Coniuntio 2013 o que e religiao libre

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ANO 2 | Nº. 2| 2013 | ISSN Requerido

Imaginação Ativa e Bruxismo Sonia Regina Lyra

O percurso para a sétima morada

Reflexões sobre as tradições religiosas judaicas, proto-cristãs e gregas arcaicas

Albertina Laufer

Viktor D. Salis

Sobre os dez mandamentos e os sete dons do Espírito Santo Marcos Aurélio Fernandes

Ano 2 | número 2 | 2013

CONIUNCTIO Revista Científica de Psicologia e Religião | Ichthys Instituto | Curitiba - PR


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Edição Atual 74 páginas Curitiba | Ano 2 | Nº. 2 | 2013 | ISSN Requerido Copyright © 2013 by autores Qualquer parte desta publicação pode ser reproduzida, desde que citada a fonte. E-mail: coniunctio@ichthysinstituto.com.br Editores: Sonia Lyra Jubal Sérgio Dohms Comissão editorial Sonia Regina Lyra Jairo Ferrandin Juarez Francisco da Silva Adriano Holanda Conselho editorial Dra. Sonia Regina Lyra Dr. Jairo Ferrandin Dr. Enio Paulo Giacchini Dr. Luiz Felipe Pondé Dr. Gilvan Luiz Fogel Dr. Nilo Agostini Diagramação: Dohms Comunicação Revisão: Enio Paulo Giachini Ilustrações: Rogério Borges e Jubal S. Dohms Dados internacionais de catalogação na fonte Bibliotecária responsável: Angela M. S. K. Cherobim CRB 9ª R/605 ______________________________________________ CONIUNCTIO Revista de Psicologia e Religião v.2, n.2, Curitiba: Ichthys Instituto, 2013 Semestral 1. Psicologia - Periódicos 2. Religião – Periódicos 3. Filosofia – Periódicos 4. Arte – Periódicos 5. Teologia – Periódicos. _______________________________________________

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SUMÁRIO | CONTENTS Editorial | 4 Sonia Regina Lyra

Imaginação Ativa e Bruxismo | 5 Viktor D. Salis

Algumas reflexões comparativas sobre as tradições religiosas judaicas, proto-cristãs e gregas arcaicas | 13 Regina Maria Grigorio e Sonia Regina Lyra

Aspecto religioso do processo de individuação | 16 Albertina Laufer

O percurso para a sétima morada | 30 Ana Luisa Testa e Sonia Regina Lyra

A assimilação psicológica do mal | 41 Marcos Aurélio Fernandes

O confronto de São Boaventura com a filosofia nas conferências de Paris sobre os dez mandamentos e sobre os sete dons do Espírito Santo | 51 Resenhas | Reviews José Luiz Nauiack

O Desespero Humano | 68 Ângelo Vieira da Silva O que é Religião? | 70 Murilo Augusto Diorio

Zaratustra em análise: Uma leitura viva sobre a “morte de Deus” | 72 Chamada para publicação e normas para colaboração | 73 Ano 2 | número 2 | 2013

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EDITORIAL

Coniunctio – Revista de Psicologia e Religião é um periódico científico, eletrônico, semestral, criado e mantida pelo ICHTHYS INSTITUTO DE PSICOLOGIA E RELIGIÃO, em 2012, com o objetivo de publicar pesquisas, artigos, resenhas, críticas e entrevistas que contenham temas relacionados à Psicologia (Psicologia geral, Psicologia analítica e especialmente Psicologia da religião) e à Religião, em diálogo com áreas afins: filosofia, arte, mitologia, teologia, sociologia, etc. A ideia é fomentar a área de pesquisa em Psicologia da Religião – esta “filha mais nova” da psicologia, no Brasil na contemporaneidade. Neste ano de 2013 o ICHTHYS INSTITUTO em parceria com a UNIPAR – Campus Cascavel realizou a primeira pesquisa científica em IMAGINAÇÃO ATIVA aplicada à área do BRUXISMO, tendo excelentes resultados e apresentando também pela primeira vez a possibilidade de cura para este sintoma. Intitulado The Active Imagination Technique for Bruxism Treatment, o artigo foi apresentado à Comunidade Científica Internacional, em Berlin – Alemanha, em maio de 2013 e publicado no WASET: World Academy of Science Engineering and Technology no Departamento de Psicologia e Psiquiatria. Sua reprodução em língua portuguesa está sendo feita pela primeira vez no Brasil em nossa revista Coniunctio. Outros projetos de pesquisa encontram-se em andamento, nas áreas de Autismo, Psoríase e Síndrome do Pânico. Aproveitamos essa oportunidade para convidar pesquisadores(as) e professores(as) a contribuírem com a Coniunctio. A publicação ou não do material enviado será definida pela Comissão de Redação a partir dos critérios propostos pelo Conselho Editorial, integrado por professores/as e especialistas de várias Universidades e Centros de Estudos. As propostas para publicação devem ser originais, não tendo sido publicadas em qualquer outro veículo do país. Publicam-se artigos em quatro línguas: português, espanhol, italiano e francês. Todos os números são divulgados por meios digitais, estando disponíveis online pela Internet. Os editores

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A Técnica da Imaginação Ativa no Tratamento do Bruxismo The Active Imagination Technique for Bruxism Treatment Sonia Lyra, pesquisadora e divulgadora da técnica de Imaginação Ativa, foi à Europa apresentar os resultados científicos (estatísticos) do trabalho pioneiro com a Imaginação Ativa, intitulado “The Active Imagination Technique for Bruxism Treatment” à comunidade científica internacional, como conferencista em Psiquiatria e Psicologia no World Academy of Science, Engineering and Technology, em Berlim, em maio de 2013. A pesquisa desenvolveu-se graças a uma parceria entre o ICHTHYS Instituto e a Universidade Paranaense (UNIPAR – Curso de Odontologia – Cascavel-PR) e também contou com a participação da Profa. Daniela Ceranto F. Boleta, PhD, e da Odontóloga Tânia Maria Bremm Zaura. A técnica da Imaginação Ativa corresponde a uma forma particular de lidar com o inconsciente. Foi desenvolvida por Carl Gustav Jung (1875-1961) e busca a compreensão do símbolo, tendo como modelo os escritos de santo Inácio de Loyola. Sonia Lyra é a única profissional no país a promover regularmente cursos de Imaginação Ativa e a desenvolver pesquisas com o uso da mesma. Este artigo, que CONIUNCTIO aqui publica, também pode ser acessado no original (World Academy of Science, Engineering and Technology Vol:76 2013-04-25 ), em inglês, em http://waset.org/Publications/the-active-imagination-technique-for-bruxism-treatment/15181 Ano 2 | número 2 | 2013

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6| A técnica da Imaginação Aiva no tratamento do bruxismo | Sonia Lyra, Tânia Maria Bremm Zaura e Daniela Ceranto F. Boleta | 06 - 11

A técnica da Imaginação Ativa no tratamento do bruxismo The Active Imagination Technique for Bruxism Treatment Sonia Lyra*, Tânia Maria Bremm Zaura** e Daniela Ceranto F. Boleta*** Resumo

* Lyra, S. R. Ph.D. in Ciências da Religião, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (sonia@ichthysinstituto.com.br). ** Zaura - Bremm T. Cirurgiã Dentista Clínica particular - Terra Roxa – Paraná - Brasil (taniazaura@yahoo.com.br). *** Boleta - Ceranto D. C. F. Cirurgiã Dentista, Mestre e Doutora em Odontologia - Fisiologia Oral – UNICAMP (dcboleta@unipar.br).

Referências 1| PONTES DG; et al. A relação entre bruxismo dental e implantes endósseos. Rev. bras. odontol. v.60, n. 2, p. 99-102, 2003. 2| MOLINA OF. Placas de mordida na terapia oclusal. São Paulo: Pancast. 1997. p. 37-59. 3| PAIVA HJ. Oclusão: noções e conceitos básicos. São Paulo: Santos, 1997.

O objetivo do presente trabalho foi avaliar o efeito da técnica da Imaginação Ativa para o tratamento de bruxismo. Este projeto foi apreciado e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos (CAAE: 05619512.9.0000.0109). Concluíram a pesquisa 21 voluntários. Inicialmente eles preencheram um questionário a respeito de sua condição referente ao bruxismo, composto por questões objetivas sobre sinais e sintomas. Na sequência foram submetidos a uma única sessão, de cerca de 1h de duração, de Imaginação Ativa com uma proissional habilitada (psicóloga), realizada nas dependências da Universidade Paranaense Unipar–campus Cascavel (Brasil). Após 15 dias, os voluntários preencheram novamente o mesmo questionário inicial. Os resultados dos dois questionários foram comparados e demonstraram que a grande maioria dos participantes teve a sintomatologia dolorosa, a diiculdade de abertura bucal, dor à mastigação, reduzidas após a sessão de Imaginação Ativa, alguns dos participantes abandonaram o uso da placa durante o período avaliado. Conclui-se que a técnica pode ser utilizada no tratamento do bruxismo. Os resultados parecem ser promissores e demonstram a necessidade de a técnica ser considerada por sinalizar a possibilidade de cura do bruxismo e isto não tem precedente.

Palavras-chave: Imaginação Ativa, Bruxismo, Dor orofacial.

Abstract he research purpose was to evaluate the efect of Active Imagination Technique (AIT) for bruxism treatment. his project was approved by the Ethics Committee on Human Research (CAAE: 05619512.9.0000.0109). Twenty-one volunteers using interocclusal splint completed the study. Initially they illed in a questionnaire about their condition, composed of objective questions on signs and symptoms. Following they were underwent a single session of AIT. After 15 days, the volunteers met again the same initial questionnaire. he results were compared and showed that the vast majority had pain symptoms, diiculty opening the mouth, pain when chewing, reduced, some of the participants abandoned the interocclusal splint during the evaluate period. It is concluded that the technique can be used in bruxism treatment. Results seem to be promising and demonstrate the need of highlighting Active Imagination Technique since it points a possibility of bruxism cure and that is unprecedented.

Keywords: Active Imagination, bruxism, orofacial pain, treatment. vocar desgastes dentais, lesões nas estruturas de

1. Introdução O sistema mastigatório possui várias atividades, divididas em funcionais e parafuncionais. A funcional ou isiológica inclui os atos de mastigar, falar e deglutir que são controlados por relexos protetores e músculos. Dentre as pa-

suporte [1], desordens da articulação temporomandibular (ATM) e cefaleias [2]. Adquirida de forma inconsciente, ocorre durante períodos diurnos, mas é mais frequente durante o sono [3].

rafuncionais, inclui-se o bruxismo, relacionado

A consequência mais frequente do bruxis-

com a hiperatividade muscular, que pode pro-

mo é a fadiga, que é a incapacidade de resistir

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A técnica da Imaginação Aiva no tratamento do bruxismo | Sonia Lyra, Tânia Maria Bremm Zaura e Daniela Ceranto F. Boleta | 06 - 11

durante um tempo determinado a um esforço

relaxamento dos músculos hipertroiados, pre-

sustentado sem que sinais e sintomas de dor e

venindo também sobrecargas para a ATM [9].

desconforto se tornem aparentes [2]-[4]-[5]-

Importante salientar que as placas também po-

[6]. A musculatura postural, localizada na região

dem agir apenas como paliativas, quando outros

cervical da coluna vertebral, pode manifestar

fatores, além dos oclusais estiverem envolvidos.

dores crônicas e alterações permanentes futuras [2].

O tratamento deve ser direcionado à causa quando este envolver problemas psicológicos

O Estresse e as variáveis psicológicas são

como estresse, ansiedade e depressão. Atual-

comumente relacionados ao Bruxismo, porém

mente, há um grande interesse em técnicas psi-

alguns estudos comprovam falhas nesta relação.

cológicas, dentre as quais uma pouco utilizada é

4| OKESON JP. Tratamento das desordens temporomandibulares e oclusão. 4. ed. São Paulo: ArtesMédicas, 2000. p.126-325.

Parece que os bruxômanos têm como caracte-

a Imaginação Ativa, desenvolvida por C.G.Jung

rística serem focados em realizar atividades com

(1875-1961), a qual trata de um percurso inte-

um forte objetivo de alcançar o sucesso quando

rior que implica em tornar consciente o incons-

comparados aos indivíduos controles e não um

ciente com a ajuda de sonhos, fantasias e imagi-

5| ORLANDO S. O Bruxismo está à solta. Rev. bras.odontol. v. 57, n. 5, p. 308-311, 2000.

distúrbio de ansiedade [6].

nação [10].

6| MACEDO CR. Placas Oclusais para Tratamento do Bruxismo do Sono: Revisão Sistemática de Cohrane. USP São Paulo, Escola de Medicina, Tese de mestrado em Ciências, 2007. 7| ZUANON ACC, et al. Bruxismoinfantil. Odontol. Clin. v. 9, n. 1, p. 41-43, 1999. 8| PRIMO PP; MIURA CSN; BOLETA-CERANTO DCF. Considerações fisiopatológicas sobre bruxismo. Arq. Ciênc. Saúde UNIPAR, Umuarama, v. 13, n. 3, p. 263-266, set./dez. 20096| MACEDO CR. Placas Oclusais para Tratamento do Bruxismo do Sono: Revisão Sistemática de Cohrane. USP São Paulo, Escola de Medicina, Tese de mestrado em Ciências, 2007. 9| OLIVEIRA ME; CARMO MRC. Placa de mordida interoclusal para tratamento de bruxismo. Rev. do CROMG. v. 7, n. 3, p. 183-186, 2001. 10| KAST V. Dinâmica dos símbolos(a) - fundamentos da psicoterapiajunguiana. São Paulo: Loyola, 1997.

O importante é determinar quais fatores,

Essencialmente é um diálogo a ser tra-

especiicamente, estão envolvidos em cada pa-

vado com as diferentes partes de nós mesmos

ciente, para a escolha de um tratamento adequa-

que vivem no inconsciente, buscando descobrir

do dentre as diversas modalidades terapêuticas

e transformar as causas psíquicas das doenças,

existentes, ou mesmo a associação de dois ou

através das quatro etapas da técnica.

mais tratamentos [7].

II. Objetivo

Devido ao caráter multifatorial do Bruxis-

O objetivo do presente trabalho foi ava-

mo, várias linhas de tratamento têm sido pro-

liar a eicácia da técnica psicológica Imaginação

postas como tratamentos além da odontológica:

Ativa para o tratamento de bruxismo em pa-

a farmacológica e a psicológica.

cientes portadores da patologia e que neste caso,

Na área odontológica, a forma mais utilizada para o tratamento do bruxismo são as placas de mordida interoclusais estabilizadoras (mio relaxantes). São frequentemente usadas como um dispositivo para diagnóstico e/ou tratamento, de grande importância para o clínico.

utilizam a placa miorelaxante para o alívio dos sintomas.

III. Metodologia Este projeto foi apreciado e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos (CAAE: 05619512.9.0000.0109). Conclu-

A placa oclusal é um aparelho removível

íram a pesquisa 21 voluntários. Eles preenche-

geralmente confeccionado com resina acrílica

ram um questionário a respeito de sua condição

incolor, química ou termicamente ativada, que

referente ao bruxismo, composto por questões

recobre a superfície oclusal/incisal dos dentes

objetivas sobre sinais e sintomas expressos em

em um dos arcos, criando um contato oclu-

forma numérica, na forma de uma escala analó-

sal adequado com os dentes antagonistas e um

gica visual, tal questionário comparado com os

melhor relacionamento côndilo disco [8]. Pro-

dados preenchidos após a terapia. Na sequência

porciona ao paciente um maior conforto, impor-

foram submetidos a uma única sessão, de cerca

tante para a proteção dos elementos dentários,

de 1h de duração, de Imaginação Ativa com uma

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8| A técnica da Imaginação Aiva no tratamento do bruxismo | Sonia Lyra, Tânia Maria Bremm Zaura e Daniela Ceranto F. Boleta | 06 - 11 proissional habilitada (psicóloga), realizada nas

cabeça, pescoço ou maxilares?

dependências da Universidade Paranaense Uni-

(

par – campus Cascavel (Brasil). Após 15 dias, os voluntários responderam novamente as mesmas perguntas. O resultado de ambos os questionários foram comparados e expressados estatisticamente.

) sim (

) não

9- Você percebeu alguma alteração recente na sua mordida? (

) sim

(

) não

10- Você fez algum tratamento recente para problema não identiicado no articular mandibular? (

) sim

(

) não

11- Usou algum aparelho? QUESTIONÁRIO APLICADO AOS PACIENTES ANTES E DEPOIS DE

15 DIAS DA TERAPIA

COM A TÈCNICA DA IMAGINAÇÃO

( ) sim ( ) não

_________________________

ATIVA.

Nome

12 – Sente que seus dentes desgastaram nos últimos tempos? (

Data:___/_____/_____ Sexo: (

)F(

)M

Idade:____ anos

(

ao abrir a sua boca, por exemplo, ao bocejar? (

) não

) sim

(

) não

3- Você tem diiculdades, dor ou ambas ao mastigar, falar ou usar seus maxilares? (

) sim

(

) não

) sim

(

) não Há quanto tempo?

14- Após iniciar o uso da placa as dores reduziram? (

) sim

(

) não

15- Pode indicar em um número seu ín-

2- Sua mandíbula ica “presa”, “travada” ou sai do lugar? (

(

______________________

1- Você tem diiculdades, dor ou ambas ) sim

) sim

13 - Usa placa de mordida?

Nascimento: ____/____/____

(

qual:

dice de ansiedade de 0 a 10 (0 mínimo e 10 máximo)? 16- O que sente quando ica/icou sem usar a placa? __________________

) não

4- Você percebe ruídos na articulação de seus maxilares? (

) sim

(

) não

5- Seus maxilares icam rígidos, aperta-

Os voluntários selecionados para a pesquisa eram pacientes bruxomanos cujos sinais e sintomas foram abrandados pelo uso da placa mio

dos ou cansados com regularidade?

relaxante, usada principalmente à noite quando

(

durante o sono o bruxismo se manifesta com

) sim

(

) não

6- Você tem dor nas ou ao redor das orelhas, têmporas ou bochechas. (

) sim

(

maior incidência. Todos os voluntários foram informados

) não

sobre a metodologia a ser empregada e dos be-

7- Você tem dores de cabeça, dores no

nefícios que teriam na possibilidade da redução

pescoço ou nos dentes com frequência?

da sintomatologia e em deixarem assim de ter de

(

usar a placa mio relaxante oclusal para dormir e

) sim

(

) não

Onde: a ( ) dor de cabeça no pescoço

b ( ) dores

c ( ) dores nos dentes

8- Você sofreu algum trauma recente na

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então assinaram o termo de consentimento.

IV. Resultados Dos 21 voluntários, 18 (85,7%) eram do gê-

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nero feminino e 3 (14,28%)do gênero masculino. Dos 21 voluntários, 18 (85,7%) eram do gênero feminino e 3 (14,28%)do gênero masculino. Quando questionados sobre diiculdades,

80,00 % _ 70,00 % _ 60,00 % _ 50,00 % _ 40,00 % _ 30,00 % _ 20,00 % _ 10,00 % _ 0,00 % _

dor ou ambas ao abrir a sua boca, os resultados

76,19 %

|9

FIGURE 2 B

33,33 %

Before Treatment

After Treatment

estão expressos na Fig. 1 (a). Referente ao fato de a mandíbula icar “presa”, “travada” ou sair do lugar, as respostas expressas na Fig. 1 (b).

35,00 % _

33,33 %

FIGURE 1 A

30,00 % _

Fig. 2 (a) Dificuldade, dor ou ambas ao falar,mastigar ou usando os maxilares (b) a presença de ruído na articulação do maxilar antes e depois do tratamento

Referente aos maxilares icarem rígidos, apertados ou cansados com regularidade, as

25,00 % _

19,04 %

20,00 % _ 15,00 % _

respostas foram expressas na Fig. 3 (a). Sobre

10,00 % _

a presença de dor nas ou ao redor das orelhas,

5,00 % _

têmporas ou bochechas, as respostas estão na

0,00 % _

Before Treatment

After Treatment

FIGURE 1 B

50,00 % _

42,45 % 40,00 % _ 30,00 % _

23,80 %

20,00 % _ 10,00 % _

Fig. 3 (b).

90,00 % _ 80,00 % _ 70,00 % _ 60,00 % _ 50,00 % _ 40,00 % _ 30,00 % _ 20,00 % _ 10,00 % _ 0,00 % _

0,00 % _

Before Treatment

Sobre diiculdades, dor ou ambas ao mastigar, falar ou usar seus maxilares, as respostas foram expressas na Fig. 2 (a). Quanto a presença de ruídos na articulação dos maxilares, as respostas estão expressas na Fig.2 (b)

45,00 % _ 40,00 % _ 35,00 % _ 30,00 % _ 25,00 % _ 20,00 % _ 15,00 % _ 10,00 % _ 5,00 % _ 0,00 % _

42,45 %

FIGURE 2 A 28,57 %

80,00 % _ 70,00 % _ 60,00 % _ 50,00 % _ 40,00 % _ 30,00 % _ 20,00 % _ 10,00 % _ 0,00 % _

FIGURE 3 A

28,57 %

Before Treatment

After Treatment

Fig. 1 (a) A dificuldade, dor ou ambas para abrir a boca antes e depois do tratamento (b) o fato de a mandíbula ficar presa,travada ou fora do lugar antes e depois do tratamento

85,71 %

71,42 %

After Treatment

FIGURE 3 B

33,33 %

Before Treatment

After Treatment

Fig. 3 (a) Sobre os maxilares ficarem rigidos, cansados ou apertados com regularidade antes e depois do tratamento (b) a presence de dor nas ou em torno das orelhas, temporas e bochechas antes e depois do tratamento.

Quando perguntados sobre trauma recente com cabeça, pescoço, articulações, ninguém referiu tal evento. Quando perguntados sobre o uso da placa mio relaxante, todos responderam que usavam o aparato oclusal antes do

Before Treatment

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After Treatment

tratamento por períodos que variaram entre os

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10| A técnica da Imaginação Aiva no tratamento do bruxismo | Sonia Lyra, Tânia Maria Bremm Zaura e Daniela Ceranto F. Boleta | 06 - 11 participantes. Um mês depois da terapia, apenas

sintomas psicossomáticos. A ansiedade, a tensão,

33,33% dos participantes ainda usavam a placa

emoções negativas e frustrações causam aumen-

mio relaxante.

to da hiperatividade muscular, redução da taxa

Referente a presença de dores de cabeça, pescoço ou dentes, as respostas estão expressas na Fig. 4.

de secreção salivar durante o sono e vigília e consequente aumento de episódios de ranger de dentes durante o sono. Esta característica é mais prevalente em pacientes adultos que vivem sob tensão emocional, que são hiperativos, agressivos

100,00 % _ 90,00 % _ 80,00 % _ 70,00 % _ 60,00 % _ 50,00 % _ 40,00 % _ 30,00 % _ 20,00 % _ 10,00 % _ 0,00 % _

FIGURE 4

95,23 %

ou que apresentam uma personalidade compulsiva [11].

47,61 %

No caso deste trabalho, os pacientes selecionados para participar da pesquisa haviam sido tratados com a terapia odontológica e fa-

Before Treatment

After Treatment

Fig. 4 A presença de cefaléias, dores no pescoço ou nos dentes antes e depois do tratamento.

Quando questionados sobre o que sentiram ao icar sem usar a placa oclusal apos a terapia, as respostas estão expressas na Fig. 5

ziam uso da placa mio relaxante. O retorno dos sintomas e sinais após a descontinuidade do uso da placa oclusal foi o que motivou a participação dos voluntários na pesquisa. O vislumbre da possibilidade destes pacientes icarem livres do aparato oclusal noturno, abordando os núcleos emocionais inconscientes relacionados ao bruxismo, através da Imaginação Ativa, foi o que

4,70 %

4,70 %

FIGURE 5 33,33 %

motivou a elaborar uma pesquisa cientíica, pain disconfort clenching

42,85 %

9,40 %

avaliando a eicácia da Técnica da Imaginação Ativa na remissão do bruxismo e consequen-

asymptomatic

temente dos seus sinais e sintomas. A Técnica

click

da Imaginação Ativa: por Sonia Regina Lyra:

lingual pressing

JUNG (1875-1961) tomando “a hermenêutica

9,40 %

como solo especíico da psicologia analítica”, desenvolve uma técnica psicológica para a busca

Fig. 5 Sentimentos após a terapia

e compreensão do símbolo que denominou imaginação ativa, tendo como modelo os escritos de santo Inácio de Loyola. Para o psicólogo suíço

V. Discussão O diagnóstico clínico do Bruxismo é realizado avaliando os sinais e sintomas presentes. Na odontologia o tratamento recomendado além de ajustes oclusais, restaurações, ortodontia, é o uso de dispositivos intra-orais, usados pelos pacientes por longo prazo [11].

faltava nos exercícios a resposta que poderia ser dada pelas iguras que surgiam do inconsciente. Amplamente difundido em suas obras completas, mas não sistematizado, o conceito veio a ser revisto nos anos 80 por Robert Johnson e publicado no livro: A chave do reino interior – INNER WORK (1987) [12]. Johnson ampliou

Em se tratando dos aspectos psicológicos,

o método baseado em sua própria experiência e

os portadores do bruxismo são mais vulneráveis

que agora, com inovações devido às novas expe-

a ansiedade ao estresse e ao desenvolvimento de

riências também nós ampliamos a técnica.

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A técnica da Imaginação Aiva no tratamento do bruxismo | Sonia Lyra, Tânia Maria Bremm Zaura e Daniela Ceranto F. Boleta | 06 - 11

11| ALOE F; GONÇALVES LR; AZEVEDO A; BARBOSA RC. Bruxismo durante o Sono. Rev. Neurocências. v.11, n.1, p. 4-17, 2003. 12| JOHNSON, R. InnerWork. A chave do reino interior. São Paulo: Ed. Mercuryo, 1989. 13| ALIGHERI D. A Divina Comédia, vols I e II, 4ª ed. Belo Horizonte Itatiaia 1984. 14| JUNG, C.G. Answer to Job,Princeton University Press,Vol. XI of the Collected Works 1952 15| DISNEY’S THE KIDS; Movie Comedy. Disney Productions; Director Jon Turteltaub, Distributor: Buena Vista, 2002 16| FRANZ, V.M.L. Psycotherapy. Shambhala Publications, Incorporates, 1993.331p.

Imaginação Ativa é essencialmente, um diálogo a ser travado com as diferentes partes de nós mesmos que vivem no inconsciente. Você fala com as imagens e elas respondem. Essas imagens que surgem são de fato símbolos vivos e a essência dessa técnica é a participação consciente do indivíduo na experiência imaginativa. A inalidade principal da técnica é proporcionar a comunicação entre o ego e as partes do inconsciente das quais geralmente nos desligamos e que aparecem na vida diária em forma de sintomas, preocupações, fantasias passivas, etc. Quando se pratica a Imaginação Ativa as coisas mudam na psique, os sintomas são alterados, os desequilíbrios entre as atitudes do ego e os valores do inconsciente são remediados e os opostos complementares podem ser reunidos, porque a função especíica do símbolo é a transformação da energia psíquica. Por exemplo, temos algo vago que nos incomoda, um conlito, uma irritação ou um sintoma que aparece como se fosse físico-biológico. Claro, nenhum sinto-

VI. Conclusão Os resultados dos dois questionários foram comparados e demonstraram que a grande maioria dos participantes teve a sintomatologia dolorosa, a diiculdade de abertura bucal, dor à mastigação, reduzidas após a sessão de Imaginação Ativa, muitos dos participantes abandonaram o uso da placa durante o período avaliado. Conclui-se que a técnica psicoterápica da Imaginação Ativa pode ser utilizada no tratamento do bruxismo. Os resultados parecem ser promissores visto que neste trabalho o sucesso foi evidente, mesmo sendo feita apenas uma sessão de uma hora para cada participante. Salientamos que o tratamento odontológico do paciente bruxomano deve ser levado em consideração como parte do procedimento, para o correto restabelecimento da função mastigatória. No critério de avaliação dos pacientes o tratamento farmacológico deve, em determinados casos ser considerado.

ma deixa de ser também físico-biológico, mas

Este trabalho demonstrou a necessidade

em sua grande maioria estes são expressões de

da técnica da Imaginação Ativa ser considerada

complexos conlitos da psique. Um exemplo li-

como tratamento para o bruxismo e por sinalizar

terário de Imaginação Ativa é A divina Comé-

a possibilidade de cura isto não tem precedente.

dia de Dante [13]; ou Answer to JOB [14] e no cinema o ilme Duas Vidas (título original: Disney´s he kid [15].

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Imagem: reprodução

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Algumas reflexões comparativas sobre as tradições religiosas judaicas, proto-cristãs e gregas arcaicas. Viktor D. Salis Ano I2||número número12||2012 2013

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Algumas relexões comparaivas sobre as tradições religiosas judaicas, proto-cristãs e gregas arcaicas | Viktor D. Salis |13 - 14

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Algumas reflexões comparativas sobre as tradições religiosas judaicas, proto-cristãs e gregas arcaicas Viktor D. Salis*

* Viktor D. Salis Psicólogo pela PUC SP, doutor pela Universidade de Salzburg ( A fenomenologia dos Mitos) e pela Universidade de Genève (Epistemologia Genética pela Universidade de Genève). Professor PUC SP, Universidade de Mogi das Cruzes, Faculdade de Medicina de Jundiaí, Faculdades Metropolitanas Unidas, Faculdade Católica de Santos. (vdsalis@terra.com.br)

Num primeiro olhar, pode parecer-nos que a única coisa em comum que estas duas tradições têm é a sua antiguidade, sendo que a grega pertence às chamadas religiões desaparecidas enquanto culto e a judaica sobrevive galhardamente há milênios e milênios. Na verdade, um exame mais atento revela notáveis pontos em comum, de modo que vale a pena apontá-los e descreve-los.

não quis dar aos homens “a medida de seu uso” e

Comecemos pela própria etimologia da palavra religião: signiica literalmente “re-ligar”, ou seja, unir o homem novamente a Deus. Em ambas encontramos um lugar mítico onde poderemos nos dirigir após a morte. São o conhecido paraíso do judaísmo e os “campos Elíseos” da religião grega antiga. Mas a questão fundamental em ambas as tradições é que propõe ao homem um caminho, aqui na terra e enquanto em vida, para alcançar esta reunião cósmica. Mais ainda, encontramos em ambos os profetas, verdadeiros enviados de Deus, para iluminarem nosso caminho: Moisés para o judaísmo e Orfeu para a antiguidade grega- cujo nome signiica ”aquele que veio curar pela luz”. Estes mensageiros trazem para a humanidade as leis necessárias para se viver, mesmo longe do paraíso, mas que façam os homens imita-lo aqui na terra. Vale recordar de que fomos expulsos do paraíso porque a humanidade cometeu uma falta fundamental – também chamada de pecado original. E qual é seu verdadeiro signiicado; e será que somente os nossos antepassados a cometeram, ou será que se trata de algo que continuaremos a praticar para sempre, afastando-nos assim cada vez mais do divino?

a vida e para a criação, pois facilmente pode des-

Comemos o “fruto da árvore do conhecimento” na tradição judaica; Prometeu roubou “o fogo dos deuses” para dá-lo aos homens, mas

“Não é de ontem, não é de hoje que estas

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desde então os homens não são mais governados pelas leis dos deuses, mas pelo seu desvario. Em ambas as tradições, o divino se afasta dos homens por sua impiedade, porque privilegiaram as conquistas do conhecimento e não a medida de seu uso. Agora está clara a metáfora bíblica e Grecoarcaica: O conhecimento por si só é um risco para truir tudo a sua frente. Eis o homem do sec. XXI. Abrem-se agora as duas grandes questões da condição humana perante a existência: Ética e Verdade. Comecemos por deini-las em seu signiicado original: Ética não é conduta moral- esta se refere aos costumes- mas sim “o estado de alma que aproxima o homem de Deus”; e este estado somente pode ser alcançado quando ele O imita (o homem é o instrumento de Deus). Na tradição judaica isto só pode ser alcançado cumprindo suas leis (os dez mandamentos) que são a medida do uso do saber para a criação e não para a destruição. Já na tradição grega, vemos na Ilíada o ensinamento da lei sagrada de “nascer, viver e morrer com dignidade e honra” para ser aplicada por todos os mortais; e prossegue exaltando o jovem a imitar os deuses tornando-se criador segundo as leis divinas da vida. É sempre oportuno recordar a fala de Antígona de Sófocles, quando interrogada pelo rei Creonte, porque desobedecera a suas ordens de abandonar o corpo de seu irmão aos cães, insepulto: leis existem, (nascer, viver e morrer com dignidade) e ninguém é seu autor, nem mesmo outro rei.

