Relatório

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Espancamentos Choques elétricos Posturas de tensão Isolamento prolongado Açoitamento Simulação de execução Tortura com água Asfixia Inserção de agulhas embaixo das unhas Queimaduras de cigarros Apunhalamento Barbear à força CHEGA DE TORTURA homens muçulmanos Obrigar a beber A TORTURA água suja, urina e produtos químicos Privação de sono Privação sensorial em 2014 Abortos 30 forçados Esterilização anos de promessas forçada descumpridas Estupros Ameaça de estupro Humilhação Ameaças de violência contra detentos e suas famílias Administração forçada de drogas CondiçõesdedetençãodesumanasPrivação de água e comida Punições corporais judiciais Obrigar detentos a suportar longos períodos de calor ou frio extremos Derramar água fervendo nos detentos Perfuração das juntas com furadeiras Negação de cuidados médicos Derramar


A Anistia Internacional é um movimento mundial com mais de 3 milhões de apoiadores, membros a ativistas, em mais de 150 países e territórios, que fazem campanhas para acabar com os mais graves abusos dos direitos humanos. Nossa visão é de que todas as pessoas desfrutem de todos os direitos consagrados na Declaração Universal dos Direitos Humanos e em outras normas internacionais de direitos humanos. Somos independentes de quaisquer governos, ideologias políticas, interesses econômicos ou religiões, sendo financiados, sobretudo, por nossos membros e por doações privadas.

Amnesty International Publications Publicado originalmente em 2014 por Amnesty International Publications Secretariado Internacional Peter Benenson House 1 Easton Street Londres WC1X 0DW Reino Unido www.amnesty.org © Amnesty International Publications [yyyy] Índice: ACT 40/004/2014 Idioma original: Inglês Diagramação: Impresso por Anistia Internacional Secretariado Internacional, Reino Unido [ISBN:] [ISBN:] Todos os direitos reservados. Esta publicação possui direitos autorais, mas pode ser reproduzida livremente, por quaisquer meios, para fins educacionais, de ativismo e de campanhas, não podendo ser comercializada. Pede-se que tais usos sejam informados aos detentores dos direitos para que sua divulgação possa ser acompanhada. Para a reprodução deste conteúdo em quaisquer outras circunstâncias, ou para sua reutilização em outras publicações, bem como para tradução e adaptação, uma autorização prévia e por escrito deve ser obtida dos editores, podendo haver a necessidade de algum pagamento.


Índice 1. A corrupção suprema da humanidade – uma crise mundial de barbárie, fracasso e medo........................................................... 5 Introdução de salil shetty, secretário-geral da Anistia Internacional................................................................... 5 2. Tortura – uma violação de direitos e um crime............................ 8 3. Dimensão global da tortura..................................................... 10 4. Quem corre perigo?................................................................ 11 5. Quando e por que a tortura acontece?...................................... 12 6. Campanha global – chega de tortura........................................ 14 7. Uma solução essencial – salvaguardas..................................... 15 8. Países prioritários para a campanha........................................ 18 9. Métodos de tortura................................................................. 24 10. Ferramentas de tortura durante a detenção.............................. 27 11. Perspectivas regionais:........................................................... 29 África............................................................................ 29 Américas....................................................................... 31 Ásia e Oceania............................................................... 34 Europa e Ásia Central..................................................... 36 Oriente Médio e Norte da África...................................... 40 12. Anexo: resumo do marco jurídico............................................. 43 13. Anexo: definições e termos..................................................... 47


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A tortura em 2014 30 anos de promessas descumpridas

“NINGUÉM SERÁ SUBMETIDO À TORTURA, NEM A TRATAMENTO OU punição CRUEL, DESUMANa OU DEGRADANTE.” DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS, ARTIGO 5

1. A CORRUPÇÃO SUPREMA DA HUMANIDADE – UMA CRISE MUNDIAL DE BARBÁRIE, FRACASSO e medo Introdução de Salil Shetty, secretário-geral da Anistia Internacional Choques elétricos. Espancamentos. Estupros. Humilhações. Simulações de execução. Queimaduras. Privação de sono. Torturas com água. Longo tempo em posições dolorosas. Uso de pinças, drogas e cães. Essas simples palavras já parecem ter saído de um pesadelo. Porém, todos os dias e em todas as regiões do mundo, esses horrores inimagináveis são a realidade de inúmeros homens, mulheres, meninos e meninas. A tortura é abominável. É selvagem e desumana. Jamais pode ser justificada. É uma prática errada e contraproducente, que corrompe o Estado de Direito, substituindo-o pelo terror. Quando os governos permitem seu uso, ninguém está a salvo. Os governos do mundo reconheceram estas verdades fundamentais quando, após as atrocidades da II Guerra Mundial, adotaram a Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948. A Declaração consagra o direito de todas as pessoas, em todos os lugares, de viver livres da tortura e da crueldade. Esse direito – que constitui o núcleo de nossa humanidade compartilhada – foi mais tarde consagrado, por meio da proibição explícita e absoluta da tortura e de outros maus-tratos, em um tratado internacional juridicamente vinculante, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, adotado em 1966. Há 30 anos, a Convenção da ONU contra a Tortura veio somar-se a esse avanço. Era um tratado inovador: oferecia um conjunto de medidas concretas para tornar realidade a proibição global da tortura, estabelecendo uma série de dispositivos consagrados em lei e concebidos especificamente para prevenir a tortura, punir seus perpetradores e garantir justiça e reparação às vítimas. Tais medidas pretendem não apenas acabar com a tortura e outros maus-tratos no âmbito nacional, mas também garantir que ninguém seja deportado através de fronteiras para um lugar em que possa ser torturado e fazer que não restem portos seguros para os torturadores.

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Torturadores são agora criminosos internacionais. Um sólido marco jurídico internacional foi criado e 155 países já são Estados-partes na Convenção da ONU. Trata-se de um avanço real e significativo. Porém, muitos governos estão faltando com essa responsabilidade. Três décadas após a Convenção – e mais de 65 anos após a Declaração Universal – a tortura não apenas goza de boa saúde, mas prolifera. O escandaloso grau de disseminação que a tortura assumiu nestes dias revela o abismo existente entre o que os governos prometeram há 30 anos e o que eles fazem hoje. Durante os últimos cinco anos, a Anistia Internacional tem denunciado casos de tortura e outros maus-tratos em 141 países de todas as regiões do mundo. Em alguns deles a organização documentou apenas casos isolados e excepcionais, enquanto que em outros a tortura é sistêmica. De qualquer modo, um único caso de tortura ou maus-tratos é inaceitável. Esses números dão uma ideia da dimensão do problema, mas deve-se levar em conta que eles refletem apenas aqueles casos de que tomamos conhecimento. De nenhum modo retratam a total dimensão da tortura no mundo. Sequer chegam perto de descrever a realidade revoltante da tortura, ou o custo real de vidas perdidas e arruinadas. A tortura é um dos instrumentos favoritos das forças de repressão, mas seu uso não se restringe a tiranos e ditadores, mesmo que a prática impere nesses regimes. Tampouco é de competência exclusiva das polícias secretas. Embora muitos Estados tenham levado a sério a proibição universal da tortura e tenham feito importantes progressos para combatê-la, há governos de todos os espectros políticos e de todos os continentes que continuam permitindo essa corrupção suprema da humanidade, usando-a para obter informações, forçar confissões, silenciar as vozes divergentes ou, simplesmente, como castigo cruel. Um novo estudo global encomendado pela Anistia Internacional chegou a uma conclusão alarmante: 30 anos após a Convenção da ONU, quase a metade da população mundial ainda não considera estar a salvo desse abuso perverso.

•  CRISE MUNDIAL DE BARBÁRIE, FRACASSO E MEDO Apesar de os governos terem proibido por lei essa prática desumana e de terem reconhecido a repulsa global a sua existência, muitos deles estão perpetrando torturas ou facilitando sua prática. O fracasso político dos governos é agravado e fomentado por um estado de negação com consequências corrosivas. Quem ordena ou comete tortura geralmente se livra da Justiça. Na maioria das vezes, a tortura é cometida com impunidade, sem qualquer investigação e sem que ninguém seja processado. Ao invés de respeitar o Estado de Direito com a intolerância absoluta da tortura, os governos mentem de forma persistente e sistemática sobre sua prática, para sua população e para o mundo. Em vez de garantir salvaguardas efetivas para proteger seus cidadãos da tortura, permitem que essa prática prospere. O caráter pernicioso e difundido desse abuso demonstra que uma proibição global não é suficiente.

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Nosso estudo mundial também mostra que a imensa maioria das pessoas quer normas claras contra a tortura. Essas normas e outras salvaguardas poderão prevenir e, em última instância, erradicar essa prática. A ambiguidade de critérios com relação à tortura deve ser enfrentada de forma direta. A impunidade deve acabar. Há mais de 50 anos, a Anistia Internacional tem lutado para erradicar um dos atos mais abomináveis que um ser humano pode perpetrar contra outro ser humano. Faz 30 anos que nosso movimento liderou a campanha para conseguir que a Convenção contra a Tortura se tornasse realidade. Agora estamos lançando a campanha “Chega de Tortura” para fazer que essa promessa se cumpra. Esta última campanha é um apelo à erradicação da tortura. Trata-se de algo que realmente podemos fazer: se todos nós, desde as pessoas nas ruas até os chefes de Estado, unirmos nossas forças e nos colocarmos entre os que torturam e os que são torturados. A Anistia Internacional está se mobilizando em todo o mundo para acabar com a tortura. Iremos nos dirigir aos governos para denunciar e evidenciar a brutalidade desse abuso pernicioso. Estaremos ao lado daqueles que, com coragem, defendem as pessoas da tortura. Juntos, vamos intervir onde quer que alguém seja torturado. Faremos com que os torturadores prestem contas. Os sobreviventes da tortura saberão que não estão esquecidos nem sozinhos. Combater a tortura é parte de nossa história, é nosso legado e será nosso futuro até que a última câmara de tortura seja eliminada definitivamente.

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A TORTURA OCORRE QUANDO UMA PESSOA INFLIGE DOR OU SOFRIMENTO SEVEROS INTENCIONALMENTE A OUTRA PESSOA COM O PROPÓSITO DE OBTER INFORMAÇÃO OU CONFISSÃO, DE CASTIGAR, DE PUNIR, DE INTIMIDAR OU DE COAGIR. O TORTURADOR DEVE SER UM AGENTE DO ESTADO OU O ATO DEVE CONTAR AO MENOS COM ALGUM GRAU DE APROVAÇÃO OFICIAL.

2. TORTURA – UMA VIOLAÇÃO DE DIREITOS E UM CRIME Este simples resumo da definição legal de tortura contida na Convenção da ONU contra a Tortura pretende refletir a necessidade da total rejeição de uma ação em que um ser humano agride o corpo de outro, sua mente ou ambos, e lhe causa deliberadamente grande dor, fazendo desse sofrimento um meio para alcançar um fim, convertendo sua vítima em mero instrumento. Não deve surpreender, portanto, que o direito de não sofrer tortura ou outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes seja provavelmente o direito humano mais solidamente protegido pelo direito internacional. As obrigações contraídas em virtude do direito internacional deixam os Estados sem a menor margem de manobra. A tortura e outros maus-tratos são proibidos sempre, em todos os lugares e contra qualquer pessoa. Essa proibição se aplica às mais graves situações de emergência, como guerras, distúrbios internos e catástrofes, sejam elas naturais ou provocadas pelo homem. Esse impedimento protege também as pessoas mais temidas, como soldados, espiões, criminosos brutais e terroristas. Em termos jurídicos, a proibição absoluta da tortura e outros maus-tratos é “inderrogável”, isto é, não pode ser descumprida mesmo em situações de emergência. A proibição alcançou um consenso internacional tão sólido que se converteu em norma do direito internacional consuetudinário, vinculante inclusive para os Estados que não se tornaram partes dos tratados de direitos humanos pertinentes. Os atos de tortura e outros tipos determinados de maus-tratos são também crimes de direito internacional. Além disso, são crimes de guerra segundo as quatro Convenções de Genebra (ratificadas por cada um de todos os Estados do mundo). Ademais, em determinadas circunstâncias, tais atos poderão constituir crimes contra a humanidade ou atos de genocídio, por exemplo, conforme o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional. Entretanto, até mesmo um único ato de tortura constitui crime sob o direito internacional. Isso significa – pelo menos para os 155 Estados que ratificaram a Convenção contra a Tortura

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– que os governos devem tipificar a tortura como crime, investigar de forma exaustiva e imparcial todas as denúncias e processar os responsáveis quando houver provas suficientes. Quando um suposto torturador se encontrar em um Estado-parte na Convenção contra a Tortura – mesmo que o ato de tortura tenha acontecido em outro país e que nenhum dos cidadãos desse Estado esteja implicado –, o Estado deve exercer a “jurisdição universal” com relação ao crime, examinando o caso, detendo o suspeito caso necessário, e, então, extraditando-o para outro país ou tribunal a fim de que seja processado, ou processando-o ele mesmo. Todas as vítimas de tortura e maus-tratos – tanto os sobreviventes da tortura quanto as famílias de quem foi morto sob tortura – têm direito a indenização, reabilitação, justiça e outras formas de reparação. Passados 30 anos desde a Convenção, está mais do que na hora de garantir que essas leis e normas sejam plenamente aplicadas na prática, em todos os lugares.

