por una cartográfia crítica de la amazonia

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dossie.comumlab.org


Por uma cartografia crítica da Amazônia

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PRÓLOGO: Perigoso e Divertido

recorte/processo sobre arte, política e tecnologias possíveis Em agosto/setembro de 2011 estivemos juntos em encontros promovidos pela iniciativa Networked Hacklab em sua versão amazônida - que buscou inverter o caminho usual do espetáculo para privilegiar um grupo pensante que buscasse refletir pontos críticos da Amazônia, debatendo e analisando também formas de mapeamento e processos cartográficos radicais. Esses encontros favoreceram trocas e circulação de informação sobre uma realidade amazônida, evidenciando seus processos em rede e assuntos convergentes sobre um território político historicamente complexo. A iniciativa ao norte juntou uma rede de pesquisadores, artistas, ativistas e organizações a fim de ampliar um debate sobre arte e tecnologia, de acordo com as perspectivas e reflexões sobre a relação entre poder e espaço geográfico na região amazônica. Para promover o diálogo em rede, experimentamos o cruzamento com iniciativas de outras regiões - incluindo as bordas com a América Latina, buscando compartilhar soluções para uso de tecnologias sociais em diálogo com as novas tecnologias de informação. Depois de 6 meses analisando e reunindo arquivos (artigos, relatos, entrevistas, imagens fotográficas, áudios, vídeos), o projeto é retomado em 2012 para a produção de um Dossiê, uma coleção de documentos semeados durante um processo, e divididos em fascículos baseados na sumarização do álbum finalizado após as imersivas de Belém e Santarém http://hacklab.comumlab.org/photos

colabo ra

espaço

ção

“Agora abrir os olhos. Agora, começar a sonhar o sonho de ver como somos vistos.” Vicente Franz Cecim * HotGlue: Hackworked Netlab - Felipe Fonseca * Carta pras Icamiabas - Giseli Vasconcelos * Arte_ hackeamento: diferença, dissenso e reprogramabilidade tecnológica - Daniel Hora * Perigoso e Divertido - Traplev * Rio – Belém – Santarém – Rio - Tatiana Wells
 * AmaZone por Paulo Tavares em roda de conversa * Todas Contra a UHE Belo Monte! - Lucia Gomes * Mapa Relato em 10 pontos - Paulo Tavares

O objetivo do dossiê é apresentar uma documentação em série, perfazendo um mapeamento que evidencia qual o recorte, pontos geográficos e quais as interações possíveis foram identificadas em torno da arte e as tecnologias na região. Os formatos de leitura são:

publicação editada impressa;

arquivo digital para distribuição em tablets, celulares,ebooks;

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[Rmxtxtura]

“Formas agudas de esquizofrenia cultural. ” Osmar Pinheiro Junior * Identidade e diferença de quem pinta o corpo para a guerra ou para a festa - Arthur Leandro * Divisória-Imaginária - Marisa Florido * Flor Manifesto - Leandro Haick * Pedágio - Romário Alves * Sangria Desatada: Imgs Rede [aparelho]-: relato Bruna Suelen
 * Pira-paz-não-quero-mais ou a difícil arte da martelada - Gil Vieira Costa * Fotonovela - Jamcine

Esta publicação é parte integrante do Dossiê – dossie.comumlab.org - mapeamento de um conhecimento sobre arte, política e tecnologias possíveis. De um ponto no Pará, olhando a Amazônia. Giseli Vasconcelos, Organizadora. Belém do Grão Pará - 2012

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[Rmxtxtura]

Como viver junto sob o ponto de vista quente e úmido. Deriva individual e coletiva através de mapas em movimento. * O imaginário social sobre a Amazônia - Samuel Sá * Paradoxo Amazônico: Entrevista com Alfredo Wagner Berno de Almeida * viver sem viver Viver: Esboço para um Terceiro Manifesto Curau - Franz Vicente Cecim

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ividad

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EPÍLOGO: Entre ruas, rios

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subjet

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Estamos em greve

RMxTxturas, colagem videográfica de como se vive e se enxerga a Amazônia, a partir das visões midiáticas, publicitárias, produção popular e cinematográfica.

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[Rmxtxtura]

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A vontade de potência ≠ vontade de poder

[Rmxtxtura]

“Cartografias como possibilidade de enfrentamento criativo” Mateus Moura * Midas - Armando Queiroz * Terra do Meio - LabCart * Mapas, mapeamento e disputas territoriais na Amazônia roda de conversa com Ricardo Folhes * mapAzônia * Rio Diagnóstico: Antena Mutante * Laboratório de Cartografias InsurgentesDescolonizar – Tatiana Wells * Sobre Lab. de Cart. Insurgentes – Geo Abreu * Mensagem Naldinho Motoboy * Outro relato para o IPE – Lorena Marín * América Latina Rebelde - Iconoclasistas * O mapas do 15M ao 15O - Pablo de Soto

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Redes locais, autonomia

[Rmxtxtura]

Tecnologia é uma parte da cultura; já a cultura é um vasto sistema tecnológico de todo tipo: a língua, a vestimenta, o modo de administrar relações humanas, tudo isso é tecnologia

(Eduardo Viveiros de Castro) * Cidade-labirinto das mediações - Fernando Pádua * Coisa de Negro: Resistência cultural * Puraqué - TIC como uma ferramenta de inclusão social - Marie Ellen Sluis * Rede de Cineclubes – Comunidades Tradicionais de terreiros dão exemplo

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PRÓLOGO: Perigoso e Divertido

Borracha para a Vítória

conta a saga dos soldados da borracha através do retrato de cinco cearenses que saíram de Fortaleza para a Amazônia em 1943, alistados pelo Serviço Especial de Mobilização de Trabalhadores para a Amazônia (SEMTA), instituição criada pelo governo de Getúlio Vargas e financiada pelos Estados Unidos como parte dos acordos com Washington, no momento em que o Brasil decide apoiar o Exército dos Aliados durante a Segunda Gerra Mundial. http://video.google.com/videoplay? docid=-7913031581915758412

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#Prólogo: Perigoso e Divertido

ARQUIVOS RMX : Macaquinho fofo.mp4 | Fordlândia parte 1.mp4 | MIDAS.mp4 | O massacre de El Dorado de Carajás.avi | COBRA VERDE.

XVID_BY CHITA-kusuku_JiLAiaa.avi | Belém aos 80.avi | Amazonas, Amazonas - Filme Completo [Glauber Rocha].mp4 | Nas Terras do Bem Virá.avi Montanhas de ouro (Adrien Cowell).avi | Carvoaria.mp4 | Serras Da Desordem.avi | Agua, fonte da vida (Cireneu Khun).avi | Nas cinzas da floresta.avi | Maquete Eletrônica_Parque Shopping Belém.mp4 | Indios assassinos atacam engenheiro da Eletrobrás.mp4 | Jorge Mautner Xingu.mp4 | O apelo do cacique Raoni.mp4 | Eu quero viver.AVI | bike.mov cineclubismo.mp4 | LÚCIO FLÁVIO PINTO CONTRACORRENTE O FILME PARTE 1.mp4 | JAMCINE #2 um diário íntimo O SONHADOR FODIDO NO PARQUE DE ILUSÕES.WMV | 100_2213.MOV | ONIRO E SUA JABIRACA NA CIDADE.mp4 | Dj Djavan em performance no arte.mp4 | Os catadores de orvalho esperando a felicidade chegar.mp4 | Perifeéricos teaser estrada.avi | Malditos Mendigos.mp4 | cabanagem.jpg | SALTOS AMAZÔNICOS - Liana Amin e Igor Amin (2011).mp4 | Todas contra a UHE de Belo Monte! (Lucia Gomes 2012) (jpgs) | Leona Assassina Vingativa 1.mp4 | TECNOMELODY MARLON BRANCO PASSINHO DO BADALASOM dj marcelo impacto prod xvid.mp4 | Xarque Zone Vol.mp4 | Gatinhas mandando ver no melody - ORIGINAL ;D.mp4 | VIDEO MAKING ALANZINHO BATALHA DO PASSINHO BELEM 18 E 19 MAR.mp4 | GABY AMARANTOS XIRLEY (MUSIC VIDEO). mp4 | vale___espaço_das_descobertas_640x360.mp4 | Devassa do Pará.mp4 | Os Melhores da Serragem Belém-PA 2011.mp4 | Equipe Os 100 Futuro (Samuel Produções).mp4 | ladrao nao rouba ladrao.mp4 | Hora do abraço-Balanço Geral Pará -By Edgar Gonçalves.mp4 | Filho de Jader Barbalho faz caretas em entrevista do pai.mp4 | Leona Assassina Vingativa 2.mp4 | Leona Assassina Vingativa 3 - A Aliança Do Mal.mp4 | Iracema - Uma Transa Amazônica.avi | FILME - OS TRAPALHÕES E UMA AVENTURA NA SELVA (completo).mp4 | carta_para_o_homemforte_640x360.mp4 | JAMCINE#5 um passeio macabro PROJEÇÃO DE IDEIAS NO RIO DE TREVAS.mp4 | JAMCINE#4 um tratado de magia ENTRE.WMV | JAMCINE #6 um surto psicótico VER O PESO mp4.mp4 | tECHNoDRAMa - NeoNNDDama - qUALQUER qUOLETIVO.mp4 | O meu é especial finale.mp4 | Desculpem o transtorno - estamos em obras.mp4 | entrevista com Jader Gama parte 1 de 2.mp4 | Neto & Danilo.avi 11 anos de Roda de Carimbó Coisa de Negro.mp4 | Rituais Xamânicos com daime, ayahuasca ou vinho das almas .mp4 | Mulher erê no Cosme e Damião.MOV | O.Povo.Brasileiro.Capitulo.4.DVDRip.XviD.Parkyns.avi | Belém 350 anos.mp4 | AGUIRRE_THE_WRATH_OF_GOD.m4v | Ymá Nhandehetama.mp4 | O Guarani (Carlos Gomes).mp4 | Monsarás há distância.mp3 | 08 Albery Albuquerque - Uirapuruzinho.mp3 | A alquimia negra é dourada no coito do peão.avi |


Agora abrir os olhos.

Agora, come莽ar a sonhar o sonho de ver como somos vistos.

Vicente Franz Cecim

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#Pr贸logo: Perigoso e Divertido


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#Pr贸logo: Perigoso e Divertido

Felipe Fonseca | HOTGLUE | http://desvio.cc/sites/desvio.cc/files/hacknet/


Carta pras Icamiabas1

GISELI VASCONCELOS

POUCA SAÚDE E MUITA SAÚVA, OS MALES DO BRASIL SÃO!2 Tenho algumas razões a apresentá-los que funcionam como princípios básicos, a fim de elucidar os caminhos propostos para a realização do projeto Networked Hacklab em sua edição Norte, do qual sou produtora executiva junto à lei de incentivo e patrocinador, e também responsável pela concepção, planejamento e direção deste, para uma realidade localizada num pedaço da Amazônia brasileira. Este preâmbulo tenta explicar um percurso de reflexões que me fizeram repensar e rever o formato de projetos financiados através de leis de incentivo direcionados à produção em arte e tecnologia para territórios com especificidades regionais latentes. A primeira delas foi atentar às linhas gerais do projeto nacional, já que o mesmo propunha a realização em várias cidades brasileiras, objetivando o desenvolvimento e a produção de conteúdo artístico-cultural-digital e o fomento para a criação de grupos de pesquisa e experimentação, se possível entre redes nacionais e internacionais3. Interpretei 1 Icamiabas (do tupi i + kama + îaba, significando “peito rachado”) é a designação genérica dada a índias que, segundo o folclore brasileiro, teriam formado uma tribo de mulheres guerreiras que não aceitavam a presença masculina. O termo designaria também um monte nas cercanias do rio Conuris[4] (no atual território do Equador). Esta lenda teria dado origem, no século XVI, ao mito da presença das lendárias Amazonas na região Norte do Brasil. 2 Referência direta ao episódio IX de Macunaíma (1928), quando Mário de Andrade utiliza-se da grafia de uma carta para satirizar o modo como a gramática manda escrever e como as pessoas efetivamente se comunicam. 3 A principal premissa do Networked Hacklab é a execução de projetos colaborativos, sempre em diálogo com as novas tecnologias a partir de um laboratório apropriado para o desenvolvimento de dispositivos digitais e eletrônicos. O projeto que ocorre em Belém e também nas cidades de Belo Horizonte (MG), Salvador (BA), Cachoeira (BA) é financiado pela política de incentivo dos Estados com patrocínio do programa Vivo Lab, sob a curadoria de Rodrigo Minelli. O Programa Vivo Lab, propõem UMA REDE COLABORATIVA DE CULTURA, que cria oportunidades para que as pessoas desenvolvam - de maneira colaborativa e consciente - formas de expressão e participação na sociedade contemporânea. Ver em: http://www.hacklab.art. br | http://www.vivolab.com.br/

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#Prólogo: Perigoso e Divertido