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14| Algumas relexões comparaivas sobre as tradições religiosas judaicas, proto-cristãs e gregas arcaicas | Viktor D. Salis |13 - 14 São dos deuses e entre desobedecer a suas leis e as de um rei, a elas me entrego, mesmo que isto possa me custar a morte. Ademais, sigo-as espalhando a vida e o amor, pois esta é sua lei maior. Não vim aqui para semear o ódio e a morte. E não serei eu a julgar meu irmão pelos seus atos – isto é tarefa dos deuses. A mim, como irmã, compete o sagrado dever de dar-lhe uma morte digna e honrada.” Semelhante grandeza encontramos nos ensinamentos do rei Salomão e em Davi e Golias, para citarmos somente alguns exemplos da tradição judaica. É que a força extraordinária, tanto na helênica como na judaica, reside no fato de serem religiões que celebraram a vida e a criação como seu fundamento ético inabalável. Vejamos agora o segundo conceito fundamental: a Verdade. Mas o que é isto? Será simplesmente a conirmação dos fatos ou a demonstração cientíica? Nada disso! A verdade nas tradições arcaicas é simplesmente a iluminação interior, que advém da certeza de sermos exatamente aquilo que somos, de não enganarmos nem ao outro e nem a nós mesmos, e muito menos impormos a nos mesmos ideais quiméricos – pois a tantos custaram sua saúde e integridade. A verdade reside em bastar-se no que se é, em reconhecer que isto é modesto e grandioso ao mesmo tempo e procurar evoluir, de modo a podermos partir desta vida mais plenos e aperfeiçoados do que chegamos. Lemos na “Tábua das Esmeraldas”, atribu-

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ída a Hermes Trimegisto – o deus dos caminhos na tradição helênica: “O corpo, que os deuses te deram, foi feito para ser completamente gasto – mas gaste-o bem para tua evolução e para servir a criação. Serve os deuses e lembre-se de que a riqueza é um bem destinado ao uso; seu acúmulo é uma coisa vã e tola. Não te esqueças de que nada é eterno aqui e de que tudo aqui deixarásaté mesmo teu corpo e teu nome terás de devolver aos deuses. Tudo aqui é emprestado e somente tua alma te pertence e podes cultivar ou abandonar- é tua a escolha e se assim é, busca os mestres para te guiar de volta para a eternidade.” Não é diverso o ensinamento encontrado na tradição judaica, quando pede ao homem para não passar desta vida sem “ter um ilho, escrever um livro e plantar uma árvore”. De modo simples e preciso, pede-nos para servirmos a Deus, do modo que pudermos – mas com esforço e desapego, por favor! Há muitos outros pontos de encontro entre estas duas belíssimas tradições, mas o espaço não nos permite aqui abordá-los. Cito apenas o número doze, tão importante na Caballa e na tradição helênica: Doze são as tribos de Israel; doze são os deuses da tradição grega: doze são os signos do Zodíaco; doze são os trabalhos de Hércules; doze são os meses do ano e as horas; doze são os apóstolos; doze é o número sacro das pirâmides. Precisa mais para entender de que não se trata de simples coincidência? Quem sabe em outra oportunidade trataremos do assunto com a atenção que ele merece.

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Ilustração: Rogério Borges

Uno e trino: a visão de Deus de Nicolau de Cusa – O amor é uma essência ternária | Sonia Lyra |11 - 20

Aspecto religioso do processo de individuação Regina Maria Grigorio e Sonia Regina Lyra Ano 2 I ||número número12||2012 2013

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Aspecto religioso do processo de individuação Regina Maria Grigorio* e Sonia Regina Lyra** Conheça todas as teorias, domine todas as técnicas, mas ao tocar uma alma humana, seja apenas outra alma humana (Carl Jung).

Resumo Através deste trabalho procura-se oferecer uma introdução às considerações de Carl G. Jung sobre o aspecto religioso do processo de individuação, tendo como objetivo conhecer o comportamento religioso do ser humano em seus aspectos éticos e psicológicos, usando como metodologia o estudo de bibliograias que tratam desse assunto. A observação empírica demonstra que é através da religiosidade que o homem se encontra a si mesmo e vivencia o amor maior, o amor sem medida: que foi designado por alguns autores como o amor de Deus pela humanidade. Inicia-se o trabalho discorrendo sobre a persona, adentrando-se a estrutura da psique através de outros conceitos fundamentais como: inconsciente, si-mesmo, processo de individuação e outros de igual importância para o desenvolvimento desta proposta.Palavras-chave: Bem-aventurança, felicidade, contentamento, terceira margem.

Palavras-chave: Inconsciente, si-mesmo, Jung, processo de individuação, religiosidade.

Abstract

* Regina Maria Grigorio Pós-graduanda em Psicologia Analítica e Religião Oriental e Ocidental – FAVI Faculdade Vicentina - Curitiba - PR. Polo: Guaíra – PR (mgqueen@hotmail.com) ** Sonia Regina Lyra Doutora em Ciências da Religião; Analista Junguiana. Orientadora de TCC (sonia@ichthysinstituto.com.br)

hrough this study we aimed to provide an introduction to considerations of Carl G. Jung on the religious aspect of the individuation process, aiming to meet the religious behavior of human beings in their ethical and psychological aspects, using methodology as the study of bibliographies that address this matter. Empirical observation shows that it is through religion that man inds himself and experiences the greatest love, love without measure, which was designated by some authors as the love of God for humanity. It begins talking about the concept of persona, into the structure of the psyche through other fundamental concepts such as unconscious, self, individuation process and others of equal importance for the development of this proposal.

Keywords: Unconscious, Self, Jung’s individuation process, and religiousness

Introdução Carl G. Jung, em (seus estudos) suas pesquisas, realizou experiências e fez investigações a respeito do inconsciente, “suas estruturas individuais e coletivas e acerca da linguagem simbólica pela qual se exprime” (1967, p. 15). Este trabalho de pesquisa tem como inalidade propor uma relexão sobre o aspecto religioso do processo de individuação, associando-o

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à prática da psicoterapia e sua importância no comportamento do indivíduo. Constata-se que o símbolo, na obra de Jung, surge como a possibilidade de evocar o arquétipo e que por meio dele se contempla a individuação. Uma vez compreendida a importância dos símbolos produzidos pelo inconsciente, resta o problema da interpretação. Jung levou em conta todos os acontecimentos relacionados à sua vida,

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tais como intuições, sonhos, fantasias, seus interesses pelos fenômenos psíquicos e seus questionamentos sobre a origem e a inalidade da vida. Desenvolveu estudos sobre a persona, face externa da psique, considerada como sendo a máscara ou fachada aparente do indivíduo para facilitar a comunicação com o mundo externo, com a sociedade onde ele vive, e os papéis que desempenha para ser aceito pelo grupo social ao qual pertence. “Esses fatores inconscientes devem sua existência à autonomia dos arquétipos” ( JUNG et al., 2008, p. 104).

das profundezas da psique. Já naquela época a re-

Sombra e anima/animus são também conceitos que vêm à consciência e contribuem para a maturidade do psiquismo. O signiicado e a função dos sonhos izeram com que Jung percebesse, a partir da observação de um grande número de pessoas e do estudo dos seus próprios sonhos, que esses dizem respeito, em grau variado, à vida de quem sonha. Quando buscava o conhecimento de si mesmo e o signiicado da vida, percebeu que o único objetivo da psique era o encontro com seu próprio centro, então chamou esse movimento de “processo de individuação”, acrescentando, porém, que: “o processo de individuação só é real se o individuo estiver consciente dele” ( JUNG et al., 2008, p. 213).

nhado por um intenso sentimento de busca por si

O símbolo atua como uma ação mediadora, que auxilia o processo de transformação interno, que leva à totalização, sem que, de modo algum, isso signiique individualismo.

go do objeto. Quanto à persona, é um produto de

O processo de individuação é uma realização criativa e está ligado à busca de si mesmo. A individuação é um processo lento e gradativo de transformação e aponta para a possibilidade da nossa unicidade, última e irrevogável. Trata-se da realização do si-mesmo, no que tem de mais pessoal e de mais rebelde a toda comparação. Poder-se-ia, pois, traduzir a palavra individuação por realização de si-mesmo, realização do si-mesmo [1]. “Em seus estudos sobre religião, Jung percebeu que a cultura do século XX perdera a sua alma, no momento em que perdeu o contato com suas profundezas.” Ele acreditava que toda experiência religiosa apareceria na consciência, a partir

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ligião começava a ser substituída pelos inúmeros afazeres, e diante disso questionava: O que fazer para proporcionar realidade viva ao nosso si-mesmo? Para que direção nos move o luxo da vida? ( JUNG, 1978, p. 163). Nesse sentido, o processo de individuação seria como uma forma de o ser humano alcançar o máximo de sua unicidade, a qual se pode entender como a mais íntima e profunda expressão do ser, através de um processo de crescimento, acompamesmo, que oportuniza a transformação interior.

1. A Persona e a Sombra Persona era o nome que se dava à máscara usada no teatro grego. Deinia os papéis característicos de personagens. Na psicologia, serve também como proteção contra características internas consideradas indesejáveis e, portanto, dignas de serem ocultas. Ao considerar a persona constituída por grande parte pelos materiais coletivos, portanto, Jung descreve: A persona é uma imago do sujeito, constituída em grande parte de materiais coletivos como a imacompromisso com a sociedade: o eu identiica-se mais com a persona do que com a individualidade. Quanto mais o eu identiica-se com a persona, tanto mais o sujeito é aquele que aparenta. O eu é desindividualizado ( JUNG, 2003, p. 153).

No entanto, a persona é também um instrumento precioso para a comunicação. Ela pode desempenhar, com frequência, um papel importante no desenvolvimento positivo. À medida que se começa a agir de determinada maneira, a desempenhar um papel, o ego se altera gradualmente nessa direção ( JUNG et al., 2008, p. 158). Portanto, é necessário que ocorra uma diferenciação entre o ego e a persona no decorrer do desenvolvimento psicológico. Isso signiica tomar consciência de si-mesmo, desenvolvendo um senso de responsabilidade e capacidade de

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18| Aspecto religioso do processo de individuação | Regina Maria Grigorio e Sonia Regina Lyra | 16 - 28 julgamento, os quais podem ser idênticos ou não

Ao deinir a sombra, Jung deixa claro em

aos padrões e expectativas externas e coletivas. É

suas airmações que estão incluídas as variadas e

o caminho de uma busca consciente de um auto-

repetidas referências à sombra, o lado negativo

conhecimento.

da personalidade, a soma de todas as qualidades

Segundo Jung, citado por Samuels, “a sombra é aquilo que não se quer ser”. A questão sobre o conhecimento da sombra é fator importante no processo de autodescobrimento, pois possibilita a

desagradáveis que o indivíduo quer esconder, “o lado inferior, sem valor, e primitivo da natureza do homem, a outra pessoa em um indivíduo, seu próprio lado obscuro” (1978, p. 128).

percepção dos aspectos desconhecidos da perso-

Destacando o lado positivo da sombra,

nalidade e daqueles que não são desejados, que

constata-se que a mesma nasceu conosco para

são, portanto, negados. “A sombra é como uma

proteger todo o material interno com o qual nós

companheira, da qual se deve tomar ciência de

somos incapazes de lidar ou incapazes de aceitar.

seus traços e de suas características” (1988, p. 38).

O ego negativo diz: Não seja autêntico,

A sombra se revela no ser humano toda vez

seja aceitável. “Não se exceda, seja normal. Não

que ele se aventura a passar uma imagem distorci-

faça nada de novo ou diferente. – A sombra diz:

da de si mesmo. O ser humano sempre temeu sua

Olhe para dentro, vá fundo. Isto é o que você tem

própria sombra, pois nela pressente a presença de

que encarar para ser autêntico. É através de mim

tudo que, na verdade, desejaria esquecer ou ingir

(sombra) que se chega à mudança, à transforma-

que nunca existiu.

ção para um ser pleno e livre” (SAMUELS et al.,

A máscara é usada pelo indivíduo em res-

1988, p. 204).

posta à sua necessidade de desenvolver caracterís-

Neste sentido, o indivíduo terá invariavel-

ticas básicas de adaptação social. É o arquétipo da

mente a companhia da sombra em sua viagem

adaptação. Ela é exibida de maneira a facilitar a

evolutiva rumo à individuação.

comunicação com o mundo externo e a sociedade.

Para Johnson, citando Jung, “o caminho

Para Samuels, a sombra representa o que

para a consciência começa quando se aprende a

consideramos de mal e não nos damos conta de que nos pertence, fazendo parte de nós tanto quanto o bem. É parte de si mesmo que deve se tornar consciente, colocando-a a serviço da própria evolução espiritual, sem que seus aspectos aversivos tomem a personalidade. “A pessoa representa a máscara que deve utilizar em sua adaptação à vida social cotidiana” (1988, p. 204). São todos aqueles aspectos da personalidade com que os indivíduos se adaptam ao mundo exterior.

quebrar a unidade primordial da inconsciência original” (1989, p. 49). Inicia-se o processo de classiicar em opostos não só os fenômenos externos que atingem o ser humano, mas, inclusive, suas próprias personalidades e características, suas sombras. A sombra amedronta, pois ameaça a imagem ideal que o ser humano faz de si mesmo. O fator essencial é que uma parte do simesmo foi separada. Depois de separado, o frag-

Em geral a sombra contém valores neces-

mento “ruim” perde contato com a essência do

sários à consciência, mas que existem sob uma

si-mesmo, a parte que consideramos “boa”, por

forma que torna difícil a sua integração na vida

conta de sua aparente ausência de violência, raiva

de cada um.

e medo. Esse é o si-mesmo adulto, o ego que se

O conlito entre o que se é e o que se deseja ser encontra-se no âmago da luta humana. A dualidade, na verdade, está no centro da experiência humana.

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adaptou tão bem ao mundo e às outras pessoas (CHOPRA Et Al., 2010, p. 24). O desenrolar do processo de individuação

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começa em geral com uma tomada de consciência

varão e a conscientização das projeções, para se

da “sombra”, isto é, de um componente da perso-

poder compreender verdadeiramente a sombra:

nalidade que, ordinariamente, apresenta sintomas

A sombra não consiste de omissão. Apresenta-se

negativos. Nesta personalidade inferior está con-

muitas vezes como um ato impulsivo ou inadver-

tido aquilo que não se enquadra ou não se ajusta sempre às leis e regras da vida consciente. O desaio maior para se adquirir equilíbrio emocional é tomar consciência da sombra, o que leva a uma visão mais clara e eiciente da personalidade e do si-mesmo, que é na verdade a totalidade ( JOHNSON, 1989, p. 62).

tido. Antes de se ter tempo para pensar, irrompe a observação maldosa, comete-se a má ação, a decisão errada é tomada, confrontando-nos com uma situação que não tencionávamos criar conscientemente ( JUNG et al., 2008, p. 223).

A plenitude supera a sombra ao absorvê-la. O mal e o malfeito já não estão isolados. Mas, conforme a postura se modiica, descobrimos que

1.1 A Realização da Sombra Este item tratará do desenvolvimento da sombra e sua inluência no processo de individuação. A sombra, segundo Jung, faz com que ignoremos as próprias fraquezas e as projetemos nos outros; esse processo se dá por meio de mecanismos inconscientes, afastando a pessoa de si mesma. Quando o inconsciente se manifesta de forma negativa ou positiva, depois de algum tempo surge à necessidade de readaptar da melhor forma possível a atitude consciente aos fatores inconscientes, aceitando o que parece ser uma crítica (2008, p. 222).

o ecossistema está to-talmente interligado. Os comportamentos de todas as pessoas afetam a todos. Não há parte alguma do planeta que possa ser isolada, como se fosse imune aos danos ecológicos causados por outras partes. A plenitude modiica toda perspectiva (CHOPRA et al., 2010, p. 71). A descoberta da sombra supõe um importante processo de autoconhecimento. Conquistar a sombra não signiica lutar contra ela e sim a transcender, quando se transcende, vai-se além.

1.2 O crescimento psíquico A personalidade, como expressão da totalidade do homem, foi circunscrita por C. G. Jung como sendo “o ideal do adulto, cuja realização

É por meio dos sonhos que se passa a co-

consciente por meio da individuação representa

nhecer aspectos da personalidade que por várias

o marco inal do desenvolvimento humano para

razões se optou por não olhar mais de perto. É

o período situado além da metade da existência”

o que Jung chamou de “realização da sombra”

(2006, p. 64). Somente pode tornar-se persona-

(2008, p. 222).

lidade aquele que é capaz de dizer um sim cons-

Dessa maneira, percebe-se o emprego do termo sombra para a parte inconsciente da personalidade, porque ela sempre aparece nos sonhos

ciente ao poder da destinação interior que se lhe apresenta. Apesar de muitos problemas humanos serem semelhantes, eles nunca são perfeitamente idênti-

sob uma forma personiicada: Depende muito de nós a nossa sombra tornar-

cos. Como se pode analisar na observação de Jung:

se nosso amigo ou inimigo. Às vezes uma deci-

Todos os pinheiros são muito parecidos (ou não

são heroica pode alcançar o mesmo efeito, mas

os reconheceríamos como pinheiro), e, no entan-

esse esforço sobre-humano só é possível quando

to, nenhum é exatamente igual ao outro. Devi-

o Grande Homem dentro de nós (o Self ) ajuda

do a esses fatores de semelhança e disparidade,

o individuo a realizá-lo. Se a pessoa se enche de

torna-se difícil resumir as ininitas variações do

raiva quando alguém lhe aponta um defeito, é ai

processo de individuação. O fato é que cada pes-

que se encontra parte da sua sombra, da qual não

soa tem que realizar algo de diferente, exclusiva-

tem consciência, faz-se necessário a auto-obser-

mente seu (2008, p. 216).

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20| Aspecto religioso do processo de individuação | Regina Maria Grigorio e Sonia Regina Lyra | 16 - 28 Por essa razão, constata-se que é importante

também seus conteúdos, como um todo, são de

permanecer em estado de alerta, não no sentido

natureza psicológica, não importa que conexão

que pressupõe ansiedade, mas, sim, estar cons-

suas raízes possam ter com o instinto. Imagens,

ciente, focando a atenção naquilo que ocorre in-

símbolos e fantasias podem ser designados como

teriormente a cada momento.

a linguagem do inconsciente. “O inconsciente é o

A totalidade deve ser equiparada à saúde. Como tal, é tanto um potencial como uma capa-

responsável pelas escolhas e ações, assim como a adaptação no mundo”, equipara esse processo de

cidade. Ao nascer, o ser humano possui uma to-

adaptação ao mundo. Ou seja, o inconsciente não

talidade fundamental, porém, na medida em que

é estático e rígido, formado pelos conteúdos que

cresce, esta entra em colapso e se reorganiza em

são reprimidos pelo ego. Ao contrário, o incons-

algo mais diferenciado. Expressa deste modo, “a

ciente é dinâmico, produz conteúdos, reagrupa os

realização da totalidade consciente pode ser con-

já existentes e trabalha numa relação compensa-

siderada como o objetivo ou o propósito da vida”

tória e complementar com o consciente ( JUNG

( JUNG et al., 2008, p. 212).

et al., 2008, p. 25).

Os conceitos de totalidade observados nos

Veriica-se que na concepção de Jung, para

estudos junguianos direcionam-se para o melhor

se contemplar uma consciência integrada e des-

entendimento da personalidade e do si-mesmo.

perta, é necessário envolver a união, a integração

Por vezes, sentimos que o inconsciente nos está

do inconsciente e do consciente. O indivíduo

guiando, de acordo com um desígnio secreto. É

passa pelo processo de individuação, onde vai

como se algo estivesse nos olhando, algo que não

ocorrendo essa integração, ou seja, “conteúdos in-

vemos, mas que nos vê – “talvez seja o Grande

conscientes são incorporados e integrados à cons-

Homem que vive em nosso coração e que, atra-

ciência” (OLTEN, 2002, p. 27).

vés dos sonhos, nos vem dizer o que pensa a nosso respeito” ( JUNG et al., 2008, p. 214).

É inútil observar o outro furtivamente para ver como qualquer outra pessoa vai realizando o seu processo de desenvolvimento, pois cada um de nós tem uma maneira particular de autorrealização. Jung chamou de individuação ao processo paulatino de expressão da singularidade, isto é, “a Marca de Deus; o ato de talhar a individualidade, aquele ser distinto e único que está latente den-

É fato que o inconsciente pode encerrar impulsos e desejos que nunca foram conscientes, isto é, nunca foram percebidos pela pessoa, ou, então, que, tendo chegado ao nível consciente em algum momento, foram censurados e voltaram ao inconsciente. O mundo da consciência caracteriza-se sobremaneira por certa estreiteza; ele pode apreender poucos dados simultâneos num dado momento. Enquanto isso, tudo o mais é inconsciente – ape-

tro de cada ser”. Na individuação, o critério certo/

nas alcançamos uma espécie de continuidade, de

errado é substituído por algumas perguntas: con-

visão geral ou de relacionamento com o mundo

vém ou não? Quero ou não quero? Serve ou não

consciente através da sucessão de momentos

serve? Necessito ou não necessito? (OLIVEIRA,

conscientes. A área do inconsciente é imensa e

2007, p. 26).

sempre contínua, enquanto a área da consciência

1.2.1 Jung e o inconsciente

é um campo restrito de visão momentânea. [...] Coloco o inconsciente como um elemento ini-

Jung usa o termo inconsciente tanto para des-

cial, do qual brotaria a condição consciente. As

crever conteúdos mentais que são inacessíveis ao

funções mais importantes de qualquer natureza

ego, como para delimitar um lugar psíquico com

instintiva são inconscientes, sendo a consciência

seu caráter, suas leis e funções próprias. Assim

quase que um produto dessas grandes áreas obs-

como o inconsciente é um conceito psico¬lógico,

curas ( JUNG, 1972, p. 24-25).

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Através da compreensão do que seja o consciente e o inconsciente, Jung mostra o quão signiicante é a fração de inconsciente que impera de forma ainda pouco conhecida pelo ser humano.

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mas anatômicas do passado longínquo) também acontece na formação do psíquico: É um processo que percorre um caminho evolutivo, originando-se da inconsciência, passando

O inconsciente “possui uma linguagem pró-

pela semiconsciência – num momento de sim-

pria, tem sentimentos fortes e quer expressá-los”

biose com a mãe (e com o pai) – até atingir o

( JOHNSON, 1989, p. 11) muitas vezes fala atra-

estágio de uma consciência mais ampliada. “A

vés de metáforas; por essa razão, é difícil se chegar

criança se desenvolve a partir de um estado ini-

à compreensão da importância de suas ações no processo psicológico pelo ser humano. Símbolos são observáveis em cada fase, ao longo da existência humana. Fundamentados nestas observações, é que os psicólogos admitem a existência de uma psique inconsciente: Um símbolo é vivo só quando é para o observador a expressão melhor e mais plena possível do pressentido e ainda não consciente. Nestas condições é operacionaliza a participação do inconsciente. Tem efeito gerador e promotor de

cial inconsciente e semelhante ao do animal, até atingir a consciência: primeiro a primitiva e, gradativamente, a civilizada” (2006, p. 57).

Este caminho se desenvolve de forma natural e segmentada. Após a aquisição da consciência, surge o período onde é preciso se diferenciar dos pais, se relacionar com o mundo e lidar com os próprios desejos. Este desenvolvimento estabelece vínculos fortes entre o “eu” e os processos psíquicos até então inconscientes, e também os separa nitidamente do inconsciente. Deste modo

vida. O símbolo vivo formula um fator essen-

emerge a consciência a partir do inconsciente,

cialmente inconsciente e, quanto mais difundido

como uma ilha alora sobre a superfície do mar

este fator, tanto mais geral o efeito do símbolo,

( JUNG, 2006, p. 56).

pois faz vibrar em cada um a corda aim ( JUNG, 2011, p. 489).

É importante salientar que o fato de Jung relacionar Deus à manifestação inconsciente:

Os símbolos podem ser vistos na infância, na puberdade, na adolescência, na iniciação sexual, na vida proissional, na relação com o dinheiro, nas doenças vividas, nas companhias que se atrai, nas atividades de lazer preferidas, dentre outras. As fortes e especíicas experiências e

[...] não implica que aquilo que se chama inconsciente venha a ser idêntico com Deus ou a ocupar o lugar de Deus. O inconsciente é somente o meio do qual parece brotar a experiência religiosa. Tentar responder qual seria a causa mais remota desta experiência fugiria às possibi-

suas circunstâncias, em cada uma dessas fases e

lidades do conhecimento humano, pois o conhe-

momentos da vida, acrescentadas aos eventos que

cimento de Deus é um problema transcendental

as marcaram, merecem adequadas e compreen-

(2011, p. 55).

sivas leituras. “Durante, e principalmente após essas fases, podem ser observados caminhos ou percursos que denunciam certa ordem implícita ou suprahumana, propondo algo além do que a consciência deseja e percebe”. Saber decodiicar os sinais e símbolos da vida pode se tornar im-

Dessa forma, sabe-se que consciência, por um lado, e consciência do eu, por outro, é campo de registros, um campo de acesso pelo eu. Esse campo varia para cada indivíduo, de acordo com suas capacidades evolutivas.

portante recurso para o encontro consigo mesmo

2 Anima: o elemento feminino

e com o sentido da própria existência (NOVAES,

Uma das maiores contribuições de Jung foi

2005, pp. 81, 91).

a demonstração de que o ser humano é andrógi-

Para Jung, o que acontece, a partir dessa lei, na formação do corpo (passar por todas as for-

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no, o que signiica que combina em si os elementos masculino e feminino.

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22| Aspecto religioso do processo de individuação | Regina Maria Grigorio e Sonia Regina Lyra | 16 - 28 Os conceitos de anima/animus (Anima = alma, em latim) partem da noção de complementaridade entre a consciência e o inconsciente. Para Jung, o homem tem uma alma feminina – a anima - e a mulher, uma alma masculina – o animus. Para Jung, “o que caracteriza a feminilidade da anima é o sentimento, enquanto que o animus está ligado predominantemente ao pensamento racional, essencialmente masculino”. No processo de individuação, “integrar a anima para os homens e o animus para as mulheres é uma das etapas fundamentais, vindo logo depois da integração da sombra e imediatamente antes da realização do si-mesmo” (2008, p. 235). Nesse sentido, o inconsciente se torna parceiro nos anseios peculiares aos seres humanos em processo de busca do si-mesmo:

ou em aspectos diferentes da pessoa; ela surge, portanto, em inumeráveis imagens de iguras femininas ou até mesmo em iguras de animais, como gato, cobra, cavalo, vaca, pomba, coruja – que a mitologia atribui a certas divindades femininas (DOWNING, 1991, p. 27).

Como padrão de comportamento, o arquétipo da anima representa os elementos impulsivos relacionados com a vida, como vida, como um fenômeno natural, não premeditado, espontâneo, com a vida da carne, com a vida da concretude, da Terra, da emotividade, dirigida para as pessoas e para as coisas. Como padrão de emoção, a anima consiste nos anseios inconscientes do homem, em seus estados de espírito, aspirações emocionais, ansiedades, medos, inlações e depressões, assim como em seu potencial

O objetivo secreto do inconsciente ao provocar

para a emoção e o relacionar-se (DOWNING,

toda essa complicação é forçar o homem a de-

1991, p. 27).

senvolver e amadurecer o seu próprio ser, integrando melhor a sua personalidade inconsciente e trazendo-a à realidade da sua vida ( JUNG et al., 2008, p. 241).

O interesse de Jung pelas imagens arquetípicas relete sua ênfase na forma do pensamento inconsciente, em lugar da ênfase no seu conteúdo. Nossa capacidade de responder às experiências na qualidade de criaturas geradoras de imagens é herdada, nos é outorgada pela nossa própria condição de humanos (DOWNING, 1991, p. 8). O animus e a anima, devidamente reconhecidos e integrados ao ego, contribuirão para a maturidade do psiquismo. Podendo ser descrita ainda como imagem numinosa, isto é, como imagem afetiva espontaneamente produzida pela psique objetiva, a anima representa o eterno feminino, em qualquer um e em todos os seus quatro aspectos possíveis e suas variantes e combinações como mãe, hetaira, amazona e médium.

