Em nome da internet os bastidores da construcao coletiva do Marco Civil
ANNA CAROLINA PAPP
Em nome da internet os bastidores da construção coletiva do Marco Civil
ANNA CAROLINA PAPP
Texto | Anna Carolina Papp Projeto gráfico e diagramação | Thiago Jardim Ilustrações | Carlinhos Müller Orientação | Prof. Dr. Eugênio Bucci
Livro produzido como Trabalho de Conclusão de Curso de Graduação em Jornalismo na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP) SÃO PAULO | 2014
Não se enganem: os inimigos da internet livre não desapareceram. O fogo nos olhos desses políticos não foi apagado. Há muitas pessoas poderosas querendo reprimir a internet. E, para ser honesto, não há lá tantas assim que querem protegê-la de tudo isso. Não podemos deixar que isso aconteça. Aaron Swartz 1986 - 2013
[Indice]
[Abertura]
1. [O AI-5 Digital]
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4. [O jogo]
5. [A denuncia]
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82 [Agradecimentos] 130
2. [A contraproposta]
3. [A consulta]
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6. [O conchavo]
7. [A Lei]
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[Bibliografia] 132
[Prefacio]
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á alguns anos, eu jamais poderia imaginar que me interessaria tanto pela temática da internet. Mesmo aspirante a jornalista, nunca escrevi um blog. Não sei formatar meu computador. Até hoje me enrolo para baixar coisas online. Fiz minha conta no Facebook – ou melhor, fizeram para mim – só em 2011, quando o mundo inteiro já estava lá. “Adicionem a Anna Carolina Papp que acabou de ganhar um perfil no Facebook das amigas que não aguentam mais a ausência tecnológica dela!!”, escreveu uma delas no dia 19 de agosto. Naquele ano, porém, a tecnologia viria a fazer parte da minha vida como nunca antes. Fiz um intercâmbio para o outro lado do mundo, e tive de recorrer a serviços e aplicativos para me sentir mais próxima de meus queridos. Fiz o Jornal do Campus na universidade, que para nossa turma calhou num período turbulento de ocupação da reitoria, reintegração de posse e toda uma discussão sobre a presença da Polícia Militar no Campus. Por nossa decisão, transformamos um jornal quinzenal de papel numa cobertura em tempo real multiplataforma. Experiência, vale dizer, em que muitos de nós de fato nos descobrimos jornalistas. Por gostar de política internacional, fui impactada pelo movimento Occupy Wall Street e pelo uso das redes sociais na Primavera Árabe. Por pura curiosidade, li e pesquisei sobre o assunto, e me encantei pela forma como a internet podia ecoar vozes nunca antes ouvidas. Mas o divisor de águas seria minha entrada no Link, caderno de tecnologia e cultura digital do Estadão, em maio de 2012. Lá, descobri que a internet vai muito além de e-mails, sites e redes sociais. Ela pode ser uma ferramenta de inovação, de inclusão social, de extensão democrática. Ela tira projetos do papel em tempo recorde. Agrega ideias, agrega pessoas. Talvez por esse flerte com o papel transformador e social da rede, logo me interessei por essa parte mais política da internet, que envolve questões espinhosas como privacidade e liberdade de expressão. Estava no lugar certo: o Link, que é muito mais um experimento jornalístico e uma escola do que um caderno, já abraçava essas pautas
muito antes de outros veículos de tecnologia. E foi aí que eu conheci o Marco Civil da Internet, que na época dava seus primeiros passos no Congresso e tinha as primeiras de muitas tentativas de votação adiadas. Um projeto de lei pioneiro que se propunha ser uma espécie de Constituição da rede, garantindo os direitos dos usuários; que teve seu texto elaborado por meio de consultas públicas online; que, durante todo o processo de tramitação, em meio a um emaranhado de interesses difusos, sempre deu espaço e voz à sociedade civil. Quanto mais eu acompanhava o tema, mais me interessava e me convencia da importância daquilo. De que assegurar direitos online é tão importante quanto garantir direitos offline. De que grandes corporações não podem passar por cima de garantias constitucionais – e isso precisa estar definido, de forma clara, em lei. De que regulamentação é diferente de controle. De que o discurso “se a internet sempre funcionou assim, por que agora querem regulamentá-la?” era furado, pois deixá-la como estava implicava dar continuidade a práticas recorrentes que corrompiam sua lógica livre, aberta e descentralizada. Diante desse mar de questões em aberto, o Marco Civil emergia como uma lei quase pirata, uma vez que, apesar de ter sido abraçada pelo governo após as denúncias de espionagem dos Estados Unidos, não tinha surgido do governo, tampouco de um partido político. Sua concepção era muito anterior, e sua criação, muito mais plural. Apesar de todo o seu caráter participativo, o Marco Civil, no entanto, não passou imune ao jogo político e à ferrenha luta de interesses. Numa longa batalha no Congresso, quase foi desfigurado e derrotado por atritos que lhe eram completamente externos. Ao longo da cobertura do Marco Civil de que participei, sempre procurei me equilibrar na tal da imparcialidade jornalística – aquela que não existe, pois já morre na escolha das palavras, porém que nos norteia enquanto busca (mas isso seria assunto para outro TCC). Entrevistei e publiquei opiniões de pessoas favoráveis e contrárias ao projeto. Apresentei pontos de consenso e pontos de divergência. Mas, naquela terça-feira, 22 de abril, quando a Beá Tibiriçá anunciou no Arena NETmundial que o Marco Civil da Internet havia sido aprovado no Senado, eu me despi de toda essa compostura, e gritei. Gritei e aplaudi juntamente com outras 100 pessoas que celebravam o fim de um longo processo de tramitação. Horas antes, num seminário, havia ouvido o próprio pai da internet, Vint Cerf, me dizer que estava torcendo para o projeto passar. E ele havia passado. Depois da celebração, ao final do painel, recoloquei minhas vestes
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jornalísticas para repercutir a aprovação, assim como nos dois dias seguintes, no evento principal do NETmundial, em que centenas de pessoas veriam o Marco Civil ser sancionado. Comemorei não porque o texto era perfeito, tampouco porque não tivesse pontos problemáticos. Mas sim porque, olhando o quadro geral, escolhi enxergar o copo meio cheio. O Marco Civil é a primeira legislação que, em vez de ser estritamente criminal ou punitiva, garante de antemão direitos básicos dos usuários na rede. É uma lei que, de cara, os protege de uma série de abusos já existentes e comuns, como a remoção massiva e indiscriminada de conteúdo online e a guarda de logs por tempo indeterminado. “Não é o melhor dos mundos, mas certamente é o melhor do mundo”, me disse o jurista Paulo Rená ao telefone logo após a aprovação do projeto na Câmara dos Deputados. Ouso concordar. Se a luta pelo consenso deixou o Marco Civil “manco”, como ouvi alguns dizer, vale lembrar que a sanção não é o fim, mas apenas a primeira etapa no processo de aderência da legislação à sociedade. Segundo a Presidência, o processo de regulamentação da lei, que deve começar em breve, será aberto à participação popular. É preciso cobrar essa promessa, bem como revisitar fantasmas engavetados como o anteprojeto da lei de dados pessoais e a reforma da lei de direito autoral – que, se legislados em paralelo com o Marco Civil, deixam-no muito mais amarrado e coerente. Além disso, nossos olhos agora devem se voltar ao Judiciário, que terá a responsabilidade de criar bons precedentes da aplicação da lei. Neste livro, tentei contar a história e os bastidores da Lei 12.965/2014, mais conhecida como o Marco Civil da Internet: sua concepção, construção coletiva e os percalços – e foram muitos – que percorreu para ser aprovado no Congresso. Ouvi muita gente, das mais diferentes áreas: advogados, pesquisadores, usuários, deputados, ministros, empresários e ativistas. Essas vinte e poucas pessoas são, no entanto, apenas alguns dos muitos atores que participaram ativamente da construção desse projeto. Serão necessários muitos outros livros para contar essa narrativa com todas as vozes e pontos de vista sob os quais ela pode ser contada. Este trabalho é só um pequeno recorte.
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[Abertura] 23.04.2014
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m pouco mais de uma hora, o grande salão do hotel Hyatt, em São Paulo, se encheu completamente. Às 9h, já estava tomado por centenas de pessoas, que entravam no local com expressão curiosa já nas filas de cadastro – observando, de canto de olho, os crachás uns dos outros para ver quem eram, de onde vinham. No elegante hall, à espera da abertura das portas, homens e mulheres de terno, turbantes, saris e calças jeans se apresentavam e trocavam cartões de visita – uma infinidade deles. Para muitos, a munição de cartões não durou sequer uma ou duas horas. Era o primeiro de dois dias do NETmundial, conferência que reuniu em São Paulo 1.229 participantes, de 97 países, para debater os rumos da internet. Políticos, empresários, técnicos, acadêmicos e membros da sociedade civil discutiriam temas como governança, liberdade de expressão, privacidade e formas de manter a internet um espaço aberto a todos e fértil à inovação. Ao final do evento, uma missão: consolidar uma carta de princípios para a governança da rede, que deveria nortear as discussões nos próximos fóruns. Como modelo, um projeto de lei brasileiro fresquinho, aprovado no Congresso Nacional pouco mais de 12 horas antes: o Marco Civil da Internet. As expectativas para o megaevento eram o assunto mais comentado no hall, nas filas e corredores, mas o tal do Marco Civil não ficava atrás. “Parece que o Brasil aprovou aquela lei da internet, você está sabendo?”, diz um participante para o colega ao lado. “Sim, parece que foi ontem à noite. Acho que eles vão explicar mais sobre isso”, respondeu o outro. O interesse era notório e o burburinho ia ganhando força. A maioria dos participantes, sobretudo os estrangeiros, louvava a iniciativa e queria saber mais sobre a experiência pioneira de instituir uma Constituição para a rede – como havia sido feita, de que forma ajudaria a defender princípios como privacidade, liberdade de expressão e neutralidade da rede. Se o Brasil havia dado o primeiro passo na garantia dos direitos dos usuários na web, eles também queriam trilhar o mesmo caminho.
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Não demorou muito para que o assunto ganhasse o palco da sessão de abertura. Do burburinho ao microfone, o Marco Civil foi perpassando discursos dos integrantes do painel, dentre eles o criador da web, Tim Berners-Lee, e a ativista nigeriana Nnenna Nwakanma, até finalmente ser sancionado pela presidente Dilma Rousseff na cerimônia. Em seu discurso, Dilma afirmou esperar que a “carta de direitos na internet” brasileira inspirasse outros países. A lei (...) demonstra a viabilidade e o sucesso de discussões abertas e multissetoriais, bem como a utilização inovadora da internet na própria discussão como plataforma interativa de debates. Esse foi um processo extremamente virtuoso que nós levamos aqui no Brasil. O nosso Marco Civil foi valorizado ainda mais pelo processo da sua construção. Por isso eu gostaria de lembrar que esse nosso Marco Civil estabelece princípios, garantias e direitos dos usuários, delimitando deveres e responsabilidades dos diferentes atores e do poder público no ambiente online.
Durante o discurso, porém, o som falhou. Um barulho atordoante tomou o Plenário e a presidente teve de esperar por alguns segundos. Enquanto isso, um grupo de ativistas, usando máscaras com o rosto do ex-agente da NSA Edward Snowden, levantou uma faixa em que se lia: “Somos todos vítimas da vigilância. Estamos com você, Dilma”. O assunto não passou despercebido pela presidente, que bateu fortemente na tecla da privacidade. Ao relembrar as denúncias do megaesquema de espionagem dos Estados Unidos feitas por Edward Snowden, Dilma afirmou que violações de privacidade “são e continuam sendo inaceitáveis”. “Elas atentam contra a natureza da internet, que deve ser aberta, plural e livre. É importante reiterar que os direitos que as pessoas têm offline também devem ser protegidos online.” A mesma frase está presente na resolução de defesa da privacidade aprovada pela ONU em janeiro, sugerida pela presidente Dilma Rousseff e pela chanceler alemã Angela Merkel, que tiveram suas comunicações pessoais interceptadas pelo programa norte-americano. E continuou: 14
(Com o Marco Civil), as empresas também não podem bloquear, monitorar, filtrar ou analisar o conteúdo dos pacotes de dados. Protege a privacidade dos cidadãos, tanto na relação com o governo quanto nas relações com as empresas que atuam na internet. As comunicações são invioláveis, salvo por ordem judicial específica. A lei traz, ainda, regras claras para a retirada de conteúdo na rede, sempre garantindo a presença de decisões judiciais. O Marco Civil, exemplo de que o desenvolvimento da internet não pode prescindir deste processo de discussão com a participação dos Estados, é uma referência inovadora porque, em seu processo de elaboração, ecoaram as vozes das ruas, das redes e das instituições. Se o discurso de Dilma Rousseff, que ganhou aplausos entusiasmados, era aguardado como o destaque na abertura da conferência, a sorridente Nnenna Nwakanma, com seu turbante colorido, surpreendeu e foi de fato a grande revelação do painel – levando os participantes e a própria presidente a aplaudi-la de pé. Cofundadora do Free Software and Open Source Foundation for Africa, a nigeriana, gritou e vibrou quando perguntada sobre o que pensava do Marco Civil.
“Nós certamente vamos voltar para o Brasil e, por favor, nos ajudem a entender como podemos fazer o Marco Civil na Costa do Marfim, na África do Sul, no Egito, na Inglaterra, na França e no mundo todo. Não é só o Marco Civil da Internet do Brasil, mas um Marco Civil global. Isso é o que eu quero.” Outro entusiasta da lei brasileira é o físico inglês Tim Berners-Lee, pai da web e criador da World Wide Web Foundation. Ele, que chegara a chamar o Marco Civil de “um presente para a web em seu 25º aniversário” em 2014, defendeu em seu discurso uma carta magna mundial da internet, que garantisse direitos básicos dos usuários. Citando o exemplo brasileiro com o Marco Civil e a União Europeia, que no início do mês havia aprovado uma lei em garantia da neutralidade de rede, pediu que mais países aprovassem legislações semelhantes. E, também mirando a espionagem norte-americana, disse que liberdade precisava ser complementada com privacidade. “A espionagem é ainda mais perigosa que a censura, pois não a vemos acontecer.” Discurso após discurso, o Brasil era a bola da vez. E não só por hospedar uma conferência de grande porte que se propunha a criar uma carta de princípios e a debater o próprio o modelo multissetorial, que defende a participação de governos, setor privado, técnico, academia e sociedade civil na governança da internet. O País instigava interesse e curiosidade por sua nova lei que, após quase três anos de tramitação no Congresso, fora aprovada na noite anterior à abertura do evento principal – e no meio de um painel sobre o Marco Civil no Arena NETmundial, paralelo à conferência e aberto à sociedade civil no Centro Cultural de São Paulo. Embora houvesse muito entusiasmo sobre o Marco Civil da Internet, havia, também, muito desconhecimento, a começar por sua origem. Para muitos, a Constituição da Internet era uma iniciativa do governo, uma resposta direta às denúncias de espionagem dos Estados Unidos, que recaíram fortemente sobre o Brasil. O Marco Civil, no entanto, não era projeto de nenhum partido, e sim construído – quase que artesanalmente – pela sociedade civil, com o apoio da academia. De fato, o “efeito Snowden” fora o gatilho necessário para despertar o projeto do limbo parlamentar. Sua concepção, porém, era muito anterior, remontando a meados dos anos 2000, quando emergiu como a resposta da sociedade à Lei Azeredo, o chamado AI-5 Digital. Em vez de uma lei criminal, a sociedade civil organizada pedia primeiramente princípios, garantias e diretrizes dos direitos e deveres dos usuários na rede.
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A iniciativa catalisou dezenas de outros projetos que também se apropriaram da internet como ferramenta de extensão da democracia. O projeto se tornava pioneiro não só por tratar sobre a internet, mas por incorporá-la ao próprio fazer legislativo. Seu modo de construção permitiu comentários e sugestões para a elaboração do texto por meio de consulta pública – o que era inédito no País até então. O processo colaborativo e democrático, no entanto, não deixou o Marco Civil imune ao jogo político, ao toma-lá-dá-cá e aos trâmites do consenso. Se teve de articular forças e interesses de usuários, operadoras de telefonia, emissoras de rádio e TV, órgãos públicos e serviços de internet, o que arrastou sua votação por muitos e muitos meses, os mesmos trâmites e impasses foram sentidos, em menor escala, no próprio NETmundial. Se no grande salão do Hyatt, palco das sessões plenárias abertas da conferência, o clima predominante era de diplomacia apesar das divergências, na sala afastada acima do restaurante francês do hotel, em que membros de um comitê técnico discutiam a versão final da carta, os ânimos de homens de paletó começaram a se exaltar. Temas como privacidade, responsabilização de provedores e propriedade intelectual causaram muitos impasses, o que levou a sessão final do dia a atrasar quase duas horas. O resultado agradou a uns, desagradou a outros, embora quase todos o tenham considerado um avanço no debate sobre governança da rede. Esse pedregoso caminho já havia sido trilhado pelo Marco Civil anos antes. Depois de passar por consulta pública em 2009 e 2010 e de chegar ao Congresso em 2011, foram três anos à espera da aprovação. Alguns artigos tiveram de ser removidos, outros acrescentados, outros modificados. Mais do que o risco de ficar engavetado, correu o risco de ser desfigurado. Ficou sujeito a disputas de questões completamente exteriores ao seu conteúdo e à própria internet. Foi usado como moeda de troca em atritos de governo e oposição às vésperas de um ano eleitoral. Entrou num Fla-Flu que não lhe pertencia, e por pouco dele não escapa. De três coisas, porém, o relator do projeto na Câmara dos Deputados, Alessandro Molon (PT-RJ), dizia não abrir mão: neutralidade da rede, privacidade e liberdade de expressão. E esses pilares, ainda que com ressalvas, lá permaneceram até a aprovação. Escrito pela internet e a milhares de mãos, naquela manhã do dia 23 de abril de 2014, no NETmundial, com representantes de todo o mundo, o PL nº 2126/11 virava a Lei nº 12.965 – sete anos depois de ter sido verbalizado pela primeira vez, em um restaurante em Botafogo, no Rio de
Janeiro. Como disse Ronaldo Lemos, um dos pais do projeto, “o Marco Civil mostra que democracia funciona, mas dá muito trabalho”. E que trabalho.
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1. [O AI-5 Digital]
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erra de ninguém, terra de todos: é possível enxergar a internet sob essas duas óticas. Uns dizem que ambas são basicamente a mesma coisa, embora estejam longe de ser. Há também quem defenda, porém nem sempre de forma explícita, que a rede é terra de alguns, e deve ser gerida por algumas poucas empresas ou corporações. O fato é que a internet foi criada com uma lógica descentralizada. De forma avassaladora e sem pedir licença, tomou casas, escritórios, escolas e, mais recentemente, celulares de pessoas do mundo todo. Criada na década de 1960 no contexto militar e popularizada nos anos 1990, ela mudou o paradigma da relação entre pessoas,
empresas, países e governos. O que rapidamente suscita algumas perguntas: quem dita as regras do jogo na rede? Quem é responsável por sua regulação? – aliás, é necessário que a internet tenha algum tipo de regulação ou deve permanecer sem regras, como terra de ninguém? Qual é o papel do Estado? Os países podem criar suas próprias regras? Até onde podem ir as empresas para manter um modelo de negócio? Quem paga a conta dessa rede que conecta o mundo todo? Interrogações à parte, não se chegou a um acordo sobre uma receita de bolo ideal. O sistema, porém, que vem ganhando mais respaldo internacional e se fortalecendo nos últimos anos é o modelo multissetorial: várias instituições, de várias áreas, decidem os rumos da internet em conjunto. A internet deixa de ser “terra de ninguém” e passa a ser vista como “terra de todos”, tendo de conciliar interesses e necessidades de governos, empresas, academia, setor técnico e, claro, da sociedade civil. De cara já é possível perceber que essa não é uma tarefa simples, já que as demandas dessas esferas são por vezes completamente opostas. A fim de dar voz a esses diferentes setores, foi criado em 1995, primeiro por portaria interministerial e depois por decreto, o Comitê Gestor da Internet (CGI.br), responsável por coordenar as iniciativas de internet no Brasil. Por não ser uma agência reguladora, não formula leis, mas apenas princípios, indicativos, em um modelo que hoje é considerado paradigma mundial quanto à governança da internet. Há, no entanto, outras formas de arranjo de gestão pelo mundo. Rússia e China, por exemplo, defendem que os países devem regulamentar a internet em seus próprios territórios, podendo filtrar conteúdo internamente. Os países árabes demonstram interesse em controlar os nomes, endereçamentos e recursos de identificação, hoje atribuições da Corporação da Internet para Atribuição de Nomes e Números, a Icann, sediada nos Estados Unidos. Já Chile, Argentina e Uruguai seguem um modelo mais cooperativo e aberto de governança. Em alguns países, sobretudo os que chegaram por último na corrida do acesso à rede, como boa parte da África, a internet ainda é considerada um serviço de telecomunicações, sujeita a agências reguladoras do governo, diferentemente do Brasil. Pela Lei Geral de Telecomunicações de 1997, o acesso à internet é considerado um serviço de valor adicionado, e não um serviço de telecomunicações, como a telefonia fixa. Logo, não está sob o guarda-chuva da agência nacional do setor, a Anatel.
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Em 2011, o CGI publicou sua resolução sobre a revisão da Norma 04/95, do Ministério das Comunicações, que obriga a contratação de provedor de internet para conexão de usuários da banda larga fixa. O documento reafirmou a posição brasileira de que conexão à internet é um serviço de valor adicionado, à parte da rede de telecomunicações, que por sua vez tem a função de lhe oferecer suporte. O que isso faz na prática é facilitar a expansão da internet. Para começar um site, por exemplo, não é necessário correr atrás de concessões ou licenças – diferentemente de uma operadora de telefonia ou um canal de televisão, por exemplo. Esse caráter não burocrático é que permitiu a rápida ascensão de diversos provedores e serviços, disseminando a internet rapidamente no País. “É muito difícil você abrir uma estação de TV, pois precisa de muitas licenças, de espectro, de antena, de transmissor... Mas é trivial abrir um sítio na internet ou um streaming de um vídeo que você grava com uma máquina portátil na sua casa”, compara Demi Getschko, diretor-presidente do Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR (NIC.Br) e pioneiro da internet no Brasil. “Esse é um dos grandes trunfos do novo mundo, e achamos importante que essa liberdade seja preservada.” À medida que a internet foi se espalhando por aí, trouxe consigo incontáveis dilemas. Responsabilidades e limites de empresas e provedores, papel do Estado, cobrança de serviços, privacidade, segurança, liberdade de expressão... Se antes o discurso dominante era de que a internet deveria permanecer sem regras, afinal, “ela sempre funcionou assim”, foi ganhando coro a visão de que manter a rede como “terra de ninguém”, sem regulamentação alguma, era justamente colocar sua essência em risco. As respostas legislativas que surgiam para contornar esses questionamentos eram divergentes. Nos anos 1990, o termo “internet” começou a pipocar no Congresso e a ser mencionado em projetos de lei. Mas foi nos anos 2000 que a sociedade presenciou um verdadeiro embate entre duas propostas com princípios e lógicas de rede completamente antagônicas. A primeira era uma lei criminal que, em nome da segurança e da prevenção, colocava em risco a liberdade e privacidade dos usuários. Já outra proposta – na verdade, uma contraproposta –, era primeiro definir direitos e deveres dos usuários e princípios de uso e gestão da internet, numa espécie de Constituição da rede. A duras penas, o Brasil teve de discutir o que de fato queria. E a sociedade quis o Marco Civil.
Logo depois da criação do CGI, em 1995, começaram a aparecer em Brasília os primeiros projetos de lei de alguma forma relacionados à saudosa palavra “informática”. Uma preocupação recorrente era tipificar crimes relacionados à divulgação de material pornográfico. Para essa prática, alguns projetos propunham pena de detenção de um a quatro anos. Em 1996, apareceram as primeiras propostas que mencionavam expressamente a palavra “internet”. Muitos correspondiam a versões meramente traduzidas ou adaptadas de normas internacionais, como a Lei Modelo da Unicitral (Comissão das Nações Unidas para Leis do Comércio Internacional)1 . Seguindo a diretiva do processo legislativo de que propostas que tratem de assuntos semelhantes devem, sempre que possível, tramitar em conjunto, vários desses projetos de lei foram apensados. Além de questões como comércio eletrônico e assinatura virtual, ganharam destaque iniciativas que versavam sobre crimes digitais, como fraude e pornografia. Em 1999, um projeto de autoria do deputado Luiz Piauhylino (PSDB-PE), o PL 84/1999, agrupou as proposições legislativas de crimes digitais defendidas até então. Mas em 2006, na Comissão de Educação do Senado Federal, o projeto recebeu um substitutivo2 do então senador Eduardo Azeredo (PSDB-MG), que propunha significativas mudanças no texto. Em nome da segurança, o texto exigia a identificação e o cadastramento de qualquer usuário ao acessar a internet – criminalizando, inclusive, a manutenção de redes wi-fi abertas. Empresas que não guardassem registros de conexão ou de acesso pelo prazo mínimo de cinco anos também poderiam ser penalizadas. Com uma redação genérica e ambígua, o texto transformava em crime condutas comuns e corriqueiras na rede praticadas por milhões de pessoas. Considerava ilegais, por exemplo, atividades como transferir músicas de um iPod de volta para o computador ou desbloquear um celular. Com a imposição da guarda de logs pelos provedores, gerava preocupações acerca de privacidade, já que não deixava claro como, por quem e em quais situações esses dados poderiam ser solicitados e usados. 1 Criada
em 1996, trata da regulamentação do comércio eletrônico e da necessidade de um mecanismo que assegure a originalidade dos documentos em ambiente online. 2 Disponível em: http://migre.me/mOOK0
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Na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ), em 12 de julho, o senador Eduardo Azeredo foi definido como relator do projeto. Em 24 de abril de 2007, o tucano apresentou à CCJ um novo substitutivo, o que levantou uma onda de críticas por técnicos, juristas e parte da imprensa. Dentre as queixas estavam a obrigação de provedores de internet de denunciar às autoridades possíveis condutas ilegais de seus usuários. Além disso, o texto permitia que “profissionais habilitados” ou empresas privadas de segurança da informação interceptassem dados ou mesmo invadissem redes como forma de legítima defesa. Nessa chuva de críticas, destaca-se um artigo3 de Ronaldo Lemos, fundador do Centro de Tecnologia e Sociedade da FGV-Rio. Em 22 de maio de 2007, na Folha de S. Paulo, o advogado fazia duras críticas ao substitutivo do senador Azeredo e propunha, na contrapartida, que se aprovasse uma lei civil em vez de uma lei penal: O projeto de lei de crimes virtuais do senador Eduardo Azeredo (PSDB-MG) propõe que o primeiro marco regulatório da Internet brasileira seja criminal. Enquanto isso, o caminho natural de regulamentação da rede, seguido por todos os países desenvolvidos, é primeiramente estabelecer um marco regulatório civil, que defina claramente as regras e responsabilidades com relação a usuários, empresas e demais instituições acessando a rede, para a partir daí definir regras criminais. (...)
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O projeto em questão afeta a vida da maioria dos brasileiros, sejam aqueles que possuem telefones celulares, sejam aqueles que acessam a Internet por computadores, ou aqueles que serão futuros espectadores da televisão digital. Por essa razão, é inconcebível que um projeto como esse não seja debatido de forma mais ampla com a sociedade civil e com os representantes dos interesses diretamente afetados. O rol destes é grande e inclui: provedores de acesso, empresas de tecnologia de modo geral, consumidores, universidades, organizações não-governamentais, empresas de telecomunicação, apenas para elencar alguns. Se o descontentamento com a proposta já era grande, estourou após a aprovação do PL no Senado, em 2008. Como sofreu mudanças, teve de retornar à Câmara dos Deputados. 3
LEMOS, 22/05/2007. Disponível em: http://migre.me/mOPgY
A reação Se a lei de crimes digitais tratava de condutas na internet, era por ela que a reação se organizaria. Um dos ativistas que puxaram esse movimento foi o publicitário carioca João Carlos Caribé, que se define como um “idealista incurável”. Atuante na internet desde 1996, Caribé criou no fim de 2006 o blog “Xô Censura”, que já no primeiro post trazia críticas à Lei Azeredo. Com títulos sempre fortes e provocativos, como “A morte da internet no Brasil”, “Não deixe a internet morrer, proteste já!”, “Pela liberdade de expressão!!!”, “O controle da internet e o lobista fiel” e “Entulho Azeredochavista passa em Comissão do Senado”, Caribé acompanhava a tramitação da lei de crimes digitais e também mapeava casos de censura online no Brasil e no exterior. Mas as críticas ganhariam escala. No início de 2008, São Paulo hospedou a primeira edição da Campus Party Brasil, um evento de tecnologia nascido na Espanha em 1997. Entre os dias 11 e 17 de fevereiro, mais de três mil pessoas de 18 países se inscreveram para, no prédio da Bienal, participar de palestras, workshops e atividades sobre internet, jogos, robótica, software e ciência. No penúltimo dia, um grupo de participantes realizou uma manifestação contra o projeto de lei de cibercrimes, liderado por Sérgio Amadeu – sociólogo, professor universitário, ativista de software livre e diretor de conteúdo do evento. Dezenas de participantes – acompanhados de um robô – caminharam pelo pavilhão com placas e cartazes que traziam a seguinte frase: “Somos contra um projeto de lei que pretende tornar obrigatória a identificação cada vez que um usuário se conectar à internet.” As reações à Lei Azeredo se propagavam rapidamente. Ainda que num primeiro momento as manifestações contrárias ao substitutivo não tivessem ecoado com força na grande mídia, ganhavam cada vez mais espaço na internet. Em 24 de junho de 2008, Sérgio Amadeu comentou em seu blog a aprovação do projeto de lei pela Comissão de Constituição e Justiça do Senado, e destacou o no artigo 22: O PLC incentiva o temor, o vigilantismo e a quebra da privacidade. Prejudica a liberdade de fluxos e a criatividade. Impõe o medo de expandir as redes. (…) Este artigo criminaliza o uso de redes P2P e até mesmo a có-
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pia de uma música em um i-pod. Ao escrever que o acesso a um “dispositivo de comunicação” e “sistema informatizado” sem autorização do “legítimo titular”, ele envolve absolutamente todo tipo de aparato eletrônico. Se a empresa fonográfica escreve, nas licenças das músicas que comercializa, que não admite a cópia de uma trilha de seu CD para um aparelho móvel, mesmo que seu detentor tenha pago pela licença, estará cometendo um crime PASSÍVEL DE PENA DE RECLUSÃO DE 1 A 3 ANOS. O projeto de lei é tão absurdo que iguala os adolescentes que compartilham música aos crackers e suas quadrilhas que invadem as contas bancárias de cidadãos ou o banco de dados da previdência.
