Revista Porém

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senso comum 1. Conjunto de opiniões e valores característicos daquilo que é correntemente aceito num meio social determinado. 2. Nível de conhecimento subjetivo, superficial, não crítico nem sistemático. 3. Avaliação ou julgamento de ideias ou situações com base em formulações relativamente simples, ingênuas e, muitas vezes, até preconceituosas, resultantes da experiência direta (experiência de vida) das pessoas comuns.


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Porém


PORÉM o outro lado 1. Revista elaborada para a disciplina Projeto Experimental IV – Jornal Livre da Famecos, PUCRS, em 2013/1; 2. Ideia ou pensamento cuja referência indefinida encontra-se fora do âmbito do falante e do ouvinte, e que se contrapõe, implícita ou explicitamente, a algo ou alguém definido, conhecido; 3. Distinto, diferente.




Expediente d

Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) Faculdade de Comunicação Social (Famecos) Reitor Joaquim Clotet Vice-reitor Evilázio Teixeira Diretor da Famecos João Guilherme Barone Reis e Silva Coordenador do curso de Jornalismo Fábian Chelkanoff Thier

Realização da disciplina de Projeto Experimental IV – Jornal Livre Professores responsáveis Alexandre Elmi e Fábio Canatta Reportagem Débora Fogliatto, Gabriella Soltys, Gerson Doval Raugust, Júlia Lewgoy, Laís Auler, Larissa de Bem, Natália Otto, Nicole Franzoi, Shaysi Melate, Tyssiani Vidaletti e Voltaire Santos. Fotografia Bruna Canani, Camila Foragi, Jannis Scotá, Lívia Auler e Stephanie do Nascimento. Edição Ângela Correa, Anna Cláudia Fernandes, Gabriel Araujo, José Luiz Dalchiavon, Manuela de Almeida Ferreira e Paloma Poeta.

Avenida Ipiranga, 6681 Prédio 7 – Porto Alegre – RS – Brasil www.pucrs.br/famecos Julho de 2013

Fotos conceituais da contracapa, das páginas iniciais e das finais Lívia Auler


Carta ao leitor l

Preto ou branco. Oito ou oitenta. Direita ou esquerda. A ideia de que só existe o certo e o errado nunca esteve tão distante de ser verdadeira quanto nos últimos tempos. Em uma época em que nosso país passa por mudanças, muito se questiona sobre qual é o papel do jornalismo em moldar uma sociedade. Uma das primeiras coisas que o aluno de comunicação ouve quando entra no curso é: “Toda história tem dois lados”. Sempre existe um mas, um entretanto ou um porém. O jornalismo, assim como o mundo (matériaprima da profissão) não é preto no branco. São infinitas cores e conceitos. E é essa ideia que apresentamos para você, leitor, independente do quão trivial seja o assunto. De atos de terrorismo aos responsáveis pela educação

do Brasil, tudo tem um segundo ponto de vista. E é esse o desafio e a proposta da revista que está em suas mãos. Um pequeno grupo de estudantes se dedicou, durante o primeiro semestre de 2013, a contar as histórias a partir de um olhar livre, desimpedido. Deixamos de lado o senso comum, arrancamos os pré-conceitos da mente e nos perguntamos: será que é isso mesmo? Este exemplar questiona mais do que responde. Questiona no texto, na foto e no projeto gráfico. Dizer que as reportagens produzidas são a solução ou a resposta final a qualquer assunto seria contradizer a proposta da publicação. É esse, afinal, o papel do jornalismo. Questionar, e, acima de tudo, fazer com que você perceba que sempre existe um porém.


Após 25 anos vivendo em condições insalubres, as pessoas da Chocolatão passaram a morar em casas com água potável, energia elétrica e rede de esgotos. No dia 13 de maio, houve a festa de entrega oficial do Residencial Nova Chocolatão...

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68% da população acha que a educação é responsabilidade dos governantes...

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Sete em cada 10 presos que deixam o sistema penal voltam ao crime, segundo o Ministério da Justiça...


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11% foi o crescimento do número de processos abertos de 2011 para 2012. O de julgados aumentou 8,69%...

Ensaio por Lívia Auler

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Em 2011, 7.473 pessoas morreram devido a atos terroristas, segundo o Índice do Terrorismo Global, publicado pelo Instituto para a Economia e a Paz, que considera terrorismo: "O uso ameaçado ou real de força ilegal e violência por um ator não estatal para alcançar um objetivo político, econômico, religioso ou social por meio do medo, da coerção ou da intimidação"...


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Ensaio por Stephanie do Nascimento

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Nos primeiros quatro meses de 2013, o número de carros vendidos bateu a marca recorde de 1.164 milhão, contribuindo para congestionamentos cada vez maiores nas principais cidades do Brasil...

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A venda de imóveis cresceu 23,14% entre março de 2012 e fevereiro de 2013, segundo pesquisa do Sinduscon-RS...

O gasto mensal médio de um brasileiro com um animal de estimação pode chegar a R$ 307,91, segundo levantamento da Associação Brasileira da Indústria de Produtos para Animais de Estimação. São mais de 40 mil pet shops espalhados pelo país...


O Rio Grande do Sul é líder no consumo de carne no Brasil. Segundo o Sindicato da Indústria de Carnes, cada gaúcho come 45 quilos por ano, contra 36 quilos dos habitantes de outros Estados...

90 80

“Maridos, amem cada um a sua mulher [...] Vós, mulheres, sujeitai-vos a vossos maridos.” (Efésios 5:22-23-25)...

Porto Alegre é a capital nacional dos solteiros. São cerca de 400 mil homens e mulheres livres...

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68% da população acha que a educação é responsabilidade dos governantes. PORÉM....

Texto por Gerson Doval Raugust Foto por Stephanie do Nascimento


Os mestres est茫o Ss贸s 贸s Os mestres S


N Escola Dr. José Carlos Ferreira convive com a pouca verba pública e a ausência dos pais

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o início de cada ano letivo, uma cena é bastante comum. O rosto ansioso das crianças na expectativa do seu primeiro dia de aula, enquanto seguem de mãos dadas com os pais até chegar à frente da professora. A partir dali, ela irá conduzi-los à sala de aula. Essa tradicional sequência que se repete ao longo da história simboliza, em muitos casos, a ideia de que nesse momento a responsabilidade da formação dos pequenos passa a ser da escola. É como se a família assinasse uma procuração, transferindo o trabalho de educar seu filho à instituição de ensino. Ela espera que depois de um pouco mais de uma década, aquele pequeno ser seja agraciado com o certificado de

conclusão do Ensino Médio, e pronto para enfrentar o mundo. Durante todo esse período, ouve-se com frequência reclamações quanto à qualidade do ensino e, principalmente, aos baixos investimentos públicos. Isso fica evidente quando 68% da população credita aos governantes a responsabilidade da educação. Esse é o resultado de uma pesquisa realizada em 2008 pelo projeto Educar para Crescer, do Grupo Abril, e o IBOPE em nove regiões metropolitanas, incluindo Porto Alegre. Acontece que o processo de formação não começa com o primeiro toque do sinal do colégio, ele se inicia bem antes, dentro de casa. O incentivo deve partir dos pais, entretanto, o último Censo realizado pelo IBGE, em 2010, aponta que 705 crianças


a turma de Grace realizava durante a pré-escola. Com o fim do casamento, foi preciso reorganizar os horários para que tudo se mantivesse funcionando e a criança não fosse prejudicada. Assim, Grace passou a fazer sozinha as tarefas escolares e as mostrava para a mãe à noite. As dúvidas que surgiam e as ajudas necessárias eram resolvidas nesse momento. “Eu entendia que ela não tinha tempo suficiente para fazer mais, então tive que ter autonomia desde cedo”, explica Grace. Ela faz questão de frisar que com o pai não era diferente: “Sempre soube da preocupação do meu pai, mesmo que de longe”. A separação não impediu que os pais conversassem sobre a filha, o que se mostrou positivo para o desenvolvimento dela na escola. A mãe sempre fez questão de acompanhar todas as reuniões que aconteciam. “Era uma forma de manter contato com a vida letiva da Grace, que para mim era muito tranquila. Sempre recebi elogios dos professores que comentavam o bom desempenho dela na aula”, lembra Meriângela. Juntos, os pais trataram de um problema de Grace: ela possuía alguma dificuldade em matemática. O pai custeou aulas de reforço, que aconteciam perto da casa dele. Assim, apesar de ficar em recuperação terapêutica, ela conseguiu sua aprovação. Jurema Potrich explica que possuir dificuldades em um ou outro conteúdo é normal. A partir delas que, muitas vezes, é possível definir o rumo da vida. A maior facilidade em disciplinas da área de humanas ou exatas ajuda a escolher qual o caminho seguir. Mas para isso acontecer, é preciso duas coisas, acompanhamento e autonomia. Torna-se necessário conferir se o desempenho anda baixo no todo ou em uma matéria específica. Sendo apenas em uma, aulas extras podem resolver. Jurema ressalta que não se deve impor metas em relação às notas

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crianças entre 10 e 14 anos de Porto Alegre nunca frequentaram a escola Fonte

IBGE

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da Capital, entre 10 e 14 anos, nunca frequentaram uma escola. Para a psicopedagoga Jurema Potrich, professora da Faculdade de Educação da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e que também atua no Centro de Assistência Psicossocial (CAP ) da universidade, a família tem um papel importante por ser o primeiro núcleo social da criança. É nela que se formam todas as questões de construção subjetiva do sujeito, entre elas a educação. A escola é o segundo sistema no qual ela fará parte e começará a expandir suas relações. “Na família, a criança ocupa sempre o mesmo papel, ela é o filho, o irmão menor ou irmão mais velho. Na escola ela tem oportunidade de exercer diferentes papéis. Ela pode fazer parte de um grupo hoje e outro amanhã. Pode ser melhor em matemática ou em português”, explica a psicopedagoga. Grace Perillo completou o Ensino Médio com 16 anos. Frequentou instituições públicas durante a maior parte da Educação Básica. O Ensino Fundamental foi em quase toda a sua totalidade na escola estadual Venezuela e depois transferiu-se para a, também estadual, Presidente Costa e Silva, onde concluiu os estudos, ambas no bairro Medianeira. Atualmente divide seu tempo entre o curso de Magistério no Instituto de Educação General Flores da Cunha e um pré-vestibular, para pleitear uma vaga em Letras na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Dito dessa forma parece que a vida escolar dela foi sempre tranquila, porém não foi bem assim. Quando tinha seis anos, enfrentou a separação dos pais. Isso não significou apenas que eles morariam em diferentes casas, mas também que sua mãe, Meriângela, ficaria mais tempo afastada em função do trabalho, que passou a ser em turno integral. Até então ela era bastante participativa, inclusive acompanhando passeios que

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Se tu sempre deres autonomia, não precisa ficar cobrando. Auxiliar não é cobrar. Jurema Potrich, psicopedagoga

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e ameaçar com punições caso elas não sejam atingidas. Uma situação tradicional é falar para a criança que, se ela for reprovada, não irá ganhar presente no Natal. “Uma coisa não se relaciona com outra. Quando chegar o Natal, ele não irá lembrar porque não está ganhando presente, e o que é pior, ninguém vai deixar de dar o presente”, critica a psicopedagoga. É preciso passar para o jovem a importância das coisas e que ele é responsável por elas. O que não pode ser confundido com uma exigência de que tudo tem que ser em excelência, pois pode se tornar uma cobrança pesada demais. “Por que é preciso 10 em tudo? É ótimo que tire, mas é uma coisa que o próprio jovem tem que saber. Bem, eu sou bom em uma coisa, não tão bom em outra e esta aí é a minha área, minha definição profissional”. A psicopedagoga explica que sem a pressão, com diálogo e autonomia, o próprio jovem identificará suas dificuldades e irá informar que precisa ajuda. A postura da Meriângela em relação aos estudos da filha vem da sua visão de que é necessário garantir desde cedo a independência dos filhos, mas sem que eles se sintam abandonados. “É importante acompanhar nas tarefas para incentivar, mas não fazê-las no lugar do aluno. Deve ser ensinada a autonomia, que no futuro será cobrada. Nem sempre estaremos ao lado para solucionar. O papel da família na forma de incentivo, também é fundamental, pois fatores externos podem desmotivar o estudante”, comenta. Apesar de não se conhecerem, Meriângela parece seguir uma cartilha escrita por Jurema. Para a psicopedagoga, a base da participação está no acompanhamento da aprendizagem da criança. Desde o início é preciso estar presente, auxiliando-a a ter autonomia. Não se deve fazer nada por ela, caso não consiga dar conta de uma tarefa ou pesquisa, os pais devem participar, mas

é o aluno quem deve sempre executála. Ela descreve um péssimo hábito: ao prever alguma dificuldade dos filhos, os responsáveis se antecipam e fazem por ele. O procedimento correto seria questioná-lo, saber se ele se sente apto a cumprir a tarefa e acompanhá-lo. “Se tu sempre deres autonomia não precisa ficar cobrando, e auxiliar não é cobrar”, completa. Mesmo com responsabilidades diferentes, cada envolvido precisa exercer sua parte plenamente, com o risco de sobrecarregar o outro lado e afetar o desenvolvimento da criança. “Se eu não tratar educação com o binômio família-escola, eu não estou tratando de forma integral”, ressalta Jurema. Ela explica que ambos precisam atuar em harmonia, não em oposição. Os eventuais conflitos que podem surgir devem ser solucionados através do trabalho mútuo. Se um atrito é resolvido, gerará situações positivas com as quais todos crescem, no caso inverso, quem perde é a criança. Assim, a escola também é responsável pela educação e formação do cidadão, porém, a família não pode deixar de cumprir com o seu dever e delegar para a instituição de ensino uma responsabilidade que não é dela. Essa meta parece bastante distante para a escola Dr. José Carlos Ferreira, no bairro Partenon em Porto Alegre. Próxima da Vila Maria Conceição, possui cerca de 300 alunos, a sua maioria de famílias de classe média baixa. A região é uma área conhecida pelo domínio do tráfico, não sendo raro estudantes possuírem alguma relação com o crime. Ela ocupa uma das mais baixas posições entre as escolas públicas estaduais de Porto Alegre na avaliação do IDEB (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica), com 3,2 para as séries iniciais (1º ao 5º ano) e 2,1 nas séries finais (6º ao 9º). O indicador foi criado pelo Governo Federal, em 2007, para medir a qualidade do ensino. Sua


Mas os problemas não se restringem apenas às reuniões. Durante o ano letivo, conseguir que tarefas sejam executadas fora do horário de aula é um desafio. Os alunos dos primeiro ano, por exemplo, têm um livro onde existem atividades diárias para serem feitas em casa, com a ajuda dos pais. Porém, Simone conta que nem todos fazem e existem

Grace Perillo dedica tempo aos estudos para realizar o sonho de ser professora

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composição é feita por meio das notas obtidas em provas específicas, mais índices de aprovação e evasão. Elas vão de zero a 10 e o objetivo é que a média nacional seja seis, a mesma de países desenvolvidos, em 2022, quando se comemora o bicentenário da República. Não bastando essas dificuldades, os professores deparam com outro problema: a pouca participação da família no acompanhamento dos alunos ou dentro da comunidade escolar. A professora Simone Mossmann, cita como exemplo, a ausência na primeira reunião com os pais, ocorrida em 2013. Responsável por uma turma de primeiro ano e outra do terceiro, tem um total de 43 alunos. No encontro, ela contou com a presença de oito responsáveis, todos do primeiro ano. Da sua outra turma, não havia ninguém. Conforme Simone, o evento desse ano foi o melhor desde que ela começou a lecionar na escola, em 2010. A situação fica ainda pior para as turmas mais avançadas. A professora de Geografia e História Viviane Dapper explica que a reunião é feita em dois blocos, o primeiro é geral, depois o grupo é dividido entre as séries iniciais e finais. “Como a maioria dos pais tem muitos filhos, quando vem o deslocamento, esvazia a sala porque os responsáveis são os mesmos e a gente (professores das séries finais) fica a ver navios”, explica. A atividade serve para a apresentação da escola, dos professores e a explicação das normas e diretrizes que serão aplicadas durante o ano. O número total de participantes ficou entre 25 a 30 familiares e responsáveis. Inicialmente, os encontros eram marcados para os sábados pela manhã, mas a baixa participação fez com que passassem a acontecer no final da tarde, sempre com o objetivo de não prejudicar os pais em seu horário de trabalho e garantir uma maior presença.