A anima está associada a tendências psicológicas femininas na psique masculina, como os estados de humor instáveis, irracionalidade, a capacidade de amar, a sensibilidade, e ao relacionamento com o inconsciente, entre outras. Portanto, “a anima é a personiicação de todas as tendências psicológicas femininas na psique do homem – os humores e sentimentos instáveis, as intuições proféticas, a receptividade ao irracional, a capacidade de amar, a sensibilidade à natureza e, por im”, mas nem por isso menos importante, o relacionamento com o inconsciente ( JUNG et al., 2008, p. 234). Dentre alguns dos aspectos positivos referentes a anima, Jung destaca: É, por exemplo, responsável pela escolha da esposa certa. Outra função sua igualmente relevante: quando o espírito lógico do homem se mostra incapaz de discernir os fatos escondidos em seu inconsciente, a anima ajuda-o a identiicá-los. Mais vital ainda é o papel que represen-

Ela aparece como a deusa da natureza, Dea Na-

ta, sintonizando a mente masculina com os seus

turae, e a Grande Deusa da Lua e da Terra, que

valores interiores positivos, abrindo assim cami-

é mãe, irmã, amada, destruidora, bela feiticeira,

nho a uma penetração interior mais profunda. É

bruxa feia, vida e morte. Tudo em uma só pessoa

como se um “rádio” interno fosse sintonizado em

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uma onda que excluísse as interferências inopor-

conteúdo que “representavam apenas a possibili-

tunas e captasse a voz do Grande Homem. Esta-

dade de certo tipo de percepção e ação” ( JUNG,

belecendo esta recepção “radiofônica” interior, a

Apud HALL, 1993, p. 34).

anima assume um papel de guia, ou de mediador, entre o mundo interior e o si-mesmo. Como no caso da iniciação dos xamãs; é como surge no papel da Beatriz, do Paraíso de Dante, e também no da deusa Ísis, ao aparecer em sonhos a Apuleius, o famoso autor de O asno de ouro, iniciando-o em uma forma de vida mais elevada e espiritual (2008, p. 241).

Diante do complexo mundo arquetípico feminino, Jung ressalta que a analogia da situação mitológica com a vida comum está na atenção consciente que uma mulher tem de dar aos problemas de seu animus e que toma muito tempo e envolve muito sofrimento: Mas se ela se der conta da natureza deste animus

Cabe salientar que, através das projeções de anima e animus, encontram-se respostas para as simpatias e antipatias sem razão de ser. A anima e o animus são os mediadores entre o ego e o mundo interno, para tanto:

e da inluência que ele exerce sobre sua pessoa, e se enfrentar esta realidade em lugar de se deixar possuir por ela, o animus pode se tornar um companheiro interior precioso que vai contempla-la com uma série de qualidades masculinas como a iniciativa, a coragem, a objetividade e a

Se um homem quiser alcançar a serenidade e

sabedoria espiritual ( JUNG et al., 2008, p. 258).

aquela harmonia interior que, para Jung, passou

O animus, tal como a anima, apresenta

a ser meta suprema da vida, ele deverá redescobrir aqueles aspectos de si mesmo que tinham sido negligenciados; e, para consegui-lo, exige-se o sacrifício parcial da própria função ou atitude que o serviu bem e lhe acarretou sucesso nos anos anteriores. “Assim, tanto o indivíduo cioso de poder como o intelectual precisam corrigir o seu desenvolvimento unilateral” (STORR, 1973, p. 84).

quatro estágios de desenvolvimento: “o primeiro é personiicação da força física. No estágio seguinte, o animus possui iniciativa e capacidade de planejamento; no terceiro torna-se o verbo, na quarta manifestação, o animus é a encarnação do pensamento” ( JUNG et al., 2008, p. 258). Numa colocação mais interior, Jung chamou este arquétipo de imagem da alma, por sua

Uma das chaves para a individuação está

capacidade de nos colocar em contato com nossas

justamente no dinamismo dessas forças psíquicas

forças inconscientes; muitas vezes, ele é a chave

entre masculino e feminino, animus/anima, atu-

para revelar a nossa criatividade (FADIMAM;

ando como um espelho que sirva de referencial

FRAGER, 2004, p. 103).

de auto-observação.

No animus, em seu aspecto positivo, sob a

2.1 Animus: o elemento masculino interior Alguns arquétipos têm grande importância na formação da personalidade e do comportamento, de modo que Jung dedicou-lhes uma especial atenção. Dentre esses arquétipos, cita-se o animus:

forma de pai, se expressam não somente opiniões tradicionais, mas também aquilo que se chama espírito, e de modo particular certas concepções ilosóicas e religiosas universais, uma vez que “o animus na sua forma mais desenvolvida, relaciona a mente feminina com a evolução espiritual, tornando-as assim mais receptivas a novas ideias criadoras” ( JUNG et al., 2008, p. 259).

Existem tantos arquétipos quantas as situações típicas na vida. Uma repetição ininita gravou es-

2.2 O self - símbolo da totalidade

tas experiências em nossa constituição psíquica,

Uma vez que o processo de individuação

não sob a forma de imagens saturadas de conte-

não se confunde com o que se chama de perfei-

údo, mas a princípio somente como formas sem

ção, a construção da personalidade se caracteriza

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24| Aspecto religioso do processo de individuação | Regina Maria Grigorio e Sonia Regina Lyra | 16 - 28 como um constante processo de reorganização do

original. Buscam correspondências no mundo ex-

inconsciente, ou seja, busca-se ter uma identidade

terno. O acoplamento resultante de um potencial

psicológica.

arquetípico de um bebê ativo, com as respostas

O Self representa o ser em sua totalidade e também o centro organizador, autorregulador e integrador, ação que se complementa ao estudar obras de Jung, onde o conceito “de si-mesmo”

reativas da mãe, é então reintegrado para se tornar um objeto internalizado. O processo de integração/reintegração continua por toda a vida (BONFATTI, 2012, p. 1).

oferecia a melhor explicação que era possível ofe-

O self não está inteiramente contido na

recer para um dos mistérios centrais da psique, a

nossa experiência consciente de tempo (na nossa

criatividade aparentemente milagrosa, sua dinâ-

dimensão espaço-tempo), mas é, no entanto, si-

mica centralizadora e suas estruturas profundas

multaneamente onipresente. Além disso, aparece

de ordem e coesão ( JUNG et al., 2008, p. 212).

com frequência sob uma forma que sugere esta

Dessa forma, chama-se a este centro de self, sendo descrito como a totalidade absoluta da psique, para diferenciá-lo do ego, que constitui apenas uma pequena parte da psique ( JUNG et al., 2008, p. 212).

onipresença de uma maneira toda especial; isto é, manifesta-se como um ser humano gigantesco e simbólico que envolve e contém o cosmos inteiro ( JUNG et al., 2008, p. 266). Para Jung, toda realidade psíquica interior

Com relação ao self, pode também ser de-

de cada indivíduo é orientada, em última instân-

inido como um fator de orientação íntima, di-

cia, em direção a este símbolo arquetípico do si-

ferente da personalidade consciente e, através da

mesmo.

investigação dos sonhos, mostra como essa perso-

Em termos práticos, isto signiica que a existên-

nalidade é provocada para um “constante desen-

cia do ser humano nunca será satisfatoriamente

volvimento e amadurecimento”, “mas o quanto

explicada por meio de instintos isolados ou de

vai evoluir, depende do desejo do ego de ouvir ou

mecanismos intencionais como a fome, o poder,

não as suas mensagens”, pois é o ego que ilumina

o sexo, a sobrevivência, a perpetuação da espécie

o sistema inteiro permitindo que ganhe consci-

etc. Isto é, o objetivo principal do homem não é

ência e, portanto, que “esse self se torne realizado”

comer, beber etc., mas ser humano. Acima e além

( JUNG et al., 2008, p. 213).

destes impulsos, nossa realidade psíquica interior

A partir do momento em que o ser parte

manifesta um mistério vivente, que só pode ser expresso por um símbolo; e para exprimi-lo o in-

em busca de sua verdadeira essência e a encontra,

consciente muitas vezes escolhe a poderosa ima-

depara-se com sua totalidade, ou o seu si-mesmo,

gem do Homem Cósmico (2008, p. 270).

pois para ser íntegro é necessário que abranja a totalidade do ser:

Todo ser humano vislumbra sonhos e/ou imagens de forma impessoal, que o levam rumo

Os símbolos do self possuem uma numinosidade e conduzem a um sentimento de necessidade que lhes dá uma prioridade transcendente na vida psíquica. Um self primário ou original é postulado como existente no começo da vida. Esse self primário contém todos os potenciais

à busca da realização do si-mesmo. O self é, muitas vezes, simbolizado por um animal que representa a nossa natureza instintiva e a sua relação com o nosso ambiente. (É por isto que existem tantos animais bondosos e prestimosos nos mitos e contos de fada.) Esta relação

arquetípicos, inatos, que podem receber expres-

do self com a natureza à sua volta e mesmo com o

são de uma pessoa. Em um meio ambiente apro-

cosmos vem, provavelmente, do fato de o “átomo

priado, esses potenciais iniciam um processo de

nuclear” da nossa psique estar, de certo modo, in-

integração emergente do integrado inconsciente

terligado ao mundo inteiro, tanto interior como

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exteriormente. Todas as manifestações superio-

A imagem onírica pode nos iludir, devido a pro-

res da vida estão, de certa maneira, sintonizadas

jeções, ou dar-nos uma informação objetiva. Para

com o contínuo espaço-tempo ( JUNG et al.,

se descobrir qual a interpretação correta, é ne-

2008, p. 275).

cessária uma atitude honesta e atenta e um cui-

A partir das relexões acima citadas, constata-se, segundo Jung, que: “Quando um homem segue as instruções do seu inconsciente, pode re-

dadoso raciocínio. “Mas como acontece em todo processo interior, é o self que, em última instância, ordena e regula nosso relacionamento humano, desde que o ego consciente se dê ao trabalho

ceber e aplicar este dom que permite, de repen-

de detectar estas projeções irreais, ocupando-se

te, fazer da sua vida, até então desinteressante e

delas no seu íntimo, e não exteriormente”. É as-

apática, uma aventura interior sem im, repleta de

sim que pessoas que têm ainidades espirituais

possibilidades criadoras” (2008, p. 265), e, quanto

e uma mesma orientação descobrem-se umas às

à mulher, este potencial pode surgir sob a forma

outras, criando um novo grupo, que se sobrepõe

de dons sobrenaturais.

às organizações e estruturações sociais comuns. Tal grupo não entra em conlito com outros; é

Todo esse processo de busca do si-mesmo

apenas diferente e independente. O processo de

não signiica chegar à perfeição, mas sim ter en-

individuação conscientemente realizado muda,

tendimento de que o progresso interior é algo a

assim, as relações humanas do indivíduo ( JUNG

ser trabalhado durante toda a vida, pois novos

et al., 2008, p. 295).

desaios surgirão o tempo todo durante nossa existência.

O ego deve ser capaz de ouvir atentamente e de entregar-se, sem qualquer outro propósito ou

3. A individuação como experiência religiosa Um dos conceitos centrais de Jung é a individuação, termo usado por ele para designar um processo de desenvolvimento pessoal que envolve o estabelecimento de uma conexão entre o ego e o si-mesmo.

objetivo, ao impulso maior do crescimento. Segundo Jung, o verdadeiro processo de individuação signiica a harmonização com o próprio centro interior (o núcleo psíquico) ou self, que em geral começa inligindo uma lesão à personalidade, acompanhada do consequente sofrimento. “Este choque inicial é uma espécie de apelo”, apesar de nem sempre ser reconhecido

Citando Sonia Lyra, segundo Jung, “invoca-

como tal. Ao contrário, o ego sente-se tolhido nas

do ou não invocado, Deus está presente” (LYRA,

suas vontades ou desejos e geralmente projeta esta

2001, p. 54), e, apesar de suas constantes fugas, a

frustração sobre qualquer objeto exterior ( JUNG

busca fundamental do ser humano é encontrar-

et al., 2008, p. 219).

se. Eis o que sua invocação, consciente ou não, implica, a saber, conhecer, compreender, mesmo o que lhe pareça momentaneamente inacessível, pois em sua essência sabe quão terrível é o medo da solidão, de saber estar distante de sua essência.

Todo indivíduo necessita passar pelo processo de crescimento e maturação, para Jung, o processo de individuação. Como pregava Santo Inácio de Loyola, em obra organizada por Guillermou; nesta obra, por exemplo, ele ensina que,

O processo de individuação é, na verdade,

com a prática dos seus exercícios espirituais, o in-

“mais que um simples acordo entre a semente

divíduo desenvolverá suas potencialidades e res-

inata da totalidade e as circunstâncias externas

ponsabilidades humanas à luz da relexão, sobre

que constituem o seu destino. Sua experiência

sua prestação de contas inal perante seu Criador,

subjetiva sugere a intervenção ativa e criadora de

E assim cita:

alguma força suprapessoal” ( JUNG et al., 2008,

Organizar a disciplina do corpo é relativamente

p. 214).

fácil: o asceta pode estabelecer o que será a sua

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26| Aspecto religioso do processo de individuação | Regina Maria Grigorio e Sonia Regina Lyra | 16 - 28 alimentação, sua bebida, o tempo de sono; isso

para levar ao crescimento, seu desfecho último

tudo é então um simples problema de vontade.

consiste em atingir o estado de Self, no sentido

Não acontece o mesmo na disciplina do espíri-

da centralidade da personalidade” (2002, p. 149).

to: como impedir a imaginação de vagar como

Para alcançar esta centralidade, faz-se necessário

um voo desordenado de mosquitos (1973, pp. 62, 63).

romper com o arquétipo persona e sombra, com o intuito de viver o processo de individuação. Como

O desaio maior da transcendência é ativar

vem sendo dito, sombra e persona atrapalham no

a necessidade que cada ser humano possui de se

processo de individuação. A religião entra nesse

autoconhecer, indo além de suas sombras e seus

contexto, como um fator que favorece ao processo

arquétipos. “A glória da existência humana não

de individuação, quando bem trabalhado.

está nas coisas que nos tornam únicos. está no fato de podermos nos unir à inteligência cósmica; cada um de nós se torna uma parte consciente do todo. Quando isso acontece, ganhamos um mundo que nem chega a ser imaginado pelos pensamentos e sentimentos da vida co¬tidiana”. Quando mais criativa e imaginativa se tornar a mente consciente do ser humano, tanto menos inclinada ao julgamento. “Mas, para que surja qualquer um desses benefícios, temos de experimentar o que a plenitude realmente é” (CHOPRA et al., 2010, p. 77).

A deinição de individuação aparece ainda em outra citação de Jung, onde ele a deine como “um processo religioso que exige atitude religiosa correspondente: a vontade do eu de submeter-se ao si mesmo” (2002, p. 432). No desenvolvimento do processo de individuação, ocorre uma expansão do mundo interior, do qual resulta uma nova personalidade, menos fragmentada. A nova consciência que emerge nas sociedades humanas e tenta conciliar o padrão do

A individuação é uma exigência psicológica imprescindível, a individualidade é o único caminho que a pessoa tem para escapar do coletivo. Na psique coletiva perde-se justamente de vista o seu ser mais profundo. Para Santos, ao deinir o termo religião, Jung não se preocupou

medo que norteou o comportamento humano nesses últimos duzentos anos e que separou ciência de religiosidade, trabalho de alegria, sexo de afeto, e Deus do mundo, cede lugar ao paradigma do amor, que é a energia de criação, manutenção e recriação da vida.

com os credos e rituais das religiões, mas com

Goldbrunner chama a atenção para o fato

as experiências religiosas originais que decorrem

de que “a individuação é um processo espiritual

por meio do indivíduo em relação à prática re-

de formação da personalidade” (1961, p. 138).

ligiosa. A religião, para ele, não precisa ter seu

Segue dizendo que seus caminhos são tão va-

apoio na tradição e nem na fé, mas sua verdadei-

riados quanto são os indivíduos existentes, po-

ra origem encontra-se nos arquétipos; por isso,

rém trata-se de uma experiência intima e muito

ele entende que religare expressa a essência da

poucos conseguem transportar-se para a dispo-

religião (2006, p. 30).

sição de espírito de outrem e experimentar seus

Na seguinte citação de Jung, vemos como o

sentimentos.

mesmo discute a respeito da individualidade es-

O ser humano se fortalece ao experienciar

piritual: A individualidade assim chamada espi-

a busca pelo si-mesmo. De acordo com Jung, [...]

ritual é também uma expressão da corporalidade

todos os momentos da vida individual em que

do indivíduo, ambas são, por assim dizer, idênti-

as leis gerais do destino humano rompem com

cas. Após ter explicado como funciona o aparelho

as intenções, as expectativas e concepções da

psíquico, em Jung, “no qual o processo de indi-

consciência pessoal são, ao mesmo tempo, eta-

viduação ocorre como algo natural e necessário

pas do processo de individuação, que é a re-

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alização espontânea do homem total. Quanto

o símbolo uniicador representa a experiência de

mais o homem se torna consciente do seu eu

Deus (1961, p. 173).

pessoal, mais se distancia do homem coletivo, que é ele próprio, criando com isso uma opo-

Considerações finais

sição. No entanto, como o si-mesmo tende

Espera-se então que ocorra um amadure-

sempre para a totalidade, a atitude unilateral

cimento no processo de desenvolvimento psico-

da consciência é corrigida e compensada, e o

lógico. Isso signiica tomar consciência de nós

ego é chamado a se integrar a uma personali-

mesmos, desenvolvendo um senso de responsa-

dade mais ampla ( JUNG, Apud ARMANDO,

bilidade e capacidade de julgamento, que poderão

2006, p. 77).

ser idênticos ou não aos padrões e expectativas

Apesar de fazer parte da mesma sociedade

externas e coletivas, ou seja, ter conhecimento de

e do mesmo processo civilizatório, quanto mais o

si mesmo. Isso é verdadeiramente o processo de

ser se submete ao processo de individuação, mais

individuação.

ele se diferenciará em sua conduta em relação às

Este processo corresponde ao decorrer na-

normas, padrões, regras, costumes e valores cole-

tural de uma vida, na qual em que o indivíduo se

tivos. O ser representa, então, uma combinação

torna o que sempre foi. E porque o homem tem

única dos potenciais existentes no coletivo. Tudo

consciência, um desenvolvimento desta espécie

o que uma pessoa aprende como resultado de

não decorre sem diiculdades; muitas vezes, ele é

experiências é inluenciado pelo inconsciente co-

um processo diversiicado e perturbado, porque a

letivo, que exerce ação orientadora no início da

consciência se desvia sempre de novo da base ar-

vida. Sendo assim, o ser nasce com predisposição

quetípica instintual, pondo-se em oposição a ela

para pensar, sentir, perceber, de maneiras especíi-

( JUNG, 2002, p. 49).

cas. O desenvolvimento dessas predisposições vai depender das experiências vividas pelo ser. Quanto maior o número de experiências, maiores são as chances de essas imagens latentes tornaremse manifestas, e um ambiente rico em oportunidades é necessário ao processo de individuação (TOLEDO, 2006, p. 63). Com clareza intensa, Goldbrunner retrata essa sensação única, onde somente pessoas capazes de ser verdadeiras em sua busca interior são capazes de experimentar

Todo processo de organização psíquica, desde o nascimento (organização do ego, complexos etc.), tem como objetivo o desenvolvimento do individuo ou, mais precisamente, do que é mais próprio de cada individuo. Conclui-se, portanto, que a tomada de consciência por parte do homem aparece como o resultado de processos arquetípicos predeterminados em linguagem metafísica, como uma parte do processo vital divino. Em outros termos: “Deus se manifesta no ato humano de relexão”

a convergência de todas as suas energias e instintos da alma para um ponto central, enquanto o ego passa a ocupar uma condição periférica. A partir de então, se dá seu efeito sobre a personalidade, e dessa transformação experimenta-se o novo centro da psique, e assim se pode sentir o quanto a vida é pura, a energia psíquica é

( JUNG, 1979, p. 234). A individuação direciona o ser humano para a realização do si-mesmo, não se importando em satisfazer o ego. Essa postura permite que as pessoas se encontrem, uma vez que, ao se permitir a busca do si-mesmo, o ser humano despe-se da

pura, esse sentimento todo peculiar pode apa-

armadura, trabalha seus medos, pois, “a meta da

recer como símbolo na representação pictorial

individuação não é outra senão a de despojar o

do sonho ou da visão. Na qualidade de símbolo

si-mesmo dos invólucros falsos da persona, assim

transcende toda compreensão racional, pois é a

como do poder sugestivo das imagens primor-

expressão da atividade criadora. Sob esse aspecto,

diais” ( JUNG, 2011, p. 270).

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Ilustração: Rogério Borges

Uno e trino: a visão de Deus de Nicolau de Cusa – O amor é uma essência ternária | Sonia Lyra |11 - 20

O percurso para a sétima morada The Journey to the Seventh Mansion Albertina Laufer Ano 2 | número 2 | 2013

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30| O Percurso para a Séima Morada | Alberina Laufer | 30 - 39

O Percurso para a Sétima Morada The Journey to the Seventh Mansion Albertina Laufer* Resumo Este artigo tem como objetivo investigar a forma como se dá o percurso para a sétima morada, em toda pessoa que se dispõe a investir no caminho da interioridade, considerando o caminho apontado por Teresa de Ávila, na Obra Castelo Interior ou Moradas. Tal investigação far-se-á acompanhar dos comentários de Edith Stein e das analogias feitas por ela. A sétima morada é apresentada como a parte mais elevada do castelo, ou o centro da alma, local onde Deus repousa e de onde emana toda claridade de luz. Considerado como arquétipo, o centro da alma, é o símbolo fundamental e principio ordenador e regulador da psique e é designado de si-mesmo ou self (Selbst), sendo o centro de toda a personalidade. Em razão disto, o caminho psicológico e o caminho espiritual podem ser apresentados como duas realidades complementares e possíveis a im de que a alma se descubra e tome posse de sua realidade profunda, isto é, do seu centro ou da sétima morada.Palavras-chave: Bem-aventurança, felicidade, contentamento, terceira margem.

Palavras-chave: Teresa de Ávila, Edith Stein, Castelo Interior, Sétima Morada, Self.

Abstract his article aims to investigate the journey to the seventh mansion of every person that is willing to invest in the path to interiority, considering the way indicated by Teresa of Ávila’s work he Interior Castle or he Mansions. Such research will be accompanied by Edith Stein’s commentaries and the analogies made by her. he seventh mansion is presented as the highest part of the castle, or the center of the soul, where God rests and from which all light brightness emanates. Considered as an archetype the center of the soul is the fundamental symbol and the arranging and regulative principle of the psyche and it is designated as the Self (Selbst), being the center of the whole personality. Because of this, the psychological way and the spiritual path can be presented as two complementary and possible realities so that the soul discovers itself and takes possession of its profound reality, that is, of its center or of the seventh mansion.

Keywords: Teresa of Ávila, Edith Stein, he Interior Castle, the Seventh Mansion, Self.

* Albertina Laufer Licenciada em pedagogia com habilitação em administração escolar. Especialista em counseling. Especialista em psicologia analítica e religião oriental e ocidental pelo ICHTYS – Instituto de Psicologia e Religião. Mestra em teologia - PUC/Pr. (albertinalaufer@gmail.com)

1. Aspectos introdutórios As Sagradas Escrituras, já de início, no relato bíblico da criação (Gn, 1,1-2,4), apresentam o ser humano como sendo o ápice da obra criada por Deus. “Então Deus disse: Façamos o homem à nossa imagem e semelhança [...] E Deus criou o homem à sua imagem; à imagem de Deus ele o criou; e os criou homem e mulher” (Gn 1,2627). O texto bíblico narra por três vezes que Deus criou o homem à sua imagem, revelando-lhe, dessa forma a importância que lhe cabe na obra da criação. No homem encontra-se estampada a

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presença de seu Criador e a esta ele deve assemelhar-se. Para evidenciar esta realidade, Edith Stein recorre ao estudo de Santo Tomás de Aquino, o que torna claro o lugar central ocupado pela antropologia em seus escritos. Em sua obra Potencia e Ato, discorre sobre a passagem da imanência para a transcendência, demonstrando que a característica principal dos seres humanos e das coisas viventes é a de permanecer, ao mesmo tempo, em potência e em ato. Por ato ela compreende que o ser humano tende a algo diferente, possui uma

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exigência e um impulso para algo a mais. Porém, o novo contido na obra de Stein “consiste em conservar os polos paradoxais da dinâmica da vida na sua contínua tensão: interioridade-exterioridade; inito-ininito; o fugaz e o eterno” (FERNANDES, 2009, p. 231). Neste sentido, o ser humano é potencialmente aberto a algo e projetado dialeticamente para a passagem da potência para ato.

encontra-se na coragem e no caminho dos gran-

A realidade da imagem de Deus (imago Dei) citada no texto da criação aparece também no Salmo 139. Nele o salmista percorre um caminho introspectivo profundo, descobrindo a presença de um Deus que o conhece mais do que ele próprio e, não bastando isso, está mais presente nele do que ele está em si mesmo.

Edith Stein as horas dedicadas a sós no colóquio

Senhor, tu me sondas, e me conheces. Tu conheces o meu assentar e o meu levantar; de longe entendes o meu pensamento. Esquadrinhas o meu andar, e o meu deitar, e conheces todos os meus caminhos. Sem que haja uma palavra na minha língua, eis que, ó Senhor, tudo conheces (Sl 139, 1-4).

os místicos abrem mão da rotina quotidiana e se

O texto apresenta a imago Dei em contato direto com o próprio mistério de Deus. Retrata o encontro íntimo que ocorre entre a profundidade do mistério da imagem, com o próprio Mistério que a transcende e que, ao mesmo tempo, permanece em profunda comunhão com ela.

2. O mergulho em Deus

des santos, dentre eles São João da Cruz, Santa Teresa de Ávila, Santa Teresa Margarita, Santa Teresinha, mestres inspiradores da vida carmelita, sobre cujas vidas e obras Edith Stein teceu alguns comentários com a inalidade de dar a conhecer ao mundo católico o signiicado da entrega de si vivida pela pessoa que assume este ideal. Para com o Senhor constituem o fundamento da vida carmelita e “aquilo que Deus realiza nas almas durante as horas de oração interior está escondido aos olhos dos homens e se constitui em graça sobre graças” (STEIN, 1998b, p. 282). No intuito de fazer a experiência do centro, lançam aprofundando o desconhecido e obscuro. Entrando em si, têm contato com a sua essência e com a realidade do próprio Deus que é o centro de todos os Centros. Na tentativa de tornar a experiência compreensível, recorrem às metáforas e às imagens , como referências de sentido. Para Storniolo algo semelhante ocorre na experiência de análise psicológica, por meio de um método que se desdobra para além das realidades patológicas. Neste sentido, Jung apresenta o “processo de individuação como o processo normal pelo qual um ser se desenvolve para tornar-se o que é” (apud HUBERT, 1997, p. 8). Com a descoberta do arquétipo do Centro

Para chegar até Deus, toda pessoa tem necessidade de passar pela imago que existe dentro de si e quando se chega a ela, chega-se também ao próprio mistério de Deus. Ao ser imagem do divino, o humano adota suas características, de modo particular quando faz a experiência de seu centro. Ao fazê-la, faz ao mesmo tempo a experiência da totalidade da imagem e da experiência de um Deus incomensurável. “Há na experiência do centro, [...] uma experiência da totalidade de si mesmo que, unida à experiência do centro divino, torna-se experiência do todo universal” (STORNIOLO, apud HUBERT, 1997, p.7).

ou Si-Mesmo, Jung o apresenta como o centro

O exemplo deste mergulho para o Centro

simultaneamente, à dimensão misteriosa da qual

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regulador de todo o psiquismo, pelo qual se pode fazer alusão ao que os místicos denominam de imago Dei. Esta descoberta o auxiliou na construção de uma ponte entre a Psicologia como ciência da alma e a experiência que os místicos têm da alma. Embora apresentada com conotações diferentes, a característica fundamental de uma e outra tende para a experiência religiosa, compreendida como a experiência de re-ligação. “No processo místico, religar a pessoa à imago Dei e ao próprio Deus. No processo de individuação, religar o Eu consciente ao Si-Mesmo e,

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32| O Percurso para a Séima Morada | Alberina Laufer | 30 - 39 o Si-Mesmo é relexo ou imagem” (STORNIO-

entre o desenvolvimento psicológico e a ascese.

LO, apud HUBERT, 1997, p. 9). Neste sentido,

Nesse contexto, a ascese cristã é entendida não

compreende-se que a experiência psicológica

como im em si, mas como caminho que conduz

se constitui numa caminhada, uma vez que não

a Deus. Para Winckel, a ascese “não visa fazer

pode chegar à plenitude voltada somente ao Deus

super-homens” (WINCKEL, 1985, p. 43), mas

imanente na alma, mas deve reconhecê-lo como o

direciona ao despojamento, ao desapego. “Mergu-

Deus transcendente, ou totalmente Outro. Neste

lhar na ascese sem Deus, traria grandes perigos,

momento, cede terreno para o campo da mística.

porque se cairia inconscientemente, mas quase

O grande perigo no qual incorre o ser humano, está em considerar Deus somente na sua

infalivelmente, no egoísmo e no orgulho” (WINCKEL, 1985, p. 43).

imanência, perigo esse que o conduz a um narci-

O objetivo de toda ascese cristã, é levar

sismo fechado. Para tanto, é necessário salientar

o iel a uma coniguração cada vez maior com

que Jung nasceu e morreu num contexto cristão

a vontade de Deus em sua vida, a ponto de ele

e que as “referências que ele faz a Deus, referem-

renunciar a si mesmo, tomar a sua cruz e optar

se às representações humanas de Deus” (BONA-

pelo seguimento. “Se alguém quiser vir comigo,

VENTURE, apud Winckel, 1985, p. 10), porque

renuncie-se a si mesmo, tome sua cruz e siga-

o buscando somente dentro de si perdem de vis-

me” (Mt 16,24-28). Ressalta-se aqui, que a ina-

ta a alteridade que Nele está presente. Em suas

lidade da cruz no calvário não foi um im em si

Memórias, no capítulo sobre o confronto com o

mesmo cujo sentido acabou com a morte, mas se

inconsciente, Jung deixa registrado o reconheci-

constituiu num caminho de sofrimento na Cruz

mento destes limites:

que culminou com a ressurreição de Cristo. Do

Todos os escritos são, de certa forma, tarefas que me foram impostas de dentro. Nasceram sob a pressão de um destino. O que escrevi

mesmo modo a inalidade da ascese não é aniquilar, mas servir a vida, tanto a da natureza racional, quanto a da graça.

transbordou de minha interioridade. Cedi a pa-

É possível uma aproximação entre a análise

lavra ao espírito que me agitava [...]. Para mim

psicológica e ascese, pois, em ambas a experiêcia é

o essencial sempre foi dizer o que tinha que di-

vivida interiormente. Compreende-se, dessa for-

zer. Minha impressão é que iz tudo o que me

ma, que os “elementos de tal ascese são frutos da

foi possível. Naturalmente, poderia ter sido mais e

vida interior de cada um e não se constituem em

melhor, mas não em função da minha capacidade

padrão válido para todos”. (WINCKEL, 1985,

( JUNG, 1975, p. 195).

p.45). Há sim uma diferença entre o conheci-

Winckel interpreta as palavras de Jung dizendo que chegar ao Si-Mesmo é o caminho que prepara para “ultrapassar o psicológico e o simbólico para se abrir ao ilimitado do sagrado” (WINCKEL, 1985, p. 36). Ilustrativo a respeito deste caminho é um fragmento de uma das cartas de Jung: “Mas o si mesmo não pode tomar o lugar de Deus, embora possa, às vezes, ser um receptáculo da graça divina” ( JUNG, apud WinckeL, 1985, p. 26).

mento psicológico da alma, que se dá através do inconsciente e o conhecimento teológico e místico da alma pela ascese, porém essa diferença não está na essência da alma, mas sim na diversidade de caminhos e direções; “Órgão da percepção de Deus, ele não é Deus, mas tende a no-lo dar a conhecer” (WINCKEL, 1985, p. 55).