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Paralelamente, no dia 5 de julho, Caribé convocava ativistas digitais para uma Blogagem Política4: chamava usuários para postar um texto crítico em seus blogs, num ato pela liberdade de expressão online. A data – dia 19 daquele mesmo mês – fora escolhida por “representar o dia em que o jornal O Estado de S. Paulo publicou receitas e poemas de Luiz de Camões no lugar das matérias censuradas no ano de 1972”. Horas depois, na madrugada de 6 de julho, Sérgio Amadeu publicou em seu blog o “Manifesto em defesa da liberdade e do progresso do conhecimento na internet brasileira”5. O longo documento apontava a internet como “palco de uma nova cultura humanista” e a “mais nova expressão da liberdade humana”. Defendia, porém ser necessário “estimular o uso e a democratização da Internet no Brasil”, garantindo acesso a todos e o estímulo à produção de conhecimento e cultura. Passava, então, a criticar a chamada Lei Azeredo: Um projeto de Lei do Senado brasileiro quer bloquear as práticas criativas e atacar a Internet, enrijecendo todas as convenções do direito autoral. O Substitutivo do Senador Eduardo Azeredo quer bloquear o uso de redes P2P, quer liquidar com o avanço das redes de conexão abertas (Wi-Fi) e quer exigir que todos os provedores de acesso à Internet se tornem delatores de seus usuários, colocando cada um como provável 4 CARIBÉ,
05/07/2008. Disponível em: http://migre.me/mOPtV 06/07/2008. Disponível em: http://migre.me/mOPzH
5 AMADEU,
criminoso. É o reino da suspeita, do medo e da quebra da neutralidade da rede. Caso o projeto Substitutivo do Senador Azeredo seja aprovado, milhares de internautas serão transformados, de um dia para outro, em criminosos. Dezenas de atividades criativas serão consideradas criminosas pelo artigo 285-B do projeto em questão. Esse projeto é uma séria ameaça à diversidade da rede, às possibilidades recombinantes, além de instaurar o medo e a vigilância. (...) Por estas razões nós, abaixo assinados, pesquisadores e professores universitários apelamos aos congressistas brasileiros que rejeitem o projeto Substitutivo do Senador Eduardo Azeredo ao projeto de Lei da Câmara 89/2003, e Projetos de Lei do Senado n. 137/2000, e n. 76/2000, pois atenta contra a liberdade, a criatividade, a privacidade e a disseminação de conhecimento na Internet brasileira. Ao pé da carta, duas assinaturas: Sérgio Amadeu, na época professor do mestrado da Faculdade Cásper Líbero, e André Lemos, pesquisador e professor associado da Faculdade de Comunicação da UFBA, ambos integrantes da ABCiber – Associação Brasileira de Pesquisadores em Cibercultura. O manifesto fora digitado a quatro mãos, de dois países diferentes. “Escrevemos online, pois eu estava na Espanha e ele, no Canadá”, conta Amadeu. O objetivo com o documento era conseguir o apoio da comunidade acadêmica. “Tentei articular uma reação ao projeto do Azeredo com esse documento e vi que a coisa mais fácil do ponto de vista de adesão seria o setor acadêmico”, diz. “Não era uma coisa para coletar milhares de assinaturas; era para coletar assinatura de pesquisadores a fim de organizar uma resistência à lei de cibercrimes.” Em poucas horas, porém, o manifesto foi ganhando novos apoiadores – e não demoraria a viralizar. Logo às 7h da manhã, no blog do Grupo de Jornalismo On Line (GJOL) da Universidade Federal da Bahia, o professor Marcos Palácios noticiava o manifesto. Outro a divulgar foi Henrique Antoun, pesquisador de cibercultura e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, a quem Sérgio enviara o texto inicialmente. Pouco tempo depois, foi replicado no blog do coautor do texto André Lemos, Carnet de Notes – recebendo comentários como o da professora e pesquisadora Raquel Recuero, da Universidade Católica de Pelotas:
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Muito legal (e providencial) o manifesto, André! Como o Antoun, já divulguei no Orkut, no blog e nas redes sociais por aí. Vamos fazer um buzz contra o projeto!
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No boca a boca – ou post a post –, o documento se espalhava. Claramente, não tinha sido feito para viralizar, uma vez que o apoio vinha sendo mapeado de maneira quase que “analógica”. “Eu estava coletando as assinaturas por e-mail e a minha caixa logo ficou uma zona completa”, diz Amadeu. No entanto, a inserção da carta no extinto site Petition Online, que organizava abaixo-assinados pela internet, daria uma nova dimensão ao manifesto. “Quando mandamos para o Antoun, ele falou: ‘Olha, eu conheço um cara com quem vocês precisam falar’. Foi aí que conhecemos o Caribé”, diz Amadeu. João Caribé, então, pediu autorização a Amadeu e Lemos para publicar o texto no Petition Online, com o título “Pelo veto ao projeto de cibercrimes – Em defesa da liberdade e do progresso do conhecimento na Internet Brasileira”. No dia 7 de julho a petição foi noticiada no blog do jornalista Pedro Doria. No mesmo dia, a Associação Brasileira de Pesquisadores em Cibercultura divulgou uma nota pública em apoio integral à petição. Dois dias após sua publicação inicial, o manifesto já somava 5 mil assinaturas. Mesmo assim, não conseguiu evitar que, no dia seguinte, 9 de julho, o Senado aprovasse um texto mantendo as previsões e artigos criticados pelos pesquisadores e ativistas. Mas isso não desanimou a mobilização, pelo contrário – o aumento das chances de que o projeto virasse lei intensificou os protestos. No dia 11, já eram mais de 26 mil assinaturas. Foi quando, em 19 de julho, na data previamente combinada, dezenas de blogs participaram da Blogagem Política e publicaram textos críticos a violações de liberdade de expressão e privacidade online, fazendo menções e críticas duras à lei Azeredo. No dia 6 de agosto, alguns pesquisadores e ativistas entregaram a petição ao então presidente da Câmara dos Deputados, Arlindo Chinaglia (PT-SP), ao presidente da Comissão de Ciência, Tecnologia, Computação e Informática (CCTCI), Walter Pinheiro, e para os deputados Jorge Bittar e Paulo Teixeira (PT-SP), também da CCTCI. Nascida no digital, a carta começava a surtir efeito no mundo analógico. No dia seguinte, os deputados Bittar e Teixeira apresentaram um requerimento solicitando uma audiência pública para debater a “tipificação de crimes e delitos cometidos na área de informática e suas penalidades”, requerida pelo deputado Pinto Itamaraty (PSDB-MA).
Enquanto isso, no dia 19 de agosto, o senador Eduardo Azeredo, em uma entrevista6, desmerecia da petição, já com 108 mil assinaturas: É muito fácil você colocar uma petição na Internet com uma afirmação falsa e conseguir adesões. Essa petição afirma que o projeto vai criminalizar a baixa de músicas e o desbloqueio de celular, o que é falso. Então, ela não tem valor. Ela não tem valor porque ela se baseia numa afirmação que é falsa. Além do mais, os pesquisadores que assinam a petição são contestados por outros de mesmo nível ou até mais experiência. Nós estamos na oitava versão desse projeto, algo de que me orgulho porque prova que ele foi produto do diálogo. Muitos dos que nos criticam simplesmente dormiram no ponto durante a discussão. Apesar das críticas, a petição online, meses depois, já reverberava no Legislativo. No dia 13 de novembro, o Senado realizou uma audiência pública sobre o PL de crimes digitais. Para acompanhá-la, foram organizadas duas manifestações pela sociedade civil. A primeira, um protesto relâmpago no dia 14 de novembro, tomou lugar simultaneamente na Cinelândia, no Rio de Janeiro, e na Avenida Paulista, em São Paulo. Na capital paulista, no fim da tarde, cerca de 50 pessoas ocuparam o canteiro central da avenida, em frente ao prédio da Faculdade Cásper Líbero, em duas sessões rápidas. Em contagem regressiva aos gritos de “não!”, os participantes exibiram cartazes e panfletos nos quais se lia “Não ao PL Azeredo”. O segundo protesto foi uma nova edição da Blogagem Política, agendada para o dia 15 de novembro – aniversário da Proclamação da República. O objetivo era reforçar as críticas à lei de crimes online e também repercutir vídeos e fotos do ato realizado no dia anterior. A petição de Sérgio Amadeu e André Lemos já tinha mais de 120 mil assinaturas. E o número não parava de crescer. O batismo Em janeiro de 2009, São Paulo ganhava sua segunda edição da Cam6 SANTARÉM,
Paulo Rená da Silva. O Direito achado na rede: a emergência do acesso à internet como Direito Fundamental no Brasil. Brasília: Universidade de Brasília, 2010. p. 77. Disponível em: http://migre.me/mOPMa
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pus Party. Com o burburinho contra a Lei Azeredo ganhando força, foi organizado um painel para discutir o projeto de lei de crimes digitais. Participaram José Henrique Santos Portugal, assessor técnico do senador Eduardo Azeredo, o desembargador Fernando Botelho, Sérgio Amadeu e o advogado Ronaldo Lemos. Quando o assessor de Azeredo começou a defender o projeto de lei, vários participantes se levantaram e ficaram de costas para a mesa. Outros ergueram seus notebooks, exibindo frases como “To baixando várias músicas, lero lerooo”, ou “Azeredo: desinstalar”. No evento, o tal PL 84/99, lei Azeredo, substitutivo do Azeredo ou projeto de lei de cibercrimes recebeu um novo nome. Um apelido mais simples, forte e com alto potencial viral: o alvo da reação passava a ser o AI-5 Digital. Um mês antes, o Ato Institucional Número 5 havia completado 40 anos. Para os ativistas de cibercultura, ele havia encontrado sua versão digital, com o mesmo DNA de cerceamento e censura. O batismo veio de forma inesperada. Pouco antes do evento de tecnologia, dois repórteres da Record haviam ido à casa de Sérgio Amadeu pegar um depoimento sobre o projeto da lei de crimes digitais. Depois da entrevista, o cinegrafista, que se mostrava atento ao que ele dizia, se aproximou do professor e disse: “Poxa, mas isso aí é um AI-5 Digital.” Amadeu gostou do termo e avisou que iria passar a usá-lo. Ele explicou a analogia: Quando se transforma exceção em regra e todo mundo passa a ser considerado culpado até que se prove a inocência, tem-se um Estado de exceção. Quando você fala que tem que colher e guardar dados de todo mundo, afirma que todo mundo é suspeito. E serão criadas dificuldades para telecentros, programas de inclusão digital... Você vai em um café, em uma cidade que tem rede aberta e o gestor da rede vai ser responsabilizado. Ninguém vai querer abrir a rede. A menção ao AI-5 era forte, e gerou muitas controvérsias. Os críticos ao projeto evocavam o severo cerceamento de liberdade e de direitos constitucionais imposto pelo ato, bem como o Estado vigilante por ele instituído. O objetivo, no entanto, não era equiparar as duas leis, mas sim, chocar – ainda que com uso de humor–, chamar a atenção e trazer mais gente para a discussão. Deu certo. Além da popularização da expressão, outro acerto no novo nome, segundo participantes do movimento, foi descolar o projeto da figura do senador Eduardo Azeredo. “Não queríamos perso-
nalizar ou partidarizar as críticas”, diz Amadeu. “Éramos contra o que a lei propunha, fosse qual fosse o partido.” O senador Azeredo condenou a escolha do novo apelido. “Isso é um desserviço ao País. Trata-se de uma ignorância em relação à história, de pessoas que não sabem o que foi o AI-5”, afirmou à Folha7.
Em março de 2009, Sérgio Amadeu convidou um grupo ativistas para dar início ao blog Trezentos – numa referência ao poema de Mário de Andrade, “Eu sou trezentos”, apresentado de forma bem-humorada na abertura8: Não gostamos de gatekeepers e de todos aqueles que querem diminuir ou bloquear a liberdade e a diversidade cultural. Somos trezentos e queremos passar, gostamos de compartilhar nossas idéias, defendemos as redes P2P. Por isso, não somos de Esparta. Somos amigos do Mário. Que Mario? Aquele que… “Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta, As sensações renascem de si mesmas sem repouso, Ôh espelhos, ôh Pireneus! Ôh caiçaras! Si um deus morrer, irei no Piauí buscar outro!” (MÁRIO DE ANDRADE, EU SOU TREZENTOS) No dia 5 de maio, Amadeu convocou usuários para o “Ato público contra o AI-5 Digital – contra o projeto do Senador Azeredo, em defesa da liberdade e privacidade na Internet”, que se realizaria em 14 de maio na Assembleia Legislativa de São Paulo, com transmissão online em tempo real. O evento era uma iniciativa de diversos deputados estaduais e federais9 e obteve o apoio de diversos coletivos10. No dia seguinte, João Caribé deu início ao blog “Mega Não”, também com a missão de ser um espaço coletivo de resistência ao chama7 MAIA,
11/05/2009. Disponível em: http://migre.me/mOQxK em: http://migre.me/mOQHZ 9 Simão Pedro (PT), Rui Falcão (PT), Adriano Diogo (PT), Raul Marcelo (PSOL), Carlos Gianazi (PSOL), Jonas Donizetti (PDT), Paulo Teixeira (PT), Luiza Erundina (PSB), Manoela D’Avila (PCdoB) e Ivan Valente (PSOL). 10 Intervozes, Instituto Paulo Freire, Rede Livre de Compartilhamento da Cultura Digital, GPOPAI, USP, Epidemia, Coletivo Ciberativismo, Coletivo Digital, Teatro Mágico, Laboratório Brasileiro de Cultura Digital, Attac-Br, 4 Linux, Oboré, CADESC, Francisco Whitaker, Comissão Brasileira de Justiça e Paz, da CNBB, Grupo TORTURA NUNCA MAIS, Agentes de Pastoral Negros do Brasil-SP, Centro Cultural Afro-brasileiro Francisco Solano Trindade, Ação Educativa e Partido Pirata. 8 Disponível
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do AI-5 Digital. O blog, que teve como primeiro post a convocatória de Amadeu replicada, tinha a bandeira de oposição ao que descrevia como vigilantismo e se pretendia um movimento social que reunisse diversos núcleos para combater propostas de censura online, como a Lei Azeredo. O blog acabou servindo como agregador de manifestos online e catalisou uma série de protestos presenciais realizados posteriormente em Porto Alegre, Belo Horizonte, São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília, Vitória e Campo Grande. Em cada cidade, pessoas diferentes se voluntariavam para organizar uma edição presencial do Mega Não. No dia 6 de maio, o Mega Não publicou uma carta endereçada ao então Ministro da Justiça, Tarso Genro. Meses antes, havia sido noticiado que o Ministério da Justiça estava em contato com alguns parlamentares para elaborar uma nova redação para o PL 84/99, e demandas da Polícia Federal e da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) seriam consideradas, a fim de facilitar investigações de crimes na internet. Por isso, manifestantes encaminharam uma carta ao ministro Tarso Genro, uma vez que o Ministério da Justiça havia se mostrado aberto ao diálogo com a sociedade civil, sobretudo depois da audiência pública realizada em novembro. No documento, expuseram preocupações com a Lei Azeredo e, em seu lugar, faziam uma contraproposta – pediam que fosse redigido um marco regulatório civil da internet brasileira, como havia escrito Ronaldo Lemos dois anos atrás. Em resposta, endereçada ao deputado Paulo Teixeira, Tarso Genro valorizou a mobilização da sociedade, e afirmou: “Pela carta que recebi, estamos claramente do mesmo lado na discussão sobre a Internet no Brasil. Ao elaborar uma nova proposta, o Ministério da Justiça estabeleceu como premissa o respeito à democratização da Internet e a necessidade de aprofundar a inclusão digital no país”, escreveu. Uma das propostas do ministro, por exemplo, era excluir o dispositivo que incumbia os provedores de, sob sigilo, informar às autoridades denúncias de usuários que tivessem indícios de crime. E já sinalizava receptividade a uma lei civil: “Recebemos com entusiasmo a ideia de uma regulamentação civil da Internet e a oposição pública aos equívocos do projeto de lei, que tem impedido a aprovação impulsiva do projeto hoje na Câmara dos Deputados.” Depois de duas semanas de muita divulgação pela internet, na noite de 14 de maio de 2009, uma quinta-feira, a Assembleia Legislativa de São Paulo foi o palco do ato público contra o AI-5 Digital. O evento foi acompanhado pela imprensa e transmitido online, e teve participação dos senadores Eduardo Suplicy e Aloizio Mercadante
(PT-SP), dos deputados federais Rui Falcão, Paulo Teixeira (PT-SP) e Ivan Valente (PSOL-SP), além de ativistas e artistas. “Tenho uma filha, e nem eu monitoro o que ela vê na internet. Espero o veto do presidente da República”, afirmou o deputado estadual Rui Falcão (PT) à Folha de S.Paulo11. “Em nome de pegar os bandidos, estão atrás dos mocinhos”, disse o deputado federal Paulo Teixeira (PT-SP). O deputado Ivan Valente argumentou: “É um projeto nocivo, que tem objetivo claro de interesses econômicos atrás disso. Quem está? Indústria fonográfica, banqueiros, indústria cultural e, evidentemente, as teles.” Já Aloizio Mercadante, autor do parecer sobre o projeto no Senado, negou que ele tivesse a intenção de impor a censura. “Eu também defendo a liberdade na internet – é algo que a humanidade conquistou e deve ser preservado. Mas não podemos deixar de combater os crimes na internet”, disse. A sociedade civil estava sendo ouvida, isso era fato. Mas estava tudo estacionado – nem a Lei Azeredo ia para frente e nem se dava continuidade à ideia ainda abstrata do marco civil regulatório solicitado na carta a Tarso Genro. Faltava algo que provocasse uma reação em cadeia e desse o pontapé na reversão da lógica do processo legislativo brasileiro quanto à internet – civil antes de criminal; direitos antes de punições. Mas, em junho, um discurso mudou tudo. A convocação Em junho de 2009, a cidade de Porto Alegre recebeu o 10º Fórum Internacional de Software Livre (Fisl) – o já tradicional hub dos amantes e defensores de tecnologias abertas, que podem ser reproduzidas e modificadas sem a cobrança de direito autoral. O tema do ano já dava o tom das discussões e, sem querer, já preparava o caminho para o discurso que mudaria os rumos da rede no País: “Liberdade: contra a vigilância e o controle da internet”. Como já era de praxe todo ano, a equipe organizadora do fórum enviava convites para representantes do Executivo, porém sem muita pretensão. “Como sempre fazemos, chamamos o prefeito, o governador, o presidente e alguns parlamentares”, diz o ativista de software livre Marcelo Branco, coordenador da 10ª edição do Fisl, que havia acabado de voltar ao Brasil após uma temporada na Espanha. 11
LANG, 14/05/2009. Disponível em: http://migre.me/mOQRq
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Dias depois, no entanto, foi surpreendido: o presidente Lula, juntamente com Dilma Rousseff, na época ministra da Casa Civil, confirmaram presença no evento. Era a primeira vez que um presidente participava do fórum. “Se nenhum político nos ouvia, vi ali a oportunidade de tentar conversar com o cara que podia mudar essa história, que era o presidente da República.” No dia 26 de junho, num frio de 10°C em Porto Alegre, o presidente chegou ao Fisl acompanhado da ministra Dilma, do prefeito José Fogaça; do reitor da PUC-RS, Joaquim Clotet, e de alguns deputados. Após passar pelo que depois chamaria de “corredor polonês”, formado pela multidão, Lula visitou a exposição e a área destinada a estandes e grupos de usuários, onde distribuiu autógrafos, abraços e posou para fotos. Espalhados, centenas de santinhos de papel com a frase “Lula é nerd”, em que o presidente figurava com o pinguim gorducho Tuk, o mascote do sistema operacional aberto Linux. Programadores, artistas, ativistas… aquele ambiente o encantara. “O Lula chegou ao Fisl muito surpreendido ao ver 5, 6 mil pessoas jovens empunhando o lema daquele fórum, que era a liberdade da internet”, diz Branco. “Aí ele me chamou em particular, na sala preparada para ele se recompor dos apertos da multidão e se preparar para seu discurso aos ativistas e membros da comunidade de software livre ali reunidos da PUC.” Naquela pequena sala, com a presença do então ministro-chefe da Secretaria de Comunicação Social da Presidência, Franklin Martins, Marcelo Branco rapidamente expôs ao presidente o que era a Lei Azeredo, por que era perigosa e como feria direitos dos usuários da internet. Falou, ainda, sobre a necessidade de uma lei civil de princípios para a rede, no lugar de uma legislação que se propunha a ser exclusivamente criminal. “Não perdi tempo – fui falando que nem uma metralhadora, disparei”, conta Branco. “Era a minha única oportunidade de pegar esse cara e convencê-lo da importância do tema, que vinha sendo negligenciado por outros deputados e senadores com quem tentávamos conversar”, diz. “O que eu não sabia era que aquela conversa com o Lula iria mudar totalmente aquele quadro.” Depois de preencher quase 30 minutos com todas as palavras possíveis (e mais algumas) sobre o assunto, Marcelo finalmente se calou. Lula chamou a ministra Dilma Rousseff à sala. – Dilma, eu não vou fazer o discurso do governo. Você fala pelo governo. Eu vou fazer um improviso.
E partiram para o auditório, onde 300 pessoas os aguardavam. Na plateia, uma faixa: “Lula, vete o projeto de Azeredo! Compartilhar não é crime.” O primeiro a falar foi o coordenador Marcelo Branco, que afirmou que a revolução que o Brasil vivia estava longe de ser apenas tecnológica. “É uma verdadeira mudança de atitude nas pessoas. O conhecimento não está mais apenas concentrado dentro das grandes corporações, pois agora pode ser acessado de qualquer lugar pela internet.” Já a ministra Dilma Rousseff – informada minutos antes de que faria o discurso preparado para Lula –, abordou os investimentos do governo federal em tecnologias livres. Segundo ela, mais de R$ 370 milhões haviam sido economizados com a implantação de programas que não exigiam o pagamento de licenças. Ressaltou, ainda, que aquele montante gerava investimentos em importantes ações sociais. “Um outro mundo é possível. E ele está sendo construído aqui, por vocês”, disse a ministra. Era a vez dele, o aguardado da festa. Mesmo improvisado, o discurso12 arrebatou os participantes já no início. “Bem, na verdade, a Dilma falou pelo governo brasileiro. Não era necessário eu dizer absolutamente nada aqui, hoje, porque eu acho que passar naquele corredor polonês que eu passei para chegar aqui já valeu pelo menos uns quatro discursos.” Marca do presidente, a fala veio recheada de suas habituais metáforas: “Agora que o prato está pronto, é fácil comer. Mas, elaborar esse prato não foi brincadeira”, disse, referindo-se à implementação de sistemas de software livre em projetos do governo. “Nós tínhamos que escolher: ou nós íamos para a cozinha preparar o prato que nós queríamos comer, com os temperos que nós queríamos colocar e dar um gosto brasileiro na comida, ou nós iríamos comer aquilo que a Microsoft queria vender para a gente. Prevaleceu, simplesmente, a ideia da liberdade”, disse. Lula seguiu com sua exposição que, como numa colcha de retalhos, costurou os temas mais diversos e improváveis: da queda do muro de Berlim ao programa Luz para Todos; das Olimpíadas de Matemática à inclusão digital – que considerou uma palavra sexy. “Inclusão digital é a palavra mais sexy do governo, sabe? É a palavra mais sexy – todo mundo fala.” Mas a faixa na plateia não passou despercebida pelo presidente. Tampouco as palavras metralhadas por Branco meia hora antes, na 12
Disponível na íntegra em: http://migre.me/mOR2w
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pequena sala. E disse: Nós... eu vou terminar... Depois eu vou falar da lei do Azeredo, que eu vi o pessoal com uma faixa aí pedindo para eu vetar antes de a lei ser aprovada. Primeiro, temos que batalhar bastante. E retomou a salada de assuntos, frisando o interesse do governo em tecnologias abertas. “O software livre é uma possibilidade de essa meninada reinventar coisas que precisam ser reinventadas. O que precisa? De oportunidade. Podem ficar certos de uma coisa, companheiros, que neste governo é proibido proibir”, diz. E engatou:
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Essa lei que está aí, essa lei que está aí não visa corrigir abuso de internet. Ela, na verdade, quer fazer censura. O que nós precisamos, companheiro Tarso Genro, quem sabe seja mudar o Código Civil, quem sabe seja mudar qualquer coisa. O que nós precisamos é responsabilizar as pessoas que trabalham com a questão digital, com a internet. É responsabilizar, mas não proibir ou condenar. Esse projeto (do Azeredo) é o interesse policialesco de fazer uma lei que permite que as pessoas adentrem a casa das pessoas para saber o que as pessoas estão fazendo, até seqüestrando os computadores. Não é possível, não é possível! Entre muitos aplausos e gritos, a missão havia sido lançada. Caberia ao Ministério da Justiça construir a contraproposta que a sociedade civil pedia ao AI-5 Digital. Um código civil no lugar de um código criminal. “Na época foi até engraçado, porque um código civil não é um Marco Civil”, diz Carlos Affonso, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS-Rio). “O Código Civil já existia, desde 2002, uma lei geral das relações civis. O Marco Civil seria um recorte para as relações que dizem respeito à internet.” Mas as pessoas entenderam o recado – e, sobretudo, o ministro Tarso Genro. Na semana seguinte, Marcelo Branco e outros ativistas foram chamados a Brasília pelo Ministério da Justiça para dar início às discussões sobre o que viria a ser a plataforma colaborativa do Marco Civil da Internet.
2. [A contraproposta]
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inco dias depois do discurso divisor de águas de Lula no Fisl, em 1º. de julho, numa quarta-feira, uma reunião em Brasília deliberava que o PL Azeredo não seria reformulado, e sim enterrado. Durante cinco horas de discussão, representantes da academia, da associação de provedores, Polícia Federal, Ministério da Justiça, Casa Civil e os deputados Paulo Teixeira (PT-SP) e Julio Semeghini (PSDB-SP) firmaram alguns consensos sobre o que era de fato abusivo no projeto. O problema era que esse consenso implicava a retirada de praticamente todos os dispositivos previstos no PL 84/99. Não sobrava quase nada do substitutivo aprovado no Senado no ano anterior. “Sobrou alguma coisa que valha a pena apresentar em um projeto?”, questionou o relator da proposta na Comissão de Ciência e Tecnologia da Câmara, Julio Semeghini. “Esse é o ponto que vamos definir até a próxima semana13.” Os primeiros artigos riscados foram os que tratavam da obrigação dos provedores de denunciar atividades suspeitas de usuários e a tipificação de crimes como acesso indevido e a disseminação de código malicioso. Como não restava quase nada do projeto original e decolava em paralelo a ideia de um projeto de natureza civil, a ser elaborado ainda naquele ano, o caminho natural era o descarte – ao menos naquele momento. “Só não houve acordo na questão da guarda dos logs de acesso14”, disse Paulo Teixeira. A discussão era se o registro de quem acessou o quê a que horas, bem como o armazenamento e uso dessas informações, seria tratado numa lei criminal ou na nova proposta civil. “Vamos aproveitar o que é consensual numa nova legislação. E a questão da guarda de logs deve receber um tratamento civil e não penal.” Como não foi retirado pelo relator Eduardo Azeredo, o PL 84/99 ficaria adormecido. Era a hora de criar a tal lei civil. Na trincheira, dois grupos: o Centro de Tecnologia e Sociedade da FGV-Rio e a Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça. 13 Disponível 14 Idem.
