagens e palestras sobre o tema. Em 2004, com a criação do Mussar Institute, esse tipo de abordagem também começou a atrair judeus que haviam estado envolvidos com práticas orientais como a meditação, a ioga, e que não haviam encontrado uma disciplina de desenvolvimento pessoal satisfatória no âmbito judaico. A Revista Hineni contactou Alan que, gentilmente, concedeu uma breve entrevista.
Contexto histórico da criação do movimento Mussar Alguns estudiosos explicam o “milagre” da continuidade do povo judeu como sendo consequência da força que as leis exerceram no desenvolvimento da religião, da cultura, e da filosofia judaicas. A Torá nos traz um legado cuja concepção de mundo demonstra que o cumprimento da lei tem um valor central. Israel é concebido como um povo da aliança, constituído pela sua adesão ao mandamento divino. A vida judaica que tomou forma após a destruição do templo em Jerusalém e a perda da identidade política, é o que chamamos de judaísmo rabínico que é caracterizado pelo estudo intenso e pela observância da lei judaica (halachá). A importância dada à lei, apesar de ser um fator crucial para a continuidade do judaísmo, assim como um de seus méritos, também é responsável por alguns de seus erros recorrentes: o deslocamento da ênfase colocada nos objetivos da lei para os meios eficazes de atingi-los. Em certos casos, o estudo e o cumprimento das leis (especialmente a lei ritual) evolui em detrimento da necessidade de aperfeiçoamento do indivíduo e da posição central dos valores éticos. Essa tendência se fez presente em todas as épocas da história do povo judeu: nos profetas bíblicos, injuriados com as crenças do povo de que a mera execução de sacrifícios sem o devido comportamento ético podia promover a compaixão de Deus; no dito talmúdico de que em situações interpessoais devemos ir além do que a lei propõe; nos escritos do moralista do século onze, Bahya ibn Pekuda, cujo tratado “The Duties of the Heart” (traduzido para o português - Os Deveres do Coração) propôs-se a corrigir as impressões errôneas de que o judaísmo não exige nada além do que o cumprimento do ritual; nas palavras do moralista do século dezoito Moshe Hayyim Luzzatto, cujo livro “Paths of the Upright” (traduzido para o português - O Caminho dos Justos) veio para compensar o mesmo tipo de concepções equivocadas de sua época. Desde cedo, o empenho em se restaurar o equilíbrio entre a prática da ética e do ritual era reservado às considerações de poucos indivíduos que trabalhavam isoladamente. Na metade do século dezenove, inspirado pelos ensinamentos espirituais de seus antecessores, Rabino Israel Salanter (1810-1883) fundou o movimento Mussar, que teve origem na Lituânia. Fonte: A Responsible Life, The Spiritual Path of Mussar Ira Stone, Aviv Press, New York
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Uma das características fundamentais do judaísmo é a vida comunitária,
Quando falo de Deus, de santidade, da alma, da Torá, não estou dentro
mas atualmente estamos muito dispersos.
do campo da psicologia. Essa tende a dirigir o olhar para o passado,
Precisamos encontrar métodos que aproximem as pessoas.
o Mussar orienta-nos na direção do presente e do futuro.
Hineni: Qual é a relevância do estudo do Mussar nos dias de hoje? Alan: Sabemos que o Mussar tem 1.100 anos de idade e que a essência humana não mudou durante esse tempo. Ele é um manancial de sabedoria com técnicas de bem viver que servem para todas as gerações. No passado, a tradição assegurava a continuidade do conhecimento. Havia conecções inquebrantáveis. Por exemplo, meu próprio professor de Mussar Rabino Yechiel Yitzchok Perr, aprendeu Mussar com o sogro, Rabino Yehuda Leib Nekritz, cujo sogro (Rabino Avrahom Yoffen) foi o rabino que ordenou o Rabino Perr. O sogro do Rabino Yoffen era o Rabino Yosef Yozel Hurwitz, o Alter (“Elder”) da escola de Mussar de Novarodok. O Rabino Hurwitz fundou a principal corrente de Mussar e foi estudante de Rabino Yisroel Salanter e de seu aluno o Alter de Kelm. No entanto, na época de Israel Salanter, ocorreu uma grande fragmentação na vida judaica. O mundo moderno passou a ser um grande atrativo e, como consequência, as paredes do gueto foram se dissolvendo. Salanter percebeu o que estava por vir e se perguntou: Do que é que essa geração necessita que seja capaz de garantir o fortalecimento do coração e a preservação de sua integridade interior? Como se assegurar de que as pessoas não persigam o que não é o seu autêntico interesse espiritual? É muito complicado criar uma barreira física para evitar os perigos do mundo. Mas há um lugar em cada um de nós onde podemos nos manter puros, e isso depende da qualidade de nosso coração e de nossa afinidade com os valores mais elevados da Torá. Salanter foi capaz de perceber a necessidade do momento e transformou o estudo do Mussar em uma atividade espiritual coletiva. Para tentar impedir a corrosão dos valores éticos e frente a ameaça da perda da identidade judaica, ele fundou o movimento do Mussar. Hineni: Você tem viajado muito para fazer palestras
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sobre Mussar em várias comunidades do Canadá e dos Estados Unidos. Poderia falar algo sobre sua experiência no contato com a população judaica dessas localidades? Alan: Em geral, tenho notado que as instituições religiosas atuais não se ocupam com a vida interior do indivíduo. Isso coloca um grande problema em relação ao judaísmo. A tradição fala muito a respeito do amor ao próximo, da generosidade, da compaixão e confiança. Mas esses valores tornaram-se alheios a nossa geração e o enfoque maior recaiu sobre o cumprimento das leis e dos rituais. Hoje, qualquer pessoa que deseja ter uma vida interior mais rica acaba se voltando para a psicologia, a auto-ajuda ou mesmo para religiões diferentes. A maioria de nós que, de uma forma ou de outra, encontrou um caminho espiritual sente-se órfão dentro do contexto do judaísmo. Não possuímos uma estrutura semelhante ao passado onde os conhecimentos eram transmitidos sistematicamente de pais para filhos ou por rabinos e líderes comunitários. Toda essa dimensão ficou inacessível em nossos tempos. Nós acabamos tendo que procurar sozinhos as respostas para as nossas próprias perguntas. Hineni: A seu ver, a que se deve essa falta de perspectiva? Alan: Acredito que seja consequência da combinação de vários fatores, como o holocausto, o racionalismo da sociedade contemporânea, a acumulação constante de riquezas... Uma das características fundamentais do judaísmo é a vida comunitária, mas atualmente estamos muito dispersos. Precisamos encontrar métodos que aproximem as pessoas. Eu estudei Mussar com o rabino Perr que estudou com o seu sogro e assim por diante. Antes, quando as famílias se reuniam em volta da mesa do Shabat, ou quando se relacionavam informalmente, contavam histórias ou discutiam temas relevantes ligados à tradição e isso era passa-