3. Psicologia e Mística: caminhos complementares Os místicos que conhecem a alma por

A intuição do Si-Mesmo como receptáculo

dentro não se enganam. Exemplo disso é o ca-

da graça divina, leva ao estabelecimento de laços

minho proposto pela aventura de Tereza de Ávi-

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la através da imagem do Castelo Interior e suas

periências vividas pelas incursões nos caminhos

Moradas , que pode ser percebido também como

da interioridade. Ela propõe então, uma nova for-

um percurso de autoconhecimento e de conhe-

ma de se viver a espiritualidade, ao mesmo tempo

cimento do Self. A proposta de passagem em

em que dá indícios de que Deus pode também

cada uma das moradas evidencia o caminho da

ser encontrado para além das Sagradas Escrituras.

alma humana que realiza um diálogo/confronto de veriicação entre a experiência externa e a experiência interna. Paulatinamente vão acontecendo os processos de puriicação e crescimento. À medida que vai avançando no processo, o habitante do Castelo vai sendo conduzido a uma aproximação àquela morada central, nuclear, onde há uma presença. Neste processo, segundo Jung, o ego vai conquistando sempre mais a liberdade para conviver, arriscar-se, confrontando-se com a sua sombra. A pessoa passa a fazer um caminho no qual percebe as mudanças e as transformações em si, até chegar a aproximar-se da totalidade do centro, o Self. Na sua obra Ser Finito e Ser Eterno, Edith Stein utilizou o termo Castelo da alma, no momento em que se referia à obra de Santa Teresa de Ávila. Para ela, a qualidade do Castelo Interior é insuperável pela experiência da autora que, no momento em que escreve, já deveria ter chegado ao mais alto grau da vida mística, bem como pela sua extraordinária capacidade de criar um léxico e com palavras simples descrever as vivências interiores: Para a Santa, não era possível dar a entender os sucessos que acontecem no interior do homem, sem antes esclarecer a si mesma no que consiste exatamente esse mundo interior. Para tanto, ocorreu-lhe a feliz imagem de um castelo com muitas moradas e salas. O corpo é descrito como a parede próxima ao castelo. Os sentidos e poderes espirituais (inteligência, memória e vontade), às vezes como vassalos, por vezes, como sentinelas, ou simplesmente como habitantes do castelo. A alma, com seus numerosos cômodos, assemelhando-se ao céu, no qual há muitas moradas (STEIN, 1998, p. 414-415).

preender a aproximação de Edith Stein com a obra de Santa Teresa de Ávila, trazer presente a lembrança de suas visitas ao casal de amigos Conrad Martius. Foi na casa deles que Edith Stein, pela primeira vez, entrou em contato com a obra de Teresa de Ávila e a partir deste contato, diz ter chegado ao encontro com aquela realidade que ela denominava ser a Verdade. Edith Stein referese a este evento da seguinte maneira: Sem escolher, peguei o primeiro livro que me veio às mãos: era um enorme volume que tinha como título ‘Teresa de Ávila livro da vida’. Iniciei a leitura e prendi-me totalmente, não interrompendo antes de chegar ao im do livro. Assim que o fechei, fui obrigada a confessar a mim mesma: ‘Esta é a verdade’(EDITH, apud SPIRITU SANCTO, 1959, p. 30). Estudiosa da vida de Edith Stein, Spirictu Sanctu relata que, possivelmente, daquele momento em diante, “Deus tinha se apropriado dela, e ela não mais o teria abandonado” (SPIRITU SANCTO, 1959, p. 30). Já para Ales Bello, este acontecimento foi certamente tão iluminado, pois permitiu que Stein pudesse redescobrir a experiência religiosa, por ela um tanto esquecida na adolescência. Nesta época estava reletindo a respeito da temática do ser humano, conduzida por Husserl. Por essa razão, segundo a autora, podese pensar também em termos de uma posterior clariicação sobre a estrutura do ser humano. Clariicação esta que a conduzirá a uma escavação ainda maior para encontrar o núcleo profundo e pessoal que caracteriza cada pessoa. “O encontro com a obra de Teresa de Ávila causou certamente um intenso movimento na vida espiritual de Edith Stein, abrindo a ela horizontes anteriormente

Segundo Edith Stein, Teresa de Ávila descreve surpreendentes e misteriosas aventuras, ex-

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É de suma importância, para poder com-

desconhecidos” (MANGANARO, et al 2006, p. 70-71 ).

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34| O Percurso para a Séima Morada | Alberina Laufer | 30 - 39 Stein compreende que não é somente pela

do castelo. Para ela a atitude de permanecer por

ilosoia que se pode entrar em contato com a in-

fora do castelo, sem conhecer a própria casa, soa

terioridade e compreendê-la, mas se pode chegar

como estranha e patológica, pois as almas encon-

a ela por meio do caminho percorrido e proposto

tram-se enfermas e mergulhadas apenas nas coi-

pelos místicos e, portanto, para ela Santa Tere-

sas exteriores, que dão a impressão de não haver

sa serve de exemplo. Compreendendo que Santa

remédio nem possibilidade de fazê-las entrar em

Teresa percorre um itinerário que não é o da inte-

si mesmas. Pelo fato de estarem tão habituadas

lectualidade acadêmica, Stein apreende que para

com as coisas que existem fora do castelo, acabam

se chegar à verdade, muitos podem ser os cami-

por se tornar semelhantes a elas.

nhos, mesmo que ainda esta verdade seja encontrada parcialmente.

Neste primeiro estágio, a alma encontrase numa fase de vivência na presença da cobiça

Aprofundando suas relexões a respeito do

sexual ou o lugar das satisfações instintivas. Mas

ser humano, Stein vai sempre mais percebendo

toda a obscuridade ali existente, só tem sentido se

que Teresa de Ávila não tinha intenção de fazer

percebida em relação à luz que reside e ilumina as

um estudo minucioso a este respeito, mas sim

últimas moradas e a esta parece tanto mais fulgu-

apresentar a possibilidade que este possui de

rante, a partir do momento em que a alma estiver

entrar em contato com Deus. Percebe, ainda, a

envolvida por aquilo que a Santa denomina de

eicácia e a atualidade da descrição espontânea

negrume ou fosso das primeiras moradas.

da Santa a respeito de sua própria experiência. Tal descrição valoriza um trabalho arqueológico, que conduz a pessoa a uma maior aproximação

Embora sendo a primeira morada, esta é também uma morada extremamente rica e de grande valor. Quem consegue lapidar toda a de-

de sua interioridade, caminho anteriormente já

formação provocada pelos animais, cria possibili-

indicado por Santo Agostinho. Alerta que, além

dades e não deixa de seguir adiante no processo.

da oração e da meditação, existe a necessidade

A este fato Jung também deu grande importância

do autoconhecimento que é relativo ao conheci-

e caracterizou como a retirada das máscaras ou

mento que o “ser humano tem sobre Deus, ainda

das projeções. Não é um processo fácil devido à

que obscuro e imperfeito” (ALES BELLO, apud

força com que estas realidades agem sobre a alma.

Manganaro, 2006. p. 76). Conhecimento este

Por isso, a pessoa tem necessidade – conforme as-

que exige cada vez mais da alma um “trabalho

sinala Santa Teresa - de recorrer a Deus.

lento, perseverante e corajoso, que nada tem de espetacular, mas que, progressivamente nos ensina a nos vermos tais como somos na realidade” (WINCKEL, 1985, p. 57).

Comentando a segunda morada, Edith Stein comenta que ali a alma já percebe certos apelos de Deus, embora não se trate ainda de “vozes interiores, que se fazem sentir na pró-

Stein ao comentar a realidade das moradas,

pria alma, mas chamados externos e que a alma

faz notar que os muros que circundam o caste-

percebe como sendo uma mensagem de Deus”

lo compreendem o seu exterior, ao passo que na

(STEIN, 1998, p. 416-417). Como exemplo des-

sala principal habita Deus. Diz ela que “entre

tes chamados destaca: as palavras de um sermão

estes dois extremos (que, é óbvio, não devem ser

ou passagens de livros que para a alma soam como

entendidos espacialmente), se encontram as seis

se tivessem sido escritos para ela, certas doenças,

moradas que circundam a mais central (a sétima)”

sofrimentos ou outras mensagens, bem como os

(STEIN, 1998, p. 415). Porém, salienta que os

momentos de oração. Embora a alma viva ain-

moradores que circulam por fora ou até mesmo os

da no e com o mundo, estes chamados tocam o

que permanecem próximos ao muro, não chegam

seu interior, tornando-se para ela um convite para

saber nada a respeito do que acontece no interior

entrar dentro de si. À medida que se aproximam

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do centro, as almas vão sendo dotadas de maior

apresentados pelo pensamento moderno. Isto se

sensibilidade para acolher o convite.

dá porque o arquétipo do centro, juntamente com

Comentando essa terceira morada, Edith Stein destaca que nela “encontram-se as almas que acolheram de coração o chamado de Deus”

seus múltiplos componentes (espiritual, psíquico, biológico, histórico e social, individual e coletivo, conteúdos conscientes e inconscientes), contém

(STEIN, 1998, p. 417). Tais almas, esforçam-se

em si a unidade (BONAVENTURE, 1975, p. 20).

constantemente a im de ordenar a sua vida em

O homem moderno corre sempre o risco de

conformidade com a vontade divina. Exercitam-

sofrer a inlação, considerando o fato de julgar-se

se no cuidado de evitar o pecado, mesmo que ve-

que nem mesmo seria capaz de cometer pecado

nial. Dedicam-se regularmente à oração, às práti-

algum, ainda que venial. Entretanto, Teresa faz

cas penitenciais, como também na realização das

um convite ao exercício da humildade. Nesta eta-

boas obras. “Quando provadas por duras provas,

pa é necessário o desnudamento e a experiência

estas servem para demonstrar-lhes que, todavia

do despojamento de tudo.

estão fortemente apegadas aos bens terrenos” (STEIN, 1998, p. 417), de modo que, pela sua boa vontade, são agraciadas com determinadas consolações, embora ainda através de sentimentos completamente naturais tais como: lágrimas de arrependimento, devoções sensíveis na oração e satisfação pela realização de boas obras. Na Psicologia Analítica, o entendimento da necessidade do ego que estabelece uma relação vital com o Si-Mesmo é para assegurar a própria integridade do mesmo. A manutenção do eixo de integração do ego dependente do Self é fundamental para o prosseguimento no caminho rumo ao centro. Assim entendido, o reconhecimento do ego para com o Self é um processo contínuo, uma vez que lhe é intrínseco o dilema da

Para Stein, ao ingressar na quarta morada, a alma começa a receber graças especiais, dispondo-se a abandonar-se completamente nas mãos de Deus. Aqui não se trata do movimento da alma a Deus, mas de Deus em direção à alma, o que se concretiza na diferença entre consolações e delicadezas, sendo que as últimas procedem diretamente de Deus e proporcionam a oração de quietude. Começam aqui as graças sobrenaturais, diicílimos de explicar, a menos que sua Majestade se encarregue disso. [...] agora as moradas se encontram mais perto do aposento do Senhor (o centro do castelo de luz), e nelas há coisas tão delicadas que nossa mente, por mais que se esforce,

inlação, isto é, de entender-se merecedor ou até

não tem capacidade para sugerir sequer uma ideia

mesmo responsável pelo pouco realizado, sendo

de como explicá-las adequadamente. É necessá-

tentado a apropriar-se pelo processo de inlação

rio ter a experiência para compreender, pois aqui

do fogo dos deuses. Em relação a esse perigo, Te-

existe uma inefabilidade ( JESUS, 1981, p. 71).

resa acrescenta: “Deus une à sua grandeza o nosso trabalhinho, conferindo-lhe grande valor, sendo o próprio Senhor a nossa recompensa” ( JESUS, 1981, p. 109). O processo de desenvolvimento comporta também estágios nos quais o eu passa a atribuir a si qualidades que ultrapassam as suas medidas, gerando a famosa inlação psicológica, da qual decorrem numerosos conlitos, tanto em nível ilosóico quanto em nível existencial.

É um processo de interiorização que não se adquire pelo entendimento e nem tampouco pela imaginação. É um estado de quietude que depende somente de Deus, de quando Ele quer e como quer. Por isso é necessário “que se diminua a atividade do entendimento e da imaginação. As potências devem ser empregadas em Deus, com seu próprio esforço, enquanto podem atuar livremente” (STEIN, 1998, p. 420). Do contrário,

Ao contrário, o homem que vive e pensa

airma Stein, serviria somente para causar aridez

em função do centro escapa aos pseudoproblemas

na alma, que acabaria prejudicando a si mesma

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36| O Percurso para a Séima Morada | Alberina Laufer | 30 - 39 devido aos esforços. No entanto, isso somente é

truindo a casa na qual morre para transformar-se

possível para aquelas almas que se tenham de-

em uma linda e branca borboleta, assim acontece

morado nas moradas anteriores, como aconselha

na alma. (STEIN, 1998, p. 423).

Teresa.

Este é um movimento que acontece na

Na quinta morada, se percebe a surpreen-

alma quando “com o calor do Espírito Santo, co-

dente transformação que experimenta a alma

meça a beneiciar-se do auxílio que Deus concede

embebida com a oração. Stein comenta que, en-

a todos” ( JESUS, 1981, p. 108) e quando se valem

quanto a alma na oração de quietude encontra-

dos meios essenciais que lhes são coniados por

se como que em sonhos, agora entra em oração

Deus por meio da Igreja, tais como: a conissão

de união. É o estágio em que a alma encontra-

frequente, as boas leituras e a escuta dos sermões.

se como que adormecida. “Aqui o amor é assim:

São eles potentes remédios para a alma. “Assim

não entende como, nem o que deseja. Em suma,

começa a alma a construir a casa onde vai mor-

está como quem morreu inteiramente ao mundo

rer” (STEIN, 1998, p. 423). Trata-se da vida es-

para viver mais em Deus” ( JESUS, 1981, p. 101).

condida com Cristo em Deus, como muito bem

Assim sendo, não há espaço para a imaginação e

airma o apóstolo: “Vós estais mortos e vossa vida

a memória e nem mesmo o entendimento pode

está escondida com Cristo em Deus.” (Col, 3,3).

causar obstáculos. Nem mesmo “o demônio pode

Trata-se daquilo que a alma pode tolher de si, isto

entrar para causar dano” (STEIN, 1998, p. 422).

é, do amor próprio, da vontade própria, o desa-

Diz ainda Edith que, “durante o breve espaço da

pego das realidades terrestres, colocando em seu

união, a alma não compreende o que lhe ocorre”

lugar a oração, a mortiicação, bem como as obras

(STEIN, 1998, p. 422). No momento em que

de penitência.

acontece a união, a alma não consegue perceber o que nela se realiza. Segundo Edith, “a Santa chegou assim, pela própria experiência interior, a uma verdade de fé até então por ela ignorada” (STEIN, 1998, p. 422).

Ao comentar a sexta morada, Stein diz que ainda não é o “lugar de repouso para a alma. Seu anelo visa à união estável e duradoura que se conseguirá somente na sétima e, portanto, a alma é provada com sofrimentos internos e externos

Por meio da utilização da metáfora do bi-

mais intensos” (STEIN, 1998, p. 427). Passa por

cho da seda Santa Teresa expressa a mudança e

violentos tormentos interiores. Nada lhe parece

a transformação da alma, o que para a Psicologia

penetrar no íntimo e até a oração mental se torna

seria a transformação que ocorre na personali-

impossível uma vez que a alma não encontra dis-

dade, pela ampliação da consciência, após um

posição para tal. Nesta etapa, há a “impossibili-

intenso processo de análise interior. Da mesma

dade de rezar e a alma não encontra consolo nem

forma com a qual o bicho da seda no casulo vai se

em Deus e nem nas criaturas” (STEIN, 1998, p.

transformando, assim a alma ou a personalidade

427). Daí surge a necessidade da dedicação às

alcançam os níveis (estágios) ou moradas sempre

obras de caridade tão recomendadas por Teresa.

mais elevados. O mesmo ocorre com a alma em oração nesta morada: “quão transformada sai ela daqui, depois de estar imersa na grandeza do Senhor” (ÁVILA, 1984, p. 110). A este propósito Stein comenta:

No entanto, malgrado todos os sofrimentos, não passa despercebida à alma, o quão próxima encontra-se do Senhor.

Mesmo estando ela,

muitas vezes, descuidada e não se lembrando de Deus, este a desperta com seu toque repentino,

Como o óvulo, tão pequeno e duro, com o

semelhante a um trovão sem ruído. É um toque

calor adquire vida e começa a alimentar-se com

que não produz dor, mas que “sente-se a ferida

as folhas da amoreira, e de modo que a lagarta se

sem atinar para quem a feriu [...]. É dor aguda –

torna gorda e forte, de si vai tirando a seda e cons-

ao mesmo tempo - que saborosa e suave. Ainda

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que a alma quisesse, não poderia deixar de senti-

intensa a felicidade de que se sente inundada!

la” ( JESUS, 1981, p. 144).

Parece querer, o Senhor, naquele momento, ma-

Acontece aqui o que a Santa denomina de arrebatamento. Geralmente acontece quando Deus quer revelar a ela alguns segredos e eles lhe

nifestar à alma a glória do céu, de um modo mais elevado que em nenhuma outra visão ou gosto espiritual” ( JESUS, 1981, p. 235-236).

icam de tal forma na memória que jamais con-

Stein faz questão de evidenciar os profundos

segue esquecê-los. São momentos tão intensos

efeitos que esta união proporciona para a alma; O

que dão a impressão de que o espírito sai do cor-

primeiro é um esquecimento de si. Encontra-se

po, não podendo a alma dizer se está nele ou não.

de tal forma transformada, que não mais se re-

“Parece-lhe que toda inteira, foi transportada a

conhece. “Não se lembra de que haverá Céu para

outra região muito diferente desta em que vive-

ela, nem vida, nem honra, porque se emprega in-

mos” ( JESUS, 1981, p. 172). Nesta experiência

teiramente em promover a glória de Deus” ( Jesus,

de êxtase, Deus comunica-se diretamente a alma

1981, p. 242). Não possui pretensões em ser coisa

e infunde-lhe o desejo de servi-Lo e fugir de to-

alguma. “Prefere ser tida em nada, exceto quando

das as coisas que não a direcionam a este im.

entende que de algum modo contribui para au-

Na sétima morada, a alma já foi tomada sobrenaturalmente como esposa. “Antes de consumar o matrimônio espiritual, a introduz em sua morada, que é a sétima” ( JESUS, 1981, p. 228).

mentar um pouquinho a honra e glória de Deus. Para esse im, de muito boa vontade sacriicaria a vida” ( JESUS, 1981, p. 243). Salienta a necessidade de a pessoa não se descuidar dos seus afa-

É o local e o momento no qual a esposa recebe

zeres básicos, como comer e dormir, bem como

o beijo do amado. É onde a corça é saciada pela

de cumprir para com as obrigações de seu estado.

água e a paz acontece, lugar da presença total de

Trata-se, segundo Teresa, de disposições interio-

Deus. É onde ela experimenta a felicidade com-

res sempre mais necessárias. O segundo efeito é

pleta que se estabelece na presença, em plenitu-

um grande desejo de padecer. Entretanto, sem

de, do Dono e habitante principal do castelo. É,

inquietações que eram próprias de outros tem-

segundo Stein, a companhia Divina que jamais

pos. “Uma alma chegada a este ponto tem ânsias

abandonará a alma.

tão extremas de que nela se cumpra a vontade de

Segundo Bonaventure, a sétima morada representa o centro, que pode também signiicar a casa de cada um. “Aqui, na última das moradas, passa-se de outra maneira. Nosso bom Deus quer tirar-lhe as escamas dos olhos” ( JESUS, 1981, p. 230). É o Senhor quem introduz a alma nesta

Deus, que acha bem tudo quanto sua majestade faz. Se quiser lhe mandar padecimentos – sejam bem vindos! Se não quiser, não ica desconsolada como antes” ( JESUS, 1981, p. 243). Possui enorme desejo de servir, contribuindo assim para a glória de Deus.

morada, o Centro mais profundo dela mesma e,

Para Santa Teresa, na sétima morada vive-

ali estando, cessam os movimentos ordinários das

se um grande desapego de todas as coisas. A úni-

faculdades e da imaginação, de modo que a alma

ca vontade que permanece na alma é a de estar

ica paciicada. Chegada neste ponto do castelo, a

ocupada exclusivamente com Deus. Neste está-

alma não mais estará sujeita aos conlitos das mo-

gio, não existem mais as securas e os sofrimen-

radas precedentes. É um estado no qual ela vive a

tos interiores. “Há, pelo contrário, uma contínua

constante presença do Amado e tal presença lhe

lembrança de Nosso Senhor e tal afeto por ele,

basta e sacia. Estabelece-se aqui o matrimônio

que desejariam ocupar todo o tempo em seus lou-

espiritual, realidade da união misteriosa que so-

vores. Quando se distraem, o mesmo Senhor as

mente pode ser realizado neste Centro mais ín-

desperta do modo acima dito” ( JESUS, 1981, p.

timo. As portas nesta morada estão abertas. “É

245). A alma encontra-se num estado de quie-

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38| O Percurso para a Séima Morada | Alberina Laufer | 30 - 39 tude quase contínua e tem certeza que procede

animais e longe da unidade paradisíaca” (BONA-

de Deus.

VENTURE, 1996, p. 99).

Segundo Santa Teresa, é na sétima morada

Vista a partir do Centro (Cristo), a exis-

que a alma se paciica, harmoniza-se e encontra

tência transparece com uma nova luz, onde ali

repouso, encontrando-se distante de todas as lu-

se pode descobrir que tudo procede de Deus ao

tas. Ali estando, torna-se semelhante a Deus, se

mesmo tempo em que para Ele tudo converge.

diviniza e goza de um bem aventurado repouso.

Ali tudo se confunde com a sua divindade e com

Pode-se ainda aludir o estado da alma nesta mo-

o seu eterno brilho. Por meio desta experiência, a

rada ao que Mestre Eckhart airma como sendo

alma é chamada a ultrapassar sua condição pura-

a realidade na qual “o homem exterior pode estar

mente terrestre, descobrindo a condição que lhe

ativo, enquanto que o homem interior perma-

abre as portas para a transcendência.

nece totalmente livre e inalterado” (ECKHART, 2006, p. 154).

Compreende-se que o Centro transcende o eu. É a morada de Deus na alma, o palácio da

4. Considerações Finais Empenhada no destino do caminhar, avançando para cada uma das moradas, paulatinamente a alma vai sofrendo os processos de puriicação e crescimento. Neste sentido, o ego vai conquistando sempre mais a liberdade para conviver, confrontando-se com sua sombra, trilhando por um caminho em contínua transformação, rumo à totalidade do seu centro, o Self, até habitar deinitivamente na morada principal do Castelo. Certamente que entre a tentativa de aproximação das realidades psicológica e espiritual, não existe uma profunda identidade, mas a analogia é tal, a ponto de não se poder negar. É de grande importância ilustrativa a utilização das imagens do castelo e das moradas, por meio das quais, Teresa pode mostrar a realidade e também a complexidade da alma. E não somente ela, mas ainda toda a pluralidade de expressões no acontecer da vida.

mais formosa envergadura, sendo ao mesmo tempo a razão na e pela qual as pessoas e todas as criaturas existem. Assim entendidas, as diversas salas e moradas do castelo, trazem presentes as mais variadas situações da condição humana em seus diversos estágios e que, aos poucos, vai sofrendo um processo de profunda humanização e, na medida em que se humaniza, vai consequentemente se divinizando. Segundo Stein o objetivo de Santa Teresa ao descrever a simbologia do Castelo Interior foi apresentá-lo como casa de Deus e tornar compreensível o que a própria Santa teria experimentado a respeito do chamado e da intenção de Deus para com a alma humana, evitando que a mesma se desviasse caindo na exterioridade e conduzindo-a para a realização de sua própria vocação que é a união no seu Centro interior. Isso acontece porque a alma, enquanto imagem do Espírito de Deus possui a missão de apreender todas as coisas criadas, a ponto de co-

No entender de Teresa, as pessoas que se

nhecê-las e amá-las. Assim procedendo, poderá

encontram fora do castelo poderiam ainda ser

compreender a própria vocação, realizando-a de

comparadas ao estado do homem após a queda,

forma adequada. Entrar em contato profundo

momento em que passa a viver num estado de

consigo, equivale a uma aproximação gradativa

caos, na confusão ou completa ignorância, nos

de Deus. As transformações interiores impulsio-

estágios obscuros, e até mesmo na bestialidade

nam a alma ao autoconhecimento genuíno, sus-

e na total inconsciência. Assim estando, a vida

citado pelo descobrimento contínuo do mundo

se sujeita ao espaço comum das leis da natureza,

interior fazendo com que a alma abandone a

dissolve-se e massiica-se, voltando à condição

falsa imagem do próprio eu, que muitas vezes é

do “homem terrestre que vive à semelhança dos

baseada na imagem feita pelos outros.

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O Percurso para a Séima Morada | Alberina Laufer | 30 - 39

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Compreende-se que a vivência mística, assim como é descrita por santos como Santa Tereza D’Ávila ou São João da Cruz, oferece uma contribuição muito precisa no que se refere à experiência religiosa e à individuação humana. Stein percebeu que o eu pode se voltar para sua interioridade, identiicando diversas vivências e diferentes graus de profundidade e que estas podem ocupar na alma, um lugar mais central e outros mais supericiais ou periféricos. Considera-se ainda, que este encontro com o A Sétima Morada ou o Centro é fundamental e determina a forma com a qual a pessoa vai também de encontro com as situações de morte que a vida lhe apresenta, não se deixando tomar pelo desespero diante da crueldade das circunstâncias impostas. Profundamente convicta da sua missão, a alma encontra o seu lugar mesmo em meio do desespero humano. A exemplo de Cristo na cruz, posiciona-se em atitude de compaixão e devoção para com os que vivem ao seu redor e sofrem condições adversas. Estando ancorada em seu Centro, meta e im do processo de individuação, a alma encontra a possibilidade de enfrentar os acontecimentos do mundo sem que estes lhe determinem o seu estado interior a não recuar diante da possibilidade da entrega total diante dos apelos da vida. Portanto, compreende-se que a experiência religiosa e, de modo particular, a experiência mística, constitui-se numa dialética entre procura e encontro. Nela estão presentes atividade e passividade, onde o eu e o Outro se empenham na atitude de encontrar e ser encontrado, o que ativa e dinamiza positivamente toda a estrutura da pessoa, que por sua vez, contagia os espaços

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nos quais está inserido. Ancorada em seu na Sétima Morada ou em seu Centro, a alma encontra a paz, fazendo dela a sua verdadeira morada, lugar do encontro em que Amado e amante podem habitar na recíproca doação de si. E onde a paz habita, a vida acontece e loresce em toda a sua abundância, num processo constante de decantação criativa.

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A assimilação psicológica do mal Ana Luisa Testa* e Sonia Regina Lyra** Resumo A psique humana é composta pelos mais diversos conteúdos, tanto conscientes quanto inconscientes. Normalmente, por questões adaptativas, a consciência seleciona para si aqueles conteúdos que considera valiosos, icando imersos no inconsciente aqueles que são considerados “maus”, apenas por serem contrários à atitude adotada pelo ego. Essa forma de funcionamento, apesar de ter seu valor adaptativo, traz consequências negativas para o individuo, já que esses conteúdos desprezados podem forçar sua expressão através de sintomas, patologias, projeções e assim por diante, deixando o ego à mercê da inluência dessas forças inconscientes. A saída é uniicar novamente a psique, assimilando essas forças inconscientes através da compreensão simbólica dos conteúdos reprimidos, sendo o primeiro passo a compreensão de que aquilo que é considerado “mau” possui caráter relativo. Esse trabalho é o que possibilita a realização da personalidade originária, que pode trazer um signiicado único à existência humana.Palavras-chave: sonhos, psicoterapia, processo de individuação.

Palavras-chave: integração psíquica, assimilação, símbolo, mal, energia psíquica.

Abstract

* Ana Luisa Testa Psicóloga clínica, graduada pela Universidade Estadual de Londrina. Especialista em Psicoterapia Corporal e em Psicologia Analítica (ICHTHYS – Instituto de Psicologia e Religião) (analuisatesta@gmail.com) ** Sonia Regina Lyra Doutora em Ciências da Religião; Analista Junguiana. Orientadora de TCC (sonia@ichthysinstituto.com.br)

he human psyche is composed of the most diverse components, either conscious or unconscious. Normally, for adaptive reasons, the consciousness apprehends contents it judges valuable, leaving immersed in the unconscious whatever it considers “evil”, just because it is contrary to the attitude of the ego. his model, despite its adaptive value, brings negative consequences to the individual, once the components ignored by the consciousness may be exteriorized through symptoms, pathologies, projections and so forth, leaving the ego at the will of such unconscious forces. he solution would be to mend the psyche back to one again, assimilating those unconscious forces through the symbolic comprehension of the repressed psychic energy, being the comprehension that what is considered good or evil possesses relative character the irst step. his work is what makes possible to realize the originating personality, the one that can bring a unique meaning to the human existence.

Keywords: psychic integration, assimilation, symbol, evil, psychic energy.

Introdução A psique possui uma linguagem que fala a partir do inconsciente através do uso de símbolos. Essa linguagem é rica em signiicados e expressa os modos de ser da energia psíquica. Para que a consciência possa comunicar-se e transformar-se com seu mundo interior, esses símbolos devem ser compreendidos e assimilados por ela. Jung (2008a) diz que o símbolo converte

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a energia psíquica em imagem e a representa de forma equivalente. A transformação da energia por meio da assimilação consciente do símbolo é um processo que existe desde o início da humanidade, e ainda continua no homem moderno. Mas de que serve, ou quais seriam as consequências da transformação da energia psíquica inconsciente? É essa pergunta justamente que o presente texto pretende discutir, e mais especiicamente sobre a transformação e a assimilação

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42| A assimilação psicológica do mal | Ana Luisa Testa e Sonia Regina Lyra

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do mal. O que pode ser adiantado é que esse processo serve para libertar o homem da compulsividade e do apetite dos instintos, dissolver as projeções desse conteúdo, assim como deixar à disposição da consciência essa força psíquica, libertando a alma da esfera da inconsciência ( JUNG, 2011).

ego ( JUNG, 2008b).