em: http://migre.me/mORvN
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Os hipsters de Botafogo No início dos anos 2000, questões ligadas à regulação da internet não eram assuntos óbvios em terras tupiniquins – nem em conversas de bar, nem em universidades. Tampouco a ideia de um centro multidisciplinar que se debruçasse sobre esses temas, por vezes espinhosos. Mas foi em 2003, na recém-fundada Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro (FGV-Rio), num prédio em frente à praia de Botafogo, que foi incubado o primeiro centro brasileiro dedicado exclusivamente a essa proposta: o Centro de Tecnologia e Sociedade (CTS). A iniciativa surgiu do advogado Ronaldo Lemos, logo após voltar de uma temporada de mestrado nos Estados Unidos – quando teve a oportunidade de estudar com figuras pioneiras da área de direito digital, como os professores Lawrance Lessig e William Fischer. A partir da experiência internacional, a ideia era criar um centro interdisciplinar que pesquisasse temas de regulação na internet e também impactos do desenvolvimento tecnológico na esfera social – tudo isso adaptado ao cenário jurídico brasileiro, que por sua vez é bem diferente do americano. “Queria criar um centro que tivesse uma agen-
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da de direitos autorais, desenvolvimento e tecnologia, sem repetir a agenda de Harvard, mas criando uma original brasileira”, diz Lemos. O evento que marcou o pontapé de lançamento do centro foi o iLaw, realizado na FGV-Rio em 2003, em parceria com o renomado Berkman Center for Internet & Society, da Faculdade de Direito de Harvard. À frente do ambicioso projeto, juntaram-se a Ronaldo duas figuras: Carlos Affonso de Souza e Bruno Magrani, que trabalhava na FGV desde 2001, como funcionário de Joaquim Falcão, fundador e diretor da Escola de Direito. “Conheci o Ronaldo e o Magrani em março de 2003”, diz Carlos Affonso. “Deu liga clara, e aí a gente funda o CTS.” O primeiro grande tema abraçado pelo centro foi o debate de propriedade intelectual e direitos autorais, assunto que encantara Ronaldo em Harvard, sobretudo pelo contato com Lawrance Lessig, cofundador de um modelo de licença alternativa: o Creative Commons (CC). O projeto tem por objetivo facilitar a circulação de obras culturais pelo mundo, já que as licenças de direitos autorais tradicionais são muitas vezes severas e extremamente restritivas, proibindo até mesmo a cópia para uso pessoal de textos, músicas e filmes.15 O CC foi criado como uma resposta legal ao modelo vigente na indústria cultural, para permitir o acesso, a distribuição e o remix das obras sob a sua alçada. Com a licença, o autor não abre mão da titularidade da obra; pelo contrário, a protege. Porém, diante de alguns tipos padronizados e pré-determinados de licença de compartilhamento, que podem ser mais ou menos flexíveis, pode deixar claro ao mundo de que modo e em quais condições deseja permitir o acesso, a distribuição e o uso de seu repertório por terceiros. É uma tentativa de criar um meio termo legal entre “todos os direitos reservados”, que hoje bate cartão na maioria dos contratos, e o domínio público. Diante dessa nova alternativa jurídica para contornar a batalha feroz travada no campo da propriedade intelectual, Ronaldo Lemos se mobilizou para trazer o Creative Commons ao Brasil. O CTS vinha estudando a adaptação da licença desde 2003, mas lançou o projeto oficialmente em junho de 2004, no 5º Fórum Internacional do Software Livre (Fisl). O cantor e então ministro da Cultura Gilberto Gil, que já demonstrava interesse por cultura digital, apoiou o projeto tanto de forma mais informações: BRANCO, Sérgio; BRITTO, Valter. O que é Creative Commons?: Novos modelos de direito autoral em um mundo mais criativo. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2013. Disponível em: http://migre.me/mKWPh 15 Para
institucional, promovendo ampla discussão sobre o tema, como pessoal: licenciou músicas de sua autoria em CC. Permitiu que o DJ Dolores, por exemplo, mexesse com a faixa “Oslodum”, de seu disco “O Sol de Oslo” (1998), sem esbarrar numa jornada burocrática para a liberação de copyright. Além de Gil e de Ronaldo Lemos, participaram do painel sobre Creative Commons no Fisl o cofundador da licença Lawrence Lessig, o também professor de Harvard William Fischer, André Midani, da Warner, e o jornalista Luis Nassif. Com o gesto, o Brasil se tornava o terceiro país do mundo a se juntar ao Creative Commons – criado em 2001 nos Estados Unidos –, logo após o Japão e a Finlândia. Além de um marco histórico para a cultura digital no País, a chegada do CC foi importante como paradigma de um projeto que saía da academia e da sociedade civil e se propunha a conciliar interesses de setores diversos: artistas, autores, gravadoras, editoras, distribuidoras e, claro, o consumidor de conteúdo. O objetivo era aproximar os autores dos usuários de suas obras, incentivar acesso ao conhecimento e difundir a cultura livre – e, por isso, o CC automaticamente passou a enfrentar resistência por parte da indústria cultural. “O Creative Commons já começava a mostrar naquela época algo que seria interessante no Marco Civil: era um debate que precisava envolver todos os setores que tinham interesse em um determinado ponto de regulação”, explica Carlos Affonso. “Ele já era, lá atrás, uma tentativa de diálogo, nem sempre bem-sucedida, entre academia, sociedade civil, setor privado e governo, já que tinha amplo apoio governamental na época, com o Gil.” Ainda que sem querer, a adoção da licença funcionou como uma espécie de ensaio para o projeto que viria a ser aprovado dali a dez anos. “Estamos muito acostumados a dizer que o Marco Civil foi o primeiro modelo de experiência multissetorial da internet no Brasil”, diz o pesquisador. “No entanto, embora o CC não seja uma questão de regulação, ele representa um ensaio desse debate entre atores. Nós fomos forçados a debater com grupos claramente antagonistas ao modelo, por razões muitas vezes comerciais. Isso nos força a entender o impacto econômico daquilo que começou como uma experiência acadêmica abraçada pela sociedade civil.” Depois da jornada de importação do Creative Commons, o centro passou a discutir questões como uso de lan houses e acesso ao conhecimento, spam – em uma parceria com o Comitê Gestor da Internet
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(CGI), que também adiantava o debate sobre se valia ou não a pena regulamentar aspectos da rede no Brasil – e propriedade intelectual ligada à produção das periferias. Um dos temas de estudo, que posteriormente virou um livro16, foi o tecnobrega – estilo musical nascido no Pará no início dos anos 2000. Distante das grandes gravadoras e da atenção da grande indústria, sua criação e difusão só foi possível pela apropriação de novas tecnologias e mobilização de DJs, artistas, cantores, bandas e vendedores de rua. O novo modelo de negócio denunciava a crise e desatualização da lei de direito autoral vigente, de 1998 – antes da popularização da internet. Esse assunto já era debatido pelo centro em 2005, mas a reinvenção paraense só viria a ser amplamente conhecida, estudada e divulgada na mídia muitos anos depois. Numa salinha no sexto andar em frente à praia de Botafogo, os membros do centro antecipavam discussões do ambiente online o tempo todo. “Eu sempre costumo brincar que esse grupo, o CTS que virou o ITS17, acaba sendo mais do que um grupo de ‘early adopters’”, diz Affonso. “A gente é quase que hipsters de alguns temas de regulação da internet e propriedade intelectual.” 40
Em 2006, a lei de crimes digitais, o PL 84/99, ressurgiu com o substitutivo do então senador Eduardo Azeredo. Precoces que eram, os hipsters de Botafogo, claro, já estavam de olho. “O projeto era tão maluco e tão radical que ninguém achava que ele iria ser aprovado”, diz Ronaldo Lemos. “A gente acompanhava, mas não achava que iria para frente.” A movimentação da proposta, no entanto, acelerou no Congresso. “Num belo dia, uma sexta-feira, a Câmara votou o projeto e o deixou pronto para ir ao Senado”, diz Lemos. “Tudo indicava que ele seria votado e aprovado, de uma vez só – e ninguém estava prestando atenção naquilo.” A partir daí, o CTS começou a se mobilizar. “A gente se trancou o fim de semana todo, cada um na sua casa, e fez um parecer de umas 80 páginas dizendo o quanto seria horrível se o projeto fosse aprovado.” Ronaldo et al. Tecnobrega: o Pará reinventando o negócio da música. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2008. Disponível em: http://migre.me/mKYNl 17 Em 2013, os fundadores do Centro de Tecnologia e Sociedade Ronaldo Lemos, Carlos Affonso de Souza e Sérgio Branco, se desvincularam da FGV-Rio e criaram o Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS). 16 LEMOS,
Na época, o centro já havia crescido: tinha migrado para uma sala maior no 13º. andar e contava com 12 pessoas. “Fizemos uma análise do projeto, um primeiro parecer técnico-jurídico”, diz Bruno Magrani, um dos fundadores do centro. “A gente, como em todos os trabalhos do CTS, fez a 20 mãos. Foi a primeira vez que o centro começou de fato a analisar mais de perto as coisas de Brasília; porque, quando a Lei Azeredo surgiu no nosso radar, não tínhamos feito nenhum trabalho mais específico relacionado a políticas públicas, e nem ao Congresso.” O parecer teve ampla repercussão e, juntamente com outras iniciativas de oposição ao PL, conseguiu frear, ao menos naquele momento, a aprovação da proposta. “A gente imprimiu, botou na internet, distribuiu à sociedade civil e mandou para todo mundo em Brasília – líderes e deputados com quem a gente tinha alguma conexão, deputados diretamente envolvidos na votação, como o Paulo Teixeira, e para o César Alvarez, que era assessor do Lula na época”, diz Lemos. Todo mundo ficou preocupado.” Os advogados reuniram vários professores da Direito FGV, inclusive um penalista, uma vez que se tratava de uma lei de crimes digitais. O CTS divulgou outros documentos sobre o PL Azeredo e participou de debates e palestras em várias instituições, alertando sobre os problemas do projeto que, pelo andar da carruagem, logo mais se transformaria em lei. Mas só se opor à lei de cibercrimes, que na época ainda não havia ainda sido batizada de AI-5 Digital, não parecia ser o suficiente. Se não queriam a Lei Azeredo, o que queriam para a internet brasileira? De que dispositivos legais precisavam para garantir isso? Essas perguntas começaram a nortear os debates no centro carioca. “Logo percebemos que não bastaria só ter uma postura reativa – mas sim propositiva”, diz Ronaldo Lemos. “Ser contra é fácil. O problema é dizer o que precisa ser feito.” Essas discussões eram recorrentes entre os integrantes do CTS, dentro e fora do ambiente de trabalho. Um dia, já no final de 2006, foram almoçar no famoso restaurante Salsalito, em Botafogo, a três minutos da FGV. Conversa vai, conversa vem, e nasce uma ideia. “O que a gente precisa é de um marco regulatório civil para a rede brasileira”, disse Ronaldo Lemos. “Mas ele não pode ser criminal, como o Azeredo quer. Tem que ser um marco civil. Tem que garantir direitos e funcionar como uma espécie de Constituição da internet.” E todos endossaram. Era batizado ali, no restaurante Salsalito, o
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que viria a ser o projeto de lei pioneiro na regulação da rede e que colocaria o País na vanguarda do direito digital – mais de sete anos depois.
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Em 2007, o PL Azeredo seguiu avançando no Congresso. Ronaldo Lemos, então, publica em 22 de maio um artigo na Folha de S. Paulo, jornal em que hoje é colunista, intitulado “Internet brasileira precisa de marco regulatório civil”. Foi a primeira referência pública ao Marco Civil para além das paredes do centro, dos corredores e das mesas de restaurantes. “Comecei a rodar o Brasil fazendo palestras e falando que tinha que ter um Marco Civil”, diz o advogado. “Falei isso no Fisl, na Campus Party, em eventos de escritórios de advocacia… em todos os lugares possíveis.” Mas não era uma tarefa fácil. Por se tratar de um tema novo, que tangenciava muitas questões extremamente técnicas, havia ainda muita desinformação sobre o que de fato o PL Azeredo propunha e por que o País precisava de uma outra alternativa. Alguns deputados e juristas nem sabiam do que se tratava a lei de crimes digitais. Outros insistiam em apontá-la como solução e negavam danos e violação de direitos aos usuários. “Em audiências públicas, tinha desembargador discutindo comigo, apontando o dedo na minha cara, e dizendo: vocês estão malucos! Por que precisamos de um Marco Civil? A lei Azeredo é excelente.” Membros do CTS também foram a algumas audiências no Congresso. “Foi a primeira vez que eu fui para Brasília”, diz Bruno Magrani, que seis anos depois se mudaria para a cidade como diretor de políticas públicas do Facebook. “Junto com o Luiz Moncau, do CTS, fomos a uma audiência com o deputado Julio Semeghini, o Paulo Teixeira e outros. Fomos lá como academia dar nossa opinião sobre a lei de cibercrimes, dizendo o que a gente achava que ela tinha de problemática.” Também em Brasília, no fim de 2007, Ronaldo Lemos e Marcelo Branco, organizador do Fisl, tiveram uma reunião com César Alvarez, na época assessor da Presidência. A conversa, segundo Lemos, foi “radical”. “Foi uma reunião muito dura. Ele deu uma chamada na gente.” – Estamos segurando o projeto do Azeredo, a liderança do governo está fazendo o que pode. Mas cadê o outro projeto? Cadê o tal do Marco Civil? Vocês estão pedindo um Marco Civil? Ora, façam um Marco Civil!
O assessor deixava claro que a bola estava com eles, não dava para negar. “Fiquei mal, a reunião foi difícil. Tive de tirar uns bons três meses afastados de férias para digerir aquilo e a responsabilidade que tínhamos”, diz Ronaldo Lemos. O stress transpareceu. “Tive até um problema de inflamação no olho… afetou muito a minha vida pessoal.” Caía a ficha. A missão que abraçaram era de fato dupla: lutar contra a Lei Azeredo e criar um Marco Civil. Ao mesmo tempo.
Em 2008, o grupo recebeu uma ligação dizendo que a lei de crimes digitais iria para o Plenário do Senado. “Lembro que eram 11 horas da noite, eu estava assistindo à TV Senado e o projeto ia ser votado”, lembra Bruno Magrani. “Aquela coisa de ‘todos os que forem a favor permaneçam como estão… aprovado!’. Geralmente o Plenário é assim. O acordo já é feito nos bastidores e chega lá só para referendar o que já foi decidido.” Como o PL havia sofrido modificações no Senado, tinha de retornar à Câmara. “A gente ficou preocupado, pensando: o que isso significa? O que vai acontecer?”, diz o advogado. “Pois percebemos que, quando um projeto de lei chegava naquele estágio, dificilmente sofreria modificações novamente. A Câmara tinha que simplesmente aceitar ou rejeitar as condições expostas pelo Senado.” Mas, a essa altura, o movimento contrário ao projeto, iniciado por ativistas e professores engajados na área de cibercultura, já tinha encontrado apoio e respaldo na sociedade civil. Posts em blogs, manifestos, passeatas, painéis em eventos, audiências públicas… Para atrair a atenção dos usuários, o desafio desses acadêmicos era traduzir o juridiquês e explicar como o PL 84/99 aprovado mudaria a vida e a rotina online – e mesmo offline – das pessoas comuns. “O que eu mais gosto disso tudo é que a melhor forma que o Ronaldo achou de explicar por que o projeto do Azeredo era ruim foi falando de um iPhone”, exemplifica Bruno Magrani. “Ele dizia assim: ‘Olha, se esse projeto de lei for aprovado, você não vai poder destravar o seu iPhone’ – algo que a Anatel permitia você fazer para trocar de operadora. Esse exemplo mexeu com a sociedade e o negócio começou a reverberar na imprensa.” Outro ponto criticado nas entrevistas era que o projeto afetava a inovação e criminalizava a engenharia reversa – prática utilizada por muitas escolas para ensinar programação. “E aí, com esses exemplos
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práticos, a gente começou a se unir e se articular com cada vez mais pessoas para parar esse projeto.” A reação ganhava força. Foi quando os hipsters do CTS se juntaram a outros que também partilhavam das mesmas ideias, mas em outra esfera. A defesa por um marco regulatório civil já havia chegado ao Ministério da Justiça, pelo secretário de Assuntos Legislativos, Pedro Abramovay, e o recém-chegado Guilherme de Almeida. Contemporâneos de faculdade, os dois, assim como Ronaldo Lemos, haviam passado pelo Centro Acadêmico XI de Agosto, na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Dali em diante, teriam muitas outras coisas em comum. A Liga da Justiça
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O Ministério da Justiça, um dos mais antigos órgãos do Poder Executivo Federal, abriga sob seu guarda-chuva os mais diversos temas e competências: segurança pública, política penitenciária, defesa da concorrência, proteção ao consumidor, política sobre estrangeiros, política sobre drogas, reforma do Judiciário, propriedade intelectual, entre outros. Entre suas secretarias, uma despontava por sua transversalidade: a Secretaria de Assuntos Legislativos (SAL). “Em articulação com outros órgãos do ministério, como a Consultoria Jurídica e a Assessoria Parlamentar, e em diálogo direto com as demais secretarias e entidades vinculadas, cabe à SAL elaborar a política legislativa do Ministério da Justiça, com o objetivo de propor textos normativos que contribuam para a implementação das políticas públicas pretendidas”, explica Guilherme de Almeida. Essa atividade é realizada tanto pela produção de projetos de lei, de decreto e de medidas provisórias quanto pelo acompanhamento intenso das atividades do Congresso”.18 Um dos destaques da SAL era sua posição de vanguarda em relação à democratização do processo de elaboração de leis. A secretaria tinha a visão de que o processo legislativo pode – e deve – ser turbinado pela visão da sociedade em relação às propostas e à atividade parlamentar. A população deveria não só ter mais acesso à pauta do Congresso, como também meios de expressar seu posicionamento frente a esses temas, para que fossem propostas leis mais próximas Guilherme. Marco Civil da Internet: antecedentes, formulação colaborativa e resultados alcançados. Nova York, 2014. Mimeo. Pp. 6
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aos reais anseios e demandas da população. Após a chamada do presidente Lula, no Fisl, a bola caiu nas mãos do Ministério da Justiça. Caberia a ele, e não ao Ministério da Cultura ou das Comunicações – como alguns poderiam supor –, construir o arcabouço legal de direitos e liberdades civis na internet, que traduzisse os princípios da Constituição para o território online. Tarso Genro passou a bola à SAL. Na época, o secretário de Assuntos Legislativos era o advogado Pedro Abramovay, que já vinha acompanhando o assunto, principalmente com os acirrados debates sobre a Lei Azeredo. A posição dos membros da secretaria era clara: eram contra o projeto. O principal argumento era de que não havia necessidade de tipificar novos crimes. Fraude bancária praticada na internet, por exemplo, já era crime – não havia motivos, defendiam, para criar um novo tipo penal para isso. Outra crítica era quanto à redação genérica e ampla, que poderia enquadrar qualquer usuário de internet como um fora da lei. “Com um foco que ia do combate ao download de músicas e filmes até as fraudes bancárias, passando por pedofilia, criava-se uma rol de crimes tão amplo que o internauta brasileiro dificilmente não seria criminoso”19, escreveu Abramovay ao Brasil Post. “Além disso, sobravam medidas de devassa da privacidade dos internautas com o intuito de facilitar a investigação policial.” Se a sociedade civil se mobilizava em reação o projeto, na contrapartida, as pressões para aprová-lo eram muito grandes. “Internamente, a Polícia Federal, que também fica no Ministério da Justiça, dizia que o projeto era fundamental para facilitar o trabalho deles”, escreveu o advogado. “O Ministério Público Federal seguia linha parecida. A Febraban se reuniu com o Ministro da Justiça e comigo – além de realizar forte pressão no Congresso. O grande argumento eram as fraudes bancárias.” A resistência civil, no entanto, conseguiu paralisar o projeto no Congresso, e deu voz a uma nova demanda – dessa vez não mais reativa, mas sim propositiva. Cabia à SAL “construir uma legislação moderna que rompesse com a onda criminalizante da internet que varria o mundo na época”. A secretaria agarrou a oportunidade com unhas e dentes. O próprio campo da regulação em si, a internet, já cravava o caráter inovador do projeto. Mas ele iria muito além disso. Seria uma 19 ABRAMOVAY,
19/02/2014. Disponível em: http://migre.me/mN3tl
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lei sobre internet feita pela internet. “Essa era uma ideia que eu vinha tentando emplacar fazia algum tempo. Eu tinha pedido à área de TI do Ministério da Justiça que criasse uma plataforma para que pudéssemos fazer um debate público dos projetos de lei que elaborávamos”, disse Abramovay. “A ideia não era uma consulta pública, na qual as pessoas mandam as sugestões para o governo. O que eu queria era um verdadeiro debate público, no qual cada pessoa pudesse ver o argumento do outro. Contestar e gerar um aprendizado coletivo que produzisse uma lei melhor.” Que projeto melhor para ser feito de forma colaborativa pela internet do que uma lei sobre regulação da própria internet? Para isso, o então secretário queria turbinar o time da SAL. O primeiro escalado foi um contemporâneo de faculdade, com quem atuara uns bons anos atrás no Centro Acadêmico. Desde 2007, o advogado Guilherme de Almeida trabalhava na Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (SAE), com formulação e gestão de políticas públicas. Seu trabalho incluía debates sobre questões de internet e cultura, como inclusão digital. Mergulhado nessa temática desde 2000, logo após sua graduação em Direito, Guilherme vinha acompanhando, ainda que indiretamente, tanto a movimentação contra a Lei Azeredo como a idealização do Marco Civil. Em julho de 2009, ele recebeu uma ligação de Abramovay. – Gui, está ganhando força a ideia de a gente fazer um processo de construção do Marco Civil em reação ao PL 84. Conversei com o ministro Tarso Genro e ele curtiu a ideia de fazer disso um processo de consulta online aberta e colaborativa. Só que a gente tem que colocar no ar o mais rápido possível. Você quer tocar isso? – Posso pensar? Não dava tempo de pensar. O prazo era implacavelmente curto. Mas Almeida não precisou pensar nem uma, nem meia vez. Queria fazer parte daquilo, e logo se juntou ao time. Dele partiria, inclusive, a próxima escalação para a empreitada. De um jeito bem peculiar, vale dizer.
Paulo Rená, ou @prenass, era um jurista brasiliense que trabalhava
no Tribunal Superior do Trabalho desde 2004. Em 2008, entrou para o mestrado da Universidade de Brasília (UnB). O tema inicial da dissertação era direito processual – uma sequência da monografia, que por sua vez era a sequência de sua iniciação científica. Era a ordem natural das coisas. Foi nesse ano, porém, que Rená, que gostava muito de pesquisar assuntos na internet, se deparou com o tal AI-5 Digital. Ao ler publicações sobre o tema em blogs, como os de Sérgio Amadeu, João Caribé e companhia, se interessou pelo assunto e resolveu participar do movimento de reação ao projeto. Juntou-se ao Mega Não e foi o responsável por organizar um ato pelo movimento em Brasília. Em abril de 2009, um caso curioso o fez repensar o tema de sua dissertação. Era o julgamento dos suecos criadores do The Pirate Bay, famoso site agregador de torrents. Numa batalha judicial com pesos pesados da indústria cultural, estava em jogo uma pena de dois anos de cadeia e uma multa no valor de US$14,3 milhões. “Aí eu me peguei 4h da manhã lendo sobre o caso, pesquisando documentos… e não fazendo o que eu deveria estar fazendo, que era a tese do mestrado”, conta Rená. Ficou tão imerso no caso que resolveu mudar radicalmente o tema, para direito autoral. Nesse mesmo ano, Rená tinha começado a usar o Twitter, no primeiro show da banda inglesa Radiohead no Brasil, que contou com ampla repercussão na rede social. A plataforma logo virou, simultaneamente, um vício e uma ferramenta de trabalho. Ele começou a usar o Twitter para compilar referências da discussão de direito autoral. Além disso, também repercutia o movimento do Mega Não e as críticas à Lei Azeredo. Mal sabia, no entanto, que tinha gente observando. Por várias vezes, os tweets de Rená eram replicados por Túlio Vianna – professor de direito penal, blogueiro e ativista. “Eu seguia o Túlio, e várias vezes ele retuitava coisas que o Rená tinha postado”, diz Guilherme de Almeida, na época recém-chegado ao Ministério da Justiça. Numa dessas, por exemplo, Rená tuitou uma lista com 27 livros gratuitos sobre comunicação. “As referências eram muito boas e me chamaram a atenção.” Curioso, @guialmeida começou a seguir @prenass, e depois de um tempo, foi olhar quem era o cara de fato. “Mestrando em Direito e Comunicação na UnB”, dizia seu perfil. “Pensei: esse cara tá aqui em Brasília, entende do assunto em profundidade, compartilha da mesma visão que a gente… preciso dele.” Como na Secretaria de Assuntos Estratégicos havia muita gente da UnB, Almeida perguntou para Vitor Chaves, então chefe de gabi-
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nete: “Você conhece esse tal de Paulo Rená da Silva Santarém?” Ele respondeu: “Sim! Pô, é um cara gente boa.” Chaves então ligou para Rená avisando que um amigo seu entraria em contato logo mais. Guilherme de Almeida então ligou: – Oi, cara… preciso conversar com você. – Pode ser semana que vem? – Não. Como é que tá amanhã?
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No fim das contas, o amanhã servia. Foram almoçar no dia seguinte num restaurante “meio vegetariano, meio natureba”, na Asa Norte, em Brasília. Rená contou que estava fazendo sua tese de mestrado sobre direito autoral, compartilhamento de conteúdo e o caso Napster. “Eu falei: cara, isso é tão seis anos atrás”, diz Almeida. “Hoje é 2009, acorda. O futuro tá aí pintando na sua frente. Vamos escrever sobre a lei que a gente quer, em vez de ficar falando sobre o que deu errado lá atrás.” Rená já estava familiarizado com o Marco Civil, e Guilherme contou sobre a proposta de construção colaborativa e online do projeto. “Vamos precisar do seu apoio para discutir estratégia, texto-base e etc., mas você vai ter o privilégio de atuar diretamente na construção disso, de ter boas historias, e claro, uma dissertação muito mais legal e contemporânea.” Guilherme de Almeida acabava de oferecer um trabalho a um cara que havia conhecido pelo Twitter. O cargo seria de uma espécie de gestor e Rená não precisaria sair do TST – ficaria temporariamente cedido ao Ministério da Justiça. Os argumentos eram bons, a proposta era interessante. O tempo para refletir, porém, era nulo. O lançamento da plataforma de consulta pública seria na semana seguinte, no dia 29 de outubro, na FGV-Rio. “Vamos?”, perguntou Guilherme de Almeida. E Rená foi. “Aceitei o trabalho na sexta, fui trabalhar numa segunda de feriado e na quarta-feira, sem ainda ter sido contratado formalmente pelo MJ, já estava num jatinho com o ministro da Justiça indo para o Rio para participar do lançamento do negócio.”
Para tocar o projeto sobre a regulação da internet feita pela internet, a Liga da Justiça procurou os hipsters de Botafogo – e não havia como ser de outro modo. Além de um posicionamento claro e ativo na reação contrária ao projeto de lei do Azeredo, do CTS havia partido o batismo e a primeira menção pública ao Marco Civil da Internet. “A meta era fazer o debate mais aberto, legítimo e participativo
possível. Não existia um ‘think tank’ tão ligado à questão de tecnologia e sociedade como eles”, diz Guilherme de Almeida. “Eles tinham tanto a visão profissional da academia como a atividade política de fazer disso uma causa. Por questões de legitimidade, ter a FGV perto era essencial. Não era o MJ tirando algo da cartola. As pessoas que de fato estudavam e debatiam o tema estavam do nosso lado. Não tinha como não ser com a FGV”, diz. Numa ligação, em julho de 2009, é feito o convite para a parceria. – Ronaldo, tenho uma notícia para te dar. Sabe o Marco Civil? Vai sair como política do MJ. – Cê tá brincando. – Tô não. Vamos fazer juntos. A gente quer que vocês ajudem a montar a plataforma para a gente fazer uma consulta pública do Marco Civil, na internet e de forma colaborativa. – Genial. Tamo dentro.
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3. [A consulta]
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té o fim da primeira década dos anos 2000, o uso da internet como ferramenta de participação social em propostas legislativas era, para não dizer nulo, muito limitado. Um projeto de lei era publicado no Diário Oficial da União e no portal da Presidência, sem qualquer espaço para comentários e sugestões. As alternativas para interação eram quase que analógicas: interessados tinham de mandar um e-mail ao endereço indicado para a consulta em questão ou mesmo uma carta ao endereço físico da Casa Civil. Não eram publicados quaisquer relatórios sobre as contribuições recebidas – o que levantava dúvidas sobre sua utilidade e aproveitamento na redação final.20 Havia algumas poucas iniciativas ligeiramente mais à frente. A Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) implantou em 2002 o Sistema de Acompanhamento de Consultas Públicas. Já o portal Governo Eletrônico passou a realizar em 2004 consultas sobre questões técnicas. Ambas as propostas, no entanto, além de restritas a nichos muito específicos, não proporcionavam um ambiente para o debate racional de ideias. Por meio dos conhecidos – e não tão amados – formulários, ofereciam um canal fechado e unilateral entre o usuário e o agente público. Ainda que fossem publicados relatórios de transparência, não se tratava de um campo de discussão aberto e convidativo para a construção em rede. O que o Marco Civil propunha em 2009 não era apenas criar esse espaço para comentários e discussões a partir de um texto já publicado. Era um passo anterior: construir esse texto do zero pela própria internet, para daí submetê-lo novamente a consulta. O primeiro passo já era um empecilho: a plataforma. Em que site a consulta pública seria hospedada? Processos burocráticos de contratação, licitação ou mesmo reformulação do portal do Ministério da Justiça levariam meses e meses, e não havia tempo para isso. Foi Guilherme. Marco Civil da Internet: antecedentes, formulação colaborativa e resultados alcançados. Nova York, 2014. Mimeo. Pp. 9 20 ALMEIDA,
aí que entrou em cena um terceiro grupo, que se juntou ao Centro de Tecnologia e Sociedade à Secretaria de Assuntos Legislativos para botar o projeto no ar: o pessoal do Cultura Digital – site mantido pelo Ministério da Cultura em conjunto com a Rede Nacional de Pesquisa (RPN). Lançada pouco tempo antes, em junho de 2009, o portal pretendia ser uma espécie de fórum voltado à formulação e construção de políticas públicas na área de cultura digital. Por ser uma plataforma em WordPress, o culturadigital.br permitia a livre criação de blogs. Além disso, às vesperas da consulta pública do Marco Civil, o site já contava com alguns milhares de usuários cadastrados, que poderiam se interessar pela discussão e promover o engajamento. “Se a gente fosse fazer pelo MJ, iria demorar e iria ficar ruim”, diz Paulo Rená. “Era mais fácil a gente contornar esse obstácu-
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lo e usar a plataforma deles, que já possuía termos de uso, cadastro e tudo que a gente precisava. Fora que era uma rede do governo, de um ente público, e não um Facebook ou Google Plus.” A receptividade dos responsáveis pelo portal, liderados pelo então coordenador de cultura digital do MinC, José Murilo, foi animadora. Estava firmada a parceria, e a consulta pública do Marco Civil já tinha um host para chamar de seu.
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No dia 29 de outubro de 2009, na Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro, na praia de Botafogo, era lançada a consulta pública online do Marco Civil da Internet. “Estamos utilizando um modelo de metodologia de consulta para que seja um marco de liberdade de expressão e da democracia”21, afirmou o então ministro da Justiça, Tarso Genro. “Isso significa ampliar o debate através da internet.” Além de representantes da FGV e dos Ministérios da Justiça e da Cultura, o evento contou com a participação de deputados e membros do CGI e do Idec (Instituto de Defesa do Consumidor). No portal Cultura Digital22, a chamada de convocação: Este espaço hospedará, pelos próximos meses, o processo colaborativo de discussão e formulação de um marco civil para a Internet brasileira. A iniciativa parte do pressuposto de que a participação popular pode enriquecer o processo de construção de nossas leis. O conhecimento coletivo e voluntário pode – e deve – ser usado para aperfeiçoar a elaboração legislativa em nosso país. Nosso processo legislativo já possui alguns mecanismos de participação popular, como as audiências e consultas públicas. É hora, no entanto, de dar um passo adiante. E a Internet é a ferramenta para permitir que a participação esteja ao alcance de cada cidadão. Estava aberta a primeira fase da consulta online, que duraria 45 dias. O texto de partida que iria a público tinha a missão de contextualizar o debate, apresentando alguns conceitos-chave e alternativas de 21 DIAS,
02/11/2009. Disponível em: http://migre.me/mN52A em: http://migre.me/mN58e
22 Disponível
regulamentação. O documento foi estruturado em três eixos: direitos individuais e coletivos na internet, responsabilidades dos diferentes atores envolvidos e diretrizes governamentais. Com 12 páginas, o texto-base surgiu de duas referências: a Constituição Federal e os Princípios para Governança e Uso da Internet no Brasil, apelidados de decálogo do CGI. O documento23, resultado de três anos de estudos e debates no Comitê Gestor, estabelecia dez princípios norteadores para a internet brasileira: liberdade, privacidade e direitos humanos, governança democrática e colaborativa, universalidade, diversidade, inovação, neutralidade da rede, inimputabilidade da rede, funcionalidade, segurança e estabilidade, padronização e interoperabilidade e, por fim, ambiente legal e regulatório. O documento inicial esmiuçava alguns desses conceitos, para que a partir daí os participantes pudessem expressar sua visão sobre cada assunto. Das contribuições recebidas seria elaborada uma minuta de anteprojeto de lei, que novamente iria a debate no blog da consulta. O objetivo era criar uma carta de princípios, uma espécie de Constituição da internet, que desse diretrizes sobre temas delicados que até então não dispunham de regras claras. O usuário tem direito de acessar a internet de forma anônima? Os provedores devem ou não armazenar os dados de conexão e navegação dos usuários? Por quanto tempo? Quem pode ter acesso a essas informações e em quais circunstâncias? Como determinar se um post deve sair do ar? Por abranger temas tão diversos, a discussão foi fragmentada em núcleos menores, para incentivar comentários mais objetivos. Cada eixo tinha seus tópicos, que por sua vez tinham subtópicos – e estes eram os abertos a comentários, não os grandes eixos. “A primeira recepção foi um sucesso”, diz Ronaldo Lemos. “A gente botou no ar, viu que as pessoas se empolgaram, abraçaram a iniciativa e começaram espontaneamente a comentar.” No entanto, por ser um tema novo e ainda muito desconhecido, não bastava aos gestores ficar de braços cruzados esperando comentários caírem do céu. “Não adiantava fazer a plataforma e achar que miraculosamente as pessoas iriam aparecer. É muito difícil deixar seus hábitos rotineiros de internet para comentar em um portal.” A pequena equipe gestora do projeto então se desdobrou para divulgar a consulta em debates, eventos e seminários em várias cidades do País. Mesmo com esse engajamento, porém, era impossível negar que, ainda mais em 2009, internet no Brasil era um assunto 23 Disponível
em: http://migre.me/mN5ui
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de nicho. “É um tema pelo qual poucas pessoas se interessam, que poucas querem discutir”, diz Carlos Affonso. “Então existiu – e ainda existe – um trabalho de sensibilização das pessoas para a relevância do assunto, que não é trivial. Tem gente que pensa que porque todo mundo usa, todo mundo vai se preocupar com o futuro da internet – e não é assim.” A maioria dos que participaram da consulta eram de fato pessoas de alguma forma relacionadas à área: programadores, ativistas, advogados, professores e pesquisadores de cibercultura, técnicos, profissionais de TI, comunicadores, entre outros. Daí o alto grau de profundidade – e o tamanho – dos debates que se seguiram nas páginas da consulta. Muitos comentários estavam mais para teses, com tópicos, subtópicos e referências bibliográficas, que por sua vez recebiam réplicas mais longas, organizadas e embasadas ainda. Já outros, sobretudo dos mais leigos, eram claros e objetivos: faziam perguntas pontuais ou pediam para que alguém destrinchasse algum ponto nebuloso na argumentação anterior. Sem qualquer tipo de moderação na plataforma, o debate se autogeria. “Uma das coisas mais interessantes da consulta era que não houve quase nenhuma perturbação por troll ou por pessoas que claramente estavam ali para perturbar o debate ou manipulá-lo”, diz Affonso. “Isso não aconteceu; quem veio comentar estava realmente interessado no assunto.” Porém, entre longos discursos de advogados e doutores de direito digital, despontavam algumas poucas pessoas aparentemente desconexas da bolha técnica e acadêmica, mas que também queriam participar. Como os gestores divulgaram amplamente o projeto em lan houses, havia, por exemplo, estudantes que de alguma forma caíam no portal e deixavam algum comentário sobre o que achavam E a proposta era justamente essa: abrigar tanto a opinião de um adolescente que usa a internet para jogar como a de um empresário de um grande provedor. “Teve gente que caiu ali de paraquedas e se interessou pelo assunto. Para que isso acontecesse, a gente brincava que o Marco Civil tinha que ser divulgado até em batizado de boneca”, diz Carlos Affonso. “É claro que a gente gostaria que as pessoas comprassem a tese de que ele era uma coisa positiva. Mas, antes disso, era necessário que elas soubessem que o Marco Civil existia, para aí se engajarem e entrarem num debate.” Além da participação civil, houve também intervenções institucionais em resposta à solicitação do Ministério da Justiça. “A gente
pensou: vamos usar o poder de convocação do MJ”, diz Ronaldo Lemos. “Vamos imprimir 2 mil ofícios para interessados e mandar uma cartinha em nome do MJ para elas virem colaborar com o Marco Civil. Então a gente mandou ofício para as embaixadas brasileiras, para as operadoras, para as associações de classe, como Abert, Abranet… Aquilo ajudou a dar um ar mais institucional para a consulta.” Uma parte considerável das respostas institucionais, além de chegarem na última hora, vieram de uma forma mais isolada e unilateral, por meio de uma extensa carta ou e-mail, e não nos campos de comentários da plataforma – o que era prejudicial, já que o objetivo era incentivar o debate e a troca de ideias. Há notórias exceções: o Partido Pirata, por exemplo, teve a ideia de realizar uma consulta pública interna entre seus membros. Por fim, apresentaram sua própria versão, o Marco Civil Pirata da Internet. Além do documento, as propostas também foram colocadas no portal de forma fracionada tópico a tópico, para seguir o modelo proposto pelos gestores do projeto. Ao todo, foram recebidos 686 comentários específicos ao texto-base no blog hospedado no portal Cultura Digital. Houve também participação por e-mail, Twitter e em blogs que publicavam o link da consulta – totalizando mais de 800 contribuições. No fim das contas, todos os canais foram considerados, e deram origem a um relatório gigantesco. Era a hora de analisar todos os comentários e transformá-los em um projeto de lei. Mas como organizar, categorizar e traduzir em termos jurídicos um calhamaço de 581 páginas? A resposta, mais uma vez, viria da própria sociedade. Em janeiro de 2010, um mês depois do fim da primeira fase da consulta pública, foi realizada mais uma edição da Campus Party em São Paulo. No dia 26, três painéis diferentes foram integralmente dedicados a divulgar e a debater o Marco Civil da Internet. Logo na primeira mesa, membros do coletivo Transparência Hacker e do Partido Pirata propuseram um mutirão para a análise de dados das contribuições enviadas ao blog da consulta, a fim de compará-los e detectar tendências e interesses dos envolvidos. Os usuários, conta Guilherme de Almeida, foram enfáticos: – Precisamos hackear o Marco Civil! O governo tem que abrir os dados para a gente analisar! O projeto não pode ser fechado! Porém, como talvez não imaginassem, não tiveram de gastar muita saliva para convencer os gestores do projeto.