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muitos casos nos quais os próprios pais preenchem o livro. Na sua outra turma, do terceiro ano, ela costuma passar atividades de pesquisa, mas são poucos os que as realizam e são sempre os mesmos. Viviane explica que a forma encontrada para que as tarefas das turmas mais velhas sejam executadas foi fazer com que elas componham a avaliação. Assim, além de provas e trabalhos, a nota conta com um percentual para a participação em aula, assiduidade e realização de exercícios propostos. Cristiane Cardoso, orientadora da escola fala que para esse quadro ser alterado é preciso primeiro mudar a forma com que a escola é vista. Muitos alunos só comparecem às aulas porque as famílias recebem o Bolsa-Família e o pagamento está vinculado à presença em aula. “Eles não vêm pelo estudo, vêm pelo benefício. Eles não estão aqui para aprender, para ser alguém na vida, estão pelo interesse”, critica a orientadora. Viviane relata que muitos chamam a escola de presídio ou Carandirú (em alusão à casa

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de detenção paulista palco de um massacre durante uma rebelião em 1992), e que está sendo feito um trabalho para que isso mude. “A gente vem trabalhando para mudar essa mentalidade, de que a escola não é isso, de que não é um lugar onde eles devem se sentir presos e sim um lugar onde devem se sentir bem, um lugar que abre as portas para que cresçam como cidadãos, pessoas de bem, como um bom trabalhador. Para que depois daqui eles tenham uma outra realidade”, explica. Além disso, existe mais um agravante, que está nas próprias famílias. As professoras relatam que muitos pais reclamam quando acontecem reuniões internas na escola e os filhos vão para casa mais cedo. Vários deles já se manifestaram em favor do turno integral ou pela volta do sistema de internato, com o filho indo para casa somente nos finais de semana, apontando as crianças como um problema em casa. Outra dificuldade está na compreensão do que é a responsabilidade da escola

Hoje em dia existe uma inversão tão grande de valores na questão de responsabilidades, que os pais acham que a gente tem que educar e a gente tem que ensinar. Viviane Dapper, professora


65%

dos presos em penitenciárias masculinas não possuem Ensino Fundamental completo Fonte

Ministério da Justiça

e a da família. “Hoje em dia existe uma inversão tão grande de valores na questão de responsabilidades, que os pais acham que a gente tem que educar e a gente tem que ensinar. Os pais precisam entender que somos uma extensão da casa deles. Nós vamos dar a educação intelectual do aluno. A parte da responsabilidade e respeito tem que vir de casa”, conclui Viviane. Apesar de não gostar de generalizações quando fala em indivíduos, Jurema afirma que existem algumas questões do mundo contemporâneo que pesam na relação entre família e escola. Uma delas é a dos limites. É responsabilidade do núcleo familiar começar a impô-los, depois ele passa para o ambiente escolar. Ambos precisam pensar “nós

Porém

Cristiane mostra ata de reunião com poucas assinaturas

dois estamos educando esse aluno, nós dois precisamos ensiná-lo a viver e a respeitar limites”, sentencia. Ela explica que toda a criança é egocêntrica e passa por um processo de maturação que se inicia em casa e continua em sala de aula. Quando um aluno faz algo errado no colégio e os pais são chamados, eles não podem passar a mão por cima ou tentar diminuir a importância do fato, pois isso fará com que aquela atitude seja reforçada e a criança pense que não precisa respeitar o que lhe foi imposto. A efetiva participação dos pais no acompanhamento escolar está diretamente ligada ao futuro da criança. A comprensão pelo aluno de que o estudo é importante para sua formação depende desse envolvimento. Um exemplo é o último levantamento realizado pelo Ministério da Justiça em 2012, que indica que 65% dos presos em penitenciárias masculinas não havia concluído o Ensino Fundamental. Quando a parceria escola-família estiver consolidada, ela só trará vantagens ao estudante. “Todos esses papéis são para a constituição de um cidadão que no final terá conhecimento dos seus direitos e de seus deveres. É aquele que, depois, não dirige alcoolizado ou a mais de 200 quilômetros por hora porque tem o pardal ou o azulzinho, mas porque sabe que não deve fazer isso e colocar em risco sua vida ou a do outro”, explica Jurema. Grace Perillo deverá ter participação efetiva nesse processo. Ao concretizar seus planos, em alguns anos, estará em sala de aula novamente, porém exercendo um novo papel. Como professora, ensinará as crianças com a expectativa de ter o apoio e participação dos pais para que o desenvolvimento de seus alunos aconteça de forma plena. Entretanto, para isso, ela precisará que cenários atuais, como a da Dr. José Carlos Ferreira, mudem radicalmente. p

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Após 25 anos vivendo em condições insalubres, as pessoas da Chocolatão passaram a morar em casas com água potável, energia elétrica e rede de esgotos. No dia 13 de maio, houve a festa de entrega oficial do Residencial Nova Chocolatão. PORÉM...


Texto por DĂŠbora Fogliatto Fotos por Stephanie do Nascimento

novos v lhos problemas E

oshl v osvno problemas E


N

este 13 de maio, completaram-se dois anos desde o reassentamento da Vila Chocolatão sob o pretexto da construção de um estacionamento para o Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4). A comunidade era a mais antiga ocupação urbana de moradores de rua de Porto Alegre e uma das primeiras do país. Localizada no centro da cidade, entre prédios do Judiciário Federal, os moradores estavam ali há mais de 20 anos quando foram removidos. Eles foram relocados para a Avenida Protásio Alves, número 9.099, quase no limite entre a Capital e Viamão. Com a mudança, vieram as dificuldades. Nas novas unidades habitacionais, os moradores enfrentaram problemas para continuar com as atividades de catadores, tiveram que começar a arcar com os custos de água e luz e viram-se cercados por outras comunidades com problemas relacionados ao tráfico de drogas e a gangues. José Luís Ferreira, uma das cerca de 700 pessoas que foram relocadas com a vila, explica que as condições de moradia de fato melhoraram, mas que a maioria dos moradores não se sentiu beneficiada. “O assentamento (no Centro) foi feito para pessoas que vinham da rua, não tinham profissão, não tinham capacitação. Então essas pessoas foram embora, porque aqui (na nova vila) elas não conseguiram sobreviver. Elas voltaram pro centro, estão na rua novamente”, explica. “Eles ganhavam mais quando catavam lixo na rua do que hoje. Não tem sentido isso", lamenta Luís. O presidente da Associação de Moradores da Comunidade, Rogério Brasil Moraes, concorda que a reciclagem era mais lucrativa no Centro. "Para mim, não foi uma mudança boa. A reciclagem aqui é um

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meio de subsistência, mas nunca é o suficiente", relata. Por ser uma comunidade formada principalmente por catadores de lixo e recicladores, a antiga localização, na Avenida Loureiro da Silva, era a ideal para seus moradores. A Nova Chocolatão apresenta vários obstáculos para o exercício dessa função: está localizada em uma área inclinada, em que é necessário subir uma lomba para chegar, fica longe do Centro e o galpão de reciclagem construído não é o suficiente para o sustento de todos que precisavam dele. A usina fica na entrada da Nova Chocolatão. Passando por ela e seguindo pela rua asfaltada, há mais de cem casas idênticas, localizadas nos dois lados da via. A comunidade é limitada a uma rua e duas ou três ruelas sem saída. Em dois pontos, há quebra-molas amarelos, colocados após reivindicações dos moradores contra carros que apostavam corrida no local, atropelando diversos cachorros e até crianças. Os animais existem em grande quantidade e passeiam tranquilamente pela rua pouco movimentada que não leva a lugar nenhum. Com a ajuda do Grupo de Assessoria Jurídica Popular (GAJUP) do Serviço de Assessoria Jurídica Universitária (SAJU) da UFRGS e do Ministério Público, os moradores conquistaram o direito de não pagar pelas novas casas. Rogério explica que a cobrança era realizada como um aluguel permanente. "Fui nas reuniões com o Tribunal Regional Federal (TRF) antes da gente se mudar e disseram que não iam cobrar nada. Quando nos entregaram as casas começaram a cobrar”, conta. Por residirem na área há quase 30 anos e, portanto, terem conquistado o direito à usucapião, foi considerado que era irregular da parte da Prefeitura cobrar pelas habitações,

Após a demolição das casas, sobram os escombros


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A Nova Chocolatão está distribuída em 180 casas em uma rua

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levando-se em conta também que as remoções foram forçadas. O GAJUP encaminhou laudo para o MP, que pediu explicações a respeito da legislação utilizada. No final de abril, o Departamento Municipal de Habitação (Demhab) garantiu que a cobrança havia sido cancelada. Os primeiros dois meses foram os mais complicados para os moradores reassentados. A nova localização é próxima a outras comunidades carentes, em uma área definida por Rogério como "bairro de gangues". Carlos Roberto de Souza, conhecido como Carlinhos, vice-presidente da associação de moradores, relata que via homens armados entrarem na vila em plena luz do dia. "No início, eles chegavam armados e invadiam (a rua). Por dois meses durou esse estado de guerra”, relata. Agora, dois policiais da Brigada Militar residem na Nova Chocolatão para inibir esse tipo de ataque. Carlinhos concorda que a violência tenha diminuído, mas explica que o fato de haver muito mato em volta da rua, além da falta de iluminação, faz com que os residentes acabem saindo pouco de casa quando escurece. Subindo a rua, no meio de dois

blocos de casas, há uma área de mata nativa cercada por grades. Carlinhos explica que aquela vegetação não pode ser retirada de lá, mas lamenta que isso acabe trazendo animais como aranhas e cobras para perto da comunidade. Além disso, o esgoto passa pela mata sem estar encanado, o que faz com que os moradores das casas em torno dela tenham que conviver com o odor e corram riscos de saúde. Uma das maiores lutas atuais do vice-presidente é pela reforma e segurança das áreas de lazer. A pracinha e a quadra de esportes ficam perto da creche, no final da rua, longe da maior parte das casas e cercadas por mato. Alguns brinquedos estão estragados, e a grama cresceu, consumindo a praça. Carlinhos explica que é perigoso para as crianças brincarem lá sozinhas, principalmente depois de escurecer, porque elas podem se perder no mato e qualquer um pode chegar até lá sem ser visto, devido ao escuro. "A praça não deveria ser no final da rua, longe das casas, foi mal planejado isso. Agora precisariam cercar e colocar algum guarda ali, porque é um lugar isolado e perigoso",


Mudança trouxe gastos

Na Vila Dique, antigamente localizada na Avenida das Indústrias, ao lado do aeroporto, a situação é parecida. Em 2009, a Prefeitura lançou um plano para aumentar a pista do Salgado Filho, visando as obras da Copa do Mundo de 2014. A ampliação diminuiu a Vila Dique, forçando seus moradores a saírem de suas casas e irem para novas habitações. Com a construção do Conjunto Habitacional Porto Novo, conhecido popularmente como Nova Dique, a Avenida Bernardino Silveira Amorim tornou-se o novo endereço de 1.476 famílias. Apesar das melhorias em infraestrutura, muitos moradores não acreditam que os reassentamentos tenham sido vantajosos. Miranda Gambin, que já tem uma casa na nova vila, diz que a situação não é melhor do que a anterior aos despejos. “Acho que melhorou a parte dos esgotos, mas piorou a situação, porque as pessoas não estavam preparadas para pagar

água, luz, prestação de casa”, explica. Miranda relata que o cadastramento dos moradores foi realizado em 2005, mas as remoções só começaram em 2009. Nesse período, as configurações familiares mudaram, o que prejudicou os reassentamentos. Jovens que tinham 16 anos e, portanto, não tinham direito a uma casa na época do cadastro, quatro anos depois estavam com 20 anos e muitas vezes já casados e com filhos. Da mesma forma, casais da época se separaram e mais crianças nasceram. “Meu filho era casado e era titular do cadastro. Quando ele se separou em 2007, minha ex-nora saiu de casa e voltou pra vila com outra pessoa, foi morar atrás da casa da mãe dela. Como ela tem uma filha com meu filho, ela foi no Demhab e conseguiu a casa”, contou Miranda, explicando que seu filho atualmente paga aluguel em outro lugar e aguarda uma solução. Na Nova Dique, as casas foram construídas em sua maioria com dois pisos, uma grudada na outra. O tamanho das residências, 36m², é o mesmo para todas as famílias, independente de quantos membros elas tenham. Para aumentar a área, é preciso ter autorização do Demhab, mas mesmo com ela é difícil conseguir expandir as residências, devido à proximidade entre elas. José Jucelino Melo, um dos moradores que foram reassentados, acredita que a remoção só tenha causado confusão para a vila. “Nós construímos nossas casas na Dique, e a Prefeitura nunca nos deu nada. Daí eles foram lá, destruíram nossas casas, nos arrastaram para a casa nova e ainda nos fizeram pagar”, resume. O filho dele, assim como o de Miranda, não se mudou para o Porto Novo devido a problemas no sistema de cadastramento. As famílias que foram despejadas não ganharam as casas da Prefeitura, Porém

reivindica. Por esses motivos, crianças jogam bola no meio da rua mesmo. Muitos dos pequenos vão à creche da comunidade que, no entanto, só fica aberta até as 17h. Há 106 crianças na escola, a maioria delas residente da Chocolatão. O reassentamento é considerado um “modelo” internacional, tendo sido inclusive elogiado pela Organização das Nações Unidas. O que se observa, no entanto, é um exemplo de uma comunidade pobre sendo removida de uma área central para a periferia. Dois anos depois da mudança, os benefícios ainda não são claros para os moradores. “A metade já saiu da Nova Chocolatão. Então não pode ter sido bom o reassentamento, porque a metade já foi embora”, simplifica Luís.

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Na Nova Chocolatão, crianças brincam na quadra malcuidada ou nas ruas

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mas estão pagando por elas. Devido ao custo, muitas pessoas optaram por vender seus imóveis e viver de aluguel, ir para outras vilas ou se mudar para o Interior. Por isso, atualmente alguns dos residentes nunca foram moradores da antiga Dique, o que revolta os que permaneceram lá. Mais de cem famílias ainda moram na velha Dique, aguardando uma resposta a respeito de suas futuras moradias. De acordo com Lisandra de Oliveira Vargas, uma das mulheres que reside em meio aos escombros

em torno do aeroporto, as casas da nova vila foram cedidas a quem tinha maior poder aquisitivo. Os mais pobres, que habitam a área da estrada de chão da Dique, permaneceram. Agora, já que oficialmente a comunidade foi reassentada, eles vivem em meio a entulhos e cercados por mato, devido às demolições de casas ao seu redor, e sem posto de saúde, creche, associação de moradores, padarias ou armazéns. Há apenas um bar no local. Esses fatores, combinados com a falta de iluminação, tornaram a região


são as únicas comunidades que foram removidas. Em Porto Alegre, o Demhab já reassentou 51.388 famílias desde 1955. Esse é o ano em que se tem o primeiro registro de um loteamento construído para moradias. Na época, foram erguidas 1.005 moradias populares para a Vila São José, no Bairro Partenon. Desde então, sob o pretexto da melhoria na qualidade de vida, milhares de cidadãos assistem à demolição de suas moradias, muitas vezes sendo obrigados a ir para longe do local onde sempre viveram. p

Moradores receberam novas casas, mas encontraram mais problemas de espaço

Porém

bastante suscetível a roubos e furtos. De acordo com os próprios moradores, eles não têm voz em relação a quem e quando se mudar: representantes do Demhab chegam lá e indicam a casa que deve ser demolida. Sem ter sido avisadas previamente, no dia em que são expulsas as famílias recebem a chave da nova residência. “Eles não querem saber quantas pessoas moram ali, derrubam as casas e levam pra casa nova”, relata Lisandra. E ironiza: “É assim, chave na mão, maloca no chão”. A Dique e a Chocolatão não

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Sete em cada 10 presos que deixam o sistema penal voltam ao crime, segundo o Ministério da Justiça. PORÉM... foto: Sidinei Brzuska, juiz da Vara de Execuções Criminais, quem fiscaliza o interior dos presídios, para conferir se as condições de tratamento são humanas


a busca pela novA Chance a busca pela C

Texto por JĂşlia Lewgoy Fotos por Bruna Canani


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o voltar à vida, depois de 10 anos na prisão, Edson Mariano dos Passos conheceu o mundo novamente. O que para a população em geral era óbvio, para ele era um reencontro, um conflito, uma batalha. Até mesmo subir no ônibus havia mudado: entrava-se agora pela porta da frente, não mais pela de trás. Mas nada disso era tão significativo como uma decisão: ele não voltaria ao crime. Hoje Mariano é empresário, pai de família, tem casa própria e documento. O sorriso sincero escancara o orgulho que sente pela dignidade conquistada. Há três anos, Mariano é proprietário de uma microempresa de construção civil no Bairro Restinga, zona sul de Porto Alegre. Ao mesmo tempo em que é chefe de outras duas pessoas, ele põe a mão na massa e reconstrói o amorpróprio. Experiência ele tem desde pequeno, quando ajudou a erguer