Vale a pena ressaltar que, sem transformação, não haveria modo de a vida perpetuar-se. Então, em última instância, a transformação da psique equivaleria à renovação da própria vida, com novas formas, imagens e sabores ( JUNG, 2008).

tude de unilateralidade, que deverá ser compen-

1 Estrutura, conteúdo e dinâmica da psique

quanto não assimilar aquilo que considera mal,

Para que seja possível compreender a questão da assimilação do mal para a psicologia analítica é importante que o leitor retome primeiramente alguns conceitos básicos, tais como dinâmica, estrutura e conteúdos da psique humana, e mais adiante, no texto, o conceito de símbolo como o veículo transformador da energia psíquica. Começando com esses conceitos, Jung (2008b) airma que a psicologia, enquanto ciência, trata primeiramente dos conteúdos, da estrutura e da dinâmica da psique, sendo a consciência a esfera à qual o cientista ou o psicólogo pode ter acesso direto, e obter dados para sua observação. Através dela podem ser expressos conteúdos provenientes do inconsciente. A consciência é como uma superfície que cobre a vasta área do inconsciente – área essa pouco conhecida, com determinada estrutura e conteúdos, observáveis apenas indiretamente, através de seus produtos, tais como sonhos, imaginação ativa, fantasias, sintomas, e assim por diante.

1.1 A consciência

ge do inconsciente durante o desenvolvimento psicológico normal, e é forçado a se estabelecer como algo deinido, distinto e direcionado. Ele diz “sou isso, e não aquilo”. Essa característica, apesar de crucial para a adaptação, cria uma atisada pelo inconsciente até que o ego amadureça e possa assimilar os pares de opostos (EDINGER, 2008). Por possuir uma atitude unilateral e se ter em alto valor, o ego não poderá se expandir enruim e pouco valioso. Assimilar essas tendências sombrias à personalidade traz consequências notáveis para o ego ( JUNG, 2011).

1.2 O inconsciente pessoal e o inconsciente coletivo Apesar de os conteúdos inconscientes não serem diretamente observáveis, é possível classiicar seus conteúdos em duas ordens: uma de natureza pessoal e outra de natureza coletiva. Os de natureza pessoal são aqueles que podem ser relacionados com a vivência do indivíduo. Material reprimido, percepções subliminares, memórias e os complexos constelados ( JUNG, 2008b). Esses complexos constelados no inconsciente pessoal possuem uma espécie de identidade própria. São personalidades com relativa independência dentro da psique. Essas personiicações independentes são capazes de atuar e de inluenciar a vida consciente do individuo, mesmo contra sua vontade. Mas, se o inconsciente fosse composto apenas por conteúdos adquiridos durante a vida do indivíduo, estes facilmente poderiam ser es-

É consciente aquilo que se relaciona com o complexo do ego. O que é conhecido é aquilo que diz respeito ao eu. Logo, a consciência pode ser entendida como os fatos psíquicos que se encontram associados ao complexo do

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O ego – centro da consciência – emer-

gotados durante uma análise. Porém o inconsciente nunca é desativado, continua a produzir seus sonhos e fantasias, muitos dos quais ultrapassam a esfera das vivências pessoais ( JUNG 1987).

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Esses conteúdos que ultrapassam a vivên-

Mas, apesar de ser a princípio ilusória, a

cia pessoal são próprios do inconsciente coletivo.

unidade da psique pode ser considerada uma

Não podem ser atribuídos a experiências indivi-

meta, desde que os conteúdos do inconsciente

duais; são como que “padrões” arcaicos próprios

sejam assimilados pela consciência. Esse tra-

da humanidade em geral, e possuem um caráter

balho é o que possibilita a realização da perso-

mítico ( JUNG, 2008b).

nalidade originária, e que pode trazer um sig-

Esses padrões – denominados arquétipos – funcionariam como uma predisposição para produzir conteúdos iguais ou semelhantes entre os indivíduos da espécie humana ( JUNG, 2008c).

niicado único à existência humana. Essa meta pode ser chamada de processo de individuação ( JUNG, 2001).

2 O símbolo como veículo transformador da energia psíquica

Até agora, foi possível perceber que a es-

Para que o homem resgate sua unida-

trutura da psique humana é composta por três

de – ou personalidade originária - ele precisa

camadas distintas: consciente, inconsciente e in-

assimilar na consciência a energia psíquica in-

consciente coletivo. Cada uma dessas camadas

consciente. Essa personalidade originária foi

conta com seus conteúdos próprios, sendo que

denominada self e, para Jung (2008), empirica-

na consciência encontram-se aqueles que se re-

mente, o self é uma imagem da meta a se cum-

lacionam ao complexo do ego e, portanto, estão à

prir. Mas a inalidade do homem de se realizar

disposição do eu; no inconsciente pessoal outros

enquanto uma unidade não depende apenas de

complexos – com personalidades autônomas,

sua vontade. É antes uma força que move os

nem sempre em concordância com a personali-

conteúdos inconscientes em direção à consci-

dade do ego; e no inconsciente coletivo encon-

ência. A natureza inconsciente anseia pela luz,

tram-se os arquétipos – formas padronizadas de

a qual, no entanto, se contrapõe. A energia psí-

ser – comuns a toda espécie humana.

quica quer se transformar para atualizar-se na

Apesar dessa complexa e segmentada es-

vida consciente.

trutura psíquica, a consciência com frequência

E o processo de transformação da natu-

ilude-se, ao acreditar que possui completa inde-

reza inconsciente é realizado através da função

pendência em relação ao inconsciente.

transcendente, produtora de símbolos capazes

Gostamos de pensar que somos uniicados; mas isso não acontece nem nunca aconteceu. Real-

de uniicar os pares de opostos existentes entre o consciente e o inconsciente ( JUNG, 1980).

mente não somos senhores dentro de nossa pró-

Esses pares de opostos surgem da seguin-

pria casa. É agradável pensar no poder de nossa

te maneira: o inconsciente com frequência toma

vontade, em nossa energia e no que podemos fazer. Mas na hora H descobrimos que podemos fazê-lo até certo ponto, porque somos atrapalhados por esses pequenos demônios, os complexos. Eles são grupos autônomos de associações, com tendência de movimento próprio, de viverem sua vida independentemente de nossa intenção.

uma atitude de complementação e compensação em relação à consciência, já que ela tende a adotar formas unilaterais de funcionamento – por questões de adaptação. Esta natureza unilateral é compreensível, pois as exigências da vida por direção e estabilidade são acentuadas. Apesar de

Continuo airmando que o nosso inconscien-

servir à adaptação, essa forma de funcionamento

te pessoal e o inconsciente coletivo constituem

traz inconvenientes, pois inibe todos os elemen-

um indeinido, porque desconhecido, número de

tos psíquicos que parecem ser incompatíveis com

complexos ou de personalidades fragmentárias

a atitude adotada pela consciência. Esses ele-

( JUNG, 2008b, p. 87).

mentos estimulam uma contraposição na esfera

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44| A assimilação psicológica do mal | Ana Luisa Testa | 41 - 49 do inconsciente, energeticamente proporcional

Se, porém, a estrutura do complexo do ego é

ao seu oposto. É aí que a função transcendente

bastante forte para resistir ao assalto dos con-

trabalha, na tentativa de unir no símbolo as duas

teúdos inconscientes, sem que se afrouxe desastrosamente sua contextura, a assimilação pode

atitudes antes opostas ( JUNG, 2011).

ocorrer. Mas, neste caso, há uma alteração não

Mas, uma vez que o texto discute a impor-

só dos conteúdos inconscientes, mas também do

tância da assimilação do mal, é possível pensar

ego. Embora ele se mostre capaz de preservar

que este permanece na penumbra do incons-

sua estrutura, o ego é como que arrancado de sua

ciente, porque a consciência identiica-se ape-

posição central e dominante, passando, assim, ao

nas com os aspectos relativos ao bem. Quanto

papel de um observador passivo a quem faltam

mais alguém acreditar ser o portador exclusiva-

os meios necessários para impor sua vontade em qualquer circunstância, o que acontece não tan-

mente do bem, mais fortalecido ica o mal para

to porque a vontade se acha enfraquecida em si

contrapor-se e compensar a atitude unilateral da

mesma, quanto, sobretudo, porque certas consi-

consciência.

derações a paralisam. Quer dizer, o ego não pode

Os símbolos aparecem em todas as pro-

deixar de descobrir que o aluxo dos conteúdos

duções do inconsciente, como por exemplo, os

inconscientes vitaliza e enriquece a personali-

sonhos, as fantasias e a imaginação ativa. Um

dade e cria uma igura que ultrapassa de algum modo o ego em extensão e em intensidade. Esta

dos princípios da interpretação dessas produções

experiência paralisa uma vontade por demais

dentro da psicologia analítica é justamente não

egocêntrica e convence o ego de que, apesar de

interpretá-los de maneira literal, e sim procurar

todas as diiculdades, é sempre melhor recuar

o sentido oculto que o símbolo traz ( JUNG,

para um segundo lugar, do que se empenhar em

2008b).

combate sem esperança, o qual termina inva-

O símbolo não é uma alegoria nem um semeion

riavelmente em derrota. Deste modo a vontade

(sinal), mas a imagem de um conteúdo em sua

enquanto energia disponível se submete paulati-

maior parte transcendental ao consciente. É ne-

namente ao fator mais forte, isto é, à nova igura

cessário descobrir que tais conteúdos são reais,

da totalidade que eu chamei de self [...] ( JUNG,

são agentes, com os quais um entendimento

2011, p. 174).

não só é possível, mas necessário [...] ( JUNG, 2008c, p. 67).

Dito isso, pode-se perceber que é condição necessária para o resgate da personalidade

Parte desses produtos pode acessar a cons-

originária que o ego seja receptivo à vida sim-

ciência, enquanto outra parte pode permanecer

bólica, assim como deve ser forte o suiciente

na penumbra ou completamente inconsciente, e

para não se dissolver no processo. Essa atitude

por isso só pode ser desvendada indiretamente.

torna possível o diálogo entre o inconsciente e o

Através da compreensão do sentido do símbolo

consciente, através da compreensão do símbolo

é possível ligar as camadas mais profundas do

que transforma a energia psíquica (EDINGER,

inconsciente com o centro da psique consciente ( JUNG, 2008b). Sem a compreensão não há assimilação. A função transcendente produz o símbolo, mas

1989).

3 A importância da assimilação da libido inconsciente através dos símbolos

sem a colaboração do ego as camadas da psique

No tópico anterior foi descrito o conceito

não se ligariam, e a personalidade originária –

de símbolo e algumas condições para que a ener-

self – não emergiria. O parágrafo abaixo explica

gia psíquica – ou libido – possa ser assimilada

bem o papel do ego nesse processo de uniicação

através da compreensão do sentido que o símbo-

da psique:

lo traz nas diversas produções do inconsciente.

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A assimilação psicológica do mal | Ana Luisa Testa | 41 - 49

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No tópico presente o que se discute é a importância de se assimilar a libido inconsciente. Para isso, é preciso entender primeiramente o que é e para que serve a própria libido.

até mesmo uma nação inteira. Mas, como dito anteriormente, é a libido que pode insular o ego com vida. Se a energia psíquica icar represada no inconsciente, a vida

Jung identiica o termo libido como sendo

do homem não lui mais. As coisas perdem o

o mesmo que energia psíquica. Para ele, a libido

sentido, a vida perde o brilho, a paixão se esvai.

indica um desejo, apetite ou impulso desprovi-

Essa repressão é experimentada pelo ego como

do de valores morais. Pode ser vista como um

diminuição da alegria e da vontade de viver. O eu

instinto vital contínuo – uma vontade de existir.

ica sem energia para utilizar em suas atividades

É percebida como o impulso do sono, da fome,

diárias, e em casos extremos é tomado por um

da sede, do sexo, dos estados emocionais e dos

estado de completa depressão. Sendo assim, a

afetos. O appetitus e a compulsio fazem parte de

assimilação dessas energias é de extrema impor-

todos esses instintos. A quantidade de energia

tância, pois não a projetará, não icará a mercê

envolvida em cada um deles é variável. Do pon-

dessas forças inconscientes e tampouco perderá

to de vista energético, a psique é extremamente

sua vitalidade ao represá-las ( JUNG, 2008c).

dinâmica, e um instinto pode ser despotencializado a favor de outro ( JUNG, 2008c).

Essa vitalidade pode ser sentida imediatamente quando alguns conteúdos acessam a cons-

No entanto, a libido nem sempre está à

ciência, ou seja, quando o ego entra em contato

disposição na consciência, pois mantém sua au-

e é receptivo à vida simbólica. Esses conteúdos

tonomia em relação à vontade do eu. Tampouco

podem causar fortes emoções, curas, conversões

sempre atua a favor do ego, por seu caráter com-

religiosas, ou simplesmente resgatar um pedaço

pulsivo e apetitivo. Pode eventualmente domi-

da vida que icou represado por muito tempo.

ná-lo, mas também é a única capaz de insulá-lo

Esse contato provoca um alargamento na cons-

com vida. Cícero, citado por Jung, diz: “Vontade

ciência, desde que o indivíduo consiga assimi-

é aquilo que se deseja com a razão. Aquilo, po-

lar seu conteúdo. Nesse trabalho de assimilação

rém, que é contrário à razão e veementemente

a interpretação psicológica dos símbolos é de

excitado chama-se libido ou desejo desenfrea-

grande valor, já que são estes últimos que fazem

do, que se encontra em todos os tolos” ( JUNG,

a ponte entre o profundo abismo que pode exis-

2008c, p. 116).

tir entre os opostos, como por exemplo, o que

Quando então a libido é inconsciente e domina o ego, têm-se os estados de possessão ou até mesmo de verdadeiras epidemias psíquicas. Em graus menores, pode-se ter essa libido inluenciando o complexo do eu, através de obsessões e comportamentos compulsivos. Enquanto essa energia não for assimilada, o eu ica a mercê das forças do inconsciente. Além disso, os conteúdos não reconhecidos acabam por ser projetados sempre no outro. É dessa forma que muitas guerras, inclusive as “santas” começaram. Se o eu se identiica exclusivamente com o bem, seu oposto – o mal – estará inconsciente

esse artigo traz: o bem e o mal ( JUNG, 2008b).

4 A importância da assimilação do mal Primeiramente, é relevante deixar claro que o mal do qual o presente artigo trata não se refere às entidades metafísicas, já que isso faria parte do campo de estudo da teologia e não da psicologia. O mal no texto deve ser, antes, compreendido como a experiência psíquica que pode certamente ser vivenciada por muitas pessoas, como um conteúdo autônomo e que é frequentemente projetado no outro ( Jung, 2007).

e provavelmente projetado no outro, seja esse

O tópico anterior trouxe alguns pontos

outro uma pessoa, uma entidade um lugar ou

sobre a importância de se assimilar a libido in-

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46| A assimilação psicológica do mal | Ana Luisa Testa | 41 - 49 consciente: superação dos instintos; extinção das

mados de fobias, obsessões e todo tipo de sinto-

projeções psíquicas e a retomada da vitalidade.

ma neurótico. Além de deuses, os conteúdos do

Para que isso ocorra, vale frisar a condição in-

inconsciente coletivo se tornaram doenças em

dispensável de se compreender os símbolos, já

psiques dissociadas ( JUNG, 2007).

que são eles o elo entre os opostos. Dessa forma a unidade psíquica é retomada, pois consciente e inconsciente já não precisariam se contrapor. Sendo assim, para que essa unidade seja reconstituída, é fundamental que o bem e o mal possam ser reconhecidos e integrados ao ego, já que constituem um dos principais par de opostos.

Negar e desconhecer a existência do mal e de toda a vida simbólica só acentua a dissociação psíquica, que é exatamente o oposto da meta da uniicação. As tendências à dissociação caracterizam a psique humana e são inerentes a ela; sem isso, os sistemas psíquicos parciais não teriam cindido,

Também vale a pena ressaltar que negar a

não teriam gerado espíritos ou deuses. A dessa-

existência ou a inluência do mal não fará com

cralização de nossa época tão profana é devida

que sua ação cesse, além do que sua projeção

ao nosso desconhecimento da psique incons-

pode criar situações perigosas. Se a consciência

ciente, e ao culto exclusivo da consciência. [...]

reconhece apenas o bem, o mal certamente será

Isso representa um grande perigo psíquico, pois

experimentado como algo autônomo e externo

os sistemas parciais se comportam como quais-

que deve ser temido ou combatido no outro. O

quer outros conteúdos reprimidos: induzem

homem dito civilizado considera-se bem acima dessas coisas metafísicas e misteriosas. No entanto, passa grande parte da vida inluenciado

forçosamente a atitudes falsas, uma vez que os elementos reprimidos reaparecem na consciência sob uma forma inadequada ( JUNG, 2007, p. 49).

magicamente por outros seres humanos ou for-

Os elementos reprimidos são incapazes

ças perturbadoras, justamente por não diferen-

de se desenvolverem enquanto não forem tra-

ciar-se dos objetos, em consequência da projeção

balhados e assimilados pela consciência. O mal

de seus conteúdos inconscientes ( JUNG, 2007).

reprimido é capaz de impor às criaturas as mais

As imagens atribuídas a essas forças inconscientes são equivalentes àquelas atribuídas às mais diversas divindades. Quando o ego experiencia tais conteúdos sente-os como se fossem forças poderosíssimas, de caráter numinoso e subjugante. Tais experiências têm uma inluência maligna ou benigna no homem – são como se fossem seus anjos e demônios – e ele não pode evitá-las, pois sua vontade de nada

diversas barbáries. E resgatá-lo das profundezas do inconsciente para que ele se desenvolva equivale a resgatar as projeções psíquicas que o homem faz no mundo concreto e devolvê-las ao seu domínio de direito. Quando o homem se relaciona com seu mundo interior – que já não está mais projetado no meio externo – sua personalidade está caminhando em direção à uniicação. Ignorar o mal ou vê-lo apenas projetado não diminui sua ação. O homem não pode mais

vale ( JUNG, 2006). A única coisa que o homem pode fazer é aprender a reconhecer em si essas forças psíquicas antes que elas se transformem em patologias ou sintomas desagradáveis, que lhe mostrem que ele não é o único senhor em sua própria casa. Jung diz que o homem ocidental está tão alheio

fechar os olhos para o perigo do mal que está à espreita dentro dele mesmo. Esse perigo é concreto, e a psicologia deve insistir em airmar sua realidade. Como poderia haver o “elevado” se não existisse o “abissal”? Um é tão real quanto o outro! ( JUNG, 2000).

aos conteúdos do inconsciente coletivo que os

Mas o reconhecimento em si daquilo que

trata como se estes fossem deuses ou demônios.

é considerado mal não se constitui num traba-

E airma que hoje esses deuses são também cha-

lho prazeroso. Sem a adequada compreensão

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da relatividade moral do mal, o ego pode temer

é, perigosas, sob um determinado ponto de vista.

ser enganado por uma certa “astúcia diabólica”,

Existem também coisas desta espécie na nature-

que deturparia a verdade divina para roubar o

za humana, que são muito perigosas e, por isso

Seu lugar. Mas o inconsciente não se ocupa de

mesmo, parecem más àquele que está situado no

tais blasfemas – sua única intenção é uniicar e restituir o universo sagrado tão esquecido pelo homem moderno ( JUNG, 2009).

eixo do tiro. Não tem sentido dissimular este mal sob cores atraentes, pois isto só serviria para nos embalar numa segurança ilusória. A natureza humana é capaz de uma maldade sem limites e

Aceitar o demônio não signiica passar para o

as ações más são tão reais quanto as boas, tão

lado dele, caso contrário a gente se torna demô-

vasto é o campo da experiência humana; o que

nio. Signiica entender-se. Com isso assumes teu

signiica que a alma emite o julgamento decisivo.

outro ponto de vista. Com isso o demônio perde

Só a inconsciência desconhece o bem e o mal.

algum terreno e tu também. E isto poderia ser

No âmbito da psicologia ignora-se sinceramente

muito bom ( JUNG, 2010, p. 261).

o que prepondera no mundo: se o bem ou o mal.

Apesar de o parágrafo anterior tratar o mal como algo moralmente relativo, é importante ressaltar que isso também implica uma relatividade do bem. O indivíduo, quando consegue desvencilhar-se da moral coletiva de sua época,

Espera-se apenas que seja o bem, isto é, aquilo que nos parece conveniente. Pessoa alguma jamais teria condições de deinir o que é o bem de modo geral. Nenhum conhecimento claro da relatividade e da caducidade do juízo moral é capaz de nos livrar desta limitação, e aqueles que se

enxerga que tanto um quanto outro não possui

consideram situados para além do bem e do mal,

em si mesmo um caráter absoluto e podem por-

via de regra, são os importunos mais incômodos

tanto serem relativizados. No entanto, isso não

da humanidade, que se contorcem no tormento

quer dizer que ambas as categorias – o bem e

e no medo da própria febre ( JUNG, 2000, p. 49).

o mal – não possuam validade ou simplesmente não existam. A diferença é que a categorização será feita antes pela ética do que pela moral. Aquele que desejar encontrar respostas para a questão do mal através da ética necessita em primeiro lugar de um conhecimento profundo acerca de sua totalidade. Deve saber, sem se poupar, da soma de todos os atos de que é capaz – dos mais elevados até os mais baixos – sem mentir e sem se vangloriar a respeito deles ( JUNG, 2006). A psicologia ignora o que é bom e o que é mau em si mesmo. Ela só conhece estas coisas como juízos de relação: bom é o que parece conveniente, aceitável ou valioso sob um certo ponto de vista; mau é o inverso disto. Se o que chamamos bom é “realmente” bom, então, consequentemen-

Apenas um conhecimento profundo a respeito de si traz à tona a conscientização acerca dos opostos. Isso cria uma cisão e uma tensão entre eles, que é justamente a condição para que surja o símbolo capaz de equilibrá-los numa unidade. Essa solução que os equilibra – o símbolo – é resultado da cooperação entre o consciente e o inconsciente ( JUNG, 2006). Para Jung, o par de opostos – bem e mal – se encontram tão próximos na personalidade originária quanto dois gêmeos monovitelinos. E sem a vivência de ambos, não há experiência da totalidade do self. A assimilação do mal é, portanto condição para o processo de uniicação da personalidade ( JUNG, 2009).

te, existe algo de mau, um mal que é “real” para

Se tiveres a rara oportunidade de falar com o de-

nós. Vemos, portanto, que a psicologia lida com

mônio, não te esqueças de dialogar seriamente

um julgamento mais ou menos subjetivo, isto é,

com ele. Ele é, em última análise, o teu demônio.

com um contraste psíquico imprescindível para

O demônio é, como adversário de teu outro pon-

a deinição de determinadas relações de valor:

to de vista, aquele que te tenta e coloca pedras

bom é o que não é ruim, e ruim o que não é bom.

em teu caminho, lá onde você menos delas pre-

Existem coisas que são extremamente más, isto

cisa ( JUNG, 2010, p. 261).

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48| A assimilação psicológica do mal | Ana Luisa Testa | 41 - 49 Abaixo segue como exemplo uma sequência resumida com dois sonhos e uma imaginação ativa que ilustra a questão da assimilação do mal, em ordem cronológica. Nessa série, reproduzida pela própria sonhadora, é importante que o leitor atente às mudanças de atitude que acontecem tanto no “mal” quanto no ego à medida que a assimilação acontece. Isso demonstra como ela promove uma transformação mútua, não só no consciente, mas também no inconsciente.

Imaginação ativa – Comendo o demônio

Sonho – A serpente eucarística “Estou na água com a mesma serpente do olho vermelho do sonho anterior. Ela está ali para ser comida. Desta vez não sinto que será uma tarefa difícil. Alguém me diz que aquela serpente é pão natural, então começo a fatiá-la para comer e também distribuí-la. Suas fatias me lembram hóstias e são no sonho pão doce.” As imagens do inconsciente que representam o mal normalmente aparecem como imagens religiosas – demônio, diabo, serpente, e assim por diante. Nos símbolos do sonho “A

“— Coma-me. Disse o demônio de olhos

serpente eucarística”, atributos do mal e do bem,

bem escuros, coberto em tinta preta. E, mesmo

do demônio e do Cristo, parecem se juntar nes-

sabendo que aquilo era ‘apenas uma imaginação’

se alimento que é pão natural, hóstia e carne da

não foi fácil. Era repugnante a ideia de comê-lo.

serpente maligna ao mesmo tempo, e que o ego

Então cortei e fatiei suas pernas e seus braços,

come sem resistências aquilo que se oferece para

e coloquei tudo em uma panela grande. Seria a

ser comido – o próprio self.

carne da refeição. Com a faca, abri seu abdômen e despejei tudo em outra panela. Como era repugnante demais, além de cozinhar precisaria processar as vísceras, e fazer daquilo um homogêneo purê. Já a cabeça, tive que cozinhar bastante, até que dissolvesse e virasse um molho. Ali tinha quantidade suiciente para muitas pessoas

A dinâmica psíquica entre o bem e o mal aparece projetada nos mais diversos sistemas religiosos existentes. Como exemplo, é possível traçar um paralelo com duas iguras bem conhecidas na época atual: o Cristo e o Anticristo. Jung airma que não há dúvida de que no universo religioso Cristo representa a personalidade unii-

se servirem. Quis convidar outros para reparti-

cada – o self – por possuir atributos semelhantes.

rem aquele prato comigo, pois seria comida de-

Porém, como o self psicológico é um conceito

mais para eu comer sozinha.”

que exprime a soma dos conteúdos conscientes e inconscientes, ele só pode ser descrito sob a

Suportando o mal “Estou em minha casa e duas mulheres batem em minha porta. Uma delas carrega uma grande serpente, e diz que devo suportá-la em meus ombros sem rejeitá-la. No sonho eu sei que aquilo está relacionado ao meu processo de evolução psíquica, então deixo que a mulher atire a serpente em mim. Por duas vezes me defendo dela, mas, terceira me contenho e deixo que a serpente caminhe em meus ombros. E então a tarefa foi cumprida. As duas mulheres e a serpente estavam indo embora e quando a serpente me olhou diretamente nos olhos pude perceber que em sua cabeça havia apenas um único e grandioso olho vermelho, e ela era o demônio.”

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forma de uma antinomia, ou seja, seus atributos devem ser complementados por seus respectivos contrários. Se Cristo for considerado como absolutamente bom, então pressupõe-se que do lado contrário exista um Anticristo absolutamente mau que corresponde à metade obscura e tenebrosa do self. Luz e sombra parecem estar dividas por igual na natureza humana, formando uma unidade paradoxal. Árvore nenhuma cresce em direção ao céu se suas raízes também não se estenderem até o inferno ( JUNG, 2000).

Considerações finais Por tudo o que foi exposto, é possível concluir que a cisão da unidade originária da psique

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faz-se necessária para que o ego possa desenvolver-se e adaptar-se as demandas do mundo externo. Apesar de seu caráter adaptativo, essa diferenciação acaba por cindir o homem, e aqueles conteúdos incompatíveis à atitude adotada pelo ego não deixam de existir só porque são inconscientes. Pelo contrário, eles podem inluenciálo ou até mesmo impor-se de forma tenebrosa ou no mínimo inadequada à vontade do eu, seja através das projeções, das compulsões, das possessões, das patologias, das inluências “mágicas”, da imperatividade dos instintos e assim por diante. Reprimir ou desconhecer tamanha força inconsciente é também sufocar grande parte da vitalidade da psique. Mas, à medida que consciente e inconsciente se integram, ocorrem transformações em ambas as instâncias, embora seja impossível determinar qual delas é a causa da outra. O símbolo é um agente transformador da energia psíquica – e, portanto da própria psique. Ser receptivo à vida simbólica é por em prática a responsabilidade que o ego tem para com o self de ser seu sujeito conhecedor, assim como seu objeto conhecido. Conhecer apenas o bem é mutilar a totalidade. O homem somente poderá conhecer e ser conhecido pela personalidade originária na mesma proporção que for capaz de assimilar também sua metade sombria. Como airma sabiamente Jung: “Não nos tornamos iluminados por imaginarmos iguras de luz, mas por nos tornarmos conscientes da escuridão” ( JUNG, 1967, par. 335).

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Referências DINGER, E. F. Anatomia da psique. 6ª ed. São Paulo: Cultrix, 2010. EDINGER, E. F. Ego e arquétipo. 1ª ed. São Paulo: Editora Cultrix, 1989. EDINGER, E. F. O mistério da coniunctio. São Paulo: Paulus, 2008. JUNG, C.G. Alchemical Studies. London: Routledge & Kegan Paul, 1967. (Collectet Works, 13). JUNG, C. G. AION: Estudos sobre o simbolismo do si-mesmo. 6ª ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2000. JUNG, C. G. Memórias, sonhos, relexões. 13ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006. JUNG, C. G.; WILHELM, R. O segredo da lor de ouro. Petrópolis: Vozes, 2007. JUNG, C. G. A energia psíquica. 10ª ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2008a. JUNG, C. G. A vida simbólica. 4ª ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2008b. JUNG, C. G. Símbolos da transformação. 6ª ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2008c. JUNG, C. G. O livro vermelho. Petrópolis: Editora Vozes, 2010. JUNG, C. G. A natureza da psique. 8ª ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2011.

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Ilustração: Jubal S. Dohms

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Confronto de São Boaventura com A Filosofia nas Conferências de Paris sobre Os Dez Mandamentos e sobre Os Sete Dons do Espírito Santo. Marcos Aurélio Fernandes Ano 2 | número 2 | 2013

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O Confronto de São Boaventura com A Filosoia nas Conferências de Paris sobre Os Dez Mandamentos e... | Marcos Aurélio Fernandes | 51 - 68

O Confronto de São Boaventura com A Filosofia nas Conferências de Paris sobre Os Dez Mandamentos e sobre Os Sete Dons do Espírito Santo Marcos Aurélio Fernandes * * Marcos Aurélio Fernandes Doutor em Filosofia; Professor de Filosofia Medieval na Universidade de Brasília (UnB). (framarcosaurelio@hotmail.com)

1| A luta entre mestres seculares e frades mendicantes na Universidade de Paris teve seus principais atores em Guilherme de Sant’Amour, Geraldo d’Abeville e Nicolau de Lisieu, por parte dos seculares, e Tomás de Aquino, Boaventura e João Peckham por parte dos mendicantes. Em 1252 os mestres seculares da Universidade de Paris reagiram duramente à “invasão” dos frades mendicantes, franciscanos e dominicanos. A ofensiva secular veio antes de tudo de Guilherme de Saint’Amour. Em relação aos franciscanos, sua estratégia consistia em negar a legitimidade eclesial da sua atividade magisterial (docente). Em 1257, porém, o Papa Alexandre IV interveio na luta em favor dos mendicantes e, tanto Boaventura quanto Tomás de Aquino recebeu o título de “Magister”, embora nesta altura Boaventura já tivesse sido eleito ministro geral dos franciscanos. Mas a militância de Guilherme de Sant’Amour não parou. Entre 1260

Resumo Este artigo visa expor, analisar e interpretar os textos das Conferências sobre os dez mandamentos, de 1267, e das Conferências sobre os sete dons do Espírito Santo, de 1268, enfocando o modo como se dá o confronto de São Boaventura com a ilosoia naqueles anos críticos, em que o embate dos teólogos parisienses com os ilósofos aristotélico-averroistas da faculdade de artes se tornou mais agudo. O enfrentamento de Boaventura diz respeito a algumas teses que, na visão de Boaventura, negam a temporalidade e historicidade do mundo, bem como o livre-arbítrio e a responsabilidade do indivíduo na história. Por outro lado, o confronto também se dá sobre a questão do sentido, dos limites e das possibilidades mesmas da ilosoia e de sua relação com a fé e a sabedoria cristã. .