Exército de mulheres Cobra Verde - Werner Herzog

literalmente o slogan EXPERIMENTAR-INVENTARRECONFIGURAR que juntou a fome com a vontade de comer - não queria perder a oportunidade de experimentar e reconfigurar ações para uma realidade no Pará, considerando que se tratava de verba pública de incentivo e fomento à cultura, onde 80% do valor patrocinado é fonte de isenção fiscal da atuação da marca no Estado. Portanto, mais do que nunca, surgia a necessidade de jogar apaixonadamente, num território onde a arte encontra-se num campo cegoobscuro-oculto - entre redes e os meios da tecnologia digital e informacional, um terreno baldio apto de ser ocupado por situações de uso tático e crítico, ativando no devir de uma iniciativa a poesia e espontaneidade necessária. Como disse anteriormente, o contexto do projeto me agarrou pelo estômago, por outro lado tinha um estranhamento com o nome N-E-T-W-OR-K-E-D-H-A-C-K-L-A-B que não estava fácil de digerir. Ainda que eu estivesse utilizando o inglês como primeira língua nessa morada na América do Norte, o estrangeirismo parecia dissonante para a concepção de uma ação na Amazônia justamente por se tratar de uma região com conectividade baixa onde poucos usuários estão familiarizados com um glossário web. Fiquei uns meses me policiando e observando o quanto o estrangeirismo está presente na comunicação brasileira, principalmente entre as redes de arte e cultura digital do eixo centro-sul, onde termos veiculados na língua inglesa aparecem mais evidentemente na produção de conteúdos onde a banda larga apresenta significativa diferença no custo e velocidade comparados à região Norte4. De longe, minha intenção é negar, julgar ou forçar um “aportuguesamento” das expressões usadas na/ 4 Entre as regiões brasileiras, a mais afetada pela falta de disponibilidade de infraestrutura de TIC’s (Tecnologias da informação e comunicação) é a região Norte. A região apresenta a pior média de velocidade de download (758Kbps e 219Kbps de upload) e o pior tempo de latência média: 616ms (quase 10 vezes mais lenta do que a região sul); apresentando as médias mais baixas, onde 37% das velocidades situam-se até 256Kbps e 47% entre 256Kbps a 1Mbps. E ainda assim, pagando a banda larga três vezes mais que a região centro-sul. No Pará, só 7,7% das casas têm acesso. Estados isolados como Roraima e Amapá têm acessos residenciais praticamente inexistentes. Para se ter uma ideia da discrepância, no Distrito Federal a taxa de acesso é de 51%. Nos Estados do Sul e Sudeste, a penetração varia entre 20% e 30%. Fontes: portais cgi.br, IPEA e IBICT; Folha de São Paulo.

para/da comunicação digital entre mundos e Brasil - até porque o Inglês é a língua dominante na web5, entretanto, reproduzir sem entender favorece uma forma de colonização arbitrária que se impõem pela língua e por suas expressões, reforçando seu papel social e econômico de poder num espaço geopolítico. O que quero reforçar é que o estranhamento existe por todos os lados provocando uma sensação de repulsa, atração e/ou fetiche sempre presentes entre grupos ligados à produção cultural local, muitas vezes expresso em forma de modismo, gerando a reprodução quase involuntária de um modelo de arte e cultura digital mais referenciada e dependente do centro-sul, fechando portas para compreensão de como a arte e as tecnologias estão relacionadas ao seu próprio espaço geográfico e cultural. Surgiam então reflexões pungentes: de que forma trazer à tona os conceitos por trás dessas terminologias através de uma linguagem cognitiva, mais próxima de suas percepções e experiências reais? Como escapar de modelos que reforçam o lugar que a arte ocupa nas estratégias do capitalismo financeiro? E assim, na tentativa de responder estas questões é que um détournement foi pensado para a ideia de um laboratório, como desvio: pervertendo as expressões do sistema contra ele mesmo - e ainda, centrado no entendimento de uma cultura hacker, essencialmente libertária, baseada no compartilhamento do conhecimento e na solidariedade. Continuando o quadro de inquietações contextuais em que o projeto se insere, evidencio a relação entre a política cultural e seus vícios, que muito auxiliam para obscurecer os processos da produção de arte associada às tecnologias na região, dentre estas, as possíveis e acessíveis. A primeira delas é como o nosso modelo de mecenato vem sendo estimulado por décadas: um processo em que cabe à iniciativa privada a decisão sobre uma grande parcela da produção cultural do país, onde o dinheiro que financia os projetos é na verdade público, privilegiando formatos que ganham espaço nos meios de comunicação de massa, justamente para gerar um 5 São em media 500 milhões de usuários utilizando o inglês, ocupando o primeiro lugar no ranking de línguas mais utilizadas na web, de acordo com dados apresentados no site Internet World Stats - Usage and population statistics. Ver em: http://www.internetworldstats.com/stats7.htm

volume de eventos de entretenimento e diversão6. No estado do Pará, a lei de incentivo SEMEAR vem sendo utilizada há pelo menos uma década, e de lá pra cá o que se percebeu foi o crescimento de uma cadeia de produção dependente e subserviente ao mecenato, competitiva e conflituosa, pois na região são escassos os recursos da iniciativa privada, com o agravante do alto custo para estruturação de projetos por deficiência e carência de infraestrutura local, distância entre as regiões, etc7. Assim, no Pará como em todo país, percebemos profissionais da área artístico-cultural obrigados a improvisar a função de especialistas de marketing, ou pior, subservientes aos maneirismos das empresas e serviços publicitários, tendo que dominar uma lógica burocrática e técnica, que pouco tem a ver com a da criação8. A segunda agonia, que em parte também é reflexo desse mecenato, está relacionada ao modelo dos eventos pensados para arte e tecnologia, que em sua grande maioria parecem obedecer a um formato baseado em experiências do hemisfério norte e rico, apresentando abordagens herméticas que pouco ou nada correspondem às vivências da audiência em questão. Essa dissonância de linguagem parece subjugar ou não atentar às experiências locais, propondo pouca ou nenhuma reflexão de como essas tecnologias são mimetizadas em nosso ecossistema, neutralizando o sentido crítico e político destas em favor do espetáculo, propondo 6 Referência ao artigo do antropólogo Marcelo Gruman: Nem tanto ao céu, nem tanto a terra: limites e possibilidades da lei de incentivo fiscal à cultura, disponível em: http://www.cultura.gov.br/ site/wp-content/uploads/2010/02/artigo-de-marcelo-gruman.pdf 7 O custo amazônico é um debate amplificado pela Rede Teatro da Floresta e disseminado nas edições da Conferência Nacional de Cultura, que discute formas para um orçamento diferenciado na região, uma vez que a distribuição geográfica de tecnologia e de recursos está distribuída de maneira desigual, sendo o custo de produção para artistas amazônicos é o dobro se comparado a artistas de outros estados. 8 Continuando com a análise de Gruman:Os projetos passam a ser concebidos, desde seu início, de acordo com o que se crê que irá interessar a uma ou mais empresas, sendo o mérito de determinado trabalho medido pelo talento do produtor cultural em captar recursos e não pelas qualidades intrínsecas de sua criação (BOTELHO, 2001)(...) O modelo atual, ainda de acordo com o diagnóstico do MinC, exclui a inovação, a gratuidade e os projetos sem retorno de marketing; não fortalecem a sustentabilidade do mercado cultural; inibe a percepção de que os recursos são públicos; não promove a democratização do acesso aos bens culturais.


um jogo desigual, quase pernicioso, em que a ideia de futuro e avanço correspondem a um paradigma unilateral: a perspectiva dos que têm acesso e poder informacional. Ora, a Amazônia é uma periferia com escasso acesso aos meios digitais e que sofre muito com o impacto da privação tecnológica9 justamente por se tratar de uma região vista como a grande fronteira do capital natural onde se concentram megaprojetos que se apropriam e mercantilizam o ecossistema amazônico, muito destes atendendo a uma demanda mundial de suprimentos naturais para a produção de bens eletrônicos. É nesse território de oprimidos, numa cultura em que a maior parte dos brasileiros desconhece, que parecia ser o melhor e mais excitante ambiente para jogar contra o aparelho. E para isso, tornava-se primordial re-conhecer uma comunidade e futurizar seus afluentes, dar voz às suas visões e perspectivas locais, entender seus processos políticos, poéticos, e ainda os bens simbólicos relacionados à maneira de viver na região. Assim nascia a proposta de uma carta geográfica - compartilhada entre redes, que pudesse localizar interesses em âmbito global, principalmente a fim de elucidar o entendimento

9 Apesar dos números serem pouco expressivos e da maioria da população do Norte não ter internet em casa, a região apresentou um dos maiores aumentos de usuários nos últimos anos, com 171,2%, perdendo somente para o Nordeste (213%). Tudo isso ocorre pelo fato da Região Norte ser uma das mais pobres do Brasil, e consequentemente, as pessoas não têm poder aquisitivo para comprar os equipamentos de que precisam. Então, um dos principais motivos para a indisponibilidade de internet nos domicílios é o alto custo e a falta de serviço prestado para instalações telefônicas. O Norte ainda concentra o maior percentual de acesso por internet discada (31%), 11 pontos percentuais acima da média nacional. Todavia, em 2009, constatou-se uma queda de oito pontos percentuais, relembrando o mesmo dado do ano passado. Tal informação aponta para uma expansão da infraestrutura de acesso à rede para as áreas mais remotas do Brasil, contribuindo para a inclusão digital da população. São altos os investimentos entre 2010/2011 por tecnologia satélite na região amazônica. O projeto GESAC, previu cerca de 9mi para distribuição de kits para áreas rurais na região. Entretanto, isso não contribuiu para suprir a necessidade nas áreas urbanas quanto ao uso das TIC’s para a produção e distribuição de conteúdos culturais.

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#Prólogo: Perigoso e Divertido

sobre a questão dos commons10 e o imaginário midiático que mitificou a ideia do que seria a realidade amazônica para o mundo. Portanto, a proposta de H-A-C-K-L-A-B11 (aqui foi levada ao pé da letra, do QUÊ e COMO podemos adaptar, modificar e/ ou corrigir um programa/sistema para assim gerar acesso potente e mais próximo de uma realidade de fato. O passo seguinte foi desconstruir a ideia de evento desfalecendo uma programação. O mais importante era agregar em cada cidade um conjunto de pessoas que dialogavam com o contexto proposto, seja em suas atividades, projetos ou interesses. Junto a estes, os convidados não locais12 que de alguma forma representavam nodos de outras redes com afinidades e/ou ações comuns que envolvessem a região. O convite fora à muitos, uma chamada para 10 Em Commons, a revolução na produção simbólica, por Sergio Amadeu da Silveira: A palavra commons pode significar aquilo que é comum ou os espaços e as coisas que são públicas. Em alguns casos pode ter o significado de comunidade ou da produção compartilhada entre pares. http://www.cultura.gov.br/site/2007/05/03/ commons-a-revolucao-na-producao-simbolica/ 11 Aqui, se refere ao lugar onde meu coração está, não corresponde exatamente um espaço físico, mas o poético e vívido. Por muito tempo distante entre idas e vindas por Belém do Pará, lugar onde nasci, ainda resguarda inúmeras recordações na memória de uma cultura que resiste em coexistir na ideia entre espaço, natureza e tempo. 12 Os convidados não-locais da primeira imersiva: Pablo de Soto (Madri), arquiteto e membro fundador do coletivo hackitectura.net; Ricardo Folhes (STM), mestre em Ciências Ambientais e especialista em geoprocessamento; Felipe Fonseca(SP), pesquisador e articulador de projetos relacionados a redes de produção colaborativa e livre, mídia independente, software livre e apropriação crítica de tecnologia; Tatiana Wells (RJ), pesquisadora e agitadora de projetos relacionados à produção digital colaborativa, tecnologias livres e experimentação com narrativas locais; e Paulo Tavares (UK/SP), professor e organizador da plataforma mara-stream.org do Programa de Pesquisa em Arquitetura da Universidade Goldsmith. A segunda imersiva contou com a participação do coletivo colombiano Antena Mutante (Jorge Agudelo e Ali Salem/Colombia) que trabalha as relações do espaço público - as ruas e a internet, configurando mapas que evidenciam conflitos contextuais; o cineasta Bruno Viana (RJ), em continuidade de sua pesquisa com satélites geoestacionários; e Bruno Tarin (RJ) um dos fundadores da rede Imotirõ, além de pesquisador e gestor em projetos de cultura digital. Em ambas as imersivas este grupo percorreu as duas cidades, acompanhados por mim e com a mediação do artista, agitador e professor Arthur Leandro (PA).