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Ex-presidiário, Edson Mariano busca dignidade

as casas da mãe e da vizinhança no Bairro Restinga. Dos R$ 2 mil que tira por mês, ele se sustenta e ajuda a criar a filha Evellym, de três anos, que mora com a mãe. "Quando digo para minha filha que o pai precisa ir embora porque ele tem que trabalhar, ela diz 'boa noite, pai, bom descanso'. Eu sou o orgulho dela", conta. A menina é a motivação que faltava para ele seguir firme, sem voltar para o crime. Mariano saiu da Penitenciária Estadual de Charqueadas, única cadeia de segurança máxima no Rio Grande do Sul, depois de cumprir pena por homicídio e tráfico de drogas. Na noite em que ganhou a liberdade, recebeu uma autorização de passe livre no ônibus, assinada por um agente penitenciário. E só. Não tinha emprego, dinheiro para comer, roupas, nem sequer documentos. Mas tinha família com quem mantinha contato – avó, mãe e namorada – e alguns poucos amigos, as únicas pessoas que olhavam para


especialista em Direito Criminal

ele como um ser humano, não como um criminoso. Mariano apaixonou-se por uma moça, hoje sua ex-mulher, quando ouviu sua voz no celular, de dentro da prisão. Foi então que começou a escrever cartas com poesias de amor dedicadas a ela e enviá-las por meio da mãe, nas raras vezes em que ela conseguia visitá-lo em Charqueadas. Os poemas, que gostava de escrever desde criança, conquistaram a moça, que foi visitá-lo no presídio e o ajudou a reconstruir a vida. O convite para voltar ao tráfico era tentador. Eram R$ 3 mil só para aceitá-lo, e ele ainda receberia o cargo de chefe da "boca" na Restinga. Mas não. Dez anos vivendo no inferno o fizeram perceber que a rotina longe do crime, apesar de tão dura, valia mais a pena. Hoje, no Brasil, Mariano é exceção. Os dados do Ministério da Justiça apontam que sete em cada 10 presos que deixam o sistema penal voltam ao crime. Durante o tempo em que esteve preso, de acordo com a Lei de Execuções Penais, instituída em 1984, Mariano teria direito a comida, roupa, higiene, remédios, atendimento médico e odontológico, advogado, documentação, instrução escolar e formação profissional. Na prática, só o que ele e seus colegas de cela recebiam do Estado era alimentação e um colchão espremido, sobre um chão úmido. "Lençol, creme dental, sabonete, roupa, coisas básicas que nós em geral não vivemos dois dias sem, eles não têm. Era o que faltava para se afundarem ainda mais", diz o juiz da Vara de Execuções Penais de Porto Alegre e da Região Metropolitana, Sidinei Brzuska, responsável pela

fiscalização de 27 estabelecimentos prisionais no RS. Sua rotina envolve inspeções diárias no interior dos presídios. "O que acontece dentro das nossas prisões é uma desumanidade", afirma Brzuska. Se as famílias não dão, as facções criminais fornecem e assumem a função, que o Estado recusa, de colocar ordem no caos. Durante os anos em que José Carlos Custódio esteve preso, ele resistiu às facções. Nas visitas dos irmãos e sobrinhos, recebia alimento, zelo e proteção. A família foi seu alicerce para o sustento e o cuidado fora da prisão. Hoje José Carlos é funcionário da prefeitura de Porto Alegre, onde é um dos 3.195 homens que usam uniforme laranja e sobem e descem dos caminhões para recolher o lixo. Antes, ele havia conquistado o primeiro emprego em uma construtora civil em Sete Lagoas (Minas Gerais) onde morou por quatro anos. José Carlos não aguentou ficar longe dos parentes e retornou a Porto Alegre. A família é a maior aliada e o principal degrau para a ressocialização. Para quem não tem estrutura emocional e material fora do presídio, as chances de retornar ao crime são imensas. "Tudo conspira contra a força de vontade. Quem tem família tem mais chances de sobreviver a esse inferno", destaca Rogério Garcia, especialista em Direito Criminal e professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Ao abismo da prisão, soma-se o descaso do poder público em amontoar pessoas que antes tinham em comum apenas o crime. Segundo dados de dezembro de 2012, a Porém

Tudo conspira contra a força de vontade. Quem tem família tem mais chances de sobreviver a esse inferno. Rogério Garcia,

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A gente já cumpriu nossa pena e não tem mais nada a esconder de ninguém. Edson Mariano dos Passos, ex-presidiário e microempresário

população carcerária no Brasil é de 548.003 pessoas, enquanto há vagas para apenas 310.687. Só no Rio Grande do Sul, são 29.243 presidiários e presidiárias, em 98 estabelecimentos penais, enquanto há vagas para 21.447 pessoas. Ao egresso do sistema penitenciário, em liberdade condicional ou pelo prazo de um ano a partir da liberação definitiva do sistema, em tese, o Estado deveria garantir apoio para reintegração social, alojamento e alimentação por dois meses, além de ajuda para conseguir emprego. Como explica Rodrigo Azevedo, professor da PUCRS e líder do Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas de Segurança e Administração da Justiça Penal, na vida real, em que a lei não é cumprida, quase ninguém fornece esse apoio. "Na prática, prisão não contribui para ressocializar ninguém, apenas produz efeitos", aponta o especialista. A reincidência é o principal deles. O raro auxílio para retomar o cotidiano longe do crime vem de entidades religiosas ou organizações não governamentais, como a Fundação de Apoio ao Egresso do Sistema Penitenciário (Faesp), em Porto Alegre. Essa instituição luta há 15 anos para reduzir a violência por meio de apoio a quem sai da prisão. "Se o próprio Estado descumpre o que a lei diz, resta a nós enxergarmos a condição especial de fragilidade que essas pessoas têm", diz Tânia Souza, professora e diretora voluntária da instituição. São os egressos que vão atrás da Faesp, enquanto a fundação

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apenas abre as portas para quem busca ajuda. A ação é humilde, mas determinante para quem procura e costuma encontrar apenas portas fechadas. Quem sai do sistema prisional está etiquetado, não importa se cumpriu sua pena como a lei determinou. Agnaldo Gonçalves, que passou 23 anos na prisão por tráfico de drogas e assalto a banco, é ajudado pela fundação há 10 anos. Durante esse período, ganhou os dentes que havia perdido em brigas no crime, conseguiu seus documentos de volta, fez um curso de marceneiro, trabalhou como pintor, encontrou uma esposa e teve duas filhas. Atualmente, é funcionário da Faesp, ainda participa regularmente de encontros educacionais e tem assistência psicológica. Encontrar um emprego, de preferência durante o regime semiaberto, é decisivo para não retornar ao crime. Na teoria, esta etapa da pena serviria como um degrau, para auxiliar no retorno à vida fora da prisão. A maioria dos egressos, no entanto, não consegue emprego ou estudo nesta fase e acaba fugindo da cadeia ou retornando ao regime fechado. Paulo Ricardo da Silva Amaral, 40 anos, passou três anos preso por assalto, consequência do envolvimento com drogas, e conseguiu, com a ajuda de uma assistente social, um emprego como coveiro em um cemitério de Porto Alegre, durante o regime semiaberto. Depois de um ano e quatro meses,


Na Faesp, em Porto Alegre, egressos recebem apoio para não voltar ao crime

vagas, ele compete com quem não tem passagem pela cadeia. Paulo Ricardo nunca mais assaltou ninguém e nem voltou a usar drogas. Tenta, aos poucos, recuperar o contato com os quatro filhos, que perdeu devido ao envolvimento com o crime. Poucos dias antes da entrevista, a exmulher lhe contou que uma das filhas passou em um concurso e ganhou uma bolsa de estudos em uma faculdade. Naquela semana, o principal objetivo de Paulo era juntar forças para ligar para a filha e parabenizá-la. Paulo Ricardo ainda enfrenta o preconceito de que, por ter cometido

um crime, seria um inimigo público e um ser antissocial por natureza. Ele, José Carlos, Agnaldo e Edson Mariano ainda guardam resquícios do linguajar da cadeia, e até algumas cicatrizes no corpo, mas o tempo os fez reencontrar seus valores. Para esta reportagem, todos fizeram questão de mostrar seus rostos nas fotografias. "A gente já cumpriu nossa pena e não tem mais nada a esconder de ninguém", disse Mariano. Mais do que enfrentar os preconceitos, eles recuperam o amor-próprio que um dia deixaram para trás, mas que hoje os dignifica. p Porém

em liberdade condicional, conquistou outro emprego no Departamento Estadual de Trânsito do Rio Grande do Sul (Detran-RS), por intermédio da Faesp, onde teve, pela primeira vez, sua carteira de trabalho assinada. Nos anos seguintes, em liberdade, ele procurou apoio em um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) para se recuperar da dependência química. Com a ajuda de uma igreja, trabalhou com pintura, hidráulica, como guardador de rua e pedreiro. Há um ano, Paulo é portador do vírus HIV. "Não querem me dar emprego por causa da minha doença", diz. Para as

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Ensaio A pichação e o grafite são, frequentemente, vistos como ato de vandalismo e como uma maneira de desfigurar a paisagem urbana. Muitas pessoas, infelizmente, ainda fazem uma confusão entre essas duas intervenções urbanas, como se fossem semelhantes. A curiosidade é que a pichação é criminalizada, podendo levar à prisão. Já o grafite é considerado uma arte, ainda ignorada por muitos, mas já com bastante força na maioria das cidades do mundo. Este ensaio pretende destacar a beleza, tanto estética quanto ideológica, do grafite. Mostrar o quanto esses desenhos, muitas vezes de cores vibrantes, podem dialogar com o ambiente e, principalmente, complementá-lo. É neste ponto que chega à questão: quais são os limites da arte? E, afinal, a arte tem limites? Lívia Auler

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11% foi o crescimento do número de processos abertos de 2011 para 2012. O de julgados aumentou 8,69%, PORÉM...


Perdoa R eM VEZ DE punir Perdoa eM R

Texto por Laís Auler Fotos por Jannis Scotá


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ma sala com cadeiras dispostas em círculo e lenços de papel distribuídos pelo ambiente – uma pequena sala branca, com cheiro do carpete envelhecido e vestígios de uma nova perspectiva. Nas paredes, cartazes com dizeres como respeito, responsabilidade, participação, honestidade e esperança. Os motivos que levam as pessoas até ali são comuns: infrações cometidas por menores de idade. Neste caso, um assalto à mão armada com tentativa de sequestro. Dentre os participantes estão a vítima e o infrator. A cena tinha tudo para ser um julgamento em uma audiência formal. Porém, nessa sala decorada com palavras de afeto, não há juiz nem advogados. Apenas pessoas dialogando em busca de algo em comum: o perdão. Trata-se de um procedimento da Justiça Restaurativa, no qual é realizado, dentro dos aspectos legais, um encontro entre as partes envolvidas em um conflito, um debate a fim de tentar solucionar o fato. Para entender mais o processo, nada melhor do que um exemplo concreto. O Círculo Restaurativo descrito foi gravado com fins acadêmicos e ajuda a compreender essa metodologia ainda nova no sistema judiciário. O procedimento é um momento de conversa íntima, com a garantia do sigilo. Dele participam apenas os envolvidos e o facilitador, funcionário do Juizado, capacitado em Comunicação Não Violenta, metodologia que estimula o estabelecimento de relações de parceria e cooperação, com a predominância de diálogo eficaz e com empatia. A situação: a vítima é um policial militar que reagiu a um assalto com tentativa de sequestro. Sua mulher e seu filho estão na sala. O ofensor é

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um adolescente que tentou roubar o carro do PM, mas acabou preso. Seus acompanhantes são o pai, a madrasta e a avó. Em março de 2007, seis meses após o crime, estas pessoas se reúnem em uma conversa intermediada for um profissional. O objetivo é discutir sobre o ocorrido, perdoar o ofensor e proporcionar que ele se desculpe à vítima. A proposta foi ofertada pelo juiz, o qual notou que, mesmo com a privação de liberdade do adolescente, os envolvidos necessitavam de um encontro restaurativo. No momento da reunião, as emoções estão a mil. É a hora de falar abertamente sobre sentimentos, angústias e razões pelas quais todos se reúnem ali. A vítima começa expondo que aceitou participar do procedimento e aconselha o ofensor a valorizar mais a família, pois é muito importante o apoio recebido dela naquele instante. Emocionado, o adolescente confessa não sentir mágoas no que está ouvindo. É um alívio. Pede desculpas sinceras ao PM na frente da família. A resposta do policial é comovente: “Tu estás desculpado hoje e sempre. Eu não vi maldade em ti, você é tão vítima quanto eu”. É preciso encarar os erros para superá-los. O desabafo aberto de todos que se encontram na sala é mais significativo que testemunhos e sentenças judiciais. A metodologia restaurativa é uma resposta diferente ao crime, além de ser uma maneira de repensar a punição. O pai da Justiça Restaurativa no Rio Grande do Sul, Leoberto Narciso Brancher, afirma que ela é um novo modo de entender a resolução de conflitos que não se esgota no aspecto criminal. Agora, o pai do agressor ganha a vez de falar e agradece pelo filho estar vivo. Conta sua frustação ao ver o menino na delegacia e na


convidado a palestrar na Fundação de Atendimento Socioeducativo do Rio Grande do Sul (Fase) aos menores infratores em execução de medida. Suas vidas foram marcadas eternamente.

em Porto Alegre

O juiz da 3ª Vara da Infância e da Juventude do Fórum Central da comarca de Porto Alegre, Leoberto Narciso Brancher, vivia no dilema entre tratar ou punir as infrações cometidas por adolescentes. A frustração com os resultados e a dinâmica cotidiana do trabalho, voltado à execução penal juvenil, fez com que Brancher pesquisasse, na década de 1990, alternativas de harmonizar o seu problema. “A Justiça Restaurativa chegou como uma possibilidade de neutralização dessa dicotomia”, diz. Em 2002, foi realizada a primeira experiência com aplicação prática em um delito envolvendo dois adolescentes. O bom resultado do experimento motivou a criação do projeto “Justiça para o século 21”, em 2005, idealizado por Brancher e articulado pela Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul (Ajuris). “O programa é uma intenção de socialização das ideias e das práticas com foco na pacificação de conflitos e violências envolvendo crianças e adolescentes”, explica. Devido à necessidade de atender a demanda, em 2006 foi criada a Central de Práticas Restaurativas do Juizado da Infância e da Juventude de Porto Alegre (CPRJIJ). Antes de colocar a iniciativa em prática, foi necessário capacitar os funcionários da assistência técnica do Juizado para atuarem como facilitadores, ou seja, mediadores dos diálogos restaurativos. Em três

A Justiça Restaurativa prima por um modelo em que a responsabilidade não é algo que vem de cima para baixo, mas que vem de dentro para fora. Leoberto Brancher, juiz

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frente de um juiz e não ser capaz de fazer nada. Lembra a angústia de um pai quando assiste a um filho nessa condição. “Agora precisamos de metas. Eu te perdoo, mas você também precisa perdoar a si mesmo”, finaliza o pai aliviado e esperançoso. O filho da vítima também compartilha sua opinião. Parabeniza o adolescente por ter a coragem de participar deste momento. Fala que mesmo com as dificuldades, o jovem enfrenta a situação. “Você já mostrou que é diferente, vai ter força e voltar melhor. Eu te perdoo”, diz. A avó do infrator agradece à família do PM por compreender a ocasião. A emoção toma conta da senhora. As lágrimas são enxugadas pelo lenço de papel, e as palavras soam baixas e sinceras. “Tenho certeza de que isso é uma coisa boa”, fala, ao explicar que o jovem voltou a estudar e trabalhar. Ainda mais emocionado, o adolescente assume o seu erro. Garante que vai mudar e ser melhor. A vítima logo o compreende e diz que os dois tomaram a atitude certa ao aceitarem a proposta da conversa. Confessa estar aliviado ao revê-lo, por poder perceber a transformação do jovem. “Depois desse debate, você pode sair na rua e se sentir aliviado pelo que aconteceu aqui.” No fim da conversa, é estabelecido um acordo com tarefas aos envolvidos. Conforme a filosofia restaurativa, assumir a culpa é mais importante que um juiz decidir uma pena. “A Justiça Restaurativa prima por um modelo em que a responsabilidade não é algo que vem de cima para baixo, mas que vem de dentro para fora”, explica Brancher. A decisão feita pelos participantes do círculo foi cumprida com sucesso. A família do jovem infrator marcou um almoço com o propósito de reestabelecer os laços. O PM foi

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anos de atuação a Central atendeu 2.583 pessoas por meio de 280 procedimentos restaurativos. O projeto não parou de crescer e abraçou diferentes focos de atuação. Espalhou-se nas unidades de privação de liberdade da Fundação de Atendimento Socioeducativo do Rio Grande do Sul (FASE), unidades socioeducativas de meio aberto, abrigos, escolas, ONGs e comunidade. Até 2011, o programa, em parceria da Escola Superior da Magistratura, capacitou 9.184 pessoas de todas as regiões do país com as metodologias restaurativas.

no Judiciário

A eficiência da Central de Práticas Restaurativas do Juizado da Infância e da Juventude de Porto Alegre fez com que o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul aprovasse a instituição do programa. O experimento passou a ser um serviço permanente do Poder Judiciário do Estado, mas com limitação à comarca de Porto Alegre e na execução de medidas socioeducativas de adolescentes. Neste ambiente, a Justiça Restaurativa contrasta com os métodos tradicionais. O sistema punitivo clássico está centrado, principalmente, na figura dos atores estatais – como o policial, o promotor, o defensor, o juiz – e na figura do acusado. “A vítima é chamada apenas para contar o que aconteceu e, muitas vezes, sequer recebe uma informação do resultado desse processo. O Estado se apropria do sofrimento dela e a representa”, explica Vera Lúcia Deboni, juíza da 3ª Vara da Infância e da Juventude do Fórum Central de Porto Alegre e coordenadora da CPR-JIJ.