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– Por favor, me hackeiem. A gente tá aqui se matando para ler tudo. Quanto mais gente mastigar isso e nos mostrar informações, melhor. Está aqui a base de dados. Façam – e, por favor, me contem depois.
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Assim, o Ministério da Justiça abriu aos interessados na Campus toda a base de dados da primeira fase da consulta pública. Pouquíssimo tempo depois, na mesma tarde de terça-feira, se aproximou de Guilherme, de forma despretenciosa, um cara “meio grandão”, de bermuda e chinelo de dedo. “Pô, vem cá, deixa eu te mostrar um negócio que eu fiz”, disse o rapaz. Ricardo Poppi havia acabado de criar o Observatório do Marco Civil. Ao inserir as informações no ManyEyes, programa da IBM que cria interpretações visuais em flash, criou gráficos e nuvens de tags que mostravam os tópicos mais comentados na consulta, os maiores comentadores e o que era dito sobre cada tema. Além disso, uma árvore de palavras permitia que, ao digitar uma palavra ou expressão, o usuário tivesse acesso à visualização simultânea e comparada dos principais contextos em que aquele termo havia sido utilizado nos comentários apresentados. Muitos dos temas mais debatidos estavam relacionados à privacidade, como acesso anônimo, intimidade e guarda de logs. “Achei os comentadores mais preocupados com a liberdade do que eu esperava”, afirmou Poppi ao Link Estadão.24 Segunda fase No dia 17 de dezembro de 2009, com dois dias de canja para contemplar os atrasados, a primeira fase da consulta pública foi encerrada. Era chegada a hora de elaborar o anteprojeto de lei. Começou então um troca-troca de mensagens intenso entre os integrantes do CTS, no Rio, e da SAL, em Brasília. “Era um tal de faz um texto e manda pra lá, faz um texto e manda pra cá, conferência por telefone, ‘isso aqui melhora’, ‘isso aqui piora’... texto pronto. ‘Vamos falar com os ministérios? Vamos’”, conta Paulo Rená. Após chegarem a uma primeira versão da minuta, apresentaram o texto a outros ministérios e órgãos públicos, dentre eles a Casa Ci24 DIAS,
29/03/2010.
vil, o Ministérios das Relações Exteriores, da Ciência e Tecnologia do Planejamento, Orçamento e Gestão, das Comunicações, da Cultura, da Educação e a Anatel. Esse diálogo durou por volta de um mês, e levou a alguns poucos ajustes no texto – mais focados em pormenores de terminologia e nomenclatura do que propriamente nos princípios que ali estavam em jogo. “Mais do que receber sugestões, era primeiramente um trabalho de explicar para os ministérios do que a gente estava falando – quase que uma catequização”, explica Rená. Finalmente, o anteprojeto foi ao ar no mesmo portal para a segunda fase de discussões, iniciada no dia 8 de abril de 2010. O texto foi estruturado em torno dos três eixos da primeira fase. O primeiro capítulo tratou de direito de acesso, inviolabilidade de sigilos, proteção aos direitos de consumidor nas relações com os provedores de conexão e de serviços de internet e garantias relacionadas à privacidade e à liberdade de expressão. O capítulo relacionado às obrigações das empresas envolvidas, como provedores de conexão e serviços de internet, continha os tópicos que causariam os maiores atritos – não só na consulta pública, mas durante toda a tramitação no Congresso: a guarda de registros de acesso (logs), a neutralidade da rede e a responsabilização de terceiros por conteúdo publicado. Já o capítulo de diretrizes governamentais indicou parâmetros para a governança do setor e para a elaboração de políticas públicas, delineou critérios para os portais da administração pública e sinalizou etapas e desafios futuros na área de regulamentação da internet. Entre a primeira e a segunda etapa da consulta, o portal culturadigital.br passou por algumas mudanças. Além de um novo visual, mais organizado, foi desenvolvido pela equipe do MinC um plugin customizado chamado “dialogue”, para facilitar a inserção de comentários e a elaboração de relatórios. O anteprojeto poderia, a partir dali, ser publicado em apenas um único post, e não mais em uma sequência de posts. O sistema de comentários foi reestruturado: o comentário poderia ser direcionado a um artigo específico, a um inciso, a uma seção ou mesmo a um capítulo como um todo. O usuário escolhia o grau de minúcia que queria para sua argumentação. A segunda fase recebeu mais comentários, com debates mais intensos e extensos. Foi criada pelos gestores uma seção separada no blog para narrar o processo e elucidar conceitos técnicos ou controversos. Outro espaço divulgava os eventos sobre o Marco Civil que vinham sendo organizados por diversas entidades em todo Brasil. Na Câmara dos Deputados, foi realizada a primeira audiência
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pública sobre a minuta de anteprojeto de lei, seguida por outra no Senado Federal. Houve ainda uma audiência pública na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, presidida pelo então deputado estadual Alessandro Molon (PT-RJ) – que algum tempo depois tomaria a dianteira de todo o processo. A Divisão da Sociedade da Informação, do Ministério das Relações Exteriores, realizou uma consulta às embaixadas brasileiras no exterior, pedindo informações sobre as leis e práticas comuns referentes à internet em cada país. Foram recebidas 27 respostas, que serviram de paradigma para ilustrar soluções e problemas decorrentes da falta ou do excesso de regulamentação. Caxangá eletrônico
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O grande protagonista da segunda fase, que gerou atritos, comoções e manchetes – atritos esses que dariam as caras novamente mais à frente na tramitação do projeto – foi o dilema da responsabilização de conteúdo online, que é um dos temas mais controversos em termos de regulação da internet. A questão é basicamente a seguinte: de quem é a responsabilidade sobre o que é publicado na rede? Do autor ou da plataforma que veicula o conteúdo, como o YouTube ou o Facebook? Caso haja denúncias de plágio, danos morais ou difamação, como decidir se o conteúdo deve ou não ser removido e quem banca a decisão até o fim? Como até então não havia nenhuma lei que regulamentasse a área de modo específico no País, entidades e empresas de internet acabaram importando informalmente o mecanismo americano conhecido por “notice and take down”: notificação e retirada. Funciona assim: a pessoa ou empresa que se sentiu lesada por um determinado conteúdo publicado – seja por calúnia, difamação ou, sobretudo, questões de direito autoral – envia uma notificação ao Google ou Facebook pedindo que a publicação seja removida. A pessoa que postou o conteúdo é notificada e em tese tem duas alternativas: ou compra a briga com a empresa e chama o processo para si ou aceita que o conteúdo seja removido. Na prática, no entanto, a opção acaba por ser apenas uma, já que os usuários, por não terem condições de levar adiante processos por vezes milionários com a indústria, acabam por permitir a retirada, ou tiram o conteúdo do ar eles mesmos. Muitas vezes, a remoção ocorre mesmo sem qualquer notificação, e a avaliação sobre a legitimidade
daquele pedido sempre fica para depois – ou nem acontece. O mecanismo foi criado nos Estados Unidos no fim dos anos 1990, como parte do Digital Millenium Copyright Act, lei americana que trata de direitos autorais no ambiente online. O objetivo era proteger e assegurar a operação das plataformas de internet, uma vez que empresa nenhuma abriria as portas se tivesse de assumir a responsabilidade por tudo que seus usuários publicam. Seria como atirar no mensageiro e isentar quem escreveu a mensagem. O processo de notificação e retirada deu então segurança jurídica às empresas, mas tem um efeito colateral preocupante: a censura. Como a decisão não passa pela Justiça, não há avaliação sobre se o conteúdo é de fato abusivo em alguma instância ou se o pedido é arbitrário e viola a liberdade de expressão. A corda quase sempre estoura do lado mais fraco: o lado do usuário. Nos Estados Unidos, o mecanismo só é utilizado em casos de infração a direito autoral. Em outras circunstâncias, como denúncias de calúnia ou difamação, o caso tem de ir à Justiça. Pela carência legislativa, o Brasil adotou a prática de forma generalizada. As regras variam de país a país. No Canadá, por exemplo, vigora o chamado “notice and notice”, pelo qual a parte que se sente lesada notifica o provedor de internet, que por sua vez apenas repassa a notificação ao usuário, podendo monitorá-lo por um tempo. O mecanismo é apenas educativo, pois não há qualquer penalidade. O modelo proposto no anteprojeto de lei do Marco Civil, no artigo 20, era uma espécie de adaptação dos outros modelos vigentes. “Era uma notificação e retirada melhorada frente ao modelo americano, mas não chegava a ser um notice and notice, pois ele tinha salvaguardas”, explica Carlos Affonso. “O provedor de internet conectava as duas pontas.” Chamado de “notice and counternotice”, o mecanismo se propunha a unir as partes – quem publicou o conteúdo e quem pediu a remoção – e a isentar a plataforma, responsável apenas pela mediação. Ao receber uma queixa de uma parte identificada, o provedor de internet removeria o conteúdo e notificaria o publicador original. Caso quisesse ver o conteúdo restabelecido, deveria assumir a responsabilidade total por ele. O material voltava ao ar e o provedor fazia uma contranotificação, informando a identidade do publicador. Ambos devidamente apresentados, caberia às duas partes negociar, sem responsabilizar a plataforma. “Pelo modelo, o provedor tinha o dever de não julgar se aquilo estava certo ou errado, mas sim de unir as pontas, que deveriam se identificar e bancar cada decisão”,
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explica Paulo Rená. Era a sugestão prevista no anteprojeto… mas não colou. O mecanismo foi extremamente criticado durante a segunda fase da consulta pública. Em menos de um mês, foram feitos 145 comentários aos artigos que versavam sobre o modelo, que passou a ser carinhosamente – ou nem tanto – apelidado de caxangá eletrônico, por estabelecer uma espécie de “tira, põe, deixa ficar” de conteúdo. As queixas eram de que o mecanismo, por prescindir de ordem judicial, daria margem a violações da liberdade de expressão, geraria transtorno às partes envolvidas e poderia deixar os impasses sem solução, num vai-e-volta sem fim. Na plataforma da consulta pública surgiram debates extensos e muito qualificados sobre o tópico, com a participação de diversos especialistas. Como solução, a maioria propunha que a remoção de conteúdo só se desse em casos de ordem judicial. Se por um lado a medida poderia potencialmente sobrecarregar o Judiciário, por outro, pressupunha algum tipo de investigação sobre cada caso, fechando o cerco contra a censura indiscriminada. Um dos usuários mais participativos foi o advogado Marcel Leonardi, que comentou insistentemente no tópico, e teve grande influência no novo modelo que seria adotado. “Imagina o caos que seria se um sujeito se sente ofendido porque o outro o chamou de bobo no Facebook e manda tirar, porque bastava notificar e o provedor teria o dever de retirar”, diz o advogado. Na plataforma da consulta, ele escreveu: Não creio que se possa prescindir de análise judicial e ordem específica para a retirada de conteúdo, já que decidir sobre a legalidade ou ilegalidade do material – em todas as suas possíveis formas – é algo necessariamente subjetivo, além de ser prerrogativa exclusiva do Judiciário, e não de usuários ou de provedores. (...) Adotado o sistema de notificação, há um claro risco de que pessoas e empresas passariam a exigir a remoção de informações claramente lícitas, apenas porque a divulgação desse material não lhes agrada. Outra pessoa que participou ativamente do debate na consulta pública, e fervorosamente neste tópico, foi a tradutora e historiadora Denise Bottman, dona do blog Não Gosto de Plágio. Ela que batizara o mecanismo de notificação e contranotificação de caxangá eletrônico. No portal, escreveu:
Parece-me uma violação de qualquer garantia constitucional: um absurdo que qualquer um que se sinta ofendido possa pedir a exclusão do conteúdo supostamente infringente, sem que a alegada infração seja devidamente comprovada nos termos da lei. (...) Inadmissível. Sacramenta e acolhe o princípio de denunciação caluniosa sem qualquer fundamentação em prova produzida judicialmente. O clamor das redes foi ouvido. No dia 4 de maio, os gestores do projeto publicaram no site uma nova versão dos artigos 20 a 24, que colocava no jogo a figura do Judiciário. Para o artigo 20, a nova proposta de redação: “O provedor de serviço de internet somente poderá ser responsabilizado por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após intimado para cumprir ordem judicial a respeito, não tomar as providências para, no âmbito do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente.” Mais de 100 comentários foram publicados à nova proposta, a maioria favoráveis. As variadas críticas ajudaram a polir a redação que seria posteriormente enviada ao Congresso. “A gente tinha formulado uma versão para o artigo 20, mas ela não refletiu o que as pessoas queriam”, diz Ronaldo Lemos. “E, ao fazer o debate público, nosso papel foi de ouvir.” Por isso, os artigos que tratavam do assunto foram alterados ainda durante o processo de consulta. “No meio da segunda fase, mudamos a redação”, diz Carlos Affonso. “Quando você percebe que a maré virou, que o entendimento sobre o artigo era o contrário do originalmente proposto, é importante que os que estão organizando a plataforma reconheçam isso.” O prazo para o término da segunda fase, inicialmente de 45 dias, foi prorrogado em uma semana, para aumentar o número de contribuições de empresas e instituições, geralmente recebidas de última hora. Caso as entidades optassem por enviar PDFs e documentos em vez de comentar na plataforma, tinham de autorizar que sua contribuição fosse publicada em uma seção específica no site – era a condição para que fosse levada em conta, já que a proposta era ser um debate aberto. “As operadoras de telefonia já colocavam a sua opinião desde o começo. A Claro, por exemplo, se mostrou contrária à neutralidade
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de rede em seu documento, falando que era um assunto muito novo”, exemplifica Rená. “Já a Polícia Federal fez pedido para que houvesse guarda de logs para investigação.” Após o surto final de participações de última hora, a consulta foi encerrada no dia 30 de maio de 2010, com 1.168 contribuições. Era a hora de polir o texto e de fato dar luz ao projeto de lei. Como não era possível e nem muito eficiente, que todos lessem tudo para a elaboração do texto, a tarefa foi fragmentada. Cada membro do CTS e da SAL recebeu uma lição de casa: um leria do comentário 1 ao 500; outro, do 500 ao 1.000; outro, todos os textos de blogs; outro, todas as menções em redes sociais; outro, todas as notícias da imprensa. E assim por diante. Depois desse intensivão individual, o time de gestores se reuniu na FGV do Rio de Janeiro nos dias 23 e 24 de junho, uma quarta e quinta, para a maratona final de elaboração do texto. Durante horas a fio, enclausurados numa sala, Guilherme de Almeida, Paulo Rená, Ronaldo Lemos, Carlos Affonso, Pedro Mizukami, Joana Varón e Pedro Augusto, entre outros, discutiram os principais temas que se sobressaíram na consulta e, posteriormente, o projeto em si, artigo a artigo. Uma semana depois, fariam uma última reunião online para ajustes finais. O projeto estava pronto. Bastava ser validado no governo e encaminhado à Casa Civil. Mas não seria tão simples assim.
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epois da consulta pública e dos dois dias de enclausuramento no Rio para que SAL e CTS chegassem à versão final do texto, era a hora de o anteprojeto do Marco Civil ser validado pelo governo. Até chegar às mãos do então presidente Lula, deveria percorrer um grande labirinto: passar pelas mãos de todos os ministérios para novas discussões e ajustes, para depois ir à Casa Civil. “Imagine uma pirâmide, na qual você tem que levar uma coisa de baixo para cima”, diz Guilherme de Almeida. “Só que ela só vai até o primeiro andar se a pessoa do térreo se mexer. Do primeiro para o segundo, se o outro autorizar. Do segundo para o terceiro, se der tempo. Do terceiro para o quarto, se tiver vontade política. A qualquer hora, qualquer um pode dizer não. E, se disser não, o negócio para.” O trabalho da equipe da Secretaria de Assuntos Legislativos consistia, então, em mapear esse trajeto, detectando onde o projeto empacara e por quê. “A nossa missão, muitas vezes, era identificar em
qual ministério estava parado, marcar uma reunião, sentar para conversar e explicar o projeto”, diz Almeida. Devido a toda essa saga pelo “castelo de cartas”, como ele chamava, o texto só foi chegar ao presidente Lula no final de 2010, num timing um pouco ingrato – época de eleições e transição de mandato. “Se já é difícil fazer a coisa avançar no governo, imagina num momento de transição”, diz. “Faz mais sentido a pessoa que vai conduzir isso na sequência se responsabilizar pelo encaminhamento.” Com a mudança de presidente, ministros, secretários, consultores jurídicos e assessores, a proposta voltou à estaca zero no Executivo, e o castelo de cartas teve de voltar ao primeiro andar. Novos debates foram necessários para que o texto percorresse os ministérios, fosse encaminhado à Casa Civil e chegasse às mãos da sucessora de Lula, a presidente Dilma Rousseff. Com isso, o anteprojeto do Marco Civil da Internet só seria encaminhado ao Congresso no dia 24 de agosto de 2011. Sob um codinome mais técnico e menos simpático, PL 2.126/2011, se juntava ao mar sem fim de projetos de lei que disputam a atenção, o tempo e a boa vontade de centenas de deputados e, mais que isso – entrava de vez nos submundos do jogo político.
Na Câmara dos Deputados, o Marco Civil precisava de um relator. Quem o chamou para si foi um professor de história, popular na comunidade católica carioca, que ingressara no meio político com pautas ligadas aos direitos humanos. Alessandro Molon, deputado federal pelo PT-RJ, já vinha acompanhando o nascimento da ideia de uma Constituição para a internet anos antes, em meio aos movimentos de reação à lei de crimes digitais, o chamado PL Azeredo. “Eu comecei a entrar em contato com o tema na luta contra o AI-5 Digital, na luta do Mega Não. Teve um evento lá no Rio sobre o assunto, me convidaram e eu fui. Aí me deparei com esse clamor por um Marco Civil da Internet”, diz Molon, referindo-se a uma audiência pública na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj), quando ainda era deputado estadual. “Antes mesmo de ele chegar à Câmara, eu já estava antenado nisso. Quando a presidente mandou o projeto ao Congresso, aí eu falei: vou brigar para ser o relator.” O despertar para o digital aflorou na vida pública, pela percepção de que o ambiente online cada vez mais se confundia com o offline, inclusive para o exercício da cidadania. “Meu interesse pela internet veio
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com a política. A internet hoje permite participação, transparência, acesso a dados, elaboração de projetos ou programas de governo aberto que, acredito, vão fazer uma atualização sobre o que é a democracia”, diz Molon. “No fundo, eu quis relatar o Marco Civil não apenas pela internet, mas sobretudo pelo que a internet como ferramenta pode fazer pela democracia, pela mudança social, pelo avanço do País.” A escolha tinha a bênção dos gestores do projeto. “O relator ser o Molon na hora foi muito importante para a gente. Primeiro, porque ele é carioca”, brinca Carlos Affonso. “Já tínhamos trabalhado com ele antes, na revogação da lei estadual que proibia lan houses a menos de um quilômetro de estabelecimentos de ensino no Rio de Janeiro. Foi um sucesso. Depois, ele participou de uma audiência pública sobre a consulta do Marco Civil. Logo deu liga”, diz o advogado e pesquisador. No dia 28 de março de 2012, Alessandro Molon foi designado relator do projeto de lei na Câmara dos Deputados. “O Marco Civil da Internet já chega muito amadurecido à Casa, mas podemos dar uma contribuição para avançar, para aprimorá-lo”25, disse ele na reunião. Na véspera, havia sido criada uma Comissão Especial na Câmara dos Deputados para a apreciação do projeto de lei, pelo fato de ele tratar de temas ligados a mais de três comissões. Por definição da mesa diretora da Câmara, o projeto seria encaminhado às comissões de Defesa do Consumidor, Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática, Constituição e Justiça e de Cidadania. Por requerimento do deputado Paulo Teixeira (PT-SP), foi incluída também a Comissão de Segurança Pública e de Combate ao Crime Organizado, totalizando quatro comissões – o que determinou a instituição de uma Comissão Especial para a análise da proposta. Se por um lado uma Comissão Especial desloca um grupo de parlamentares para fazer a análise específica do projeto em questão, também pode pular etapas: o processo de análise, elaboração de relatório, debates e votação passa a ser realizado em apenas uma comissão, e não em três. Além disso, por se reunir em dias e horários diferentes e depender da designação de representantes de todos os partidos, pode atrasar a tramitação, uma vez que tende ao esvaziamento e, como ficaria claro, à falta de quórum para votação. Nas reuniões da comissão, presidida pelo deputado João Arruda (PMDB-PR), foi definido um calendário de audiências públicas e seminários em várias cidades do País para debater o projeto: Porto Alegre, Curitiba, Salvador, São Paulo, Rio de Janeiro, Uberlândia e, por 25 RODRIGUES,
28/03/2012. Disponível em: http://migre.me/mO8Rm
fim, Brasília. Em menos de dois meses, foram realizados oito eventos. O relator Alessandro Molon buscou incorporar sugestões feitas ao longo das audiências, sobretudo em relação à privacidade e neutralidade de rede, e também nas consultas realizados no site e-Democracia26, portal da Câmara dedicado a debates abertos à população sobre formulação de leis. Molon apresentou a primeira versão do seu relatório em julho de 2012. Entre outras questões, o texto defendia o princípio da neutralidade de rede, pelo qual empresas não podem privilegiar o tráfego de dados de determinado conteúdo na internet, como acesso a e-mails em detrimento de vídeos. Pelo texto, as exceções, restrições técnicas e emergenciais ao princípio seriam regulamentadas por decreto, com recomendações do Comitê Gestor da Internet (CGI). Em relação ao uso e armazenamento de dados pessoais, corria em paralelo, desde 2010, um anteprojeto específico para regulamentar o tema, também levado a consulta pública pelo Ministério da Justiça. No entanto, o Marco Civil já adiantava que o usuário teria o direito de saber quais de seus dados seriam armazenados pelos provedores e como seriam usados e repassados a terceiros. Os dados de navegação poderiam ser armazenados pelas empresas por um ano – e só divulgados mediante ordem judicial. Já os provedores de conteúdo, como Google e Facebook, só seriam responsabilizados por publicações de terceiros caso descumprissem ordem judicial expressa de remoção. Esse era o desenho, os dados estavam lançados. A votação estava marcada para o dia 8 de julho, uma terça-feira; mas foi cancelada. Temas espinhosos que pautariam disputas ferrenhas mais à frente já começavam a gerar algum desentendimento. A neutralidade de rede, por exemplo, não era consenso nem dentro do próprio governo. O Ministério das Comunicações e a Anatel demonstravam preocupações sobre como o princípio estava definido dentro do Marco Civil e também sobre quem seria responsável por ditar as exceções. A Casa Civil e a Secretaria de Relações Institucionais, por sua vez, sugeriram que o projeto estaria vinculando a regulamentação a um órgão que não tem poder regulamentador: O CGI. “O governo fez ponderações sobre as atribuições do CGI. Para o governo, a forma como o texto está pode levantar questionamentos mais informações: MAGRANI, Eduardo. Democracia conectada: a internet como ferramenta de engajamento político-democrático. Curitiba: Juruá, 2014. pp. 70 26 Para
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sobre sua constitucionalidade. Estamos estudando uma nova versão”, disse Molon ao Link Estadão27. Outro ponto divergente era o então artigo 15, a respeito da responsabilização dos provedores quanto a conteúdo de terceiros. “O texto foi recebido com preocupações”, afirmou o deputado. O artigo também dava liberdade para que as empresas discutissem e fizessem acordos entre si para evitar a via judicial. A sugestão, que vinha de entidades da indústria fonográfica, como a Associação Brasileira de Direitos Reprográficos, poderia abrir margem para a remoção de conteúdo que violasse direitos autorais mesmo sem o aval da Justiça. Já a guarda de logs, ponto crítico desde as discussões do PL Azeredo, opunha defensores da privacidade e entidades ligadas à segurança, como os bancos e a Polícia Federal. Esses, por sua vez, defendiam, sob a argumentação preventiva, mais controle sobre esses dados e mais tempo para armazenamento – o que contrariava a tentativa de flexibilização do Marco Civil, que previa a guarda pelo prazo de um ano. Diante de tantos questionamentos, Molon esboçou alterações no texto. Para o dia seguinte, 9 de julho, foi marcada uma nova tentativa de votação – também cancelada, desta vez por falta de quórum. O fato é que não havia no Congresso apoio suficiente para aprovar o projeto, e começavam a despontar outros atores que, defendendo seus interesses empresariais, teriam grande influência no debate. O preço de ser neutro Desde a fase de consulta pública do Marco Civil, entre 2009 e 2010, as operadoras de telefonia faziam ressalvas a respeito do conceito de neutralidade de rede. O texto proposto por Molon afirmava, no artigo nono, que o provedor de conexão tinha o “dever de tratar de forma isonômica quaisquer pacotes de dados, sem distinção por conteúdo, origem e destino, serviço, terminal ou aplicativo, sendo vedada qualquer discriminação ou degradação do tráfego que não decorra de requisitos técnicos necessários à prestação adequada dos serviços”. Também vedava aos provedores “monitorar, filtrar, analisar ou fiscalizar o conteúdo dos pacotes de dados”. Recheado de termos técnicos, o conceito logo soava complicado, o que explicava boa parte do estranhamento não só por parte dos usuários, mas também – e principalmente – dos membros do Congresso. 27 DIAS,
10/07/2012. Disponível: http://migre.me/mOajo
Numa rede neutra, o provedor não pode aumentar ou diminuir a velocidade da conexão com base no conteúdo que o usuário acessa. Não pode, por exemplo, permitir uma navegação mais rápida no e-mail ou nas redes sociais e pisar no freio quando o usuário tentar carregar um vídeo ou usar serviços de videoconferência, como o Skype. As razões que poderiam levar a eventuais filtragens são claras: um vídeo, por exemplo, consome mais banda do que outros serviços. Um vídeo de quatro minutos no YouTube, por exemplo, consome o equivalente a aproximadamente 440 mensagens de e-mail sem anexos. Já serviços VoIP, além da banda, competem com serviços prestados pelas operadoras, pois permitem chamadas. Ao contrário do que muitas vezes era argumentado nas consultas ou audiências sobre o projeto, a neutralidade não impediria que as operadoras oferecessem diferentes pacotes de velocidade. Determinava, porém, que com a velocidade contratada, o usuário poderia ter acesso a qualquer tipo de conteúdo que quisesse. Às teles, no entanto, era atraente a possibilidade de cobrar por um serviço apenas de vídeo, ou apenas de texto, ou mesmo fazer acordos comerciais com empresas para rodar a aplicação A mais rápido que outros provedores, como chamariz. O argumento era a expansão e popularização dos serviços de internet e a possibilidade de diminuir custos – que, no entanto, vêm às custas do traffic shapping – a maneira como o usuário usa a internet vai sendo moldada. Se o acesso ao Facebook for gratuito numa operadora, ou mais rápido do que a navegação em outras redes, o usuário pode desistir de usar outras plataformas. Se cada vez que for assistir a um vídeo a conexão travar, ele será desestimulado a acessar aquele tipo de conteúdo. “Para nós, o Marco Civil estava extremamente preocupado em regular um setor que já é regulado, que é o setor de telecomunicações”, diz Alexander Castro, diretor do Sinditelebrasil, que representa a indústria de telecomunicações no País. “Internet é um serviço de valor adicionado, que usa o serviço de telecomunicações para ser ofertado ao usuário final”, diz. Para ele, o projeto sinalizava a regulamentação de muitas questões para uma lei que se propunha meramente principiológica, e acabava interferindo em pontos que já tinham regulamentação prevista pela Anatel. A neutralidade, segundo Castro, já vinha sendo preservada pelas operadoras. “Já somos obrigados pela regulamentação da Anatel, desde 1998, a garantir a neutralidade da rede”, diz Castro. “Temos
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de dar o mesmo tratamento a todos os pacotes, independentemente de que terminal saiu e qual o serviço; se é VoIP, se é vídeo, se é voz. A gente nunca quebrou neutralidade de rede Estamos obedecendo ipsis litteris o que está na lei”, diz. “Se houve alguma discriminação ou bloqueio por questões comerciais, isso está errado e tem de ser levado ao Cade e à Anatel.” A crítica do setor de telecomunicações, segundo o diretor, não era a neutralidade em si, mas a forma como estava redigida no texto de Molon. Para Castro, as teles não poderiam discriminar tráfego, mas sim monitorá-lo, o que era vetado no texto. “Ora, eu preciso ler o conteúdo dos pacotes para fazer a gestão da rede das operadoras”, diz. “As operadoras dependem disso, esse é o oxigênio delas. Sem ler esses pacotes, não dá para fazer a gestão da rede.” Outra demanda do setor era negociar o QoS (Quality of Service), que permitiria que sites e aplicações pudessem, mediante remuneração extra, oferecer um serviço mais rápido e eficiente. “Se o provedor de aplicação quisesse pagar para ter uma qualidade de serviço acima daquela que é padrão, eu poderia oferecer a ela essa qualidade; sem, no entanto, prejudicar a qualidade do outro.” Ele explica o modelo com vestuário. Quem quisesse poderia optar por peças mais simples, que seriam sim bem acabadas, porém mais básicas. Agora, quem quisesse usar roupa de grife, como Prada, poderia pagar mais por isso, o que não significaria que os outros teriam roupas rasgadas e defeituosas, diz o diretor. A medida seria adotada para “atendimento a serviços especializados, que exigem requisitos da rede muito mais apertados, como telemedicina, teleconferência, webcam, tele HD, entre outros”. O QoS seria uma espécia de “reforço” para além do pacote de velocidade. A prática não diminuiria, segundo o diretor do Sinditelebrasil, a qualidade de navegação dos outros usuários ou serviços. “A gente sempre conviveu muito com os radicalismos: ou era zero ou era 100”, diz Castro. “Não é que quem puder pagar mais vai ter uma internet boa e quem não puder pagar vai ter uma internet porcaria. Já está definida pela Anatel, inclusive, uma velocidade mínima. Nos permitam então oferecer um delta a alguém que demande requisitos da rede muito mais requintados.” Durante toda a tramitação do Marco Civil, se debateu se a proposta de diferenciação de preços e acesso a serviços segmentaria a rede aberta em “internet dos ricos” e “internet dos pobres”. Ativistas e entidades do terceiro setor eram radicalmente contra, pois alegavam que a prática transformaria a internet numa espécie de TV a cabo.