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3. DIMENSÃO GLOBAL DA TORTURA Realizar uma avaliação completa e categórica da dimensão global da tortura é impossível. A tortura acontece nas sombras. Trata-se de um crime internacional, de um constrangimento político e diplomático e de um abuso que quase todos os governos reconhecem ser errado e condenam com a retórica, quando não com ações concertadas. Os governos costumam dedicar mais esforços a negar ou encobrir a existência da tortura do que a realizar investigações efetivas e transparentes sobre as denúncias e em processar os responsáveis. Ao mesmo tempo, em muitos países, é provável que as denúncias de tortura estejam bem abaixo da realidade dessa prática. Muitas das vítimas são pessoas suspeitas de terem cometido crimes e que costumam ter menos condições de denunciar, ou são pessoas cujas denúncias são ignoradas ou menosprezadas. Outras vítimas, com frequência, não têm capacidade ou têm muito medo de denunciar, ou não têm confiança de que sua denúncia produza algum resultado significativo. Não existem estatísticas confiáveis discriminadas por país. É impossível dizer quantas pessoas foram torturadas no último século, na última década ou no último ano. Todas as estatísticas sobre tortura, sejam sobre o número total de países em que ela ocorre ou sobre aumentos e diminuições em um determinado país, devem ser tratadas com cautela. Contudo, as evidências reunidas pela Anistia Internacional e as investigações que a organização realizou em todo o mundo, combinadas com mais de cinco décadas de experiência em documentar e fazer campanhas sobre esse abuso, revelam que, 30 anos depois da Convenção da ONU contra a Tortura, essa prática segue avançando. Nos últimos cinco anos, a Anistia Internacional tem denunciado casos de tortura e outros maus-tratos em pelo menos três quartos dos países do mundo. Em alguns deles, tortura e maus-tratos são ocorrências isoladas; em muitos outros, são práticas usuais. Entre janeiro de 2009 e maio de 2013, a Anistia Internacional recebeu informes de tortura e outros maus-tratos cometidos por agentes do Estado em 141 países, em todas as regiões do mundo. Esse número revela somente os casos que foram denunciados ou de que a organização tem conhecimento, e não reflete necessariamente o alcance real da tortura no mundo. Uma vez que essas estatísticas pecam por serem excessivamente cautelosas, é provável que a prevalência real da tortura e de outros maus-tratos seja ainda pior.

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4. QUEM CORRE PERIGO? Quando os governos usam ou permitem a tortura, ninguém está a salvo. Praticamente qualquer pessoa pode ser uma vítima, independente de idade, gênero, etnia ou filiação política. Em geral, as autoridades torturam antes e perguntam depois. Algumas pessoas são torturadas simplesmente por estarem no lugar errado na hora errada, por erros de identidade ou porque desagradaram interesses poderosos, sejam econômicos ou políticos. Este problema se mostra ainda mais grave nos países em que a corrupção impera na polícia. Certos indivíduos e grupos, porém, são mais vulneráveis que outros. Em diversos países, as pessoas são torturadas por causa de suas opiniões políticas ou por exercerem sua liberdade de expressão. Pessoas que pertencem a determinadas religiões ou a outros grupos minoritários, ou que são alvo de ataques devido a sua identidade, também correm maior perigo. Indivíduos suspeitos de terem cometido crimes também são vítimas frequentes de tortura. Membros de grupos armados, pessoas suspeitas de cometer delitos relacionados ao terrorismo ou que, por outros motivos, se considera constituírem uma ameaça à segurança nacional quase sempre acabam sendo torturadas. Muitas vítimas pertencem a grupos desprivilegiados: mulheres, crianças, membros de minorias étnicas, lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros e, sobretudo, pessoas que vivem na pobreza. E é justamente para essas pessoas que obter reparação é mais difícil, quando não impossível. Muitas carecem dos conhecimentos, dos contatos ou dos recursos econômicos necessários para apresentar uma denúncia contra seus torturadores. Em muitos casos, não conseguem que as autoridades acreditem nelas e podem sofrer novos abusos caso se atrevam a denunciar. Em muitos países, crianças e jovens são vítimas da tortura. Menores de idade em custódia da polícia são especialmente vulneráveis a estupros e a outras formas de abuso sexual, tanto por policiais quanto por outros detentos. Além disso, em muitos países, há relatos de estupros e outras formas de agressão sexual contra mulheres cometidas por agentes do Estado. Frequentemente, as mulheres têm menos acesso a recursos legais e são submetidas a leis discriminatórias, o que torna ainda mais difícil que consigam obter justiça pela tortura que sofreram. Tanto homens quanto mulheres – mas principalmente as mulheres – sofrem torturas específicas relacionadas a seu gênero, seja na forma de estupros ou outros tipos de violência sexual. Algumas formas de tortura e outros maus-tratos são exclusivas das mulheres, como o aborto forçado, a negação do aborto, a esterilização forçada e a mutilação genital feminina. Por sua vez, os presos e presas homossexuais e transgênero sofrem ataques diferentes dos que sofrem os heterossexuais. Por exemplo, transgêneros costumam ser detidos em unidades para pessoas de seu gênero de nascimento, em vez do gênero de opção, enquanto que reclusos gays e lésbicas costumam sofrer mais violência sexual do que os heterossexuais, tanto da parte de outros reclusos quanto dos agentes penitenciários. Medidas para combater a tortura, portanto, devem ser sensíveis e inclusivas com relação ao gênero, além de conter dispositivos específicos para garantir a proteção de lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros e intersexuais.

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5. QUANDO E POR QUE A TORTURA ACONTECE? A tortura ocorre por dois motivos principais: porque os governos acreditam que essa prática os beneficie e pela persistência de uma cultura de impunidade, ou seja, os responsáveis por graves violações dos direitos humanos e do direito internacional humanitário não são levados à Justiça. Em muitos países, a tortura costuma ser usada não apenas para infligir dor a uma vítima específica, mas também para aterrorizar outras pessoas – supostos delinquentes, opositores políticos ou supostos inimigos – a fim de dissuadi-los de realizar qualquer ação que o governo considere ameaçar seus interesses. A tortura com frequência é um atalho abusivo para extrair ‘confissões’ – as vitimas quase sempre assinam o que lhes pedirem para que parem de lhes torturar. Com a cooperação de tribunais que fazem vista grossa a esses fatos, a polícia consegue obter condenações de modo rápido e fácil, enquanto os verdadeiros criminosos continuam soltos nas ruas. Humilhação e extorsão das vítimas também são práticas que podem fazer parte da rotina policial. Em muitas partes do mundo, os governos raramente investigam, processam, julgam e punem a tortura como um crime grave conforme o direito internacional. Caso se iniciem investigações, muitas vezes elas acabam estagnadas pela inércia, pela ineficácia ou pela cumplicidade dos órgãos investigadores. Os torturadores raramente têm de prestar contas. No caminho da prevenção, da prestação de contas e da justiça existem muito obstáculos. Os detentos são mantidos isolados do mundo exterior; principalmente, são privados de acesso imediato a advogados e a tribunais independentes. Os promotores não dão o devido prosseguimento às investigações. As vítimas temem sofrer represálias ou serem estigmatizadas pela sociedade, por exemplo, em casos de estupro. Os poucos policiais que acabam condenados recebem somente penalidades leves. Não existem sistemas independentes para monitorar as denúncias e investigar supostos abusos. Os agentes do Estado apelam a um equivocado espírito corporativo para acobertar os abusos. Os torturadores são anistiados ou indultados e não existe vontade política para mudar essa situação. As pessoas privadas de liberdade correm o risco de sofrer tortura quando não existem salvaguardas claras e firmes, ou quando estas são insuficientes ou ineficazes. Um quadro persistente de tortura se apresenta quando as pessoas estão em custódia policial antes de serem acusadas ou no período de detenção provisória. A tortura pode começar logo após a detenção ou até mesmo durante o ato de prisão. Por isso, as salvaguardas devem ser estabelecidas e respeitadas desde o princípio. No entanto, há denúncias de tortura em cada uma das etapas em que as pessoas têm algum contato com a polícia ou com os serviços de segurança, desde o momento em que são postas sob custódia até o fim do período de prisão. O desaparecimento forçado aumenta o risco de tortura e, quase invariavelmente, constitui em si mesmo uma forma de tortura para a pessoa desaparecida e uma forma de maus-tratos para a família da pessoa. Assim como a tortura, o desaparecimento forçado é terminantemente proibido pelo direito internacional.

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Todavia, persistem os informes de pessoas que permanecem detidas em locais não identificados ou em centros de detenção secreta. Todos os casos de detenção secreta constituem desaparecimentos forçados. A detenção sem acesso ao mundo exterior, conhecida como detenção em regime de incomunicabilidade, facilita a tortura e corresponde a tratamento cruel, desumano e degradante, inclusive à tortura. Nos casos de brutalidades e abusos cometidos por indivíduos particulares, os governos estão obrigados, conforme as leis e as normas internacionais, a garantir o direito de todas as pessoas, sem distinção, a não sofrer tortura ou maus-tratos. Isso se aplica também à proteção das pessoas contra abusos de natureza e gravidade similares cometidos por indivíduos, grupos ou instituições privadas. Portanto, um governo pode estar descumprindo suas obrigações internacionais com relação à tortura e aos maus-tratos caso não atue com a diligência devida para prevenir, processar e punir atos tais como a violência familiar e os ataques racistas. Fazer que os Estados prestem contas de sua omissão com relação aos abusos cometidos por particulares é crucial para defender os direitos das mulheres, das crianças, das minorias e de lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros, intersexuais e outras pessoas que sofrem discriminação. A discriminação institucionalizada geralmente significa que as vítimas têm menos probabilidade de receber proteção e apoio das autoridades. Algumas formas de violência contra as mulheres, por exemplo, sequer são reconhecidas como delito em muitos países e, nos lugares em que o são, raramente são processadas com rigor. Em vários países, a tortura também é praticada por atores não estatais, como membros de partidos políticos ou de grupos armados.

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6. CAMPANHA GLOBAL – CHEGA DE TORTURA Em maio de 2014, a Anistia Internacional lança sua campanha global Chega de Tortura para assegurar que todos estejam protegidos desse flagelo. No 30º aniversário da Convenção da ONU contra a Tortura, a organização se baseia em seus mais de 50 anos de experiência para insistir que os governos cumpram suas promessas e respeitem o direito internacional. Para isso, a Anistia está pedindo que as pessoas exijam o fim da tortura. A campanha enfoca todos os contextos de custódia do Estado. São eles: os sistemas de justiça criminal regulares; as pessoas em custódia militar; as forças policiais, as forças especiais; os serviços secretos; as situações que envolvem leis, normativas e cláusulas de exceção; e os locais secretos ou não oficiais de detenção (nos quais o risco de tortura aumenta significativamente). A campanha não inclui a tortura cometida por agentes não estatais ou os maus-tratos que ocorrem fora da custódia do Estado, tais como o uso excessivo da força durante manifestações, embora a Anistia Internacional continue trabalhando vigorosamente também sobre essas formas de abuso. A organização mobilizará seus membros e apoiadores em todo o mundo para que atuem sobre os seguintes cinco países: Filipinas, México, Marrocos e Saara Ocidental, Nigéria e Uzbequistão. Como via para a mudança, a Anistia Internacional busca conseguir que se estabeleçam e se apliquem salvaguardas efetivas contra a tortura. Quando existem salvaguardas eficazes, as pessoas estão protegidas. Quando nã existem ou não se aplicam salvaguardas, a tortura prolifera.

CHEGA DE TORTURA

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Os governos devem estabelecer salvaguardas eficazes contra a tortura e aplicá-las DE MODO CONCRETO. Salvaguardas são uma MEDIDA essencial: quando aplicadas de modo efetivo, as denúncias de tortura diminuem drasticamente.

7. UMA SOLUÇÃO ESSENCIAL – SALVAGUARDAS Enumeramos abaixo uma lista de salvaguardas fundamentais: No momento da DETENÇÃO Atos de detenção somente devem ser efetuados por agentes autorizados e por motivos justificados. A pessoa deve ser informada do motivo de sua detenção e de seus direitos. A pessoa detida tem direito de comunicar a detenção a sua família e a outras pessoas A tortura e outros maus-tratos devem ser impedidos durante o translado das pessoas detidas, por exemplo, entre diferentes locais de detenção e entre estes e os tribunais. Devem-se guardar registros oficiais de todo ato de detenção.

Durante a RECLUSão A reclusão secreta ou em regime de incomunicabilidade deve ser proibida, garantindo-se o aceso a, por exemplo, familiares, cuidados médicos, assistência judiciária ou tribunais. Todos os detentos devem ser tratados de maneira humana, em condições de reclusão dignas e que propiciem seu bem-estar físico e mental. Deve-se proporcionar fácil acesso a um mecanismo de queixas independente, imparcial e eficiente, sem que a pessoa sofra qualquer consequência negativa.

No âmbito do processo judicial As pessoas detidas devem comparecer imediatamente perante uma autoridade judicial independente. Deve-se respeitar o direito de acesso a um advogado desde o momento da detenção.

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As pessoas detidas devem poder questionar a legalidade de sua detenção. Deve-se proibir o uso em tribunais de declarações obtidas mediante tortura ou maus-tratos, exceto como prova de que tais atos tenham sido cometidos.

Durante o interrogatório Todas as técnicas de interrogatório ou medidas coercitivas que constituam tortura e outros maus-tratos são proibidas. Monitoramento e gravação em vídeo ou, pelo menos, em áudio de todas as sessões de interrogatório. Presença de um advogado durante o interrogatório. Respeito do direito a um intérprete e à tradução. Exames e serviços médicos disponíveis no decorrer de todo o período de interrogatório. Manter registros detalhados de todas as sessões de interrogatório. As autoridades responsáveis pela detenção são diferentes das encarregadas do interrogatório.

Detentos pertencentes a grupos específicos O direito e as normas internacionais contêm disposições que abordam as necessidades e os direitos específicos de determinados grupos ou pessoas privadas de sua liberdade, como as mulheres, os menores de idade e as pessoas portadoras de deficiência.