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“Quando usamos as metodologias de Justiça Restaurativa, a figura da vítima passa a ter uma extrema relevância. Ela tem um espaço onde pode dizer ao outro qual foi a consequência real daquele ilícito na vida dela”, diz Vera, orgulhosa do ganho desse procedimento, que alcança a satisfação da vítima com o resultado final. Outra vantagem do processo restaurativo é o número de reincidência. Os infratores que participaram da experiência e retornam ao sistema judiciário são poucos. Nos três primeiros anos da Central, alunos do curso de Mestrado em Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) acompanharam o trabalho da equipe. O estudo constatou a reincidência de apenas 5% dos jovens. Em 2012, a Central de Práticas Restaurativas do Juizado da Infância e da Juventude de Porto Alegre teve 369 casos encaminhados para verificação da possibilidade de realização dos procedimentos restaurativos. Desse total, foram realizados 41 Círculos Restaurativos (vítima, ofensor, família e comunidade), 70 Círculos Restaurativos Familiares (ofensor, família e comunidade de apoio), dois Círculos de Compromisso (ofensor, família, comunidade, rede de atendimento da criança e do adolescente) e quatro Diálogos Restaurativos. Além das transformações processuais, a implementação da Justiça Restaurativa ajudou a perceber a efetividade dos resultados. “Tivemos uma mudança na compreensão de que a resposta judicial tradicional não se esgota no julgamento e muito menos em uma execução de medida. Ela deve ir muito além disso, precisa ter o significado real na vida das pessoas, tanto do agressor como da vítima”, salienta Vera.


Em 2009, o programa Justiça para o século 21 lançou um projeto intitulado Central de Práticas Restaurativas na Comunidade, financiada pela Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República. O Ministério Público, em parceria com duas organizações não governamentais, instaurou quatro centrais comunitárias. O Centro de Promoção da Criança e do Adolescente São Francisco de Assis (CPCA) foi responsável pelos cuidados das centrais dos bairros Lomba do Pinheiro e Bom Jesus. Já

a Associação Cristã de Moços do Rio Grande do Sul (ACM-RS) coordenou as unidades do bairro Restinga e vila Cruzeiro. Esta iniciativa fez com que as práticas restaurativas fossem direcionadas às questões inseridas nas comunidades. Seja no atendimento de situações envolvendo vizinhança ou com escolas locais, para evitar o encaminhamento dos conflitos ao sistema policial e, posteriormente, ao sistema judicial. Porém, no início de 2012 as centrais tiveram de ser desativadas. Quando surgiu a oportunidade de inscrever o projeto em outro edital, o CPCA não hesitou. O

Metodologia restaurativa é resposta diferente a quem cometeu crime

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Na comunidade

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Não dá para achar que, só porque passou por um procedimento restaurativo, ele estará vacinado e nunca mais cometerá delitos. Liliana Haas, coordenadora CPR Lomba do Pinheiro

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Ministério dos Direitos Humanos aprovou a proposta e financia, por 18 meses, a atuação das centrais da Lomba do Pinheiro e Bom Jesus. Em março de 2013, suas portas foram reabertas. Em pouco mais de um mês, as coordenadoras da CPR Lomba do Pinheiro, Liliana Haas e Christiane Schmidt, realizaram 30 procedimentos. A facilidade e a efetividade desse sistema alternativo são fundamentais nos meios comunitários. Christiane salienta: uma das constantes reclamações dos participantes é sobre a dificuldade de acessar um atendimento jurídico. “Tem que ir à defensoria, acordar cedo, pegar ficha, tem que ter o dinheiro da passagem, então tudo é muito difícil", explica. “Foi um grande achado colocar a Central na comunidade, porque sabemos qual é a realidade daqui, e no Judiciário não se quer ouvir a vítima e seus sentimentos”, desabafa. Segundo Christiane, a eficiência do método está no fato de o receptor poder ser ouvido, dizer ao autor do evento o que realmente aconteceu com ele, e vice-versa. No momento em que se tira esse peso da agressão, o conflito é amenizado e restaura-se a relação. “Pessoas que nem se olhavam antes, hoje se cumprimentam e sentam juntos”, explica. Mesmo com a retomada aos trabalhos há pouco tempo, as coordenadoras recebem solicitações de escolas e da população todas as semanas. “A Central está surtindo efeito. Até porque sempre mantemos Porém

contato com a comunidade, com as escolas, e através delas a gente acessa os pais, e as pessoas sabem que a gente faz este trabalho”, reflete Christiane. Alguns casos são encaminhados pela Guarda Municipal. Também são atendidas ocorrências já deferidas pelo Departamento Estadual da Criança e do Adolescente (DECA), com o objetivo de trabalhar o conflito dentro do território dos afetados. “Queremos que venham aqui, mesmo tendo uma medida socioeducativa, para restaurarmos o laço entre esses adolescentes”, afirma Christiane. Se o procedimento restaurativo não é aceito pelas duas partes, o caso é encaminhado por vias comuns. Liliana ressalta como o projeto trabalha com jovens, o risco de repetir os delitos é mais frequente: “Não dá para achar que, só porque passou por um procedimento restaurativo, ele estará vacinado e nunca mais retornará a cometer delitos. Ele ainda está em processo de desenvolvimento”. Ao mesmo tempo em que adolescentes são instáveis, são os mais beneficiados por esta metodologia. São eles os responsáveis pelo desenvolvimento e pelo destino de suas comunidades. “Também é ideia do projeto cuidar deles neste momento, pensando numa futura geração mais sadia, mais lúcida e muito mais compreensiva de como é possível viver em um clima de paz”, declara. p


foto: Cláudio Fachel/Palácio Piratini

COMO FUNCIONA A Central restaurativa do tj o facilitador a fim de dialogar. É confeccionado um termo de acordo com tarefas, que os participantes deverão cumprir em um determinado prazo. 4 – Após o tempo estipulado, acontece o Pós-Círculo, no qual se verifica o cumprimento dos acordos. 5 – Os técnicos realizam um relatório com os pactos realizados e encaminham ao órgão responsável pelo caso. Se o Ministério Público está satisfeito com o resultado, solicita o arquivamento do inquérito. Se o processo está no Fórum, é realizada uma audiência, e o processo é extinto. Porém

1 – O Ministério Público encaminha o caso antes de ser ajuizado um processo. Também, é ofertada a realização das práticas durante uma audiência. Ainda há a alternativa de ser realizado depois que o adolescente já foi encaminhado a sua sentença, enquanto cumpre sua medida socioeducativa. 2 – É realizado o Pré-Círculo, que é o convite aos participantes – famílias, vitima, agressor e comunidade 3 – Em um segundo momento é feito o Círculo Restaurativo, onde os envolvidos sentam com

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Em 2011, 7.473 pessoas foram vítimas fatais de atos terroristas, segundo o Índice do Terrorismo Global, publicado pelo Instituto para a Economia e a Paz, que considera terrorismo: "O uso ameaçado ou real de força ilegal e violência por um ator não estatal para alcançar um objetivo político, econômico, religioso ou social por meio do medo, da coerção ou da intimidação". PORÉM... foto: Peter Brandt | Getty Images North America | AFP


Muito a lém das Torres Gêmeas das Torres Muito a ém l

Texto por Anna Cláudia Fernandes e Nicole Franzoi Fotos por Bruna Canani


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error. Palavra latina: qualidade do que é terrível; estado de pavor; pessoa ou coisa que amedronta, aterroriza; perigo, dificuldade extrema; objeto de espanto. A definição é do dicionário Houaiss, e a amplitude do termo permite que a palavra seja utilizada para descrever desde ações de grupos ou pessoas até um gênero do cinema. Mas é a sua derivação, terrorismo, que torna complexa esta gama de significados. Atualmente, a preferência por apenas um de seus sentidos legaliza atos de violência de agentes estatais e grupos que representam uma elite política e econômica. A análise aprofundada de suas definições e alguns exemplos que por vezes escapam da abordagem do tema são necessários para a tentativa de compreender as raízes do terrorismo e suas diferentes manifestações. Para o professor de Linguística Aplicada da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) Bruno Bergamin, o terror é um ato primitivo. Bergamin conta a história escrita pelo poeta Ovídio, na Grécia Antiga, narrativa literária que expõe o medo e o receio do outro. O poeta reparte a história do homem em quatro idades, derivadas da mitologia grega. A primeira, a do Ouro, é descrita como um estado de apogeu e glórias perpétuas, cujo leite e mel eram destinados a todos. Na Idade da Prata, o homem inventou as casas e desenvolveu a agricultura. O período seguinte, do Bronze, é a fase das armas, quando a ideia era eliminar o outro para poder vencer. Por fim, a Idade do Ferro é o momento da guerra total, quando o objetivo é avançar e aniquilar todos para não haver ameaças, ao mesmo tempo em que se pensa, e se usa como justificativa, a própria

Não dá para dizer que o terrorismo vai acabar. O terror é uma condição humana. Bruno Bergamin, professor de Linguística Aplicada

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proteção. “Achamos que o outro é muito perigoso desde que o homem é homem. Queremos, ainda hoje, voltar à Idade de Ouro”, explana Bergamin. “Não dá para dizer que o terrorismo vai acabar. O terror é uma condição humana”, aponta. A palavra terrorismo surgiu na linguagem europeia durante a Revolução Francesa, aparecendo na Academia Francesa, em 1798, com o significado de "sistema ou domínio do terror". A professora doutora em Letras da PUCRS Ana Márcia Martins da Silva explica que, no século 18, o terror tomou cunho político, surgindo como forma de reafirmação do poder. O jacobino Maximilien Robespierre, que encarnou a tendência mais radical da Revolução, utilizou a violência, por meio de atentados, chacinas e ataques políticos, espalhando o medo para se manter no poder. Seu governo foi chamado de Estado de Terror. As escritoras inglesas Anne Williams e Vivian Head apontam, no livro Ataques terroristas, publicado pela editora Larousse, que a origem do terrorismo aparece já nos primeiros registros da história, quando se buscou uma definição para um conjunto de pessoas que assustam ou aterrorizam outras, com o objetivo de fazê-las acatar suas crenças. As autoras citam como primeiro exemplo da atribuição, em um passado distante, os zelotes e os sicarii, grupos judeus surgidos na Antiguidade. Enquanto o primeiro atacava autoridades gregas e romanas, o outro assassinava judeus que haviam se desviado de sua fé religiosa. O termo ganhou maior circulação em 1870, com as atividades de revolucionários russos, como os Nechayev, grupo associado ao movimento niilista e ao anarquismo, e a Narodnaya Volya, organização que buscava reformas socialistas na


foto: AFP

Rússia czarista, utilizando assassinatos e bombardeios. "Eles desenvolveram certas ideias que se tornariam a marca registrada do terrorismo subsequente em muitos outros países", escrevem Anne e Vivian. Para as escritoras, é certo que apenas após o 11 de Setembro "o terrorismo passou a fazer parte dos pensamentos de muita gente que antes, provavelmente, nunca havia pensado nele". As inglesas descrevem o discurso proferido por George W. Bush após o ataque às Torres Gêmeas, que menciona a "guerra ao terror" e o início do combate ao "eixo do mal". Ao usar esses termos de forma abstrata, para as autoras, o presidente autorizou declarar guerra contra qualquer um que considerasse inimigo, dando a entender que não era uma luta política, mas uma guerra entre o bem e o mal. Bergamin explica que depois do ataque contra as Torres Gêmeas, criou-se essa ideia do eixo do bem contra o do mal. Para o professor, tornou-se uma questão, em um primeiro momento, de procurar culpados. "As vinganças existem em todos os lugares", afirma. Mas, além dessa motivação inicial, reside a dualidade de formas de pensamento, que não podem conviver sem conflitos. "Sempre que há alguém que tem uma ideia, há alguém contra essa ideia", reflete Bergamin. Contudo, quem pode definir para que lado pende cada eixo? Anne e Vivian fazem essa pergunta ao analisar o partido Hezbollah, do Líbano, que, ao mesmo tempo em que é acusado de sequestrar soldados israelenses e lançar mísseis contra Israel, conquistou a lealdade do povo pobre daquela região ao oferecer recursos como moradia, atendimento médico e serviços sociais. Para elas, não é simples dizer quem é o terrorista, se o Hezbollah ou Israel que, em

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represália ao grupo, promoveu uma série de ataques contra a população civil libanesa. "Há por trás desse conflito uma longa e extremamente complexa história política que não pode ser ignorada para que haja compreensão", ressaltam. A complexidade da discussão começa no fato de que não há um conceito oficial de terrorismo. Até mesmo as diferentes instituições dos Estados Unidos não possuem a mesma definição do termo. Enquanto o Departamento de Defesa e o FBI mencionam o termo como "o uso de violência ou ameaça ilegal para coagir ou intimidar governos", o Departamento de Estado o define como "violência premeditada, politicamente motivada, perpetrada contra alvos não combatentes por grupos subnacionais ou agentes clandestinos, normalmente com o propósito de influenciar uma plateia". Na década de 1960, a Assembleia Geral das Nações Unidas tentou

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uma maneira de proibir atividades terroristas, mas teve suas ações limitadas. "Algumas nações acreditavam que o terrorismo em resposta a ofensas reais era justificado", afirmam Anne e Vivian. Até o momento, a ONU só conseguiu aprovar uma lei que proíbe a tomada de reféns diplomáticos e o sequestro de aeronaves. A advogada e mestranda em História Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Patrícia da Costa Machado dedica-se a estudar algumas questões jurídicas da ditadura militar brasileira. Para ela, não se pode descartar o conceito de Terrorismo de Estado na abordagem do período, contudo, nem todos os pesquisadores optam por esse caminho. Um dos motivos para isso acontecer é a ausência de definição clara do termo terrorismo. "A inexistência de um conceito amplamente aceito pela comunidade internacional e pelos estudiosos do


poder. "Quem é o terrorista? Não se sabe. E não se quer saber", afirma. A nomeação se daria conforme os interesses do momento. Para o professor, a mídia tentaria fazer parecer que o terrorismo é claramente identificável, ao nomear responsáveis sem aprofundar em questões como a exclusão do outro. A cultura islâmica submetida ao imperialismo norteamericano, por exemplo. Jacques Wainberg explica, em seu livro Mídia e terror, como os veículos de comunicação podem fazer com que os atos de violência produzam sentidos para as pessoas e ultrapassem o mero despertar da percepção de ouvintes, leitores e telespectadores. Para Wainberg, o foco não se detém na compreensão da mensagem, mas na imaginação que notícias de violência fomentam. O autor escreveu que o ataque contra as Torres Gêmeas foi feito sem palavras. “Na verdade foram desnecessárias. O ato terrorista tem sempre esta rara habilidade: provê imagens em profusão que falam. É uma fala muda, simbólica, que demanda por isso mesmo alguma interpretação, alguma inquirição pelo observador sobre o sentido e o significado do morticínio”, completa. Atos terroristas, em específico, através da riqueza visual que proporcionam, estimulariam e serviriam como facilitadores do pensamento cognitivo humano. “As teorias cognitivas apontam para o fato de que o significado não está na mensagem. Ele é construído pelos processos psicológicos da atenção e da memória na cabeça das pessoas”, explica o autor. Ou seja, mensagens de ataques violentos incitariam sentidos, que seriam interpretados e propagados pela mídia. “Na visão dos especialistas, a violência política torna-se terrorista no momento em que tais atores percebem a necessidade de obter

O terrorismo não é um fenômeno entendido da mesma forma, por todos os indivíduos, independente do contexto histórico, geográfico, social e político. Patrícia da Costa Machado,

mestranda em História Política

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tema significa que o terrorismo não é um fenômeno entendido da mesma forma, por todos os indivíduos, independente do contexto histórico, geográfico, social e político", afirma Patrícia. A advogada explica que o Direito Internacional, que regula as relações externas dos atores que compõem a sociedade internacional, principalmente, os Estados nacionais, não possui um conceito de terrorismo, mas prevê crimes de guerra, definidos por acordos internacionais. Entre esses acordos, estariam as Convenções de Genebra, série de tratados internacionais assinados entre 1864 e 1949 para diminuir o impacto das guerras na população civil, e o Estatuto de Roma, que gere as competências da Corte Penal Internacional (CPI). "De uma maneira geral, um ato é definido como um crime de guerra a partir do momento em que uma das partes em conflito ataca voluntariamente objetivos, tanto humanos como materiais, não militares", ressalta Patrícia. Ela enfatiza que deve haver um conflito declarado para ser enquadrado nesse termo, o que não existe, por exemplo, no Estado de Israel. Para Patrícia, o governo israelense pratica terror estatal, mas por declarar que estão em guerra e que os palestinos são inimigos dentro de seu território, procura escapar desse conceito. Ao mesmo tempo, o Direito Internacional não reconhece o conflito da Faixa de Gaza como uma guerra declarada, logo, não pode ser julgado pela CPI. "Fica num vácuo jurídico", afirma. Hugo Arend, professor da PUCRS, mestre em História e especialista em Ciências Políticas, explica que a denominação terrorista tem propósito político: menosprezar e diminuir o inimigo. Não existiria uma definição oficial para o termo, pois esse não é o objetivo daqueles que detêm o