“Com a cobrança diferenciada de serviços, seria reproduzida a mesma separação social que ocorre nas cidades brasileiras hoje: periferias com acesso limitado a equipamentos culturais e serviços de qualidade, e anéis de riqueza em que seriam construídas barreiras de estratificação social com o objetivo de afastar a presença e entrada da periferia nessas praças”28, escreveu Pedro Ramos, pesquisador e membro do Núcleo de Direito, Internet e Sociedade da Faculdade de Direito da USP. “(...) As evidências sugerem que a criação de um modelo de Internet similar ao que ocorre nas televisões a cabo não irá resolver os problemas de infraestrutura e poderá, ainda, ter como consequência adversa a reprodução e potencialização dos efeitos negativos da exclusão social que já se opera no mundo offline.” Para Demi Getschko, conselheiro do CGI, a prática de tratamento diferenciado, com restrição a certo tipo de mídia, por exemplo, pode até ser prejudicial às operadoras no longo prazo: “Se você nunca pode assistir a nada no YouTube porque sabe que sua conexão não te dá direito àquilo, você nem sabe se quer ou não aumentar sua conexão ou expandir sua banda. Então operadoras que geram pacotes manipulados podem até estar jogando contra o próprio interesse”, explica. “Quando eu contrato um provedor de acesso, eu não quero que ele me diga se eu devo ler e-mail ou rede social; da mesma forma que quando eu vou a uma banca de jornal, não quero que me digam para ler esta revista ou aquela”, diz. “Eu posso escolher a revista que quero comprar, o jornal que eu quero ler e o canal a que eu quero assistir.”
Em 2010, o Chile foi o primeiro país do mundo a garantir a neutralidade em lei. No final do mesmo ano, os Estados Unidos aprovaram uma legislação similar, mas a discussão voltaria à tona mais à frente, com propostas contrárias ao princípio. Em 2011 foi a vez da Holanda, o primeiro país europeu a proibir provedores de monitorar e filtrar o tráfego online dos usuários. O debate chegava ao Brasil, e já alarmava empresas do setor de telecomunicações, que teriam grande influência no Congresso. “O conceito de neutro é muito difuso”, afirmou na época ao Link Estadão29 Eduardo Levy, diretor do Sinditelebrasil. “Era preciso que ficassem 28 RAMOS, 29 DIAS,
17/03/2014. Disponível em: http://migre.me/mRnOv 15/07/2012. Disponível em: http://migre.me/mOaXE
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mais explícitos os critérios pelos quais empresas podem gerenciar as redes”, disse. Ele também criticou as atribuições designadas ao Comitê Gestor. “O CGI é um comitê, suas decisões nem sempre são consenso. Muitas vezes levam em consideração apenas a noção, aquilo que acham que seja.” Para ele, que classificou o adiamento da votação como “prudente”, a neutralidade deveria ser regulamentada pela Anatel. “Se não for a Anatel, quem vai ser?”, perguntou. “Uma agência como a Anatel tem estrutura, corpo técnico. Gostando ou não, ela pode ir mais por um lado do que por outro, mas ela tem a autoridade.” A Comissão Especial se reuniria novamente em agosto. A votação ficou para o dia 8, e foi adiada, mais uma vez, por falta de quórum. A tentativa seguinte foi no dia 19 de setembro, sendo cancelada novamente – desta fez, por indicação do próprio governo. Claramente, não havia consenso para votar o projeto, e novas propostas de redação para os artigos polêmicos rondavam os bastidores do Congresso. A suspeita do presidente da comissão, João Arruda (PMDB-PR), que solicitou o adiamento da votação, era de que deputados apresentassem “voto em separado”, o que permitiria que fosse criado um texto novo após a rejeição da redação proposta. Um dos deputados contrários era Ricardo Izar (PSD-SP), que considerava o tema “muito importante para ser votado em pouco tempo”. “Faltou debate. A sociedade foi ouvida, mas a parte técnica faltou”30, afirmou. Outro parlamentar era Eli Correa Filho (DEM-SP), que havia sido procurado por empresas de telecomunicações e associações. “Eles (provedores de internet) são contra a neutralidade. Eles expõem a opinião deles, e a gente vai assumindo um ponto de vista com essas explicações. Por isso eu ia apresentar voto em separado”, afirmou. “Acho que a votação pode acontecer se flexibilizarem o artigo sobre neutralidade, porque não altera em nada o relatório. A questão toda é o CGI.” 31Para as teles e para o governo, a regulamentação deveria ficar a cargo da Anatel. Para Demi Getschko, do CGI, havia uma interpretação equivocada do artigo nono. Ele afirmou que o comitê não se comportaria como um guardião da neutralidade. “O Marco Civil é da internet, e não das telecomunicações. Telecomunicações a Anatel regula, mas a internet legalmente é ‘serviço de valor adicionado’ e isso vai além da Anatel.”32 30 RONCOLATO, 31 Idem. 32 Idem.
23/09/2012. Disponível em: http://migre.me/mObey
Na Câmara, o clima não era de pressa; longe disso. Alguns deputados sugeriram esperar a votação das leis de crimes online, incluindo a Lei Azeredo, que haviam ressurgido no ano anterior no Congresso. Outra desculpa era aguardar a Conferência Mundial sobre Telecomunicações Internacionais, que ocorreria em Dubai dali a três meses, e poderia mudar as regras do jogo no setor. Lei Dieckmann Enquanto o Marco Civil enfrentava impasses e não seguia para votação, o projeto de lei 84/99, apelidado de Lei Azeredo, continuava em tramitação na Câmara dos Deputados. Como uma alternativa mais moderada e flexível, foi proposto em 29 de novembro de 2011 um novo projeto de lei de crimes de internet, o PL 2.793/2011. Diferentemente do AI-5 Digital, a nova proposta era mais amena, não obrigava o cadastramento de usuários e reduzia boa parte dos tipos penais propostos no projeto anterior. Na cola do Marco Civil, que propunha o estabelecimento de direitos antes da formulação de uma lei criminal, foi feito um acordo na Câmara para que o PL 84/99 tivesse seus pontos polêmicos subtraídos e que, juntamente com o novo PL 2.793/2011, fosse analisado somente após a sanção presidencial do Marco Civil da Internet. “Eu mesmo fui numa audiência da Lei Azeredo, mas só se falava no Marco Civil. Era quase uma questão Fla-Flu: de que lado você está?”, conta Carlos Affonso. “O próprio Azeredo se compromete a votar o Marco Civil primeiro, mas esse acordo é quebrado”, diz. O compromisso começou a estremecer em maio de 2012, com o vazamento de fotos íntimas da atriz Carolina Dieckmann na internet. Pela ampla repercussão midiática, foi aprovado na Câmara em 16 de maio, às pressas, um outro projeto de lei que tipificava crimes online – o PL 35/2012, de relatoria do deputado Paulo Teixeira, adaptação do anterior. A votação durou menos de cinco minutos, surpreendendo até autores do projeto, que ainda discutiam algumas pequenas alterações no texto. O PL tornava crime a invasão de computadores, violação de senhas, obtenção de dados sem autorização e clonagem de cartões. A pena seria prisão de três meses a um ano. Contrariado, o deputado Eduardo Azeredo (PSDB-MG) não segurou as queixas: queria que o texto de sua autoria, que tramitava na Comissão de Ciência e Tecnologia, fosse votado primeiro. “Há pres-
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são para votar por causa da Carolina Dieckmann”33, disse. “É uma vaidade política querer aprovar esse projeto. O governo quer mostrar ação, mas de uma maneira ineficaz.” No Senado, o texto do deputado Paulo Teixeira foi modificado, tendo de retornar à Câmara dos Deputados. Com o substitutivo do relator Eduardo Braga (PMDB-AM), a proposta introduzia no Código Penal crimes como o de invasão de computadores e clonagem de cartões. A pena se estendeu um pouco, indo de três meses a três anos, mais multas. Em 7 de novembro, ambos os projetos seriam aprovados na Câmara: a chamada Lei Dieckmann e o que restara da Lei Azeredo. Em dezembro de 2012, foram sancionados pela presidente Dilma Rousseff. Da redação original do AI-5 Digital, considerado excessivamente restritivo, restaram apenas quatro dos 23 artigos. “O acordo é quebrado; saem as leis de crime antes da lei de direitos”, diz Carlos Affonso. “Não foi surpresa para ninguém, mas isso deu mais força para que a gente quisesse aprovar o Marco Civil.”
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A exceção autoral Depois da aprovação-relâmpago na Câmara da Lei Dieckmann e até da Lei Azeredo, o Marco Civil da Internet também voltou à pauta. Mas, desta vez, com modificações importantes em dois princípios considerados fundamentais. A votação estava marcada para o mesmo dia, 7 de novembro, mas os partidos PSDB, PSC e PDT pediram mais tempo analisar o novo texto. As modificações foram feitas na última hora para agradar as partes envolvidas no projeto e tentar impedir que a votação fosse adiada mais uma vez por falta de consenso – o que não deu muito certo. O novo texto, que já havia vazado mesmo antes de o relator Molon apresentá-lo, confirmava o que já havia sido sinalizado: as exceções da neutralidade seriam regulamentadas por decreto, com recomendações do CGI, deixando a Anatel, a contragosto, fora do jogo. A outra alteração, no entanto, pegou a alguns de surpresa. O artigo 15 mantinha o princípio de que provedores não poderiam ser responsabilizados por conteúdo de terceiros, a não ser que descumprissem ordem judicial. Um novo inciso, no entanto, determinava uma importante e recorrente exceção: pelo parágrafo segundo, 33 MADUEÑO,
16/05/2012. Disponível em: http://migre.me/mOcOX
o artigo não se aplicaria em casos de “infração a direitos de autor ou a direitos conexos”. Em outras palavras, para remover pirataria, não seria necessário recorrer à Justiça para autorização. Permaneceria em vigor, no entanto, a prática de notificação e retirada, adotada do modelo americano previsto no DMCA. Direito autoral é um campo minado e um verdadeiro universo à parte. Definir pirataria não é preto no branco. O que caracteriza plágio e o que é apenas uma referência? Até onde vai o limite da paródia? Quando dar crédito já é suficiente? São todas questões turvas, que estavam sendo discutidas em paralelo. No Ministério da Cultura, estava em estudo desde meados de 2010 uma reforma da Lei de direito autoral (LDA), já que a legislação vigente era datada de 1998, quando o uso da internet ainda não era disseminado no Brasil. Durante a tramitação do Marco Civil, fontes afirmavam que o novo texto da LDA já estava praticamente pronto, porém parado em algum ponto daquele castelo de cartas: entre os ministérios e a Casa Civil. Questionado no Twitter pelo músico Leoni sobre a mudança do artigo 15, Molon afirmou que a Ministra da Cultura, Marta Suplicy, pedira expressamente para que a lei não regulasse a questão autoral – o MinC tinha, afinal, seu próprio projeto em andamento para adequar os direitos autorais à internet. “A Ministra da Cultura veio hoje à Câmara e pediu que direitos autorais fossem expressamente excluídos do Marco Civil”34, respondeu o deputado. Alguns meses depois, reiteraria: “Por ser um tema complexo, todas as nuances do direito autoral serão apreciadas e debatidas, democraticamente, num projeto de lei próprio, que reformará a legislação atual.”35 A despeito da posição do Ministério da Cultura, o fato é que a mudança satisfazia a setores bem específicos, que exerceram forte pressão no Congresso para a inserção do parágrafo. “Quem levou essa demanda para eles foi todo o setor de entretenimento. Os atores mais ativos, nesse momento, eram tanto a Rede Globo como a Abert (Associação Brasileira de Rádio e TV) e o pessoal do setor de música”, afirma uma fonte da área de internet que sempre circulava no Congresso. “O Paulo Rosa, que representa a Associação Brasileira de Produtores de Disco (ABPD) pressionou bastante, junto com o setor autoral”, afirma. 34 DIAS,
07/11/2012. Disponível em: http://migre.me/mOefN 16/07/2013. Disponível em: http://migre.me/mOevP
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Assim, representantes da indústria de entretenimento, radiodifusão e de entidades americanas de copyright deixavam claro nos bastidores seu posicionamento contrário à necessidade de ordem judicial para a remoção de conteúdo pirata. Com um lobby intenso, que tinha a Rede Globo e seus figurões na linha de frente – como José Francisco de Araújo Lima, o “Chico da Globo”, e Paulo Tonet Camargo–, essa foi uma briga que o relator do Marco Civil decidiu não comprar. “Acho que a decisão de não tratar de direito autoral no Marco Civil foi um grande acerto, mas que deu trabalho de explicar, principalmente para quem defendia uma reforma de direito autoral já no Marco Civil”, afirma Molon. “No Parlamento, é muito importante você não aumentar o time dos adversários. Para não ter muita gente contra o Marco Civil, a gente teve que fazê-lo tratar de menos coisas. Se a gente quiser tudo, não vai conseguir nada”, diz o relator. “O que é o mais importante? Aí era consenso de que era a neutralidade.” A mudança não passou despercebida. Ativistas logo reagiram, reclamando que o artigo dava margem à censura. Associações também se posicionaram, tanto contra como a favor. A Associação Brasileira de Internet (Abranet) publicou, no dia 12 de novembro, uma carta com duras críticas à modificação: A ABRANET vem a público manifestar sua preocupação com as recentes propostas de alteração do Marco Civil da Internet, que distorcem o projeto inicial e, em última instância, colocam em risco direitos constitucionais de livre expressão dos usuários brasileiros de internet. A ABRANET entende que a retirada ou alteração do artigo 15 desfigura de maneira indelével o Projeto de Lei do Marco Civil da Internet. (...) A ABRANET entende que não compete ao provedor decidir sobre eventuais celeumas a respeito de todos os milhões de conteúdos veiculados em sua plataforma.36 No mesmo dia, a Associação Brasileira das Emissoras de Rádio e Televisão (Abert) rebateu e também publicou uma carta de posicionamento, mas desta vez em defesa do novo texto, já que ele atendia a uma demanda do próprio setor. Previa o texto alterado que somente depois de receber ordem 36 Disponível
na íntegra em: http://migre.me/mOfwg
judicial determinando a retirada do conteúdo pirata o site de postagem responderia pelos prejuízos que causasse. Não é necessária análise mais profunda para perceber o absurdo da situação. Sites que lucram elevadas quantias com a postagem de conteúdo, notadamente por meio da veiculação de publicidade (...), poderiam ignorar solenemente os apelos dos titulares das obras ilegalmente utilizadas, sem responder por isso, como se não lhes dissesse respeito. Ao criador que teve a obra pirateada restaria a judicialização do conflito – solução incompatível com a celeridade do mundo virtual e antagônica à tendência mundial de busca de solução de conflitos sem o acionamento do Poder Judiciário, já sobrecarregado.37 Entre lamentos e comemorações, a nova versão persistiu, mantendo a já adotada de notificação e retirada para remoção de conteúdo pirata. Para muitos, ceder foi uma fraqueza. Para outros, a única forma de salvar o projeto, alegando que seria impossível vencer o braço de ferro com a indústria cultural. Segurar o copyright no texto seria um cavalo de tróia. “O Marco Civil estava sendo esgrimado pela questão do conflito de direito autoral, das teles e outros interesses”, afirma Carlos Affonso. “Ficou muito claro que o projeto não passaria se ele tivesse que enfrentar uma posição de titulares de direito autoral. E, se passasse, acredito que iria sangrar até vir uma outra lei que poderia ser muito pior.” Boa parte das negociações de bastidores com as empresas foram feitas pelo pessoal do CTS. “A gente estava num lugar privilegiado para fazer essa mediacão, que era a academia”, diz Ronaldo Lemos. “O fato é que o Marco Civil estava em estado terminal. Ele não era votado porque havia interesses divergentes de vários players: as TVs abertas, as teles, as plataformas… cada um puxava para o seu lado. Aí naquele momento a gente percebeu que ou a gente fazia uma aliança ou o projeto iria morrer”, diz o advogado. “O que aconteceu foi que a gente conseguiu provocar essa discussão para eliminar as rusgas com o pessoal radiodifusão, especialmente sobre notice and take down”, diz Lemos. Os acordos nem sempre foram bem-recebidos, mas para ele, eram necessários. Lemos afirma 37 Disponível
na íntegra em: http://migre.me/mOfBk
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que, por causa do acordo que isentava casos de infração de direito autoral de passar pela Justiça, precisou ir a Brasília várias vezes, pois o grupo passou a ser “atacado” por ativistas. “O pessoal da sociedade civil tinha muito poder de voz, mas não sentava com ninguém e era radical contra as empresas.” Para ele, não era possível abraçar o mundo. “A minha visão é racional, eu gosto de fazer as coisas acontecerem”, diz Lemos. “O que aconteceu muito claramente é o Marco Civil tinha morrido e não tinha a menor chance de ser votado. Tinha muita gente contra. Como você vota uma lei dessas? É impossível! Aí a gente empreendeu uma negociação muito boa e muito difícil de ser feita, para alinhar pelo menos dois desses interesses.” O jogo de negociações se dava por todas as plataformas: telefone, e-mail, seminários e idas mensais a Brasília. “A gente ficou testando os limites, para ver até onde as empresas radiodifusoras e de tecnologia conseguiriam ir para a gente fechar.” Foi quando o Molon, conta ele, “teve a sacada de simplificar: vamos manter o texto, mas colocar um parágrafo dizendo que isso não se aplica ao direito autoral”, afirmou, dizendo que a ministra Marta Suplicy chamaria a discussão de direitos autorais para si, numa legislação própria incubada no MinC. Se a meta era minar a resistência da indústria cultural ao projeto, deu certo. A mudança de posicionamento pode ser observada em dois eventos. No dia 5 de novembro, foi realizado na sede da Academia Brasileira de Letras o seminário “Criadores em defesa de seus direitos autorais”, que reuniu representantes de entidades de escritores, cineastas, compositores e parlamentares. No encontro, foi lida uma nota oficial da academia sobre o projeto do Marco Civil, assinada pela presidente da ABL, Ana Maria Machado, também publicada no jornal O Globo. “Entre as premissas do projeto do Marco Civil da Internet, tal como está redigido, não há menção à garantia do direito autoral. Chamamos a atenção para a necessidade fundamental de respeito ao direito de remuneração do autor, o trabalhador que cria o texto”, dizia a nota. “Uma sociedade que não admite o trabalho escravo não pode se esquecer de que a utopia de distribuir bens gratuitamente a todos não deve se basear no sacrifício de uma única categoria de trabalhadores.”38 Do primeiro painel, “Implicações e impactos do mundo digital na indústria fonográfica, literária e audiovisual – o mercado da indús38 Disponível
na íntegra em: http://migre.me/mOg8V
tria criativa na Internet”, participaram, com mediação de Paulo Rosa (ABPD), Sydney Sanches (UBEM/UBC), José Francisco de Araújo Lima (Organizações Globo) e Roberto Feith (Ed. Objetiva/SNEL). Cinco meses depois, no dia 17 de abril de 2013, um seminário em Brasília realizado pela Abert e pela Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro mostrava que a mesa havia virado. Representantes do setor agora cobravam uma tramitação mais rápida do Marco Civil. Daniel Slaviero, presidente da associação, chegou a descrever o projeto de lei como “a Constituição da internet, o balizamento geral, a espinha dorsal da internet”. Por ora, os ânimos haviam se acalmado. Ativistas e entidades da sociedade civil, no entanto, não estavam satisfeitos, e o assunto voltaria à pauta meses depois. Em julho do ano seguinte, Sérgio Amadeu, para “retomar a ofensiva contra a remoção de conteúdos sem ordem judicial”, publicou um polêmico artigo no Portal Fórum, intitulado “A Globo quer desvirtuar o Marco Civil”39: Na calada da noite, lobistas da emissora inseriram um parágrafo no projeto de lei que permite a retirada de blogs, textos, imagens e vídeos sem ordem judicial, por suposta violação do direito autoral. Isso gerará uma indústria da censura privada. Também incentivará muitas denúncias vazias que promoverão o bloqueio do debate político por meio da alegada violação de direitos autorais. O sociólogo, professor e membro do CGI convocava os usuários a enviar um e-mail ao deputado Alessandro Molon pedindo a retirada do segundo parágrafo do artigo 15, “para evitar a censura instantânea e privada no Brasil.” E finalizava: “A Globo não está acima da lei.” No mesmo dia, 12 horas depois, Molon publicou, no mesmo veículo, uma espécie de direito de resposta40: Não tem sido fácil. Há mais de um ano luto pela votação do Projeto de Lei 2.126 de 2011, mais conhecido como Marco Civil da Internet. (...) De Brasília, tenho acompanhado as movimentações pela web pedindo sua votação, mas também 39 AMADEU, 40 MOLON,
16/07/2013. Disponível: http://migre.me/mRr6i 16/07/2013. Disponível em: http://migre.me/mOevP
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algumas outras informações equivocadas que foram espalhadas, nem sempre acompanhadas de verificação. Notei a menção específica a um trecho do texto: o parágrafo 2 do Artigo 15. Ao contrário do que está sendo sugerido, este parágrafo não foi resultado de uma mudança feita neste último mês, tampouco foi incluído sorrateiramente, “na calada da noite”, por grupos empresariais. O trecho foi inserido no Projeto de Lei em novembro do ano passado, após pedido da ministra da Cultura, e amplamente divulgado na época. Ele não altera em nada o que já é feito atualmente na internet em relação a conteúdo protegido por direito autoral. (...) Por ser um tema complexo, todas as nuances do direito autoral serão apreciadas e debatidas, democraticamente, num Projeto de Lei próprio, que reformará a legislação atual.
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Antes mesmo de publicar o artigo, Molon já havia entrado em contato com Amadeu: “Você não devia ter feito isso. Como assim na ‘calada da noite’? Eu sou o relator!”. Ele replicou: “Molon, nada contra você, mas você colocou o parágrafo. O deputado, então, falou que a ressalva a direito autoral fora um pedido da ministra Marta Suplicy. Não foi só o relator que contatou Sérgio Amadeu depois daquele artigo. Um assessor da ministra da Cultura ligou agendando uma reunião para discutir o assunto. Dias depois, se reuniram no escritório da Presidência em São Paulo, na Avenida Paulista, Sérgio Amadeu, Pedro Ekman, coordenador do coletivo de comunicação Intervozes, Beatriz Tibiriçá, do Coletivo Digital, Marta Suplicy e um assessor. “Ela disse que não tinha solicitado o parágrafo e que não tinha interesse naquilo”, diz Sérgio Amadeu. Disse, segundo ele, que a sugestão havia chegado até ela por representantes da Globo e da FGV-Rio, para que houvesse acordo e o projeto pudesse caminhar. Os participantes da reunião pediram uma redação que não incentivasse a censura a partir da suposta violação de direitos autorais. Dois meses depois, Sérgio Amadeu, numa reunião do CGI, faria o mesmo pedido à presidente Dilma Rousseff.
5. [A denuncia]
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A
o longo de seus quase três anos de tramitação na Câmara dos Deputados, o Marco Civil morreu e ressuscitou algumas vezes. Passava um tempo em coma, era ignorado, tinha votações canceladas por falta de quórum ou de consenso, até que algum acontecimento, acordo ou mudança no texto o trazia de volta à vida – e à pauta – e reanimava as expectativas de aprovação. Com a entrada do segundo parágrafo do artigo 15, que permitia que infrações a direitos autorais fossem removidas sem a necessidade de ordem judicial, saía da lista do grupo dos adversários um poderoso grupo: a indústria cultural e de copyright. Outro ponto delicado, porém, ainda estava a anos-luz de ser resolvido: a questão da neutralidade de rede. Dentro das paredes do
governo, as divergências pareciam, ao menos por ora, ter se esvaído. Em dezembro de 2012, no WCIT, conferência da União Internacional das Telecomunicações – órgão pertencente à ONU –, o ministro das Comunicações Paulo Bernardo firmou um compromisso com a neutralidade. Sobre a carta que seria produzida no evento, afirmou: “Se o documento final for contra a neutralidade, por exemplo, eu não assino, assim como tantos outros países não assinariam”41, disse ao Link Estadão. Enquanto isso, o setor de telecomunicações ainda encontrava problemas no texto de Molon, sobretudo em relação à neutralidade de rede. O Sinditelebrasil realizava em Brasília diversos eventos sobre o tema aos deputados, em que traziam convidados até de outros países para falar sobre o assunto. No dia 24 de abril, representantes das operadoras de telefonia apresentaram a um grupo de parlamentares uma proposta de acordo para votação do projeto de lei. O evento contou com a presença do secretário-geral da Associação Hispano-Americana de Centros de Investigação e Empresas de Telecomunicações (Ahciet), Pablo Bello, que participou ativamente da construção da lei chilena sobre neutralidade da rede. Os empresários defendiam a exclusão da palavra “serviços” do texto. De acordo com o diretor de Banda Larga e Infraestrutura do SindiTelebrasil, Alexander Castro, a remoção do termo acabava com possíveis interpretações de que as teles teriam de oferecer “full internet” com capacidade ilimitada. Outra alteração proposta na reunião, com cerca de 25 parlamentares – incluindo o relator do Marco Civil, Alessandro Molon –, era a mudança do terceiro parágrafo do mesmo artigo nono, que vetava as prestadoras de monitorarem, analisarem ou fiscalizarem conteúdo dos pacotes que trafegam em suas redes. “Não existe lugar no mundo com essa realidade”42, disse Castro. Ele afirmou que, sem a possibilidade de ler os cabeçalhos dos pacotes, as prestadoras não poderiam filtrar spam. “É preciso monitorar; não para fins de priorizar um em detrimento do outro, mas de verificar a qualidade, que tipo de tráfego está passando na rede, para ajustar na rede aquilo que for necessário”, defende. “Assim, podemos fazer a gestão da rede e evitar ociosidade ou congestionamento.” Para o parágrafo, o setor propunha uma nova redação: “Na provi41 RONCOLATO, 42 Disponível
03/12/2012. Disponível em: http://migre.me/mOm0v em: http://migre.me/mOmrB
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são de conexão à internet, onerosa e gratuita, bem como na transmissão, comutação ou roteamento, é vedado bloquear, monitorar, filtrar, analisar ou fiscalizar o conteúdo da informação, ressalvados a solicitação ou o livre consentimento do usuário e os requisitos técnicos à prestação adequada dos serviços contratados”. Com as discordâncias, o Marco Civil entrou num novo período de coma. Não estava na pauta da Câmara e, claramente, não era uma prioridade. “A gente chegou a ouvir da liderança do PT na Câmara, do chefe de gabinete do deputado Arlindo Chinaglia, que o governo não tinha interesse em votar, e só iria votar quando tivesse consenso, porque não era prioritário”, conta uma fonte da área de tecnologia. Porém, se os deputados não estavam dando a mínima atenção ao projeto de lei, alguém estava – e não de baixo calibre. No dia 16 de maio, no Rio de Janeiro, Tim Berners-Lee, pai da web e criador da World Wide Web Foundation, defendeu a aprovação do projeto e não poupou elogios à iniciativa brasileira. “É uma proposta boa porque é centrada nos direitos humanos, mais do que ser um projeto técnico”, disse ele na 22º Conferência Internacional WWW. O físico britânico frisou que uma internet livre é fundamental para o exercício da democracia. “Precisamos disso tanto quanto precisamos de uma imprensa livre”, disse Lee. “A web é o reflexo da sociedade. É por onde as pessoas se expressam. Se controlarmos isso vamos perder o ponto mais importante da democracia: o direito de expressão”43, afirmou. Também esteve presente no debate o relator Alessandro Molon, que frisou que era necessário convencer as lideranças partidárias a recolocar a proposta na pauta do Plenário, já que estava “congelada” desde novembro do ano anterior – após sete tentativas frustradas de votação. “Na próxima semana vou propor ao PT que leve a discussão para a reunião de líderes e que busque convencer o colégio a pautar”, disse o deputado. “Lutei muito para ser o relator desse projeto porque, para mim, o futuro da democracia, não só no Brasil, vai passar pela internet. E o futuro da internet passa pela neutralidade de rede.”44 Não deu certo: o mês passou e o projeto seguia engavetado. Assim ficaria por mais muitos meses – há quem arrisque anos. Até que, em junho, um acontecimento externo mudou a sorte e o curso do debate. Um jovem americano de 29 anos, nascido na Carolina do Norte, abandonava sua família, amigos, namorada, emprego estável e dava 43 GROSSMANN, 44 Idem.