imersão, alusão para banhar-se no rio grande – a origem Tupi da palavra Pará. E envolver as pessoas de acordo com a perspectiva de horizonte do lugar: o rio infinito sempre presente nas duas cidades, Belém e Santarém. É preciso tempo e imaginação para reconhecer o lugar, perceber a quais redes ele se conecta e buscar ou produzir conhecimento. E assim, a impulsão foi provocar uma experiência promovendo um encontro entre narradores que pudessem se conectar a uma rede presencial que proporcionasse compartilhamento e troca de experiências. As imersivas favoreceram momentos importantes. O primeiro deles fora a mediação entre convidados locais e não-locais a partir de apresentações gerais sobre temas, pesquisa e processo criativo, oportunizando o surgimento de rodas de conversas, mostras e performances, realizadas de acordo com a demanda de cada grupo, sempre aberto para uma audiência livre. Os pontos dramáticos do modelo geopolítico da região gradativamente surgiam durante as apresentações, evidenciando os assuntos e palavras-chaves que poderiam compor as narrativas possíveis para um mapa em constante movimento, o que provocava um debate amplo consensual e por vezes conflituoso. Parte dessa narrativa é contada a partir do álbum fotográfico - http://hacklab.comumlab.org/ photos, onde são apresentadas as tags relacionadas ao encontro, além de fragmentos de textos que permearam as situações vivenciadas durante o processo. A experiência favoreceu uma troca e suporte de material que pôde subsidiar e dar origem a tantas outras cartografias, pesquisas e produções que envolvam as tecnologias no contexto geopolítico regional, isso sem abandonar uma perspectiva poética e criativa. O resultado das imersivas fora expresso em forma de relatos, trocas bibliográficas, vídeos, filmes e muitas imagens compartilhadas através de um HD externo que à todo momento estava disponível para copiar, colar e distribuir a informação circulante. Ainda assim, era difícil perceber um resultado durante as imersões. Foi necessário ganhar um tempo para minimamente organizar as informações processadas

que surgiam em forma de diário e linkanias, meses após os encontros. As informações compartilhadas evidenciaram alguns caminhos para que mais projetos se desenvolvam a partir de uma visão mais aproximada aos pontos críticos da Amazônia, e melhor, com mais contribuições propostas por amazônidas. Algumas pesquisas poderiam desencadear o planejamento de uma comunicação efetiva: via celular, para atender as redes que interagem dentro da Amazônia (cineclubismo, por exemplo); o desenvolvimento de redes autônomas sem fio a fim de gerar e distribuir informação entre bairros não atendidos ou fora do mapa das conectividades (não-públicas); a organização e formação em uso de mídias digitais para fortalecer o trabalho das organizações em direitos humanos, etc. Os relatos foram disponibilizados no wikki do projeto – http://hacklab.comumlab. org, criado durante as imersivas em colaboração com uma rede autônoma sem fio - ZASF proposta e desenvolvida por Felipe Fonseca. Além disso, um grupo também fora criado no facebook, e de lá pra cá, todo material vem sendo organizado também numa rede independente entre mais projetos latino americanos, https://n-1.cc/pg/groups/915668/poruma-cartografia-crtica-da-amaznia/, gerando uma vizinhança com projetos afins, como a proposta de Cartografias Insurgentes realizada no Rio de Janeiro. Por fim, o sentido mais importante do que se pôde barganhar com a realização desta experiência considerando o tempo e as contingências - foi o jogo possível e estabelecido entre a nossa criatividade, liberdade e autonomia. E nesse jogo, do quem-perdeganha, como diz Vaneigen: aquilo que não é dito é mais importante do que aquilo que se diz, aquilo que é vivido é mais importante do que aquilo que se é representado no plano das aparências13. Portanto um espaço-tempo subjetivo, possibilitando a gestão de um conhecimento, um viver junto, mesmo que temporariamente e anônimo. 13 Vaneigem, Raoul. A arte de viver para as novas gerações - Coleção Baderna. Conrad Editora. São Paulo. Pág. 199


Arte _ hackeamento

diferença, dissenso e reprogramabilidade tecnológica Daniel de Souza Neves Hora

Hackeamento e produção da diferença 1.1 Código e ruptura As antigas sociedades de soberania manejavam máquinas simples, alavancas, roldanas, relógios; mas as sociedades disciplinares recentes tinham por equipamento máquinas energéticas, com o perigo passivo da entropia e o perigo ativo da sabotagem; as sociedades de controle operam por máquinas de uma terceira espécie, máquinas de informática e computadores, cujo perigo passivo é a interferência, e o ativo a pirataria e a introdução de vírus. GILLES DELEUZE, Conversações O ser / fala / sempre e em qualquer lugar / por meio de / toda / língua.1 JACQUES DERRIDA, Marges de la Philosophie

O hackeamento2 é um conceito difundido a partir da informática, cujos sentidos diversos inspiram apropriações políticas e disputas sobre a sua legitimidade. Embora seja facilmente identificado com a invasão ilícita de computadores por meio de acesso remoto, via rede, o hackeamento significa basicamente a exploração dos limites daquilo que é previamente considerado possível ou admissível (STALLMAN, 2002; RAYMOND, 2003). Para não ser confundida diretamente com o roubo ou corrupção de arquivos digitais, essa forma de experimentação costuma ser distinguida dos atos criminosos denominados como cracking, que envolvem o uso da tecnologia mas nem sempre são derivados de algum tipo de hackeamento. Essa desvinculação do hackeamento com o cracking se fundamenta em uma ética defendida pela comunidade hacker. Entre suas premissas estão a apologia do compartilhamento e da liberdade de informação (RAYMOND, 2003), que se aliam à aposta na descentralização do controle, à descrença nas autoridades, à confiança nas possibilidades de criação estética e de aprimoramento das condições de vida com ajuda da tecnologia e à disseminação desse conjunto de ideias para outras atividades culturais (LEVY, S., 2001). Apesar da adoção desses preceitos, a ética hacker, no entanto, não é suficiente para a absoluta separação entre hackeamento e cracking, sobretudo quando se colocam em discussão temas políticos como o acesso ao conhecimento, a privacidade e

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1 São de nossa autoria as traduções para o português de citações de obras consultadas em outros idiomas. 16

#Prólogo: Perigoso e Divertido

Os dicionários de língua portuguesa registram apenas o termo hacker, proveniente do inglês, que designa o “entusiasta de computador; aquele que é perito em programar e resolver problemas com o computador; pessoa que acessa sistemas computacionais ilegalmente” (HOUAISS, 2010). Na falta de aportuguesamento ou registro de derivações da palavra, adotamos a expressão hackeamento como tradução para os substantivos equivalentes à ação dos hackers (hacking) e ao seu resultado (hack). Traduzimos ainda a forma flexional to hack como hackear, verbo que teria conjugação semelhante à de recensear.


outras relações mediadas pela telemática. Para Tim Jordan (2008), por exemplo, o crack é um tipo transgressor de hackeamento, já que este, inicialmente, se caracteriza por alterar a normalidade da tecnologia e, em seguida, desconstruir e subverter as determinações cotidianas que dela são decorrentes. Outros como Stallman (2002), entretanto, apontam que o hackeamento é marcado pelo jogo, o humor, o imediatismo e a perspicácia. Seus resultados habituais são a reconfiguração dos aparatos tecnológicos e a adaptação de seus programas para a execução de funções imprevistas. Desse modo, são estendidas as capacidades técnicas projetadas nas etapas de desenvolvimento e fabricação dos dispositivos. Com isso, caem por terra as regras dos manuais de uso e os limites de controle impostos por administradores e proprietários da tecnologia. É essa a acepção que nos interessa como primeiro parâmetro conceitual de aproximação entre a arte e o hackeamento. A carga de transgressão, no entanto, não deve ser dispensada, pois os desvios suscitam o questionamento da tecnologia e, eventualmente, podem gerar impactos nos contextos culturais por ela influenciados. É o que comprova a afirmação histórica da contracultura hacker como atitude de reação e, ao mesmo tempo, de estímulo ao aprimoramento e disseminação da microinformática (LEMOS, 2004). Essa contribuição diz respeito sobretudo aos computadores pessoais construídos com o mesmo espírito de democratização dos clubes de hackeamento pioneiros dos anos 60 e 70 – formados com o propósito de desenvolvimento de sistemas operacionais, aplicativos e alternativas caseiras de montagem de computadores (LEVY, S., 2001, STERLING, 1994). Mas também se refere aos métodos de conexão e intercâmbio de dados precursores da internet e aos sistemas de criptografia e de proteção de dados. Se não fosse o hackeamento, os dispositivos de informação e comunicação seriam diferentes daqueles que conhecemos. Também seria outro o modo como são mediadas as relações sociais. Pois, conforme Douglas Thomas (2002), o hackeamento não abarca apenas a compreensão e exploração do funcionamento dos aparelhos e das interações que com eles mantemos. Também engloba as relações inter-humanas amparadas em suas estruturas. Para o autor, o valor contracultural do hackeamento reflete, primariamente, sua interferência em duas funções sociais da telemática: a de guardar e a de desvelar os segredos. Em face do poder tecnológico crescente das corporações multinacionais e dos complexos militares e estatais, em um mundo repleto de senhas, a tecnologia é apropriada pelo hackeamento como sala de jogos e meio de experimentação dos caminhos culturais de contestação (ou de aderência) às condições

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socioeconômicas dominantes. Se por um lado há o desbloqueio do acesso ao conhecimento, por outro o mesmo conhecimento pode ser empregado na proteção do anonimato de quem lida com os dispositivos de informação. É nesse sentido também que Taylor (1999) diagnostica a ambivalência social do hackeamento. Por um lado, recai sobre a contracultura hacker a figura de bode expiatório da sensação generalizada de vulnerabilidade, incutida pela presença difusa de tecnologias de informação e comunicação insuficientemente seguras no cotidiano. Por outro, é essa mesma capacidade de subversão e rebeldia que alivia o receio do advento de uma ditadura cibernética consumista. O hackeamento representa, então, uma prática ao mesmo tempo temida e suportada. Por sua natureza escorregadia, seu acolhimento se transforma conforme as circunstâncias com as quais se relaciona. O hackeamento resiste, portanto, como conveniência inconveniente. Para André Lemos (2004), apesar do risco de atitudes tecnoelitistas por parte de seus praticantes mais capacitados, o hackeamento responde pela produção de uma despesa eletrônica, um excesso de dados, que sustenta uma possibilidade de resistência contra a tecnocracia e a lógica utilitária da acumulação econômica. Essa capacidade contra-hegemônica se exercita pelo micropoder das apropriações prosaicas obtidas frequentemente pelo truque e o contrabando de signos, de linguagens e de conexões. Essas vias de consumo produtivo esvaziam o totalitarismo da submissão aos programas dos dispositivos e estabelecem relações dialógicas entre suas finalidades funcionais e suas formas de apreensão políticas e psicológicas. No aspecto político, ressaltamos as mudanças socioeconômicas impulsionadas pelo hackeamento. Em primeiro lugar, encontramos a observação de Pekka Himanen (2001) sobre a substituição da ética protestante do trabalho de Max Weber pela ideologia comunitária do hackeamento. Nessa nova situação, o trabalho deixa de ser um dever, executado em turnos preestabelecidos, e passa a ser orientado pela consagração da criatividade, pela partilha de habilidades e do conhecimento, por uma atitude apaixonada pelas atividades laborais (mescladas com as atividades lúdicas) e pela doação de produtos para o uso e adaptação coletiva – sem as restrições de propriedade privada. Embora as constatações de Himanen sejam plausíveis, não dedicam a atenção necessária às questões conflitivas dos novos arranjos produtivos e improdutivos do hackeamento. Nesse sentido, recorremos ao comentário de Barbrook (2006) contra a inclusão dos hackers entre as novas classes criativas intermediárias (nem dominantes nem trabalhadoras), no entanto, destinadas a um papel de liderança econômica por conta de sua educação, energia em-

preendedora e disponibilidade para autogerir sua inserção no capitalismo cognitivo pós-fordista. Conforme o autor, trata-se de uma interpretação reducionista, e não emancipadora, pois não leva em conta a atual transição do capitalismo para além de sua natureza existente. O equívoco de restringir a criatividade a um grupo seleto de pessoas, a classe criativa, torna-se flagrante quando se nota que as multidões são igualmente capazes de produzir conteúdos culturais, os quais intercambiam livremente e gratuitamente, como dádiva. De modo semelhante, McKenzie Wark (2004) argumenta que os hackers terminam por se constituir como classe produtora, em virtude da apropriação de seus feitos e restrição do acesso aos meios de produção pelas classes vetoriais. Estas são formadas por aqueles que controlam os vetores de telestesia, ou seja, as linhas sem posição fixa dos modos e dos meios, atuais e virtuais, de percepção à distância, de objetivação e comunicação da informação que é fruto do hackeamento. Para o autor, a consciência dessa disputa é necessária para que os hackers hackeiem sua própria condição de classe a partir do hackeamento da noção de propriedade de dados imateriais digitais, facilmente compartilháveis. Além disso, Wark declara que o hackeamento deve ser entendido como prática irrestrita, que independe da ação dos hackers, e envolve toda ruptura, seja dos códigos da telemática, seja das barreiras ao movimento livre de pessoas no mundo. Por fim, de acordo com Sherry Turkle (1997), o hackeamento seria um dos índices do declínio da cultura de cálculo modernista e da ascensão da cultura da simulação e da exploração anárquica do pós-modernismo. Segundo a autora (1984), o hackeamento se caracteriza por efeitos surpreendentes obtidos com meios básicos, graças ao exercício de uma maestria inconvencional, uma ciência mole, cultivada fora dos padrões da educação. Embora possa se expressar por toda parte, a autora defende a tecnologia digital como habitat apropriado ao ímpeto de experimentação do hackeamento, uma vez que ela ofereceria maior flexibilidade para a manipulação de seus objetos, sobretudo os códigos de programação e os dados numéricos.