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Deseja-se por meio da violência não vencer o inimigo, mas abalá-lo seriamente. Jacques Wainberg, autor de Mídia e Terror

mais publicidade com seus atos para assim alcançar seus objetivos políticos”, ressalta Wainberg. Em sua obra, o autor posiciona a mídia como elemento essencial nesta estratégia. “Caso contrário, o ato seria fato isolado. Não teria qualquer repercussão. Deseja-se por meio da violência não vencer o inimigo, mas abalá-lo seriamente. E isso só ocorre quando a atrocidade cometida contra o alvo simbólico é rapidamente conhecida pelo público”, afirma. Veículos de comunicação atuariam como disseminadores do pânico e do medo. Para Arend, o principal problema da atribuição de significados pela mídia é que ela explora apenas uma visão dos acontecimentos, conforme os interesses daqueles que estão no poder. No 11 de Setembro, não foram buscadas as raízes da causa e se propagou o discurso proferido por Bush, do eixo do bem e do mal. Mas, para o professor, enquanto Bin Laden tornou-se o terrorista, não foi nem ao menos discutido que talvez Bush também o seria, quando declarou guerra ao Iraque. Ao analisar numericamente os dois casos, por exemplo, o que foi considerado terrorismo matou menos. Segundo a organização Iraq Body Count, o número de civis mortos desde a ofensiva dos Estados Unidos contra o país fica entre 112 mil e 122 mil pessoas. Além da guerra contra o governo iraquiano, os norteamericanos também combateram o

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Afeganistão, país em que Bin Laden planejou o ataque contra as Torres. No relatório do Cost of War, projeto não partidário formado por especialistas de diversas áreas que analisam os impactos das guerras, situado na Brown's University, constam entre 16.725 e 19.013 civis mortos. “A luta dos americanos no Afeganistão é tão radical quanto os pilotos islâmicos do 11 de setembro”, compara Arend. Contudo, como os Estados Unidos não assinaram todos os tratados do Direito Internacional – uma vez que se reconhece que os Estados são soberanos e escolhem os acordos que assinam –, eles não podem ser julgados pela Corte Penal por crimes de guerra. Noam Chomsky, linguista norteamericano e ativista político, em Poder e terrorismo, analisa a prática de força do Estado americano. “Quando alguém pratica o terrorismo contra nós ou contra nossos aliados, isso é terrorismo, mas, quando nós ou nossos aliados o praticamos contra outros, talvez um terrorismo muito pior, isto não é terrorismo, é antiterrorismo ou guerra justa”, explica. Chomsky, desde a década de 1960, posiciona os Estados Unidos como “Estado terrorista líder” e ataca, atualmente, a ideologia utilizada pelo país nos confrontos contra povos islâmicos. “Assassinato de civis inocentes é terrorismo, não guerra contra o terrorismo”, escreve. No texto Terrorismo, a arma dos poderosos, Chomsky difunde a ideia do equívoco ao pensar em


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terrorismo como um instrumento dos fracos. Para ele, assim como armas mortíferas, o ato do terror é, antes de tudo, a arma dos poderosos. Junto a isso, grandes potências mundiais controlariam aparelhos ideológicos e culturais, permitindo que o terror fosse difundido pela grande mídia de forma unilateral, unido ao compromisso de apagar acontecimentos incômodos do passado. “Tamanho é o poder da propaganda e das doutrinas norteamericanas que se impõem, inclusive, às suas vítimas. Vá à Argentina e tente lembrar o que acabo de dizer: 'Ah, sim, mas tínhamos esquecido!'", completa o autor. Chomsky se refere à atuação norte-americana na ditadura Argentina, e em outros governos autoritários da América Latina, como foi o caso do Brasil, no período de 1964 a 1985. Parte da interferência dos Estados Unidos nas ditaduras do Cone Sul já pode ser comprovada. Por exemplo, documentos oficiais, abertos para pesquisa nos EUA em 1975, revelaram que agentes estadunidenses estavam mobilizados para o caso de haver resistência à tomada de poder, prontos para intervir pelos militares brasileiros, no golpe de 1964. Dentro dessa atuação norteamericana, se destaca a Central de

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Inteligência Americana (CIA) criada na década de 1950. Para o historiador e professor doutor da UFRGS Enrique Serra Padrós, o órgão destaca-se na interferência norte-americana pelo mundo, agindo de forma clandestina até mesmo dentro de seu país de origem. “Este braço da inteligência mais sofisticada dos Estados Unidos age ilegalmente, em primeiro lugar, com relação a própria constituição americana. Depois, é claro que

Onde tem CIA intervindo é sinal de conspiração. Enrique Padrós, historiador

ela age ilegalmente em qualquer região do planeta onde intervém. Onde tem CIA intervindo é sinal de conspiração”, afirma Padrós. Com ela, atuam também as embaixadas e os consulados, que, por exemplo, nas ditaduras latino-americanas, serviam como plataforma de espionagem à procura de brechas dentro da estrutura do Estado que permitiram trocas de informações. “Toda embaixada e todo o consulado, sobretudo dos países agressores, e

os Estados Unidos é uma potência muito agressiva, são uma plataforma de observação interna ilegal daquele país”, complementa. Apesar do país ser considerado opressor de outros povos, ao se envolver com ditaduras que espalharam o medo , em 2001, o presidente Bush proferiu o significado e a interpretação norteamericana dos ataques contra as Torres Gêmeas: “Em 11 de setembro, inimigos da liberdade cometeram um ato de guerra contra o nosso país. E, à noite, o mundo era outro. Um mundo onde a própria liberdade estava sendo atacada”. Um ato, tido como terrorista pela mídia, pode fazer parte de ações de grupos cuja violência foge de qualquer apoio do povo que diz representar, como o caso da Al-Qaeda. Porém, pode ser um fator de resistência à opressão, como aconteceu com a Resistência Francesa na Segunda Guerra Mundial e Nelson Mandela no Congresso Nacional Africano na África do Sul sob o Aphartheid, ambos considerados terrorismo. Este, é um termo complexo que possui diversos lados e não pode ser simplificado no maniqueísmo dos eixos do bem e do mal. É preciso considerar suas raízes e seu contexto histórico. p


Terrorismo de Estado de indivíduos desviantes, é algo que ficou claro com pesquisas mais recentes", afirma a advogada. Marcos Rolim, jornalista especialista em segurança pública e direitos humanos, explica que, superadas as dificuldades em conceituar a palavra terrorismo, não há problemas em identificar condutas da ditadura militar brasileira como Terrorismo de Estado. "A ideia do crime de Terror é atingir um grupo muito amplo de pessoas, estejam elas ou não envolvidas no tema, quer dizer, parte do princípio de que é legítimo vitimar inocentes pra produzir o efeito que é de fato a disseminação do medo", afirma o jornalista. Rolim destaca o momento final da ditadura militar, quando o presidente João Baptista Figueiredo assumiu o compromisso da abertura lenta e gradual do regime à democracia. Naquele período, grupos de dentro do governo, ligados às Forças Armadas, estavam descontentes com a transição democrática. Passaram a organizar uma série de atos que podem ser classificados como terroristas: explosões de bancas de jornais da imprensa alternativa em Brasília, Porto Alegre, Curitiba, Belo Horizonte, Belém e São Paulo, durante o período que vai de abril a setembro de 1981; a carta-bomba à OAB, em agosto de 1980, e o atentado frustrado do Riocentro, em abril de 1981, ambos no Rio de Janeiro. A ideia, segundo Rolim, "era fazer com que

a população como um todo ficasse amedrontada e que isso pudesse deter as mudanças em direção à democracia". Aqui, a mídia surge como omissora, uma vez que as ações de agentes do governo não eram divulgadas. Padrós explica que, além de a grande mídia ter colaborado com o regime militar em seus primeiros anos, o Terrorismo de Estado ficou por muito tempo desconhecido por não ser mencionado pelos veículos de comunicação. Rolim lembra que, aqueles veículos que não foram coniventes com o Estado, eram censurados, com agentes do governo presentes em suas redações ou bilhetes enviados que proibiam determinados conteúdos. Essa censura levou à falsa impressão de que os índices de criminalidade eram menores e de que não havia problemas no âmbito da saúde, por exemplo. O jornalista não tem dúvidas: estatísticas eram manipuladas para que a verdade fosse mascarada.

A ideia do crime de Terror é atingir um grupo muito amplo de pessoas, estejam elas ou não envolvidas no tema. Marcos Rolim, jornalista especialista em segurança e direitos humanos

Porém

A discussão das ditaduras do Cone Sul apresenta outra complexidade do terrorismo, pois os próprios governos podem ser considerados terroristas. O historiador e professor doutor da UFRGS Enrique Serra Padrós explica que Terrorismo de Estado seria o tipo de política que subjugaria uma população e a colocaria sob o domínio do medo. As ditaduras militares viveriam disso, por meio de repressões violentas, das prisões arbitrárias e dos assassinatos. Para o historiador, a finalidade dessa forma de terrorismo não seria destruir o inimigo político, mas tornar a sociedade refém de um sistema que usa meios para discipliná-la e silenciála. O resultado buscado seria a despolitização da massa, ou seja, por causa do medo provocado por ações do governo, a população se voltaria ao seu próprio lar, em preocupações que não envolvem o coletivo e as mudanças sociais. Na historiografia, essa atribuição é novidade. A advogada e mestranda em História Política da UFRGS Patrícia da Costa Machado explica que o termo foi designado a uma ditadura militar da América Latina pela primeira vez na década de 1980, por Eduardo Duhalde, no livro El estado terrorista argentino. Nos últimos dez anos, ele foi aplicado ao Brasil. "Isso porque a ideia de que o Estado brasileiro agiu com violência a partir de uma política estatal, não sendo enquadrada como atos de insanos,

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Nos primeiros quatro meses de 2013, o número de carros vendidos bateu a marca recorde de 1.164 milhão, contribuindo para congestionamentos cada vez maiores nas principais cidades do Brasil. PORÉM...

Texto por Shayse Melate Fotos por Jannis Scotá


AlTERNATIVAS INSUFICIENTES

SAVITANRETlA SETNEICIFUSNI

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ntre 2001 e 2011, o crescimento da população no Rio Grande do Sul foi de 5,02%, um acréscimo de 512 mil pessoas. No mesmo período, o aumento no número de carros foi 10 vezes superior ao de habitantes, conforme o Censo 2010 realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Ruas superlotadas de carros. Ar poluído com alta quantidade de monóxido de carbono. Engarrafamentos diários em qualquer horário e bairro da cidade. Dentro dos automóveis, apenas motorista. Às vezes, um passageiro

Ciclistas se arriscam entre os carros nas avenidas de Porto Alegre

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como acompanhante de viagem. Pessoas estressadas bradando palavras nada educadas janela a fora. A problemática do trânsito em Porto Alegre transcende as normas básicas de civilidade. A Capital está próxima de atingir uma estatística preocupante: um carro para cada 2,04 habitantes, segundo o Departamento Estadual de Trânsito (DETRAN-RS). As opções restantes não dão conta da demanda. A população é atendida por 403 lotações com salgada tarifa de R$ 4,50, por 3.925 táxis que cobram R$ 2,11 por quilômetro rodado e por apenas 1.703 ônibus como a principal forma de transporte da cidade,


que o Governo Federal tomasse a medida preventiva de redução fiscal em maio de 2012 e a prorrogasse por três vezes. A estratégia era estimular a economia, criar mais empregos e esvaziar os pátios das montadoras. A taxa foi zerada para a compra de automóveis nacionais de motor 1.0. O estudante de Engenharia Ambiental da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Daniel de Oliveira Brito, de 22 anos, tem seu próprio carro desde os 19. No último semestre, o rapaz tinha o hábito de levar alguns colegas à universidade, ainda que tivesse que sair de sua rota. Neste ano, porém, vai sozinho, já que cada amigo tem compromissos em horários que não se encaixam na sua agenda. “Eu dava carona para uma gurizada que fazia uma cadeira comigo. Tinha que acordar uns 30 minutos mais cedo, mas como eram amigos, eu levava. Hoje, cada um tem suas atividades, fica mais difícil. Inclusive, uma das colegas que eu sempre buscava e levava em casa tem o próprio carro agora”, conta. Em dezembro do ano passado, foi divulgado no Diário Oficial da União que o IPI voltaria a subir gradualmente até junho de 2013. O primeiro aumento, em janeiro, fez com que as vendas voltassem a cair. Então, o segundo aumento, previsto para 1º de abril, foi cancelado, assim como todos os reajustes até o final deste ano. O ministro da Fazenda, Guido Mantega, anunciou a decisão reiterando que a indústria automobilística representa 25% da produção industrial do Brasil. Isso apenas reforça o estímulo à obtenção de um meio de transporte individual. Dados do Sindicato Intermunicipal dos Concessionários e Distribuidores de Veículos no Estado do Rio Grande do Sul (SINCODIV-RS) mostram que, só no Estado, foram emplacados mais de 14 mil automóveis em

Se acontece qualquer coisa fora do comum, já sei que vou chegar tarde em casa. Fátima dos Santos, massagista

Porém

segundo dados da Empresa Pública de Transporte e Circulação (EPTC). O acesso a Porto Alegre pelos que moram na Região Metropolitana depende do trem, que clama por alívio na superlotação. Exigem-se soluções para o conflito do sistema de transportes. Porém, há alguma alternativa realmente viável? Se, de um lado, os carros são alvos de críticas, de outro lado, ganham cada vez mais adeptos. A redução do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) é um dos fatores mais atraentes para quem quer voltar para casa de carro novo. A instabilidade das vendas do mercado automobilístico fez com

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março de 2013. Isso representa um aumento contínuo na frota portoalegrense, com mais de 550 mil veículos, conforme o Detran-RS. Se, de um lado, a população é incentivada a tomar o transporte público, de outro lado, os ônibus são alvo de crescente reclamação. A média mensal de queixas feitas à prefeitura chegou a 12.486 em 2012. Em dez anos, a passagem em Porto Alegre evoluiu de R$ 1,25, em 2003, para R$ 2,80 em 2013. As estatísticas da EPTC ainda apontam que, mensalmente, a média de passageiros transportados em Porto Alegre ultrapassa os 27 milhões.

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Após reajuste da tarifa para R$ 3,05 no dia 25 de março, diversos protestos ocorreram na capital do Estado. Duas semanas depois, uma liminar suspendeu a decisão e fez o valor antigo voltar a vigorar. A prefeitura informou que não recorreria da ação cautelar. A confusão fez com que o Tribunal de Contas do Estado (TCE-RS) revisasse o cálculo, com base na frota ativa de veículos de Porto Alegre, e não na total. A auditoria apurou que as contas têm inconsistências nas margens de lucro das empresas de ônibus. A massagista Fátima Janete dos Santos enfrenta, diariamente,


de Dados do Município de Porto Alegre (Procempa) faz um levantamento chamado Índice de Cumprimento de Viagens. A média anual de 2012 ficou em 92%. Os 8% restantes são os dias em que, por alguma razão, o ônibus sequer saiu do estacionamento. Sem contar os atrasos ou estragos no maquinário. Conforto é característica que o transporte coletivo não tem. Apenas 396 ônibus dispõem de ar-condicionado e conseguem evitar que seus passageiros passem mal nas tardes de verão de 40ºC. Isso representa apenas 23% da frota total.