17/05/2013. Disponível em: http://migre.me/mPxsA
a si mesmo a sentença de possivelmente viver o resto da vida longe de tudo e todos, com medo de ser preso ou morto, para revelar uma prática “apavorante”. Delator, patriota, traidor, herói. Foram muitas as expressões usadas para descrever o ex-agente da NSA (Agência Nacional de Segurança dos Estados Unidos) Edward Snowden. Ele, que trabalhara dos 23 aos 29 anos na área de inteligência e TI do governo norte-americano, vazou documentos ultrassecretos de seu país e escancarou algo que já bem se desconfiava: todos estão sendo ou podem ser vigiados, o tempo todo. “Hackeamos todos em qualquer lugar.” #ThankYouSnowden “Eu sou um membro sênior da comunidade de inteligência...” – assim começava um dos e-mails enviados por Snowden à premiada e experiente documentarista americana Laura Poitras. No remetente, apenas Verax, que significa verdadeiro, em latim. Poitras não era o destinatário inicial planejado por Snowden para receber a mensagem. O plano era vazar os documentos que havia recolhido sobre a NSA para o jornalista americano Glenn Greenwald, que trabalhava para o jornal britânico The Guardian como colunista freelancer. Ele, que morava no Rio de Janeiro, era um respeitado comentarista político, conhecido por ser um tanto polêmico e defensor assíduo dos direitos civis. Porém, as primeiras tentativas de contato de Snowden com o jornalista, em dezembro de 2012, não foram lá bem-sucedidas. “Tenho umas coisas que podem lhe interessar”, dizia a primeira mensagem enviada. Mas o ex-técnico solicitava a Greenwald que instalasse em seu computador um programa de criptografia, para garantir a segurança da conversa. Ocupado e desinteressado, Greenwald, que se definia como um verdadeiro “analfabeto em tecnologia”, não deu continuidade ao papo. Para chamar a atenção do jornalista, o ex-agente recorreu a Poitras, conhecida pela produção de uma trilogia de filmes sobre os Estados Unidos após o 11 de setembro. Próxima a Greenwald, foi ela quem o convencera de que a fonte, com quem manteve contato por quatro meses, poderia ser “quente”. Após receber alguns slides sobre um dos programas de coleta de dados, o Prism, Poitras convenceu Greenwald a embarcar junto com ela para Hong Kong, para que ambos pudessem encontrar a fonte pessoalmente. Em 20 de maio de 2013, Snowden embarcou em um voo para Hong Kong, se hospedou num hotel e chamou os jornalistas para
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uma conversa. Lá, explicou como a NSA capturava dados de milhões de norte-americanos, e não apenas de alvos estrangeiros; que a inteligência britânica, a GCHQ, era parceira da NSA e tinha ligado interceptores de dados aos cabos de fibra óptica submarinos responsáveis pelo tráfego de dados de telefone e de internet de pessoas do mundo todo; por fim, falou sobre como as grandes empresas de tecnologia colaboravam com a agência. Depois da conversa, Poitras, Greenwald e, sobretudo, Snowden, tinham uma certeza: não podiam mais voltar atrás. No dia 6 de junho, o Guardian publicou a primeira matéria45 sobre o caso. As maiores agências de inteligência do mundo se viram diante do vazamento do século. O fato repercurtiu no mundo todo. Em 9 de junho, Snowden saiu das sombras e, voluntariamente, se mostrou ao público em vídeo, em reportagem do The Guardian. O ex-agente começou a entrevista se identificando: “Olá, meu nome é Edward Snowden, tenho 29 anos, e trabalho para a Booz Allen Hamilton como analista de infraestrutura para a NSA no Havaí”. Depois de revelar o esquema de vigilância, justificou a atitude radical: “Eu não quero viver em um sociedade que faz esse tipo de coisas.” Snowden foi acusado formalmente pelas autoridades federais dos Estados Unidos de espionagem, roubo e transferência de propriedade do governo. A Casa Branca solicitou sua extradição de Hong Kong, mas não obteve sucesso. Em 23 de junho, Snowden embarcou em um voo comercial de Hong Kong para Moscou, sob proteção da jornalista britânica e editora do WikiLeaks Sarah Harrison. Tinha como destino final o Equador, mas ficou preso na área de trânsito do aeroporto de Moscou, pois os Estados Unidos cancelaram o seu passaporte. “Eu nunca quis ficar na Rússia. Mas (...) eu não pude mais viajar. Fizeram de propósito para poder dizer: ‘Ele é espião russo’”, afirmou Snowden ao Fantástico46, da Rede Globo. O ex-agente permaneceu no aeroporto até o dia 1º de agosto, quando recebeu asilo temporário no país. Em troca, o presidente Vladimir Putin exigiu que ele parasse de vazar documentos norte-americanos. O caso gerou uma comoção geral, sensibilizando usuários e governos. Ainda estavam por vir, no entanto, novas revelações que estremeceriam a relação entre o Brasil e os Estados Unidos. No dia 6 de Glenn. NSA is collecting phone records of millions of Verizon customers daily. In The Guardian, 06/06/2013. Disponível em: http://migre.me/mPyfS 46 Disponível em: http://migre.me/mPz0U 45 GREENWALD,
julho, um mês depois da publicação da primeira reportagem do The Guardian sobre o assunto, o jornal O Globo47 revelou que os Estados Unidos tiveram acesso a dados de usuários brasileiros. A reportagem não cravava um número exato, mas afirmava que o País, em comunicações vigiadas, havia ficado logo atrás dos Estados Unidos, que por sua vez tinha tido 2,3 bilhões de ligações e mensagens de e-mail espionadas. O Brasil era de longe o país mais espionado da América Latina, interceptado por pelo menos três programas diferentes. No dia seguinte, o Itamaraty pediu explicações ao governo americano sobre as informações divulgadas. O buraco era mais embaixo, e o cerco, mais pessoal. No dia 1º de setembro, o Fantástico48 revelou que a presidente Dilma Rousseff e seus assessores haviam tido suas comunicações pessoais interceptadas pela NSA. Na semana seguinte, o programa divulgou documentos que indicavam invasão de rede privada da Petrobrás, para a obtenção de informações sobre o petróleo brasileiro. O ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, se reuniu com a presidente para discutir como o País reagiria às revelações de espionagem. O governo brasileiro decidiu tomar três medidas: o Ministério das Relações Exteriores chamaria o embaixador americano no Brasil, Thomas Shannon, para que desse novos esclarecimentos; cobraria explicações formais do governo dos Estados Unidos e recorreria aos órgãos internacionais, como a ONU, para discutir a violação de direitos de autoridades e cidadãos brasileiros. “Se forem comprovados esses fatos, nós estamos diante de uma situação que é inadmissível, inaceitável, porque eles qualificam uma clara violência à soberania do nosso País”49, disse Cardozo. “O Brasil cumpre fielmente com suas obrigações e gostaria que todos os seus parceiros também as cumprissem e respeitassem aquilo que é muito caro para um país, que é a sua soberania.” As denúncias de Snowden não foram exatamente uma novidade para o governo brasileiro. “Sempre soubemos ou suspeitamos que havia espionagem”, diz o ministro das Comunicações Paulo Bernardo. “Mas o fato de as denúncias revelarem tantas minúcias, como espionagem da presidenta da República, da Petrobrás e de órgãos governamentais no Brasil e em outros países, causou grande indignação. Isso mostra a ausência de limites das agências americanas, somada ao fato 47 GLENNWALD, 48 Disponível 49 Idem.
06/07/2013. Disponível em: http://migre.me/mPz3X em: http://migre.me/mPz8V
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de que não há como justificar esses atos como necessários ao combate ao terrorismo internacional”, critica o ministro. “Somos um país com mais de 200 anos de amizade com os Estados Unidos da América, não há justificativa possível, a não ser o desejo de trapacear nas negociações diplomáticas ou, no caso da Petrobrás, tentar obter informação de caráter industrial ou comercial.” Ainda que a espionagem já fosse de conhecimento do governo, em maior ou menor grau, o Palácio do Planalto precisava dar uma resposta. Era uma oportunidade de se posicionar firmemente no cenário internacional. A oportunidade não foi desperdiçada. A presidente Dilma, então, no dia 17 de setembro, cancelou sua visita de Estado aos Estados Unidos marcada para o dia 23 de outubro. No dia anterior, Obama telefonara para Dilma às 18h30 para tratar do assunto. Nem o Itamaraty e nem a Presidência revelaram detalhes da conversa dos dois, que durou cerca de 20 minutos. A grande resposta brasileira ainda estava por vir. Na Plenária da 68ª Assembleia Geral das Nações Unidas, num tom veemente, a presidente Dilma Rousseff acusou os Estados Unidos de ação ilegal e antidemocrática, por violarem os direitos humanos, a soberania dos países e as liberdades civis. Imiscuir-se desta forma na vida de outros países fere o Direito Internacional e afronta os princípios que devem reger as relações entre eles, sobretudo entre nações amigas. Jamais pode uma soberania firmar-se em detrimento de outra soberania. Jamais pode o direito à segurança dos cidadãos de um país ser garantido mediante a violação de direitos humanos fundamentais dos cidadãos de outro país. Não se sustentam argumentos de que a interceptação ilegal de informações e dados destina-se a proteger as nações contra o terrorismo.50 Ao considerar o monitoramento em massa da Agência de Segurança Nacional (NSA) uma “afronta”, ela propôs que a ONU estabelecesse um “marco civil multilateral para a governança e o uso da internet”, e listou medidas que garantiriam a proteção do tráfego de dados na rede: liberdade de expressão e privacidade, governança democrática, multilateral e aberta, universalidade, diversidade cultural e neutralidade de rede. O objetivo da regulamentação, segundo Dilma, era impedir que a internet fosse “instrumentalizada como arma 50 Disponível
na íntegra em: http://migre.me/mPztD
de guerra”. Não coincidentemente, eram princípios defendidos no Marco Civil da Internet. Dias depois, o projeto de lei seria novamente citado pela presidente, que tuitou: “Nossa proposta p/ um marco civil internacional será enviada à ONU assim q nosso marco civil da internet for aprovado.” Escreveu ainda: “A votação do nosso projeto do Marco Civil da Internet deve ocorrer nas próximas semanas.” No susto, o projeto voltava ao jogo. Snowden o despertara, após meses abafado pela letargia parlamentar. Não trouxe consigo o consenso. As divergências continuavam, os lobbies persistiriam, os atritos se aguçariam, mas um elemento novo mudava as regras e trazia ao debate a variável tempo: urgência constitucional. Deadline Depois das denúncias do ex-técnico da NSA sobre o megaesquema de vigilância, e toda a sua atenção especial sobre o Brasil, muitas foram as medidas discutidas no Palácio do Planalto para reforçar a segurança das comunicações, fortalecer a privacidade do usuário e, sobretudo, do poder público. Entre as propostas, criar um serviço de e-mail nacional criptografado, comprar um satélite, obrigar burocratas em Brasília a usar plataformas de e-mail seguras e até implantar um cabo de fibra óptica próprio para se comunicar com países vizinhos. Outra sugestão, que ganharia mais força, era obrigar empresas de internet a armazenar dados de usuários no Brasil, com datacenters locais – medida que geraria muita controvérsia. Mas as atenções se voltaram a um projeto que estava na gaveta, meio esquecido e longe de ter qualquer prioridade. Do dia para a noite, o PL 2126/2011 se transformava numa possível resposta legislativa para o ambiente online, que se mostrara um campo minado e precisamente mapeado. “Não tem um tal do Marco Civil, que fala de informática? O que é mesmo? Do que se trata? Impede a espionagem?” Aos poucos, o projeto de lei voltava às conversas, para então retornar à pauta do Congresso. “A aprovação do Marco Civil da Internet, na Câmara e no Senado, é a resposta rápida que o Congresso brasileiro pode dar aos quase 100 milhões de internautas, garantindo a sua segurança na rede”51, 51 Disponível
em: http://migre.me/mPzKa
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afirmou Molon dias depois das denúncias de interceptação das comunicações da presidente Dilma e de seus principais assessores. Depois de uma reunião no Palácio do Planalto com o ministro das Comunicações, Paulo Bernardo, o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, e o relator do PL, Alessandro Molon, Dilma pediu ao Congresso, no dia 11 de setembro, que fosse concedido regime de urgência na tramitação do Marco Civil. “Com o caso Snowden, a Dilma chamou o debate para ela”, diz Ronaldo Lemos. “E a única resposta que tinha credibilidade era o Marco Civil, que justamente não era um iniciativa governamental – tinha surgido da sociedade.” A solicitação foi publicada no Diário Oficial da União e o relógio já estava correndo: a Câmara teria 45 dias para votar o projeto, e o Senado, mais 45. Se o prazo estourasse, o PL passaria a trancar a pauta de deliberações da Casa em que estivesse tramitando. Se não votassem o Marco Civil, não se votava mais nada.
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O caso Snowden mexeu com a presidente Dilma de forma bem pessoal. Não apenas pelas denúncias de vigilância sobre seus próprios e-mails e telefonemas, mas pela cobrança e expectativa de como o Brasil responderia ao que fora tão amplamente divulgado. O País teria o desafio – ou a oportunidade, se assim encarasse – de se posicionar firmemente no cenário internacional e de aprovar uma legislação pioneira que garantisse direitos aos usuários da rede. A presidente ficou de fato interessada no tema e decidiu mergulhar no assunto, como atestam pessoas próximas. Participou de diversas reuniões com o deputado Molon, em que fazia muitas perguntas, tentando entender cada ponto do texto. Na cabeceira, o livro “Império da Comunicação”, de Tim Wu, professor universitário, ativista e referência no estudo da neutralidade de rede. Dilma também se interessou em conhecer melhor o trabalho do Comitê Gestor da Internet (CGI), com quem agendou uma reunião no dia 16 de setembro, para discutir a governança da rede e também o Marco Civil. Estavam presentes membros de todos os ministérios que participam do comitê. Logo nos primeiros minutos, Dilma fez uma pergunta sobre o papel da Icann (Corporação da Internet para Atribuição de Nomes e Números) na governança, que logo foi respondida. Em seguida, ela emendou outra: “Mas por que vocês são contra a ONU controlar
a internet? Após alguns segundos de indecisão, um olhando para o outro para ver quem responderia, o sociólogo, ativista e membro do CGI Sérgio Amadeu levantou a mão. “Presidente, imagina a gente aprovar um protocolo de internet num Plenário da ONU, ou numa comissão como o Conselho de Segurança, com poder de veto e com Estados autoritários. Imagina a gente segurando a internet dessa forma”, diz Amadeu. “Nós queremos um modelo como o do Comitê Gestor, de gestão mundial da internet. Que sim, tem Estados, mas não tem só Estados.’’ Ela concorda. “O saldo foi positivo, não só por conta das discussões sobre o Marco Civil, mas em relação à governança da internet”52, disse ao fim da reunião Veridiana Alimonti, advogada do Idec e membro do CGI. “É preciso diálogo com a academia, as empresas e a sociedade civil, para que a solução não seja pautada apenas pelo governo.” Outro assunto abordado na reunião, que já havia sido cantado no mês anterior pelo ministro Paulo Bernardo, foi a guarda de dados no Brasil. O governo estava decidido de que os dados de brasileiros sob a responsabilidade do governo deveriam ser armazenados no País, como os dados da Receita Federal, por exemplo. Já os dados sob responsabilidade de empresas de internet, como Google e Facebook, também deveriam, aos olhos do governo, sofrer de alguma obrigação de aqui permanecerem. A dúvida era se essa solicitação seria colocada já no Marco Civil ou se a questão seria tratada exclusivamente em uma lei específica de dados pessoais. Isso porque, apesar de ter voltado à tona com a revelação de um esquema de vigilância e coleta de dados, o Marco Civil, por si só, não impedia a espionagem. No entanto, o projeto determinava princípios e diretrizes para leis mais específicas que viriam – como o anteprojeto de dados pessoais, que também havia passado por consulta pública logo após o Marco Civil, mas ainda estava empacado em algum ponto do castelo de cartas, entre o Ministério da Justiça e a Casa Civil. Membros do CGI explicaram à presidente que o Marco Civil era uma lei mais principiológica, basilar, que garantia direitos fundamentais e lançava bases para que outros grandes temas sob seu grande guarda-chuva fossem regulamentados em leis específicas. O Marco Civil, por exemplo, apontava a privacidade como um princípio, e dava um norte de como garanti-lo: o texto determinava que os provedores de conexão só guardassem os logs (dados de aces52 PAPP,
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so) dos usuários por um ano, uma vez que muitas empresas guardavam por tempo indeterminado. Já a lei de dados pessoais detalharia como deveriam ser geridos esses bancos de dados e as penalizações em casos de violação, por exemplo. Para o governo, nem o Marco Civil e nem uma lei de dados pessoais eram suficientes – queriam dados de usuários brasileiros hospedados no País. Empresas de internet e boa parte dos ativistas eram rigorosamente contra, alegando que a medida encareceria as operações de internet no País sem, no entanto, bloquear a espionagem. “O único benefício é econômico, vai haver mais investimento em tecnologia no Brasil. Mas, como não temos um arcabouço jurídico para a proteção de dados, não teria quem regulasse quem tem acesso ou não às informações desses datacenters”53, disse Paulo Rená quando questionado sobre a proposta. Para ele, bem como para o CGI, a medida precisava ser mais debatida e não deveria entrar no Marco Civil. Mas entrou.
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53 PAPP,
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6. [O conchavo]
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tempo estava passando. O Marco Civil tramitava em regime de urgência, e o prazo para a votação na Câmara, 28 de outubro, se aproximava. Com o fator prazo no jogo, crescia o clima de tensão, bem como as disputas nos bastidores. A questão principal deixava de ser quando o Marco Civil seria votado, mas sim qual texto seria posto em votação. A movimentação das operadoras de telefonia se intensificava, na pressão constante para flexibilizar a defesa da neutralidade de rede como estava descrita no projeto de lei. O governo sinalizava que obrigaria empresas de internet a armazenar dados de usuários no Brasil, o que gerava amplas críticas. Ninguém sabia ao certo qual texto iria a Plenário, o que passou a incomodar e a mobilizar a sociedade civil.
Para articular tuitaços, manifestos e uma série de outras iniciativas pela rede, dezenas de organizações da sociedade civil se uniram para criar o movimento Marco Civil Já. O objetivo era acompanhar a tramitação de perto e mobilizar usuários para cobrar os parlamentares da votação. No dia 6 de outubro, foi publicado um manifesto em defesa do projeto, com duras críticas ao lobby das operadoras de telefonia e à indústria de direitos autorais, por conta do dispositivo que isentava supostas infrações de copyright de passar por ordem judicial antes da remoção, e reafirmavam os pilares inicialmente propostos – que, por sua vez, tinham nascido do debate com a própria sociedade civil. Assinavam o documento coletivos e associações como o Idec, Proteste, Intervozes, Artigo 19, Associação do Software Livre, Coletivo Digital e Mídia Ninja. Graças às recentes denúncias de espionagem reveladas por Edward Snowden, o Marco Civil passou a tramitar em regime de urgência e terá que ser votado ainda neste mês de outubro. Os principais entraves à sua aprovação são os interesses das grandes empresas de telecomunicações. As operadoras querem a autorização legal para monitorar, filtrar e bloquear as aplicações e mensagens que trocamos online, a fim de prever nosso comportamento na rede para criar dificuldades e vender facilidades na nossa navegação. (...) O poderoso lobby da indústria de direitos autorais quer a todo custo corromper o texto do Marco Civil para proteger o seu modelo de negócios e esse lobby está surtindo efeito. A recente inclusão do 2º parágrafo do artigo 15 é prova disso, ele criou brechas para a retirada de conteúdo sem ordem judicial, o que privilegia acordos secretos entre essa indústria e os provedores, dando a eles, agentes privados, o poder de definir se um conteúdo é infringente ou não, o que deveria caber à Justiça. Defendemos, portanto, a aprovação do Marco Civil da Internet comprometido com a integridade dos três princípios fundamentais (...): NEUTRALIDADE DA REDE, PRIVACIDADE e LIBERDADE DE EXPRESSÃO. PELA LIBERDADE DE EXPRESSÃO, DIVERSIDADE E PRIVACIDADE NA INTERNET!54 54 Disponível
na íntegra em: http://migre.me/mPCjm
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Uma semana antes de o prazo vencer, no dia 21 de outubro, a Associação de consumidores (Proteste) e o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) publicaram uma carta aberta em defesa do Marco Civil, apresentando preocupações com as possíveis mudanças do texto e exigindo a manutenção dos chamados “princípios fundamentais”: privacidade, neutralidade de rede e liberdade de expressão. Endereçada a deputados e senadores, a Proteste denunciava o “forte lobby que as operadoras de telecomunicações vêm fazendo”, manifestava a necessidade de se garantir “a liberdade de expressão, e que os conteúdos publicados na internet só possam ser retirados por ordem judicial” e defendia “a manutenção do Comitê Gestor da Internet (CGI) para coordenar e integrar todas as iniciativas de serviços de internet no país”.
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Uma semana depois, no dia 28 de outubro, o prazo venceu. Mesmo assim, a votação foi novamente adiada. O presidente da Câmara, Henrique Alves (PMDB-RN), anunciou que a decisão viera a pedido de líderes da base governista, que alegaram falta de consenso sobre a redação do texto. Seria criada um Comissão Geral para discutir o PL na semana seguinte e, quem sabe, fazer uma nova tentativa de votação. Mas havia um detalhe: enquanto não deliberassem sobre o Marco Civil, os deputados não poderiam votar mais nada. Ricardo Izar (PSD-SP), um dos líderes da oposição, afirmou que continuaria trabalhando para “conquistar mais deputados” até o dia da votação. “Mas sei que será difícil”55, disse ao Link Estadão. Opositores ao projeto insistiam que não tinham tido tempo suficiente para discutir seus pontos críticos. Na semana anterior, Antonio Carlos Valente, presidente da Telefônica/Vivo Brasil e da Associação Brasileira de Telecomunicações (Telebrasil), havia dito ao Estado de S. Paulo que a discussão do Marco Civil ainda não havia se esgotado. “Um dos pontos que houve concordância é que precisamos discutir mais esse tema”56, afirmou. No dia 29, quando o projeto passou a trancar a pauta da Câmara, Molon rebateu: “Eu considero que o Marco Civil da Internet já foi debatido suficientemente e é normal que vá a votação sem consenso ab55 RONCOLATO, 56 CIARELLI
29/10/2013. Disponível em: http://migre.me/mPCqg e NEDER, 22/10/2013. Disponível em: http://migre.me/mPCuE
soluto”, disse o deputado. O relator afirmou que continuava aberto ao diálogo, desde que isso não implicasse alterar o artigo da neutralidade da rede, que ele definia como o “coração” do Marco Civil. “Esse é o tema principal do projeto e que vai beneficiar os mais de 100 milhões de internautas, embora limite os lucros das operadoras de telecomunicações”, afirmou. Mesmo depois de mais de dois anos de tramitação, o emaranhado de interesses difusos bloqueava qualquer tentativa de consenso. Prova disso foi a enxurrada de 34 emendas apresentadas ao projeto depois que passara para o regime de urgência. Caberia a Molon analisá-las e avaliar se seriam de alguma forma incorporadas ao texto. “Emendas que distorçam, desfigurem a neutralidade ou que afetem qualquer princípio do projeto serão rejeitadas”, cravou. Os datacenters A expectativa quanto ao novo texto era grande, para saber quais demandas seriam atendidas e quais seriam refutadas. Uma semana depois de o Marco Civil ter passado a trancar a pauta da Câmara, Molon divulgou uma novo substitutivo do projeto. A fim de acalmar os ânimos e caminhar rumo à votação, o PL saltou de 25 para 31 artigos e, como esperado, incorporava a demanda do governo para reagir à espionagem norte-americana, a despeito das críticas das empresas e da sociedade civil: um novo artigo obrigava provedores de aplicações a guardar dados de brasileiros em servidores localizados no País. Molon afirmou que até tentara convencer a presidente Dilma a não vincular a proposta ao Marco Civil – e deixar o tema para ser debatido na Lei de Proteção de Dados Pessoas, que estaria tramitando na Casa Civil –, mas ela, bem como o ministro Paulo Bernardo, foram categóricos em inserir o dispositivo no projeto atual. O artigo 12 estabelecia que o Executivo, por meio de decreto, poderia “obrigar os provedores de conexão e de aplicações de internet” que exercessem atividades de forma “organizada, profissional e com finalidades econômicas” a instalar datacenters (centrais de dados) ou usar servidores já existentes no Brasil para armazenar dados de seus usuários brasileiros. A empresa que contrariasse a medida poderia levar multa, ter suas operações suspensas ou até mesmo proibidas em território nacional. Para não afugentar os serviços de internet em exercício no País,
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ou inibir novos players, o decreto do Executivo, explicou Molon, consideraria o faturamento e o porte das empresas em questão. Assim, a medida só valeria a empresas de grande porte que tivessem condições de arcar com os custos – que, no entanto, não seriam poucos. “É possível que o artigo 12 seja suprimido em Plenário, mas eu vou defender a sua permanência”, disse o deputado. Além dessa exigência, o artigo oitavo anulava qualquer possibilidade jurídica de um provedor de aplicação, como Google ou Facebook, se negar a obedecer à legislação brasileira em caso de alguma controvérsia gerada no País. Esse trecho, somado à exigência de armazenamento local de registros, era uma resposta clara ao Google, que meses antes havia se recusado a fornecer dados de brasileiros ao Judiciário, com quebra de sigilo do serviço de e-mails Gmail, em razão de os datacenters estarem localizados nos Estados Unidos. Na época, em junho de 2013, o Google defendera que, para o Brasil utilizar esses dados em investigações criminais, seria preciso recorrer ao Tratado de Assistência Judiciária Mútua entre o Brasil e os Estados Unidos, conhecido pela sigla em inglês MLAT. Por esse tratado, a solicitação deve passar pelos ministérios da Justiça brasileiro e americano, além do Judiciário dos Estados Unidos. Apesar de o Brasil já ter recorrido ao tratado outras vezes, fontes afirmam que ele nunca foi bem aceito pelo Ministério Público e pela Polícia, que por sua vez argumentam que a quebra de sigilo pode demorar meses, prejudicando o ritmo da investigação. Sobre a questão dos datacenters, as empresas de internet já vinham se mobilizando de forma contrária à medida logo após as revelações de Snowden, quando o governo começou a se mostrar favorável à hospedagem local como forma de endurecimento. Representantes dessas empresas foram a Brasília, como já era de costume, para expor seu posicionamento. Além de alegarem o encarecimento das operações e a criação de uma barreira de entrada para novas empresas no ramo, tanto pelo custo como pela logística necessária para a manutenção de datacenters locais, também afirmavam que a medida em si não seria eficaz contra a espionagem, uma vez que centralizar as informações em um só ambiente comprometeria ainda mais a segurança e facilitaria ataques certeiros aos dados brasileiros – o que seria dificultado se os dados estivessem fragmentados e espalhados ao redor do mundo. A presidente, no entanto, estava irredutível, bem como o ministro Paulo Bernardo, que era “alguém difícil de se conversar”, segundo fontes do setor. O argumento era dar uma resposta política aos Esta-
dos Unidos e ter mais controle sobre a operação de empresas estrangeiras, sobretudo americanas, no Brasil. O setor rebatia: “Se vocês querem forçar as filiais de empresas estrangeiras a seguir a legislação brasileira, então falem que o objetivo é esse, porque proteger contra a espionagem nada disso vai resolver”, disse um fonte da área. “Nas audiências públicas de que participei na Câmara, no Senado e na Polícia Federal ficava muito claro. Eles queriam muito mais entender se as empresas brasileiras estavam ou não colaborando com a própria Justiça brasileira do que entender se esses dados iriam de fato para as autoridades americanas”, afirmou. “Acham que, se a empresa possui uma filial no Brasil, tem a obrigação de cooperar. É uma tese válida, que talvez uma dia venha a ser resolvida no Supremo. Mas a empresa mantém a postura de que existe um conjunto de leis e não dá para cumprir essa ordem diretamente.”
Além da polêmica questão dos datacenters, o substitutivo trazia outras alterações. A nova redação, segundo Molon, fortalecia ainda mais a neutralidade de rede, para evitar que houvesse qualquer brecha para a quebra do princípio de tratamento igualitário. Sobre as exceções da neutralidade, em que poderia haver discriminação do tráfego, o texto dizia que a operadora não poderia causar “dano aos usuários”, estaria obrigada a “agir com proporcionalidade, transparência e isonomia” e a “oferecer serviços com condições comerciais não discriminatórias (…) ou anticoncorrenciais.” Outro ponto controverso reformulado na nova versão foi a responsabilização de provedores quanto a conteúdo de terceiros em caso de violações a direito autoral, tratada no artigo 15 do projeto de lei. O trecho virou um novo artigo, o 20, como resposta às duras críticas da sociedade civil à versão anterior, que alegavam que o mecanismo incitava a censura. O novo texto dizia que os casos de infração de direitos de autor dependeriam de “previsão legal específica”, que deveria “respeitar a liberdade de expressão e demais garantias previstas no art. 5º da Constituição Federal” – dentre elas, a liberdade de expressão. Em outro trecho, especificava que, até a devida aprovação da nova Lei de Direito Autoral, os casos de infração de autor continuariam a ser disciplinadas pela “legislação autoral em vigor”. O objetivo, segundo Molon, era deixar claro que a regra favoreceria a liberdade de expressão e não incitaria “uma espécie de censura privada”, explicou.
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A força das teles
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Desde a concepção do Marco Civil, as operadoras de telefonia já consideravam a neutralidade de rede um ponto delicado. Na época da consulta pública, em 2009 e 2010, suas contribuições – enviadas quase sempre nos últimos dias e em um documento à parte, e não na plataforma do blog – já faziam ressalvas ao princípio, alegando que era um conceito muito novo, que traria custos extras e poderia dificultar a viabilização de diferentes modelos de negócio. Logo que assumiu a relatoria do projeto, em 2012, o deputado Molon já percebeu que empresas de telecomunicações, com forte presença no Congresso e institucionalmente representadas pelo Sinditelebrasil, dariam trabalho e se empenhariam para fazer alterações no artigo nono. Já em julho, quando foi apresentada a primeira versão do texto à Comissão Especial, Eduardo Levy, presidente do sindicato que representa o setor, reuniu-se com o ministro Paulo Bernardo em busca de apoio para flexibilizar a neutralidade. As reuniões só estavam começando. No Congresso, representantes do sindicato e das empresas de telefonia tentavam convencer deputados e assessores a pressionar por mudanças no artigo nono. Em Brasília, organizavam eventos, seminários e até cafés da manhã para expor a bandeira do setor. “Nós, como qualquer outro setor, incluindo o terceiro setor, o de radiodifusão e os provedores de aplicação, como as empresas americanas Google e Amazon, estávamos lá para apresentar nossa posição”, diz Alexander Castro, do Sinditelebrasil. “Convidávamos os parlamentares para participar de fóruns que a gente patrocinava. Nós levamos o ex-ministro do Chile, que participou da legislação de neutralidade de rede no país, membros da comunidade europeia… para mostrar o que era de fato.” Mas as teles estavam prestes a ganhar um porta-voz dentro do Congresso, que reverberaria ainda mais a contestação à neutralidade: o deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ), líder do PMDB na Câmara, que tinha relação com o setor de tempos passados. Durante o governo Collor, Cunha havia sido presidente da Telerj, operadora estatal do Rio de Janeiro, que por sua vez integrava o sistema Telebrás, privatizado no final dos anos 1990. A Telerj foi adquirida pela Telemar e depois virou a Oi, empresa que, hoje, tem presença forte e constante no Congresso Nacional. Nos bastidores, deputados e assessores comentaram que a atuação da Oi era uma das mais evi-
dentes contra o Marco Civil. Aos parlamentares, assinar embaixo da Constituição da internet poderia, por exemplo, colocar em risco doações de campanha para as eleições de 2014. As principais operadoras não podem doar, por serem concessionárias de um serviço público – mas, empresas ligadas a elas são grandes doadoras. Entre os acionistas da Oi, por exemplo, está a Andrade Gutierrez, empreiteira que sempre figura entre as empresas que mais desembolsam para bancar campanhas eleitorais. As cifras não são pequenas. Segundo o Tribunal Superior Eleitoral, a construtora doou a campanhas do PMDB R$ 20,6 milhões em 2010 e R$ 14,8 milhões em 2012. O sindicato das teles nega qualquer relação privilegiada com o PMDB. “Falamos com todos os partidos, todos os que estiveram dispostos a nos ouvir”, diz Alexander Castro. “Não tive diálogo maior com o PMDB, PSDB ou com qualquer outro. Falamos com absolutamente todos”, diz enfaticamente. Vencido o prazo para a votação do Marco Civil, Cunha requeriu a realização da Comissão Geral na semana seguinte, e disse que era preciso ter acesso ao texto final de Alessandro Molon, que ainda não havia sido divulgado. “O diabo mora nos detalhes”, ressaltou.