Após a libertação Novos riscos podem surgir no momento em que pessoa é posta em liberdade. A libertação deve sempre possibilitar que as pessoas reclamem seus direitos caso tenham sofrido tortura e outros maus-tratos em custódia. Para isso, deve-se: Manter registros apropriados relativos à libertação. Disponibilizar o acesso a mecanismos de queixas independentes e efetivos para as pessoas libertadas, com salvaguardas que protejam a pessoa que denuncia e seus familiares contra represálias ou hostilidades. Assegurar que exames ou atestados médicos sejam realizados por legistas independentes. Não transferir a pessoa, direta ou indiretamente, para países ou lugares onde possa correr risco de sofrer tortura ou outros maus-tratos.

Mecanismos gerais de MONITORAMENTO e supervisão Mecanismos eficazes de supervisão devem garantir que todos os locais de privação de liberdade estejam sujeitos a monitoramento independente. De modo similar, a conduta dos órgãos de aplicação da lei também deve ser monitorada.

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O monitoramento dos locais de detenção pode ser feito por instituições e órgãos como: Instituições nacionais de direitos humanos; Mecanismos preventivos nacionais estabelecidos conforme o Protocolo Facultativo à Convenção contra a Tortura ou configurados segundo seu modelo; Organizações não governamentais nacionais, regionais e internacionais; Órgãos regionais tais como o relator especial da União Africana sobre prisões e condições de detenção ou o Comitê Europeu para a Prevenção da Tortura; Órgãos internacionais como o Subcomitê para a Prevenção da Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, pertencente ao Comitê contra a Tortura, o próprio Comitê contra a Tortura e o relator especial da ONU sobre a tortura.

Levando os torturadores à Justiça Em muitos países, a impunidade para os torturadores é endêmica e permite que eles atuem sem medo de serem presos, processados ou punidos. A impunidade deprecia os sistemas de justiça criminal e o Estado de direito. Significa que as vítimas são privadas de justiça. A impunidade geralmente se deve à falta de vontade política, uma vez que o próprio Estado – ou algum de seus braços, como a polícia ou o exército – é muitas vezes o responsável direto pela tortura ou cúmplice dela. Em muitos países, a integralidade e a imparcialidade das investigações sobre as denúncias de tortura são comprometidas pelo fato de serem realizadas por agentes policiais ou promotores que são colegas ou que trabalham em estreita colaboração com os acusados. A impunidade também pode surgir quando um governo não prioriza os direitos humanos em sua agenda política nacional, ou quando os dois lados de um conflito armado se põem de acordo em não investigar e castigar os responsáveis por abusos. O fracasso de um Estado em levar torturadores à Justiça geralmente vem acompanhado de sua recusa a investigar as denúncias e de sua má vontade em proporcionar reparação às vítimas. Trata-se, quase sempre, de um triplo descumprimento das obrigações internacionais do Estado: de acordo com o direito internacional, as vítimas têm o direito de conhecer a verdade sobre o que aconteceu, de que se faça justiça e de receber reparação, na medida do possível, pelo dano que sofreram. É essencial que existam mecanismos efetivos e independentes para investigar e processar os torturadores. Esses mecanismos devem estar respaldados pela vontade política de introduzir as reformas necessárias nas leis e nas instituições, devem manter uma vigilância permanente, combater a discriminação e atuar sobre todos os casos de tortura.

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8. PAÍSES PRIORITÁRIOS PARA A CAMPANHA Nigéria Moses Akatugba “A dor da tortura é insuportável. Nunca pensei que estaria vivo até hoje. A dor que sofri nas mãos dos agentes foi impensável. Em toda minha vida, jamais fui submetido a um tratamento tão desumano.”

A polícia prendeu e torturou Moses Akatugba em 2005 quando ele tinha apenas 16 anos. Ele contou que os policiais o espancaram, deram um tiro em sua mão e o dependuraram pelos braços e pernas por horas na delegacia. Moses afirma que só por causa da tortura assinou uma confissão assumindo ter se envolvido em um roubo. Em novembro de 2013, depois de esperar oito anos por um veredicto, ele foi sentenciado à morte. Suas denúncias de tortura nunca foram investigadas. A Anistia Internacional está pedindo que o Sr. Emmanuel Uduaghan, governador do estado do Delta, anule a condenação à morte e investigue as torturas infligidas a Moses Akatugba. Há evidências de que a tortura vem sendo praticada de forma crescente na Nigéria. As recentes pesquisas da Anistia Internacional indicam que agentes policiais e militares utilizam a tortura de modo sistemático para obter informações e ‘confissões’, bem como para punir e exaurir os detidos. Em contravenção ao direito nacional e internacional, os tribunais têm aceitado rotineiramente como prova informações obtidas mediante tortura e outros maus-tratos. Ao que parece, as autoridades não dispõem da vontade política para cumprir suas obrigações internacionais em matéria de direitos humanos.

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México Claudia Medina

“O que a Anistia Internacional pode fazer é me apoiar, para que todos os outros países fiquem sabendo o que está acontecendo no México, o que as autoridades mexicanas estão fazendo.”

No dia 7 de agosto de 2012, por volta das três horas da madrugada, fuzileiros navais mexicanos invadiram a casa de Claudia Medina. Eles a levaram até a base local da marinha, onde ela recebeu choques elétricos, foi obrigada a inalar um molho extremamente picante e foi espancada com socos e chutes enquanto era mantida enrolada em um saco plástico para ocultar possíveis marcas. Os fuzileiros a acusaram de fazer parte de uma gangue violenta e poderosa. Claudia afirmou nada saber sobre o grupo. Ela foi pressionada para que assinasse uma declaração falsa sem ler o que estava escrito. Mais tarde, ela contou à Anistia Internacional: “Se não tivessem me torturado, eu não teria assinado a declaração”. Embora a maior parte das acusações tenha sido retirada, uma acusação grave ainda se mantém, e suas denúncias de ter sido torturada por forças governamentais não foram investigadas. Um exame médico efetivo deve ser realizado como parte de uma investigação imediata, exaustiva e imparcial, conforme estabelece o Protocolo de Istambul, instrumento reconhecido internacionalmente que prevê um conjunto detalhado de diretrizes internacionais para a documentação e a investigação da tortura e suas consequências. A Anistia Internacional pede que o procurador-geral da República do México abra uma investigação efetiva sobre a tortura e os maus-tratos supostamente sofridos por Claudia Medina, torne públicos seus resultados e leve os responsáveis à Justiça. O uso de tortura e maus-tratos pelas forças policiais e de segurança continua sendo um problema generalizado no México, onde a impunidade impera. Em diversas ocasiões, o México se comprometeu a prevenir e punir a tortura e os maus-tratos, mas as medidas tomadas, além de inadequadas, são ignoradas em sua maior parte. Ademais, a legislação que tipifica a tortura como crime é rotineiramente descumprida, assim como a legislação que deveria impedir que provas obtidas mediante tortura sejam usadas em procedimentos penais. Apesar disso, o governo mexicano se contenta em afirmar que a tortura e os maus-tratos deixaram de ser práticas comuns.

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Filipinas ALFREDA DISBARRO

“Ele [um auxiliar não oficial da polícia] colocou uma garrafa de álcool em cima da minha cabeça e apontou a arma para ela. Disse que iria atirar na garrafa. Ele estava a cerca de um metro e meio de distância. No final, não atirou, mas eu estava com muito medo que aquele tiro me atingisse. Com medo, só fechei os olhos.”

No dia 3 de outubro de 2013, um policial filipino abordou Alfreda Disbarro, mãe solteira, em um local público e acusou-a de vender drogas. Alfreda negou a acusação e esvaziou voluntariamente os bolsos, mostrando que só levava um telefone celular e uma moeda de cinco pesos. Sem nenhum alerta, o policial apontou sua arma para ela e esmurrou-a no peito. Ela foi algemada e levada para a sede da polícia de Paranaque. Para tentar forçá-la a admitir sua culpa, um oficial graduado prensou Alfreda contra a parede. Ele então começou a esmurrá-la repetidamente no estômago e no rosto, agrediu-a com um cassetete, introduziu os dedos nos seus olhos, esbofeteou-a, forçou-a a comer um pano de chão e bateu sua cabeça contra a parede. Nos dias seguintes ao espancamento, ela sentia tantas dores que não conseguia comer, tinha dificuldade para respirar e vomitava constantemente. Alfreda encontra-se atualmente detida em uma cadeia municipal enquanto aguarda ser julgada por venda e posse de drogas. Embora ela tenha sido examinada por um legista, não foi aberta qualquer investigação sobre o que a polícia fez com ela. A Anistia Internacional está pedindo que o Departamento de Assuntos Internos da Polícia Nacional das Filipinas inicie uma investigação sobre as denúncias de tortura e maus-tratos sofridos por Alfreda Disbarro e garanta que tal investigação seja conduzida de maneira rápida, imparcial, efetiva e eficiente.

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O uso da tortura nas Filipinas é generalizado. As forças de segurança do Estado, inclusive os funcionários encarregados de cumprir a lei, seguem torturando pessoas presas e detidas. A justiça não está ao alcance da grande maioria das pessoas torturadas. Os perpetradores quase nunca têm que prestar contas de seus atos. O país conta com um amplo marco legislativo para acabar com a tortura, e o governo se comprometeu a intensificar seus esforços para assegurar que essas leis sejam aplicadas. Além disso, as Filipinas são um Estado-parte de importantes leis e mecanismos internacionais de combate à tortura. Ainda assim, a impunidade persiste.

Uzbequistão Erkin Musaev Erkin Musaev, ex-funcionário do Ministério da Defesa, trabalhava para o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento no Uzbequistão quando foi detido, em janeiro de 2006, por agentes do Serviço de Segurança Nacional (SNB). Ele foi acusado de espionagem e permaneceu em custódia do SNB por várias semanas, em regime de incomunicabilidade. Nesse tempo, durante um mês, ele teria sido submetido a um regime de espancamentos diurnos, interrogatórios noturnos e ameaças de danos a sua família. Ao final, Erkin assinou uma confissão em troca de que o SNB deixasse sua família em paz. Ele foi condenado a um total de 20 anos de prisão por traição e abuso de poder após diferentes julgamentos injustos, realizados em 2006 e 2007. Os três tribunais indeferiram, sem a devida consideração, as denúncias formais de Erkin Musaev de que ele foi torturado quando esteve detido. Em maio de 2012, o Comitê de Direitos Humanos da ONU determinou que o Uzbequistão havia violado os direitos de Erkin Musaev segundo o artigo 7º (proibição da tortura) do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos. A Anistia Internacional pede que seja realizada uma investigação exaustiva, imparcial e efetiva sobre as denúncias de tortura. Tortura e maus-tratos são práticas generalizadas no Uzbequistão. A Anistia Internacional recebe denúncias persistentes e confiáveis sobre o uso rotineiro e generalizado de tortura e maus-tratos por parte das forças de segurança e dos agentes penitenciários. As informações recebidas indicam que as pessoas são torturadas no momento da prisão, durante os translados, enquanto aguardam julgamento e quando se encontram em centros de detenção. Muito poucas pessoas são processadas por praticar tortura, e as autoridades descumprem sistematicamente seu dever de realizar investigações efetivas sobre as denúncias de torturas e maus-tratos.

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Marrocos e Saara Ocidental ALI AARRASS “Sofrer uma injustiça e ser privado da liberdade provoca sérios danos psicológicos e físicos. Mas o que é ainda mais devastador moralmente é sentirse abandonado, esquecido, ver que os familiares e amigos abandonam a luta enquanto a gente se encontra impotente atrás das grades. Agradeço a Deus que este não é o meu caso. Mas eu peço que vocês pensem em todos aqueles que estão nessa situação, nas pessoas que são vítimas de detenções arbitrárias e que são abandonadas por todos.”

No dia 24 de novembro de 2011, Ali Aarrass foi condenado por suposto pertencimento e prestação de auxílio a uma gangue criminosa e a um grupo que pretendia cometer atos de terrorismo. A ‘confissão’ que ele fez mediante tortura, da qual se retratou perante o tribunal, foi a única prova apresentada durante seu julgamento. Ali Aarrass denunciou ter sido torturado enquanto detido incomunicável por 12 dias em um centro secreto de detenção administrado por um dos órgãos de inteligência do Marrocos, a Direção Geral de Vigilância do Território (Direction générale de la surveillance du territoire, DST), em dezembro de 2010. Ele descreveu como foi golpeado nas plantas dos pés, recebeu choques elétricos nos testículos, passou longos períodos dependurado pelos punhos e foi queimado com cigarros. A Anistia Internacional pede que as autoridades marroquinas cumpram o que está disposto na deliberação de 28 de agosto de 2013 do Grupo de Trabalho da ONU sobre Detenções Arbitrárias, que declara arbitrária a detenção de Ali Aarrass e cobra sua libertação imediata e seu acesso a reparação adequada.

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O governo do rei Hassan II, de 1956 a 1999, período conhecido como “anos de chumbo”, caracterizou-se pela repressão às divergências políticas, pelo desaparecimento forçado de centenas de pessoas, pela detenção arbitrária de outros milhares e pelo uso sistemático de tortura e outros maus-tratos. Apesar de a situação dos direitos humanos ter melhorado significativamente desde a ascensão ao trono do rei Mohamed VI, a Anistia Internacional continua a receber informes de tortura e outros maus-tratos cometidos pela polícia ou pela gendarmaria durante os interrogatórios de detidos provisórios e, em menor medida, nas prisões e situações de detenção em regime de incomunicabilidade em centros secretos de detenção. A tortura e outros maus-tratos estão expressamente proibidos e tipificados como crime no direito marroquino há muitos anos, mas, ainda assim, essas práticas persistem. Juízes e promotores raramente investigam denúncias de tortura e outros maus-tratos, o que faz que muito poucos perpetradores sejam responsabilizados. O clima de impunidade resultante anula os efeitos dissuasivos que a legislação marroquina contra a tortura poderia ter. As deficiências do sistema de justiça, como a ausência de advogados durante interrogatórios policiais, continua criando as condições que facilitam a tortura e outros maus-tratos. ‘Confissões’ corrompidas por tortura e incluídas em relatórios policiais ainda são recursos cruciais para garantir condenações, a custa das provas materiais e dos depoimentos das testemunhas em juízo. Os atuais planos de revisão do sistema de justiça do Marrocos oferecem uma oportunidade inédita de mudança.