Ônibus costumam sair lotados dos terminais

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a dificuldade de depender de transporte público. Após o trabalho exaustivo, ela sabe que o retorno ao lar pode ser motivo de estresse. Nos dias normais, a espera na parada é de 25 minutos, à noite, passado o horário de congestionamento. “Ainda por cima vou de pé, porque o ônibus já vem cheio. Tenho que ir do bairro Floresta, onde trabalho, até o bairro Rubem Berta, na Vila Santa Rosa. Isso demora uns 45 minutos nos dias tranquilos. Se acontece qualquer coisa fora do comum, se chove, se tem um acidente na rua, já sei que vou chegar tarde em casa”, lamenta. A Companhia de Processamento

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A calçada é onde me sinto seguro. Eu não ando de bike pela rua, mesmo que o trajeto demore mais. Não confio nos motoristas. Vitor Moura,

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designer


Congestionamento na Av. Goethe ocorre diariamente e em qualquer horário

Se, por um lado, a bicicleta é um meio de locomoção barato e não polui o ambiente, por outro, pode ser considerado o veículo mais frágil. Em Porto Alegre, existem apenas oito ciclovias, distribuídas entre os bairros Cristal, Ipanema, Restinga, Jardim Planalto e Centro, que, no total, representam pouco menos de 10 quilômetros de asfalto avermelhado exclusivo para ciclistas. A elaboração da ciclovia da Avenida Ipiranga, uma parceria público privada, foi retomada em abril deste ano e promete mais de 9 quilômetros de espaço para os ciclistas andarem aliviados. Números da EPTC revelam que, enquanto o índice de vítimas fatais em acidentes com bicicletas caiu de sete para cinco mortes, de 2011 a 2012, a quantidade de lesões nessas circunstâncias aumentou, de 267 para 276 feridos na contabilização anual. O designer Vitor Moura, de 35 anos, fez algumas tentativas de ir de sua casa, na Cidade Baixa, ao trabalho, no bairro Partenon. Acabou desistindo da alternativa. “A calçada é onde me sinto seguro. Eu não ando de bike pela rua, mesmo que o trajeto demore mais. Não confio nos motoristas. Mas também sou pedestre, observo a reação das pessoas que estão nas calçadas, às vezes desço da bicicleta e percorro um trecho a pé, quando há muito movimento. Mas há algo em utilizar a bicicleta como transporte que se torna desconfortável para mim, é uma opção que descartei nos últimos tempos”, relata. Além do risco que correm aqueles que decidem encarar a aventura da mobilidade por bicicleta, há também a questão

do terreno bastante acidentado da capital. Ruas irregulares e sem asfaltamento, morros, lombas e paralelepípedos, haja preparo físico para uma maratona dessas. Andar de bicicleta, para os gaúchos, acaba se tornando sinônimo de lazer. O projeto BikePoa, organizado pela Prefeitura de Porto Alegre e pela empresa de bicicletas Samba, deixa isso claro. Através de cadastro e pagamento de pequena mensalidade, qualquer cidadão pode retirar uma bicicleta e sair pedalando. Por apenas uma hora, porém. E sujeito à multa. Com quatro décadas de experiência no estudo do trânsito, o engenheiro de tráfego e mestre na área de transportes Mauri Panitz afirma que não existe uma solução simples para o problema de circulação da cidade. Um sistema de locomoção mais funcional depende, segundo ele, do melhor aproveitamento de todos os modais da matriz: o rodoviário, o ferroviário, o aquaviário e o aeroviário. Enquanto não saírem do papel os projetos que criam novas alternativas de transporte, os congestionamentos serão constantes. Panitz ainda explica que se soma a esse cenário os interesses comerciais de empresas privadas de transporte coletivo, que interferem diretamente nas decisões políticas de administração da Capital. “Caso não existisse essa dependência entre poder público e poder privado, os problemas de locomoção de Porto Alegre poderiam ser solucionados com meia dúzia de bons técnicos que organizassem um plano diretor sério para revisar o projeto de circulação viária. Precisamos de profissionais expertos, não de espertos”, considera. p Porém

ALTERNATIVA GERA DILEMA

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A venda de imóveis cresceu 23,14% entre março de 2012 e fevereiro de 2013, segundo pesquisa do Sinduscon-RS. PORÉM...


mercado i nstรกvel mercado n

Texto por Gabriella Soltys Fotos por Camila Foragi


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bom momento do setor imobiliário pode transformar o sonho da casa própria em um pesadelo. Nos últimos 10 anos, o mercado imobiliário no Brasil vivencia um significante crescimento. Os motivos do aquecimento são a estabilização da economia e, principalmente, o incentivo ao financiamento com a redução das taxas de juros, que facilita o acesso da população ao crédito mobiliário. Entretanto, a grande procura também traz consequências negativas para o mercado. A falta de mão de obra e o excesso de demanda provocam dor de cabeça no proprietário do futuro: o atraso na entrega dos imóveis. Pelo menos 90% dos apartamentos comprados na planta na Grande Porto Alegre demoram mais do que o prazo prometido para ficarem prontos e podem sofrer

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atrasos de até três anos, de acordo com a Associação dos Mutuários e Moradores do Sul e Sudeste (AMMRS). Segundo o presidente da entidade, Adilson Machado, a procura por orientação sobre quais procedimentos seguir diante da espera em receber as chaves aumenta a cada ano. A instituição chega a receber mais de 50 ligações por semana. A AMMRS informa que não é só o atraso que acarreta a insatisfação do consumidor, mas, principalmente, o descaso das construtoras com o devido esclarecimento aos seus clientes. "Temos muitos associados que estão esperando os imóveis há dois anos e não recebem explicação quanto ao atraso das construtoras”, revela Machado. O tema preocupa o Procon Municipal de Porto Alegre. Nos últimos 12 meses, conforme levantamento do Sistema de


no empreendimento Arboretto Green Life, da Living, que faz parte do grupo Goldsztein. Na época, Alline comprou o imóvel porque a promessa era de a entrega ser em junho de 2012. Segundo ela, a proposta do empreendimento era ideal, já que Alline mora de aluguel e assim não iria coincidir com a parcela do financiamento. “Esse condomínio possui seis torres, comprei na última, a única que ainda está em obras, mas aparentemente em fase final. Só que até hoje a minha torre não está pronta e eu continuo morando de aluguel. As outras cinco torres já foram entregues”, detalha. No mês passado, a jornalista recebeu uma carta da Goldsztein dizendo que sabia o transtorno que estava causando e admitia estar tentando resolver, mas sem informar um prazo de entrega. Depois de passado um ano do tempo estipulado, Alline entrou com um processo da Justiça,

Brasil é o terceiro país com maior escassez de mão de obra no mundo

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Registro de Reclamação, foram apurados 182 queixas sobre construtoras. Liderando esta lista estão as construtoras Goldsztein Cyrela, Rossi Residencial SA, MRV e Tenda. Os protestos se referem à demora na entrega, excesso de cobrança, problemas com financiamento bancário, falta de informações e qualidade da construção. A construtora Goldsztein Cyrela, com o maior número de reclamações, estava com pelo menos três empreendimentos em atraso na Capital, quando esta reportagem foi produzida: o Bella Vita, o Arboretto Green Life, e o Terrabela. Após tentativa de contato com a construtora, a mesma não quis esclarecer o motivo da quantidade de contestações. Um caso recente foi o da jornalista Alline Goulart, 25 anos, que comprou um apartamento de dois dormitórios e um box

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Me senti enganada, vilipendiada e muito frustrada por ter dado um grande passo na minha vida e não ter o que seria meu por direito. Alline Goulart, jornalista

devolveu o apartamento e pediu reembolso do que já havia pago. Até hoje, diz que não foi informada sobre os motivos do atraso da obra. “Me senti enganada, vilipendiada e muito frustrada por ter dado um grande passo na minha vida e não ter o que seria meu por direito”, desabafa. De acordo com o Código de Defesa do Consumidor, o proprietário tem o direito de ser indenizado pelos danos sofridos pelo atraso na entrega de seu imóvel. O encaminhamento exige uma ação judicial, solicitando a anulação do contrato e a devolução integral do que foi pago, com ajustes do valor. Para a fisioterapeuta Rosangela Ferrite, 47 anos, o sonho de comprar um apartamento foi destruído pela própria construtora Tenda. Ela, que havia comprado o imóvel no empreendimento Juscelino Kubitschek I, no Jardim Leopoldina, em Porto Alegre, se frustrou ao saber que a empresa estava em falência por motivos de má administração. Depois de dois anos de espera para receber a chave do apartamento, a fisioterapeuta buscou ajuda da lei para reaver o dinheiro. “A construtora disse que entregaria o apartamento em março de 2012, me iludi e acabei marcando meu casamento para essa data. Comprei vários móveis e eletrodomésticos para a nova casa. No final, eu e meu marido ficamos sem ter onde morar”, relata. Rosangela ainda lembra que, na época, a Tenda estava sendo comprada pela incorporadora Gafisa.

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Uma das principais causas desse grande número de atrasos é a falta de mão de obra qualificada e crescente demanda pela compra de imóveis, que acabam causando também atraso na entrega de materiais de construção. Segundo a consultora de recursos humanos Ana Claudia Teixeira, o crescimento acelerado da construção civil surpreendeu o país, fazendo com que a procura por profissionais dessa área superasse a oferta. Porém, a especialista também aponta para outro importante problema: a falta de qualificação. “O salário dos profissionais dessa área triplicou com a expansão do mercado. Porém, ainda há uma carência na cultura de busca para capacitação profissional no segmento de construção civil”, afirma. Para Ismael Geitens, diretor da Companhia da Construção e sócio da construtora Home Star, a fragilidade na qualificação é um dos principais problemas que desencadeia o atraso de um imóvel. “Hoje o motorista, por exemplo, que nunca teve experiência com obra antes, é contratado como pedreiro”, conta. Para acelerar o processo, as construtoras estão admitindo pessoas que não são capacitadas e, com isso, acontecem atrasos nas etapas de construção da obra, que acabam provocando o retardo na entrega. Como diretor de uma empresa que vende materiais de construção, Geitens afirma que o aumento da procura por produtos do setor é significativo nos últimos anos. Diante disso, a empresa se


que o técnico e tecnólogo, que são os setores com maior defazagem. Logo após vêm o da engenharia que também envolve a construção civil. “Não tenho dúvidas de que uma das soluções para os gargalos do mercado imobiliário está no investimento da qualificação para atender a essa demanda do setor, porém é necessário que haja maior participação e incentivo do poder público”, declara. O Brasil é o terceiro país com maior problema de escassez de trabalhadores do mundo, segundo o ranking mundial realizado recentemente pelo grupo Manpower. Dos 40 mil empregadores entrevistados, 57% não conseguem achar pessoas qualificadas para operar seus negócios. O Brasil só perdeu para o Japão, com um índice de 80%, e para a Índia, com 67%. p

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Fragilidade na qualificação da mão de obra é um dos principais problemas

preparou para o novo cenário do mercado imobiliário, aproveitou o momento, expandiu sua loja e se tornou um Home Center: “Compramos mais caminhões para entrega, aumentamos a quantidade de funcionários e de estoque”, afirma. O empresário ainda lembra que o prazo de entrega de um pedido para a loja, antes do aquecimento imobiliário, era em torno de vinte dias, e hoje, após a demanda, este prazo se ampliou para 90 dias. Mas não é só a mão de obra na construção civil que sofre com a carência. Outros setores também estão fragilizados pela falta de capacitação. Segundo a executiva de recursos humanos da Manpower, Marcia Almstrom, o Brasil sempre deu maior atenção para o ensino nas universidades do

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O gasto mensal médio de um brasileiro com um animal de estimação pode chegar a R$ 307,91, segundo levantamento da Associação Brasileira da Indústria de Produtos para Animais de Estimação. São mais 40 mil pet shops espalhadas pelo país. PORÉM...


O ABA nDONO Nテグ TERMINA O ABA DONO n

Texto por Larissa de Bem Fotos por Lテュvia Auler


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dos Animais (Seda), em Porto Alegre, há em torno de 30 mil cachorros e gatos de rua. Eles circulam sem dono e dependem da boa vontade das pessoas para ganhar água e comida. O abandono e os maus tratos são uma realidade nos centros urbanos. No entanto, dados recentes trazem questionamentos. De acordo com a Associação Brasileira da Indústria de Produtos para Animais de Estimação (Abinpet), o mercado de serviços destinados aos animais tem crescido de forma significativa no país. O Brasil tem o segundo maior comércio do mundo nesta área. Em 2012, o segmento faturou R$ 14,2 bilhões. No Rio Grande do Sul, totalizam 4 mil pet shops e a expectativa é que os números aumentem consideravelmente nos próximos anos. Mas essa ascensão, no que diz respeito aos cuidados com os animais, se contrapõe às recorrentes situações de abandono e maus tratos. Diariamente, a Seda atende, em média, 60 animais – sendo 30 na clínica veterinária, localizada no bairro Rubem Berta, e 30 para procedimentos cirúrgicos. Desde a sua criação, quase 11 mil animais já foram esterilizados e a secretaria realizou mais de 8 mil ações de fiscalização. De acordo com a titular da pasta, Regina Becker, o foco do trabalho é a conscientização. “Além do serviço de atendimento médico, a Seda incentiva a adoção de animais abandonados com ações como feiras semanais. A conscientização contra maus tratos e abandono tem reflexo direto na melhoria da saúde pública”, diz. O nascimento dos grandes aglomerados urbanos favoreceu, ao longo da história, a proliferação descontrolada de animais. Antigamente, esse aumento significativo gerava um dilema sobre o que fazer com os Porém

Caramelo em processo de reabilitação nos braços de seu novo dono

aramelo tem cerca de um ano de vida, mas desde filhote é obrigado a conviver com as dificuldades impostas pela rejeição. O maior obstáculo apareceu há alguns meses. O cãozinho dócil e educado, que caminhava pelas ruas de Gravataí, foi atropelado. Por causa do impacto do acidente, perdeu os movimentos dos membros posteriores e a situação só pode ser revertida no caso de um longo e caro tratamento para reabilitação. Resgatado pela prefeitura, inicialmente o animal foi levado ao canil municipal, mas não se adaptou ao local e adoeceu. Depois, uma veterinária ficou sabendo da história e conseguiu uma vaga em um lar temporário. Hoje o cão está saudável e feliz. Ele já tem a cadeirinha e aguardou três meses por um novo lar – que chegou. Foi então que sua história ganhou um novo rumo. A técnica de enfermagem Janaina Trindade de Mello, apaixonada por animais, foi conhecer uma cadelinha em condições especiais, que já estava em processo de adoção por outra pessoa, quando viu o cãozinho. Segundo ela, "foi amor à primeira vista". Agora, Caramelo vive em uma casa adaptada para suas necessidades e recebe muito amor. Mas, nem todos os bichinhos têm um final feliz como este. A história de Caramelo, antes do processo de adoção, confunde-se com a de muitos animais abandonados. Tudo que eles querem é uma chance de ganhar um novo lar para receber os mimos de seus donos. Por trás de fucinhos e olhares assustados que perambulam pelas ruas da cidade, existem vidas em busca de amor. E, mais do que isso, vidas que desejam transmitir amor. O número de animais abandonados é grande: segundo uma estimativa da Secretaria de Direitos

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Animais com problemas físicos são discriminados pelos próprios donos

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excedentes, considerando, por exemplo, o risco da transmissão de doenças. No Brasil, assim como em outros países, a questão foi resolvida por meio de uma política intensa de captura e extermínio de animais, principalmente nas décadas de 1970 e 1980. Nos dias atuais, a prática é pequena, mas ainda existe em algumas regiões do país. Contudo, o maior problema se resume à carência: falta de políticas públicas, falta de educação para posse responsável, falta do controle populacional e do não cumprimento das leis. O artigo 32 da Lei de Crimes Ambientais 9.605, de 12 de fevereiro

de 1998, considera crime “praticar ato de abuso, maus tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos”. A pena é detenção de três meses a um ano e multa. Mas a possível punição não coíbe essas práticas, principalmente a do abandono de animais no período de férias. Em alguns locais do Rio Grande do Sul, o abandono nessas temporadas pode chegar a 30%, em comparação aos demais meses do ano, segundo estimativa do projeto Adote Não Compre. Ciente desse cenário desenhado há tanto tempo e da importância do cumprimento da lei, a protetora de animais Lourdes Sprenger


vai parar nas ruas. São aqueles que tiveram a infelicidade de nascer com ou adquirir caractecrísticas que acarretam preconceito da sociedade ou, até mesmo, do próprio dono. Bichos velhos e deficientes estão entre os principais excluídos. E mesmo os que não têm problemas físicos também sofrem discriminação como, por exemplo, os gatos pretos e os pitbulls. Segundo Leandra Pinto, uma das fundadoras do projeto Animal é Tri!, a maioria das pessoas que entram em contato com a instituição estão em busca de filhotes de cães e gatos para adoção. “As pessoas preferem filhotes, pois querem educar desde pequenos. No entanto, esquecem

Esquecem que filhotes são como crianças e irão necessitar de atenção, carinho e socialização intensa. Leandra Pinto,

fundadora do Animal é Tri

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resolveu se candidatar à vereadora para dar voz a sua luta. E foi eleita. Lourdes tornou-se a primeira representante da causa animal no Poder Legislativo em Porto Alegre. Foram 4.402 votos distribuídos nas diversas zonas eleitorais da cidade. Segundo ela, todas as formas de vida merecem ser tratadas com respeito e dignidade. “Não é uma luta fácil, mas precisamos dar mais visibilidade à causa animal, principalmente à questão das leis e do mercado animal, que precisa ser fiscalizado também”, afirma. Em meio a essa imensidão de cães e gatos que compõem o retrato do descaso com o animal, há uma parcela que sofre ainda mais quando

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que filhotes são como crianças e irão necessitar de atenção, carinho e socialização intensa“, explica. Na cidade, a turma não é pequena. De acordo com estimativas da Seda, em torno de 20% dos animais que vivem em abrigos da Capital se enquadram no perfil de rejeitados – o que representa cerca de 6 mil cachorros e gatos. Desse total, menos de 5% são adotados pela população. “Animais adultos, que já têm aparência e personalidade formadas, também sofrem muito preconceito. O projeto conta atualmente com 16 cães que aguardam lares há mais de dois anos. São cachorros sociáveis e carinhosos, mas, ainda assim, as pessoas preferem filhotes”, diz. Para ela, a maioria dos cães abandonados ou que já nasceram nas ruas é de porte médio ou grande e não se encaixa no perfil da adoção. O projeto Animal é Tri! foi criado em 2011 por um grupo de amigas e protetoras independentes da Capital, que decidiram transformar a compaixão pelos animais que vivem em situação de risco em ações efetivas para a mudança da realidade. Leandra Pinto, Cláudia Cantagalo, Daniela Rios, Iara de Azevedo, Tathiana Jaeger e Manuela Raupp têm suas profissões e se dedicam, paralelamente, ao projeto. O trabalho é dividido em três eixos: divulgação de animais para adoção por meio de uma página no Facebook, resgate de animais e ações pelo bem-estar animal, como campanhas de conscientização, palestras e oficinas. Em quase dois anos de trabalho, elas contabilizam cerca de cem adoções. Segundo Leandra, em breve, o projeto deve dar mais um passo. “Tendo em vista a participação ativa na rede de proteção animal do Rio Grande do Sul e com a finalidade de legitimar o trabalho que prestamos

à sociedade, estamos na busca pela autossustentabilidade do projeto a partir da formalização como organização não governamental”, completou. Outra iniciativa na área é o site Bicharia. Tudo começou em 2012, quando Flávio Steffens e Marcus Vinícius Sá, cansados do descaso em relação aos animais na cidade, decidiram criar a primeira plataforma brasileira de crowdfunding voltada para o financiamento de projetos que envolvam bichinhos carentes. O negócio funciona como a velha e boa vaquinha. Qualquer pessoa ou entidade pode criar uma página no site e, por ali, arrecadar dinheiro junto ao público que quer ajudar. Os projetos têm um período de 45 dias para atingir 50% do valor solicitado e então cabe ao responsável colocar a ideia em prática. Se a meta não for atingida, todos os apoiadores recebem o dinheiro de volta. De acordo com Flávio, após o encerramento da arrecadação eles procuram acompanhar o desenvolvimento das ações. “A nossa função é criar a estrutura necessária para que os projetos possam ser divulgados. Um tempo depois do término, a gente faz uma entrevista e solicita fotos das ações para comprovar o uso do dinheiro arrecadado", explica. Até agora, quatro projetos criados no Bicharia arrecadaram mais de R$ 10 mil cada um, em apenas um mês. Ações coletivas como Animal é Tri! e o Bicharia são fatores determinantes para auxiliar na construção de uma nova realidade. O número de pessoas que descartam ainda é maior do que aqueles que cuidam, mas é preciso seguir lutando para alcançar resultados que tragam benefícios aos animais, à comunidade e aos envolvidos no projeto. p


FALA PORTO ALEGRE O Fala Porto Alegre, por meio do telefone 156, tem sido a ferramenta mais utilizada pela população para informar casos de abandono, atropelamento e risco de morte de cães e gatos. Em grande parte, os animais

20% dos animais que vivem em abrigos são rejeitados

são atendidos pela Seda e permanecem sob os cuidados dos que denunciaram os maus tratos. Em outras situações, são retirados das ruas, tratados, castrados e abrigados no Hospital Veterinário da Seda até a adoção.