Palavras-chave: Boaventura de Bagnoregio, criação, temporalidade, historicidade, ilosoia, fé, sabedoria cristã.

Abstract his article aims to present, analyze and interpret the texts of the 1267 Conferences dealing with the Ten Commandments and the 1268 Conferences dealing with the seven gifts of the Holy Spirit, focusing on the way how to understand Saint Bonaventure’s confrontation with the philosophy of those critical years, in which the conlict between the Parisian theologians and the philosophers of the faculty of arts (“averroists” or “radical aristotelians”) became more acute. Dealing with some of their theses, especially with the thesis that the world is eternal, that the individual soul is not eternal and that all humans at the basic level share one and the same intellect, Bonaventure concludes that they deny the temporality and the historicity of the world, as well as free will and responsibility of the individual in history. Another reason for this confrontation was the question of the meaning, the limits and the possibilities of philosophy and its relationship with faith and Christian wisdom.

Keywords: Bonaventure of Bagnoregio, creation, temporality, historicity, philosophy, faith, Christian wisdom

Introdução No im dos anos 60 e início dos anos 70 do século XIII, dois grandes pensadores, Boaventura de Bagnoregio e Tomás de Aquino, enfrentaram os mesmos desaios na Universidade de Paris: perseguição aos mendicantes, franciscanos e dominicanos, com resistência aos seus direitos de ensinar ali [1]; e, de modo mais grave, os perigos do aristotelismo de matiz averroísta dos

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mestres da faculdade de artes. Pretende-se, com este texto, expor o modo como Boaventura se confrontou com a ilosoia neste contexto, mais pontualmente, nas suas Conferências sobre os dez mandamentos (1267) e nas suas Conferências sobre os sete dons do Espírito Santo (1268) [2]. De 1264 a 1274, Boaventura pregou em grandes universidades daquele tempo, como em Paris, Montpellier e Bolonha. Em Paris, convi-

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e 1265 ele escreve um texto intitulado “Contra pericula imminentia Ecclesiae generali per hypocritas, pseudo-predicatores et penetrantes domos et otiosos et curiosos et gyrovagos”. Em tom escatológico, os frades mendicantes são apontados como novidades ameaçadoras na “Ecclesia” (Igreja), como “perigos iminentes”, que irrompem nos tempos últimos, pondo em questão a consistência e a verdade do cristianismo. Guilherme denuncia que o exercício do magistério por parte dos frades franciscanos vai contra a sua minoridade, a pobreza, a vontade de Francisco de Assis e a regra da Ordem. Em 1270, Guilherme de Sant’Amour se retira da batalha, para ir morrer em sua terra. Mas deixa suas crias: Geraldo de Abbeville e Nicolau de Lisieux. Geraldo de Abeville ataca o conceito de pobreza absoluta dos franciscanos e defende que a pobreza dos sacerdotes seculares é mais perfeita do que a dos franciscanos. Em resposta aos ataques de Gerardo contra os mendicantes, Tomás de Aquino escreve o “De perfectione spiritualis vitae” (Da perfeição da vida espiritual) e Boaventura escreve a “Apologia pauperum contra calumniatorem” (Apologia dos pobres contra o caluniador). 2| Ficará para uma próxima ocasião abordar as Conferências sobre a obra dos seis dias (1273). Os textos das outras duas Conferências, que serão citados aqui, estão em: Opere di San Bonaventura: Sermoni Teologici/2 (Roma: Città Nuova, 1995). O texto latino desta edição é o mesmo da “Editio Maior” publicada pelos franciscanos de Quaracchi (Volume V, 1891). A tradução será do autor deste artigo. Será feita a partir do texto latino, mas

veu com João Peckham, seu aluno e seu sucessor

Este combate incide diretamente sobre os

na cátedra dos franciscanos, e com Rogério Ba-

averroistas de Paris, mas incide, também, indi-

con, o franciscano inglês que se dedicou a pensar

retamente sobre Tomás de Aquino. Embora o

uma reforma da cristandade a partir de uma re-

objetivo do presente texto não seja expor o con-

forma do saber. A partir de 1267 Boaventura se

fronto especíico de Boaventura com cada um

engaja na luta contra o aristotelismo averroísta

dos ilósofos averroistas ou com Tomás de Aqui-

dos mestres da faculdade de artes (liberais) [3]

no, uma palavra seja dita, a modo de observação

de Paris. Com efeito, sob a liderança de Sigério

preliminar, sobre o modo como Tomás e Boa-

de Brabante (1240c. - 1284) e de Boécio de Dácia

ventura viram a questão da autonomia da ilo-

(+ 1270), a partir da faculdade de artes instalou-

soia. Tomás de Aquino, é verdade, se entendeu

se toda uma crise na faculdade de teologia da

fundamentalmente como teólogo. Entretanto,

Universidade de Paris. Os estudos de dialética

Tomás é o postula uma autonomia da ilosoia

e física entravam nos problemas da metafísica

em relação à teologia. Paradoxalmente, porém,

e, por im, penetravam no terreno da teologia.

esta postulação de autonomia da ilosoia não é

O trabalho dos ilósofos “artistas” se fundava

motivada pela reivindicação de uma libertação

sobre a interpretação de Aristóteles feita por

da razão em relação à fé, como acontecerá com

Averróis. Para responder aos desaios propostos à metafísica e à teologia por parte do aristotelismo de matiz averroísta, Boaventura se engaja com uma série de conferências (Collationes). Começa, em 1267, com as Collationes de decem praeceptis (Conferências sobre os dez mandamentos); prossegue em 1268 com as Collationes de septem donis (Conferências sobre os sete dons do Espírito Santo) e conclui a sua intervenção com as Collationes in Hexaëmeron (Conferências sobre os seis dias da criação), também chamadas de Iluminationes ecclesiae (iluminações da Igreja).

muitos ilósofos modernos, mas sim, por tomar a sério, como teólogo, o dogma criação do mundo. Deus cria dando o ser ao mundo e o mantendo neste mesmo ser. Entretanto, ao criar, Deus deixa sua obra repousar em si mesma, ou melhor, deixa que sua obra tenha em si mesma o princípio de sua atividade. A “causa primeira” não anula, antes promove a autonomia das “causas segundas” que atuam no mundo. A autonomia da razão é o horizonte da ilosoia. Aliás, a ilosoia é o máximo empenho de autonomia da razão.

Os escritos que nos foram transmitidos a partir

No entanto, os teólogos que, em geral,

destas conferências não são do próprio punho

seguiam a Santo Agostinho, não partilhavam

de Boaventura, mas são “reportationes”, ou seja,

desta perspectiva. Estes salientavam as consequ-

são escritos que nos foram legados por mais de

ências do pecado original para a razão humana.

um “reportator” [4] . Nestas conferências, Boa-

Depois do pecado, esta não está na sua condição

ventura irá tratar da vida cristã em suas bases:

originária, mas decaiu, tornando-se cega para o

a lei (mandamentos) e a graça do Espírito San-

ser, ou melhor, para o essencial, para o mundo do

to e seus dons; e, por im, das iluminações da

espírito e para Deus. Na cruz, porém, o homem

sabedoria cristã. Por estas ocasiões, não deixará

velho com a sua razão cega é condenado, por um

de combater os perigos advindos dos ilósofos

lado, mas também é reconciliado com Deus, por

averroistas em especial e de uma ilosoia em ge-

outro lado. Por isso, a ilosoia, na ordem do re-

ral, ou melhor, de uma ilosoia autônoma, não

dimido, só tem sentido sendo subsumida a um

subordinada à “teologia”, ou seja, à “Palavra de

projeto maior, que é o projeto da sabedoria cris-

Deus” ou “Sagrada Escritura”, ou melhor, à in-

tã. Esta será a perspectiva de Boaventura, que

teligência espiritual desta, por meio da qual se

aqui se tentará expor. O conhecimento ilosói-

percorre os caminhos ascendentes da iluminação

co, portanto, na concepção de Boaventura, não

e da sabedoria cristã.

pode ser cultivado em função dele mesmo. Seria

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O Confronto de São Boaventura com A Filosoia nas Conferências de Paris sobre Os Dez Mandamentos e... | Marcos Aurélio Fernandes | 51 - 68

como parar no itinerário da mente para Deus.

a fantasia cria o erro, obscurecendo a razão e fa-

Ademais, se o homem permanece abandonado

zendo parecer ser o que não é. E todas as falsas

ao uso da sua razão somente, ele fatalmente erra.

e supersticiosas invenções de erros provêm ou da

Pois, falando como teólogo, Boaventura adver-

audácia ímproba da investigação ilosóica, ou da

te que a natureza humana foi corrompida pelo pecado e uma das consequências desta corrup-

cotejada com a versão italiana. Para não citar cada vez todos os dados da referência bibliográfica, recorre-se aqui ao expediente de citar apenas o número da “Collatio” (Conferência), usandose a abreviação “Coll.”, o número do parágrafo segundo aquela edição, e o número da página, também segundo a edição italiana da “Città Nuova”. 3| As sete artes liberais, cujas raízes remontavam à antiguidade, foram organizadas na Idade Média na forma do Trivium, que são as três ciências ou artes da linguagem, a saber, gramática, dialética e retórica; e na forma do Quadrivium, que são as quatro ciências ou artes matemáticas que versam sobre o real, ou seja, a geometria, a astronomia, a música e a aritmética. 4| “Reportator” era aquele que “reportava”, ou seja, transcrevia ou anotava a conferência pronunciada pelo mestre em seu “quaternus” (caderno) e a transmitia a outros. 5| Cfr. De Mystica theologia c. 1, § 1. Pseudo Dionisio Areopagita (Org.: Teodoro H. Martin). Obras Completas del Pseudo Dionisio Areopagita. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1990, p. 371 6| Coll. II, n. 24, p. 61.

perversa compreensão da Sagrada Escritura, ou do desordenado afeto da carne humana [6].

ção da natureza humana é a ignorância. A na-

Aqui, portanto, Boaventura toma como

tureza humana não se encontra em seu estado

“ídolo” (pequena imagem ou ideia) todo erro

perfeito originário, mas em estado degenerado.

da mente humana. E assinala que o erro é uma

A natureza degenerada é como uma lecha que

icção da mente; uma icção que vem da fanta-

não consegue alcançar o seu alvo por si mesma.

sia. A fantasia obscurece a razão. O que induz o

A verdade plena, que a razão com sua ilumina-

homem ao erro, portanto, não é a sua razão, mas

ção natural busca, só é encontrada quando esta

a sua fantasia. A fantasia faz que o homem se

mesma razão for iluminada pela verdade sobre-

apoie em um parecer falso, um parecer que faz

natural da revelação. A revelação assume, porém,

aparecer como sendo aquilo que não é, portanto,

a razão dentro dela mesma. Por isso, a fé não

um parecer que é uma mera aparência. Se a ver-

se limita a crer, mas quer também compreender

dade, conhecida pela razão, toma o que é como o

aquilo que crê. Ela se empenha com todas as for-

que é e o que não é como o que não é, assumin-

ças da razão em compreender o sentido daqui-

do a identidade (coincidência) de ser e aparecer

lo que crê e disso surge a teologia e a sabedoria

num parecer; a mera aparência, que é um apare-

cristã. Entretanto, todo o empenho racional da

cer sem ser ou discrepante com o ser, criada pela

razão no interior da teologia consiste na busca

fantasia da mente, toma o que não é como sendo

de se abrir à iluminação do alto. Todo o conheci-

e o que é como não sendo. A falsidade e a su-

mento vem de Deus e retorna para Deus. E toda

perstição icam do lado, portanto, dessa fantasia,

a sabedoria cristã culmina na mística. Por im,

dessa atividade iccional da mente. Essa fabrica-

o homem deve fazer calar em si mesmo toda a

ção de erros provém, sobretudo, da audácia inde-

voz da especulação e, no silêncio, reconhecer que

vida da investigação ilosóica, quando esta não

o mistério de Deus está além de toda especula-

reconhece e não guarda os limites da sua ini-

ção. No ápice da experiência mística, a questão

tude, desconhecendo sua potência e impotência;

é experimentar afetivamente este mistério, no

da perversa compreensão da Sagrada Escritura,

silêncio, transportando-se para dentro dele, para

quando o leitor se atém somente a uma inter-

dentro da sua caligem (treva) luminosa, suprar-

pretação literal e não alcança uma interpretação

racional e superessencial, como dizia Dionísio

espiritual do texto sagrado; e do desordena-

Areopagita [5].

mento dos afetos produzidos pela sensualidade

I. Os erros da filosofia Uma crítica à ilosoia já aparecem nas Conferências sobre os dez mandamentos. Ao comentar o preceito de “não fazer ídolo” Boaventura ataca o perigo de “idolatria” na ilosoia. Ele diz:

humana. Ao falar dos erros que nascem de uma audácia ímproba da investigação ilosóica, Boaventura enumera aquilo que ele considera ser os erros do averroismo dos “artistas” de Paris: Da audácia ímproba da investigação ilosóica se originam os erros dos ilósofos, como: pôr o mundo eterno e airmar que o intelecto seja um

Na segunda frase: não te farás ídolo, são proibi-

em todos. De fato, pôr o mundo eterno é perver-

das todas as falsas e supersticiosas invenções de

ter toda a Sagrada Escritura e dizer que o Filho

erros. E aqui se deve notar que todo erro outra

de Deus não se encarnou. Airmar, depois, que o

coisa não é que uma criação da mente. De fato,

intelecto seja um em todos é dizer que não haja

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54| O Confronto de São Boaventura com A Filosoia nas Conferências de Paris sobre Os Dez Mandamentos e... | Marcos Aurélio Fernandes | 51 - 68 uma verdade de fé, nem salvação das almas, nem

sua concepção a-histórica, fatalista ou necessita-

observância dos mandamentos; e isso quer dizer

rista e impessoal da realidade como um todo, de

que o homem péssimo se salva e o boníssimo se

Deus, do mundo e do ser humano.

condena (...) [7].

Na quarta das Conferências sobre os dez

Neste texto e contexto, Boaventura enumera apenas dois do que ele considera serem erros dos aristotélicos averroistas: a tese do mundo eterno e a tese do intelecto único em todos os homens. A tese do mundo eterno contradiz dois dos dogmas fundamentais do cristianismo: a criação “ex nihilo” (do nada) e a encarnação do Verbo. A tese do intelecto único ameaça a compreensão da individualidade da pessoa humana e, por conseguinte, de sua liberdade; e, enim, de sua responsabilidade, pela qual o homem pode ganhar ou perder a sua alma em face de Deus. Ameaça também a airmação da imortalidade do

mandamentos, ao tratar do preceito de santiicar o sábado, Boaventura volta a tratar questão da eternidade e temporalidade do mundo. Ali ele diz que é preciso entender espiritualmente a história bíblica da criação do mundo em seis dias: Deus, com efeito, fez todas as coisas em seis dias, não porque não tivesse podido fazê-las em um dia; mas aqui há que se compreender que o mundo possui algo na arte eterna, ou seja, o ser eterno, que é a eternidade da vida e a posse perfeita na qual não há nem antes nem depois; e Deus imprimiu isto nas mentes angélicas. Ademais, o mundo possui algo na inteligência

indivíduo: pois, se a individualidade é dada pela

criada, ou seja, por natureza há o antes e o de-

matéria e se limita à matéria, não pertencendo

pois, se bem que há simultaneidade segundo a

ao espírito, então com a morte corporal se des-

duração. Mas possui o antes e o depois segundo

faz a própria individualidade. O que é imortal é

a duração – não segundo a natureza -, segundo

o que é impessoal: o intelecto agente único que

aquilo que é na matéria, não por causa de um

atua no inteligir de todos os homens. Na criação

defeito de quem opera, mas pela sua condes-

se salvaguarda a liberdade e onipotência de um

cendência, a im de que proporcionasse todas

Deus transcendente, Senhor do ser e do nada;

as coisas e as signiicasse todas nas primeiras

na encarnação se salvaguarda a liberdade e o

obras. E como produziu nas primeiras coisas

amor pelo qual a pessoa divina do Verbo assume a humanidade em sua carne; na individualidade, se salvaguarda a liberdade e a imortalidade da pessoa humana, ou seja, a tese de que o homem individual é livre e responsável por seus atos e que, ao exercer esta liberdade na responsabilidade, no tempo da sua história biográica ele decide sobre seu destino eterno. As verdades de

as raízes de todas as operações, assim também produziu plenamente seja os princípios germinativos de todas as obras seja o repouso. Mas no sétimo dia repousou e chamou a si a criatura intelectual e no sétimo dia trouxe de volta à quietude do paraíso as almas que estavam no limbo. Então o signiicado do sétimo dia está na quietude simbólica das almas [8].

fé do cristianismo, portanto, a saber, a criação a

Neste contexto, Boaventura retoma a con-

partir do nada, a encarnação e salvação eterna

cepção platônica das ideias, reelaborada no seu

ou não da alma humana em sua individualidade,

assim chamado “exemplarismo”, doutrina se-

pressupõem a temporalidade e a historicidade.

gunda a qual Deus não somente é causa eiciente

A temporalidade e historicidade do universo

e causa inal do universo criado, mas é também

(decursus mundi); a temporalidade e historici-

sua causa exemplar. O mundo, marcado pela

dade da ação imanente do Deus transcendente

temporalidade e historicidade, sai de Deus pela

(encarnação); a temporalidade e historicidade da

criação (egressus, productio), mas deve retornar a

existência humana, do exercício de sua liberda-

Deus pela consumação de todas as coisas (reduc-

7| Coll. II, n. 25, p. 61.

de e responsabilidade. O perigo do aristotelismo

tio), especialmente pelo retorno da criatura inte-

8| Coll. IV, n. 7, p. 81-83.

averroísta, na perspectiva de Boaventura, está em

lectual ou espiritual à paz paradisíaca. Quando

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esta criatura retorna para a sua origem (Deus) e nela repousa, então todo o universo alcança a

que tenha contínua união (coniunctio) com a sua

sua paz.

origem, assim como a luz, assim também a graça

2. A necessidade de uma “reductio” da filosofia Da reductio Boaventura trata na primeira das Collationes de septem donis Spiritus Sancti, que apresenta um tratado introdutório da graça, antes de falar dos dons do Espírito septiforme. Falando do uso da graça, Boaventura diz que ele tem de ser iel em relação a Deus. Fiel é o uso da graça quando o homem a põe em serviço da glória de Deus. Boaventura usa, então, uma imagem que lhe vêm da óptica ou da ciência da perspectiva daquele tempo:

do Espírito Santo não pode viger na alma a não ser pela sua reversão (reversio) ao seu princípio original (originale principium) [12].

Esta reversão e conjunção são custodiadas pela humildade e destruídas pela soberba. Humilde é aquele que atribui ao seu princípio original todo o bem que tem, ou seja, atribui a Deus e não a si mesmo. O humilde, assim, está sempre unido à sua origem, enquanto o soberbo rompe com ela. Lúcifer, o portador da luz, se tornou escuro por causa de sua soberba; “sed Christus reduxit se in suum originale principium per humilitatem, et ideo clarus fuit” – “mas Cristo se recon-

Os sábios em perspectiva dizem, que se o raio cai perpendicularmente sobre um corpo terso e polido, necessariamente repercute pela mesma via. O inluxo [9] da graça é como um raio perpendicular; digo a respeito da graça que faz grato (gratia gratum faciente), porque a graça dada de graça (gratia gratis data) é como é como o raio que incide. É necessário, pois, que quem recebe a graça de Deus verdadeiramente, restitua (reddat) glória a Deus [10].

duziu ao seu princípio original pela humildade, e daí se torno claro” [13]. Humildade e soberba, aqui, portanto, são compreendidas por Boaventura em sentido ontológico e não simplesmente ético. Elas são possibilidades de ser fundantes da existência humana e são relacionamentos com o princípio original de todo o poder-ser e de todo o saber. Por sua vez, na segunda conferência, ao

A mente do homem deve ser como um es-

9| Influxo (influxus) é uma palavra fundamental na concepção de “hierarchia”, a regência do sagrado, no pensamento de Dionísio Areopagita, a qual é retomada também por Boaventura: diz a comunicação gratuita e graciosa do Sumo Bem às criaturas, quer no ser de natureza (esse naturae), quer no ser sobrenatural da graça (esse gratiae).

Assim como a fonte não tem duração, a não ser

retomar o conteúdo da primeira, Boaventura re-

pelho limpo e polido, de modo que o dom que

corda a origem da graça, recordando a mesma

lhe advém de Deus, ao incidir nela, possa reletir,

passagem da carta de Tiago, que ele pôs como

ou seja, retornar para Deus. Assim, a graça retor-

mote do seu famoso opúsculo intitulado “Re-

na em gratidão, à medida que o homem se torna

ductio artium ad theologiam” (Redução das artes

grato e agradável a Deus. Assim, o homem que

ou saberes à teologia), ou seja, que toda dádiva

é agraciado por Deus rende glória a Deus. Neste

ótima e todo dom perfeito vem do alto, descen-

momento de seu discurso, Boaventura cita uma

do do Pai das luzes (cfr. Tg 1, 17); e acrescenta:

passagem do livro do Eclesiastes que recorda o

“per Verbum incarnatum, per verbum cruciixum et

retorno de todas as coisas a Deus, bem como uma

per Verbum inspiratum” – “pelo Verbo encarnado,

passagem do comentário de Bernardo de Clara-

pelo Verbo Cruciicado e pelo Verbo inspira-

val ao livro do Cântico dos cânticos. A passagem

do” [14]. Graças a esta mediação, o Verbo tem

do Eclesiastes diz: “ad locum, unde exeunt lumina

também a função de operar a nossa “reductio”,

revertuntur” – “ao lugar de onde saem, os rios

a nossa redução, no sentido de recondução, ao

10| Coll. I, n. 9, p. 134.

retornam” (Eclesiastes 1,7). E o comentário de

sumo princípio: “E eu disse que aquele Verbo

11| Coll. I, n. 9, p. 134.

Bernardo é: “origo fontium mare est, virtutum et

nos reconduz (reduxit nos) ao sumo princípio (in

12| Coll. I, n. 9, p. 134.

scientiarum origo est Christus” – “origem das fon-

summum principium)”. Então Boaventura recor-

13| Coll. I, n. 10, p. 136.

tes é o mar, origem das virtudes e das ciências é

da um comentário de Dionísio Areopagita ao

14| Coll. II, n. 1, p. 144.

Cristo” [11]. E Boaventura completa:

mesmo passo da Carta de Tiago. Neste comen-

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56| O Confronto de São Boaventura com A Filosoia nas Conferências de Paris sobre Os Dez Mandamentos e... | Marcos Aurélio Fernandes | 51 - 68 tário, Dionísio nota: “E assim, o processo das

ignorância”. As claridades da ciência advêm ao

manifestações procedendo do Pai em nós sobre-

homem por meio de um duplo lume [21] (lu-

vém de modo tão vasto e oportuno que a virtude

men): um lume inato (lumen inatum) e um lume

unitiva (uniica virtus) nos pleniica (nos replet)

infuso (lumen superinfusum). O lume inato é o

e nos converte (convertit nos) ao Pai das luzes”

lume natural da faculdade do juízo ou razão; o

[15]. Na terceira conferência, em que Boaventu-

lume que se infunde do alto é o lume da fé. Ra-

ra trata da piedade, de novo é apresentada a di-

zão e fé, ambos são lumes, cuja fonte é a única e

nâmica ontológica da “reductio”, quando é dito:

mesma luz: Deus. Toda ciência tem sua origem

Naturalmente qualquer coisa que seja tende à

numa iluminação divina, quer seja natural, quer

sua origem: a pedra para baixo, o fogo para cima,

seja sobrenatural. O homem conhece as coisas

e os rios correm ao mar, enquanto a árvore é con-

sensíveis por meio da sensação e da imaginação.

tinuada com a raiz, e outras coisas têm continu-

Mas ele é capaz também de transcender o sensí-

ação com a raiz. Deiforme é a criatura racional,

vel e apreender o inteligível. Ele é capaz de ope-

que pode voltar sobre a sua origem (redire super

rar a abstração do inteligível junto ao sensível.

originem suam) pela memória, inteligência e von-

Esta abstração é obra quer do intelecto possível

tade; e não é piedosa, a não ser que relua a si mesma (refundat se) sobre a sua origem [16].

quer do intelecto agente, que são, para Boaventura, duas “diferentiae” (diferenças) da mesma

Piedade (pietas) é o que os gregos chama-

faculdade intelectiva do homem. Entretanto, no

vam de theosébeia, ou seja, a veneração para com

exercício desta faculdade intelectiva, a criatura

o divino, a religiosidade. Boaventura a identiica

racional que é o homem necessita ser iluminada

com a reverência para com Deus e a denomina

pela Verdade divina. Aquilo sobre o que julga-

de “cultus dei” (culto de Deus). A piedade im-

mos provém da experiência, mas aquilo a partir

15| Coll. II, n. 1, p. 144

plica em “cum reverentia et timore sentire de Deo”

do que e segundo o que julgamos, já não provém

16| Coll. III, n. 5.

– “com reverência e temor pensar [17] a cerca

da experiência e nem mesmo da própria razão,

17| Em latim “sentire” quer dizer sentir, no sentido de experimentar uma sensação ou um sentimento; entretanto, também significa perceber, pelos sentidos ou pela inteligência; e, ainda, ser de determinado parecer, pensar, julgar. Por isso que, neste contexto, traduziu-se “sentire” por “pensar”.

de Deus”. Como exemplo, Boaventura recorda o

mas de uma iluminação divina que nos faz co-

tema da criação a partir do nada: “Se pensas de

nhecer o ideal.

18| Coll. III, n. 5, p. 166.

adverte: “si vultis esse veri scholares, oportet, vos

29| Coll. III, n. 17, p. 180.

habere pietatem” – “se quereis ser verdadeiros es-

20| Coll. IV, n. 1, p. 182.

colares (escolásticos), é necessário que tenhais

21| “Lumen” significa o mesmo que claridade, condição de possibilidade da visibilidade de alguma coisa. Já “Lux” significa mais a fonte do lume ou claridade, como, por exemplo, os raios do sol.

piedade” [19].

22| Da Trindade XIV 15, 21. Agostinho. A Trindade. São Paulo: Paulus, 1994, p. 470.

modo diminuto a respeita da potência de Deus, a saber, que ele não possa criar todas as coisas do nada, não pensas de modo altíssimo” [18]. A piedade é também útil para conhecer o verdadeiro. O homem ímpio é soberbo, um néscio, um doente que se enferma lidando com questões e com lutas verbais, diz Boaventura. E, por isso,

Na trilha de Agostinho, Boaventura se refere à iluminação natural da razão ou da faculdade de julgar, dizendo que esta iluminação é como que uma impressão. Deus, que contém em si as ideias, ou melhor, as “rationes aeternae” ou “rationes exemplares” de todas as coisas criadas, permite que estas possam resplandecer sobre a mente da criatura racional. Da parte de Deus a iluminação é uma comunicação ou doação. Da parte da criatura racional, é uma recepção. Ao se comunicar, a luz da Verdade resplandece na

Na quarta conferência, que trata do dom

mente do homem. Ela advém à mente sem, po-

da ciência, Boaventura apresenta Salomão como

rém, deixar a sua fonte. “Não como se ela emi-

o grande escolar (clericus magnus) [20]. A ciên-

grasse de um lado para o outro, mas a modo

cia é designada como claridade. Assim sentencia

de impressão na alma. Tal como a imagem de

Boaventura: “claritas animae est scientia, econtra

um anel ica impressa na cera, sem se apagar do

tenebra animae est ignorantia” – “claridade da

anel”, dizia Agostinho [22]. Boaventura expli-

alma é a ciência; ao contrário, treva da alma é a

ca a partir de um exemplo: o homem conhece a

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ideia de todo e a ideia de parte, e, daí, consegue

comparação à claridade da ciência cristã. Con-

formular o juízo: “o todo é maior do que a par-

tudo, a claridade da ciência teológica que pare-

te”. A verdade é, antes de tudo, manifestativa e

ce pequena segundo a opinião dos homens do

só por isso é que ela pode ser judicativa. Sem a impressão das ideias ou das “rationes aeternae” o homem não pode conhecer os princípios e

da ciência gratuita é maior, mas a claridade da ciência gloriosa é máxima [24].

julgar com certeza a respeito do real. Os juízos

A ciência ilosóica é o conhecimento certo

são atos do intelecto, mas a mente só pode jul-

da verdade enquanto pode ser perscrutada. A ci-

gar corretamente acerca do real se vê o ideal, ou

ência teológica é o conhecimento pio (religioso)

seja, se ela intui as ideias, os princípios, as regras

da verdade enquanto pode ser crida. A ciência

do ser, do conhecer, do agir, que se encontram

gratuita é o conhecimento santo da verdade en-

originariamente na mente divina. As “rationes

quanto pode ser amada. A ciência gloriosa é o

aeternae” ou “exemplares” que estão na mente de

conhecimento sempiterno da verdade enquan-

Deus e que se imprimem na mente do homem

to desejável. Nota-se que a ciência ilosóica se

quando este julga são aquilo pelo que (id quo) o

deine a partir da certeza de um conhecimento

homem conhece e julga, não são, porém, aquilo

que advém de uma investigação que indaga a

que (id quod) o homem conhece e julga. Com

verdade enquanto essa é perscrutável. Esta ciên-

outras palavras, elas são o “medium quo”, o meio

cia é tríplice, pois se divide em física (ilosoia

pelo qual o homem conhece e julga. Isto não permite, pois, um conhecimento direto de Deus e de sua essência, mas apenas uma “cointuição” (contuitio, contuitus) de Deus. Esta cointuição se dá ao modo de um conhecimento da causa por meio do efeito, como, por exemplo, eu co-intuo a fonte intuindo (vendo diretamente) o manancial. Assim, deste modo, conhecendo os princípios intelectuais somos capazes de cointuir a sua fonte: a Verdade eterna, a mente divina [23].