No dia 6 de novembro, a bancada do PMDB, segunda maior da Câmara, se reuniu no Congresso Nacional para ouvir com exclusividade o que o convidado Eduardo Levy, presidente do sindicato das empresas de telefonia, tinha a dizer sobre o Marco Civil e o que considerava como pontos problemáticos. Uma didática exposição pontuava as principais críticas sobre a tão falada neutralidade de rede, mas que ainda era tão abstrata para os deputados. Por dois anos, boa parte dos parlamentares não demonstrou qualquer interesse no assunto. Mas agora era diferente: o PL 2126/2011 trancava a pauta da Casa. O objetivo da reunião era calibrar os deputados peemedebistas para o debate que ocorreria naquele dia à tarde: uma comissão para debater o Marco Civil que havia sido convocada pelo próprio Eduardo Cunha. Após a apresentação de Levy, o deputado Fábio Trad (PMDB-MS) levantou a mão. “A pergunta que eu faço ao Levy é a seguinte: se hoje nós temos uma desigualdade, afinal de contas todos pagam em tese o mesmo por serviços diferentes, existe algum estudo que demonstra prejuízo financeiro a empresas, às teles, por exemplo, em virtude des-
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sa igualdade diante de serviços diferentes?” A resposta veio em seguida, mas de um outro Eduardo. “Não é que o projeto provoque prejuízo às teles. O que está em jogo aí é que ele provoca uma necessidade de investimentos maior para manter o nível de serviço igualitário, que acarretará, ao fim, no aumento do custo para o usuário”, afirmou Eduardo Cunha, líder do PMDB na Câmara. Fábio Trad replicou: “Então se o projeto for aprovado do jeito como foi redigido pelo Molon, o poder de investimento das teles ficará comprometido, para aumentar…?” Cunha corta: “Não é que ele ficará comprometido. Precisará ter investimento (...) e, para poder fazê-lo, tem que se remunerar, e só vai se remunerar em cima da gente. Com base nas explicações, Trad conclui: “A ideologizacão do projeto é um fato inquestionável”, disse convicto, cheio de gestos. “O líder tocou nesse ponto que está nos afligindo: a esquerda abraça a igualdade. E, emocionalmente, a igualdade tem um apelo muito forte. Nós vamos ter que sustentar os princípios basilares da livre iniciativa para defender a tese de que aquele que usar mais vai ter que pagar mais! Aquele que vai exigir mais, em termos de rede mundial de computadores, vai ter que pagar mais”, disse o deputado. “O líder no Twitter deu um exemplo muito interessante: se isso que está no relatório do Molon for aplicado na energia elétrica, o Brasil teria um colapso no sistema, pois todos pagariam igual usando diferente. É a desigualdade em nome da igualdade. Então a minha pergunta, qual foi o objetivo, líder? Municiar a bancada para que não sejamos reféns do falso discurso da igualdade de esquerda.” A posição do partido estava clara. O debate seguiu, demonstrando não apenas os interesses que estavam em jogo, mas também a confusão e um amplo desconhecimento acerca do projeto. O deputado Almeida Lima (PMDB-SE), já ao fim da reunião, perguntou: “Eu quero na verdade me situar, não estou situado. Nós estamos discutindo o marco, esse novo marco regulatório aí da… civil, da internet… por proposta do Executivo, é isso?” O “líder”, como era chamado pelos colegas de partido, fez um brevíssimo resumo do projeto – iniciando pela chegada à Câmara em 2011, sem mencionar a consulta pública, por exemplo –, e explicou que a urgência constitucional fora solicitada pela presidente após as denúncias de espionagem. O deputado interrompeu: “Era isso que eu precisava saber. Eu tinha entendido, na nossa conversa da semana passada, que isso veio à tona de forma mais apressada por conta do ocorrido com a presi-
dente, a Angela Merkel, etc etc. Tô certo ou tô errado: pelo que eu entendi… não traz segurança nenhuma do mesmo jeito?” Levy rapidamente respondeu: “Sim, senhor.” “Então não vai trazer nenhuma segurança?”, repetiu o deputado. “Não, senhor; adicional, não.” Cunha emendou: “Não vai impedir o Obama de vigiar ninguém aqui.” E assim, sem debate sobre nenhum dos artigos do texto que mencionavam a privacidade, fossem falhos ou não, a questão era encerrada. Levy, do sindicato, pediu a palavra final. “Nós temos feito uma luta enorme aqui nesta Casa no sentido de convencimento, de demonstrar, etc. Foi um esforço grande das partes, e trouxemos aqui para os senhores”, diz Levy, apontando um documento com as propostas do setor. “Nós temos muitas pequenas coisas a alterar no projeto, naquilo que se trate de neutralidade dentro da rede e de ofertas aos nossos clientes. E esta é uma proposta fechada em conjunto com a Associação Brasileira de Empresas de Rádio e Televisão. Então o setor de telecomunicações tem pequenas intervenções no projeto em relação à neutralidade e em relação aos clientes, feitas em conjunto também com um outro setor produtivo importante e forte – quase quanto nós”, brincou. Quando já estava nos agradecimentos, um deputado pediu a palavra. Já fora do microfone, Levy perguntou: “O que que você quer que eu fale?” Ele respondeu: “Perdão, eu só acho que seria esclarecedor que você rapidamente comente isso que está aí proposto, que são coisas pequenas, realmente, e que resolvem as armadilhas que estão no texto.” O representante do Sinditelebrasil se preparou para responder, mas o líder interveio: “Isso, isso a gente depois divulga, eu vou mostrar para a bancada à medida do que a gente for fazer ou deixar de fazer; é uma decisão que a bancada vai tomar.”
Naquele mesmo dia, a Comissão Geral discutiu o projeto no Plenário da Câmara, e as ideias debatidas horas antes foram defendidas com veemência. “A discussão é ideológica e nós não concordaremos em comunizar a internet”, afirmou Eduardo Cunha sobre a neutralidade de rede. Eduardo Levy, do Sinditelebrasil, também expôs as preocupações do setor. “Defendemos o direito de o consumidor escolher o plano que melhor se adapte às suas necessidades”, afirmou. “Da forma como ele está proposto, vai reduzir as ofertas, vai inviabilizar a gestão da rede e, em consequência, aumentará os custos ao consumidor. O que
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eu aqui vim defender é a preservação de um dos maiores programas de inclusão digital que estão sendo realizados no mundo, e não a sua inviabilidade.”57 O relator do projeto, Alessandro Molon, explicou, porém, que o texto não impedia as empresas de vender pacotes com diferentes velocidades. Já a segmentação de tipos de acesso, como a venda de banda extra para vídeos ou serviços VoIP, como o Skype, é que provocaria aumento de preço. “O que queremos é impedir que o provedor queira impor o que o usuário poderá fazer com os 10 megas que ele contratou. Cada um usa como quiser, seja para e-mail, vídeo, música ou redes sociais.”58 Por ser considerado favorável às teles, a Presidência retirou o Ministério das Comunicações do debate, incumbindo os ministros da Justiça, José Eduardo Cardozo, e das Relações Institucionais, Ideli Salvatti, de negociar com a base, que cada vez mais vinha deixando de ser aliada. Cardozo afirmou que o texto de Molon atendia aos objetivos do governo e que o processo de convencimento da base continuaria até a votação. Já a proposta dos datacenters encontrou resistência na Casa. Na visão dos parlamentares, a medida não teria efeito prático para garantir a privacidade, além de gerar custo adicional às empresas de internet. A Associação Brasileira de Empresas de Tecnologia da Informação e Comunicação (Brasscom) propôs que houvesse benefícios tributários para a instalação, o que faria o Brasil “conquistar” os investimentos, em vez de recorrer à imposição da guarda local. Uma das questões que surgiram na reunião da comissão foi a segurança – e que se tornaria o próximo grande entrave. O substitutivo de Molon deixava como facultativa aos provedores de aplicações a guarda dos registros de acesso. Deputados de partidos ligados à associação de delegados da Polícia Federal pediram que o trecho fosse alterado para facilitar investigações. “Democracia sim, corporações não” Se por dois anos o Marco Civil fora ignorado no Congresso, em novembro de 2013, era o assunto da vez. O burburinho sobre o projeto tomava salas, corredores e gabinetes em Brasília. “A realidade é que 57 BRESCIANI, 58 Idem.
07/11/2013. Disponível em: http://migre.me/mPEyK
o Congresso como um todo só foi olhar para o Marco Civil quando o projeto começou a travar a pauta da Câmara”, diz Bia Barbosa, do coletivo Intervozes. “Porque, até aquele momento, quem estava acompanhando a discussão eram os parlamentares diretamente ligados a essa agenda”, diz ela, que cita como exemplo os deputados Paulo Teixeira (PT-SP), Manuela D’Ávila (PCdoB-RS), Luiza Erundina (PSB-SP), Ivan Valente (PSOL-SP) e Newton Lima (PT-SP). Bia havia se mudado para Brasília “no olho do furacão”, como ela mesma descreve: bem na semana em o PL 2126/2011 passara a travar a pauta da Câmara. A jornalista e mestre em gestão e políticas públicas já havia trabalhado com projetos que envolvessem liberdade de expressão, mas nunca especificamente na área de internet. Ao lado de representantes de outros coletivos que integravam o movimento Marco Civil Já, ela chegava ao Congresso com uma importante e desafiadora missão: apresentar aos parlamentares as demandas da sociedade civil e pressioná-los a votar o projeto. O raciocínio era simples: se as empresas e associações tinham presença marcante no Congresso e percorriam gabinete a gabinete defendendo seus interesses comerciais e seus adendos ao texto, a sociedade civil organizada também teria o direito de fazer o mesmo. Em novembro, elaboraram um documento sobre o Marco Civil, com a defesa de seus três pilares básicos: a privacidade, a neutralidade de rede e a liberdade de expressão. “A rotina era ir para a Câmara e passar de gabinete em gabinete”, explica Bia. Chegamos a mandar ofícios para agendar reuniões formais, mas o que funcionava mesmo era você se dirigir às lideranças e a deputados estratégicos, aqueles encarregados de acompanhar a discussão.” Por dias e dias, o grupo perambulava pelo Congresso e fazia uma espécie de plantão na frente do Salão Verde, que ocupa toda área próxima ao Plenário, abordando os parlamentares na saída. “Era um trabalho de corredor, de cruzar com deputado, parar o deputado, segurar o deputado e falar: “Olha, nós somos a sociedade civil, queremos conversar um pouco com o senhor sobre o Marco Civil da Internet”. As reações eram as mais diversas. Havia deputados antenados com o assunto, que já haviam lido minimamente o texto e sabiam quais eram as questões em disputa. Outros não tinham a mínima noção do que se tratava e passavam a bola para frente: “Olha, você tem que falar com o líder” ou “você tem que falar com o assessor; marca no meu gabinete e vai lá depois”. Outros ainda, que já estavam com a opinião formada, ou orientada, não paravam para conversar. Quando muito, pegavam o documento, agradeciam e saiam às pressas.
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Outra forma de abordagem para chamar a atenção dos parlamentares era, além de entregar o documento, mostrar uma plaquinha, que dizia “Marco Civil da Internet: democracia sim, corporações não”. O grupo pedia que eles a segurassem para uma foto, para que pudessem expressar publicamente se eram favoráveis ao projeto. As reações também iam das mais amigáveis às mais secas com a proposta. Muitas vezes, os próprios “lobistas” da sociedade civil eram surpreendidos com as réplicas que recebiam. Quando foram entregar a plaquinha ao deputado Zequinha Sarney (PV), ele questionou: “Mas vocês são a favor desse texto?” O grupo respondeu que tinham alguns problemas com a redação, mas que era importante votar o projeto. “Aí ele enumerou alguns pontos que, justamente, eram as mesmas críticas nossas naquela versão do relatório”, diz Bia. “Houve algumas surpresas interessantes para além dos deputados que eram aliados estratégicos nossos. Logo no começo, fomos encontrando deputados que simpatizavam com o que a gente defendia.” Outro caso foi a deputada Fátima Bezerra (PT-RN). Durante uma mobilização do Intervozes nos corredores, ela veio com seus assessores e falou: “Queremos fazer a pauta com vocês. Quero tornar público meu apoio ao Marco Civil, discutir mais as propostas com vocês. Como eu faço?” Já com os deputados do “cordão do lado de lá”, como descreve Bia, sobretudo aqueles sob a liderança de Eduardo Cunha, o dialógo era mais complicado. “O Cunha estava representando diretamente os interesses das operadoras de telefonia ali. Então muitos parlamentares não queriam conversar com a sociedade civil, pois já tinham uma opinião formada sobre o assunto.” Esse mesmo trabalho quase que evangelístico a respeito do projeto também era feito desde o início pelo relator Alessandro Molon, e mais ainda na reta final. “Quando o Marco Civil esteve para ser votado mesmo, fui várias vezes a todas as bancadas. Em algumas bancadas fui cinco vezes, pois é uma coisa muito técnica, e é difícil as pessoas entenderem a verdadeira importância dos assuntos”, diz o deputado. A saída encontrada por Molon foi buscar analogias, que variavam conforme a bancada, na tentativa de traduzir os conceitos em exemplos mais práticos. Aos deputados ligados ao agronegócio, por exemplo, descrevia a neutralidade da seguinte forma: – Imagina uma estrada com um pedágio. Todos entendem que para você sustentar uma estrada, dependendo de seu tamanho e outros fatores, é razoável cobrar um pedágio.
Agora, não é razoável que parem o seu caminhão para perguntar o que é que você está carregando lá dentro. Trigo? Ok, trigo é o preço básico. E você, o de trás… computador? Ah, então… computador vale muito, o seu pedágio é mais caro. É razoável isso? – Não, não é. O valor da minha mercadoria é por peso, e não pelo tipo de carga – afirmou o deputado. – Então, é a mesma coisa. Assim que a internet tem que ser: por peso, por banda, e não por tipo de serviço. Você não pode, por exemplo, discriminar vídeo de texto. – Mas por que é que você está obrigando todos a terem a mesma internet, exatamente igual? Por que que proíbe velocidade diferentes? – Não estou obrigando nada disso. O texto permite sim que haja diferentes pacotes de velocidade de conexão. Só não pode discriminar o conteúdo. O usuário pode fazer uso daquele pacote como ele quiser. Dado aquele limite de peso, ele tem que ter o direito de carregar o que quiser. – Ahhh tá, é porque me disseram que proibia sim. Como pouquíssimas pessoas conheciam o tema a fundo, era fácil engolir qualquer argumento nesse embolado de discursos. Instalou-se nos gabinete uma batalha de versões, com muita desinformação. Molon perdeu as contas, por exemplo, de quantas vezes teve de explicar o conceito de neutralidade de rede. “Isso cansa, mas não tem outra saída: ou você faz ou você joga a toalha.”
Em meio às negociações de bastidores, em dezembro, um acordo entre as teles e o governo deu a impressão de que as divergências haviam sido postas de lado. No dia 6 de dezembro, durante uma reunião do Conselho Consultivo da Anatel, o presidente do Sinditelebrasil, Eduardo Levy, afirmou que o setor de telecomunicações havia chegado a um acordo com o relator Alessandro Molon sobre o princípio de neutralidade de rede. “O texto já chegou à Casa Civil e, agora, o setor de telecomunicações é favorável à votação”59, disse Levy. Para o setor, as medidas descritas no substitutivo apresentado por Molon no mês anterior po59 REDAÇÃO
LINK, 06/12/2013. Disponível em: http://migre.me/mQ618
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deriam gerar interpretações de forma a atrapalhar os negócios das empresas e barrar a oferta de pacotes de velocidades variadas. “A gente não queria mudar a lei, mas que ela ficasse mais clara”, afirma o diretor do sindicato Alexander Castro. “O texto que estava lá gerava interpretações oportunistas, de que os planos oferecidos hoje na banda larga móvel baseado em volume de tráfego tivessem de ser interrompidos.” O relator negou que a redação levantasse essas barreiras, mas disse que o texto seria alterado para mostrar de forma ainda mais clara que o Marco Civil não trataria especificamente de modelos de negócio. Dito e feito: o texto veio cinco dias depois. Para atender às operadoras, a nova versão do texto garantia de forma explícita a “liberdade de modelo de negócios”, num novo inciso no artigo terceiro do projeto, que listava os princípios do uso da internet no Brasil, como liberdade de expressão e o direito à privacidade. Mas fazia uma ressalva: “desde que (os modelos) não conflitem com os demais princípios estabelecidos nesta Lei”. O ponto, porém, que geraria mais divergência era o novo artigo 16, sobre guarda de dados. Para atender ao clamor das autoridades investigativas – como a Polícia Federal e o Ministério Público Federal – e os partidos a elas associados, os provedores de aplicação, como Google, Facebook e Twitter, agora também teriam de armazenar dados dos usuários. Nas versões anteriores, a guarda só era obrigatória a provedores de conexão. A diferença era o prazo: os registros de acesso coletados pelas operadoras deveriam ser guardados por um ano. Os dados de sites e serviços, por seis meses, também sob sigilo. Segundo o texto, as informações só poderiam ser repassados por ordem judicial ou por requisição de autoridade policial ou Ministério Público. Não eram todos os sites que seriam obrigados a guardar dados. O texto separava empresas de grande porte, que geram receita, de sites e blogs de usuários. A obrigatoriedade recairia sobre empresa “na forma de pessoa jurídica, que exerça essa atividade de forma organizada, profissionalmente e com fins econômicos”. Outra grande mudança foi em relação à remoção de conteúdo online, que já havia gerado reboliço em versões anteriores. A necessidade de ordem judicial para que o provedor fosse responsabilizado pelo conteúdo do ar ganhava novas exceções. A redação permitia acionar os juizados especiais em casos de afronta “à honra, à reputação ou a direitos de personalidade”, para solicitar a retirada da publicação e, se necessário, reparação econômica. Seria possível, inclusive, remover o
conteúdo com liminar. Dada a proliferação da prática de pornografia de vingança (revenge porn) nos meses anteriores, a versão também trazia um novo dispositivo para casos de sexo e nudez. O novo texto previa que os provedores deveriam retirar imediatamente o material quando recebessem notificação de violação de intimidade. Molon afirmou que incluiu o tema para dar uma resposta aos casos de jovens que haviam chegado a cometer suicídio após a divulgação de vídeos íntimos nas redes sociais, como Facebook e WhatsApp. Se a plataforma não removesse o vídeo ou as fotos após a notificação, passaria a responder conjuntamente em caso de crime. Apesar da enorme resistência dentro e fora do Congresso, o artigo dos datacenters permanecia firme e forte, a pedido expresso da Presidente da República. Mesmo com as mudanças, porém, nem a base botava fé que o projeto seria votado antes de o ano terminar. O líder do governo, Arlindo Chinaglia (PT-SP), pendurou o Marco Civil em apenas “um fio de esperança” de uma votação ainda em 2013. #16igualNSA A nova versão provocou um verdadeiro racha entre os próprios defensores do Marco Civil da Internet. Com críticas às novas exceções de remoção de conteúdo e com a obrigatoriedade da guarda de dados por empresas de internet, defensores assíduos do projeto se viraram contra ele. Muitos grupos de ativistas antes entusiastas do PL, como o Partido Pirata, divulgaram que retirariam o apoio à proposta caso aquela redação permanecesse. Outros, apesar dos pontos críticos, defendiam que o Marco Civil precisava ser votado a qualquer custo, já que os usuários estavam desprovidos de qualquer proteção online e vinham sofrendo abusos recorrentes. O calcanhar de Aquiles era de fato o recém-inserido artigo 16, considerado “alienígena” ao projeto. A crítica dos ativistas era que o dispositivo permitiria uma coleta massiva de dados de toda a navegação realizada em grandes sites, invertendo o princípio constitucional da presunção de inocência e aproximando o Brasil da prática norte-americana – o que contrariava o forte discurso da presidente Dilma na ONU. “O artigo não foi uma proposta do governo, não foi uma proposta do Molon e nem uma proposta do PT, diz Bia Barbosa. Ele foi uma exigência de seis partidos que blocaram e chegaram no Molon assim: ‘Se a gente não garantir a guarda dos dados de aplicação, nós não va-
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mos votar favoráveis ao texto’. Esses partidos eram o DEM, o PSDB, o PPS, o PTB, o PROS e o PP”, diz ela. “Da mesma maneira que nós estávamos levando as nossas demandas para os partidos assinarem, a Polícia Federal também estava levando as suas propostas de redação para esses partidos encamparem.” A justificativa era que de que os metadados (dados sobre dados, como hora de acesso e tempo de permanência, e não o conteúdo das mensagens em si) auxiliariam nas investigações, sobretudo criminais. “Não era uma coisa obscura; era algo claramente colocado, você sabia quais eram os argumentos deles”, diz Bia. “Eu até entendo, acho até que é um argumento racional. Só que, para nós, isso viola a privacidade, que é um direito fundamental. Está acima do direito da Polícia Federal de investigar e pegar um criminoso.” Em fevereiro de 2014, 16 entidades da sociedade civil publicaram uma longa uma carta aberta, enviada a deputados e senadores, em que pediam a revisão dos artigos 10, 16 e 22. Pelas redes sociais, compartilharam amplamente a hashtag #16igualNSA e diversas imagens e memes, que diziam “o Estado brasileiro se aproxima da NSA”, “Yes we scan”, entre outros. Eis um trecho do documento: 110
A redação atual desse artigo instala um verdadeiro clima de vigilantismo, pois obriga que todas as pessoas que usem grandes serviços tenham sua vida online registrada para futuramente ser devassado a partir de um mero pedido de agente administrativo, policial ou membro do MP e que, mesmo que os dados sejam só liberados após deliberação judicial, serão recolhidos de forma ilimitada, tornando qualquer um suspeito. Não é difícil que, pela forma como funciona o Poder Judiciário no Brasil, seja gerado um clima de vigilantismo, principalmente contra os “indesejáveis”, aqueles que contestam os poderes constituídos. O texto dizia ainda que, na União Europeia, a diretiva que trata de retenção obrigatória de dados se refere apenas aos registros de conexão, e não aos registros de aplicações – e mesmo a retenção de dados de conexão vinha sendo questionada. Na Alemanha, por exemplo, a medida foi declarada inconstitucional, levando em consideração o histórico do período nazista, que se aproveitou de bases de dados muito mais simples. No Twitter, o sociólogo, ativista e membro do CGI Sérgio Amadeu lamentou: “Infelizmente, o Marco Civil continua exigindo a guarda
de logs de conexão e de aplicação”. E acrescentou: “quanto mais o tempo passa mais difícil fica aprovar uma lei razoável para a Internet”. E o tempo estava passando.
A voz da sociedade civil organizada foi ouvida – ainda que parcialmente. No dia 12 de fevereiro, o relator Alessandro Molon publicou um novo substitutivo do Marco Civil, com apenas uma alteração. A nova redação trouxe mudanças no artigo 22, que tratava da derrubada de conteúdo íntimo contendo nudez ou sexo. Seguindo recomendação de entidades civis, antecipada durante um debate na Campus Party, em janeiro, Molon incluiu no artigo que a notificação ao provedor por esse tipo de conteúdo tinha de ser feita exclusivamente “pelo ofendido ou seu representante legal”. O objetivo era evitar, como dizia a carta enviada pelos coletivos, o “patrulhamento” na internet. O texto também passou a especificar que a notificação deveria conter, “sob pena de nulidade, elementos que permitam a identificação específica do material apontado como violador de direitos da vítima e a verificação da legitimidade para apresentação do pedido”. A expectativa do relator era de que o projeto de lei fosse finalmente votado na semana seguinte, no dia 18. Até lá, deputados poderiam apresentar novas emendas, que seriam apreciadas no Plenário. Juntamente com Eduardo Cunha, do PMDB, que liderava a oposição ao projeto, estavam Ricardo Izar (PSD-SP) e Eli Correa Filho (DEM-SP). Os opositores aproveitariam a abertura a emendas para apresentar suas demandas. “A gente tem que dar liberdade, tem que dar privacidade, mas tudo tem limite”60, opinou Izar ao Link Estadão. “Todos países têm tudo o que a gente está propondo, só o Brasil que é ‘moderninho’ não vai ter?”, disse. “No começo, eram só uns 6 ou 7 deputados que conheciam o Marco Civil. Hoje isso já aumentou, mas sempre vem gente nos elevadores me perguntar sobre o Marco Civil. Eu explico, coloco esses detalhes mais técnicos que ninguém fala, e assim acredito que eles estão se convencendo a votar com a gente.” Depois das conversas bancada a bancada, Molon se dizia confiante para a votação. “O PSD, inclusive, tende a votar com o texto, mesmo a gente preservando a neutralidade. Claro que um adversário do projeto vai tentar seduzir a oposição, mas eu quero crer que eles vão sentir 60 RONCOLATO,
12/02/2014. Disponível em: http://migre.me/mQ8Rd
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a responsabilidade e ficar do lado da sociedade.”61
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Nem as mudanças no texto e nem o acordo com as teles conseguiram levar o Marco Civil à votação em Plenário. “Quem ligou na TV Câmara na última quarta para ver a anunciada votação do Marco Civil assistiu a um triste espetáculo”, escreveu Ronaldo Lemos em sua coluna na Folha de S. Paulo, no dia 24 de fevereiro62. “A única votação foi se o projeto deveria ser votado ou não. Deu não. A expectativa era outra: um acordo tinha sido firmado assegurando a votação (e aprovação) do projeto.” Ele citou que o Brasil havia convocado para abril uma conferência internacional em São Paulo, para discutir a relação global da rede. A dois meses do evento, o NETmundial, o cenário não era nada animador. “Do jeito que a coisa anda, vai chegar abril e o país não terá nada a mostrar”, criticou Lemos. E convocou: “Nossos representantes precisam fazer o seu trabalho: votar o Marco Civil nem que seja para rejeitá-lo. Do jeito que está, o Congresso sinaliza para o país que a internet não tem qualquer prioridade.”63 Mas a estratégia da oposição ao longo do processo era justamente o contrário: a ideia não era derrotar o projeto na Câmara, mas sim deixá-lo de escanteio, para que se perdesse a votação de vista. “O Cunha falava assim: se não tiver consenso, não vota”, diz uma fonte do Congresso. “Que outro projeto que foi assim? É sempre o contrário: quando não tem consenso, aí vota-se. A votação é justamente para resolver quando não há unanimidade. Pouquíssimas coisas passam lá por unanimidade.” – Não, não vai votar. – Vota contra! – Não. A razão por trás dos adiamentos era que, dessa forma, o projeto não virava lei e a oposição não se queimava com os eleitores. “Não votar é um cenário mais cômodo inclusive para as teles. O cara em ano eleitoral se indispor com o internauta é para tirar o voto. O cara 61 RONCOLATO, 62 LEMOS, 63 Idem.
12/02/2014. Disponível em: http://migre.me/mQ8Rd 24/02/2014. Disponível em: http://migre.me/mQ9bk
aparece na lista: ‘esse votou contra você, internauta.’ Não era votar era melhor. Eles não queriam lei nenhuma para a internet, pois estavam ganhando rios de dinheiro sem lei.” O trancamento da pauta, no entanto, mudava as regras do jogo. Sobre quem travava a votação recaía a pressão de outras causas e bancadas, que queriam apreciar suas propostas, mas não podiam, por causa “desse tal de Marco Civil”. Uma das demandas na fila de espera, por exemplo, era o porte de arma para agente penitenciário. “Pelo amor de Deus, tem que votar. O projeto do Molon está prendendo”, diziam deputados. “E ouviam de volta: “O projeto do Molon não está prendendo nada. Quem está prendendo é quem não quer votar.” A princípio, o prazo estava a favor dos defensores do projeto: quanto mais tempo se passava, mais pressão para a votação. Mas uma crise política quase colocou tudo a perder. Sequestro político Em meados de março, a casa caiu. Já antecipando arranjos e discussões da campanha eleitoral 2014, e em meio à instalação de uma CPI para a investir casos de corrupção na Petrobrás, o Congresso ficou divido. Com um racha de parte da base aliada que estava insatisfeita, querendo liberação de emendas e mais cargos no governo, o PMDB, com a liderança de Cunha, tinha na manga uma das principais moedas de troca do Congresso Nacional: o Marco Civil da Internet. O projeto, que tramitava desde 2012, foi descolado de qualquer discussão de conteúdo, engolido pelo Fla-Flu político. “Ali não estava valendo mais o mérito do processo”, diz Bia Barbosa. “Ninguém mais estava discutindo se o artigo 15 (antigo 16) violava a privacidade ou se preservava a investigação; se a regulamentação via decreto presidencial era constitucional ou não. Ali virou briga de oposição e governo, às vésperas das eleições, contaminada por partidos que queriam emendas ou cargos em ministérios”, diz ela. “Nesse momento, foi quando um bloco liderado pelo PMDB rachou com o governo e trouxe uma parte da base do governo, de partidos menores, para junto deles.” Nesse momento, o chamado blocão passou a chantagear a Presidência para ter suas demandas atendidas, e uma das barganhas era o Marco Civil, que, às vésperas do NETmundial, era prioritário ao governo. “E aí foi o dia em que o Eduardo Cunha quase conseguiu votar e derrubar o Marco Civil”, diz Bia.
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No dia 11 de março, uma terça-feira, o Marco Civil, por pouco, não foi derrotado. Descontente com a distribuição de ministérios pela presidente Dilma Rousseff, o PMDB se dizia contra a aprovação do projeto de lei. Os peemedebistas também, no mesmo dia, aprovaram a proposta de criação de uma comissão mista da Câmara e do Senado para investigar a Petrobrás. Pela manhã, os deputados Vicentinho, líder do PT-SP, e o relator Molon já acenavam o adiamento da votação ao deixarem a reunião de líderes da base aliada, realizada no gabinete da liderança do governo. A ministra das Relações Institucionais, Ideli Salvatti, também conversou pessoalmente com líderes e outros deputados da base. A reclamação era de que o governo não cumpria seus compromissos em relação à liberação de emendas parlamentares. “A política deve ser feita numa relação de confiança entre dois lados. É isso que está ruído na atual conjuntura”64, disse o deputado Giacobo (PR-PR), ao deixar a reunião. Segundo Vicentinho, a situação da base continua insegura. “A meta principal do PT é votar o Marco Civil da Internet, mas parece que não será possível esta semana, já que alguns partidos da base não querem votá-lo. Não por ser contra a proposta, mas por causa da conjuntura política”, disse.
Nesse dia, às 20h30, Bia Barbosa, do Intervozes, e Luís Felipe, do Mídia Ninja, tomavam um café na Câmara dos Deputados. Foi quando o telefone da Bia começou a tocar sem parar. “O Ivan Valente me ligou, o assessor do PCdoB me ligou... todos afoitos.” – Vocês estão na Câmara ainda? – O pessoal já foi embora, mas eu e o Luís estamos aqui tomando um café. Por quê? – Corram aqui para o Plenário agora, porque eles estão querendo derrubar o Marco Civil. “Só estava a gente, porque todo mundo já tinha ido embora”, lembra Bia. “Aí a gente correu para lá e os próprios deputados aliados nossos estavam preocupadíssimos, porque aquele dia a gente ia per64 AGÊNCIA
CÂMARA, 11/03/2014. Disponível em: http://migre.me/mQa98
der tudo”, conta. “E aí o governo conseguiu segurar e não votar – se votasse, a gente perdia.”
O “líder”, Eduardo Cunha, não havia participado da reunião de líderes do dia 11. Dois dias depois, porém, apareceu com um texto alternativo ao Marco Civil. A emenda fazia parte da estratégia do PMDB de derrubar a proposta do governo. “Primeiro vamos votar pela rejeição do Marco Civil; se não for rejeitado, vamos discutir a emenda”65, disse o deputado. O texto de Cunha excluía os serviços de internet da regra geral da neutralidade e liberava a contratação de pacotes com condições especiais para quem quisesse conteúdo diferenciado, como só redes sociais ou só vídeos. Além disso, o texto do PMDB estabelecia que caberia à Anatel regulamentar as exceções à neutralidade, e não à Presidência, como dizia o relatório de Alessandro Molon. A emenda também tirava a obrigatoriedade de empresas armazenarem os dados de usuários em datacenters no País. Molon, no entanto, já sinalizava que havia acordo para que a medida fosse votada separadamente. PPS, PSD, PP e Pros já tinham apresentado destaques sobre o tema. Na semana seguinte, porém, Cunha disse que a bancada do partido estava “dividida” entre derrubar por completo o projeto do Marco Civil ou aprovar o texto-base e discutir alterações pontuais em Plenário, por meio de emendas (propostas de modificação) e destaques (propostas de exclusão de trechos do projeto). No dia 19, em reunião, a bancada decidiu que negociaria com o blocão para adotar uma posição comum na votação da proposta, marcada para o dia 25. De acordo com Cunha, a bancada tenderia a aceitar a posição dos demais partidos da base aliada que compunham o bloco: PR, PTB, PSC e Solidariedade. A já tradicional oposição também voltara atrás. PSDB e DEM, que antes haviam manifestado apoio ao texto, agora defendiam a retirada da urgência constitucional, além de espalharem um discurso que logo viralizou nas redes sociais, de que o Marco Civil seria uma forma de censurar a liberdade na rede. O PSB, que antes havia demonstrado apoio às pautas da sociedade civil, passava a afirmar que não tinha mais posição firmada sobre o relatório do deputado Molon. 65 AGÊNCIA
CÂMARA, 13/03/2014. Disponível em: http://migre.me/mQaCi
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Enquanto isso, passada a semana do caos, o governo começava a chamar partido por partido em separado para conversar, buscando desfazer o blocão e recuperar o apoio dos partidos da base. A sociedade civil também se mobilizava. Uma campanha lançada no dia 10 de março no site de petições online Avaaz, encabeçada pelo cantor e ex-ministro da Cultura Gilberto Gil, defendia a aprovação do projeto, e já totalizava mais de 300 mil assinaturas de usuários. Eu acredito que o Marco Civil seja o melhor projeto de lei que já entrou no Congresso, isso porque foi feito por todos nós, de forma colaborativa pela rede! Ele limita quais informações os provedores podem guardar e estabelece critérios rígidos para as empresas: com o Marco Civil, os provedores serão proibidos de usar os nossos dados para vender serviços sem a nossa autorização expressa. Mas alguns deputados estão cedendo ao lobby das telecoms e, se essa manobra for bem sucedida, podemos dizer adeus à internet que temos hoje. (...)
