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Apucarana, de 30 de março a 05 de abril de 2014 - N o 167

Regime Borrazópolis Militar

O dia que durou 50 anos O médico torturado, que perdeu um hospital, e o ex-vereador sequestrado na frente dos filhos, recordam os anos de chumbo, cujo cinquentenário ocorre em 31 de março de 2014 Texto e fotos Airton Donizete

Dizem que o golpe que culminou com a ditadura civil/militar no Brasil ocorreu em 31 de março, mas testemunhas revelam que a data correta é entre 1º e 2 de abril. Na madrugada de 2 de abril de 1964, o então presidente do Senado, Auro Moura Andrade convocou o Congresso para sessão extraordinária e pronunciou a célebre frase: “Declaro vago o cargo de presidente da República”. O presidente João Belchior Marques Goulart, que seria deposto, se dirigia ao Rio Grande do Sul. Portanto, estava em território nacional. Mas este é assunto para outra reportagem. O objetivo aqui é mostrar como alguns personagens foram perseguidos pela ditadura civil/militar no Brasil (1964/1985).

Alves, com a prisão, perdeu um hospital, em Mandaguari

Em 11 de setembro de 1975, por volta da meia-noite, o médico Osvaldo Alves, hoje com 75 anos, voltava de um casamento em Arapongas. Na frente da casa dele, em Mandaguari, havia um Fusca com três homens. Eram oficiais do 30º Batalhão de Infantaria Mecanizado, de Apucarana. Eles disseram ao médico que vieram buscá-lo para ver uma pessoa que estava passando mal. Ele entrou no carro e, três quadras depois, o Fusca foi interceptado por dois camburões. Os militares o puseram num deles e seguiram para Apucarana. O médico não sabia o destino. Estava encapuzado e algemado. Demoraram mais de quatro horas para percorrer os 35 quilômetros entre Mandaguari e o 30º BIM. “Era tortura psicológica, eles ficavam dando voltas”, recorda.

“No trajeto, todo momento, diziam que iam me matar”. Curitiba Ao chegar ao quartel, em Apucarana, puseram Alves em

Não aguentava o cheiro de carne queimada, mas logo percebi que aquele cheiro vinha do meu próprio corpo” – Osvaldo Alves, médico

outro carro. Embora dissessem que o levariam a São Paulo, seguiram para Curitiba. Permaneceu por alguns dias numa pri-

são, que ele não se recorda. De lá foi para o presídio do AHU, onde ficou detido por dois anos. Por quatro meses, esteve na mesma cela do escritor Ildeu Manso Vieira, também de Mandaguari, que morreu em 2001. Os militares queriam que ele falasse das atividades de Ildeu Manso, na época, ligado ao Partido Comunista Brasileiro (PCB). Ele resistiu e foi torturado com choque elétrico. “Não aguentava o cheiro de carne queimada, mas logo percebi que aquele cheiro vinha do meu próprio corpo”, conta. Hospital falido Mas o pior estava por vir. Em Mandaguari, Alves era dono do Hospital São Francisco. Na época, um dos mais equipados da região. Com a ausência do médico, a administração desandou,

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Apucarana e do se trans gem mais lo e o hospital faliu. Alves diz que nunca par-Durante to ticipou do PCB, apenas tinhaameaçavam contatos com alguns dosquei mais p seus integrantes na região.família”, afi Para ele, a condenação quecoisa acon lhe foi imposta revela comomeus filhos f agiam os militares. Qualquerrados”. um podia pagar por coisas que não cometera. Como indenização, ele recebe uma pensão do governo Federal. O dinheiro ajuda a manter uma obra de caridade, que fundou em 1984. A Comunidade Social Cristã Beneficente promove várias ações sociais. Atendimento médico, odontológico, psicológico, assistência social, reforço escolar, oficinas de literatura e esporte são algumas delas. “Hoje, sou um homem convertido a Deus e, meu propósito, é ajudar a humanidade”, acrescenta.