1.2 Diferenças tecnológicas, tecnologias da diferensa

Máquinas improvisadas, operações anárquicas, programas inconvencionais, algoritmos abertos à apropriação e compartilhamento, práticas colaborativas e táticas de desvio e interferência em circuitos de produção e comunicação. As adaptações e subversões da tecnologia pelo hackeamento alcançam uma abrangência maleável, que concerne

tanto às aplicações corriqueiras das ferramentas, dos mecanismos e das lógicas operacionais, quanto aos experimentos que alargam as fronteiras da ciência, da indústria e da arte. Tal impacto se deve, por uma parte, à disseminação dos códigos de registro, armazenamento, compartilhamento e acionamento da informação. Por outra, deriva do ímpeto de reprogramação da cultura de exploração anárquica e do faça-você-mesmo. Para nosso estudo sobre a arte e o hackeamento, optamos proceder com essa ideia de alteração e de diferença tecnológica que o termo comporta nas diversas acepções expostas até aqui. A escolha, no entanto, não equivale a um consenso teórico, pois preserva a abertura para abordagens díspares. Como vimos, autores como Wark e Turkle admitem o hackeamento fora dos domínios da telemática. No entanto, para Jordan (2008, p. 10), o fenômeno se restringe às práticas materiais coletivas que produzem, ainda que indiretamente, alguma “diferença ou algo inédito em um computador, rede e/ou tecnologia de comunicação”. Com essa concepção, Jordan pretende evitar a diluição do hackeamento como sinônimo de qualquer ação criativa. Contudo, para escapar da propensão ao determinismo tecnológico decorrente dessa limitação, o autor (2008, p. 128-130) concede espaço para o abrigo de duas categorias subordinadas de ações indiretamente ligadas à programação e ao uso de computadores e redes de comunicação. A primeira diz respeito ao hackeamento das interações sociotécnicas, com a finalidade de promoção de mudanças sociais. São exemplos disso tanto a fusão de hackeamento e ativismos políticos no hacktivismo quanto a ciberguerra, ciberterrorismo e cibercrime. A segunda categoria abraça a inversão das leis de propriedade intelectual pelos modelos de licenciamento aberto do Creative Commons3, o trabalho do “proletariado de programadores” (hackers assalariados de centros de pesquisa e empresas) e outras práticas que extrapolam a computação. Com essa tipologia, Jordan (2008, p. 134-141) tenta equacionar a “dificuldade conceitual que o hackeamento apresenta”, em consequência da “simultânea separação e associação entre tecnologia e sociedade” e da mútua capacidade de influência entre ambos os campos. Com amparo na ideia de “potencialidades cotidianas”, ou seja, o conjunto de possibilidades oferecido pelos artefatos aos usuários, o autor justifica a existência de posições contraditórias, porém dinâmicas e efetivas, na mídia digi-

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Creative Commons é uma instituição sem fins lucrativos dedicada a facilitar o compartilhamento de conteúdos e seu aprimoramento colaborativo. Oferece modelos de licenças abertas e outros mecanismos legais para registro de obras que regulam opções de acesso, de recombinação, de uso comercial e outras formas de apropriação e uso. Site: http://creativecommons.org/.


tal. Pois essa mídia suspende o problema de oposição entre a determinação tecnológica da sociedade e a determinação social da tecnologia. Dessa forma, o hackeamento redesenha a relação entre homem e máquina (e vice-versa), ao explorar e alterar as potencialidades determinantes das “sociotecnologias da computação e das redes”. Vista com desconfiança por Jordan (2008), a extensão do conceito de hackeamento a atividades que não são diretamente ligadas à computação e à telecomunicação se apresenta, no entanto, como alternativa teórica plausível, sobretudo quando são traçados os contornos mais amplos da tecnologia no âmbito da arte e do pensamento filosófico. Nesse sentido, segundo Wark (2004, parágrafo 83)4, devemos admitir que hackear é diferir o real, abstrair alternativas, latências do virtual, para lançá-las no atual. Para além da parcialidade do real ou mesmo de sua falsidade, o hackeamento demonstra, conforme Wark, que “sempre há um excesso de possibilidades expresso no que é atual, o excedente do virtual”. Dessa forma, hackear significa explorar o “domínio inexaurível” daquilo que não é, mas pode vir a ser. De acordo com essa acepção, o hackeamento é realizado não apenas na informática e telemática e práticas sociais correlatas, como quer Jordan (2008). É efetuado também tanto “na biologia quanto na política, tanto na computação quanto na arte ou na filosofia” (WARK, 2004, parágrafo 75). Segundo Wark, o que o hackeamento gera e afirma em cada um desses contextos é a abstração, ou seja, a construção de um plano de arranjos de diferenciação de componentes funcionais, sobre o qual podem ser conjugados elementos que sob outras circunstâncias são separados e não-relacionados. Por meio dessa abstração, o hackeamento promove a possibilidade da produção da diferença que produz a diferença, ainda que nem toda abstração vise a uma aplicação produtiva, no sentido econômico. Enquanto abstração do que é inicialmente tomado como natural, o hackeamento proporciona a (re)duplicação da natureza em natureza secundária, e desta em natureza terciária, seguindo um desdobramento contínuo em escalas infinitas. O que Wark propõe com isso é algo bastante próximo do mundo codificado de Vilém Flusser (2007, p. 90-93), definido como universo de “fenômenos significativos, tais como o anuir com a cabeça, a sinalização de trânsito e os móveis”, que “nos faz esquecer o mundo da ‘primeira natureza’”. Para Flusser, a comunicação humana, baseada na codificação, é “contranatural” por sua ação “negativamente entrópica” (ou neguentrópica), pois permite a memória e a transmissão artificial das “informações adquiridas de geração para geração”,

4 O livro de Wark não possui numeração de página, mas apenas de parágrafos. 20

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que de outra maneira não se organizariam nem conservariam. Segundo o autor (2007, p. 96-97), esse processo de armazenamento de dados para a futura reedição implica o intercâmbio de conhecimentos pelo diálogo, que se revela, então, como tática plural de resistência ao “efeito entrópico da natureza”, de perda da informação, colocando em circulação subsídios imprescindíveis ao acontecimento singular de um discurso. As condições de registro, disponibilidade e partilha da informação parecem ser, portanto, aspectos incontornáveis para a produção da produção da diferença, especialmente no que concerne à adoção do hackeamento como prática artística. Pois conforme Wark (2004), para atingir seus efeitos, o hackeamento desfaz as travas impostas pelas regras tradicionais de propriedade. Essa superação se apoia em uma mudança significativa introduzida pelas tecnologias numéricas: a posse de um bem cultural em formato digital não requer a privação de acesso a ele. Dito de outra maneira, um arquivo de dados pode ser distribuído sem que se esgote o seu estoque em nenhum ponto do circuito de compartilhamento estabelecido. De acordo com Wark, a liberdade de informação é condição para o hackeamento, entendido como processo cíclico de produção baseado em conteúdos anteriores, que os desvaloriza como bem de exploração exclusiva conforme são reutilizados. Essa noção dilatada de hackeamento toca, portanto, em questões recorrentes da cultura mundial contemporânea: como a diferença se compõe e se manifesta (a partir da diferença), de que modo é partilhada e negociada e de que maneira agrega comunidades. A abordagem do tema da diferença deve, no entanto, estar atenta aos sentidos de disparidade, singularidade e discordância, conforme a reflexão proposta por Derrida (1972) a partir da invenção do neografismo da diferensa. Como sabemos, a diferensa (différance) não se distingue da diferença (différence) pela audição5, mas apenas pela escrita e leitura. Com a nova grafia, o autor tenta compensar o desperdício da multiplicidade semântica do verbo différer, derivado do latim. Corriqueiramente identificado com o ato de se destacar, de ser desigual, o vocábulo remete ainda à ação de dilatar, adiar, prorrogar, aguardar, reservar e, por fim, a de polemizar, dissentir. A segunda acepção é associada à protelação, à espera de ocasião mais propícia e à contempo-

rização, ao desvio suspensivo que anula ou tempera o efeito de atendimento ou de realização de um desejo. A última referência, por sua vez, ressalta o sentido de divergência6. São diversas as implicações do paralelo entre hackeamento e diferensa. Em primeiro lugar, é preciso considerar que esta última é uma operação que se realiza no interior de uma gramática de escritura fonética e, por extensão, de uma cultura que lhe é inextrincável. Por analogia, o hackeamento deve ser encarado, então, como um procedimento inserido em uma tecnologia, cujas dinâmicas correspondem ao contexto técnico-cultural, funcional e social, que lhe envolvem. Por outro lado, o jogo silencioso da diferensa, conforme Derrida, remete a uma ordem nem sensível, nem inteligível, localizada entre registro e performance, que questiona a solicitação de um ponto de partida absoluto e condiciona a possibilidade de desempenho de todo signo. O hackeamento, por sua parte, se apresenta como fluxo contínuo das abstrações propostas por Wark (2004), que viabilizam sua própria sequência pela (dis)funcionalidade das (re) composições tecnológicas que articula (na e pela tecnologia), por meio do confronto entre virtualidades que se atualizam. De volta a Derrida, a significação não resulta da força compacta de um ponto central, mas antes da rede de oposições que lhe distingue. Assim como Derrida entende a diferensa, admitimos que o hackeamento se agencia com base em uma errância empírica que une acaso e necessidade em um cálculo não-objetivo, que rompe e refaz as fronteiras tecnológicas e as oportunidades para novos hackeamentos. Sem projeto preconcebido para a sua execução e engajado em uma cultura de simulação, o hackeamento seria o diferir da diferença, sem uma causa predeterminada exterior a seu próprio jogo de apropriação, expansão e subversão tecnológica voltada para a sua própria continuidade cíclica. O hacker hackeia o mundo e a si mesmo de uma vez, pois ao alterar a tecnologia expressa e absorve as singularidades de sua relação com o tecido de diferenças de que consiste todo código ou sistema de referência, conforme o que apresenta Derrida (1972). Em consequência dessa reciprocidade entre quem hackeia e o que é hackeado, o hackeamento não é função do hacker, assim como a linguagem não é função do sujeito falante. Se este se inscreve na

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No original em francês, Derrida substitui a vogal “e” de différence pela vogal “a” de différance, criando uma nova grafia que mantém, no entanto, inalterado o valor fonético. Empregamos em português a substituição da “ç” de diferença pelo “s” de diferensa, conforme a sugestão de Nícia Adan Bonatti, tradutora de Derrida. Fonte: OTTONI, Paulo (curadoria). Folheto da exposição DERRIDA ‐ A Traduzir. Unicamp, junho de 2003. Disponível em: http://www.unicamp.br/iel/traduzirderrida/EXPO.htm. Acesso em: 25 de novembro de 2009.

No francês, conforme Derrida (1972), o diferente e o divergente também encontram nas palavras différent e différend duas grafias distintas com sonoridade idêntica. Ambos os sentidos se apoiam na produção de um intervalo, uma distância, topológica e cronológica, que separa o que é do que não é, de maneira que aquilo que é seja de fato o que é. Essa constituição do presente como síntese complexa, “não‐originária, de marcas, de traços de retenção e protensão” (p. 14) é o que Derrida denomina arquiescritura ou diferensa – que ao mesmo tempo é espaçamento e temporização.

linguagem, se define por seu idioma, sua capacidade de codificação e intercâmbio neguentrópico da informação, de modo análogo, o hacker se define pelo código que é objeto de hackeamento, por seu diálogo tecnológico desviante que reprograma a abstração da natureza. Torna- se, assim, um agente de abstração que se conforma como intercambista do sistema de diferenças, seguindo e promovendo a diferensa. Essa inscrição do hacker no código que é objeto de hackeamento reitera o sentido de produção da diferença conforme a análise de Wark. O código, aliás, também é uma escrita, uma linguagem. Desse modo, o hackeamento age sobre o mundo codificado e consolida opções de atravessamento e remarcação de suas bordas. É também essa noção de diferensa das fronteiras que Bernard Stiegler (2001) atribui à técnica, cujos modos de performance são modos de expressão (e vice-versa) que suspendem as leis habituais do ambiente orgânico. Esse resultado reflete uma capacidade de ficcionar o real exercida por meio de ferramentas simples, aparatos de comunicação avançados ou engenharia genética. Desde que há técnica, a história ecoa a soma das sucessivas adaptações e registros artificiais – abstrações, diferensa, hackeamento.