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9. MÉTODOS DE TORTURA Os métodos de tortura documentados pela Anistia Internacional variam em cada país e em cada região. Relacionamos abaixo alguns exemplos de métodos de tortura dos quais a organização teve conhecimento. O espancamento é atualmente o método mais comum de tortura e maus-tratos em todo o mundo. Espancamentos podem envolver chutes e socos, como também o uso de pedaços de pau, coronhas de armas, chicotes improvisados, canos de ferro, bastões e cassetetes de eletrochoque. As vítimas podem sofrer contusões, hemorragia interna, fratura de ossos, perda de dentes, ruptura de órgãos e até a morte. Outros métodos muito difundidos são os choques elétricos, as posturas de tensão e o isolamento prolongado, em que as vítimas podem permanecer por meses ou até anos em regime de isolamento solitário. Outras técnicas menos habituais, mas também muito utilizadas, são o açoitamento, a simulação de execução, o afogamento com água e a asfixia, geralmente com sacolas plásticas ou máscaras de gás com vedação de ar. Em algumas regiões, há denúncias de vítimas que têm agulhas enfiadas embaixo das unhas, que são queimadas com cigarros e até mesmo apunhaladas enquanto detidas, bem como de pessoas reclusas que são obrigadas a beber a própria urina, água suja e produtos químicos. Privação de sono e privação sensorial também foram relatadas. Há informações de que algumas vítimas são privadas de água e comida por vários dias. Em diversos países há relatos do uso de estupro e de ameaça de estupro, bem como de humilhação, outro método bastante comum. Simulações de execução e ameaça de violência contra as vítimas e seus familiares são formas habituais de tortura mental. Há informes sobre a administração forçada de drogas psicotrópicas, bem como do uso de abortos forçados e de esterilização como formas de tortura. Muitas pessoas são confinadas em celas imundas e superlotadas, sob um calor sufocante. Condições de detenção intoleráveis podem, quando utilizadas de maneira intencional e com um fim definido, constituir tortura. Muitos países utilizam punições corporais judiciais. Entre suas formas mais comuns estão a flagelação e a amputação. Amputação e marcação a fogo são métodos idealizados para mutilar de forma permanente; porém, todos os castigos corporais podem causar lesões duradouras ou permanentes. Seja qual for sua situação jurídica no direito nacional, todas as formas de punição corporal são proibidas pelo direito internacional, correspondendo a tratamento cruel, desumano e degradante e frequentemente constituindo tortura. Alguns governos utilizam a religião da vítima para infligir torturas ou maus-tratos, por exemplo, ao barbear a força homens muçulmanos.

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Algumas vítimas são obrigadas a suportar longos períodos de frio ou calor extremos, muitas vezes por vários dias. Outras relatam que derramavam água fervendo sobre sua pele nua de modo contínuo ou tinham seus joelhos, cotovelos e ombros perfurados com furadeiras elétricas. A tortura pode incluir o uso de cães ou ratos, insultos reiterados de natureza racial ou religiosa, além de encapuzamento da cabeça e vendagem dos olhos. Há relatos de detentos que, de modo proposital ou negligente, foram privados de cuidados médicos enquanto reclusos, às vezes resultando em morte. A tortura pode causar danos físicos permanentes ou prolongados e, apesar de que muitas técnicas possam não deixar cicatrizes físicas, todos os métodos podem ter consequências devastadoras a longo prazo. Entre os sintomas psicológicos mais comuns encontram-se: transtornos de ansiedade; depressão; irritabilidade; vergonha e humilhação; problemas de memória; redução da capacidade de concentração; cefaleias; distúrbios do sono e pesadelos; instabilidade emocional; problemas sexuais; amnésia; automutilação; pensamentos suicidas; e isolamento social.

Estes desenhos foram feitos com a ajuda de um detento, conforme as orientações de Ali Aarrass (ver seu caso acima), e ilustram as torturas que ele sofreu no Marrocos em 2010. Legendas, sentido horário, da figura no canto superior esquerdo As descrições de Ali, escritas a mão, foram traduzidas do espanhol (sentido horário, a partir da figura no canto superior esquerdo): 1. “Puxando de ambos os lados e, com um chicote, batendo nas pernas e nas partes [íntimas].” 2. “Dependurado por horas, também batendo nas solas dos pés e no traseiro.” 3. “Com uma torneira ou um pano de chão, derramando água dentro das narinas e da boca para asfixiar.” 4. “Pendendo por horas nessa posição, levando chicotadas nas pernas e no traseiro.”

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Métodos de tortura registrados no último ano No período de 2013-2014, a Anistia Internacional registrou pelo menos 27 métodos de tortura utilizados em todo o mundo. Não se trata de uma listagem completa. Algumas das técnicas têm sido usadas sistematicamente durante anos, enquanto que outras podem ter ocorrido em incidentes isolados. 1. Espancamentos 2. Choques elétricos 3. Posturas de tensão 4. Isolamento prolongado 5. Açoitamento 6. Simulações de execução 7. Tortura com água / asfixia 8. Inserção de agulhas embaixo das unhas 9. Queimaduras com cigarro 10.  Apunhalamento 11.   Obrigar a beber água suja, urina e produtos químicos (conhecido como ‘o pano’) 12.  Privação de sono 13.  Privação sensorial 14.  Aborto e esterilização forçados 15.  Estupro / ameaça de estupro 16.  Humilhação 17.  Ameaças de violência à pessoa privada de liberdade / a sua família 18.  Administração forçada de drogas 19.  Condições de detenção desumanas 20.  Privação de comida e água 21.  Punições corporais judiciais 22.   Barbear homens muçulmanos à força 23.  Submeter pessoas privadas de liberdade a longos períodos de calor e frio extremos 24.  Derramar água fervendo sobre a pele 25.  Perfuração das articulações 26.  Negação de cuidados médicos 27.  Derramar plástico derretido sobre as costas

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“Roda da tortura” encontrada em um local de detenção não revelado da polícia, na província de Laguna, ao sul de Manila, nas Filipinas. No começo de 2014, os policiais desse local tornaram-se manchete na imprensa internacional quando foram descobertos fazendo a roda girar como uma forma divertida de escolher que método de tortura aplicar às pessoas detidas no dia. © Philippine Commission on Human Rights

10. FERRAMENTAS DE TORTURA DURANTE A DETENÇÃO Apesar da proibição absoluta da tortura e de outros maus-tratos, existem empresas privadas que fabricam equipamentos cuja única função prática é infligir tais abusos. Esses equipamentos são vendidos aos órgãos de aplicação da lei em diversos países do mundo. A Anistia Internacional faz campanha para que certos tipos de equipamentos sejam totalmente proibidos para funções de aplicação da lei, bem como para que sejam estritamente regulados o uso e a comercialização de outros tipos de equipamentos

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considerados de uso legítimo na aplicação da lei, mas que também podem ser utilizados indevidamente para infligir tortura ou maus-tratos. Para exortar as autoridades de todo o mundo a tratar da questão do uso e do comércio de diferentes tipos de equipamento, a Anistia Internacional adotou um enfoque triplo: 1. Proibir os equipamentos inerentemente desumanos oferecidos para o cumprimento da lei. Trata-se de itens sem outra aplicação prática além da pena de morte, da tortura e de outros maus-tratos, como cadeiras de contenção, algemas com pesos, algemas de dedos (anjinhos) e cassetetes com pregos. Aqui também se incluem os equipamentos de eletrochoque presos ao corpo e as algemas combinadas, que são presas no pescoço e punhos e/ou tornozelos. 2. Suspender o uso e investigar os efeitos de equipamentos usados para a aplicação da lei que, por seu desenho, se prestam à prática de tortura. São exemplos desses equipamentos os dispositivos manuais de eletrochoque, certas armas acústicas e balas de plástico ou borracha que são pouco certeiras ou cujos lançadores são demasiado potentes. Nesta categoria geralmente se incluem os dispositivos resultantes de novas descobertas em tecnologia de armas para aplicação da lei. 3. Controlar estritamente os equipamentos de aplicação da lei utilizados indevidamente para torturar, como as algemas comuns utilizadas pela polícia e pelas penitenciárias, bem como bastões e cassetetes.

Normativas da UE A normativa da UE sobre as ferramentas de tortura é o único exemplo mundial de cooperação jurídica internacional para proibir o comércio de ferramentas utilizadas para infligir tortura e outros maus-tratos. A Anistia Internacional está promovendo o estabelecimento de controles de exportações similares, baseados em direitos, em outras partes do mundo. Em junho de 2005, a UE introduziu controles comerciais vinculantes sem precedentes para uma série de equipamentos que são frequentemente usados para aplicar a pena de morte e infligir tortura e outros maus-tratos (conhecidos como ferramentas de tortura), mas que normalmente não são incluídos nas listas de controle de exportações militares, estratégicas ou de uso duplo dos Estados membros da UE.

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11. PERSPECTIVAS REGIONAIS

ÁFRICA A tortura e outros maus-tratos são extensamente praticados por toda a África, uma região em que mais de 30 países – como Angola, Chade, Gabão e Serra Leoa – sequer punem esses atos por lei. A tortura durante a detenção é endêmica em muitos países, e as iniciativas para levar os responsáveis à Justiça têm sido extremamente limitadas. A Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos proíbe expressamente a tortura; porém, somente 10 Estados contam com legislação nacional que tipifique esses atos como crime.

•  Abusos policiais e confissões forçadas A tortura durante a detenção, como meio de extrair confissões, é uma prática profundamente arraigada na cultura das forças de segurança de muitos países da África, como Etiópia, Gâmbia, Mali, Mauritânia, Nigéria, Quênia, Senegal, Sudão e Zimbábue. Em geral, as pessoas detidas são espancadas, amarradas em posturas dolorosas, mantidas em condições extremas de clima, suspensas do teto e abusadas sexualmente. Na Mauritânia, tribunais chegaram a declarar que ‘confissões’ obtidas mediante tortura e outros maus-tratos são admissíveis como prova, mesmo que a pessoa que as tenha feito se retrate posteriormente. Em países nos quais a homossexualidade é ilegal, como Camarões e Zâmbia, homens considerados gays são submetidos a formas de tortura que incluem exames anais forçados. No dia 6 de maio de 2013, dois homens foram detidos em Zâmbia, acusados de manter relações sexuais “contrárias à ordem da natureza”. Ambos foram submetidos a exames anais forçados e ainda aguardam julgamento.

•  Punições corporais No Sudão, o “Regime de Ordem Pública” impõe punições corporais para atos que se consideram conduta imoral ou indecente em público. No último mês de novembro, dois destacados ativistas de direitos humanos foram acusados de “conduta indecente” quando um deles teria colocado a mão sobre o ombro de outro. As acusações foram retiradas um mês depois, quando um juiz de Porto Sudão determinou que não havia provas suficientes contra eles.

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No Sudão também se utiliza a amputação como forma de castigo: desde 2001 pelo menos 16 pessoas foram condenadas a essa punição. Por exemplo, em abril de 2013, três homens tiveram sua mão direita amputada em Darfur do Norte. Eles haviam sido declarados culpados de roubar óleo de cozinha no valor de 3.300 dólares estadunidenses, após um julgamento no qual não tiveram advogado de defesa.

•  Prisões As condições prisionais são excessivamente desumanas por toda a África – em países como Camarões, Gana, Libéria, Mauritânia, Maurício e Nigéria –, com situações de superlotação extrema e carência crônica de saneamento. Na Libéria, a Anistia Internacional testemunhou superlotação severa, falta de água corrente e saneamento bastante precário. As celas são tão pequenas que os reclusos têm que alternar turnos para dormir. Relatos de abusos cometidos contra presos, como espancamentos e estupro, são também documentados de forma rotineira em países como Angola e Moçambique, entre outros. Abusos contra presos também foram documentados na Eritreia, onde muitas pessoas, como críticos e opositores do governo, foram espancadas ou obrigadas a caminhar descalças sobre objetos afiados, ou a rolar no chão sobre pedras pontiagudas como castigo por tentarem fugir do país e por outros supostos delitos, para obter delas informações ou para obrigá-las a renunciar de sua religião. Em 2013, surgiram novas denúncias de abusos, como uso de choques elétricos e espancamentos, na penitenciária de alta segurança de Mangaung, de administração privada, na África do Sul. A G4S, a empresa de segurança privada britânica que administrava aquele centro até recentemente, declarou que iniciará sua própria investigação sobre as denúncias.

•  Conflitos armados A tortura e outros maus-tratos no contexto de conflitos armados, geralmente praticados por milícias e outros grupos armados, continuam sendo generalizados na região. Desde dezembro de 2012, centenas de civis, sobretudo muçulmanos, da República Centro-Africana têm sido vítimas de homicídios propositais, enquanto outros milhares têm sido submetidos a torturas e outras formas de tratamento cruel, desumano e degradante, inclusive estupros e outras formas de violência sexual. Abusos similares foram documentados nos últimos meses no Sudão. Na República Democrática do Congo, grupos armados de Kivu-Norte têm torturado e estuprado homens, mulheres e crianças em grandes partes do país. A crise que se desenrola no Mali têm sido cenário de tortura e outros maus-tratos generalizados, como estupros, mutilações e lapidações, cometidos tanto pelas forças de segurança do Mali quanto por grupos armados.