do de geração em geração. Hineni: Existe alguma relação entre Mussar e as terapias modernas? Alan: É importante compreender que Mussar não é um tipo de terapia. Existem pontos de convergência, mas os dois não são a mesma disciplina, nem possuem os mesmos objetivos ou metodologia. Quando falo de Deus, de santidade, da alma, da Torá, não estou dentro do campo da psicologia. Essa tende a dirigir o olhar para o passado, o Mussar orienta-nos na direção do presente e do futuro. Ele não é apropriado para qualquer pessoa ou situação de vida. Alguns problemas deveriam ser apenas objeto de estudo da psicologia. Hineni: O programa do Mussar envolve o estudo de certos traços de caráter - como gratidão, honra, entusiasmo, e assim por diante. Deveríamos iniciar a prática concentrando a atenção em algum ponto em particular? Alan: A vida interior é una. Quando começamos a trabalhar uma determinada midá (traço de caráter em hebraico) outras conexões aparecem. Há uma tradição conhecida que sugere que comecemos pelo traço da humildade. Uma das ilusões comuns é de que o ser total é constituído pelo ego. Esse pensamento leva a todos os tipos de distorções. Podemos estar dormindo, sedados ou em estado de coma, e continuamos a existir. O mesmo dá-se com a experiência mística. Porém muitas pessoas vivem como se o ego fosse a totalidade do ser. Essa falsa concepção é a primeira que deve ser colocada em questão. Em seguida, trabalhamos com outras midot e, mais para frente, com aquelas que têm uma relação mais direta com Deus. Hineni: Por que precisamos de um programa? Não é suficiente simplesmente cumprirmos uma mitzvá? Alan: Há pelo menos duas situações possíveis. Uma pes-
soa que cumpre as mitzvot como se elas fossem uma série de comportamentos externos pode estar numa situação equivocada. Por exemplo, ela pode dar dinheiro para quem necessita, mas se ela o fizer com raiva ou ressentimento, o resultado pode ser negativo tanto para ela quanto para a outra pessoa. Por outro lado, alguém que só faz as coisas de acordo com o que está sentindo no momento também encontra-se numa posição problemática, pois pode não estar agindo de acordo com seus interesses mais nobres. Levar uma vida guiada apenas pela satisfação de nossos desejos não é uma receita para o crescimento. Por isso, precisamos da formalidade de um “programa.” Ele é o melhor meio de lidarmos com ambas tendências. A pessoa coloca um objetivo para si mesma e ainda que não sinta desejo de cumpri-lo, acaba sempre aprendendo alguma coisa. Por exemplo, pelo que eu saiba, ninguém gosta de ir visitar os doentes no hospital ou de confortar a família de um ente falecido. Mas o judaísmo diz que isso é uma mitzvá. A estrutura externa ajuda às pessoas a executarem certas ações difíceis para as quais, na maioria dos casos, elas não estão preparadas ou não escolheriam naturalmente. Quando se vive com uma intenção definida, as lições tornam-se mais claras. Além disso, como se sabe, antigamente vivíamos em comunidade, mas hoje estamos muito dispersos. Costumo sempre dizer que praticar isoladamente é bom, mas com outras pessoas é melhor ainda. Não é fácil manter um compromisso a sós mas, quando estamos em grupo, a motivação é maior e temos mais chances de sermos persistentes. Informações sobre o Grupo de Mussar da Shalom: mussar@shalom.org.br
Alan Morinis divulga a prática do Mussar nos Estados Unidos e Canadá. Além desses dois países, seus cursos têm beneficiado estudantes de Israel, Inglaterra, Brasil, Holanda, Bélgica e Japão.
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Impressões e lembranças de um encontro inesquecível Clarice Gorenstein
C
hovia, fazia frio e, apesar de ser apenas três da tarde, já estava escurecendo. Chegamos (Mariana Gottfried, Rachel Reichhardt e eu) a tempo de fazer a inscrição e nos acomodar antes do início do Shabat, às 15h45! A Universidade de Warwick, em Coventry, Inglaterra, vazia devido às festividades de Natal, estava toda reservada para o evento. Ficamos nos prédios de alojamento estudantil – quarto limpo e novo, com banheiro, armário e escrivaninha. Simples e suficiente. Pensei que depois do jantar e até a abertura oficial do evento (domingo pela manhã) só descansaríamos. As perspectivas eram de total tédio, considerando o clima impróprio para caminhadas e a falta de opções para sair do campus distante da cidade. Que engano! A partir do Cabalat Shabat – para o qual se
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podia escolher entre serviço Reformista, Ortodoxo e Massorti –, até a 5ª-feira da semana seguinte, começou o mais diversificado cardápio de opções de estudo, discussões, palestras, cinema, teatro, música, dos mais variados temas e orientações. Assim é o Limmud, um evento quase que inteiramente gerido por voluntários que se iniciou há 30 anos na Inglaterra. Dedicada à aprendizagem judaica, a conferência, realizada na Universidade de Warwick ao longo de cinco dias em dezembro, é o principal evento do Limmud. Além desse encontro, são organizados outros pequenos eventos (com duração de um dia a dois dias) nas comunidades regionais em várias cidades do Reino Unido e em cerca de sessenta comunidades em diversos países nos cinco continentes. Por incrível que pareça, o maior problema que se tem no Limmud é decidir o que assistir, diante da impressionante diversidade de assuntos. Particularmente, me senti em uma imensa loja de departamentos de muitos andares e com todo tipo de ofertas (as mulheres me entenderão melhor)! Os judeus já são indecisos e então se veem diante de 20 opções ao mesmo tempo, é um problemão! Pense em um assunto que te interessa. Política? Filosofia? Educação? Religião? Talmud? Literatura? Arte? Tudo estava lá para abastecer de conhecimento as cerca de 2500 pessoas presentes ao Limmud, mais de 350 apresentando alguma das atividades. A programação se iniciava às 8h e terminava de madrugada. Para fazer minhas escolhas, levei em consideração as indicações de um amigo que costuma ir ao Limmud e minha determinação de diversificar os temas. Ver Amichai Lau-Lavie fazendo uma representação teatral de trechos da Torá, por exemplo, foi uma experiência surpreendente e envolvente. Ouvir as ideias de ortodoxos modernos, como Samuel Lebens, de múltipla formação (educador, filósofo, comentador político e dramaturgo), ou assistir a aulas vibrantes de Clive Lawton, um dos fundadores do Limmud (o homem que, por mais frio que esteja, sempre estará usando sandálias!) são chances únicas. Pessoalmente, nunca havia participado de um evento com tantas opções diferentes em um espaço de tempo tão curto. É preciso fôlego para aproveitar a programação. Nós da Shalom já contamos com oportunidades de aprendizado valiosas. Tivemos palestrantes de alta qualificação em
Shabaton, no Symposium 2011, nos tikum de shavuot e em tantas outras ocasiões. A diferença é que no Limmud os temas e as pessoas se sucedem em cinco dias praticamente ininterruptos. Estudar de manhã à noite é uma tarefa que exige determinação e empenho. Não foi à toa que Mariana, Rachel e eu vibramos quando nos impusemos um intervalo e fomos passear... no supermercado do campus. Mas voltando ao Limmud, é preciso dizer que o público, também diversificado, já era em si um evento. Composto por pessoas de diferentes orientações, interesses e idades, incluía de famílias com crianças (parte das atividades era voltada a esse público), passando por jovens (aqueles que ficavam até de madrugada!) e chegando aos mais idosos. O que todos tinham em comum? O mesmo entusiasmo ao participar das atividades. Foi alentador ver meninos de uns 13-14 anos formulando perguntas profundas a conceituados professores ou rabinos. Saímos de lá com a certeza de que o Limmud – estudo em hebraico – cumpriu sua missão. Ofereceu-nos oportunidades de aprendizagem, reflexão e enriquecimento pessoal. Reforçou nosso desejo de estimular, cada vez mais, o estudo como experiência profundamente espiritual em nossa comunidade. Para aguçar o paladar, aí vão alguns exemplos das atividades das quais participei.