Preto (primeiro à dir.) entre colegas na prisão em Curitiba, onde ficou preso por sete meses e um dia


Apucarana, de 30 de março a 05 de abril de 2014 - N o 167

Regime Militar

Sete meses e um dia O ex-vereador Pedro Agostineti Preto, 75, vive numa casa espaçosa no centro de Apucarana. Atrás do homem solícito e bom de prosa, existe um passado que ele não esquece. Em 14 de outubro de 1975, um camburão estacionou em frente da casa dele, por volta da meia-noite. Militares o prenderam (ele prefere dizer que o sequestraram) na frente dos dois filhos e o levaram para Curitiba. Os 400 quilômetros, entre Apucarana e a capital do Estado se transformaram na viagem mais longa da vida dele. nunca par-Durante todo o percurso, o penas tinhaameaçavam de morte. “Eu fialguns dosquei mais preocupado com a s na região.família”, afirma. “Se alguma enação quecoisa acontecesse comigo, evela comomeus filhos ficariam desampaes. Qualquerrados”. por coisas

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Em Curitiba, Preto ficou preso num antigo quartel da cavalaria do Exército. Após 10 dias, o levaram para a antiga prisão do “AHU”, onde permaneceu por sete meses e um dia. Ele perdeu a conta dos depoimentos que concedeu aos militares. Como castigo, tinha de assistir às sessões de tortura. “Usavam esse jogo psicológico”, conta. “Quando eu era interrogado por um agente, sempre de madrugada, outro, ao seu lado, ficava fazendo testes na máquina de choque para me amedrontar, e isso realmente dava medo”. Choques no ânus A pior coisa que ele diz ter visto foi um torturador introduzir um cano com dispositivo elétrico no ânus de um companheiro de cela. “Eles faziam isso para que o choque fosse

Preto, sequestrado por militares na frente dos filhos, em Apucarana

dado lá dentro, evitando deixar marcas externas”, afirma. Ele também viu um preso beber, na marra, urina de um torturador. Os que iam para o pau-de-arara vestiam uma espécie de bata sem

nada por baixo. Quando ficavam dependurados, a vestimenta caía, e os órgãos genitais ficavam expostos. “Aí apli cavam os ch oques”, acrescenta. Diz que não foi torturado

fisicamente porque reconheceu um dos torturadores, que fora delegado em Apucarana. “Não que ele fosse bonzinho, mas, talvez, pelo medo de ser identificado posteriormente”, declara.

Casa era vigiada por agente disfarçado de sorveteiro Enquanto Preto estava preso, a família dele, em Apucarana, recebia ameaças constantes. “Diziam que todos seriam mortos, coisas desse tipo”, recorda. Um agente do extinto Serviço Nacional de Informações (SNI) ficava de plantão próximo da casa dele com um carrinho de sorvete. Ele dava sorvetes para os filhos na tentativa de obter informações sobre o pai. A prisão ocorreu porque o acusaram de pertencer ao Partido Comunista Brasileiro (PCB). “Sempre tive admiração pelos comunistas, mas eu era do antigo MDB”, diz. “Fui vítima de uma conspiração do então governo do presidente Geisel, que desencadeou uma

série de prisões para demonstrar à população que os comunistas queriam derrubar o governo, o que era um absurdo”. Um emissário do PCB o procurara com proposta de que ele organizasse o partido na cidade. Uma reunião chegou a acontecer numa chácara de sua propriedade para viabilizar o partido em Apucarana, mas não houve consenso. “O que eles queriam era o que nós, do MDB, também queríamos: a redemocratização do país”, afirma. Julgado pelo Supremo Tribunal Militar (STM), Preto foi absolvido por falta de provas. No começo da década de 1980, foi anistiado pelo presidente João Baptista Figuei-

redo. Em 1998, o então deputado estadual Beto Richa apresentou projeto de lei na Assembléia Legislativa que obrigou o Estado a reconhecer e pagar indenizações a seus ex-presos políticos ainda vivos ou a suas viúvas. Preto, a exemplo de Alves, recebeu R$ 30 mil de indenização. Mas ele espera resultado de outra ação que tramita na Justiça, pela qual pede outra indenização ao governo Federal. Quando foi preso, Preto era imobiliarista e, ao retornar à cidade, viu seu negócio falido. “Não tinha quem cuidava das coisas aqui”, diz. “A prisão me deixou numa pior, sem dinheiro e condições de tocar a vida”.

Alves e Preto dizem que a Comissão da Verdade instituída pela presidenta Dilma Rousseff, cujo objetivo é examinar e esclarecer graves violações contra os direitos humanos entre 1946 e 1985, veio em boa hora. Eles, no entanto, temem que forças ocultas atrapalhem o trabalho dos membros da comissão. Para Alves, embora o Brasil esteja vivendo uma demo-

cracia, as instituições ainda são frágeis. “Pode ser que os membros da comissão tenham boa vontade, sejam pessoas dignas, mas haverá muita resistência, principalmente, dos militares”, acredita. Preto também teme setores resistentes à democracia. “Mas confio no povo e nos meios de informação, como a internet, que podem ajudar muito os membros dessa comissão”.


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