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Na Costa do Marfim, quase três anos depois de encerrada a crise pós-eleitoral que resultou em quase 3.000 mortes, os partidários ou supostos partidários do ex-presidente Laurent Gbagbo que foram encarcerados seguem sendo vítimas de tortura e outros abusos. Na Somália, o Al Shabab têm constantemente realizado execuções e punições públicas, tais como lapidação e mutilação. Em Darfur, 11 anos após o início do conflito, dezenas de civis continuam sendo assassinadas propositalmente, além de serem vítimas de disparos, espancamentos e violência sexual, inclusive estupro, nas mãos de forças paramilitares governamentais e de outras milícias armadas.

ESTUDO DE CASO: DESAPARECIMENTO FORÇADO NO SUDÃO Tajeldin Ahmed Arja, de Darfur Norte, encontra-se detido em regime de incomunicabilidade desde que foi preso em uma conferência em Cartum em 24 de dezembro de 2013. O estudante e blogueiro de 26 anos foi detido por membros da guarda de segurança presidencial depois de ter criticado abertamente os presidentes do Chade e do Sudão durante a conferência. No início da conferência, Tajeldin teria se levantado e dito que os presidentes eram responsáveis pelas atrocidades cometidas em Darfur. Testemunhas relataram à Anistia Internacional que oito seguranças o agarram e o retiraram da sala. Seu paradeiro é desconhecido até hoje e ele corre sério perigo de sofrer tortura e outros maus-tratos.

AMÉRICAS O Continente Americano conta com algumas das leis e mecanismos de combate à tortura mais sólidos do mundo, tanto em nível nacional quanto regional. Entretanto, a tortura e outros maus-tratos continuam sendo prática generalizada e os responsáveis raramente têm que enfrentar a Justiça. Em diversos países, uma grande parte da população aceita o uso de tortura e de outros tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes como resposta aos altos índices de crimes violentos.

•  Condições de detenção e prisões Ao longo dos anos, a Anistia Internacional tem recebido informes de tortura e outros maustratos em penitenciárias e centros de detenção de todas as Américas. Em muitos países, as pessoas detidas são submetidas a espancamentos, choques elétricos, abusos sexuais e negação de acesso a cuidados médicos. Condições de detenção deploráveis, inclusive com superlotação, são extremamente comuns. Nos Estados Unidos, em alguns centros de segregação ou isolamento de máxima segurança, milhares de reclusos são confinados em regime de isolamento em celas de tamanho reduzido

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durante 22 a 24 horas por dia. Muitos quase não têm acesso à luz natural ou a tempo de descanso fora da cela, o que constitui tratamento cruel, desumano ou degradante. A tortura também é usada para punir os detentos ou para obter confissões de supostos delinquentes. No dia 12 de abril de 2014, Luis Manuel Lember Martínez e Eduardo Luis Cruz foram torturados sob custódia policial na República Dominicana. Os policiais teriam tentado extorquir dinheiro dos dois e, como não conseguiram, os acusaram de portar uma arma ilegal e os levaram para a delegacia. Eles contaram que foram agredidos com uma tábua e tiveram a cabeça coberta com um saco plástico. Eduardo contou à Anistia Internacional que foi golpeado nos testículos e que Luis Manuel recebeu choques elétricos nas pernas. O Ministério Público abriu uma investigação sobre as denúncias de tortura e maus-tratos. No Brasil, Amarildo de Souza Lima está desaparecido desde que foi detido por policiais militares na favela da Rocinha, no Rio de Janeiro, no dia 14 de julho de 2013. Uma investigação realizada pelas autoridades concluiu que Amarildo morreu em consequência da tortura a que fora submetido na sede da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) da Rocinha, após ter sido detido ilegalmente para interrogatório. Mais de 20 policiais, inclusive o comandante da UPP, estão sendo processados e se encontram detidos. No México, os informes de tortura vêm aumentando desde 2006, à medida que a espiral de violência no contexto da luta do governo contra o crime organizado se intensifica. Muitas detenções são efetuadas sem ordem judicial, sob a alegação de que os suspeitos foram pegos “em flagrante”, mesmo que não tivessem qualquer ligação direta com o crime ou a cena do crime. Com demasiada frequência, as pessoas que são detidas sem provas pertencem a comunidades pobres e marginalizadas. Portanto, essas pessoas têm poucas possibilidades de acesso a uma assistência jurídica efetiva, o que aumenta seus riscos de sofrer tortura e outros maus-tratos. Em países como Chile, México e Venezuela é comum que as forças de segurança cometam abusos durante as operações policiais realizadas em manifestações. No Brasil, as denúncias de abuso policial aumentaram no contexto dos protestos que antecederam a Copa do Mundo de 2014 e durante as operações militares realizadas nas favelas de grandes cidades como o Rio de Janeiro.

•  Impunidade Apesar da tipificação da tortura como delito penal e da criação de Comissões ou Defensorias de Direitos Humanos em muitos países da região nos últimos anos, esses avanços não foram acompanhados de investigações efetivas sobre as denúncias de abusos, tanto os cometidos atualmente quanto no passado. Os responsáveis por cometer ou ordenar atos de tortura raramente são processados. As deficiências dos sistemas de justiça do Continente Americano contribuem decisivamente para a persistência da tortura e de outras formas de maus-tratos, bem como para a arraigada impunidade na região. No Chile, por exemplo, as violações de direitos humanos, como a tortura e outros maus-tratos, cometidas pelas forças de segurança são competência do sistema de justiça militar, que pode carecer de independência e imparcialidade.

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A tortura em 2014 30 anos de promessas descumpridas

Embora alguns países da região tenham realizado progressos em direção à justiça, milhares de casos de tortura cometidos durante os brutais regimes militares das décadas de 1960, 70 e 80 continuam impunes. As leis de anistia de países como El Salvador e Uruguai continuam sendo um obstáculo às investigações de milhares de abusos dos direitos humanos, mesmo que os governos ainda possam ordenar investigações sobre esses casos com base em suas obrigações de direito internacional. Na Guatemala, o julgamento do general Efraín Ríos Montt, ex-presidente do país, por sua responsabilidade nos homicídios, torturas, abusos sexuais e desalojamento de 1.771 índios Maya-Ixil, cometidos quando ele era presidente e comandante-em-chefe do exército guatemalteco (1982-1983), foi protelado no ano passado até 2015. A ausência de investigações efetivas sobre abusos e violações de direitos humanos, como a tortura, também continua sendo uma marca característica do conflito armado da Colômbia, que já dura 50 anos. Todas as partes beligerantes – as forças de segurança e os paramilitares, atuando em separado ou em conluio, bem como os grupos guerrilheiros – continuam sendo responsáveis por homicídios ilegais, desaparecimentos forçados, sequestros, torturas, desalojamentos forçados e violência sexual. O governo dos Estados Unidos tampouco garante a prestação de contas por atos de tortura e desaparecimentos forçados cometidos no contexto de operações de combate ao terrorismo. Nenhum responsável pelo uso de técnicas de tortura, tais como a asfixia com água (water-boarding), a privação prolongada de sono ou as posturas de tensão, nos centros secretos de detenção administrados pela Agência Central de Inteligência (CIA) em todo o mundo foi levado à Justiça. O Comitê de Inteligência do Senado conduziu uma revisão do programa da CIA, já encerrado, mas o relatório da revisão, com mais de 6.000 páginas, permanece classificado.

ESTUDO DE CASO: TORTURA APÓS PROTESTO NA VENEZUELA Assim que Juan Manuel Carrasco, de 21 anos, foi detido pela polícia durante um protesto na cidade venezuelana de Valencia, em 13 de fevereiro de 2014, ele foi submetido a abusos brutais. Segundo Juan relatou à Anistia Internacional: “Eles (os policiais) nos fizeram ajoelhar em posição fetal e começaram a nos bater. Um dos policiais disse que não adiantava rezarmos, pois nem Deus iria nos salvar. Disseram que aquele era nosso último dia. Em seguida, baixaram minha cueca e enfiaram alguma coisa por trás”. Três dias depois de ser preso, Juan foi libertado. Seu caso está sendo investigado pelo Ministério Público. Desde fevereiro, quando começaram os protestos na Venezuela, a Anistia Internacional tem recebido dezenas de denúncias de abusos cometidos pelas forças de segurança no momento da detenção, durante os translados e durante o período de reclusão.

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A tortura em 2014 30 anos de promessas descumpridas

ÁSIA E OCEANIA Muitos países da Ásia e da Oceania também não tiveram êxito em prevenir e punir a tortura. A China e a Coreia do Norte estão entre os piores casos da região. Em alguns países ainda se permitem punições como o açoitamento, e as investigações sobre o uso de tortura são extremamente raras.

•  Detenções e confissões forçadas Em países como China, Filipinas, Fiji, Índia, Indonésia, Malásia, Mianmar, Paquistão e Sri Lanka, as forças policiais às vezes torturam as pessoas durante os interrogatórios e a detenção provisória, geralmente obrigando os detidos a ‘confessar’ um crime. Alguns são torturados até a morte. Por exemplo, no dia 1º de junho de 2013, P. Karuna Nithi, de 42 anos, morreu em custódia da polícia no estado malásio de Negeri Sembilan. Familiares contaram à Anistia Internacional que seu corpo apresentava sinais de espancamento e que havia sangue na parte posterior da cabeça. A autópsia revelou 49 marcas de lesão em seu corpo. No Sri Lanka – onde a Comissão Nacional de Direitos Humanos registrou 86 denúncias de tortura apenas nos três primeiros meses de 2013 – alguns presos morreram depois de sofrerem abusos brutais sob custódia. Abusos em custódia policial também foram documentados nas Filipinas, onde, em janeiro de 2014, uma “roleta da tortura” foi descoberta em um centro secreto dos serviços de inteligência da polícia. A roleta continha uma lista de posições de tortura: uma “postura de morcego por 30 segundos”, por exemplo, significava que o detido seria dependurado de cabeça para baixo, como um morcego, por 30 segundos. Quarenta e quatro pessoas detidas relataram terem sido torturadas nesse centro. Acredita-se que, desde então, 10 policiais envolvidos nos abusos tenham sido afastados de suas funções, mas ninguém foi processado. Nas Maldivas, os açoitamentos ainda são permitidos e os tribunais impõem essas penas a pessoas declaradas culpadas de “fornicação”.

•  Tortura para silenciar ativistas Em alguns países, os ativistas são torturados como castigo por seu trabalho legítimo de defesa dos direitos humanos. No Vietnã, dezenas de ativistas permanecem detidos em condições extremamente rigorosas para impedi-los de promover os direitos humanos. Alguns foram espancados, privados de comida e cuidados médicos adequados e confinados em isolamento por períodos prolongados. As autoridades da China também castigam os ativistas por seu trabalho, inclusive negandolhes tratamento médico, mesmo quando sua vida depende disso. Em março de 2014, Cao Shunli, de 52 anos, morreu por falência de um órgão em um hospital de Pequim depois que os funcionários da prisão em que ela estava detida a impediram, repetidas vezes, de receber o tratamento médico de que ela necessitava.

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No que se esperava ser um passo positivo, no fim de 2013, a China anunciou a abolição dos campos de “reeducação pelo trabalho”: centros de detenção utilizados para punir as pessoas e encarcerá-las sem acusação nem julgamento, inclusive por suas atividades políticas ou crenças religiosas. As esperadas mudanças, porém, foram sobretudo cosméticas, e as pessoas continuam sendo mantidas em condições similares de brutalidade sob outras formas de detenção arbitrária.

•  Prisões e centros de detenção As condições prisionais são bastante severas em muitos países da região da Ásia e da Oceania. Os campos de prisioneiros da Coreia do Norte são, muito possivelmente, o cenário das torturas mais atrozes cometidas no mundo. Centenas de milhares de pessoas, inclusive crianças, permanecem detidas em condições extremamente desumanas nos muitos centros de detenção do país. Na maior parte do tempo, os internos são obrigados a trabalhar em condições perigosas com pouco tempo de descanso. Se trabalham devagar, esquecem as regras penitenciárias ou são suspeitos de mentir, são punidos com espancamentos, exercícios forçados ou obrigados a permanecer imóveis por períodos prolongados. A combinação desse tratamento com uma alimentação imprópria, com a falta de cuidados médicos e com condições de vida insalubres faz que alguns internos morram em custódia ou logo após serem soltos. Nas zonas tribais do noroeste do Paquistão, milhares de homens e meninos são detidos de forma arbitrária pelas forças armadas e encarcerados em centros secretos de detenção, onde os relatos de tortura são generalizados. Niaz (nome fictício), que esteve detido em um desses centros, descreveu sua experiência em 2013: “Nos primeiros cinco dias nos surravam constantemente com cintos de couro nas costas. A dor era indescritível. [Os soldados] ameaçavam me matar se eu não confessasse fazer parte do Talibã.” O irmão de Niaz morreu sob custódia. O Japão é conhecido por manter por décadas, em regime de isolamento e em condições cruéis e desumanas, as pessoas condenadas à pena de morte. Em março de 2014, os tribunais japoneses concederam um novo julgamento e puseram em liberdade Hakamada Iwao, de 78 anos, que havia passado mais de quatro décadas condenado à morte. Originalmente, ele havia sido condenado pelo assassinato de seu chefe com base em uma confissão forçada obtida em um sistema de detenção provisória que frequentemente permite a tortura e outros maus-tratos. A Austrália mantém centenas de requerentes de asilo em condições de encarceramento semelhantes à prisão, em um centro de processamento em Papua-Nova Guiné. Eles são mantidos em recintos extremamente superlotados, sob um calor sufocante, sendo privados de água suficiente e de atenção médica. Algumas pessoas afirmam terem sofrido abusos dos funcionários, como chutes, socos e empurrões.