Palestras individuais Why Are Our Children Alienated From Judaism? (Por que nossas crianças estão afastadas do judaísmo) Elliott Malamet – professor de educação judaica na Universidade de Toronto. Testing the Rhetoric of the Israeli Palestinian Conflict (Testando a retórica do conflito palestino israelense) – Sebastian Steinfeld – mestre em física e matemática. Fundamenta suas palestras no método científico. Religious Belief and Make-Believe (Crença religiosa e Faz de Conta) – Samuel Lebens, educador ortodoxo moderno, filósofo, comentador político e dramaturgo. Cursos (de três a quatro aulas) Scandals of the Talmud: the Stories They Wouldn’t Teach You in Cheder (Escândalos do Talmud: as histórias que não ensinariam no cheder) – estudo em chavruta coordenado
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por Yaffa Epstein, professora de Talmud em Jerusalém. The Luckiest People in the World – a Run Through Jewish History (O povo com mais sorte do mundo – uma visão da história judaica) – curso ministrado por Clive Lawton, educador, escritor e palestrante carismático. Mesas redondas J-DOV Talks: Jewish Dreams, Observations, and Visions (Conversas sobre sonhos, observações e visões judaicas) – sessão em três partes em que nove palestrantes apresentam “a conversa da sua vida”. Shamor V’Zachor – painel de debate sobre o impacto que “recordar” e “guardar” o Shabat tem sobre a identidade judaica pessoal. Engagement and Disengagement – the Future of Religion in the Land of Israel (Engajamento e desengajamento – o futuro da religião em Israel) – debate sobre o lugar da religião na vida dos israelenses nos dias de hoje. Performances Is There Really Any Such Thing as a Jew? (Existe realmente algo como um judeu) – improvisação do psicólogo Danny Shine. Bible: Interrupted (Bíblia: Interrompida) e Undressing the Torah (Despindo a Torá) – ambas coordenadas por Ami-
“Não tenho o direito de ficar calado”
chai Lau-Lavie, criador do Storahtelling, uma fusão da arte de contar histórias, Torá e representação. Cinema Carrying the Light (Carregando a luz) – documentário que acompanha a caminhada simbólica e espiritual de mais de 300 quilômetros do rabino Jonathan Wittenberg e seu cão, Mitzpah, carregando a luz do santuário – o ner tamid – de Frankfurt, onde seu avô foi rabino, até sua comunidade, em Londres. Música Girls in Trouble Concert – músicas compostas e interpretadas por Alicia Jo Rabins com letras baseadas em histórias de mulheres da Torá. Kosher Gospel Music Live! – músicas judaicas litúrgicas entoadas em ritmo de música gospel norte-americana. O grupo, criado por Joshua Nelson, um judeu negro americano, faz apresentações alegres e vibrantes. Verdadeiramente impressionante! Mariana Gottfried e Clarice Gorenstein agradecem o apoio do Fundo Paulo Pajecki, que tem o objetivo de patrocinar iniciativas ligadas à educação da Comunidade Shalom.
Nova York para mulheres!!! 3 a 10 de junho de 2012 Uma nova Viagem da Comunidade Shalom Tour Leader: Rabina Luciana Pajecki Lederman Informações: pinkosher@shalom.org.br ou sandurazzo@uol.com.br
Um workshop em homenagem ao rabino Marshall Meyer
O fundador do Seminário Rabínico Latino americano
que a resposta veio do fundo de minha alma: - Eu
de Buenos Aires, o rabino norte americano Marshall
quero ser como ele!”
T. Meyer, z”l, foi homenageado na cidade de NY, no
O programa continuou com os agradecimentos do ra-
dia 5 de fevereiro de 2012. O evento foi uma parceria
bino Borodowsky e a apresentação de seu amigo e
da sinagoga B’nai Jeshurun e do Centro de Estudos
colega, Daniel Fainstein, Reitor e Professor de Edu-
Skirball, cujo diretor executivo é o rabino argentino Al-
cação e Estudos Judaicos da Universidade Hebraica
fredo F. Borodowski, PhD. Ao dar início aos trabalhos,
do México. Dr. Fainstein prosseguiu com um vídeo
o público que constava de aproximadamente oitenta
curto sobre cenas da vida do rabino Marshall Meyer
pessoas testemunhou uma declaração contundente
e seguiu com explicações detalhadas sobre sua vida
feita pelo rabino: “Este é um dia especial para muitos
e personalidade, enfatizando sua atuação como de-
de nós. Viemos aqui estudar juntos, como é tradicional
fensor dos direitos humanos durante a triste ditadura
no Skirball, mas quando se trata de Marshall, é mais
argentina, mesmo correndo risco de prisão ou algo
do que um estudo. É um tempo em que refletimos
pior. Para melhor ilustrar a apresentação, foram dis-
sobre alguém que mudou o mundo. E deixe que eu
tribuídas apostilas com cópias de uma série de cartas
lhes conte como ele mudou o meu mundo. Me lembro
escritas por Marshall em diferentes estágios de sua
muito bem. Foi durante uma noite de sexta feira, na
vida intelectual e profissional. Dentre elas, reproduzi-
Sinagoga Beth El, onde eu celebrei meu bar-mitzva
mos uma carta que foi escrita para o filósofo Abraham
com Marshall. Havia quinhentas pessoas e estávamos
Joshua Heschel, com quem Marshall desenvolveu uma
todos rezando o Lecha Dodi quando alguém ao meu
intensa relação de amizade e por quem manteve uma
lado me perguntou:
admiração profunda.