23| Tonna, I. Lineamenti di Filosofia Francescana: sintese dottrinale del pensiero francescano nei sec. XIII-XIV. Roma/Marsa (Malta): Ed. Tau, 1992, p. 73-81.

mundo, segundo a verdade é grande. A claridade

natural), lógica (ilosoia racional) e ética (ilosoia moral). As três se ocupam com a verdade perscrutável que, por sua vez, se apresenta como veritas rerum (verdade das coisas), veritas sermonum (verdade dos discursos) e veritas morum (verdade dos costumes). A verdade das coisas é a “indivisio entis ab esse”, ou seja, a “indivisão” do ente a partir do ser. Dito de outro modo: a verdade das coisas é a adequação do intelecto (divino, arquétipo) e as coisas reais. Talvez pudéssemos dizer: a verdade das coisas é quando o

A luz natural da razão, contudo, não é o

ente realiza a sua ideia, isto é, a sua essência ori-

bastante para que o homem alcance toda a ciên-

ginária, o exemplar presente na mente divina. A

cia, que lhe é possível. Ele precisa, antes de tudo,

verdade dos discursos é a “indivisio entis ad esse”,

do lume infuso da fé, para alcançar uma clara

ou seja, a “indivisão” do ente em relação ao ser,

noção de Deus como criador e como salvador.

melhor dizendo, é a adequação do que é expresso

Além da ciência ilosóica, há a ciência teológi-

com o intelecto. A verdade dos costumes é a “in-

ca. Entretanto, as ciências não se exaurem nestas

divisio entis a ine”, ou seja, a “indivisão” do ente

duas. A elas Boaventura acrescenta, ainda, uma

a partir do im, que é o sumo Bem; quer dizer,

“ciência gratuita” e uma “ciência gloriosa”, cada

é a retidão, pela qual o homem vive bem, dentro

qual com sua claridade. Conhecer é, para o ho-

e fora, segundo o ditame do direito e da justiça.

mem, transcender de claridade em claridade.

Estas três sendas da ciência ilosóica conduzem

Aqui há de se notar que há a claridade da ci-

a Deus, enquanto este é a “causa essendi” (causa

ência ilosóica, da ciência teológica, da ciência

do ser), a “ratio intelligendi” (razão do inteligir)

24| Coll. IV, n. 3, p. 184.

gratuita e da ciência gloriosa. A claridade da ci-

e o “ordo vivendi” (ordem do viver) [25]. A ilo-

25| Coll. IV, n. 7, p. 186.

ência ilosóica é grande segundo a opinião dos

soia é, assim, um grande espelho que relete os

26| Coll. IV, n. 11, p. 188.

homens do mundo, entretanto, é pequena em

vestígios da Trindade [26].

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3. A insuficiência da filosofia Entretanto, a ciência ilosóica é insuiciente. Sua claridade se eclipsa facilmente: “si aliquid interponatur inter ipsum [homo] et solem iustitiae, patitur eclipsim stultitiae” – “se algo se interpõe entre ele [o homem] e o sol da justiça, ele sofre o eclipse da estultícia” [27]. Quem

que é Deus, é uma luz inacessível para nós, pois, diz Boaventura recorrendo a uma expressão de Aristóteles, nós temos olhos semelhantes aos de morcego em relação ao que há de mais manifesto na realidade. No Itinerário da Mente para Deus, Boaventura diz:

conia na ciência ilosóica e se aprecia por isso,

Admirável, pois, é a cegueira do intelecto, que

considerando-se melhor, se torna estulto. Ele se

não considera aquilo que por primeiro vê e sem

comporta como o homem que, com a luz de uma

o qual nada pode conhecer. Mas, assim como o

vela, quisesse ver o céu ou a luz do sol. O conhecimento metafísico fatalmente se desvia e induz ao erro, se o homem se apoia somente em suas próprias possibilidades:

olho, voltada para as várias diferenças das cores, não vê a luz, pela qual vê tudo o mais, e se acaso vê, não se dá conta que vê; assim também o olho de nossa mente, voltado para os particulares e os universais, não adverte, porém, o ser mesmo, que

Admitindo-se que o homem tenha a ciência na-

está fora de todo o gênero, a saber, aquele que

tural e metafísica, que se estenda às substâncias

primordialmente ocorre á mente e pelo qual to-

sumas, e que aí o homem chegue e aí repouse: é

das as outras coisas lhe vêm ao encontro. Donde,

impossível que isto se dê, sem que o homem caia

mostra-se de maneira muito verdadeira, que “as-

em erro, a não ser que seja ajudado pela luz da

sim como o olho do morcego se comporta com

fé, ou seja, que o homem creia em Deus uno e

a luz, assim também o olho da nossa mente com

trino, potentíssimo e ótimo segundo a inluência

a natureza mais manifesta”. Isto se dá porque,

da bondade [28].

acostumado às trevas dos entes e aos fantasmas

27| Coll. IV, n. 12, p. 188.

Assim, os ilósofos foram obscurecidos

28| Coll. IV, n. 12, p. 190.

pela ciência ilosóica, que, em si mesma é uma

29| Coll. IV, n. 12, p. 190.

claridade e um dom de Deus, devido ao fato de

30| Tradução minha a partir do texto latino apresentado em manuscrito com ensaio de tradução de Raimundo Vier (Curitiba, s/d.). Cfr. também: Boaventura de Bagnoregio. Escritos filosófico-teológicos. Introdução, notas e tradução de Luis A. De Boni e Jerônimo Jerkovic. Coleção Pensamento Franciscano, v. I. Porto Alegre/Bragança Paulista: EDIPUCRS e USF, 1999, p. 334. A referência de Aristóteles é: Metaphysica II, c. 1, 993 b 3-14. Aristotele. Metafisica. Testo greco a fronte. A cura di Giovanni Reale. Milano: Rusconi, 1993, p. 70-71.

é somente credível. Com efeito, a luz eterna,

considerarem-na autossuiciente e de não terem recorrido à luz da fé. A ilosoia deve ser encarada pelo homem sempre como via e nunca como

das coisas sensíveis, quando o olho da mente intui a luz mesma do sumo ser, parece-lhe nada ver; não compreendendo que a própria caligem é a suprema iluminação de nossa mente, assim como quando o olho vê a pura luz, parece-lhe que nada vê [30].

destino de sua existência: “philosophica scientia

Portanto, sem a luz da fé, ou melhor, como

via est ad alias scientia; sed qui ibi vult stare ca-

diz Agostinho [31], sem a puriicação do olhar

dit in tenebras” – “a ciência ilosóica é via para

da mente (acies mentis) por meio da justiça da fé,

outras ciências; mas quem quer icar plantado

a contemplação das coisas mais elevadas acaba

aí acaba caindo em trevas” [29]. O que importa

terminando numa queda no abismo da escuri-

ao homem é fazer a travessia (transire) da vida,

dão. A fé funda a ciência teológica. A ciência

transcendendo de claridade em claridade, de ci-

teológica está fundada sobre a fé, assim como a

ência em ciência. Além da ciência ilosóica se

ciência ilosóica está fundada sobre os primeiros

encontra, imediatamente depois, a ciência te-

princípios. “Sobre a fé” signiica: sobre a Sagrada

ológica, que é o saber da revelação contida na

Escritura interpretada espiritualmente, ou mais

Escritura Sagrada, saber alcançado a partir da

exatamente, sobre os artigos da fé professada

iluminação da fé. Trata-se de um conhecimento

pela Igreja a partir da revelação bíblica [32]. A

pio (notitia pia), ou seja, de um conhecimento

leitura literal não basta. É preciso a leitura es-

31| De Trinitate I, c. 2, n. 4 (PL 42, 822).

que é cultivado na relação religiosa do homem

piritual. É que a Escritura Sagrada é sempre

32| Cfr. Coll. IV, n. 13, p. 190.

com Deus; e um conhecimento pio de uma ver-

multiforme em seus sentidos. “In uma littera est

dade que, desta vez não é perscrutável, mas que

multiplex sententia” – “em uma letra há multípli-

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ce sentença” [33]. Entretanto, a ciência teológica

1). Estão num relacionamento justo com o sa-

mesma não é útil, mas danosa, se o homem que

ber, porém, aqueles que querem saber para serem

tem esta ciência não a completa com as obras do

ediicados e para ediicar os outros [36].

amor. Se a primeira claridade, a da ciência ilosóica, pode obscurecer quem com ela se ocupa, a segunda claridade, a da ciência teológica, pode

4. O intelecto e o empenho da busca da sabedoria

condenar o homem, se este não faz aquilo que

Na sétima conferência sobre os dons do Espírito

sabe dever fazer, ou seja, se ele não vive segundo

Santo, em que Boaventura fala do dom do

aquilo que a fé lhe ensina [34]. Por isso, acima

conselho, Boaventura pergunta: onde encontrar

da ciência teológica está a claridade de outra ciência, que é a “scientia gratuita”. A ciência gratuita é aquela que, de modo próprio, é um dom do Espírito Santo. É o conhecimento santo da verdade, que, aqui, mais do que crida, é amada. O amor é mais excelente do que a fé. Sem o amor, a fé é vã. Poderíamos dizer que não se trata mais de um “intellectus idei” (intelecção da fé), mas sim de um “intellectus amoris” (intelecção do amor, da caridade). É a ciência dos santos. É a ciência dos mártires. Desta ciência está longe a ilosoia dos escolásticos: “hoc non docet philosophia, quod pro conclusione exponham me mori” – “isto não ensina a ilosoia: que, pela conclusão (de um silogismo) eu deva me expor à morte” [35]. Evidencia-se assim que, recorrendo a Bernardo de Claraval, o que importa não é o homem saber muitas coisas (multa scientem), mas saber o modo de saber (modum sciendi). O modo de saber se deine pela ordem, pelo empenho e pelo im. Pela ordem: que o homem primeiramente aprenda aquilo que é mais maduro para a salvação (maturius est ad salutem). Pelo empenho (studium): que o homem estude de modo a se deixar atrair ardentemente por Deus. Pelo im: que o homem estude não por causa de uma inane glória própria

a sabedoria? Qual é o lugar da inteligência? E responde que a sabedoria não é encontrada pelo homem “carnal”, ou seja, pelo homem que vive segundo o modo humano de viver (ab homine humano modo vivente). Se o homem quiser encontrar a sabedoria, tem de transcender o próprio homem e o que é naturalmente humano. Ele tem que se tornar mais que homem (plus quam homo). Ele deve poder viver a partir do Espírito de Deus e a partir daí receber a sabedoria, que provém da profundidade do mistério. O homem pode saber essa sabedoria se transcende o modo carnal, cômodo e meramente humano, de viver. A sabedoria (sapientia) que ele aprende assim, porém, não é mero conhecer, mas é também e acima de tudo um saborear, um perceber o sabor das realidades divinas [37]. Na perspectiva boaventuriana, com efeito, sapiência é mais do que ciência. A ciência consiste num saber (scire), que se dá no modo de um conhecer. A sapiência, por sua vez, é mais do que saber: é saborear o mistério. Trata-se, portanto, de um saber afetivo experimentado a partir do cultivo da relação religiosa do homem com Deus. Tratase não só de um saber afetivo, mas também de um saber operativo, de um saber que se traduz em ação, obra, práxis:

33| Coll. IV, n. 15, p. 192.

ou por curiosidade, mas para a ediicação sua e

Não basta ter boa vontade, a não ser que o ho-

34| Cfr. Coll. IV, n. 18, p. 194-196.

do próximo. São tomados de torpe curiosidade,

mem queira agilizá-la em obras, passando da

35| Coll. IV, n. 22, p. 198.

torpe vaidade, aqueles que querem saber apenas

36| Cfr. Coll. IV, n. 23-24, p. 198-200.

para se tornarem reconhecidos ou que querem saber para vender a sua ciência por dinheiro ou

ber, “saber, querer e operar resolutamente” [38].

37| Cfr. Coll. VII, n. 1, p. 236.

pelas honras dos homens. Como diz o Apóstolo:

Esta concepção afetiva e prática da sabe-

a ciência inla, mas a caridade ediica (1 Cor 8,

doria cristã é reairmada na oitava conferência,

38| Coll. VII, n. 8, p. 240.

aqueles que querem saber apenas por saber; de

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força ou capacidade (virtus) intelectiva à afetiva e da afetiva à práxis (operationem). O Filósofo diz que três são as coisas necessárias à virtude, a sa-

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60| O Confronto de São Boaventura com A Filosoia nas Conferências de Paris sobre Os Dez Mandamentos e... | Marcos Aurélio Fernandes | 51 - 68 quando Boaventura trata do dom do intelecto.

O intelecto se encontra no tesouro da sabedoria.

Sabedoria e simplicidade andam juntas. Deus

O estudo da verdade consiste em cavar este te-

esconde os seus mistérios aos sábios e revela-os

souro. Este estudo o homem o realiza em parte

aos pequeninos, como diz o evangelho (Mt 11,

a partir do que ele aprende pela frequência da

25). Neste contexto, “sábios” são os que sabem

experiência, como por uma luz exterior; em par-

muitas coisas; “pequeninos” são os que sabem

te a partir do que o homem aprende pelo ditame

pouca coisa. Mas “pequeninos” também são

da luz natural da razão, como por uma luz inte-

aqueles que sabem muitas coisas, e que, portan-

rior; por im, em parte a partir da iluminação da

to, poderiam ser considerados sábios aos olhos

luz eterna, como por uma luz superior [42]. A

do mundo, mas que se atém humildemente em

experiência torna o homem experto, perito em

relação à sabedoria. A humildade franqueia ao

muitas coisas. Neste ponto, ao falar da intelecção

homem o caminho da sabedoria, enquanto a

que parte da experiência, Boaventura recorre a

presunção lhe fecha este caminho:

Aristóteles: “a partir de muitas sensações se faz

Nada obscurece tanto o intelecto em relação

uma memória; a partir de muitas memórias se

àquelas coisas que concernem a Deus do que a

faz uma experiência; a partir de muitas experi-

presunção. Todos louvamos a humildade e vi-

ências se faz o universal, que é o princípio da

tuperamos a presunção, poucos, no entanto, são

arte e da ciência” [43]. De fato, há arte ou ciência

imunes da presunção. Diz Ricardo de São Vítor,

quando o homem conhece, a partir da experiên-

que “disputando contra a soberba o homem frequentemente se ensoberbece” [39].

39| Coll. VIII, n. 1, p. 252. 40| Coll. VIII, n. 5, p. 254-256.

cia, certas leis que regem o acontecer das coisas, as quais podem ser expressas em proposições

Quem mais crê saber, frequentemente é

universais. Ao falar do intelecto a partir do que

quem sabe menos. Sem disciplinar o seu inte-

o homem conhece segundo o ditame natural da

lecto e seguir pela fé o que a Sagrada Escritura

razão, que é como uma luz interior, Boaventu-

diz, o homem não compreende as coisas divinas,

ra nota que a alma humana tem três operações

e acaba cogitando muitos erros. Por isso, Boa-

ou três potências. Ela pode se voltar (convertere)

ventura reairma o dito da versão dos setenta

sobre o seu corpo; sobre si mesma; e às coisas di-

da Bíblia, abraçado como lema para Agostinho:

vinas. Daí advêm três deinições da alma: como

“nisi credideritis, non intelligetis” – “a não ser que

forma do corpo; como “hoc aliquid” (este algo),

creiais, não compreendereis”. Com efeito, as coi-

ou seja, como uma substância singular de na-

sas de que versam as Escrituras Sagradas trans-

tureza intelectual (pessoa); e como “imago Dei”

41| Coll. VIII, n. 8, p. 256-258.

cendem a nossa inteligência, ou seja, a razão que

(imagem de Deus). A propósito da iluminação

42| Coll. VIII, n. 12, p. 260

atua segundo a luz natural. Por isso, a indiscipli-

natural Boaventura diz:

na na potência racional da alma torna-se o maior

43| Coll. VIII, n. 14, p. 262. As referências de Aristóteles são: Analíticos Posteriores II, c. 19 (100 a 3-8); Metafísica I, c. 1 (980 b 29 – 981 a 4). Cfr. Aristóteles. Órganon. Tradução de Edson Bini. Bauru-SP: EDIPRO, 2005, p. 344. Aristotele. Metafisica. Testo greco a fronte. A cura di Giovanni Reale. Milano: Rusconi, 1993, p. 2-3. 44| Coll. VIII, n. 13, p. 260.

impedimento para que o homem compreenda as coisas divinas [40].

A nossa alma, porém, tem sobre si certo lume natural impresso (quoddam lumen naturae signatum), pelo qual é hábil a conhecer os primeiros

O intelecto tem três funções: é a regra das

princípios, ainda que isto somente não baste,

circunspecções morais; é a porta das considera-

porque, segundo o Filósofo, “conhecemos os

ções cientíicas e a chave da contemplação das coisas divinas. No primeiro caso, trata-se do intelecto prudencial, em que o homem, seguindo o ditame da divina lei, conhece o mal que deve

princípios, enquanto conhecemos os termos”. Quando, pois, sei o que é “todo” e o que é “parte”, imediatamente sei que “todo todo é maior do que sua parte” [44].

evitar e o bem que deve realizar [41]. Em segun-

Entretanto, somente a intelecção a partir

do lugar, o intelecto é a porta das considerações

da experiência e da a partir do ditame natural

das ciências (ianua considerationum scientialium).

da razão não são o suiciente. O homem precisa

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de uma iluminação “sobrenatural”, que se dê “per

do ser (causa essendi) produzindo imediatamente

divinam inluentiam” (pelo inluxo divino). Nada

todas as coisas perpétuas; mediatamente, produ-

se pode saber de Deus com certeza a não ser

zindo todas as coisas temporais; e imediatamen-

que se saiba por graça dele mesmo. Neste ponto,

te também ao produzir as virtudes elementares

Boaventura recorda Agostinho, que pergunta a

do cosmo. Deus é razão do inteligir (ratio in-

partir donde acontece que o injusto, de vez em

telligendi) porque é a partir dele que advém à in-

quando, julga bem acerca da justiça. Onde es-

teligência criatural a certeza, acima de toda sua

tão escritas as leis da justiça segundo as quais

mutabilidade. É ordem do viver (ordo vivendi),

e a partir das quais mesmo um homem injusto

pois, por sua inabitação na alma, o homem é re-

pode julgar de modo justo? A sua resposta vem

gido pelas regras da vida reta. Assim sendo Deus

na seguinte versão boaventuriana: “estão escri-

entra na alma como princípio do seu ser, como

tas no livro da luz eterna, e não emigrando dela,

sol da inteligência e como dom infuso [48].

mas imprimindo-se, descem à alma, assim como a imagem passa do anel à cera, sem abandonar o anel” [45]. Assim, na intelecção acontece um processo em que, por um lado, o intelecto age com sua capacidade natural de discernir e de julgar, por outro lado, ele recebe a iluminação divina. Por sua vez, a iluminação acusa um contato imediato entre Deus e a alma. Se há alguma mediação angélica, esta mediação é apenas a modo de uma assistência ou de um serviço (ministerialiter et adminiculative). Se se diz que o anjo ilumina a alma, falando-se por analogia, ele o faz não como o sol ilumina uma sala, mas como alguém que abre a janela para que a luz penetre na sala. Somente Deus tem poder sobre a alma racional, porque esta é formada por ele de modo imediato. A conclusão positiva é que somente Deus é mestre do homem. A negativa atinge o ensinamento dos ilósofos sobre as Inteligências: “portanto, não é verdadeiro o que dizem os ilósofos, que uma Inteligência cria outra, porque criar é próprio do Deus onipotente, 45| Coll. VIII, n. 15, p. 262. 46| Coll. VIII, n. 15, p. 262. 47| Coll. VIII, n. 15, p. 264. A referência de Agostinho é: Da Trindade XIV, c. 12, n. 16. Cfr. Agostinho. A Trindade. São Paulo: Paulus, 1994, p. 462. 48| Coll. VIII, n. 15, p. 264.

não de algum poder criado; por isso, fazer isso é próprio daquela luz que é Ato Puro” [46].

5. Outra abordagem sobre os erros dos filósofos: o embate de círculo e cruz. Neste contexto, Boaventura volta a combater os erros dos ilósofos. Segundo ele, três são os erros a serem evitados nas ciências, os quais exterminam a Sagrada Escritura e a fé cristã. O primeiro erro é contra a causa do ser, a saber, o erro da eternidade do mundo. O segundo erro é contra a razão do inteligir, ou seja, a necessidade fatal. O terceiro erro é contra a ordem do viver, isto é, a tese da unidade do intelecto humano. Uma tríplice tese do aristotelismo averroísta dos ilósofos da faculdade de artes é combatida, ou seja: que põe o mundo eterno; que põe que tudo acontece por necessidade; e que põe que há um único intelecto (agente) em todos os homens. A aparição deste tríplice erro, contudo, é visto por Boaventura em chave escatológicoapocalíptica representado no número da besta do Apocalipse: seiscentos e sessenta e seis (Ap. 13,18), que é, segundo Boaventura, um número cíclico. O número seis é três vezes repetido. O número seis é o número das criaturas e do

Deus está imediatamente próximo do ho-

homem. As criaturas são criadas em seis dias.

mem. “Nele vivemos, nos movemos e somos”,

O homem é criado no sexto dia. Trata-se, aqui,

como disse Paulo no seu discurso aos ilósofos

de um aprisionamento do homem na imanên-

no Areópago em Atenas (At 17, 28). E Agosti-

cia criatural, uma recusa da transcendência. Um

nho esclarece que Paulo não está falando, aqui,

aprisionamento que, repetido por três vezes, se

de nossa vida corpórea, mas de nossa vida in-

potencializa cada vez mais (há o seis; depois o

telectiva [47]. Deus é, como já vimos, causa do

sessenta, que é o seis dez vezes; e seiscentos, que

ser, razão do inteligir e ordem do viver. É causa

é o seis cem vezes). Sobre o caráter cíclico da re-

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62| O Confronto de São Boaventura com A Filosoia nas Conferências de Paris sobre Os Dez Mandamentos e... | Marcos Aurélio Fernandes | 51 - 68 presentação aristotélica-averroísta dos ilósofos

Sendo que tomamos o círculo como símbolo da

da faculdade de artes Boaventura elucida: os que

razão e da loucura, podemos muito bem tomar a

põem ser o mundo eterno se fundamentam so-

cruz como o símbolo ao mesmo tempo do misté-

bre o círculo do movimento e do tempo; os que põem ser a necessidade fatal que rege todos os acontecimentos se fundam sobre o movimento dos astros; os que põem ser um só o intelecto em todos os homens, consideram que esta In-

tamanho; ele nunca pode ser maior ou menor. Mas a cruz, embora tendo no seu centro uma colisão ou contradição, pode estender seus quatro braços eternamente sem alterar sua forma. Por ter um paradoxo no seu centro ela pode crescer

choca com a Sagrada Escritura e com a fé cris-

sem mudar. O círculo retorna sobre si mesmo

tã: contra a criação a partir do nada; contra o

e está encarcerado. A cruz abre seus braços aos

livre-arbítrio, anulando, assim, a cruz de Cris-

quatro ventos; é o poste de sinalização dos via-

to; e contra a diferença entre mérito e prêmio,

jantes livres [51].

Não que a cruz deva se contentar em sim-

e a responsabilidade dos diferentes indivíduos

plesmente excluir o círculo. Um relacionamento

[49]. Por conseguinte, a luta entre a fé cristã e

que exclui o seu oposto não consegue ser um

a ilosoia dos artistas aristotélico-averroistas é

relacionamento pleno. Por isso, no cristianis-

a luta entre o círculo e a cruz: entre identidade

mo, a cruz subsume o círculo, como aparece, por

e diferença, entre unidade e oposição, entre ple-

exemplo, na imagem da cruz irlandesa. Heinrich

nitude e vazio, entre eternidade e tempo, entre

Rombach, analisando esta imagem escreve:

atemporalidade e temporalidade, entre imanência e transcendência. A defesa da cruz é a defesa

“Cruz e Círculo são sinais, os mais antigos e elementares. Ambos em contraposição: a Cruz,

da diferença, da individualidade, da liberdade,

dura, reta e contraditória; o Círculo, redondo,

do amor. Chesterton intuiu isso quando escreve:

tenro e oscilante. A antiga Cruz irlandesa de

O amor deseja a personalidade; por isso deseja a divisão. O cristianismo instintivamente se alegra por Deus ter fragmentado o universo em pequenas partes, porque essas partes são vivas. Instintivamente ele diz “Criancinhas, amai-vos umas às outras”, em vez de mandar uma pessoa enorme amar a si mesma (...). Todas as ilosoias 49| Coll. VIII, n. 16, p. 264.

modernas são correntes que se interconectam e

50| Chesterton, G. K. Ortodoxia. Traduzido por Almiro Pisetta. São Paulo: Mundo Cristão, 2008, p. 218.

ra e liberta. Nenhuma outra ilosoia faz Deus de

52| Rombach, H. Leben des Geistes - Ein Buch zur Fundamentalgeschichte der Menscheit.Freiburg / Basel / Wien: Herder, 1977, p. 140.

em sua natureza; mas é ixo para sempre em seu

teligência entra e sai no corpo. Este tríplice erro

anulando, assim, a individualidade, a liberdade

51| Chesterton, G. K. Ortodoxia. Traduzido por Almiro Pisetta. São Paulo: Mundo Cristão, 2008, p. 49.

rio e da saúde (...)... o círculo é perfeito e ininito

prendem; o cristianismo é uma espada que sepafato exultar com a divisão do universo em almas vivas. Mas segundo o cristianismo ortodoxo essa

pedra liga ambos os sinais em compenetração mútua: o Círculo se cruza com círculos. A Cruz abraça um movimento circular. O que dizem esses sinais? Círculo signiica plenitude, riqueza, dom, como também, alegria, estima, valor. O que nos é importante, nós o marcamos com círculos; o que nos é caro, o rodeamos em círculo. Anel e aro são símbolos da Vida e da Unidade. Também do sol. Cruz diz diferença, signiica oposição, contradição, também risco. Serve para a marcação, para sinalizar, para estigmatizar. Ela diz evento, ação, quebra, dor e morte. Círculo e Cruz, se unidos, podem só ser lidos como: ir-

separação entre Deus e o homem é sagrada, por-

rupção para plenitude, evento da unidade através

que é eterna [50].

de uma única ação singular; em suma: superação

E Chesterton, assim como Boaventura,

[52].

também entende que uma concepção cíclica ou

Numa concepção cíclica e circular não

circular da realidade, presente no paganismo e

acontece propriamente história. Historicidade

em todo o imanentismo, é oposto da concepção

se experimenta a partir do momento em que

cruciforme ou “crucial” da realidade, presente no

se experimenta liberdade, responsabilidade,

cristianismo. Ele diz:

singularidade, diferença, oposição, contradição,

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risco, enim, quando a cruz marca a realidade.

diz Tiago (1, 17). O modo de ser espelho, porém,

Mas o evento pascal da cruz é também a morte

é diverso, na mente divina, na mente angélica e

da morte e a irrupção da vida plena. Entretanto,

na mente humana. Em Deus, espelho e luz é

trata-se de uma plenitude que advém e sobre-

a mesma coisa. No anjo, luz e espelho se dife-

vém pelo esvaziamento e de uma nova criação

renciam por razão e por natureza, mas não pelo

que se dá, de novo, de nihilo (do nada), do abis-

tempo. É que o intelecto angélico compreende

mo da morte.

todas as formas ou arquétipos das coisas num só

Ao im da oitava conferência, pois, Boaventura argumenta contra os três supraditos erros. O primeiro erro, que põe a tese segundo a qual o mundo é eterno, destrói a causa dos ser. Ao se negar a criação de nihilo (a partir do nada), se airma que as coisas têm, simultaneamente, o ser e o não-ser, ou que têm o ser antes do nãoser, o que é inconveniente [53]. Ao se airmar a necessidade fatal (ou o determinismo fatalista), a partir das conigurações astrológicas, tornase vão o livre-arbítrio: “porque se o homem faz o que faz a partir da necessidade, o que vale o livre-arbítrio?” [54]. A consequência é que se destrói todo o mérito e toda a imputabilidade. O terceiro erro, que nasce da ignorância sobre a natureza do intelecto, porém, é o pior de to-

instante. Mas, no homem, espelho e luz são coisas diversas não só segundo a razão e a natureza, mas também segundo o tempo: o homem não compreende subitamente tudo o que ele pode compreender. Assim, a temporalidade é caráter radical do espírito ou do intelecto humano. Por ser radicalmente temporal e inita é que o intelecto humano precisa aprender, precisa julgar e raciocinar, precisa se dar como intelecto possível (receptivo) e como intelecto agente (ativo), precisa, enim, ser iluminado por uma luz superior à sua própria luz, pois, como diz o Filósofo: “Assim como se comporta o olho do morcego em relação à luz do sol, assim também se comporta o nosso intelecto em relação às coisas claríssimas da natureza” [56].

lecto seja um em todos, isto é contra a raiz da

6. VI. A sabedoria do mundo contra a sabedoria de deus

distinção e da individuação, porque em diversos

Na nona e última conferência sobre os

indivíduos o intelecto tem um ser distinto: por-

sete dons do Espírito Santo, Boaventura trata

tanto, possui os princípios próprios, distintos e

da sabedoria ou sapiência (sapientia). A sabedo-

individuantes da sua essência” [55]. Os ilósofos

ria provém de Deus como sua dádiva, mas, para

ensinaram que uma única Inteligência criada

receber este dom, o homem tem que desejá-la

irradia sua luz sobre todos os homens. Na ver-

e também tem que preparar a sua alma, dedi-

dos, pois reúne os outros dois. “Que este inte-

dade, porém, esta é uma prerrogativa somente

cando-se à justiça. E a suma justiça é o homem

53| Coll. VIII, n. 17, p. 266

de Deus. Toda inteligência criada é apenas um

render glória a Deus e desejar e pedir de Deus

54| Coll. VIII, n. 18, p. 266.

espelho da luz divina e eterna. Toda inteligência

a sabedoria [57]. Na verdade, o cristão é cha-

é capaz de relexão, isto é, é capaz de um retorno

mado a pedir e a receber a sabedoria verdadeira

55| Coll. VIII, n. 19, p. 266

sobre si mesma (reditio). Por isso, toda substân-

que vem de Deus e a fugir da vã sabedoria que

cia intelectual conhece a si mesma, se ama e se

vem do mundo, ou seja, dos homens que amam

56| Coll. VIII, n. 20, p. 266-268. A referência a Aristóteles é: Metafísica II, c. 1, 993 b 9-14. Aristotele. Metafisica. Testo greco a fronte. A cura di Giovanni Reale. Milano: Rusconi, 1993, p. 70-71.

julga. Por isso, se assemelha a um espelho, que

o mundo, dos homens mundanos. Com efeito,

irradia de volta a luz que sobre ele incide. Neste

há a sabedoria celeste e há a sabedoria terrena.

sentido, Boaventura parece equacionar “reditio”

A alma está entre ambas: ela tem “duplex aspec-

e “reductio”, ou seja, a capacidade de relexão, de

tus”, ou seja, duas perspectivas ou dois olhares;

retorno sobre si mesmo, e a capacidade de fazer

tem também “duplex afectus”, dois afetos. Um

retornar à sua fonte a luz do conhecimento que

olhar e um afeto se voltam para o alto, ou seja,

sobreveio ao homem do “Pai das luzes”, como

para as coisas incorruptíveis do espírito, para a

57| Cfr. Coll. IX, n. 1, p. 270.