1.3 Como dissidir/decidir junto

De modo concorrente, a comunidade hacker é agente e paciente da abstração (WARK, 2004). Pois, conforme observa Wark, ao hackear novos mundos, ela se converte na categoria reconhecida por sua habilidade de atualizar a realidade a partir de sua virtualidade, de produzir a diferença. Isso não lhe confere, porém, uma situação privilegiada. Pois seus feitos terminam frequentemente apropriados pelas classes vetoriais. O hackeamento é, portanto, também uma questão comunitária, idiomática, no sentido de uma singularização produzida pela performatividade. De modo semelhante à Derrida e Stiegler, Roland Barthes (2003) descreve a linguagem como o próprio lugar da sociabilidade, o cenário político, em que o poder é exercido por meio da intimidação da linguagem. Assim como o hackeamento reprograma a tecnologia dominante, a literatura representa, para o autor, a possibilidade de refutação e de emancipação do poder do discurso. A utopia de convívio, do Viver-Junto, sugerida por Barthes, se baseia justamente na identificação de uma fantasia de autonomia e integração, presente em obras literárias, que denomina como idiorritmia (ídios = próprio + rhythmós = ritmo). A expressão emprestada do vocabulário religioso designa, por metáfora, configurações que conciliam ou tentam conciliar a vida coletiva e a vida individual. São situações que facilitam, em lugar da imposição de um único ritmo, a mobilidade geral


de um rhythmós, ou seja, fluidez, “interstícios, fugitividade do código” (pp. 15-16). O que Barthes propõe com a idiorritmia é a experiência de ajuste de intervalo crítico, entre uma singularidade e outra, que faria possível uma sociabilidade sem alienação, uma solidão sem exílio. Equilíbrio que o autor investiga por meio da simulação do espaço cotidiano, isto é, do cenário, maquete ou “lugar-problema do Viver-Junto” existente nos romances. O coabitar bem, para ele, é um fato espacial e temporal, resultante do transcurso de gestos comuns ou extraordinários dentro desse espaço dramático. Comparamos a idiorritmia com a perspectiva apontada por Wark de uma comunidade de hackeamento difuso entre quaisquer agentes interessados e em quaisquer domínios de produção da diferença. Essa comunidade suportaria o compartilhamento da abstração, de forma independente das estratégias de captura e reificação vetoriais. O cenário de tal fantasia seria constituído por meio das redes de telecomunicação, no ciberespaço, mas também por meio dos arranjos socioculturais que regulam a disponibilidade dos códigos de conduta e atividade, bem como a liberdade de reprogramação dos mesmos por gestos corriqueiros e, ao mesmo tempo, extraordinários de hackeamento. A instituição da idiorritmia para e pelo hackeamento despertaria ainda a consciência geral sobre a artefatualidade do cotidiano, ou seja, sobre a natureza fabricada da atualidade (DERRIDA; STIEGLER, 2002). Desse modo, seria possível repensar pela estética e pela ética as condições políticas que são formadas e transformadas, em sua estrutura e conteúdo, pelas teletecnologias de filtragem, investimento, interpretação performativa e “modelagem ficcional”, apoiadas em aparatos “factícios ou artificiais, hierarquizadores e seletivos” (p. 3). A contrainterpretação da artefatualidade é um dos efeitos possíveis da resistência cultural pelo hackeamento. Pois, ao mudar a configuração e a funcionalidade de dispositivos e códigos predeterminados por agentes privados e/ou estatais dominantes, o hackeamento move a própria atualidade. Desafia, por meio dessa tática, o poder “homo-hegemônico” (DERRIDA; STIEGLER, 2002, p. 47), que se fundamenta na estandardização dos fatos, por meio da intervenção em seu enquadramento, ritmo, contorno e forma. Conforme Wark (2004), é por essa estratégia que a indústria global da produção cultural e da memória se apropria e domestica o que há de inovação no hackeamento, protegendo, assim, a divisão entre produtores e consumidores – entre proprietários dos vetores de comunicação, das patentes e dos copyrights e grupos que abstraem a informação. O hackeamento, tomado como prática artística e coletivista, sublinha, portanto, o valor contracultural de uma participação irrestrita na produção da

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diferença – portanto, na diferensa. Ao se tornar acessível, a multiplicidade abala a cena global de aplicação das tecnologias de codificação e controle, moldadas por critérios de acumulação do poder econômico e político. No entanto, como ressalva Wark, é preciso considerar que o hackeamento fornece o próprio combustível de comando, na medida em que as atualizações da virtualidade que efetua carregam em si possibilidades de exploração comercial frequentemente sequestradas para a posse privada. A prescrição da escassez e do consumo regrado aos que são privados do acesso deve ser tomada como alvo da ruptura e da dissidência, dedicadas a prevenir a recorrência reativa da dominação. Ante essa circunstância, recorremos aqui a um jogo semântico entre dois parônimos da língua portuguesa: os verbos dissidir (discordar, divergir) e decidir (escolher e, por extensão, estabelecer uma norma). Com esse procedimento, não pretendemos obter o mesmo efeito da diferensa de Derrida, mas sim sublinhar a proximidade fonética de sentidos díspares, que também é observada em diferir (adiar, distinguir ou divergir) e deferir (condescender, atribuir ou dispensar atenção)7. Dissidir e decidir são ações que reverberam o paradoxo do valor divergente de abertura de códigos pelo hackeamento que, algumas vezes, é domesticado na decisão de novos sistemas proprietários. Consideramos que a questão das sociedades contemporâneas, imersas na artefatualidade gerada pela tecnologia, não se restringe à questão barthesiana de como viver junto. Se essa coexistência implica a negociação dos ritmos descompassados, requer, por outro lado, uma ampla distribuição da diferensa. Nos termos empregados por Wark, demanda o agenciamento coletivo da abstração e das atualizações da virtualidade. Sob essa perspectiva de confronto entre consensos e dissensos, a tecnologia nos convoca para a solução do dilema de como dissidir/decidir junto, que nos indaga: de que maneira a produção da diferença pode suceder como idiorritmia, sem se deixar transformar em nutriente propulsivo da homohegemonia, mas tampouco se tornar em excentricidade absoluta, improdutiva, proscrita da comunidade como algo incomunicável e inoperante?

Contraprotocolo

O Viver-Junto solicita um código de interação social, assim como a operatividade do aparato depende de uma organização e um acionamento sistêmico. Quando o Viver-Junto se conjuga com a

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Interessante notar ainda que embora as sonoridades em cada dupla (dissidir x decidir / diferir x deferir) se distanciem, podem também se aproximar quando a pronúncia sofre desvios.

operatividade do aparato, seus códigos se emulam8 e se dispõem em circuito. Social e maquínico se agenciam. Em qualquer caso, em comunidade, numa relação entre humanos e máquinas ou no automatismo, a interatividade com os componentes depende de protocolos. Segundo Alexander Galloway (2004), os protocolos fornecem os parâmetros convencionais dos tipos de comportamento possíveis e aceitáveis dentro de sistemas heterogêneos. Uma vez que viabilizam a comunicação das informações e de suas diferenças, podemos incluí-los entre os vetores que na análise de Wark (2004) comparecem apropriados como instrumentos de dominação. A apropriação é o que determina sua aplicação como meio de controle, pois o protocolo não traz previamente em si essa disposição. De acordo com Galloway, o protocolo reveste a informação, mas é indiferente ao seu conteúdo. Um exemplo que comprova a parcialidade de seus usos é a simbiose entre TCP/IP e DNS9 no ambiente distribuído que define a internet. Enquanto protocolos como TCP/IP espalham o controle para localidades autônomas, permitindo relações não-hierárquicas ponto-a-ponto, par-a-par10, entre computadores, o DNS funciona a partir de uma base de dados de classificação rígida que localiza os endereços da rede em relação aos nomes que designam as coordenadas de sua topologia. Essa chave de operação do DNS faz com que os espaços da internet estejam sob vigilância e possam ser desconectados por aquele que detém o poder sobre seu mapeamento, ainda que as capacidades de transmissão de dados do ponto excluído sejam mantidas. A rede se revela, assim, para além

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Conforme o Dicionário Houaiss, o verbo emular tem quatro acepções: 1. esforçar‐se para a realização de um mesmo objetivo; 2. procurar emparelhar(‐se), imitar, seguir o exemplo de; 3. ter emulação com; tentar superar ou igualar‐se a; competir, rivalizar(‐se); e 4. na informática, como regionalismo brasileiro – fazer com que um dispositivo ou programa reproduza fielmente as funções de outro dispositivo ou programa, de modo a permitir a utilização do primeiro em lugar do segundo.

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O TCP/IP é um conjunto de protocolos de comunicação entre computadores em rede. Seu nome deriva de dois protocolos, o Transmission Control Protocol – TCP (Protocolo de Controle de Transmissão) e o Internet Protocol – IP (Protocolo de Interconexão). Por sua vez, o Domain Name System – DNS (Sistema de Nomes de Domínios) é um método de gerenciamento de nomes, hierárquico e distribuído, que utiliza o exame e atualização de seu banco de dados e traduz os nomes de domínios em endereços de rede (IPs).

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Aqui empregamos duas das possíveis traduções para a expressão inglesa Peer‐to‐Peer – P2P, que indica as redes de máquinas que operam sem uma relação entre clientes e servidores. A organização P2P é típica dos sistemas de compartilhamento de arquivos de música e materiais audiovisuais. Para dar ênfase à ideia de rede, poderíamos optar pela tradução ponto‐a‐ponto. No entanto, se quisermos acentuar o caráter comunitário, a tradução par‐a‐par (de igual para igual) parece mais adequada.

de sua aparência corriqueira de tecnologia da idiorritmia anárquica e descentralizada. Nela, o abrigo da diferença é um espaço cibernético11 e, portanto, supervisionado. O paradoxo do protocolo (GALLOWAY, 2004) é viabilizar coletividades em que há participação, integração e inclusão da alteridade, ao mesmo tempo em que molda as comunidades como nichos de mercado que oferecem lugar seguro para toda “diferença” codificada. O protocolo sustém, assim, a ambivalência do poder nas sociedades de controle, tornando mais complexo o seu combate por táticas de contraprotocolo como a software arte, o código aberto e o hackeamento. Nas sociedades de controle, segundo Deleuze (1995), uma terceira geração de máquinas (de informática) substitui aquelas do confinamento e da burocracia da sociedade disciplinar da era moderna (máquinas energéticas) e aquelas da violência e da gestão da morte das sociedades de soberania da era antiga (alavancas, roldanas, relógios). Essa mudança reflete uma terceira configuração das formas sociais capazes de desenvolver e utilizar seu maquinário. A partir dela, por exemplo, os moldes da disciplina das escolas e fábricas cedem lugar para os controles de estados metaestáveis e coexistentes de uma mesma modulação. Outra consequência apontada por Deleuze (1995) é a desvalorização das assinaturas, números e palavras de ordem, em proveito das cifras, das senhas, que marcam a rejeição ou o acesso à informação. Nesse contexto, as massas transformam-se em amostras, dados, mercados ou bancos, ao passo que os indivíduos convertem-se em matérias dividuais, divisíveis. Por sua vez, o comando do capitalismo deixa de se ocupar da produção, relegada à periferia dos países em desenvolvimento, e passa a se dedicar à sobreprodução, ou seja, à negociação de produtos e ações, à montagem de peças destacadas e à gestão de serviços. No que concerne à economia, reencontramos aqui o vetorialismo identificado por Wark (2004) como a face preponderante do poder atual. Por sua vez, Negri e Hardt (2000, p. 23) observam que, nas sociedades de controle, os instrumentos de obediência tornam-se imanentes ao campo social, “distribuídos por corpos e cérebros dos cidadãos”, em lugar de constituir uma “rede difusa de dispositivos

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A palavra cibernética tem origem no vocábulo grego Κυβερνήτης (kubernetes), que significa piloto ou timoneiro. Cibernética é o estudo do controle e da comunicação em e entre sistemas orgânicos e máquinas, conforme a definição de Wiener (1954). Na cibernética, os sistemas são entendidos como circuitos de respostas cíclicas que fornecem continuamente ao controlador dados sobre os resultados de suas ações, para que este continue realizando suas operações. Na medida em que a informática se dissemina em uma série de aplicações relacionadas aos sistemas de comunicação, informação e interação, a cibernética torna‐se um termo comumente associado ao campo.


ou aparelhos que produzem e regulam os costumes, os hábitos e as práticas produtivas”. De tal modo que a contingência, a mobilidade e a flexibilidade passam a ser absorvidas e empregadas para fins de dominação. É essa a situação com a qual a resistência contraprotocolar (ou contraprotocológica12) deve lidar, especialmente quando se enfrenta com as tecnologias de informação e comunicação em rede. Nesse sentido, é preciso levar em conta a análise de Galloway (2004) sobre a internet, considerada por ele não só uma tecnologia e um estilo de gestão, mas também como um diagrama. Conforme a referência deleuziana seguida pelo autor, um diagrama é uma cartografia coextensiva do campo social, um mapa que alcança as mesmas extensões da comunidade. Segundo essa perspectiva, a internet é uma rede distribuída de pontos (computadores, usuários, comunidades, corporações, países), que não são centros nem margens, e de linhas (usos, download, e-mail, conexão, criptografia, comércio, escaneamento). Galloway ressalta que nesse diagrama é possível filtrar a conexão dos pontos e regular que linhas são permitidas entre esses pontos. Dessa maneira, a informação flui, mas apenas de um modo administrado. Por um lado, a internet é comparável ao rizoma de Deleuze e Félix Guattari (2000), pois cada parte pode estabelecer comunicação com qualquer outra, sem a necessidade de recorrer a um intermediário hierárquico. No entanto, afirma Galloway, a interação pela internet obriga que os pontos usem a mesma linguagem, de modo que o acesso aos protocolos decide a “paisagem da rede – quem se conecta com quem” (2004, p. 12). O acesso e o domínio dos usos da linguagem de interação são, portanto, os critérios de inclusão e exclusão na comunidade. Por essa razão, o conceito de protocolo de Galloway é isomórfico da biopolítica, da produção da possibilidade de experiências, na sociedade de controle. O controle protocolar afeta as funções de que o corpo é capaz no espaço social e a inserção “destes corpos em formas de ‘vida artificial’ que são dividuadas, sampleadas e codificadas” (2004, p. 12). Galloway fala então de um encapsulamento bioinformático do corpo individual e coletivo, gerando economias que apontam para o horizonte de transações de tecidos cultivados a partir de célulastronco e de vidas programadas pelo mapeamento e intervenção no código do DNA – tanto de plantas e animais, quanto de humanos.