- O que você quer ser quando crescer? Lembro-me 41
Nova Iorque, 05 de Janeiro de 1992. Querido Dr. Heschel, Já faz 20 anos que o senhor faleceu. Eu escuto sua voz todos os dias. Eu ensino suas teorias todos os dias. Eu cito o senhor todos os dias. De todas as vozes que invadem meu ser, a sua é aquela que mais constantemente me traz a convicção da seriedade do viver, da beleza do judaísmo, da importância de manter viva a nossa tradição. Não houve um ano sequer desde 1959, quando cheguei a Buenos Aires, sem que eu ensinasse algum texto seu. Certamente, sou culpado de ler em sua mensagem, em suas palavras, em sua teologia, demasiadas ideias com as quais o senhor não concordaria. Posso apenas rezar para que alguns de meus comentários e interpretações daquelas ideias centrais que inspiram seu ensinamento tenham sido corretos ou que, pelo menos, pudessem ser bem vistos pelo senhor. Durante um quarto de século em Buenos Aires, ocupei-me com a construção de três instituições básicas que estão integral e organicamente ligadas. Não faz tanto tempo, como o senhor deve lembrar, que percebi que sem rabinos argentinos ou sul-americanos para ensinar Torá pelo continente afora, haveria pouca, se é que qualquer, possibilidade do judaísmo resistir às ondas de assimilação que dominavam então as comunidades judaicas. Tornou-se evidente também que estes jovens rabinos deveriam ter formação acadêmica para que pudessem estabelecer um diálogo com a nova geração de judeus, que deviam ser encontrados em áreas de seus respectivos interesses, com sua linguagem, e abordando seus importantes problemas existenciais. Porém, que jovem sul-americano iria considerar abraçar o rabinato quando a sinagoga era a instituição menos importante na vida judaica naquela parte do mundo? Assim, como o senhor se recorda, após fundar o Seminário Rabínico Latinoamericano em 1962, há trinta anos, em 1963 eu fundei a Comunidade Bet El. Era necessário provar que os judeus argentinos poderiam ser levados a considerar seriamente a sinagoga, que a sinagoga não era, pelo próprio fato, uma relíquia do passado, que ela não precisa ser enfadonha e irrelevante ou um museu de ritos antigos e
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costumes reservados apenas a algumas pessoas idosas e a uma breve visita de jovens garotos e garotas para celebrar o rito de passagem da puberdade. Se o Seminário era a academia sem a qual o judaísmo não conseguiria ter a liderança espiritual tão necessária para sobreviver, Bet El viria a ser o laboratório de experimentação necessária para provar a importância de uma comunidade cujo centro é a sinagoga, onde se poderia celebrar, enlutar, rezar e construir juntos. De onde nasceu esta consciência se não de seus ensinamentos? Foi o senhor, acima de tudo, que me ensinou sobre a santificação do tempo. O senhor me ensinou (e outras gerações desde então) sobre a preciosidade do momento, como a eternidade expressa o dia e como um dia pode expressar a eternidade. Foi assim que eu fui ao Acampamento Ramah, no Lago Como em Poconos da Pensilvânia em 1951. Lá aprendi que algo do amanhã poderia ser garantido ou resgatado se a juventude de hoje pudesse se interessar pelas mais nobres ideias e práticas do judaísmo. Portanto, a coisa prioritária que deveria ser feita em 1959 ao chegar na Argentina seria reunir alguns jovens para agirem como núcleos ao redor dos quais poderíamos construir o Seminário e a sinagoga. Esta foi a terceira instituição: o Acampamento Ramah. Até nossa partida da América do Sul no final de 1984, praticamente todo rabino que então exercia a profissão no continente despertou para sua vocação (e rezo para que esse seja o motivo porque são rabinos atualmente) nos acampamentos Ramah da América do Sul. Com exceção de algumas dezenas de livros em espanhol sobre judaísmo, havia pouco ou nada a oferecer para um jovem (ou velho) estudante, professor ou não acadêmico que fosse curioso ou que estivesse buscando a relevância existencial da tradição judaica. Ficou claro que se deveria criar um projeto sério de tradução e publicação. Havia que se construir uma biblioteca. Uma liturgia precisava ser desenvolvida. Tinha-se que escolher uma mensagem a partir das fontes que fizesse sentido na América Latina. Havia que se encontrar financiamento. Uma comunidade tinha que ser construída e cultivada. As pessoas tinham que ser casadas, enterradas e aconselhadas de modo significativo que não ofendesse anseios espirituais inerentes, tradições glorificadas durante milênios, ou as necessidades estéticas
dos cidadãos altamente sofisticados da metade do século XX em uma grande metrópole. Linhas de comunicação entre Buenos Aires e o resto do continente deveriam ser estabelecidas para que os jovens diplomados pudessem encontrar posições de trabalho. A liturgia clássica para o ano todo deveria ser traduzida, adaptada, publicada e vendida para que pudesse haver um livro de orações uniforme para a reza congregacional participativa. Dever-se-ia publicar um periódico para que os judeus sul-americanos pudessem ter contato com os problemas teológicos vividos por outros judeus ávidos em outras partes do mundo. A existência do Estado de Israel deveria se tornar parte essencial da vida da sinagoga, pois era a única força mais unificadora, embora de fato secular, que conectava aquele povo judeu latinoamericano. Não havia grandes equipes para conseguir isto. Dependia de mim, Naomi e alguns poucos amigos muito confiáveis. Embora ficasse tentado a escrever ocasionalmente, ou mesmo mais do que ocasionalmente, acredito que foi a escolha correta disponibilizar os textos dos grandes sábios judeus. Sentia que todos os seus textos deveriam estar disponíveis em espanhol. Mais especificamente, sentia que o senhor me havia imbuído com força, fé, motivação e Deus havia me dado a força para empreender meu trabalho. Entretanto, agora tenho 61 anos e removeram um câncer maligno de minha bexiga. Gostaria de deixar algo de mim em uma página escrita antes que eu parta deste mundo. Trabalho sem qualquer ilusão de que o que eu vá escrever irá gozar da aprovação irrestrita de Abraham Joshua Heschel. De mais a mais, tenho certeza que o senhor discordaria veementemente de muito daquilo que fiz, disse, digo e escreverei. Só posso esperar que o senhor me compreenda e me perdoe quando distorço suas ideias. Sei que o senhor discordou de mim sobre muitas coisas durante sua vida, mas sempre entendeu e perdoou. Espero que isto ainda seja verdade atualmente. Talvez o problema mais grave seja que, neste ponto, muitas vezes já não sei quando o estou citando e quando não. Portanto, nem sempre posso indicar quais são suas palavras e quais são minhas. O senhor não é responsável por esta irresponsabilidade da minha parte, nem tampouco esta simbiose total é culpa sua. O senhor certamente não
é responsável pelas vastas áreas de minha ignorância, mas é de fato responsável pela maior parte da parca sabedoria que tenho. Obviamente, isto não quer sugerir, nem por um momento, que eu não tenha aprendido coisa sequer dos outros mestres que tive. Fui extraordinariamente abençoado com uma abundância de grandes mentes e personalidades irresistíveis em minha vida. Todos eles tiveram um impacto enorme em meu pensamento e em minhas ações. Novamente, minhas falhas e a estupidez são minhas, apenas minhas. Será que isto explica o motivo pelo qual acho que tenho que escrever agora? Por que sinto que devo tentar escrever algo que preste testemunho a certos seres humanos? Por favor, me compreenda. Por favor, me perdoe. Abençoo sua memória hoje e sempre e lhe agradeço todos os dias da minha vida. Estou convencido que as pessoas estarão estudando suas palavras por séculos adiante. Seus ensinamentos, seu amor e sua compreensão significam mais para mim a cada dia. Só posso esperar que o senhor esteja razoavelmente contente com o que eu fiz sob sua inspiração. Certamente, meu amor pelo senhor só cresceu com o passar dos anos. Como sempre, com amor de seu devotado aluno, Marshall
O rabino Abraham Joshua Heschel foi um dos principais teólogos e filósofo judeu do século XX. Heschel nasceu na Polonia em 1907 e chegou a Nova York em março de 1940. Em 1946, ele assumiu a posição de professor no Jewish Theological Seminary of America (JTS), onde atuou como professor de ética judaica e misticismo até sua morte, em 1972. Suas obras teológicas sustentam que a experiência religiosa é um impulso humano fundamental, não apenas privilégio do judaísmo, e que nenhuma comunidade religiosa pode reivindicar o monopólio da verdade religiosa. Heschel via os ensinamentos dos profetas hebreus como um chamado para a ação social. Nos Estados Unidos trabalhou pelos direitos civis dos negros e contra a Guerra do Vietnã.