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64| O Confronto de São Boaventura com A Filosoia nas Conferências de Paris sobre Os Dez Mandamentos e... | Marcos Aurélio Fernandes | 51 - 68 eternidade. Outro olhar e outro afeto se voltam

cado, parecia-me demasiadamente amargo ver

para baixo, ou seja, para as coisas corruptíveis

leprosos. E o próprio Senhor me conduziu entre

do mundo terreno, para a temporalidade. Por

eles e iz misericórdia com eles. E afastando-se

isso, há também uma sabedoria que é do alto e

deles, aquilo que me parecia amargo, converteuse em doçura da alma e do corpo; e, em seguida,

uma sabedoria que é de baixo, que, no dizer do

detive-me por um pouco e saí do mundo [60].

apóstolo Tiago é “terrena, carnal, diabólica” (Tg 3, 14-15). Esta sabedoria, diz Boaventura, “com

Boaventura também, neste contexto de

toda a solicitude busca deleitar-se em toda a su-

suas conferências em Paris, também recorda aos

avidade, na aluência das riquezas seculares e na

seus ouvintes a necessidade de desprezar a sapi-

experiência dos deleites sensuais e na excelên-

ência terrena e apreciar a sapiência da cruz. Pois

cia ou na ambição das pompas mundanas” [58].

Cristo sofreu a loucura da morte de Cruz para

A solicitude por se deleitar na riqueza a torna

esvaziar a sapiência do mundo; e ressuscitou e

terrena; a solicitude por se deleitar nos prazeres

subiu ao céu para que o homem desejasse a sa-

a torna carnal ou animal; e a solicitude por se

bedoria do alto e amasse a fonte da vida, que

deleitar na excelência e na pompa mundana a

é Deus. Portanto, a máxima estultícia é o cris-

torna diabólica. Com efeito, o caráter distintivo

tão tornar vã ou vazia a morte de Cristo, aban-

do diabólico é a soberba, que é a raiz de todos

donando a sapiência da cruz pela sapiência do

os males.

mundo. Fazê-lo, seria ir contra a admoestação

É esta sabedoria que Paulo chama de “sabedoria do mundo” oposta à “loucura da cruz”, que é a sabedoria do cristão (Cfr. 1Cor 1, 18-

58| Coll. IX, n. 2, p. 272. 59| Coll. IX, n. 3, p. 272. 60| Fassini, D. (org.).Fontes franciscanas. Santo André: Mensageiro de Santo Antônio, 2004, p. 83. 61| Coll. IX, n. 4, p. 274.

do Apóstolo de não se esvaziar e tornar vã a cruz de Cristo: ne evacuetur crux Christi (1 Cor. 1, 17) [61].

30). É esta sabedoria que está destinada a ser

Entretanto, como é a sabedoria do alto,

destruída e reprovada por Deus. Com efeito, foi

a sapiência cristã? Enquanto a sapiência do

para dispersar esta sabedoria que Cristo morreu

mundo é trevas, a sapiência do alto é luz, que

a morte de cruz. Foi para ensinar os homens

descende do Pai das luzes (Tg 1, 17). É luz que

a precaver-se com ela que Cristo se fez pobre,

sobrevém ao homem para iluminar as três po-

alito e humilde. Na loucura da cruz, Cristo es-

tências da alma humana: a cognitiva, a afetiva e

colheu o que é contrário à sabedoria do mundo.

a operativa; ou seja, o intelecto, o afeto e a ação

Em lugar da riqueza, a pobreza; em lugar dos

do homem. Ela ilumina a potência intelecti-

prazeres sensuais, o sofrimento; em lugar da so-

va da alma como um esplendor da luz eterna,

berba, a humilhação [59]. Aos olhos da sabedo-

tornando o homem amigo de Deus. Ela é luz

ria do mundo, Cristo aparece como um estulto,

que sobrevém para alegrar a potência afetiva da

um louco. A sapiência da cruz é amarga para o

alma: “ubi veritas illabitur animae et eam replet

mundo; mas é doce para o cristão. A sapiência

et laetiicat” – “onde a verdade penetra a alma, a

do mundo é doce para os homens mundanos;

pleniica e a alegra” [62]. Em terceiro lugar, a luz

mas é amarga para os cristãos. Aqui pode-se

da sapiência sobrevém à alma para corroborar a

evocar as palavras de Francisco de Assis em seu

sua potência operativa. Ela dá ao homem a for-

Testamento, quando ele fala de sua conversão

taleza para operar o bem [63].

em termos de mudança de sapiência, ou seja, em termos de mudança de sabor, uma mudança que acontece quando ele passa a viver com os leprosos:

Boaventura passa a falar de modo personiicado da sabedoria, regatando, assim, um uso dos escritos sapienciais do Antigo Testamento. Esta sabedoria é ediicante. Ela ediica a Igreja e

62| Coll. IX, n. 6, p. 274.

O Senhor deu a mim, Frei Francisco, começar

a alma, tornando-as morada de Deus. Na verda-

63| Coll. IX, n. 7, p. 276.

a fazer penitência assim: como estivesse em pe-

de, ela ama habitar junto dos ilhos dos homens

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O Confronto de São Boaventura com A Filosoia nas Conferências de Paris sobre Os Dez Mandamentos e... | Marcos Aurélio Fernandes | 51 - 68

(Cfr. Pr 8, 31). Ela constrói uma casa ou uma

plicidade vence a sabedoria do mundo. Para

morada para os homens, uma casa que tem sete

Boaventura, a simplicidade é o contrário da hi-

colunas, e convida os homens a virem morar jun-

pocrisia, ou melhor, da duplicidade de coração

to dela e alegrar-se com o seu banquete (Cfr. Pr.

ou de alma. Simplicidade é unidade: unidade de

9, 1-6). Mas, quais são as sete colunas da casa

coração, de alma, de intenção. Ora, a intenção

da sabedoria? Boaventura responde a esta per-

do coração está ali onde está o tesouro que o ho-

gunta recorrendo às sete condições da sabedoria

mem ama. A intenção do coração do cristão está

do alto, apresentadas pelo apóstolo Tiago (Tg

no alto, onde está Cristo, a vida [68]. Por isso,

3,17) [64]. Boaventura comenta, então, as sete

Boaventura retoma a imagem segundo a qual o

propriedades ou condições da sabedoria, vendo-

homem é como uma árvore invertida: suas raízes

as não só como colunas, mas também como de-

estão no céu:

graus. A primeira condição da sabedoria é a pureza em relação à sensualidade carnal; a segunda

com efeito, tem a raiz em baixo, o homem, no

no falar; a quarta é a suavidade no afeto (in afec-

alto; também o edifício espiritual tem o funda-

tu); quinta, a liberalidade no agir (in efectu); sex-

mento no alto, enquanto aquele corporal o tem

ta, a maturidade no julgar (in iudicio); e, sétimo,

em baixo [69].

Esta sétima é a mais alta e a mais importante condição da sabedoria: a simplicidade. Pode-se evocar, aqui, a igura de Francisco de Assis, ícone da simplicidade. Ele mesmo, na sua “saudação das virtudes”, ao saudar as virtudes como damas, que estão ordenadas em pares, saúda a simplicidade como irmã da sabedoria. Ele chama a sabedoria de rainha e põe a simplicidade do seu lado: “Ave, rainha sabedoria, o Senhor te salve com tua irmã, a santa e pura simplicidade” [66]. Neste escrito poético, Francisco retoma o tema medieval da conexão das virtudes (apoiado em Tg 2,10), ao dizer:

65| Coll. IX, n. 9, p. 276. 66| Fassini, D. (org.). Fontes franciscanas. Santo André: Mensageiro de Santo Antônio, 2004, p. 131. 67| Fassini, D. (org.). Fontes franciscanas. Santo André: Mensageiro de Santo Antônio, 2004, p. 131-132. 68| Coll. IX, n. 17, p. 284. 69| Coll. IX, n. 17, p. 284.

trário ao da árvore em relação à raiz: a árvore,

é a inocência na mente; a terceira é a moderação

a simplicidade na intenção (in intentione) [65].

64| Coll. IX, n. 8, p. 276.

O modo de ser do homem se põe em modo con-

Boaventura, pois, em nome da sabedoria do alto, combateu a sabedoria terrena. Pode-se, sem mais, identiicar a ilosoia com a sabedoria terrena? Sim e não. Sim, caso o cristão tome a ilosoia como autossuiciente, fechada em sua imanência, tornando, assim, vã a cruz de Cristo, ou seja, a loucura da cruz, que oculta em si a sabedoria de Deus, a sabedoria do alto. Não, caso o cristão assuma a ilosoia como via para ciências mais elevadas, quais sejam, a ciência da fé, a ciência da caridade, a ciência da visão beatíica. Ou, dito de modo melhor, caso o cristão subsuma a ilosoia como iluminação ou claridade que vem do “Pai das luzes” e se torna capaz de fazer a

Santíssimas virtudes, / o Senhor do qual vindes

“reductio”, ou seja, de reconduzi-la à sua origem,

e procedeis, / vos salve a todas. / Não há, em ab-

ao seu princípio fontal, reconhecendo em Deus

soluto, / homem algum no mundo inteiro que

a causa do ser, a razão do inteligir e a ordem

possa ter / uma de vós sem que morra primeiro.

do viver. Sim, caso o cristão não reconheça os

/ Quem tem uma e às outras não ofende, a todas

limites, as fraquezas, as impotências e impossi-

possui. / E quem a uma ofende, nenhuma possui

bilidades do intelecto humano abandonado a si

e a todas ofende. / E cada uma delas confunde

mesmo, bem como a impregnação nela do modo

os vícios e pecados./ A santa sabedoria confunde Satanás e todas as suas malícias./A pura e santa simplicidade confunde toda a sabedoria deste mundo [67].

de ser de uma sabedoria terrena, carnal, animal, inlada de soberba. Não, caso o cristão reconheça na ilosoia uma possibilidade impossível, uma potência impotente, e, na loucura da cruz, a im-

No combate, pois, entre vícios e virtudes,

possibilidade possível, a impotência que é mais

a sabedoria vence a malícia diabólica, e a sim-

forte do que toda a potência humana. Filosoia e

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66| O Confronto de São Boaventura com A Filosoia nas Conferências de Paris sobre Os Dez Mandamentos e... | Marcos Aurélio Fernandes | 51 - 68

70| Coll. IX, n. 17, p. 284. 71| Pascal, B. Pensamentos. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 237 (fr. 513/4).

sabedoria cristã, por si mesmas, são heterogêneas. Mas, em concreto, se na existência do cristão elas, têm o poder de abrir-lhe riqueza imensa de possibilidades de saber e de viver. Todo o empenho ilosóico e teológico de Boaventura foi de cavar para conquistar o tesouro da ciência e da sapiência, o qual está escondido, em última análise, em Cristo [70]. Combatendo a ilosoia em seu tempo, Boaventura ilosofou, pois, como disse Pascal, “zombar da ilosoia é verdadeiramente ilosofar” [71].

Obras citadas Agostinho. (1994). A Trindade. São Paulo: Paulus. Areopagita, Pseudo Dionisio. (1990). Obras completas del Pseudo Dionisio Areopagita. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos. Aristóteles. (1993). Metaisica. Milano: Rusconi. _________ (2005). Órganon. Bauru-SP: EDIPRO. Boaventura. (1995). Opere di San Bonaventura: Semoni Teologici/2. Roma : Città Nuova. ___________(1999). Escritos ilosóico-teológicos volume I. Porto Alegre: EDIPUCRS / USF. Chesterton. (2008). Ortodoxia. São Paulo: Mundo Cristão. Fassini, D. (. (2004). Fontes Franciscanas. Santo André-SP: Mensageiro de Santo Antônio. Rombach, H. (1977). Leben des Geistes - Ein Buch zur Fundamentalgeschichte der Menscheit. Freiburg / Basel / Wien: Herder. Tonna, I. (1992). Lineamenti di Filosoia Francescana: Sintesi del Pensiero Francescano nei sec. XIII-XIV. Roma: Tau.

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Resenhas | Reviews RESENHAS

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68| O Desespero Humano

| José Luiz Nauiack | 68- 69

O Desespero Humano* José Luiz Nauiack* Com Kierkegaard inicia-se o existencialis-

sespero como uma vantagem e uma imperfeição

mo, pois ele ousou evidenciar que o único res-

que distancia o homem de qualquer outro ani-

ponsável por dar signiicado à vida é o próprio

mal, pois na comparação com a capacidade de

indivíduo ao vivê-la de forma intensa e sincera.

andar em pé, atribui a este poder um sinal de

Ele foi o primeiro a descrever a angústia como

progresso e de sublime espiritualidade.

experiência fundamental do ser livre e colocarse em situação de escolha. Junto com Nietzsche antecipou a crise da razão do século XX e inluenciou Sartre ao incluir a si mesmo no pensar.

como uma profunda vantagem em dialética com a miséria, visto que a relação do possível com o imaginável apresenta-se também na forma

Kierkegaard apresenta o desespero como

de poder tornar se aquilo que se deseja, como a

uma doença mortal e deine o homem, como um

passagem do possível para o real ou num cresci-

espírito que não se estabelece com uma relação

mento do “eu” em direção ao si-mesmo. Se não

externa, mas apenas consigo mesmo. Tal ligação

for considerado nesta relação, desesperar nada

consiste em orientar-se com a sua própria interioridade, numa dependência entre o ininito e o inito, entre o temporal e o eterno, entre a necessidade e a liberdade.

mais é do que um sofrimento como uma doença ou como a morte. Assim sendo, ele apresenta o desespero como uma dádiva recebida de Deus no momento da formação do ser.

Desta corelação nascem as formas do verdadeiro desespero, sendo que, na tentativa de tornar-se independente, a consciência do “eu” surge da necessidade do desprender-se daquele que estabeleceu a relação. Se, no entanto, o homem que se desespera tem consciência do seu desespero e percebe que este nada tem de externo, então a busca por libertar-se, torna-se um

* José Luiz Nauiack Matemático, Psicólogo e Pós-Graduado em Psicologia e Religião (jose.nauiack@hotmail.com)

Kierkegaard considera poder desesperar-se

O desespero é uma enfermidade mortal mais do que qualquer outra doença ao atacar a porção nobre do “eu”. Sem acabar com a vida física, o homem vive em agonia interminável. Neste caso, nem a morte pode salvá-lo, pois aqui a doença com seu sofrimento é simplesmente o desespero de não poder morrer.

desespero maior e ainda mais verdadeiro, cuja

Tal desespero vem da relação que a síntese

conclusão é que quanto mais se aprofunda para

estabelece consigo mesma, ou seja, da relação do

libertar-se, mais afunda. A discordância na rela-

eu consciente sobre a profundidade desconheci-

ção entre o externo e o interno resulta num de-

da do si-mesmo. Sendo expressa também como

sespero orientada sobre si próprio e relete-se até

o espírito que une o “eu” com o si-mesmo. E

o ininito, na mesma relação como o poder que o

nela jaz a responsabilidade que depende todo o

gerou. Neste estado se extingue completamente

desespero de ousar ser o si próprio, ou seja, em

o desespero, quando guiado por si mesmo, o “eu”

tornar o sujeito coletivo num individuo autenti-

da consciência descobre Aquele que o criou.

co e exclusivo.

Buscando a identidade do desespero como

No entanto, antes da transformação com-

doença mortal, o autor distingue o desespero

pleta do ser, o desespero não se reduz e muito

virtual do desespero real. Considerando o de-

pelo contrário, apenas amplia na mesma pro-

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O Desespero Humano | José Luiz Nauiack | 68- 69

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porção que desenvolve-se a consciência e os seus progressos medem a intensidade sempre crescente do desespero, quanto mais aumenta a consciência, mais intenso se torna o desespero. Para que o “eu” se transforme são igualmente essenciais o que é possível e o que é necessário. Se desespera tanto pela falta de um quanto pela do outro. A infelicidade de um “eu”

O desespero no qual o homem deseja ser ele mesmo, ou desespero desaio se serve da eternidade e por isso mesmo se aproxima da verdade, e é por estar próximo a ela que vai mais longe. Este desespero conduz à fé. E graças à eternidade consegue a coragem de se perder para poder novamente encontrar-se na imensidão do si-mesmo.

deste tipo não está em nada ter feito neste mundo, mas em não ter encontrado a consciência de si mesmo, em não ter percebido que este eu é o seu. Diante do si-mesmo nenhum homem se reconhecerá, pois ninguém pode reconhecer-se

“O Desespero Humano”, de Sören Kierkegaard, publicado em 2006 em São Paulo/Br pela Martin Claret.

em um espelho se antecipadamente não se tiver encontrado. Apesar de poder evoluir, o homem não o faz facilmente, prefere manter-se em sua comodidade, como no exemplo de uma casa com diversos andares. Adega no sobsolo, térreo, primeiro andar, cada um com espécies diferentes de moradores, comparando-se a vida em cada um deles, apesar de tudo, a maioria preferiria a adega no subsolo, onde pode encontrar tudo à mão e onde o ininito do horizonte não os provoque. Todos os homens são uma síntese com idelidade espiritual, preferindo viver na categoria dos sentidos, sendo contrariado quando convidado a viver no primeiro andar, por considerar que pode viver onde quiser, pois, ainal, a casa lhe pertence. Para Kierkegaard o desespero não é característico dos jovens e que se perde com a maturidade. Mostra que tanto o velho, que revive nas lembranças do passado se desespera sem poder se arrepender dele, assim o jovem se desespera pelo desconhecido que há de vir. Os dois desesperos se assemelham e possibilitam o crescimento, mas enfatiza que “...é loucura pensar que a fé e o bom senso nos podem nascer tão naturalmente como os dentes, a barba e os demais...”, de forma que o viver sem buscar o “eu” verdadeiro é um desespero inocente e viver buscando-o é um inindável desespero na direção do crescimento.

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70| O que é Religião?

| Ângelo Vieira da Silva | 70- 71

O que é Religião? Ângelo Vieira da Silva *

* Ângelo Vieira da Silva Mestrando em Ciências da Religião pela Faculdade Unida de Vitória/ES com ênfase na Análise do Discurso Religioso, Bacharel em Teologia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie/ SP e pelo Seminário Teológico Presbiteriano Rev. Denoel Nicodemos Eller/MG (intracorpus). É Ministro do Evangelho na Primeira Igreja Presbiteriana do Brasil na cidade de Resplendor/MG (revavds@gmail.com)

Como explicar a distância entre o conhecimento e a experiência? Como responder as perguntas sobre o sentido da vida e da morte? O que diz a linguagem religiosa? Poderão os símbolos, nascidos da imaginação, competir com a eicácia daquilo que é material e concreto? Possuirá o mundo relações com a solidez das coisas naturais ou com as espirituais? E o discurso religioso? Qual é? Como é sua linguagem? Como podemos duvidar da eicácia da religião? Como poderá a ciência negar a religião se ela é real? Que são as religiões? Por que não entendê-las da mesma forma como compreendemos os sonhos? Por que Sigmund Freud não tinha simpatia com as religiões assim como tinha simpatia para com os sonhos? Como airmar o sentido da vida perante o absurdo da existência, representado de maneira exemplar pela morte que reduz a nada tudo o que o Homem construiu e esperou? Enim, todas estas perguntas encontrarão respostas psicológicas, psicanalíticas, empíricas, ilosóicas e sociológicas no livro do versado autor Rubem Alves. Escritor mineiro, entre os mais de cento e vinte livros produzidos, possui obras traduzidas em várias línguas. Como a si mesmo descreve, é pedagogo, poeta e ilósofo de todas as horas, cronista do cotidiano, contador de estórias, ensaísta, teólogo, acadêmico, autor de livros para crianças, psicanalista. Independente das críticas, Alves, de fato, é um dos intelectuais mais famosos do Brasil. Decerto, o livro “O que é Religião?” é um exemplar digno de atenção na tentativa de responder as questões introduzidas nesta resenha. Dentro das perspectivas medievais e históricas, o universo físico se estruturava em torno do drama da alma humana em meio a luz e

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trevas da eternidade. Mas algo aconteceu. Quebrou-se o encanto. A poesia do autor perfaz o ateísmo metodológico e questiona: Desapareceu a religião? É certo que não, porém, foi expulsa dos centros do saber cientiico e do campo das decisões que determinam a vida num todo. Vendo desta perspectiva, confessar ser um religioso seria o mesmo que confessar ser habitante de um mundo encantado. Assim Alves certiica que a religião não se liquidaria com a abstinência dos atos sacramentais e a ausência dos lugares sagrados, da mesma forma como o desejo sexual não pode ser eliminado pelos votos de castidadea. A deinição de religião, portanto, poderia girar-se em torno do comportamento exótico como presença próxima da expressão pessoal, sendo este comportamento um espelho do que se vê. Se o autor relembra que “o homem é a única criatura que se recusa ser o que ela é”, igualmente intenta revelar um mistério antropológico que deseja criar o chamado “objeto desejado ideal”, numa visão psicanalítica de símbolos da ausência. A psicanálise, conforme Alves, sugere que o homem faz cultura a im de criar os objetos de seu desejo. Ele procura um mundo onde possa ser amado. Daí, a religião surge cheia de símbolos, desejos e gestos que se tornam religiosos quando os homens os batizam como tais. Religião, então, seria certo tipo de fala, discurso, uma rede de símbolos. Esta religião opera no exílio do sagrado. Os símbolos vitoriosos tornam-se verdade simplesmente porque foram em meio a uma história cheia de eventos dramáticos que se forjaram os argumentos que defendem a pergunta: “O que é religião?”. Estas verdades giravam em torno da salvação, enfermos, caridade, lei... tudo tinha

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O que é Religião? | Ângelo Vieira da Silva | 70- 71

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um propósito deinido. Deus controlava tudo e a todos. É justamente aqui que se encontra o caráter essencialmente religioso nos símbolos, bem como onde são exilados: se

o

universo

religioso é encantado e a ciência faz este universo perder sua aura sagrada, todo o discurso religioso é classiicado como engodo consciente ou perturbação mental. Os homens são os produtores de suas concepções. É ele quem faz a religião e não a religião quem o faz. Não havendo lugar para a religião, a mesma é exilada e considerada inútil para mudar mudar as condições de vida. Alves amplia a resposta de sua obra. Se a religião é um sonho da mente humana, também é sua voz do desejo. Ele indaga: por que não entender a religião da mesma forma como

mesmo, por im, ele não sabe o que quer ser nem o que desejar. A religião, portanto, é a mensagem do desejo... “conta-me os teus sonhos e decifrarei o teu coração, teu Deus e quem és”. Finalmente, é importante reconhecer que a religião vive o que qualquer outra ciência experimenta: subscrição e críticas, resistência e aceitação, proteção ou agressão. Sim, os que acusam dizem ser ela uma louca que balbucia coisas sem nexo; os que a defendem airmam que sem ela o mundo não pode existir e que, quando desvendamos os seus símbolos, o homem se contempla como num espelho. Neste embate, todavia, é fundamental admitir que todas as ciências são obrigadas a enfrentar um ateísmo metodológico e nada mais.

se entende os sonhos? Considerando a deinição de Sigmund Freud, “os sonhos são as religiões dos que dormem e religiões são os sonhos dos que estão acordados”, postula que nesta relação o homem vive em guerra permanente consigo

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ALVES, Rubem. O que é Religião? 13ª Ed. São Paulo: Brasiliense, 1984, 133 pp.

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Zaratustra em análise: Uma leitura viva sobre a “morte de Deus” | Murilo Augusto Diorio | 72

Zaratustra em análise: Uma leitura viva sobre a “morte de Deus” Murilo Augusto Diorio* Jung leitor de Nietzsche: acerca da “morte de Deus” (Biblioteca Ichthys, 2012, 193 p.) da psicóloga dra. Sonia Lyra estabelece uma crítica da leitura que o psicólogo Carl Gustav Jung faz da ilosoia de Friedrich Nietzsche, particularmente da obra Assim falou Zaratustra, a partir dos escritos do próprio Jung, em especial os Seminários Nietzsche’s Zarathustra. Nos três capítulos que compõem a obra, o foco é a interpretação que Jung faz do anúncio da “morte de Deus” expresso por Nietzsche: como essa ideia é compreendida e articulada pelo próprio ilósofo, denunciando a condição de toda cultura e moral cristã, o niilismo passivo; a leitura feita por Jung sobre o Zaratustra de Nietzsche e o lugar que esta ocupa na obra do psicólogo suíço; o caráter da interpretação junguiana da “morte de Deus”; e as contribuições da ilosoia nietzscheana para a compreensão das condições psicológicas do homem.

* Murilo Augusto Diorio Psicólogo e especialista em História e Filosofia da Ciência pela UEL; especialista em Psicologia Analítica e Religião Oriental e Ocidental pelo Ichthys Instituto (em curso). (murilodiorio@gmail.com)

A autora nos leva, de forma simples e agradável, a passear pelos problemas expostos na questão da “morte de Deus” e sua consequência, o niilismo, compreendido como uma rejeição radical dos valores, daquilo que dá sentido à vida humana. Por isso, para Nietzsche, a necessidade de uma reavaliação de todos os valores, já que a moral cristã, niilista, petriica valores em moldes ixos, canônicos. Essa reavalição de valores aponta para além do homem, para a superação da dualidade que se funde em uma unidade, um alcançar-se de novo a si mesmo. E o que seria alcançar-se a si mesmo, senão devir?

para-se a reavaliação de todos os valores com o processo de individuação, assim como as metas de ambas: o surgimento de uma nova personalidade, o devir, o Si-mesmo, ou mesmo a ressurreição de Deus. Frente a frente as ideias de ambos os pensadores sobre esses problemas, a autora apontanos que tipo de leitura Jung faz sobre Nietzsche: a leitura da obra do ilósofo, ou do próprio ilósofo, uma análise psicológica de seu trabalho, onde este seria apenas uma conissão pessoal? Zaratustra foi o resultado de uma patologia megalomaníaca ou a iluminação, a lucidez de uma consciência brilhante e, até mesmo, divina? Tudo isso, exposto com uma beleza suave, cativante e ao mesmo tempo instigadora, que leva o leitor a querer mais. Em Jung leitor de Nietzsche, Sonia Lyra nos traz uma crítica inédita no Brasil, embora já realizada fora daqui. A obra tem o mérito de trazer à luz, além da leitura de Nietzsche por Jung, a inluência e contribuição das ideias do ilósofo na construção da Psicologia Analítica. Um trabalho essencial não só para ilósofos e psicólogos, mas para todos aqueles interessados na contribuição cultural destes dois pensadores.

“Jung leitor de Nietzsche: acerca da ‘morte de Deus’” Sonia Lyra Editora Biblioteca Ichthys Curitiba, 2012.

Mergulhando-nos nos termos próprios da Psicologia Analítica, tais como libido, psique, inconsciente coletivo e, em especial, os conceitos de individuação e de Si-mesmo (Selbst), com-

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CHAMADA PARA PUBLICAÇÃO E NORMAS PARA COLABORAÇÃO

Já estamos recebendo e selecionando para a próxima edição. Pesquisadores(as) e professores(as) podem contribuir com a Coniunctio. O trabalho a ser submetido

deve estar enquadrado em uma das seguintes categorias: Artigo cientíico, Dossiê, Ensaio. A publicação se destina a divulgar resultados inéditos de estudos e pesquisa.

A publicação ou não do material enviado será definida pela Comissão Editorial a partir dos critérios propostos pelo Conselho Editorial, integrado por professores(as) e especialistas de várias Universidades e Centros de Estudos. As propostas para publicação devem ser originais, não tendo sido publicadas em qualquer outro veículo do país. Envie seu artigo, de acordo com as Normas Reguladoras - ABNT, para conunctio@ichthysinstituto.com.br. O texto deve seguir o novo acordo ortográico da Língua Portuguesa. Título, resumo e palavras-chave devem vir em português e também em inglês. Abaixo do título, o nome do autor, com um asterisco. O asterisco remete a um breve perfil – sua(s) respectiva(s) qualificação(ões) e instituição(ões) a que pertence(m) e e-mail de contato. Sendo mais de um autor, coloca astericos também nos demais autores – dois astericos no segundo, três no terceiro... A numeração de notas de rodapé só inicia com a primeira nota. A revista reserva-se o direito de fazer quaisquer alterações ortográficas, gramaticais ou normativas necessárias, objetivando para manter a linguagem padrão. O estilo dos autores, se possível, serão respeitados. A versão final não será enviada aos autores. A cada edição, a Comissão Editorial fará contato com os autores dos artigos aprovados. Para a secção de resenha de livros: aceitamos balanço crítico de livros recentemente publicados (máximo 4 anos) ou de obras consideradas clássicas nas áreas de estudo abordadas pela revista. Deverá conter: título do livro; autor; local de edição; editora e ano de publicação (em formato ABNT); título para a resenha; nome do(s) autor(es) da resenha; sua(s) respectiva(s) qualificação(ões) e instituição(ões) a que pertence(m). Não deve exceder de dez mil caracteres.

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Leia também a 1ª edição

Coniunctio – Revista de Psicologia e Religião é um periódico científico, eletrônico, semestral, criado e mantida pelo ICHTHYS INSTITUTO DE PSICOLOGIA E RELIGIÃO, em 2012, com o objetivo de publicar pesquisas, artigos, resenhas, críticas e entrevistas que contenham temas relacionados à Psicologia (Psicologia Geral, Psicologia Analítica e especialmente Psicologia da religião) e à Religião, em diálogo com áreas afins: Filosofia, Arte, Mitologia, Teologia, Sociologia, etc. A ideia é fomentar a área de pesquisa em Psicologia da Religião - esta “filha mais nova” da Psicologia, no Brasil na Ano 2 | número 2 | 2013 contemporaneidade. CONIUNCTIO Revista Científica de Psicologia e Religião | Ichthys Instituto | Curitiba - PR


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