12 Aqui preferimos manter entre parênteses uma tradução que preserva o derivado do elemento de composição pospositivo –logia, que os dicionários definem como indicativo de ciência, arte, tratado, exposição cabal, tratamento sistemático de um tema, ou de conexão com palavra ou proporção. Na língua portuguesa, no entanto, a palavra protocolar é o único adjetivo registrado para aquilo que é relativo ou segue o protocolo. 24

#Prólogo: Perigoso e Divertido

O autor segue Michel Foucault em sua adoção do conceito de biopolítica, entendido como a racionalização gerencial moderna dos problemas derivados dos agrupamentos humanos. Por consequência, a biopolítica implica um biopoder de gestão calculada da vida, que trata a população como massa de seres vivos coexistentes, com aspectos biológicos e patológicos específicos e categorizados conforme conhecimentos estatísticos e tecnologias específicas. Para Galloway, no entanto, as mesmas tecnologias que fundamentam o biopoder são a base para a resistência. Se o que está em está em jogo é o controle da vida, então, o caminho da insurreição é o vitalismo de práticas sociais que alteram ou desviam os fluxos protocolares no rumo de uma forma utópica de comunidade não- alienada. De volta à referência deleuziana, Galloway propõe que a resistência ocorra por meio da criação de interstícios de fuga, de ruptura de circuitos e de incomunicação, dentro do campo do protocolo, e não fora dele. O hackeamento se comprova, portanto, como tática contraprotocolar, na medida em que transcorre nas frestas das tecnologias políticas. Sua capacidade de abstração e inserção de dissonâncias na modulação dos aparatos de controle compõe a idiorritmia da multiplicidade. Efeito que, contudo, não se isenta dos riscos de reversão em formas mais complexas de dominação.

1.5 Marginalidade (de/re) codificante

As tecnologias baseadas em códigos instauram a biopolítica das sociedades de controle. Com isso, a matéria e a subjetividade são computadas no registro comum dos bits binários. Porém, apesar dos protocolos de digitalização e de regulação dos intercâmbios de dados, consideramos que a economia da diferensa segue vigente na combinatória de zeros e uns, pela solicitação do distanciamento espacial e temporal das alteridades nesse universo de inscrição. De forma dinâmica, cada valor se expressa como outro valor diferido. Conforme Derrida (1972), o inteligível aparece como sensível diferido, o conceito como intuição diferida e a cultura como natureza diferida. Seguindo essa comparação, o contraprotocolo se manifesta como protocolo diferido. A informação transformada em commodity, como abstração diferida – nos termos de Wark (2004). Os manuais de uso (restrito) da tecnologia, como hackeamento diferido. Ao adotar essa noção proveniente da economia da diferensa de Derrida, não pretendemos igualar ou subordinar as diferenças, mas sim apontar para a inadequação da ideia de dualidade total entre regra tecnológica e a transgressão do hackeamento. Pois a divergência leva também, de certo modo, a um tipo

de decisão, a uma alternativa de protocolo em relação àquele hegemônico que, eventualmente, pode ser capturada como padrão predominante. Decidir e dissidir (divergir) são atos de relação que se amparam na existência da alteridade. A singularidade se faz e se agencia em conjunto. É heterogenética, porque depende da concorrência de elementos díspares para sua formação, conforme a compreensão da subjetividade proposta por Guattari (1992). Em outro sentido, devemos considerar o hackeamento segundo aquilo que Deleuze e Guattari (2000) denominam como máquinas de guerra. Esse conceito engloba conexões que se dão na exterioridade da soberania do aparelho de Estado e são dirigidas contra o fenômeno estatal e urbano de controle. A máquina de guerra se constitui como resistência à conjunção de aparelhos de captura que visam à apropriação de suas virtualidades para o objetivo exclusivo da guerra, que não lhe diz respeito de forma direta, mas apenas como relação suplementária ou sintética desenvolvida em reação à tentativa de apropriação do Estado. Conforme Deleuze e Guattari, nômades e movimentos artísticos, científicos e ideológicos são potenciais máquinas de guerra, na medida em que traçam um espaço liso de deslocamento - vetorial, projetivo ou topológico, ocupado sem medição, em oposição ao espaço estriado, métrico, que é medido para ser ocupado. Não é o nômade, porém, que define essa circunstância. Ao contrário, ele é definido pelo espaço liso, ao mesmo tempo em que este último define o fundamento da máquina de guerra. Repetindo a comparação com a inscrição do sujeito na fala que fizemos acima, o hackeamento não é função do hacker, mas, pelo contrário, é esse ato de desvio que o afirma. Outro aspecto de analogia entre o hackeamento e a máquina de guerra de Deleuze e Guattari (2000) reside na projeção desta última em uma modalidade de saber distinta daquela que o aparelho de Estado promove. Trata-se de uma ciência nômade, desenvolvida na excentricidade, não apenas como simples técnica ou prática, mas como campo científico em que os problemas de relação entre teoria e aplicação se equacionam de modo alternativo. Por sua parte, o hackeamento é a divergência que aborda os objetos tecnológicos sem seguir as regras habituais do comércio, da indústria e do poder militar, estatal e corporativo. Tanto pode desenvolver aparatos e usos dissidentes, quanto romper a caixapreta indevassável de cada artefato projetado para operar como “mecanismo de controle estratificado”, à prova do alcance e da investigação pela curiosidade coletiva (BUSCH, PALMAS, 2006, p. 59). Isso confere ao hackeamento um aspecto subversivo prontamente combatido pelas estratégias de apropriação do poder.

Como apontam Deleuze e Guattari (2000), a ciência nômade é constantemente inibida, proibida ou caracterizada como instância pré, sub ou paracientífica, por conta das exigências e condições impostas pelo poder dominante e o primado legislativo e constituído da ciência régia. Essa subestimação corresponde a uma relação em que a ciência do Estado se apropria dos componentes da ciência nômade que lhe interessam, ao passo que esta permanece como um fenômeno que lhe escapa. A redução do hackeamento à criminalidade e ao terrorismo procede dessa mesma tendência de subvalorização e intimidação. Para escapar dessa armadilha, é preciso considerar a diferensa da ciência nômade em contrapartida à ciência régia, os valores diferidos de uma em relação à outra. Pois, conforme Turkle (1997), embora seja percebida como um saber indisciplinado, feminino e frágil pela cultura de cálculo modernista, a ciência nômade ou mole, como prefere chamar, é apreciada pela cultura de simulação contemporânea, devido à sua flexibilidade não-hierárquica que viabiliza um relacionamento cognitivo estreito e virtuoso com cada objeto de estudo. Nesse sentido, a abstração efetuada pelo hackeamento pode ser alienada para o reforço das sociedades de controle, ao mesmo tempo em que seus excessos impedem sua assimilação completa. hackeamento é uma excentricidade, um transbordamento. Por isso, opera em termos de marginalidade, no sentido de que sua posição do lado de fora acompanha e ajuda a delimitar os contornos do poder vetorial (WARK, 2004). Para Deleuze e Guattari (2000), no limite, o que conta é a fronteira móvel entre ciência régia e ciência nômade, os fenômenos de borda pelos quais a última pressiona a primeira e esta se apropria e transforma os dados daquela. De maneira parecida, Barthes (2003) afirma que a margem é admitida em virtude da demanda social de produção simbólica improdutiva, ou seja, sem finalidade econômica. Mas somente é tolerada quando está sujeita à regulação e codificação pelo conjunto da sociedade. Em contrapartida à captura pelo poder, a expansão da máquina de guerra também oferece seus riscos. Deleuze e Guattari (2000) ponderam que, na história recente, esse processo se revira no enfraquecimento dos Estados e na reconstrução de uma máquina mundial, da qual esses se tornam apenas meios ou partes oponíveis. A partir daí, deriva a ameaça do fascismo da guerra ilimitada e, em seguida, o pós- fascismo da máquina que adota a paz como meta ainda mais terrífica, sem respiro para a divergência. Apesar disso, surgem possibilidades de revides inusitados que orientam máquinas mutantes, minoritárias, populares e revolucionárias.


Os protocolos tecnológicos conferem o poder da máquina mundial que impõe a liberdade de cada um ser monitorado. Por isso, conforme Galloway (2004), a capacidade de resistência do hackeamento e da reflexão a seu respeito serão decorrentes do tratamento dado aos ritmos políticos de especificação, programação, desenvolvimento e desinfecção (debugging) da tecnologia, em suas dimensões informacionais e biológicas. O código, para além de linguagem, deve ser abordado como fator processual, gramatical e composicional, que gera transformações e efeitos práticos para a expressão e compartilhamento da diferença. Por fim, acreditamos que toda tática contraprotocolar de hackeamento necessita ser compreendida como agenciamento coletivo. Dessa maneira, é possível expurgar o hackeamento tanto do discurso tecnoelitista e machista, que tenta restringi-lo aos hábitos de uso dos profissionais masculinos de informática mais capacitados, quanto da histeria induzida pela mídia em favor da condenação criminal dos desvios da norma tecnológica e do livre compartilhamento da informação que desafia o copyright (ROSS, 1990). Por outro lado, o hackeamento não deve se justificar apenas porque coopera na correção das falhas da tecnologia ou porque contribui para o seu desenvolvimento a partir de uma investigação livre e experimental. Tampouco deve ser reduzido a uma prática educacional e recreativa, a uma reserva de rebeldia e contravigilância para frear o advento do tecnofacismo e o uso irrestrito de aparatos de monitoramento e manipulação de dados. Segundo Ross (1990), é necessário incluir no hackeamento as práticas daqueles que desconfiam da infalibilidade da tecnologia e conseguem interromper, interferir ou redirecionar o fluxo estruturado de informação que dita a cada agente seu lugar e sua agenda de trabalho a cumprir na rede das trocas sociais. Nos termos de Derrida, o hackeamento engloba todo espaçamento e temporalização autônomos da diferensa. Além disso, concordamos com Ross (parágrafo 43) em sua defesa da transformação da crítica cultural sobre a tecnocultura em um conhecimento hacker, “capaz de penetrar os sistemas existentes de racionalidade que de outro modo podem ser vistos como infalíveis”, de reprogramar os valores sociais atrelados à tecnologia e de gerar “novas narrativas populares

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#Prólogo: Perigoso e Divertido

ao redor dos usos alternativos da engenhosidade humana”. Essa abordagem coletiva e comunitária do hackeamento demanda ainda uma política hacker. Para Wark (2004), é necessário realizar o hackeamento da classe hacker como uma classe social capaz de hackear a própria noção de propriedade sobre a informação que restringe o acesso aos meios produtivos e à produtividade da mediação. Declarando-se criptomarxista, o autor defende a noção de classe com o argumento de que, embora rejeitada pelos apologistas dos interesses dos proprietários dos vetores, segue como princípio inevidente do plano vetorial que organiza o jogo de identidades como diferenças. Como vimos, é uma falácia a propalada emergência de uma classe criativa intermediária, nem trabalhadora, nem dominante (BARBROOK, 2006), uma vez que a inovação valorizada pela economia cognitiva segue elitizada. Ainda segundo Wark, a classe vetorial pretende limitar ao âmbito criminal a produtividade semântica do termo “hacker”, uma vez que teme seu potencial abstrato e múltiplo, como classe. “Em toda parte, o desejo de desvelar a virtualidade da informação, de compartilhar a informação como uma dádiva, de se apropriar do vetor de expressão, é tido como o objeto de um pânico moral” (2004, parágrafo 73). A aversão vetorial se volta, então, contra o fim do mito da escassez (insinuado pela partilha sem racionamento da informação digital), contra a abstração da própria ideia de propriedade e contra a virtualidade da ausência de classes. Para Wark, os maiores hackeamentos seriam formas de organização da expressão coletiva e contínua da multiplicidade, numa aliança de interesses entre as classes produtoras, de modo que a abstração servisse às pessoas, em vez de as massas servirem aos grupos dominantes. Nesse sentido, o autor afirma que é preciso resistir à educação formal como doutrinamento para a submissão assalariada. Em lugar dela, propõe o conhecimento transbordante e transformador das ruas e a livre produção de produtores livres. Com isso, os lances de hackeamento poderiam, de fato, se sobrepor seguidamente, desvalorizando a eventual posse de seus antecedentes, por meio da redundância provocada por sua recombinação irrestrita em nova informação.