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Tamara Steiman, Coordenadora de Juventude da Comunidade Shalom, fala sobre sua trajetória e vivência em projetos sociais Lica Tal e Clarice Gorenstein
De sorriso fácil, carioca, Tamara contagia com sua espontaneidade, empolgação e envolvimento profissional. Líder natural, agita a juventude de nossa comunidade. Nesta entrevista que Tamara concedeu ao Hineni, podemos conhecer melhor seu caminho e sua trajetória dentro dos movimentos juvenis judaicos e sua atuação em projetos sociais.
Hineni: Tamara, como foi o início de seu trabalho com viés social? Sou cria do movimento juvenil Hashomer Hatzair. A ideia do Shomer era construir um Estado de Israel justo, socialista. Na época não se usava o termo Tikun Olam, mas se falava em construir um mundo melhor, que significava justiça social, principalmente para gente do Shomer. Durante o Shnat, em 2000, eu e minha kvutzá tivemos uma experiência muito marcante após o Machon. Junto a outros madrichim de outras tnuot, preparamos uma colô-
Era um projeto em que quase ninguém botava fé, a não ser o nosso professor do Machon, Jayme Fucs. Era a primeira vez que tínhamos contato com uma questão social entre judeus dentro da sociedade israelense. Em duas semanas intensas, sentimos a grande diferença que fizemos na vida daquelas crianças e elas nas nossas. Nos demos conta que a hadrachá, a educação não formal, era uma ferramenta que poderia ser muito bem aproveitada além da própria tnuá. O projeto foi um sucesso, saímos em jornais de Israel e ele faz parte do programa do Shnat até hoje.
nia de férias (keitaná) para crianças etíopes cujas famílias ainda estavam em um sistema de absorção em Guivat Hamatos, em Jerusalém.
Hineni: Como foi sua primeira atuação na área social junto às comunidades cariocas?
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Em 2003, um grupo de madrichim sentia a necessidade de começar a atuar de forma mais efetiva na sociedade carioca. Já tínhamos feito arrecadações de alimentos entre outras ações muito pontuais, mas sabíamos que podíamos e queríamos mais. Surgiu então uma oportunidade de parceria com a ONG Associação Projeto Roda Viva. A ONG tinha uma casa entre o morro Borel e Chácara do Céu, abrangendo os dois morros, e essa casa tinha atividades, tinha uma biblioteca que eles estavam montando, tinha uma assistente social, uma brinquedoteca, cursos de computação... Criamos então uma vaadá (comitê) que chamamos de Yozmá (iniciativa) e aí fomos para o Borel, sem muito saber o que iria acontecer, mas éramos muito ousados. Eu achava que qualquer coisa que aparecesse na minha frente eu iria saber o que fazer. Sabia que seria trabalhar com educação através de jogos e brincadeiras, só não sabíamos muito para onde a gente ia. Hineni: Como vocês desenvolviam esse trabalho com as crianças? Os primeiros jogos eram mais para entender o que eles gostavam. Primeiro precisávamos entender quais eram as necessidades deles para então construir o que podia atrair a eles. Na primeira vez, vieram 30, na segunda 50, na terceira 60... chegavam muitas crianças! Era fácil, era divertido para todos, era bom demais! Eu acredito muito na educação não formal, na força que isso tem. A criança vem porque quer, se identifica com aquele madrich (ou monitor) que está ali, de 18-19 anos, que está curtindo estar ali. É simples e mágico! Hineni: Como foi o desenrolar de sua trajetória? Nesse momento pintou trabalho e faculdade (de turismo) e eu tive que sair. E o que o Turismo tem a ver? O meu negocio é gente, onde tiver gente tem alguma coisa para eu fazer. Trabalhei em hotelaria 5 estrelas, 2 anos em recepção e eventos, onde aprendi muito sobre pessoas, nessa convivência com contrastes, hóspedes de um lado, os Vips, e os funcionários de outro. Era um desafio, ao mesmo tempo em que era divertido articular esses relacionamentos. Acabei revendo muitos conceitos como, por exemplo, o termo carente muitas vezes usado para comunidades menos favorecidas. Mas o que é ser carente?