QUER AJUDAR? Já para falar com integrantes do projeto basta escrever para o email animaletri@gmail.com. Para mais detalhes sobre o projeto Bicharia visite o portal na internet www.bicharia.com.br. Porém

A Animal é Tri! disponibiliza dois e-mails para contato com o público. O muraldosbichosrs@ gmail.com recebe anúncios de adoção, casa de passagem, lar temporário e animais perdidos.

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Ensaio O verde da sinaleira. O verde das folhas e flores. O azul do céu que reflete nos prédios. A natureza que se perde em meio ao concreto; ou o concreto que se ergue em meio à natureza. A mistura é bela. Encanta os olhos e apetece a alma. Muitas vezes passa despercebida. Para que isso não aconteça, não basta olharmos, mas sim, enxegarmos. Stephanie do Nascimento

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Porto Alegre é a capital nacional dos solteiros. São cerca de 400 mil homens e mulheres livres. PORÉM...


NUNCA sE CAsOU TANTO NUNCA sE s

Texto por Voltaire Santos Fotos por Camila Foragi e Bruna Canani


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P O amor do casal Sulamita e Daniel em tatuagem

Para o produtor de eventos Felipe Enio Ribeiro, um dos organizadores de festas de matrimônio no bairro Moinhos de Vento, casar virou cult e é quase uma moda que influencia os amigos de quem participa da cerimônia. “Nós percebemos que, após as festas, os amigos dos noivos ficam com vontade de casar. Já recebemos agendamentos 15 dias após a realização de eventos festivos de amigos dos noivos que resolveram casar por pura influência”, afirma o produtor. As casas noturnas chegam a faturar R$ 300 mil por mês com esse tipo de celebração, um mercado que não para de crescer na cidade. Dados do Censo Demográfico de 2010, divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que Porto Alegre apresenta o maior número de solteiros no país, com 400 mil homens e mulheres nesta condição. Superar a carência e encontrar uma boa companhia ainda faz parte dos planos dos solitários. Nestas circunstâncias, a internet é uma forte aliada, como explica a psicóloga e terapeuta sexual Andreia Alves. “Tanto os homens como as mulheres amam levantar a bandeira e gritar independência, mas no calar da noite, sozinhos entre quatro paredes, batem outro recorde. Os gaúchos são um dos públicos que mais acessam chats de relacionamentos durante a noite. Ali a timidez não existe”, explica a especialista. As redes sociais uniram, por exemplo, o casal Juliana Pecker e Marcelo Duarte, que no final de julho de 2010 decidiram acessar o chat do portal Terra. “Dentro do chat você pode escolher falar com pessoas da mesma cidade. Assim que cliquei em Porto Alegre, minha janelinha já abriu com o “oi” do Marcelo. Ali foi o primeiro passo”, comemora Juliana. A partir da saudação, o casal não parou mais de conversar. Casaram, Porém

orto Alegre tem o título da capital mais solteira do país. No entanto, segundo dados do Cartório da 4ª Zona da cidade, há 39 mil uniões formais por ano na cidade. Em maio de 2013, praticamente todas as igrejas já estavam reservadas para novos casamentos. É justamente na agenda que está o problema para o casal Robson Costa e Nathielen Moraes. “Não há vagas nem nas igrejas, nem nas casas de festas de Porto Alegre. Estamos tentando marcar uma data que agrade a todos os familiares há mais de dois anos e ainda não encontramos. Daqui a pouco, vamos desistir de casar”, brinca Nathielen. O casal de engenheiros, que já tem apartamento comprado, diploma no armário e aliança (de noivos, é claro) no dedo, enfrenta dificuldades para realizar a cerimônia de matrimônio dos sonhos. Roque Silva, um dos padres da igreja Santa Teresinha do Menino Jesus, admite que a partir do mês de maio o ritmo só aumenta. “Nunca se casou tanto em Porto Alegre. São cerca de 15 uniões a cada mês na nossa igreja, nós não damos conta. Tivemos que organizar uma lista de espera”, diz. Ele explica que não é possível definir um perfil específico entre os apaixonados. A emoção é a mesma tanto para jovens de 18 anos como em relacionamentos entre pessoas acima dos 40. A espera atinge Robson e Nathielen. “Colocamos o nosso nome em mais de dez igrejas. A data mais próxima que conseguimos foi em novembro na Nossa Senhora das Dores”, revela o noivo, ansioso. Robson ainda espera que não surja uma nova viagem de trabalho, como aconteceu em dezembro do ano passado – período que teve que ir para o Rio de Janeiro em uma pesquisa da Petrobrás. “Será que Santo Antônio, o tal casamenteiro, quer mesmo que a gente case?”, questiona.

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compraram um apartamento e tiveram uma filha, a pequena Laisa. Para Juliana, a solteirice, mais que uma opção, era uma escolha de vida. Ela estava no final do curso de Turismo e viajava muito. Já Marcelo batalhava pela estabilidade no emprego de advogado, mas as escolhas profissionais não serviram como empecilho. “Na verdade esse papo de querer ser solteiro é comum entre quem ainda não encontrou a pessoa certa para compartilhar alegrias e tristezas da vida. Pega bem entre os amigos essa liberdade e também tem aquela frase clássica: antes só do que mal casado”, afirma Marcelo. O primeiro encontro, que era apenas pra ser um momento de diversão, tornou-se definitivo. O casal se encontrou em um café do Shopping Moinhos de Vento e a amizade entre eles foi o test-drive para uma vida juntos. Em menos de três anos, começaram um namoro, casaram e tiveram uma filha. Já uma comunidade da banda de Rock CPM 22 no Facebook foi responsável pela união de Daniel Berggvist e Sulamita Barreta. Na página, havia a divulgação de um show da banda em Porto Alegre e Sula, que na época ainda era casada, se interessou por Daniel. Ambos conversaram pela internet e combinaram um encontro no show. Os oito anos de diferença e o casamento de Sulamita não impediram que o casal se apaixonasse. No meio da apresentação, o primeiro beijo transformou-se em uma tatuagem dois meses depois, que contempla o nome de um no corpo do outro, além da aquisição de alianças de noivos. “Hoje eu tenho 32 anos e ele 24, me separei e estamos morando juntos”, conta Sulamita. Ela afirma que assim que a renda melhorar o casamento vai sair. O Censo do IBGE mostra também que os homens são a maioria entre

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os que vivem sozinhos. Escolha própria do morador do bairro Cidade Baixa Tiago Barbosa. “Solteiro sim, sozinho nunca é o meu lema. Até o momento ainda não surgiu aquela mulher capaz de fazer com que eu divida o potinho da escova de dente, mas é claro que apesar de gostar da minha condição atual, não quero ficar sozinho. Hoje tenho 30 anos, estou montando meu consultório odontológico, quem sabe com 40? Mas largar a noite será a maior dificuldade”, garante Tiago. A pesquisa do IBGE mostra ainda que as mulheres que vivem sozinhas apresentam um nível de instrução acima dos homens: 16% delas possuem Ensino Superior completo. Já mais da metade dos homens solitários não tem o Ensino Fundamental completo. Isso representa para eles um isolamento social pela perda de autoestima, conforme explica a terapeuta de casais Lucia Pesca. “Estes homens perdem a confiança por não terem se desenvolvido profissionalmente e por ganharem menos, preferem ter algumas namoradas do que assumir um compromisso. Não sejamos hipócritas, casar custa caro e as mulheres são exigentes e sonhadoras”, destaca a psicóloga. Sonho que ainda está indefinido para Nathielen e Robson, que mesmo tendo o casamento marcado para novembro podem ter que adiar mais uma vez a festividade. Isso porque em outubro pode pintar uma nova promoção para Nathielen e existe a possibilidade de mudança para o Rio de Janeiro. “Chego a sonhar com aquela voz do padre dizendo – eu os declaro marido e mulher”, afirma a noiva sorridente. Enquanto isso, o casal vai vivendo feliz, buscando, é claro, uma vaga nas igrejas lotadas de uma Porto Alegre, que mesmo assim, tem o título da capital nacional dos solteiros. p

Daniel e Sulamita comemoram a união com beijo


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“Maridos, ame cada um a sua mulher [...] Vós, mulheres, sujeitaivos a vossos maridos.” (Efésios 5:22-23-25) PORÉM...

AMOR SEM LIMITES


MES ROMA SETIMIL

Texto por Natália Otto Fotos por Lívia Auler


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á quem discorde e pense que a exigência de exclusividade sufoca as relações. As chamadas relações livres, relacionamentos nos quais os indivíduos se envolvem romântica e sexualmente com diversos parceiros, são uma opção para quem desconfia da monogamia e da configuração da tradicional família nuclear burguesa. O discurso sobre a necessidade de questionar a monogamia é, para muitos adeptos, coerente e necessário. Porém, na vida prática, o rompimento com este padrão é um processo longo e difícil – mas, segundo os que o vivem, libertador. A universitária Júlia Franz, de 19 anos, sugeriu para a namorada, a jornalista Nanni Rios, de 26 anos, que ambas tentassem viver um relacionamento aberto. Há seis meses elas abriram mão da posse uma sobre a outra, e, segundo Júlia, os resultados têm sido positivos. “Surgiu essa vontade de experimentar um outro tipo de relacionamento, com menos cobranças e mais amor na essência”, conta a jovem, que é DJ e apresenta, ao lado da namorada, o Programa Gay da rádio Ipanema, em Porto Alegre. “Ficamos mais tranquilas de ambos os lados e estamos aprendendo a viver um sentimento diferente, sem tanta pressão”, explica. “As noções de amor e posse são quase intrínsecas, desde cedo repetimos esse padrão e nunca paramos para questionar se é o mais adequado para a relação”, reflete Júlia. Para ela, o ciúmes permanece como a maior dificuldade na vivência de um amor livre. “Acho compreensível, no contexto em que vivemos, que tenhamos esse desejo de controle. Mas garanto que é bem mais saudável tentar se livrar dele, por mais que seja difícil no começo”, aconselha a estudante de jornalismo. “A posse é algo que nos consome. Isso, sim, pode acabar destruindo o relacionamento.”

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A escolha do casal gera estranhamento de algumas pessoas que convivem com as duas. Júlia percebe que muitos ainda não conseguem diferenciar amor de posse e classificam esse tipo de relação como promiscuidade ou egoísmo. Mas a estudante ressalta que viver um amor livre não quer dizer, necessariamente, manter relações sexuais com muitos parceiros. “É apenas uma questão de cultivar a liberdade”, explica. Júlia pondera que é natural que seja “esquisito” pensar que a pessoa


universitária e DJ

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Surgiu essa vontade de experimentar um outro tipo de relacionamento, com menos cobranças e mais amor na essência. Júlia Franz,

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O pessoal é político

Os escravos ganharam alforria, mas os dados sobre violência doméstica levam a crer que as relações hierárquicas familiares

ainda não foram abolidas. No Brasil, segundo dados do governo federal de 2011, 43% das mulheres já sofreram violência dentro de seu domicílio. Outros números chocantes são os de que 25% das brasileiras já foram vítimas de agressão física por parte de parceiros ou cônjuges e 11%, por parentes. As estatísticas sobre a família, portanto, não apontam para o final feliz inevitável. Para muitos (muitas, principalmente) a configuração homem-mulher-e-filhos é um espaço de violência. O questionamento da monogamia, para muitos, não tem apenas viés pessoal. Para algumas pessoas, pensar novas maneiras de se relacionar é um ato de militância política cotidiana. A colaboradora da editora portoalegrense Deriva, Waslala (nome escolhido por ela, parte da tradição da filosofia anarquista de combater o individualismo), de 26 anos, é uma delas. Ela co-editou a antologia De amor e anarquia – relações libertárias hoje e ontem, publicada pela Deriva em 2012, com textos clássicos e contemporâneos que relacionam o movimento anarquista com as relações livres. O anarquismo – tema das publicações da Deriva – é a filosofia política que prega a possibilidade de viver sem um Estado, um governo centralizado ou um monopólio da força. Os anarquistas pregam um modo de vida baseado na autogestão e na autonomia. A crítica à instituição da monogamia, então, parte desta filosofia. "Tem tudo a ver com a ideia da família como uma unidade de reprodução de controle", explica Waslala. "Da maneira como a família é estruturada, ela possui um governo próprio e serve a um Estado", conta, referindo-se às questões hierárquicas que historicamente operam nas famílias nucleares. Para Waslala, o questionar a monogamia parte do ato de repensar a propriedade privada. Segundo a lógica anarquista, a propriedade é

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amada pode estar se relacionando com outras, pelo menos no início. Para ela, aí entra a parte mais bonita dessa escolha: “Deixar ela livre para viver tudo que tiver vontade e se concentrar apenas no amor que tu tens por ela. Tu deixas as questões externas de lado e entra a fundo na história”, conta a jovem. “Assim, acaba virando uma relação muito mais intensa, sabe?” A formação de uma família nuclear burguesa representa o ápice da felicidade na vida de um indivíduo em boa parte do imaginário social. Mas essa formação de uma unidade entre pai, mãe e filhos não é natural, como muitos creem ser, nem tão intrinsicamente benéfica aos envolvidos. Uma olhada na história da civilização ocidental mostra que o modelo hoje adotado de família monogâmica – na qual o casal não se relaciona com outros indivíduos – nasceu com o capitalismo e a necessidade de um controle da propriedade privada. A fidelidade conjugal era necessária para que se pudesse transmitir corretamente as posses de uma família para a próxima geração, através da hereditariedade. Se a família tradicional não é natural, tampouco é livre de violências. O próprio termo família deriva do latim famulus, que significa escravo doméstico. Os romanos cunharam a palavra para designar um organismo social surgido nas tribos latinas do império, no qual um chefe mantinha poder sobre os filhos e escravos.

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parte fundamental que estrutura a maneira como nos relacionamos. O ciúmes, por exemplo, nasce da ideia de posse mantida por um sistema que iguala propriedade com felicidade. Segundo a anarquista, a angústia sentida por um indivíduo quando seu companheiro se interessa afetiva e sexualmente por outros é uma violência para todas as partes envolvidas. Nisso, a imposição da monogamia se relaciona com o sistema capitalista. "É uma política da escassez, não da abundância", explica, referindo-se a um termo da economia que descreve uma disparidade entre a quantidade demandada de um produto e sua disponibilidade no mercado – o sentimento, então, de que poucos bons parceiros românticos estão à disposição, sendo necessário que um indivíduo, para ter sucesso na vida afetiva, se prenda a um parceiro logo que possível. "A escassez é medo, ameaça, controle. Não precisamos disso para viver", lamenta. "Se queremos autonomia, seja para plantar ou para nos relacionar, não podemos viver com medo."