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A minha geração lutou pela democratização do Brasil e pela garantia da liberdade de comunicação. Não podemos deixar, agora, que conquistas importantes desapareçam diante do lobby irresponsável de um punhado de empresas e da falta de compromisso de deputados que acreditam que podem ignorar seus eleitores. “Num determinado momento, o governo percebeu que se ele não articulasse estratégia com a sociedade civil, não ia passar”, diz Bia Barbosa. “Porque até o final do ano passado (2013), estava a sociedade civil pressionando meio que cada um por si, por mais que a gente tivesse um diálogo com o Molon. Tivemos um trabalhão para desconstruir na opinião pública, inclusive na imprensa, o discurso de que o projeto era do governo.” O desafio, diz ela, era relembrar o processo colaborativo do projeto, que justamente visava contemplar as demandas dos usuários brasileiros. “Para tudo, esse projeto é nosso, quem exigiu esse texto desde o começo foi a sociedade civil lá atrás, para se opor ao AI-5 Digital do Eduardo Azeredo”, diz Bia. “Quem fez consulta pública, ajudou e mobilizou foi a sociedade civil.” As entidades começaram então a bater nessa tecla, tanto para a imprensa como para os líderes de partidos políticos. “Vocês acham que estão derrotando o governo com essa votação? Vocês estão der-
rotando a sociedade civil. E isso vai cair na conta de vocês”. O discurso era feito tanto pessoalmente a líderes do Congresso como pelas redes sociais. Foram organizados tuitaços e compartilhados memes à exaustão, com a seguinte frase: “Deputados, vocês votam agora e a gente vota em outubro”. “Custou para que eles entendessem, mas acredito que, no final, ficou claro que era um projeto da sociedade civil e que não interessava a eles usar o Marco Civil para derrotar o governo”, diz a coordenadora do Intervozes. “Se quisessem derrotar o governo, que fosse de outro jeito.” Com as conversas a portas fechadas do governo com os partidos para reorganizar a base e com a pressão da sociedade civil no Congresso e na internet, foi feita mais uma tentativa de votação do projeto no dia 25 de março, uma terça-feira. Bia Barbosa chegou à Câmara dos Deputados lá pelas 9 da manhã. Se a maioria já estava incrédula depois tantas tentativas frustradas, Bia estava confiante. “Mas isso não significava muita coisa, porque toda vez eu achava que aquele dia ia”, brinca. No entanto, lá pelas 4 da tarde, o presidente da Câmara, Henrique Eduardo Alves (PMDB), apareceu. O grupo vinha tentando agendar uma reunião formal com ele há seis meses, mas sem sucesso. Foi quando o deputado Vicentinho, líder do PT, pegou Henrique Eduardo Alves pela mão e o levou para falar com as entidades civis que batiam cartão no Congresso. – Deputado, precisa votar hoje. Não dá mais para ficar enrolando, a Câmara está parada, todas as negociações que tinham de ser feitas já foram feitas, todos os debates de mérito já foram feitos. Ele respondeu: – Nós vamos votar o texto hoje. Eu me comprometo com vocês: até as 8 e meia da noite vocês vão estar tomando cerveja e comemorando a aprovação do Marco Civil da Internet. – Deputado, você é nosso convidado para tomar essa cerveja com a gente.
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7. [A Lei]
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uando o texto-base do Marco Civil foi lançado para consulta pública, em 2009, Carlos Affonso de Souza, que integrava a equipe do Centro de Tecnologia e Sociedade (CTS) da FGV-Rio, estava na Coreia do Sul, para uma conferência da Icann. Ele, que tanto havia trabalhado no projeto, teve de assistir ao lançamento a distância. Às duas da manhã, enquanto seu companheiro de quarto – Marcelo Fernandes, do CGI – dormia, ele acompanhava o evento na FGV-Rio via streaming. Cinco anos depois, no dia 25 de março de 2014, Carlos Affonso estava longe novamente – desta vez, em Cingapura. Lá pelas 5h30 da manhã, acompanhando o áudio da TV Câmara, já que a imagem não carregava, descobriu que o Marco Civil finalmente iria a Plenário. “Ficou naquilo: vai ou não vai? Dorme ou não dorme? Dá tempo de dormir?” A delegação brasileira no evento da Icann era grande. Todos na torcida. Mas será que, após tantos alarmes falsos, dessa vez iria? “Eu já cansei de parar tudo lá em casa para ligar a TV Câmara achando que ia votar. Minha mulher não aguentava mais.” Bem na hora H, quando foi anunciado que o Marco Civil iria de fato a votação, a conexão começou a falhar. Sem conseguir acessar a TV Câmara, ele passou a acompanhar a sessão pelo Mídia Ninja. “Algo em que eu trabalhei tanto durante seis anos... e nos dois momentos principais eu não estava lá.” Em 2009, em Seul, Carlos Affonso assistia pela internet ao lançamento da consulta pública do Marco Civil. Em 2014, na madrugada de Cingapura, via, também pela internet, o mesmo Marco Civil ser aprovado na Câmara dos Deputados.
Era seu aniversário. Ronaldo Lemos, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS-Rio) e fundador do CTS, assistia online à votação do PL 2126/2011 em sua casa, em Botafogo. Mas era impossível acompanhar por uma só plataforma. Com um olho na TV Câmara e outro no celular, trocava mensagens por e-mail e nas redes sociais
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“com todo mundo possível”. Para celebrar as 38 primaveras, Ronaldo havia marcado um jantar num restaurante próximo, às 20h30. O tempo corria. A companheira foi na frente para fazer sala aos amigos, e ele ficou para trás acompanhando a sessão em uma, duas, três telas. Por volta das 20h15, a Câmara votou o Marco Civil da Internet. Ao chegar ao restaurante, atrasado no próprio aniversário, ouviu de todos que só podia ser marmelada. “Foi combinado, não é possível!”. De presente, ganhava a aprovação do projeto que ele havia verbalizado pela primeira vez, sete anos antes. A comemoração, dupla, foi longe.
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Bia Barbosa, do coletivo de comunicação Intervozes, havia chegado à Câmara bem cedo. “Sim, para a Câmara, 9 horas da manhã é muito cedo”, brinca. Mas, neste dia, tinha mais companhia. Representantes de entidades da sociedade civil compareceram em peso ao Congresso, com faixa e tudo, e, de noite, foram à galeria assistir à sessão no Plenário. Ela, porém, foi de camarote. Convidada pelo deputado Ivan Valente (PSOL), ficou dentro do Plenário, para acompanhar tudo de perto. Finalmente, o Marco Civil seria votado. Após muitas negociações e troca de favores a portas fechadas com o governo, o blocão havia sido desfeito e Eduardo Cunha havia recuado. No Plenário, Bia conversava com um assessor de bancada do PSOL para orientar a argumentação das emendas da sociedade civil, que o partido havia endossado. Queriam a exclusão do polêmico artigo 15, de guarda de dados, reforço ao conceito de neutralidade, entre outras. “De repente, a oposição percebeu que não valia mais a pena ficar batendo, dando murro em ponta de faca, e começaram a tirar todas as emendas”, diz. “Elas foram caindo, parecia um dominó.” Um a um, líderes dos partidos que antes haviam feito sugestões de mudanças no texto iam à tribuna e diziam que era fundamental, ao menos naquele momento, deixar o texto como estava. “Eles derrubaram as emendas do lado de lá, a gente também abriu mão das nossas, e fomos em frente.” Quando o quadro favorável à votação já estava desenhado, Bia subiu para a galeria, para se juntar às outras 40 pessoas de coletivos, associações e entidades civis que lá estavam. Com uma faixa enorme, pediam “Marco Civil da Internet: Democracia SIM! Corporações NÃO!.” Por volta das 20h30, o Plenário respondeu. “Foi muito emocionante. Para mim, pessoalmente, era resultado de seis meses ininterruptos de movimento para defender a livre internet, a liberdade de expressão para as organizações que eu representava ali”, diz Bia. “A gente, da comunicação, não está acostumado a ter vitórias assim. O Marco Civil, sim, ele foi uma vitória concreta.” No final da sessão, só festa. O líder da Câmara, Henrique Eduardo Alves, passou para cumprimentar o grupo barulhento da galeria. Conversou com eles por uns dois minutos e depois foi embora. Cumpriu o que prometera: a Câmara havia votado e aprovado o Marco Civil da Internet, que seguia para o Senado. Mas aceitar o convite para tomar a cerveja… essa ele ficou devendo.
A aprovação Em votação simbólica, o Marco Civil da Internet foi aprovado com 32 artigos, quase por unanimidade. Somente a bancada do PPS votou contra. “Esta bancada não vai votar favorável a esse projeto”, afirmou o deputado Rubens Bueno (PPS-PR). “Nós estamos hoje com neutralidade absoluta e estamos submetendo a neutralidade da internet nas mãos da presidente da República”, disse o líder do partido na Câmara. “Nas mãos da Anatel, que está aparelhada como todas as agências reguladoras do Brasil. Por isso a bancada do PPS vota contra o Marco Civil da Internet, porque é uma interferência na vida da cidadania. E por isso nós entendemos que essa conquista da humanidade não pode estar nas mãos daqueles que querem quebrar a liberdade de expressão do povo brasileiro”, disse o deputado, ao som de muitas vaias e críticas audíveis. O líder do PMDB Eduardo Cunha já havia dito que a votação seria “simbólica”, já que havia acordo e todos votariam de forma “uniforme e unânime”. “Isso só foi possível porque houve diálogo, recuo de alguma parte e convergência de alguns pontos mínimos”, disse. O partido retirou os oito destaques que havia feito ao texto, dentre os doze enviados. “Pessoalmente, acho que não deveria haver regulação (da internet), mas se é vontade da maioria, o PMDB continuará acompanhando a questão.” Cunha reconheceu que sua posição fora “vencida”, e que seguiu a vontade de sua bancada, que optou por votar com os demais partidos. Em sua fala na sessão, ele, que havia reverberado a posição das teles em toda a reta final da tramitação, fez uma afirmação emblemática: “o PMDB vota a favor da neutralidade da rede.” O líder do governo na Câmara, o deputado Arlindo Chignalia (PT-SP) rebateu a fala de Cunha sobre “recuo” do governo, e disse que os “princípios basilares da internet” haviam sido todos garantidos no texto final: neutralidade de rede, a privacidade dos usuários e a liberdade de expressão. O relator Alessandro Molon afirmou que havia acatado na versão final mudanças sugeridas por “diversos partidos”, como PSD e PMDB. A principal alteração, que havia sido acordada entre o governo e a base aliada na semana anterior, foi a queda do artigo 12. O governo federal abria mão da tentativa de obrigar que provedores tivessem de instalar datacenters no Brasil para armazenar dados de navegação em território nacional. Críticos diziam que a medida seria inócua em ter-
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mos de segurança e poderia aumentar os custos das empresas, que seriam repassados aos usuários. Com a retirada do 12, o artigo 11 foi “fortalecido”, disse Molon. Pelo texto, essas mesmas empresas ficariam incumbidas de, em situações envolvendo dados de brasileiros, “respeitar a legislação brasileira, os direitos à privacidade, à proteção dos dados pessoais e ao sigilo das comunicações privadas”, independentemente de onde estivessem suas estruturas. Após uma saga ferrenha, o “coração do projeto”, a neutralidade de rede, lá permaneceu. A única mudança foi em relação à regulamentação das exceções à neutralidade. O novo texto dizia que as exceções seriam regulamentadas nos “termos das atribuições privativas do Presidente da República previstas no inciso IV do art. 84 da Constituição Federal, para a fiel execução desta Lei, ouvidos o Comitê Gestor da Internet e a Agência Nacional de Telecomunicações”. O controverso artigo 20 também fora mantido: os provedores de internet só seriam considerados responsáveis por publicações ofensivas postadas na rede caso descumprissem ordem judicial de remoção do conteúdo. Eduardo Cunha se mostrou contrário ao artigo, mas retirou os destaques do partido sobre o tema. A exceção, além da ressalva de direito autoral, ficava para imagens e vídeos com cenas de nudez ou sexo. Nesse caso, as empresas seriam responsabilizadas pelo conteúdo veiculado por terceiros se ignorassem notificação apresentada por um “participante” – na versão anterior, constava o termo “ofendido”. Apesar da votação quase unânime, não faltaram momentos de bate-boca, gritos acalorados e discussões sobre assuntos que nada tinham a ver com o projeto, como envio de recursos a Cuba e a ditadura militar. Um dos momentos picos de tensão foi durante a fala do deputado Jair Bolsonaro (PP-RJ): “Se o PT quer aprovar isso, está mais do que na cara que tem jabuti nessa árvore”, disse. “Essa é a proposta do PT. Ter nas mãos, via internet, a vida de quem bem entender. Prefiro o Obama lendo meus e-mails do que uma quadrilha indicada pelo PT.” Logo, foi rebatido pelo deputado Amauri Teixeira (PT-BA), que afirmou: “Após 50 anos de ditadura, os seguidores da ditadura já estão esclerosados. Isso é esclerose do autoritarismo!” Bolsonaro logo replicou: “Tu é cubano, tu é cubano! Vai lá pra Cuba! Vai pra Cuba, cubano! Lá tem internet.”
O Marco Civil seguia ao Senado, e se transformava no PLC 21/2014. O presidente da Casa, Renan Calheiros (PMDB-AL), disse no dia seguinte à aprovação na Câmara que o Senado analisaria o projeto em “curtíssimo espaço de tempo”. O texto havia tramitado três anos na Câmara dos Deputados, trancando a pauta por cinco meses. “Isso não vai acontecer no Senado. Por isso vamos conversar para que tenhamos num curtíssimo espaço de tempo uma solução”66, disse Calheiros, que garantiu que a Casa trataria o projeto com “absoluta celeridade”. “Vamos conversar hoje mesmo com o presidente da CCJ para que concluamos a apreciação do Marco Civil antes de chegarmos ao período das eleições”67, declarou o presidente do Senado. O prazo do governo, no entanto, era bem mais apertado que o das eleições. Nem mesmo o prazo da urgência constitucional, de 45 dias, era suficiente. A meta era sancionar o Marco Civil no evento global sobre a governança da internet NETmundial, que seria hospedado em São Paulo dali a menos de um mês. Alguns parlamentares criticavam a pressão por “celeridade”: “Acho profundamente injusto ser imputado ao Senado um prazo para que nós não exerçamos na nossa plenitude, não o nosso direito, mas o nosso dever”68, disse o senador Vital do Rêgo (PMDB-PB), relator do projeto na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ). O texto seria analisado simultaneamente por três comissões: a de Comunicação e Informática (CCT); de Fiscalização e Controle (CMA); e de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ). Assim como Rêgo, os relatores na CCT, Zezé Perrella (PDT-MG), e na CMA, Luiz Henrique (PMDB/SC) também elogiaram o texto aprovado pelos deputados, mas disseram que caberiam ajustes. Ficou visível. Dez dias depois de chegar na Casa, o PLC já havia recebido 41 emendas de senadores. As modificações sugeridas iam desde o aumento da garantia de privacidade à neutralidade da rede, passando por regras mais duras em casos de agressões à honra, à reputação ou a direitos de personalidade e até que a velocidade mínima de banda fosse estabelecida na lei. Uma figura claramente não estava contente com o texto. Eram de Aloysio Nunes (PSDB-SP) 16 das 41 emendas apresentadas. Uma pedia alterações no artigo nono, deixando o conceito de neutralidade 66 MENDES,
26/03/2014. Disponível em: http://migre.me/mQcmv
68 AGÊNCIA
SENADO, 10/04/2014. Disponível em: http://migre.me/mQcGh
67 Idem.
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de rede mais turvo. Ao mesmo tempo que o texto sustentava o “tratamento isonômico” dos dados pelos provedores, criava classes de “produtos ou serviços de uma mesma categoria” – o que dava margem a alegações de que, fora dessas “categorias”, o tratamento igualitário de dados não seria obrigatório. Outra emenda incluía a “qualidade” como um dos princípios básicos do acesso à rede, que por sua vez seria medida pelo que já existe no regulamento sobre o Serviço de Comunicação Multimídia da Anatel. No Twitter, Sérgio Amadeu criticou o senador: “Emenda 4 do Senado ao Marco Civil quer amarrar controle da qualidade de conexão à Internet à ANATEL. A mesma q entregou o controle às teles”.
Numa das audiências nas comissões do Senado, Bia Barbosa aguardava o deputado Alessandro Molon na saída para saber em que pé estava a conversa com os senadores. Logo ao sair, ele disse aos representantes da sociedade civil: “Vocês precisam falar com o Aloysio Nunes!”. Ao fim, o grupo abordou o senador: 124
– Estamos muito preocupados, pois o senhor vai fazer o projeto voltar para a Câmara, e aí as discussões se estenderão mais ainda e o Marco Civil não sairá do papel. Além disso, o NETmundial está aí, e é muito importante que ele seja apresentado no evento. – Eu não faço parte do governo. Eu não quero essa agenda do governo. Se a Dilma quer apresentar no NETmundial, eu não tenho nada a ver com isso. – Não, senador. É que vai vir a Copa do Mundo, o recesso da Copa, depois as eleições…. – Eu não gosto de futebol.
Pouco tempo depois, no dia 9 de abril, o deputado Molon e o senador Lindebergh Farias (PT-RJ) articularam uma reunião com Renan Calheiros e representantes de 15 entidades da sociedade civil – entre eles, Bia Barbosa, do Intervozes, Laura Tresca, da ONG Artigo 19 e Paulo Rená, do Partido Pirata e gestor do Marco Civil no Ministério da Justiça. Durante reunião que durou cerca de meia hora, Calheiros assumiu o compromisso de se esforçar para que a votação fosse rápida.
“A gente entregou para ele uma carta dizendo por que o texto tinha que ser votado rapidamente, na nossa opinião, e a nossa preocupação de o texto ser emendado, o que poderia significar que voltaria à Câmara”, diz Bia Barbosa. “Isso era ruim, já que os direitos dos usuários já estavam sendo violados cotidianamente.” Molon e Farias reforçaram a importância de que a votação acontecesse no dia 15, mas no máximo até o dia 22 de abril, véspera do NETmundial – encontro multissetorial global sobre o futuro da governança da internet, que ocorreria nos dias 23 e 24 de abril.
No dia 22, o deputado Alessandro Molon veio de Brasília a São Paulo para um seminário Brasil-Alemanha sobre a governança da internet, organizado pelo Instituto de Tecnologia e Sociedade, de Ronaldo Lemos e Carlos Affonso de Souza. Também se encontrou com Tim Berners-Lee, pai da web, e Vint Cerf, pai da internet e vice-presidente do Google, que chegavam para o NETmundial – que começaria no dia seguinte. Poucas horas depois de ter aterrissado, Molon recebeu uma ligação, dizendo que seria feita uma pequena emenda ao texto. – Fica tranquilo, que vai ser tratada como emenda de redação. – Mas é uma emenda de redação? – Não, é uma emenda de conteúdo, mas é uma coisa bem pequena. Caso fosse uma emenda de conteúdo, o projeto teria de retornar à Câmara dos Deputados. “ Das duas uma: ou não se aprova emenda nenhuma ou se faz e o projeto volta para a Câmara”, disse Molon. “Eu não vou fazer parte de teatro dizendo que é emenda de redação quando não é.” Na mesma hora, ele pegou um avião de volta a Brasília, com a roupa do corpo, para que o projeto não fosse desfigurado em sua votação no Senado. A assessora, que não conseguiu passagem, ficou com a mala do deputado, explicando aos que chegavam onde é que ele tinha ido. Na arena Como extensão da conferência NETmundial, o Centro Cultural de São Paulo abrigaria a Arena NETmundial, espaço aberto à sociedade
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civil, com atividades, workshops, mesas com palestrantes da conferência e shows gratuitos. A Arena começara sua programação na véspera do NETmundial, no próprio dia 22. À noite, uma mesa composta por Ronaldo Lemos, Marcelo Branco, José Eduardo Cardozo, Bia Barbosa e Beá Tibiriçá, da ONG Coletivo Digital, discutiriam o Marco Civil da Internet, que simultaneamente aguardava por votação no Senado. Depois de Lemos e Bia, Beá mal havia iniciado sua fala, quando veio a notícia de Brasília: o projeto de lei havia sido aprovado por unanimidade no Senado. A notícia foi aplaudida com entusiasmo por mais de um minuto no Centro Cultural de São Paulo. Minutos depois, Molon, de Brasília, entrou ao vivo por videoconferêcia. Ele, que estava escalado para participar da mesa, se desculpou pela ausência e explicou sua volta repentina ao Congresso. “O projeto foi votado por unanimidade no Senado, e isso mostra a força que a gente conseguiu construir a partir da sociedade”, disse o deputado. “Esse projeto veio de baixo para cima, de fora para dentro do Parlamento. A gente foi só instrumento dessa vitória da sociedade aqui na Câmara e no Senado. Parabéns a vocês, que são autores do projeto, idealizadores, pais, mães… gente só tentou ajudar um pouquinho esse projeto avançar aqui na Câmara e no Senado. Uma vitória histórica para a gente. Parabéns a todos!” Em seguida, o telão exibiu outra videoconferência, desta vez com Paulo Rená, gestor do projeto na Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça no período da consulta pública. Depois, os membros da mesa descreveram sua participação pessoal no projeto e a importância dele para os usuários na rede, e leram comentários de usuários nas redes sociais sobre o projeto recém-aprovado. Para coroar a noite, um show de Tom Zé, que com a irreverência de sempre, elogiou a iniciativa, arrancou risadas e embalou as comemorações que se seguiriam por horas depois.
A votação no Senado foi marcada até por bate-boca em Plenário entre o petista Lindbergh Farias (RJ) e o senador Aécio Neves (PSDB-MG). No calor da discussão, o senador Mário Couto (PSDB-PA) saiu em defesa do colega tucano e teve de ser apartado pelo senador Randolfe Rodrigues (PSOL-AP). A oposição argumentou que era preciso aprimorar o projeto e que aprová-lo de maneira relâmpago serviria apenas para que o Palácio do
Planalto tivesse algo a apresentar no evento internacional no dia seguinte, em São Paulo. “Temos de votar hoje para a presidente Dilma apresentar um troféu?”69, questionou o líder do DEM, Agripino Maia (RN). Os oposicionistas chegaram a pedir um mês para analisar o projeto. Os senadores alegaram que a Câmara teve três anos para discutir a proposta e que o Senado estava sendo “atropelado”. “O Senado não pode se consolidar como chancelaria da Câmara e do Executivo”70, definiu o senador tucano Álvaro Dias (PR). Sob pressão do governo, os aliados sustentaram que o Marco Civil era uma demanda da sociedade e que a Câmara já produzira um projeto equilibrado. Todas as emendas foram retiradas – não houve alteração no texto aprovado em 25 de março pelos deputados. Pouco antes do início da sessão, manifestantes entregaram aos parlamentares a petição convocada por Gilberto Gil no Avaaz, que tinha reunido 350 mil assinaturas. O Marco Civil então seguia à sanção presidencial, que ocorreria no dia seguinte, 23 de abril, na abertura do NETmundial.
Desde o dia 17 de abril, as entidades civis integrantes do grupo Marco Civil Já, como Intervozes, Idec, Proteste, Artigo 19 e Mídia Ninja, haviam iniciado uma campanha solicitando à presidente Dilma que vetasse o artigo 15, que previa que provedores de aplicação, como Google e Facebook, fossem obrigados a guardar dados de usuários por seis meses. A ideia não era bater de frente com o artigo durante a tramitação nas Casas, já que o grupo entendia que sua aprovação já era tardia e mais do que necessária. A solução, então, foi redigir um documento pedindo veto presidencial ao artigo, que, segundo argumentavam, “violava diretrizes internacionais”, “tratava privacidade como mercadoria” e “violava princípios constitucionais”. Depois da aprovação no Senado, no dia 22, nem deu tempo de o grupo tomar uma cerveja para comemorar. “A gente foi mandar fazer cartaz e faixa, porque no outro dia começava o NETmundial e a gente iria pedir para a Dilma vetar o 15”, diz Bia Barbosa. Para o dia seguinte, ela e Beá Tibiriçá conseguiram, após seis meses de tentativas, alguns poucos minutos com a presidente Dilma Rousseff, no corredor atrás do palco de abertura do evento, logo antes 69 REDAÇÃO 70 Idem.
LINK, 22/04/2014. Disponível em: http://migre.me/mQe6m
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de ela entrar para fazer seu discurso. Infiltradas por articulação da Secretaria da Presidência da República, apresentaram o pedido de veto ao artigo 15, considerado o mais problemático pela sociedade civil. – Presidenta, a gente sabe que está em cima da hora, mas a gente precisa entregar essa carta para você. É a mesma que a gente já protocolou, mas queríamos entregar em mãos. A gente acha o artigo 15 muito complicado, presidenta. – Eu sei o que vocês acham. Eu já li o documento de vocês e entendo o que estão falando. Só que nós não vamos quebrar um acordo político que foi feito no Congresso Nacional. Esse artigo entrou no texto para que seis partidos o apoiassem, e nós não quebramos acordo político.
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Disse ainda que era um ponto no qual tiveram de ceder, mas só cederam porque achavam que o conjunto do texto trazia mais avanços. Elas compreenderam e agradeceram o fato de o governo ter colocado o projeto como uma causa prioritária. A presidente se despediu e subiu ao palco do NETmundial para sancionar, diante de centenas de pessoas de 97 países, o Marco Civil da Internet. “O Marco Civil tem duas virtudes iniciais: ninguém pode dizer que é autor e ninguém pode dizer que ganhou”, diz Carlos Affonso. “O Marco Civil não tem vencedor. Ele é um acerto de equilíbrio de interesses dos mais diversos dos setores envolvidos.”
Não acabou. O Marco Civil, agora elevado à categoria de Lei nº 12.965, ainda aguarda novas consultas públicas para sua regulamentação. A batalha, no entanto, se travará no Judiciário, que terá o duro desafio de produzir bons precedentes de aplicação da lei, sobre um tema ainda tão técnico e desconhecido. “Haverá uma briga agora sobre o decreto que regulamenta os casos de exceção de neutralidade da rede”71, diz Veridiana Alimonti, membro do Comitê Gestor da Internet e advogada do Instituto de Defesa do Consumidor (Idec). “A disputa das teles é na interpretação do texto aprovado. Não é só a questão de acordos entre telecoms e provedores de aplicações, dando conexão gratuita a usuários desses 71 PAPP
e RONCOLATO, 22/04/2014. Disponível em: http://migre.me/mQeuC
serviços, mas de muitos outros problemas.” “Estamos muito felizes, mas a luta continua, pois ainda haverá muita oposição ao projeto”, explica Beatriz Tibiriçá. “A pressão continua nas ruas, nas redes sociais, na luta pela lei de proteção de dados pessoais. É só o começo e o Brasil e pioneiro nesse processo e precisa afirmar sua posição. Agora é vigiar ativamente.”72
Ronaldo Lemos, um dos pais do Marco Civil, repete sempre que o projeto é um grande exemplo de que “a democracia funciona, mas dá trabalho”73. “Agora, o que a gente está fazendo é pegando as lições do Marco Civil e transformando em lições úteis para o mundo inteiro”, diz o advogado. “Gente do México já veio me procurar, de outros países, para tentar entender o que a gente fez e fazer algo parecido”, conta. E já começou. No dia 27 de outubro, seis meses após a sanção do Marco Civil brasileiro, o Congresso italiano colocou o primeiro rascunho de sua carta de direitos sobre a internet em consulta pública, Seguindo praticamente as mesmas etapas do Marco Civil na Câmara, o modelo italiano foi encaminhado por uma Comissão Especial (Comitê de Estudos em Direitos e Deveres na Internet) e deve ficar por quatro meses em consulta para comentários da população italiana. O rascunho lista 14 direitos na internet, como o direito de acesso à internet, proteção de dados pessoais, inviolabilidade de computadores, anonimato, direito de ser esquecido e ainda segurança, governança e educação. A pedra no sapato para a versão brasileira na Câmara, a neutralidade de rede, também está presente no documento. Segundo o texto, a garantia dos direitos na internet é “condição necessária para garantir o funcionamento democrático das instituições e para evitar a dominância de poderes públicos e privados que poderiam resultar em uma sociedade de vigilância, controle e seleção social”. O texto fica aberto para consulta até meados de fevereiro de 2015. Depois daí, percorrerá ainda os longos e sinuosos caminhos em busca do consenso – estrada essa que o Brasil já conhece bem. Resta ainda à Lei um outro trecho a percorrer, que promete ser tão ou mais conturbado quanto: o desafio de materializar artigos escritos em direitos garantidos, dia a dia, usuário a usuário, custe o que custar. 72 Idem. 73 PAPP
e RONCOLATO, 23/04/2014. Disponível em: http://migre.me/mQeyC
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[Agradecimentos]
Ao Autor da vida, por me renovar todas as manhãs; Aos meus pais, por me darem asas. Pelo amor desmedido, apoio incondicional e investimento de alma em tudo que sou e serei; À Gê, pelo colo sempre presente e pelas palavras de sabedoria e coragem; Ao orientador Eugênio Bucci, pela inspiração, paciência e por insistir, desde o início, na importância do jornalismo como um dos pilares da democracia; 130
Aos professores, à ECA e à USP, pelas discussões que se iniciaram em sala, nos corredores e reverberaram por horas em minha mente. Saio com muito mais dúvidas do que quando entrei – e isso é bom; Aos amigos ecanos, por me ensinarem a ver a vida com mais leveza. Aos brilhantes jormats 10, pela parceria e pelas conversas inspiradoras – o mundo precisa de vocês; À Mariana Payno e à Carolina Linhares, pela doce companhia e por dividirem comigo o aprender, o caminhar e tudo o mais que a vida ainda irá trazer; Ao Thiago Jardim, pelo apoio, bom humor e inspiração. Por chamar este projeto para si e criar um livro de encher os olhos; Ao Carlinhos Müller, pela genialidade em traços; Ao Murilo Roncolato, pela preciosa ajuda na revisão e pelas doses diárias de café e ânimo; Aos colegas do Estadão, pelo incentivo, paciência e por me iniciarem nessa conturbada e prazerosa jornada que é o jornalismo;
Ao Link, por contar a história deste livro – e tantas outras – quando ninguém mais estava prestando atenção; Aos muitos que me encorajaram, ajudaram e acalmaram nos cinco anos de graduação e durante a produção deste livro; Aos entrevistados para este trabalho, pelo tempo, atenção e boas histórias. Aos pais e mães do Marco Civil, por serem incansáveis; Aos que falam e lutam em nome da internet. Não parem.
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[Bibliografia]
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ESTA OBRA FOI COMPOSTA EM MINION PARA O TEXTO E STRIPED EDGES PARA OS TÍTULOS. IMPRESSÃO DIGITAL FEITA EM DEZEMBRO DE 2014.