Carente de quê? O hóspede rico mal-humorado vivia carente de um sorriso. Também precisava muito do “outro”. Quando passaram a me considerar para trainee e fazer carreira no hotel, achei que era hora de sair. Ali, eu não me via realizada no futuro. Hineni: Obviamente, você voltou para atuação dentro do universo judaico. Como foi este seu retorno? Nesse momento (2006), recebi um email do Hillel – instituição voltada aos jovens judeus universitários –, com uma oferta de um programa de 3 meses em Israel como voluntária na área de educação. Era uma oportunidade de voltar a Israel depois de voltar do Shnat há 7 anos. O nome do projeto era Masa Go Galil, cuja proposta era trabalhar com crianças no norte de Israel depois da guerra do Líbano. O Hillel é que estava representando esse programa no Rio de Janeiro. Fui em um grupo de 18 pessoas do Rio e chegando lá fomos divididos em escolas. Tinha gente que trabalhava em escolas árabes e os outros trabalhavam com educação especial, que em Israel é muito abrangente, pode ser uma serie de coisas. Eu fui parar numa escola de adolescentes a partir de 11-12 anos que haviam sido expulsos de outras escolas da região, todos hiperativos e com histórias “pesadas” de estrutura familiar. Hineni: O que exatamente você fazia nesse projeto? Como não existia o voluntário na estrutura da escola, eu tive que descobrir qual era minha função lá. As crianças tinham uma autoestima muito baixa e em principio achavam que não iriam conseguir desempenhar bem na escola. Elas não tinham se adaptado ao sistema regular e chegavam nessa escola (voltada para um público específico) cheias de “rótulos”. Nosso papel era desconstruir isso dando amor e carinho. Bastava sentar ao lado delas numa prova, sem falar nada, que já fazia diferença. Vi cenas de muita violência lá. As crianças às vezes estouravam, perdiam o controle e eram capazes de pegar uma lapiseira e tentar enfiar no olho do outro. E depois sentiam uma culpa muito grande. As professoras eram muito bem preparadas e as crianças tinham aula de marcenaria, costura, passavam uma manhã em terapia com cavalos, etc. Foram 3 meses de muita troca e o retorno que tive na despedida que me prepararam foi incrível. O sentimento de que se pode real-
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mente fazer diferença é muito gostoso e só te deixa com vontade de ousar cada vez mais. Hineni: O que você fez quando voltou ao Brasil? Quando voltei, me voluntariei em projetos sociais do Hillel e logo fui indicada para o cargo de coordenadora. Alguns projetos já existiam e eu fui tocando e outros foram criados. A maioria segue firme e forte até hoje! Por exemplo, o Criança em Movimento na comunidade do Pavão Pavãozinho e Cantagalo, que é um projeto que tá virando movimento juvenil dentro da favela, a estrutura é bem parecida… educação não formal, que através de jogos e brincadeiras se passa conteúdo, cidadania, valores. O outro projeto é o Sababa, que é um projeto no lar dos velhos de Jacarepaguá, no qual fazíamos visitas, passávamos as tarde levando alegria através de jogos, teatro, música. O projeto Viva, que abrangia a área de saúde e voltado para adolescentes. Liderado por voluntários estudantes e jovens profissionais da área de saúde, o Viva era um projeto que englobava saúde bucal, nutrição e prevenção de doenças crônicas, sexo, drogas. Nossa ferramenta era também a educação não formal. O grande barato do Viva era que tratávamos de questões bem sérias com os adolescentes, mas nunca usávamos conceitos como certo e errado. Falávamos das consequências dos atos e decisões que tomavam, sem julgar. Não tinha cobrança, mas sim esclarecimento. Entre outros projetos, havia também o Alternative Spring Break com estudantes do Hillel nos EUA e o projeto da Coexistência em escolas das redes pública e particular do Rio. Tínhamos uns 60-70 voluntários e cerca de 5 projetos todos com parceria. Hineni: Como você conseguia entrar na comunidade sem receio e com anuência dos poderes lá instalados? Nunca entravamos numa favela sozinhos. Fazíamos sempre uma parceria com alguma instituição indicada que já estava estabelecida na comunidade. Todos sabiam quem éramos e o que fazíamos, mas não tínhamos nenhum contato com esses “poderes instalados”. Nunca tivemos nenhum problema. Na verdade, o nosso trabalho era reconhecido por todos como algo positivo paras as crianças, portanto para toda a comunidade. Depois desse trabalho
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passei para outra etapa de vida. Hineni: O que você resolveu fazer quando saiu do Hillel? Pretendia passar um tempo na Europa, mas apareceu uma oportunidade de estudos na Universidade Hebraica de Jerusalém e resolvi embarcar nessa. O curso era voltado para educadores judeus da diáspora. Chamava-se mechanchim bchirim (senior educators program) e era coordenado pelo departamento de estudos judaicos (Melton Center) da Universidade. A propósito, Adrián e Rachel também fizeram o mesmo curso (há alguns anos). Nessa mesma época, aproveitei para me voluntariar em uma ONG em Jerusalém chamada Bait Cham. Nessa ONG, trabalhei em um projeto de educação “não formal” voltado para crianças imigrantes com dificuldade de adaptação. Outra vivência forte e transformadora. Quando retornei ao Brasil, acabei voltando ao Hillel e assumi a coordenação do Taglit Birthright Israel – programa criado para dar uma vivência em Israel a adultos jovens judeus. Hineni: E a Shalom, como apareceu na sua vida profissional? Depois de um tempo achei que fechou o ciclo e sai do Taglit. Quando estava começando uma nova atividade educacional no Rio recebi um telefonema da Shachar, que havia sido shlichá na Shalom, me dizendo que havia me indicado para um cargo em São Paulo. Imediatamente eu disse que não pretendia sair do Rio de Janeiro, “São Paulo nem pensar”, mas mesmo assim topei vir para uma entrevista. Depois de ter conhecido a Shalom, ser super bem recebida pelos rabinos, diretoria e pelos jovens, de ter ideia da dimensão e desafio que era coordenar o NOAM, esse NOAM, numa sede nova prestes a ser inaugurada, me rendi. Vim de mala e cuia para São Paulo e sinceramente, não me arrependi! Hineni: Você pensa em inserir os jovens da Shalom em projetos sociais? Sim, estamos avaliando o momento. O Tikun Olam é um dos pilares da ideologia de nossa Tnuá. O NOAM precisava primeiro se consolidar. Primeiro precisamos fazer um trabalho bom para gente, para depois sair. Agora a juventude
já esta bem firme, tá crescendo em todos os sentidos. Temos muita gente bacana e muitas ideias. Só que os madrichim não podem coordenar concomitantemente muitos projetos. A sobrecarga não é saudável. Não faz sentidos crescermos e perdemos a qualidade. É preciso dividir e agora estamos construindo isso. Vamos tentar a experiência. Hineni: Para você, que já teve tanta experiência com projetos sociais no Rio, isso não deve ser um grande desafio, ou será que é? A realidade de São Paulo é bem diferente do Rio. No Rio, mesmo morando em um bairro nobre, você não tem como fugir dos contrastes sociais já que as favelas são vizinhas e a praia é frequentada por todos. As dificuldades estão a todo o momento a sua frente. Muitos ignoram, mas está lá na sua cara. Em São Paulo, às vezes tenho a sensação de morar em uma bolha já que as regiões são mais afastadas. É mais cômodo, parece que não existem problemas. Como sei que isso não é real, isso me incomoda. Hineni: Que projetos sociais você pretende introduzir para nossa juventude? Gostaria de usar o termo Tikun Olam, projetos de Tikun Olam. Acho mais abrangente. Quando falamos de proje-
tos sociais, nossa tendência é pensar e agir como se estivéssemos somente ajudando os outros. Simplificando... o rico ajudando o pobre. Isso é pouco, é superficial e não acho que tenha a ver com a Shalom. Se estamos falando de Tikun Olam, de reparo do mundo e são pessoas as pessoas que movimentam esse mundo, a transformação é no ser humano, em nós mesmos, e consequentemente o sistema também se transformará. Acredito na força do encontro entre os diferentes. Ter contato e estar aberto a ouvir o diferente, se deparar com outras realidades e opiniões, sair da nossa zona de conforto. É uma troca em que todos os lados se transformam, todos os lados envolvidos se beneficiam. Em dezembro de 2011, os madrichim do NOAM estiveram na festa de encerramento do ano da OAT. A Banda Strudel se apresentou e os outros madrichim se encarregaram da animação. Quem esteve lá, pode sentir a magia e a força desse encontro. Espero que possamos dar sequência e criar outras oportunidades como essa. Hineni: Qual é a importância do trabalho social não ser exclusivamente voltado para a comunidade judaica? Fazemos parte de algo maior, se estamos falando em Tikun Olam estamos falando em um mundo maior. tamara@shalom.org.br
Peulot do NOAM Todos sábados das 14h30 às 18h, para crianças e jovens de 7 a 17 anos.