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•  Impunidade Na região da Ásia e da Oceania, a ausência de justiça para casos de tortura e maus-tratos é a norma. Na Indonésia, na Mongólia e no Nepal, por exemplo, os códigos penais carecem de disposições efetivas para penalizar a tortura. Em janeiro de 2014, Taiwan deu um passo positivo ao abolir seu sistema de tribunais militares e transferir a competência sobre os delitos cometidos por militares ativos para os tribunais civis ordinários, depois que um cabo do exército morreu em julho de 2013 em consequência de torturas.

ESTUDO DE CASO: Impunidade No dia 30 de agosto de 2013, o jornalista paquistanês Ali Chishti foi sequestrado e torturado pela polícia. Correspondente sobre segurança nacional da revista Friday Times, ele dirigia de volta para casa, ao entardecer, quando seu carro foi parado por uma equipe móvel da polícia composta por sete homens, seis deles uniformizados e um à paisana. Ali foi então transferido a outro veículo, onde lhe vendaram os olhos e o levaram até uma casa. Lá, ele foi espancado diversas vezes. Um dos homens insultava continuamente o diretor da revista de Ali, Najam Sethi, crítico declarado do exército e do partido do Movimento Muttahida Qaumi, que já havia sido ameaçado de morte, sequestrado e torturado. Ao final, Ali foi deixado próximo à Fase 8 do bairro Defence House Authority (DHA), onde buscou ajuda da polícia local, que encontrou seu automóvel em um bairro vizinho. Segundo contou à Anistia Internacional, Ali acredita que seus captores agiam em nome de outra pessoa. Ele registrou uma queixa com a polícia, mas ninguém foi processado por seu sequestro ou por sua tortura.

Europa e Ásia Central Apesar da introdução de disposições legais para proibir a tortura e outros maus-tratos, essa prática continua sendo muito disseminada na Europa e Ásia Central, principalmente nos países da antiga União Soviética. Tortura e maus-tratos também foram documentados em partes da União Europeia (UE), onde alguns países também descumprem seu dever de investigar de maneira efetiva as denúncias de cumplicidade com as torturas infligidas no contexto das operações antiterroristas lideradas pelos Estados Unidos.

•  Perspectiva geral A tortura e os maus-tratos continuam sendo extensamente praticados nos países da antiga União Soviética. A introdução formal, nos últimos 20 anos, de toda uma série de salvaguardas

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contra a tortura pouco fez para erradicá-la na prática. Enquanto seu uso é especialmente habitual nos casos de supostos membros de grupos separatistas ou islamistas, também continua sendo uma característica frequente da prática policial cotidiana, uma vez que as forças policiais, corruptas e carentes de recursos, seguem considerando que confissões forçadas são a maneira mais fácil de conseguir as sentenças condenatórias que se espera delas, além de quê, a extorsão se constitui numa fonte útil de renda suplementar. A tortura e outros maus-tratos são ocorrências relativamente raras no contexto da justiça penal comum na maior parte da UE; porém, quando esses abusos ocorrem, não é raro que fiquem impunes ou recebam punição muito mais leve do que deveriam. Além disso, a maioria dos países da UE rapidamente se juntou às operações antiterroristas lideradas pelos Estados Unidos desde 2001. Esses países se tornaram cúmplices de muitos dos abusos que acompanharam essas operações, por exemplo, facilitando os voos secretos de transferências extrajudiciais e, no caso de alguns países, sediando centros secretos de detenção. As pessoas que pedem que se faça justiça e que se revele toda a verdade sobre essas práticas continuam tendo seus apelos negados. A Turquia talvez seja o país da região da Europa e Ásia Central que fez os maiores progressos na redução, quando não na erradicação, da tortura em locais de detenção na última década. No entanto, o uso rotineiro de força abusiva contra manifestantes continua sendo uma prática firmemente arraigada e, no último ano, o governo mais fez para fomentar esse problema do que para combatê-lo.

•  Confissões forçadas A introdução de muitas das salvaguardas formais mais importantes contra a tortura pouco serviu para alterar a arraigada cultura policial em muitos países da antiga União Soviética. Muitas forças policiais ainda avaliam sua atuação em função dos números de casos resolvidos ou de sentenças condenatórias. As confissões extraídas mediante tortura costumam ser o caminho mais rápido para alcançar essa meta. Entre os métodos de tortura documentados pela Anistia Internacional estão os espancamentos, a suspensão dos detentos em ganchos presos ao teto, a asfixia com sacos plásticos, a eletrocução, a inserção de agulhas embaixo das unhas das mãos e dos pés, molhar os detentos com água gelada e até estupro. Na Ásia Central, pessoas suspeitas de pertencer a grupos islamistas ou de realizar outras atividades contrárias ao regime correm maior risco de sofrer torturas. As pessoas acusadas de pertencer a grupos armados na região norte do Cáucaso, na Rússia, são submetidas de maneira quase sistemática a tortura e outros maus-tratos para obtenção de confissões, testemunhos incriminatórios e informações. Rasul Kudaev foi detido no dia 23 de outubro de 2005 na Rússia, acusado de participar do ataque lançado por um grupo armado contra edifícios governamentais na cidade de Nalchik. Ele foi brutalmente espancado no momento da prisão e durante o tempo em que permaneceu detido. As marcas das agressões eram bastante visíveis em seu rosto, mas a polícia disse que ele havia caído intencionalmente e que havia se machucado. Nenhuma investigação foi aberta sobre suas denúncias. Seu processo, que teve início em 2009, baseia-se quase que totalmente em uma confissão forçada. Cinco anos depois – nove desde que foi detido – o julgamento ainda prossegue.

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No Tadjiquistão, Umed Tojiev saltou da janela do terceiro andar da delegacia de polícia em que estava detido, após ter sido torturado e forçado a confessar atos de terrorismo, quebrando as duas pernas. Dois meses depois, em 19 de janeiro de 2014, ele morreu em um hospital penitenciário, supostamente devido a coágulos. Há informações de que em Belarus, único país europeu que ainda usa a pena de morte, confissões obtidas mediante tortura foram usadas como prova para condenar pessoas à morte.

•  Impunidade Nos países da antiga União Soviética, os policiais responsáveis por praticar tortura e outros maustratos gozam de impunidade quase total. Os casos raramente chegam aos tribunais, uma vez que os inquéritos são arquivados por colegas policiais que conduzem as investigações iniciais ou por investigadores e promotores simpáticos aos policiais. Os tribunais raramente admitem pedidos de investigações mais exaustivas ou eles mesmos às solicitam quando confrontados com provas de tortura apresentadas pelas pessoas acusadas de delitos. Tanto na UE quanto nos Bálcãs, onde a resposta institucional e a minuciosidade das investigações costumam ser inadequadas, a reação inicial frente às denúncias de abusos policiais é negá-las.

•  Protestos Na União Soviética, o uso excessivo da força e os espancamentos punitivos a manifestantes são prática comum. Em 2013 e 1014, a Anistia Internacional documentou vários casos de abusos contra manifestantes e ativistas de oposição na Rússia, no Azerbaijão e, mais visivelmente, na Ucrânia em resposta às manifestações do Euromaidan. Estima-se que mais de mil pessoas tenham ficado feridas em consequência do uso de força excessiva pela polícia; dessas, mais de cem foram atingidas por tiros, muitas das quais morreram. Em janeiro de 2014, Mikhailo Niskoguz, um estudante ucraniano que havia tirado fotografias durante os protestos antigovernamentais no centro de Kiev, foi torturado pela polícia. Ele foi espancado, cortado com uma faca e teve o braço quebrado. Milhares de pessoas que saíram às ruas na Turquia em 2013 por causa dos protestos no Parque Gezi também foram feridas pela polícia. Acredita-se que pelo menos quatro tenham morrido em consequência dos abusos. Hakan Yaman perdeu um olho e sofreu fratura de crânio, do osso molar, da testa e do queixo ao ser brutalmente espancado pela polícia próximo a sua casa em Istambul em junho de 2013. Depois disso, acreditando que ele estivesse morto, os policiais o atiraram sobre uma fogueira. A Anistia Internacional documentou também muitos casos de abusos policiais no contexto das manifestações realizadas contra as medidas de austeridade na Espanha, na Romênia, na Itália e, sobretudo, na Grécia nos últimos anos. Tortura e maus-tratos nas fronteiras da Europa

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Nos últimos anos, a Anistia Internacional tem documentado grande número de abusos, como o perigoso reenvio forçado de migrantes e refugiados através das fronteiras externas da UE, principalmente na fronteira entre a Grécia e a Turquia e nas fronteiras terrestres entre a Espanha e o Marrocos. Esse tipo de ação costuma vir acompanhado de denúncias confiáveis de espancamentos e tratamento degradante.

•  Cumplicidade europeia com extradições extrajudiciais e detenções secretas Os governos da UE ainda não iniciaram investigações efetivas sobre sua participação no programa de extradições extrajudiciais e detenções secretas da CIA, no qual, entre 2001 e 2007, a tortura e outros maus-tratos foram abundantes. Há informações confiáveis, inclusive procedentes da UE, do Conselho da Europa, da ONU, de jornalistas e ONGs indicando que, entre 2002 e 2006, existiram locais de detenção secreta da CIA na Lituânia, na Polônia e na Romênia. As pessoas encarceradas nesses locais afirmaram terem sido espancadas, privadas de sono por períodos prolongados e submetidas a quase afogamento. A Romênia conduziu apenas uma investigação parlamentar secreta que durou poucas horas. A conclusão dessa investigação foi mantida em segredo, exceto por uma breve declaração pública afirmando que o país não estava envolvido de modo algum nos programas de extradição extrajudicial e detenções secretas. A investigação criminal conduzida pela Polônia começou em 2008, mas padece de demoras e falta de transparência, embora três homens atualmente detidos na base de Guantánamo tenham recebido a condição de “parte afetada” na investigação. Em janeiro de 2014, o Washington Post informou que o governo estadunidense havia pagado às autoridades polonesas 15 milhões de dólares por terem administrado o local de detenção secreta. A investigação conduzida na Lituânia concentrou-se na transferência ilegal para dentro do país de Mustafa al-Hawsawi, também detido em Guantánamo, que afirmou ter estado detido em um lugar secreto nesse país. Numa rara vitória para a justiça, agentes secretos estadunidenses e italianos foram condenados na Itália pelo sequestro, em 2003, de Abu Omar, que posteriormente fora extraditado extrajudicialmente para o Egito, onde foi torturado. Em dezembro de 2012, o Tribunal Europeu de Direitos Humanos concluiu também que a Macedônia havia sido responsável pelos maus-tratos, pela detenção arbitrária, pelo desaparecimento forçado e pela tortura de outra vítima de extradição extrajudicial, Khaled el Masri. A norma geral, porém, tem sido a negação, o acobertamento e a corrosão do compromisso dos Estados com a proibição universal e absoluta da tortura em todas as circunstâncias.

ESTUDO DE CASO: TORTURA DE MANIFESTANTES NA UCRÂNIA “Fraturas de crânio e face, inclusive da órbita ocular, comoção cerebral e contusões, inclusive em volta do pescoço.” Esta foi a conclusão do laudo médico de Vladislav Tsilytskiy, um programador de computador de 23 anos, depois de ele ter sido detido, junto com muitas outras pessoas, durante um protesto no dia 20 de janeiro de 2014 na capital da Ucrânia, Kiev.

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Vladislav teve que ser levado da custódia policial diretamente para um hospital. Do leito hospitalar, ele contou a seu advogado que foi espancado e que desmaiou, e que um policial o havia retirado de cima da colunata do telhado do estádio de futebol Dinamo arrastando-o pelos lábios, e que havia borrifado um tubo de gás lacrimogênio nos seus genitais. Nenhuma investigação foi aberta sobre o caso.

ORIENTE MÉDIO E NORTE DA ÁFRICA A região do Oriente Médio e norte da África foi abalada por revoltas na maior parte desta década. O otimismo inicial de que haveria um maior respeito aos direitos humanos, inclusive ao direito de não sofrer tortura, em grande parte se desfez para dar lugar ao desespero pela falta de progresso ou, como no caso da Síria, ao horror diante da catástrofe de direitos humanos, em que a tortura é praticada em escala industrial. Em todos os lugares, principalmente nos países que assistiram à queda de governantes que há muito estavam no poder, há um sentimento de frustração frente à lentidão das mudanças. As novas autoridades, em alguns casos, têm tomado medidas positivas, embora limitadas, como o fortalecimento da proibição da tortura ou, no caso da Tunísia, o início de um processo de justiça transicional. Contudo, até o momento, os fatores que facilitam esses abusos mostraram estar demasiado arraigados para que as leis se convertam em prática.

•  Situações de conflito e pós-conflito Os relatos de tortura e outros maus-tratos dispararam na Síria desde que os protestos de março de 2011 provocaram uma resposta brutal das autoridades e deram lugar a um conflito interno que ainda se desenrola. A tortura é utilizada de modo rotineiro contra pessoas detidas por suspeita de envolvimento com atividades de oposição, entre elas ativistas pacíficos e menores de idade. Há informações de que milhares de pessoas morreram sob custódia. A Anistia Internacional também documentou casos de tortura praticados por grupos armados. A tortura e outros maus-tratos também manchou o histórico de países que estão saindo de situações de conflito. No Iraque, essa prática continua intensamente difundida nas penitenciárias e centros de detenção. Acredita-se que mais de 30 pessoas tenham morrido sob custódia em consequência desse tratamento entre 2010 e 2012. Na Líbia, a tortura é prática predominante tanto nos centros estatais quanto nos das milícias. A Anistia Internacional documentou 23 casos de morte em consequência de tortura desde o fim do conflito em 2011.