SENTIMENTO LIVRE

Mas Waslala reconhece que livrarse do sentimento de posse sobre os outros é muito mais difícil na prática do que no discurso, mesmo entre os anarquistas. “Fomos construídos a vida inteira para acreditar nessa necessidade de ser o único na vida do outro, na necessidade de posse e controle”, explica. Para ela, esse é um processo de se desfazer do estado que as pessoas têm interiorizado, da mesma maneira que ocorre com todo o tipo de autoridade. Segundo ela, a polícia, por exemplo, só funciona pois a sociedade interioriza o policial. “Todo mundo é polícia e todo mundo garante que as regras sejam cumpridas. Nas relações afetivas

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ocorre a mesma coisa”. Apesar de determinados setores do movimento anarquista – principalmente aqueles ligados ao feminismo – esforçarem-se para trazer a questão da monogamia para o centro do debate, muitos que se identificam com o movimento vivem relações monogâmicas – e não há nenhum problema nisso, segundo Waslala. “A monogamia em si não é maléfica. O problema é que seja a única opção imaginável, que ela seja uma obrigação e que romper com ela seja uma ofensa, uma violência”, pondera. “A questão é que a gente tem que pedir reconhecimento do Estado e de outras pessoas que querem regular nossa vida para podermos viver dessa forma.” Para a colaboradora da Deriva, o preconceito das pessoas ao ouvir sobre a opção das relações livres revela o quão subversivo é esse estilo de vida. “Essa ideia de que vivemos em um liberalismo, onde tu és livre para fazer o que quiser, é uma falácia. Tu és livre para fazer o que se supõe que tu tens que fazer, por isso tu não tens nenhuma liberdade”, lamenta ela. As exclamações de “isso não dá certo!” quando Waslala revela sua opção são frequentes. “Dizem que relações não dão certo, mas eu acho muito engraçado, porque até onde eu vejo, não considero que o comum das relações monogâmicas seja dar certo”, conta. Ela enumera fatos cotidianos como as mortes resultantes de crimes passionais, o feminicídio (extermínio de mulheres), a infelicidade das crianças na atualidade e a violência psicológica de muitos relacionamentos exclusivos. “Então, para mim, que uma relação termine não é dar errado.” “O pessoal é político”, lembrou a anarquista, citando um lema cunhado pelo movimento feminista dos anos 60, que lutou para convencer a opinião pública de que assuntos do âmbito privado, como violência doméstica e divisão sexual do

Fomos construídos a vida inteira para acreditar nessa necessidade de ser o único na vida do outro. Waslala,

colaboradora da Editora Deriva


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trabalho, deveriam ser tão debatidos e questionados quanto os temas do âmbito público. “É importante falar sobre como nos relacionarmos. Não adianta nada tu seres libertário e continuares te relacionando de forma hiperpossessiva com teus companheiros e teus filhos. Isso é uma maneira de reproduzir o autoritarismo”, critica. “Se queremos liberdade em todas as esferas da vida, isso inclui se questionar sobre como aprendemos a amar.” A crítica da família nuclear, heterossexual e monogâmica, também pode ser encontrada em alguns setores da comunidade LGBT. Enquanto alguns ativistas dominam o debate público com temas como a necessidade da legalização do matrimônio e a facilitação da adoção de crianças por casais do mesmo sexo, alguns outros portavozes do movimento preferem focar-se no debate da expressão da sexualidade.

Nescau, Coca E família HÉTERO

A ONG Nuances, de Porto Alegre, é uma das entidades que critica o foco demasiado do debate sobre LGBTs no casamento e na adoção. “Entendemos que a família heterossexual é uma construção política conservadora”, esclarece Célio Golin, membro da organização. “Ela é uma das razões históricas pelas quais ficamos marginalizados, por não termos a possibilidade de construir uma família nos moldes da heterossexualidade”. Assim, Célio defende uma postura crítica do movimento perante uma instituição que, por definição, sempre excluiu os LGBTs, ao invés de uma tentativa por parte dos homossexuais de adequarse a esse padrão. Golin acredita que a ideia da família nuclear é conservadora

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tanto para as relações homossexuais quanto para as heterossexuais. O foco da ONG é na questão do uso do corpo e na ideia do prazer. “Debatemos sobre como podemos estar convivendo em sociedade, usufruindo desses prazeres, de modo que a sexualidade não seja um tabu, que as pessoas não sejam marginalizadas por causa de sua expressão sexual”, conta. Para ele, a questão da sexualidade – exatamente com quem e como se faz sexo – é o centro da opressão contra os LGBTs. A polêmica se instaura no movimento pois, segundo Golin, alguns militantes estão centrados na ideia do casamento e do reconhecimento a partir da ideia da heterossexualidade como normalidade, o que a Nuances condena. “Politicamente, defendemos que uma pessoa pode ter quantos parceiros ela quiser. Não podemos dar ao Estado o direito de administrar nosso corpo”, afirma. Golin explica que essa busca pelo estilo de vida normativo dá mais visibilidade a alguns membros da comunidade LGBT e menos a outros. “O gay de classe média, consumidor e normativo, tem muito mais espaço na mídia e no debate público”, exemplifica. “Para mudarmos isso, temos que questionar o padrão heterossexual de família.” Para ele, é essencial que se compreenda que a família é uma construção social recente, relacionada com o capitalismo, a herança e a transmissão de propriedade. “Não é uma coisa natural nem divina, como os religiosos gostam de dizer que é. Tanto que nunca dá certo. Quando se mexe em dinheiro, por exemplo, acabou o divino, se matam todos”. E brinca: “A família é como o Nescau, a Coca-Cola. Alguém disse um dia ‘vamos fazer essa coisa aí’ e fizeram, está aí, mas não pode servir de modelo para nada. Mas aí as bichas e as sapatas lesadas querem copiar esse modelo e não dá certo", conclui. p

Politicamente, defendemos que uma pessoa pode ter quantos parceiros ela quiser. Célio Golin, membro da ONG Nuance


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O Rio Grande do Sul é líder no consumo de carne no Brasil. Segundo o Sindicato da Indústria de Carnes, cada gaúcho come 45 kg por ano, contra 36 kg dos habitantes de outros Estados, PORÉM...

nosso prato está mais verde 90

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atorp nosso sima ĂĄest verde

Texto por Tyssi Vidaletti Fotos por Bruna Canani

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orto Alegre – carinhosamente chamada de Capital do Churrasco – pode ser considerada um paraíso para aqueles que adoram carne, seja bem assada ou pingando sangue. Aos domingos, o cheiro predominante nas ruas é o que vem dos tradicionais espetos corridos, mas o número de espaços gastronômicos dedicados aos vegetarianos cresce na cidade. A novidade é que esses locais não são frequentados apenas por ativistas do bem-estar animal. Mesmo que apenas 6% da população do Rio Grande do Sul se declare vegetariana, menor índice em um país que possui uma média de 8%, conforme o Ibope, a tendência é esse número aumentar. De acordo com uma pesquisa do grupo Ipsos, feita no início de 2011, 28% dos brasileiros já diminuíram a ingestão de carne. É o segundo maior índice mundial, ficando atrás apenas do Canadá. Um detalhe que chama a atenção é que a maioria dos frequentadores de restaurantes e lanchonetes vegetarianos é de carnívoros. Mesmo assim, uma pequena parcela da população já abdicou da carne e hoje segue uma nova dieta. Há também os adeptos do veganismo (ver box), reconhecido como uma filosofia de vida. Ideologia, dieta saudável,

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ativismo, os motivos são muitos, o surpreendente é que na capital do rodízio de carne a busca por receitas que não utilizem derivados de animais aumenta. De acordo com Simone Souza, coordenadora de Projetos do Sindicato de Hotelaria e Gastronomia de Porto Alegre, apesar de não haver números específicos, já é possível notar uma tendência no progresso desse segmento alimentício. “Ainda não fizemos nenhuma pesquisa, mas pelo que posso ver há, sim, um tênue aumento. Nos últimos quatro anos, houve a abertura de novos restaurantes no ramo”, analisa. A elaboração de um roteiro pelos espaços gastronômicos vegetarianos da capital poderia iniciar no Bairro Bom Fim, região central, que concentra restaurantes tradicionais do segmento. A alguns passos do Parque Farroupilha, em uma rua que possui lojas dedicadas à vestimenta indiana e objetos místicos, está o primeiro ponto. O Prato Verde iniciou suas atividades em abril de 1991. A preferência pelo local está no ambiente da região, onde acontecem as feiras ecológica e de artesanato aos sábados, e o tradicional Brique da Redenção aos domingos. O cardápio é ovo lacto vegetariano. O primeiro contato


irmãs, saiu de Casca, no interior do Estado, e chegou a capital para trabalhar em uma fábrica de jeans. Em Porto Alegre, ingressou para a filosofia Hare Krishna – pensamento indiano que tem como um dos mandamentos não matar ou causar sofrimento para se alimentar. Por influência dela, as irmãs também se converteram e foram rebatizadas. Para apostar em um negócio próprio, optaram por algo que se aliasse à nova filosofia de vida. Assim, com o objetivo de passar a cultura vegetariana, abriram o restaurante. Rada Gopnata, uma das irmãs e sócia, é responsável pelos famosos hambúrgueres vendidos na lanchonete. A produção é toda feita em sua casa. Ela também cuida do processo de moer, temperar e preparar os grãos de soja. Lady Balbinot, a única que ainda não passou pela cerimônia de batismo Hare Krishna, conta que, desde que o restaurante foi aberto, a quantidade de vegetarianos cresceu. “Notamos que aumenta a cada dia. Tem gente que chega aqui, experimenta e volta depois, dizendo que virou vegetariano, que não precisa de carne pra comer bem”, explica. As cinco sócias não fazem nenhuma contabilidade a respeito do público, mas veem o interesse progredir. A culinária do Govinda mistura a comida italiana com a cultura indiana. “Nascemos no interior e fomos criadas com a gastronomia italiana, o restaurante foi uma aposta com base no que hoje acreditamos e deu certo, o público adora”, afirma Lady. O jornalista Felipe Grespan, 34 anos, é vegetariano há dois. A adesão veio em decorrência do seu envolvimento com o movimento de defesa dos animais. “Minha família paterna é de Santana do Livramento, onde possui essa cultura carnista (ideologia oposta ao vegetarianismo, cultua o consumo de carne) muito Porém

que os proprietários tiveram com esse tipo de cozinha veio durante uma viagem a Curitiba, onde já havia um mercado crescente. E ao contrário do que se possa imaginar, a motivação não foi o vegetarianismo – dos três sócios, apenas um segue essa dieta – mas sim pelo sabor e variedade dos alimentos. Naquela época, a discussão sobre sustentabilidade tomava força, e excluir do cardápio derivados de animais estava diretamente ligado a esse pensamento. Um levantamento realizado por um dos sócios do estabelecimento, Tiago Flores, reforça que esse tipo de restaurante não é frequentado apenas por adeptos da dieta. No local são recebidos por mês, aproximadamente, 10 mil clientes, desses, apenas três mil se declaram vegetarianos. O que mostra que 70% do seu público é formado por carnívoros. De acordo com Flores, a procura por uma alimentação mais balanceada é o motor. “Existe esse mito que pessoas vegetarianas são saudáveis. Aqui os clientes nos procuram por essa preocupação com a saúde”, conta. A pesquisa feita pelo proprietário aponta que entre os clientes mais assíduos o nível de escolaridade é elevado, 65% deles possui Ensino Superior. “Quem se interessa por comida vegetariana e toma essa iniciativa, sem generalizar, é um público visto como cabeça aberta”, afirma Flores. Ao sair do Prato Verde, basta atravessar a rua para chegar ao Govinda, outro estabelecimento tradicional da culinária vegetariana na Capital. Reconhecido pela variedade oferecida, pois é ao mesmo tempo pizzaria, buffet e, ainda, uma lanchonete com esfirras, pastéis e hambúrgueres de soja, uma das especialidades da casa. Sua história iniciou há 18 anos, quando Rada Madava, a mais nova de cinco

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Manuel de La Rosa, em frente ao seu restaurante vegano Mantra

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forte, me criei em meio a ela. Gosto de carne, não foi pelo sabor que parei de comer. Mas estudando a respeito do assunto me dei conta que não faz sentido comer carne”, explica. Foi no filósofo australiano, da vertente utilitarista, Peter Singer, que o jornalista achou embasamento para seguir com sua nova forma de viver. Grespan diz que ainda vê resistência por parte da maioria da população, que o entendimento é lento, mas acontece. “O que falta é informação. A ignorância faz com que as pessoas tenham preconceito, é só pensar um pouco que é possível entender o movimento animal” define. Além das pessoas que tomam a iniciativa por vontade própria, como Grespan, há também quem siga a luta. Elvira Godinho, 73 anos, não é vegetariana, mas seu filho mais novo, único menino de três irmãos, sim. A motivação para a nova dieta também veio da preocupação com a causa animal. No início, Elvira não gostou da ideia. “Era difícil pensar como ia cozinhar para ele sem carne, sem dizer que jurei que ele ia ficar mal de saúde”, conta. Quatro anos se passaram desde que o caçula abraçou a causa por uma alimentação sem carne. Hoje a dieta vegetariana da mãe corresponde a 80% do seu cardápio. “Além de eu, hoje, ser mais criativa para cozinhar, me sentir bem fisicamente, parei de sentir falta da carne. Sem dizer que é mais barato. Só como quando vou fazer visita às amigas ou às minhas filhas. Admito que tinha muito preconceito, mas também não sabia”, diz. Na rota dos restaurantes vegetarianos da cidade, entre os novos pontos está o Mantra Gastronomia e Arte, no bairro Independência. Manuel de La Rosa, proprietário desde 2011, afirma que seu caso com o espaço foi escrito pelo destino. Ele trabalhava na bolsa de

valores, quando foi ao restaurante e apaixonou-se pela comida. Alguns meses depois, o dono o colocou à venda e ele arrematou. Realizou uma reforma e promoveu mudanças na administração. Nessa mesma época, entre viagens e um desejo de mudar o estilo de vida, tornou-se vegetariano. O Mantra vai além de servir comida hindu, que por si só é completamente vegetariana, e oferece o Prasadam, um alimento abençoado, de acordo com os rituais indianos, como explica de La Rosa. “A cozinha indiana é a massala em essência, que é essa mistura de sabores e como eles são organizados. Nossa missão é produzir um alimento saudável feito de nenhum tipo de exploração animal. Que seja espiritual e que tenha boas energias”, esclarece. O alimento é todo produzido sem ser provado pelo chef. É oferecido a um altar e, depois, recolocado nas panelas para ser finalizado. De acordo com Manuel, 80% dos clientes não são vegetarianos. Aos fins de semana, principalmente, as famílias optam por ir ao restaurante, não só saborear da comida vegana espiritualizada, mas também sentir um pouco do ambiente que foi construído em cima da temática hindu. O número de carnívoros que procura pela culinária vegana mostra como a informação tem se expandido e as pessoas abandonam suas ideias preconceituosas, nas quais idealizam os vegetarianos como comedores apenas de folhas. Manuel de La Rosa conta que a saborosa refeição aguça o interesse das pessoas para uma nova cultura. “Nossa ideia não é transformar o mundo todo. Nossa ideia é servir as refeições, ensinar as pessoas sobre o vegetarianismo. A força motriz do nosso negócio é a compaixão pelos animais e isso é o que nos impulsiona e dá prazer”, explica. O atendimento a um número significativo de onívoros é visto


A cozinha indiana é a massala em essência, que é essa mistura de sabores e como se organizam eles. Nossa missão é produzir um alimento saudável feito de nenhum tipo de exploração animal. Que seja espiritual e que tenha boas energias. Manuel de La Rosa, proprietário do restaurante Mantra

ENTENDA os diferentes tipos de dieta Há diversas formas de restrição alimentar, que excluem da dieta animais e seus derivados. São elas: OVO LACTO VEGETARIANO – Não consome carne, mas derivados sim, como o ovo, leite e queijos.

OVO VEGETARIANO – Sem carne, sem leite, queijos e derivados, mas consome ovos. VEGETARIANO – Não consome carne e nenhum derivado de

animais, como ovos, leite e queijos.

VEGANOS – Os veganos, por sua vez, seguem o comportamento vegan. Isso significa que, além de excluírem alimentos de origem animal do cardápio, eles não consomem nenhum tipo de produto que conte com a participação de animais na produção, como roupas e produtos de higiene. Porém

com a oportunidade de passar a mensagem do vegetarianismo e demonstrar, na prática, o quanto os pratos sem ingredientes animais são saborosos e acessíveis. Há três anos, Diogo Cassales Celente praticava ioga e trabalhava em uma empresa. Já não comia carne há um ano. Devido às queixas que escutava de seus amigos e de sua própria dificuldade em achar opções vegetarianas, apostou no Prána Sushi Veg. Em sua casa, localizada no bairro Medianeira, ele produz todos os sushis sem nenhum derivado de animais. Celente faz tudo sozinho. Impõe uma meta de entregas por dia, que também é responsabilidade dele. “Como sou sozinho, trabalho com uma cota de 10 a 20 combos, dependendo do dia. Deixo os combinados pré-prontos e finalizo quando me ligam”, explica. O gosto pela cozinha é antigo. Antes de abrir o Prána, Diogo já havia feito cursos de preparação de sushi em 2004. O empreendedor também nota uma tendência no ramo da gastronomia saudável. “Podemos variar, comer tudo que quisermos, é só se reeducar. As pessoas estão se conscientizando que é bom diminuir (o consumo de carne), pelo menos”, afirma. De acordo com os especialistas, a sociedade se encaminha para uma dieta mais consciente e sustentável. A informação tem permitido que aconteça um aumento dos cuidados consigo mesmo, com os outros e com o ambiente em que se vive. Com a mistura de culturas, certos dogmas longínquos chegam e se fundem com o cotidiano. Além disso, a luta em nome dos animais sencientes, aqueles que sentem dor, também atinge notoriedade por todos os cantos, afirma o professor de filosofia Ronel Alberti. A preferência por extinguir a carne das alimentações é uma forma de protesto aos maus tratos aos animais em matadouros e granjas. p

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