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Meu filho, Nosso filho, Miguel,
Coluna do ensino Palavras de pais ao filho no seu bar-mitzva
Tradicionalmente as cerimônias de bar e bat-mitzva são recheadas de emoção. Na Shalom não é diferente. O que talvez seja motivo de destaque na nossa comunidade são as histórias de superação, conquista, descoberta, conexão, que frequentemente aparecem nos discursos que pais e mães dedicam a seus filhos em frente às nossas torot. Entre tantos discursos maravilhosos que nos levaram às lágrimas, a equipe editorial do Hineni decidiu publicar estes, dedicados ao Miguel Fragelli, porque entendemos que contém parte dos discursos de muitos pais e mães que estiveram em situação semelhante. A história contada por eles simboliza o processo de aprendizado que todas as famílias passam quando um membro torna-se bar ou bat-mitzva. Pedimos nossas sinceras desculpas a todas as lindas palavras que nos emocionaram tanto quanto estas, e que, por falta de espaço, não estão publicadas. Tenham a certeza de que foram inesquecíveis! 48
Não foram poucas vezes que durante esse tempo de estudos para o seu bar-mitzva eu me perguntei por que e de que jeito você tinha se engatado nessa história. Umas quarto ou cinco vezes dirigi essa pergunta à você. Cada vez você respondeu de um jeito. Hoje eu quero te contar de que jeito li essa história que foi ficando cada vez mais sua. Na primeira vez que te dirigi aquela pergunta, você me disse que sentia muita vontade de conhecer a história do seu povo, que precisava saber dessa cultura. Saímos juntos, eu, você e o meu pai, que nos orientava, procurando um lugar onde você coubesse. Foi nossa primeira aproximação dessa história, que, me lembro, foi bem importante. A gente queria um lugar que coubéssemos junto com nossa história e com as pessoas que amamos. Estava difícil da gente se achar, e nessa hora aconteceu um encontro importante: foi a vez da minha amiga Flávia cuidar da gente. É dela o talit que hoje me honra usar. Ela nos trouxe até a Shalom. “Ila, se você vai fazer isso, precisa fazer direito, não é hora de trocar educação por quilometros rodados!” Argumento irrefutável… Quem me conhece, já sabe o que vou dizer agora: “quem tem amigos, tem tudo!” Nossa rabina Lu nos abriu as portas. E fez isso através da pergunta mais bonita, foi a primeira pergunta que nos fizeram aqui dentro: Ela não falou comigo, olhou para você e disse: “Miguel, o que seu pai acha de você estar aqui?” Você também não precisou me olhar e respondeu para a Luciana: “Meu pai gosta e respeita essa minha escolha”. Foi aí que a rabina me olhou, e autorizou que continuássemos nossa conversa. Foi assim que nós escolhemos. Foi assim que se iniciou o acolhimento delicioso que todos os seus professores realizaram. Obrigada Tânia, Dani, Rachel e Beny. Muito obrigada. Obrigada rabino Adrián. Seu curso começou, e a cada vez que você compartilhava conosco seu aprendizado e suas conquistas da língua e da cultura, ficava mais evidente que esse caminho era, e é, um caminho seu. Seu interesse, seu respeito, sua curiosidade, sua alegria estavam presentes em cada pequena história que nos contava. Como naquela noite em que chegou da aula falando sobre os primogênitos, e seu lugar na história, e que nos diver-
timos muito com a preocupação do seu irmão sobre o lugar dele. Seus olhinhos doces acolheram o Deco, e você conseguiu dizer para ele, com o seu jeito, que todos tem lugar na família, na nossa, e na história também. Pouco depois, você recebeu o nome judaico que escolheu. Nome dos meus dois avôs, Isaac. Aí fui eu quem começou a se dar conta da força dessa história. A gente pode não saber, a gente pode desviar, relevar, tratar de muitos jeitos. Mas a história que é nossa faz marca, e volta. Ainda bem. Miguel, quando você escolheu esse nome contou para mim que essa história sobre a qual você queria saber não era apenas a história de um povo. É a história do seu povo, do nosso povo, e da nossa família. História dos meus avós que vieram do Marrocos, e da Polônia, em tempos tão difíceis da nossa história, e que você tem toda razão: disso não se pode jamais esquecer. Esse é meu primeiro agradecimento para você, meu filho. Obrigada por não deixar mais uma geração distante de algo tão essencial. E obrigada por nos aproximar com a marca da sua tão genuína posição diante disso tudo. Eu fico especialmente contente, meu filho, de não ter sido um anteparo diante do que vem de meu pai para você. De verdade. Que eu e que o seu pai tenhamos podido dar passagem, sem fazer obstáculo, ao quem vem do seu avô para você. Isto é para mim muito precioso. Talvez você não se lembre do que me disse na época das festas, nesse ano de agora. Veio me avisar que faltaria na escola, pois era feriado judaico. Respondi, meio diletante, que nós não tínhamos o hábito de vir à sinagoga nessas ocasiões, e que, portanto, não via motivo para faltar na escola. Você me disse: “Mãe, você não vai. Mas eu vou.” E foi isso que aconteceu, nesse e em outros dias das festas. Sua avó Helena te acompanhou, e também teve a oportunidade de se reencontrar, através de você, com algo que é muito dela. Se ela fosse fazer valer o protocolo da mãe judia agora, ia me interromper e te contar toda a emoção que viveu nesses eventos com você. Mas, como ela não vai fazer isso, eu tomo a liberdade de te agradecer também em nome dela. E te dizer também que no ano que vem viremos novamente com você. Isso fui eu quem aprendeu, filho. Houve também um outro episódio, em que cheguei de um grupo de estudos em casa, com uma dúvida grande. O Lacan havia citado a estrutura do alfabeto hebraico como 49