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•  Reações às divergências, aos protestos e ao que se consideram ameaças à segurança nacional Uma característica comum a todo o Oriente Médio e o norte da África é o grau em que os governos têm recorrido à tortura e outros maus-tratos para reprimir as divergências e os protestos ou para responder ao que percebem como ameaças contra a segurança nacional. No Egito, durante o levante de 2011, as forças de segurança e o exército usaram a tortura como arma contra os manifestantes. Em março de 2011, sob o governo militar, as manifestantes foram submetidas a ‘testes de virgindade’ forçados. As autoridades atuais estão redigindo uma nova legislação antiterrorista que, se aprovada, irá corroer as salvaguardas existentes contra a tortura e outros maus-tratos, enquanto essa prática é cometida de forma endêmica. No Irã, as autoridades têm recorrido à tortura e outros maus-tratos como meio de obter ‘confissões’ que podem resultar em sentenças de morte em casos que vão desde a repressão a dissidentes pacíficos até os delitos relacionados às drogas e as ações judiciais contra minorias. A prática da tortura é comum durante os interrogatórios, quando, na maioria das vezes, os detentos são privados de acesso a advogado. Em vários países, as autoridades têm sido obrigadas a responder a uma ameaça real à população representada por indivíduos ou grupos armados que têm os civis como alvo. No entanto, a condução dessas operações por parte do Estado muitas vezes tem sido manchada por relatos de tortura contra os suspeitos. Por exemplo, na Jordânia, 11 homens detidos em outubro de 2012 suspeitos de terem planejado ataques violentos em Amã afirmam haver ‘confessado’ mediante tortura. Além disso, essas operações têm atingido, muitas vezes de forma intencional, opositores do governo e ativistas da sociedade civil. Na Arábia Saudita, são frequentes as denúncias de tortura e outros maus-tratos a pessoas suspeitas de delitos relacionados à segurança, uma categoria em que se podem incluir adversários políticos. Em outros países do Golfo, como Bahrein, Emirados Árabes Unidos, Kuait, Omã e Qatar, foram recebidas denúncias recentes de tortura ou outros maus-tratos contra pessoas detidas, algumas por motivos de ‘segurança’. Em Israel e nos Territórios Palestinos Ocupados, os abusos cometidos contra pessoas detidas, principalmente palestinas, no momento da prisão e durante os interrogatórios, continua causando grave preocupação. Desde 2001, foram feitas mais de 800 denúncias de tortura contra a Agência de Segurança Israelense, mas não foi iniciada sequer uma investigação criminal sobre elas. Tanto a Autoridade Palestina na Cisjordânia quanto o governo de fato do Hamas na Faixa de Gaza têm sido responsáveis por torturas e outros maus-tratos contra detentos, especialmente contra seus respectivos oponentes. Um órgão de monitoramento criado pela Autoridade Palestina informou ter recebido 150 denúncias de tortura ou outros maus-tratos na Cisjordânia e 347 em Gaza durante o ano de 2013.

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•  Penas cruéis, desumanas ou degradantes Alguns países da região, principalmente no Golfo, mantêm em sua legislação penas cruéis, desumanas ou degradantes, como a lapidação, o açoitamento e a amputação, mas os países que mais as impõem são o Irã e a Arábia Saudita.

•  Um padrão característico de inércia do Estado Os arraigados padrões de tortura e outros maus-tratos na região são facilitados pelo fato de as forças de segurança agirem praticamente sem controle, de o sistema judicial depender fortemente de confissões e de as autoridades judiciais, que geralmente carecem de independência, geralmente não agirem quando recebem denúncias sobre esse tipo de tratamento. No centro do problema está a falta de vontade política. No Bahrein, um órgão internacional de especialistas criado por causa de pressão internacional após a repressão do levante de 2011 concluiu que o governo do país havia usado a tortura de forma sistemática contra os detidos. O governo anunciou que aceitava as conclusões do órgão, mas não aplicou suas principais recomendações. Em toda a região, a violência contra as mulheres é um problema persistente. Os Estados não garantiram proteção efetiva por lei contra esse tipo de crimes cometidos por particulares, e os tolera de outras maneiras ao não garantir que sejam investigados e processados adequadamente. A ausência geral de prestação de contas por violações graves de direitos humanos tais como a tortura têm sido agravadas em alguns países por medidas de anistia. No Iêmen, o governo promulgou, em janeiro de 2012, uma lei de imunidade que concedia ao ex-presidente Ali Abdullah Saleh e a todos que foram empregados por seu governo imunidade processual pelos “atos de motivação política” cometidos no desempenho de suas funções. Na Argélia, as autoridades concederam imunidade processual a membros das forças de segurança e das milícias armadas que cometeram violações graves de direitos humanos durante o conflito interno da década de 1990.

•  Passos na direção certa Recentemente, tem havido algum progresso no que se refere ao fortalecimento da proibição da tortura no direito nacional, principalmente na Tunísia e na Líbia. Enquanto isso, a Autoridade Palestina e as autoridades do Líbano, onde a tortura e outros maus-tratos também são motivo de preocupação, estabeleceram códigos de conduta para as forças de segurança, nos quais formulam medidas para prevenir esses abusos. Os primeiros a tentarem adotar medidas de justiça transicional para lidar com o legado de tortura e de outros abusos foram Marrocos e Saara Ocidental. Uma comissão criada em 2003 enfatizou a responsabilidade do Estado pelas violações de direitos humanos

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– inclusive tortura – cometidas pelos serviços de segurança entre 1956 e 1999, e concedeu indenização financeira a muitos sobreviventes. Porém, não defendeu o direito à verdade e à justiça para as vítimas de tortura e outros maus-tratos que continuam sendo denunciados e cometidos inclusive contra os apoiadores da autodeterminação do Saara Ocidental. Na Tunísia, uma comissão foi encarregada, em dezembro de 2013, de investigar as violações de direitos humanos cometidas desde 1955. Além disso, outros acontecimentos fizeram surgir esperança de que a prestação de contas aconteça. Em março de 2013, foram exumados os restos mortais de Faysal Baraket, um jovem morto em consequência das torturas que sofreu sob custódia em outubro de 1991. O exame realizado contradisse a versão apresentada pelo governo tunisiano anterior, de que a causa da morte teria sido um acidente de trânsito; os procedimentos judiciais ainda estão em curso.

ESTUDO DE CASO: Morte sob custódia no Irã Em 2012, o blogueiro Sattar Beheshti morreu sob custódia da polícia para crimes cibernéticos do Irã, ao que parece, em consequência de tortura. O laudo da perícia afirmava que ele havia morrido devido a hemorragia interna pulmonar, hepática, renal e cerebral. Ainda não foi realizada uma investigação imparcial e exaustiva sobre sua morte.

12. ANEXO: RESUMO DO MARCO JURÍDICO Proibição da tortura e de outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes A tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes são absolutamente proibidos por tratados internacionais de direitos humanos e outros instrumentos (dentre eles, o artigo 5º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, o artigo 7º do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, a Convenção da ONU contra a Tortura e tratados regionais como a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, o artigo 5º da Convenção Americana sobre Direitos Humanos e o artigo 3º da Convenção Europeia de Direitos Humanos), tratados de direito internacional humanitário (como as convenções de Genebra) e o direito consuetudinário internacional. A proibição é absoluta: não se permite qualquer limitação ou derrogação em nenhuma circunstância, nem mesmo em tempos de guerra ou ameaça de guerra, instabilidade política interna ou qualquer outra emergência pública. Os Estados não podem anular a proibição sequer mediante a assinatura de acordos com outros Estados que permitem a tortura. A tortura é um crime de direito internacional em todas as circunstâncias. Algumas outras formas de tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes também são crimes segundo o direito internacional, especialmente no contexto de um conflito armado ou como elemento num crime contra a humanidade.

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Segundo a definição mais comum e amplamente utilizada – aquela da Convenção da ONU contra a Tortura – tortura é todo ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais são infligidos intencionalmente a uma pessoa, por agentes do Estado ou com seu consentimento ou aquiescência, com um propósito específico, tal como obter informações ou confissões, punir, coagir ou intimidar, ou por qualquer motivo baseado em discriminação de qualquer natureza. Não há no direito internacional uma definição geral de outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes; porém, as normas internacionais afirmam que deve-se proporcionar a maior proteção possível frente a eles. A partir da prática dos órgãos regionais e internacionais de monitoramento dos tratados de direitos humanos, os atos que constituem maus-tratos podem ser amplamente definidos como maus-tratos que não incluam todos os elementos essenciais da definição de tortura descrita acima. Por exemplo, se consideram como atos cruéis, desumanos ou degradantes, e não como tortura, os atos que causem dor que não seja severa, ou os atos que não tenham uma das finalidades enumeradas na definição de tortura. Os tratados e as normas internacionais estabelecem salvaguardas específicas, tanto de procedimentos quanto de outros tipos, que reforçam a proibição: o direito de comparecer sem demora perante um juiz após a detenção, o direito de as pessoas detidas terem acesso a um advogado, e o direito a ter contato com o mundo exterior. Dentre esses tratados e normas, destacam-se como fundamentais a Convenção da ONU contra a Tortura, as disposições sobre o direito à liberdade e a um julgamento justo contidas no Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, a Convenção Internacional para Proteção de Todas as Pessoas contra os Desaparecimentos Forçados, e o Conjunto de Princípios para a Proteção de Todas as Pessoas Submetidas a Qualquer Forma de Prisão ou Detenção.

•  Investigação, prestação de contas e reparação Como componente da proibição, os Estados devem investigar todas as denúncias confiáveis de tortura e outros maus-tratos. As investigações devem ser realizadas sem demora, devem ser exaustivas, efetivas, independentes e imparciais, além de serem submetidas ao escrutínio público. Devem ser capazes de conduzir à identificação do perpetrador, levando-se em conta que uma investigação que não consiga identificar o perpetrador não é necessariamente inefetiva. De acordo com a Convenção da ONU contra a Tortura, os Estados devem garantir que a tortura seja tipificada como crime no direito nacional. Quando os responsáveis são identificados, os Estados devem levá-los à Justiça. Isso requer, em quase todos os casos, um processo penal. Trata-se de uma questão que não se aplica apenas a atos de tortura e outros maus-tratos cometidos no território ou na jurisdição de um Estado. Os Estados que ratificaram a Convenção contra a Tortura estão obrigados a extraditar ou processar as pessoas que se encontrem em seu território ou jurisdição e sejam suspeitas de ter cometido atos de tortura, seja qual for o lugar do mundo em que tais atos tenham sido cometidos (uma forma de “jurisdição universal” obrigatória). Os Estados devem cooperar mediante a extradição e a assistência legal mútua para garantir que não existam ‘refúgios seguros’ para os torturadores. As vítimas de tortura e outros maus-tratos têm direito a receber reparação adequada, efetiva e rápida pelo dano que sofreram. No contexto da tortura e outros maus-tratos, o mais provável é que essa reparação tome a forma de reabilitação, indenização e medidas de satisfação (inclusive o direito à verdade), embora possa também incluir alguma forma de restituição.

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A tortura em 2014 30 anos de promessas descumpridas

Os Estados que violam a proibição também estão obrigados a oferecer garantias de não repetição, isto é, a tomar medidas para evitar que a tortura e outros maus-tratos se repitam, o que, de certo modo, está muitas vezes vinculado às obrigações contraídas pelo Estado com relação à investigação, à prestação de contas e à prevenção.

•  Salvaguardas O direito internacional impõe aos Estados uma série de obrigações concebidas, ao menos em parte, como salvaguardas contra a tortura. Enumeramos abaixo uma série de salvaguardas básicas, embora esta lista não seja exaustiva. No momento da detenção, as pessoas detidas devem ser informadas tanto dos motivos de sua detenção quanto de seus direitos. Sua detenção deve ser informada a seus familiares, seja pela própria pessoa detida ou pelas autoridades. A detenção em regime de incomunicabilidade (isolamento do mundo exterior), proibida pelo direito internacional, facilita a tortura e outros maus-tratos e, quando prolongada, pode constituir maus-tratos em si mesma. Portanto, os Estados devem assegurar que as pessoas detidas tenham acesso imediato e regular a um advogado, a sua família e a cuidados médicos independentes. As autoridades devem manter registros oficiais atualizados das pessoas detidas, os quais devem estar à disposição dos advogados e das famílias dos detidos, bem como de quem quer que tenha um interesse legítimo nessas informações. As pessoas detidas devem ser mantidas somente em locais de detenção reconhecidos: a detenção secreta está proibida. As pessoas detidas devem comparecer sem demora perante uma autoridade judicial para que esta se pronuncie sobre a legalidade da detenção. A autoridade judicial deve seguir desempenhando um papel de supervisão, além de monitorar e revisar periodicamente a continuação da detenção. A autoridade judicial deve utilizar o comparecimento da pessoa suspeita como uma oportunidade de escutar qualquer declaração que essa pessoa queira fazer com relação ao tratamento que está recebendo sob custódia. Toda a declaração ou outras ‘provas’ obtidas mediante tortura e outros maus-tratos são inadmissíveis nos procedimentos judiciais, exceto nos procedimentos contra uma pessoa acusada de tortura, como prova de que tal declaração se realizou. Ademais, essa normas evoluíram – especialmente no sistema europeu – e agora requerem que qualquer declaração realizada na ausência de um advogado seja inadmissível nos procedimentos judiciais contra uma pessoa. Outras salvaguardas adicionais incluem: separar as autoridades responsáveis pelo interrogatório daquelas responsáveis pela reclusão; garantir a presença de um advogado durante os interrogatórios e monitorar com vídeo todos os interrogatórios e outras situações em que haja probabilidade de que ocorram tortura e outros maus-tratos.