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PERIGOSO E DIVERTIDO “frase-sampler”

A frase “Perigoso e divertido” surgiu em uma de minhas chegadas no Rio de Janeiro misturadas com as lembranças de algumas cenas do cinema marginal e também vivenciando a cidade e sua paisagem naqueles momentos. Algumas vezes andei de fusca pelo Rio de Janeiro com Melmut Batista e em um desses passeios saímos de Santa Teresa partindo para as Paineiras na floresta em morro e, aquele enquadramento das janelas do fusca me levou para outro lugar querendo transformar as coisas. O simples passeio pela cidade passando pelas praias, a lagoa, as calçadas, os prédios, as pessoas, a floresta, no olhar de dentro de um fusca de janelas em cantos ovais me inspiraram as possibilidades para (re)inventar a experiência. Chamo de “frase-sampler” por me apropriar de uma fala do filme “Bandido da Luz Vermelha” de Rogério Sganzerla e incluir uma palavra que atribuí um caráter ambíguo à afirmação evidenciada. A ideia surgiu primeiramente para fazer um cartaz que não chegou a ser produzido, mas em um convite me propuseram então para fazer o adesivo e foi nesse formato que consegui publicar e dispersar a ideia-conceito. Não importa a experiência que eu descreva para motivar a ideia, acredito que esse conceito possa ser melhor desenvolvido no pensamento de cada um que a lê, creio que a subjetividade implícita na frase motive as múltiplas identificações que venho notando que ela suscita. As cenas dos filmes do cinema marginal filmados no Rio de Janeiro me inspiram muito e acredito que essa experiência no tempo da imagem entre a arquitetura e a selva (floresta, jardim, paisagem, roteiro...) filmadas em preto e branco com o ritmo “perigoso” das histórias, subjetivam coisas que não estão ali explícitas. É nisso que transfiro a lembrança e identificação dessas imagens com a re-invenção da experiência nesses locais. Quer seja a mesa de trabalho, quer seja as noites entorpecidas com os amigos pela cidade, a concentração que deveria estar em primeiro plano ou mesmo a dispersão que está sempre disposta a impulsionar as ideias, motivam projetos e trabalhos que derivam dessas experiências mescladas na função de estar no mundo. A vivência desse limite do “perigoso”, que tanto pode estar ligado a ideia de violência como a simples tomada de decisão de fazer isto e não aquilo nos leva a tentar equilibrar sempre estas instâncias que permeiam a diversão de nossas vidas. Perigoso e Divertido equivale a esse processo que nos pertence.

Traplev. Rio de Janeiro, junho de 2012.

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http://hacklab.comumlab.org/photos/


Rio – Belém – Santarém – Rio brasil, 13 de agosto de 2011, calendário gregoriano Tatiana Wells

Tudo começou em Medellin, Amazônia colombiana. Em um encontro de labs de mídia chamado Labsurlab1, conhecemos Antena Mutante e Pablo de Soto, que realizavam uma oficina de vídeo cartografia pelas periferias da cidade, mapeando situações de conflito social, como greve de estudantes, narcotráfico, resistência cultural via hip hop etc. A cartografia procurava criar novas leituras sobre a cidade, principalmente sob a perspectiva da resistência por trás de tantos conflitos de terra; paramilitares; presos políticos; jovens sendo assassinados; situações de crise que, mesmo tendo seus momentos de pico máximo (como em operações muito parecidas com as UPP’s2, só que com número considerável de assassinatos e maquinaria de guerra), ainda hoje predominam. Depois disso, iniciamos diálogos convergentes desde el sur: uma troca de e-mails entre os coletivos, linkando outros espaços: Bogotá, Madrid, Rio de Janeiro, Cali... conjurando um encontro na Amazônia e no Rio de Janeiro, que desse continuidade ao trabalho iniciado na Colômbia, mas com características locais, como inevitavelmente seria. Nos juntamos assim à iniciativa Hacklab – Por uma cartografia crítica da Amazônia, onde houve uma segunda convergência desta rede ampliada. De 4 a 7 de agosto, reencontramo-nos, eu e Pablo, em Belém, junto a Felipe Fonseca, Paulo Tavares e Ricardo Folhes - não-locais - e aproximadamente 40 pessoas de diversos coletivos artísticos, midiáticos, produtores culturais etc. da cidade. Um próximo encontro está agendado para o fim de agosto, 1 Rede de iniciativas independentes que formam hacklabs, hackerspaces, medialabs e todos os tipos de laboratórios e funcionamento biopolítico coletivo para territórios da América do Sul – https:// labsurlab.org/. Artigo online sobre o encontro http://www.revistaglobalbrasil.com.br/?p=695 2 Unidade de polícia pacificadora instalado nas favelas cariocas desde o ano de 2008

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#Prólogo: Perigoso e Divertido

novamente em Belém e Santarém, e mais a etapa carioca, que se inicia em setembro3. Chegando a Belém para o primeiro combo, sob o calorzão da cidade, abrigados no Casarão Cultural Floresta Sonora4, no centro da cidade, nossos anfitriões nos levaram à Feira do Açaí, no mercado público Ver-o-Peso, onde fui logo roxear minha boca (de açaí com farinha). Na casa - um espaço coletivo, ouvíamos um guitarreiro local sendo gravado e aos poucos fomos conhecendo diversas iniciativas de intervenção urbana, design, cinema, rádios livres, performers, permacultores, músicos... A última vez que cheguei à Belém – pra ficar e de bicicleta – já tinha sido uma experiência intensa. Essa também não poderia deixar de ser, mergulhando numa imersiva de re-conhecimentos. Passamos três dias em um parque de igarapés5, apresentando-nos e achando pontos de união e conflito entre nossas práticas, de forma espontânea, sem horários rígidos ou programação vertical. Uma Zasf (Zona Autônoma Sem Fio) foi montada e, nesse espaço comum, wikka e pastas, fomos nos inserindo. Falamos sobre a desconectividade amazônica; gênero; licenças livres; cartografias; megaprojetos x comunidades locais; a ideia de Amazônia para o mundo; América Latina; entre outros temas. A pirataria de softwares parece ser tão bem incorporada aqui que reflete, em muito pouco ou quase nenhum, o uso do software livre - apenas por integrantes do grupo Coisas de Negro que estavam justamente atrás de uma distribuição linux. À noite, participamos de múltiplas performances 3 Compilação bruta & incompleta de idéias http://midiatatica. info/sur/dialogos_del_sur.pdf ; http://cartografiasinsurgentes.wordpress.com/ 4 http://casaraocultural.wordpress.com/ 5 Parque dos Igarapés - http://www.parquedosigarapes.com. br/historia.php

no igarapé; mergulhos em redes e troca de arquivos por bluetooth com o público; e até um susto com os seguranças que seguraram Pedro ao vê-lo puxando sua companheira de cena pelos cabelos e jogá-la numa caixa. Tanto a performance como os vídeos disparados por celular falavam da violência contra a mulher. Diante de trabalhos tão instigantes, muitos sem nenhuma conexão direta entre si, mesmo que mergulhados num mesmo contexto, a cartografia pode servir como norte alinhavador de ações colaborativas emergentes. Assim como não há net, mas uma cultura digital subterrânea que se comunica eficientemente por troca de arquivos p2p via celulares, filmes e performances, essa rede também pode ser fomentada por iniciativas como o Hacklab Belém, que trazem diferentes ações para se conhecer e refletir sobre os próprios territórios e características políticas, sociais, culturais, criando um lugar-tempo comum. Ali todos nos tornamos metarecicleiros, feministas, ribeirinhos. Só faltou mesmo termos ido, no domingo, ao espaço do Coisas de Negro, dançar o carimbó. Fecha-se o primeiro ciclo de imersivas em Belém com muitos pontos nodais, embriões de categorias e ideias a serem tornadas ações nos próximos encontros. Inicia-se a etapa Santarém, às margens do Rio Tapajós, onde nos encontramos com hacktivistas paraenses. É realmente inspirador ver a garotada difundindo, usando e desenvolvendo o linux. No Coletivo Puraqué, conhecemos iniciativas de cinema, moeda social, oficinas de programação em computadores, encontros de gênero e tecnologia. Tudo transmitido pela rádio Muiraquitã. À noite, um cineclube mostrava produções locais em sua maior parte, mas também outros filmes com

temáticas relacionadas, como Ciclovida6, que trata da apropriação das sementes originárias por empresas, como a Cargill (a mesma que tomou a praia do centro de Santarém para instalar seu ponto de escoação de soja para o mundo). Depois de um mergulho em Alter-do-Chão, linda praia-ilha de água doce, mais um portal se abriu, como colocou Edu em sua fala: essa é a cidade do futuro - pequena, conectada, com natureza presente. O caminho aqui trilhado busca envolvimento, a solidariedade digital e o compartilhamento de saberes - geopolítica Amazônica. Conversamos muito sobre mapas por meio de um trabalho já criado por eles, dos infocentros e redes de net na cidade. Criamos à caneta um novo mapa, por cima deste, com as relações de conflito: porto da Cargill; futura hidrelétrica Rio do Norte; descoberta do aquífero de Alterdo-Chão; expansão de áreas de periferia da cidade; rota aquática das drogas; áreas de prostituição; ocupações - visualizando desde serviços públicos inexistentes aos recursos naturais extraídos de forma violenta (como a pedra descascada, que surgiu para dar espaço à rota de aviões oriundos do aeroporto) – à desenhos mais subjetivos, como o mapa dos cheiros. Foi realmente impressionante participar de duas conexões, Belém-Santarém, com tanta experiência a se somar – arte e tecnologia na Amazônia. A ação em si já é um mapeamento, criando suas peças de encaixe, ligandose por conexões físicas: observação, escuta, trânsitos, imersões. Outras mais subjetivas, como descobertas, vizinhança expandida, políticas, projetos hackeados etc. É evidente a força das práticas distribuídas. Organizá-las em uma narrativa comum, incorporando seus afluentes espaciais, óbvios, imemoriais - o necessário desafio. 6 Ciclovida - http://ciclovida.org, é um documentário narrativo que segue um grupo de campesinos sem terra numa viagem atravessando o continente da América do Sul de bicicleta, na campanha de resgate das sementes naturais.


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#Prólogo: Perigoso e Divertido

Todas Contra a UHE Belo Monte!

ARQUIVO AMAZONE

Fundação Lucia Gomes 2012

Paulo: Antes de começar esse trabalho, eu era envolvido com um lugar que se chama Rádio Muda, que é uma rádio que existe lá em Campinas. É um coletivo, que é um pouco o antes e depois dessa história de coletivo, é como se fosse um organismo que junta muitos coletivos. Não sei se vocês conhecem este lugar. Para mim, a minha escola política foi fazendo rádio muda, rádio livre. Depois de fazer rádio livre eu fiz parte de um coletivo que se chamava Submidia. Ali tinha toda essa ideia de subversão das mídias, e a gente trabalhava muito montando rádio analógica e montando televisão, transmissões de rádio e televisão, no sentido de ocupar um espaço público, um espaço espectroeletromagnético... é como ocupar as ruas da cidade, você ocupa uma espécie de espaço que, de fato, não é virtual, é totalmente material, e é regulamentado por um regime latifundiário assim como é a Terra no Brasil. Então, foi dessa experiência que eu conheci a Giseli, a Tati e outras pessoas que estão aqui, mais ligadas à produção dos mídias. Depois desse momento eu estava interessado em pesquisar, algo mais material-territorial, e fui desenvolvendo essa coisa sobre a Amazônia, que por hora chama-se Projeto Amazone. Amazone é um palavra retirada,- roubada mesmo- , de um cara que se chama Eduardo Viveiro de Castro, um antropólogo do Rio de Janeiro que escreve uns textos muito legais sobre a Amazônia. Amazone foi o nome de um projeto que ele fez, ele colocou um capítulo de seu próximo livro num wiki, que chamava wikiamazone, onde todos poderiam colaborar e roubar as coisas que tinham nesse wiki. É um cara cujo o trabalho eu admiro muito. Então este nome é uma referência a ele e a seu trabalho. Eu concebo este meu projeto é como uma espécie de cartografia, mas é uma cartografia que não tem apenas duas dimensões, trabalha com diferentes camadas que se interligam, e isso significa tanto mapas “tradicionais” como mapas audiovisuais, vídeos, e textos também. A minha prática é muito relacionada com a prática do escrever porque tem processos que acontecem e que a gente vê, ou melhor, que queremos tornar visíveis, que eu acredito que devem ser acessados e tornados sensíveis por meio da escrita. Isto é importante. Então tem uma relação, vamos dizer assim, com jornalismo investigativo, uma espécie de prática etnográfica ou uma etnografia da paisagem... etnografia da terra. O que eu vou mostrar aqui é um material bruto, para dividir e ouvir as críticas e opinião de vocês. Quero abrir esta coisa que está em processo, então eu proponho a falar em cima