modelo para um determinado entendimento. Mas eu não tinha entendido nada. Você me explicou a relação do Aleph com o alfabeto, e desenhou, e contou histórias, e eu… acho que fiquei um pouco orgulhosa…! Pude voltar para meu grupo de estudos, e contar que meu filho tinha esclarecido para nós aquela referência. Que honra aprender com você, filho! Ainda na época das festas, meu pai e a Silvana mandaram um e-mail para mim e para os meus irmãos pedindo que refletíssemos sobre algumas coisas, entre as quais havia uma que tomou conta de mim. De que modo eu me entendia judia? Eu vinha pensando nisso, apoiada no seu caminho. Me entendo judia, filho, não apenas porque nasci judia. Eu me ancoro em dois traços bastante essenciais para responder essa pergunta: reconheço-me uma mulher judia ao ser capaz de ser solidária, de estar verdadeiramente disposta ao outro. E reconheço-me judia ao respeitar a história da humanidade e de cada um dos homens, ao aprender com a experiência e também ao amar o conhecimento, o mais móvel de todos os bens, esse que vai com a gente para qualquer lugar. Quando olho para essa sala e vejo aqui os nossos amigos da vida inteira, os meus, e os do seu pai, os dos seus avós, e principalmente os seus, fico muito emocionada de constatar que nós soubemos nos fazer acompanhar pela vida. E fico emocionada por podermos contar entre os nossos amigos, a nossa família. Isso realmente não é pouca coisa. Assim, peço licença à você para fazer dois agradecimentos muito importantes. O primeiro é para a Silvana, minha boa-drasta, pois sem contar com toda a amorosidade dela nessa festa e na nossa vida, não teríamos conseguido fazer isso do jeito que fizemos. E o segundo é para o seu pai, que te deu a mais nobre demonstração de amor ao te acompanhar nessa história, do jeito que ele fez. Quando te perguntei pela última vez, na semana passada, se você sabia me contar o que tinha te orientado nessa escolha, você respondeu novamente: “eu queria conhecer, mãe”. Eu fiquei tão emocionada, filho. Porque o conhecimento não tem um lugar qualquer para mim, e acho que isso eu pude transmitir para você. Mas você não terminou assim a nossa conversa, você me disse ainda: “eu queria esse ritual de passagem”. 50
Assim, meu filho, entendo que você realizou seu ritual de passagem para o qual podemos dar vários nomes, mas que hoje aqui eu diria que foi através dele que você passou de judeu “porque sim” para um rapaz que se fez judeu, escolhendo dessa cultura traços essenciais. Essa foi a primeira escolha essencialmente sua, Miguel, e através da qual trouxe alguns de nós. Obrigada, Mig. E eu, filho, me entendo judia naquela que é, para mim, a mais sagrada das experiências humanas: sou judia sendo mãe.
Mazel Tov! Ilana 03/12/2011
Miguel,
synagogue news Simchat Bat
Brit-Milá
Carolina Lederman - Catarina R. Kahn - Sophia Vargas
Frederico Ferman
Mazal Tov para nossos Bnei Mitzvá: Diana Jonas - Daphne Jacobsberg - Gabriela Zogbi - Arthur B. Carvalho Carolina Wurzman - Miguel Fragelli - Letica Geigner - Noah Cuckier - Victor Savatovsky Marina K. Machado - Carolina Bergstein - Catarina W. Lages
Mazal Tov aos nossos noivos que entraram para a Chupá e Kidushin:
Se tem uma imagem que eu nunca vou esquecer é a do seu nascimento. Primeiro vi a sua cabeça chegando e logo em seguida o tronco com os braços colados nele. De repente você dobrou o seu braço direito e eu senti uma emoção muito forte. Lembro que as minhas pernas falharam, como se eu fosse cair. Fiquei encantado vendo um movimento que era só seu, independente do movimento do parto que ainda nem tinha terminado. Até então para mim, Miguel, você tinha a ver com um desejo muito grande da sua mãe e meu. É como se o movimento do braço me contasse que você já tinha vida própria. Foi assim que eu te conheci, treze anos atrás. Quando você escolheu fazer o bar-mitzva vi de novo o movimento independente do seu braço. Começou na direção de estudar a cultura judaica e há dois dias terminou por colocar o tefilin me dizendo que você cresceu. Miguel, admiro muito a forma intensa como você se relaciona com as suas escolhas e com o seu bar-mitzva não foi diferente. É muito legal como o estudo e o conhecimento mexem com você e te transformam. Isso me diz que você vai ter muito sucesso nas tantas escolhas que você vai fazer. Gosto de ver como você se relaciona com a vida e como você se diverte com ela, com seus amigos e com a sua família. É um prazer ver você crescer e viver junto com você. Sinto muito orgulho de você, meu filho. Mazel Tov!
Patrícia Fajnzylber e Decio Blucher Fernanda Tomchinsky e Leandro Galanternik
Falecimentos: Elcy Ioschpe Felipe Caro Hamakom ienachem etchem betoch shear avelei birushalaim Que Deus os console junto a todos os enlutados da Casa de Israel
Novos Sócios Ana Regina Caner e Homero Aquilino Luciana Libman Rose Maria Sonder e Claudio Thomaz Sonder Sarah Fiks Vivian Braunstein e Tony Silva
Claudio Luraschi Clarissa R. Ferman e Marcelo Ferman Simone Cristina Vaiser e Adolfo Vaiser Liliane Beneduzzi e Rodrigo Sancovsky
Augusto 03/12/2011
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nova sede da comunidade shalom Esta sede é responsabilidade de todos. Colabore! Este ainda é um momento que você ou alguém que você possa trazer faz toda a diferença com a sua contribuição. Queremos entretanto rapidamente colocar este desafio atrás de nós. É importante para a vida da comunidade que o desafio financeiro tome outra dimensão e que possamos concentrar nosso foco na construção social e espiritual de nossa comunidade. Cada doação para a nova sede envolve muito mais que os seus elementos materiais. Representou a oportunidade de dividir lembranças e emoções relembradas ao vincular um ente querido a um espaço, representou a oportunidade de receber importantes mensagens e planos para o futuro, de aumentar o nosso compromisso em função da generosidade de tantos que abriram mão de montantes que lhes eram tão importantes, de parcelas tão grandes de suas poupanças ou de uma herança recebida. Representou a todos nós envolvidos a oportunidade de encontrar o melhor das pessoas, de encontrar a generosidade pura em ação e como é da nossa comunidade Shalom, com tão pequenos pedidos de contrapartida de reconhecimentos.
Ainda temos espaços bacanas para dedicar em nosso novo predio!
Ligue para a Shalom ou envie um email. Telefone para Leny, 3847 0000 – ela poderá agendar uma visita, www.shalom.org.br
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