•  Mecanismos internacionais de proteção e prevenção Há diversos órgãos internacionais e regionais que monitoram o cumprimento dos tratados por parte dos Estados. Na ONU, o Comitê contra a Tortura monitora o cumprimento da Convenção contra a Tortura, por exemplo, por meio de denúncias individuais e relatórios dos Estados. O Comitê de Direitos

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A tortura em 2014 30 anos de promessas descumpridas

Humanos faz o mesmo com relação ao Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos. Outros órgãos de supervisão dos tratados da ONU às vezes abordam, no contexto de seu mandato específico, questões relacionadas à tortura. Além destes, diversos procedimentos especiais, tanto da ONU quanto regionais, especialmente o relator especial sobre a tortura, realizam visitas a países, respondem a situações individuais e publicam relatórios temáticos relativos a tortura e outros maus-tratos. No âmbito regional, o Tribunal Europeu de Direitos Humanos, a Comissão e a Corte Interamericana de Direitos Humanos, a Comissão Africana de Direitos Humanos e o Tribunal Africano de Direitos Humanos atendem casos individuais ou apresentados por Estados que denunciam violações dos tratados regionais pertinentes. Existem dois principais mecanismos internacionais para a prevenção da tortura e outros maus-tratos: o Subcomitê da ONU para a Prevenção da Tortura, estabelecido pelo Protocolo Facultativo à Convenção contra a Tortura, e o Comitê Europeu para a Prevenção da Tortura, estabelecido pela Convenção Europeia para a Prevenção da Tortura e que abrange todos os Estados-membros do Conselho da Europa. O Comitê Europeu para a Prevenção da Tortura realiza visitas periódicas e ad hoc aos Estadospartes. O Comitê Europeu publica os relatórios de suas visitas apenas após o consentimento dos Estados em questão. Em circunstâncias excepcionais, o Comitê Europeu pode decidir emitir uma declaração pública caso um Estado não colabore ou se recuse a melhorar a situação a partir das recomendações do Comitê. Por sua vez, o Subcomitê da ONU para a Prevenção da Tortura tem um mandato similar ao do Comitê Europeu, embora o Protocolo Facultativo à Convenção contra a Tortura não o autorize explicitamente a realizar visitas ad hoc. O artigo 17 do Protocolo Facultativo à Convenção contra a Tortura também requer que os Estados mantenham ou criem mecanismos preventivos nacionais independentes para a prevenção da tortura, bem como para o cumprimento de outras normas internacionais em nível nacional. Assim como o Subcomitê da ONU para a Prevenção da Tortura, os mecanismos preventivos nacionais possuem mandato para realizar visitas e formular recomendações às autoridades com o fim de proteger da tortura e dos maus-tratos as pessoas privadas de liberdade.

•  Regras Mínimas da ONU para o Tratamento dos Reclusos As Regras Mínimas da ONU para o Tratamento dos Reclusos são um instrumento fundamental para proteger as pessoas presas e detidas de abusos tais como a tortura, e para assegurar condições de reclusão humanas. Essas regras, formuladas em 1955, estão obsoletas. Em 2010, a Assembleia Geral da ONU adotou a resolução 65/230, “12º Congresso das Nações Unidas sobre Prevenção do Crime e Justiça Penal”, na qual solicitava que a Comissão para a Prevenção do Crime e a Justiça Penal estabelecesse um grupo intergovernamental de especialistas de composição aberta. O grupo compartilhará informações sobre as melhores práticas, a legislação nacional e o direito internacional em vigor, bem como sobre a revisão das atuais Regras Mínimas, a fim de que reflitam os últimos avanços das melhores práticas e da ciência correcional, com vistas a formular recomendações à Comissão sobre possíveis medidas a serem tomadas. A Anistia Internacional e outras pessoas e entidades estão trabalhando para assegurar que esta revisão resulte em regras mais sensíveis aos direitos humanos. Alguns Estados têm demonstrado apoio; outros buscam limitar as mudanças; e outros querem deter todo o processo ou excluir as organizações não governamentais de participação adicional.

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A tortura em 2014 30 anos de promessas descumpridas

•  Atores não estatais Os atos cometidos por particulares podem ser compreendidos pela definição de tortura contida no direito internacional. O Estado é responsável se as autoridades estatais não exercerem a diligência devida para prevenir ou punir esses atos cometidos por atores privados, bem como para proteger outras pessoas contra eles. Em determinadas circunstâncias, indivíduos ou grupos armados podem ser responsabilizados por atos de tortura que constituem crimes contra a humanidade ou crimes de guerra.

•  Princípio de não devolução e garantias diplomáticas O princípio de não devolução (non-refoulement) trata da proibição de transferir uma pessoa ao território ou ao controle de outro Estado se essa pessoa correr um risco real de sofrer tortura e outros maus-tratos (inclusive se existe a possibilidade de que ela seja posteriormente transferida a um terceiro território ou ao controle de um terceiro Estado onde possa correr perigo). O princípio de não devolução é um elemento fundamental da proibição da tortura e outros maus-tratos tanto em tratados internacionais – tais como a Convenção da ONU contra a Tortura, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, a Convenção Europeia de Direitos Humanos e a Convenção da ONU sobre o Estatuto dos Refugiados – quanto no direito consuetudinário internacional. Para burlar essa proibição, os Estados têm buscado, cada vez mais, recorrer a “garantias diplomáticas” – a promessa, por parte de um Estado, de que uma pessoa não será submetida a tortura ou a outros maus-tratos caso retorne a seu território. A Anistia Internacional se opõe a toda decisão de basear-se em garantias diplomáticas para justificar a transferência de uma pessoa a situação que envolva um risco real de que essa pessoa seja submetida a tortura ou outros maus-tratos sob custódia. A organização também se opõe às garantias oferecidas pelos Estados com relação à admissão de provas e testemunhos obtidos mediante tortura ou maustratos, pelo menos quando exista um padrão generalizado ou sistêmico de tortura ou outros maus-tratos, ou quando as provas ou testemunhos obtidos por tais abusos sejam admitidos de maneira habitual.

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A tortura em 2014 30 anos de promessas descumpridas

Neste documento, os termos “tortura e outros maus-tratos” geralmente referem-se a “tortura ou tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes”. Para simplificar, o termo “tortura” às vezes é usado para referir-se a “tortura e outros maus-tratos”.

13. ANEXO: DEFINIÇÕES E TERMOS •  Tortura A Convenção da ONU contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes define a tortura como “qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de terceira pessoa, informações ou confissões; de castigá-la por ato que ela ou terceira pessoa tenha cometido ou seja suspeita de ter cometido; de intimidar ou coagir esta pessoa ou outras pessoas; ou por qualquer motivo baseado em discriminação de qualquer natureza; quando tais dores ou sofrimentos são infligidos por um funcionário público ou outra pessoa no exercício de funções públicas, ou por sua instigação, ou com o seu consentimento ou aquiescência”. Outras definições legais que se aplicam a contextos específicos não limitam a definição aos atos cometidos por funcionário público ou com sua aquiescência.

•  Tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes A tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes não devem ser considerados categorias distintas. São todos igualmente proibidos pelo direito internacional. Tais tratamentos ou penas estão proibidos quando algum desses elementos se aplica. Não há no direito internacional uma definição geral de outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes; porém, as normas internacionais afirmam que deve-se proporcionar a maior proteção possível frente a eles. A partir da prática dos órgãos regionais e internacionais de monitoramento dos tratados de direitos humanos, os atos que constituem maus-tratos podem ser descritos de modo genérico como maus-tratos que não incluam todos os elementos essenciais da definição de tortura. Por exemplo, abusos que causem dor que não seja “severa” ou que não sejam intencionais seriam descritos como tratamento cruel, desumano ou degradante. Nem sempre há acordo sobre se uma forma específica de abuso constitui tortura ou outros maus-tratos. Entretanto, todas as formas de tortura e maus-tratos são absolutamente proibidas pelo direito internacional, inclusive pelas leis da guerra.

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A tortura em 2014 30 anos de promessas descumpridas

•  Punições corporais Este termo refere-se aos castigos físicos que se infligem ao corpo por ordem judicial ou como sansão administrativa. Inclui atos como a amputação, a marcação a fogo e a flagelação, inclusive o açoitamento com vara. A punição corporal sempre é um castigo cruel, desumano ou degradante e, em alguns casos, pode constituir tortura. Segundo o relator especial da ONU sobre a tortura, o Comitê de Direitos Humanos da ONU e outros órgãos de direitos humanos, a proibição da tortura e outros maus-tratos implica que a punição corporal – inclusive quando ordenada judicialmente como pena por um crime – jamais poderá ser uma sansão legítima.

•  Detenção em regime de incomunicabilidade Este termo faz referência às situações em que a pessoa detida é privada de acesso a pessoas que estão fora do local de detenção, principalmente seu advogado, seus familiares e um tribunal independente. A detenção em regime de incomunicabilidade é o contexto em que a tortura e outros maus-tratos ocorrem com maior frequência. Quando prolongada, constitui em si mesma uma forma de tortura ou outro tratamento ou pena cruel, desumano ou degradante. A detenção em regime de incomunicabilidade não é o mesmo que a detenção em regime de isolamento. A pessoa detida pode dividir uma cela ou ter contato com outros detentos e, ainda assim, ser privada de acesso ao mundo exterior.

•  Estupro As definições legais de estupro variam segundo diferentes sistemas jurídicos e evoluem com o tempo. Embora o estupro tenha sido definido historicamente como o intercurso sexual não consentido, o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional inclui em sua definição, sem conotações de gênero, os atos coercitivos que envolvem a inserção de objetos ou o uso de orifícios corporais que não se consideram intrinsecamente sexuais. O estupro por parte de um agente do Estado – por exemplo, um agente penitenciário, de segurança ou militar – de uma pessoa que se encontre sob sua custódia constitui sempre um ato de tortura pelo qual o Estado é diretamente responsável. Na opinião da Anistia Internacional, o estupro cometido por particulares que não são agentes do Estado constitui um ato de tortura pelo qual o Estado é responsável caso não tenha atuado com a devida diligência para prevenir, punir ou reparar o crime. Quando funcionários são implicados em agressões sexuais que não são estupro, tais atos constituirão tortura ou ouros maus-tratos, conforme os atos e as circunstâncias específicos.

•  Morte sob custódia Descreve as mortes ocorridas em prisões, locais de detenção – oficiais ou não –, em hospitais ou em outras situações em que a pessoa detida está em custódia de agentes de aplicação da lei ou de pessoal da área militar ou de segurança.

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A tortura em 2014 30 anos de promessas descumpridas

•  Desaparecimento forçado Ocorre quando há motivos razoáveis para crer que uma pessoa foi detida pelas autoridades, por seus agentes ou por pessoas que atuam com sua aquiescência, mas as autoridades se negam a reconhecer o fato ou ocultam o destino ou o paradeiro dessa pessoa, colocando-a, desse modo, fora da proteção da lei. De acordo com o direito internacional, além da pessoa desaparecida, outras pessoas, como os familiares, também são vítimas do desaparecimento forçado.

•  Detenção secreta Descreve uma situação em que a pessoa é encarcerada sem que se revele seu paradeiro, e com frequência sem que se revele sequer que ela está encarcerada. O local da detenção secreta pode ser um centro de detenção não reconhecido oficialmente, como um domicílio particular, um campo militar, uma prisão secreta ou um recinto oculto dentro de um centro maior. A detenção secreta é proibida pelo direito internacional. A maioria dos casos de detenção secreta também corresponde à definição jurídica internacional de desaparecimento forçado.

•  Reclusão em regime de isolamento Refere-se a manter uma pessoa detida isolada de outras, geralmente envolvendo contato mínimo com os agentes prisionais. Pode constituir tortura e outros maus-tratos, dependendo da duração e de outras condições do regime de isolamento, ou da privação de estimulação sensorial que pode resultar. Trata-se de uma prática que pode facilitar a tortura e outros maus-tratos. A detenção em regime de isolamento não é o mesmo que a detenção em regime de incomunicabilidade. Um recluso isolado de outros pode continuar tendo acesso a, por exemplo, advogados, familiares e cuidados médicos independentes. O regime de isolamento pode ter efeitos nocivos graves para a saúde física e mental. Ninguém deve ser mantido em regime de isolamento prolongado ou em condições de estimulação sensorial reduzida. O regime de isolamento deve ser proibido para menores encarcerados, pessoas portadoras de deficiências psicossociais ou de outro tipo, bem como com problemas de saúde, e também para as mulheres grávidas ou com filhos pequenos.

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A TORTURA EM 2014

A tortura em 2014 30 anos de promessas descumpridas

30 ANOS DE PROMESSAS DESCUMPRIDAS CHEGA DE TORTURA – RESUMO INFORMATIVO Tortura. A palavra evoca todo um mundo de sofrimento e medo. Provoca condenação quase universal. Contudo, ainda hoje, 30 anos após a adoção histórica da Convenção da ONU contra a Tortura, e apesar de importantes avanços, essa prática está aumentando em pelo menos três quartos dos países do mundo. Um estudo global encomendado pela Anistia Internacional revelou que quase a metade da população mundial não se considera estar a salvo da tortura. Nos últimos cinco anos, a Anistia Internacional tem denunciado casos de tortura e outros maus-tratos em 141 países de todas as regiões do mundo. Em alguns desses países, a organização documentou apenas casos isolados e excepcionais, enquanto que, em outros, a tortura é sistêmica. Trata-se de uma violação dos direitos humanos que se pratica no escuro, que se inflige quando as pessoas estão mais isoladas e vulneráveis. É impossível calcular o número total de vítimas de tortura. Porém, tal como mostra este documento, existem provas irrefutáveis de que a tortura é uma crise de dimensões verdadeiramente globais. Este informe oferece uma perspectiva global do uso da tortura no mundo de hoje. Examina quando e por que se inflige tortura e quais são os métodos mais comuns utilizados. Mostra porque soam falsas as afirmações de governos que negam a ocorrência de tortura, e porque a campanha global ‘Chega de Tortura’ da Anistia Internacional segue sendo mais necessária do que nunca em 2014.

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