Paulo Tavares em roda de conversa porque elas ainda não está decupadas de maneira a se comunicar por si mesmas, logo, precisam de outra camada de significação, que será a minha voz: O governo brasileiro está investindo muito numa área da Amazônia peruana, botando grana em uma rodovia que chama Interoceânica, que até foi mostrada aqui, que é para escoar soja para a China. Então a área de tríplice fronteira do Brasil com a Bolívia e com o Peru, está passando por uma transformação territorial-geográfica-ecológica muito intensa. Tanto que os peruanos falam que o Brasil é uma espécie de força imperialista dentro do território deles, principalmente nessa área que é uma área amazônica. E este fato está relacionado com uma espécie de reposicionamento geopolítico que o Brasil assumiu nos últimos 10 anos... teve muito dinheiro para a cultura, como a gente percebe em várias dimensões, em vários lugares do país. E essa espécie de bonança interna para o ambiente cultural também se reflete no reposicionamento geopolítico do país que está relacionado com uma expansão da produção de commodities1, que foi o modelo desenvolvimentista que o Brasil adotou, logo o imperativo a exportação de soja para a China, e para tanto, o Brasil está fazendo uma série de obras no Peru, principalmente esta rodovia que se chama Interoceânica. E essa rodovia abriu uma grande área de fronteira, abriu uma área que não era, vamos dizer assim, colonizada ainda. Como vocês sabem, toda vez que se abre uma rodovia na Amazônia, as pessoas migram em processo caótico de ocupação, similar do que aconteceu na Transamazônica. Então, é um pouco disso que eu vou mostrar; é uma área de mineração na região de Madre de Dios, no Peru. Quando teve a crise financeira em 2008, o preço do ouro foi lá para cima... e sobe porque o mercado tem a necessidade de se apegar a um produto seguro, que é um produto que a gente nem sabe para quê que serve direito... O preço disparou no mercado, provocando “uma corrida” atrás do ouro em vários lugares, sendo um desses lugares a Amazônia peruana, onde se começou a ver um processo de transformação da paisagem muito radical porque as pessoas foram retiradas de suas terras, pelo latifúndio, passaram a migrar para a fronteira do ouro, como acontece em outros lugares da Amazônia brasileira. E eu estava interessado numa espécie de link que há entre esse capitalismo virtual-financeiro-

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. Literalmente significa mercadorias, são habitualmente substâncias extraídas da terra e que mantém até certo ponto um preço universal.


“...O governo brasileiro está investindo muito numa área peruana, uma rodovia que chama Interoceânica, que é para escoar soja para a China, na fronteira do Brasil com a Bolívia e com o Peru...”

global, este processo de ‘acumulação primitiva, estava interessado nos desdobramentos materiais que essa espécie de capitalismo high-tech produz. Então estou aqui falando de tecnologia: estamos usando computador, que por sua vez usa matéria-prima tiradas da terra... esta é a base material que sustenta a economia high-tech. E dentro desse esquema nós, brasileiros, terceiros mundistas, somos muito mais consumidores do que produtores. Esse foi, em larga medida, o papel destinado para o Brasil, e não só para o Brasil, mas principalmente para esta região, que é a região Amazônica e não só a Amazônia brasileira. A gente está muito numa rede virtual, que é um barato muito legal, mas então, nesse sentido, eu acho que a discussão sobre a tecnologia passa muito por uma espécie de efeito material deste espaço virtual. Quando houve o colapso do sistema financeiro (que é na verdade produto desse tipo de tecnologia) a “bolha” não estourou apenas em Wall Street, na verdade estourou também na Amazônia, através desse processo de favelização muito acelerado, que vocês estão vendo aqui, que consome a paisagem em uma velocidade incrível, como se fosse devorando ela. Então eu acho que a minha contribuição seria neste sentido, para que a gente possa repensar ou colocar essa questão - que foi mencionada aqui pelo Felipe em relação a quanto de lixo é produzido pelos aparatos tecnológicos? Ou seja de outra maneira, pelo nosso desejo de usar tanta tecnologia digital? E quais são os desdobramentos espaciais e territoriais deste sistema tech-virtual-financeiro em uma escala globo?

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#Prólogo: Perigoso e Divertido

A gente viu que houve uma mudança em relação a cultura digital, em relação ao uso da internet, celulares, durante esses 10 anos aqui no Brasil, não é verdade? São Paulo está cheio de Hyundai, de Toyota, uns “puta” carrões existem agora em São Paulo, o que demonstra que houve aí um crescimento do PIB e o Brasil quis se reposicionar. E o modelo desenvolvimentista que o Brasil propôs e no qual tal reposicionamento está fundamentado é continuar exportando commodities, não é produzindo tecnologia! Fizeram uma empresa ali do lado da minha cidade que é Campinas, que vai produzir iPAD, então, os caras estão falando: “nós temos tecnologia!” “ nós estamos produzindo iPAD!”, sim... nós estamos montando iPAD! Nós não estamos produzindo tecnologia! E isso me parece ser uma questão essencial e paradigmática, e não só no contexto brasileiro, mas em toda a América Latina. Se você olhar o que acontece no Peru hoje, e ainda mais para o Equador, definitivamente a questão é: colocarse dentro do esquema-mundo como exportador de petróleo, um exportador de biomassa, um exportador de commodities, ou se haverá reversão do modelo de desenvolvimento. E, logo, propor uma nova solução que não é só para um país, mas é para o mundo... porque o mundo está fodido. Então, eu acredito que essa é uma reflexão importante, e eu acho que ela sai muito daqui, da Amazônia, por isso meu interesse aprender com esse território. Como diz aquela terceira frase do manifesto antropofágico do Oswald de Andrade: “Só me interessa aquilo que não é meu”. A história vinda de São Paulo, é uma história bandeirante, é aquela coisa dos bandeirantes, eles são os empreendedores, e a história do Brasil é muito contada do ponto de vista de uma mitologia meio bandeirante, que é uma mitologia colonial, que continua até hoje... já a Amazônia reverte esse ponto de vista não só pro Brasil, mas numa espécie de maneira universal, apontando coisas que são soluções, são modos de vida, são modos de pensar que são válidos para o mundo.

zonas de mineração em Madre de Dios, Perú

“...o que aconteceu no Peru em 2009, o governo do Alan Garcia decretou um estado de sítio, porque toda a região peruana da Amazônia é uma região descolonizada, praticamente, não tem muita atividade econômica, como tem no Pará, o oeste da Amazônia que é mais assim...” Bruna Suelen: A história do Brasil é bem colonial e a gente sofre com colonização ainda hoje, indubitavelmente, é por isso que a gente tem uma lógica, que quem vem de fora chama de bairrista, a gente se protege mesmo. Eu queria pensar contigo, e queria saber o que é isso, que tu chamas de um modelo de resistência que reverbera pro mundo? Luciane Bessa: Porque tu falaste naquele dia da apresentação, que tu vias a Amazônia como uma fronteira de descolonização, podes falar mais sobre esse potencial? Paulo Tavares: Por exemplo, veja o que aconteceu no Peru em 2009. Toda a região peruana da Amazônia é uma região praticamente “descolonizada”, por assim dizer, não existe muita atividade extrativista como existe no Pará. Mas esta área está sendo preparada para uma nova fase de integração com o sistema extrativista global. Em junho de 2009, houve um protesto muito grande dos indígenas de lá, através de uma associação que chama AIDESEP, e os indígenas fizeram um movimento muito forte de protesto e conseguiram barrar uma série de leis, mesmo depois do estado de sítio que o governo do Alan Garcia declarou em toda a área Amazônica. Veja o que aconteceu na Bolívia, outro exemplo, com a guerra do gás. E também aconteceu recentemente no Equador, no processo constitucional, o Equador fez uma nova constituição, nessa constituição o Equador reconhece o Estado equatoriano como plurinacional, eles falam: - Nós somos um Estado, - que é um conceito político-, “habitado por diferentes nações”,- que é um conceito cultural-, “nações indígenas desde os Andes até o Amazonas, um Estado formado por diferentes nações”. Isso significa que a comunidade política reconhece diferentes culturas, e diferentes culturas necessariamente passam pra uma relação com o meio ambiente que não poder ser mediada somente por um Estado centralizador. Então isso significa que os recursos naturais serão mediados e governados por aquelas diferentes comunidades, e isso deve ser reconhecido como fato constituinte do Estado

enquanto comunidade política . Logo, eu acho que o conceito de plurinacionalidade, por exemplo, que vem de uma perspectiva Amazônica – não só Amazônica, também Andina -, ensina pro mundo o que é a descolonização do conceito ocidental de Estado-Nação. Se você for comparar isso com a Europa, por exemplo, é possível ver a diferença: lá eles dissolveram os Estados em comunidades étnicas, como por exemplo na antiga Iugoslávia: “sou eu, é minha cultura, e eu tenho um Estado!”. E isso está gerando guerra por lá, uma série de divisões, e essa é a solução dos caras para a pĺurinacionalidade... entram em conflitos, querem fazer diferentes países, cada um tem sua etnicidade, cada um tem sua própria coerência étnica, cada um tem sua cultura muito localizada, etc... e qual que é a lição que a Amazônia quer ensinar? Ela fala assim: - “Não, não! Nós precisamos de um Estado forte, para ir contra o neoliberalismo, mas nós queremos ter um Estado plurinacional, que reconheça a diversidade da qual nós somos parte!” Eu acho isso muito forte, e esse é um pensamento de origem Amazônica, e eu aprendo muito com isso, entende? E é por isso que eu estou interessado nisso. Don: Então dentro da tua pesquisa, o que tu menciona ou cita como foco de resistência indígena no Brasil, especificamente? PauloTavares : Eu acho que tem um momento paradigmático que a gente está vendo uma reverberação hoje que é o Xingu. Todo mundo sabe disso. Mas o que aconteceu em 1989... a gente falou um pouco do processo de ocupação dos militares na Amazônia, em 1984, quando o Geisel assume o poder tem o que se chama de uma abertura, depois o Figueiredo é a distensão... Esse processo de abertura foi um processo de formação de subjetividade muito interessante no Brasil. A gente vê a emergência do Partido dos Trabalhadores, uma série de movimentos populares, e também do movimento dos indígenas. Depois a gente viveu a Era Collor, que todo mundo lembra, inflação alta pra caralho, todo mundo fodido, aquela repressão. Bem, este


momento de abertura-subjetividade-criação, que é representado pelo encontro de Altamira, no Xingu em 1989, foi quando os índios realmente emergem na cena como atores políticos desse país. E nesse sentido, eu acho que os indígenas estão apontando para isso, para essa espécie de plurinacionalidade, a Amazônia é por definição um espaço plurinacional, habitado por muitas nações, e eu acho que, vamos dizer assim, esse tipo de epistemologia indígena que inverte ou critica um pensamento ocidental, que é o pensamento segundo o qual nós nos educamos, que é um pensamento importado, é fraturado... então, de certa maneira, rompe-se com o pensamento ocidental-branco-macho, de certa maneira, e eu acho que isso vem muito dos índios. Felipe Maranhão: Além da tua experiência de estar aqui, qual leitura você fez da produção sobre conhecimento da Amazônia, preferencialmente, na Amazônia? Paulo Tavares: Você pergunta assim, qual livro eu leio, qual autor daqui? Uma pessoa que eu acompanho muito em Belém, é um cara chamado Lúcio Flávio Pinto, que é uma referência muito importante pra mim, eu citaria o trabalho dele por exemplo. Ele edita o Jornal Pessoal, e eu acho até que ele poderia ter sido um bom convidado para esse debate. Porque ele é a mídia dele, não é?! Ele é uma pessoa que eu conheço, eu li outras coisas produzidas por aqui também... Eu fui trocar uma ideia com ele, na outra vez que eu vim a aqui para Belém. Felipe Maranhão: Walter Rodrigues é uma das recomendações de leituras e de textos jornalístico aqui na Amazônia, um jornalista nascido aqui no Pará, em Bragança, que trabalhou com Lício Flávio Pinto, na década de 1970, no jornal O Estado de São Paulo, fazendo as melhores matérias que já foram veiculadas nacionalmente sobre a

“O Maranhão já não tem mais floresta, hoje no sul é soja e no resto é desmatamento e boi, muito capim pra boi”

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#Prólogo: Perigoso e Divertido

Amazônia. Realmente denunciaram as oligarquias se apropriando do capital local, derrubando a floresta, já mataram toda a floresta, a Amazônia Nativa na tal da pré- Amazônia lá no Maranhão. O Maranhão já não tem mais floresta, hoje no sul é soja e no resto é desmatamento e boi, muito capim pra boi, o Estado com maior rebanho do Nordeste é o Estado do Maranhão, por causa da oligarquia Sarney. E o próprio Estado de São Paulo, na década de 1990, se apropriou de terras lá pré-Amazônia, inclusive no meu município onde nasci, Turiaçú. Até hoje a família Mesquita se reivindica dona-proprietária de um grande território de terra lá, que dá no litoral, mas isso é apenas um exemplo do quanto estamos desinformados. Não vamos às fontes, não vamos aqueles que realmente se dedicam ao estudo da Amazônia, o Lúcio Flávio Pinto, lê sobre a Amazônia, profundo conhecedor da literatura, do que se foi produzido no Teatro, ele lê tudo, por mais que ele não goste, mas ele não é mesquinho a ponto de dizer que - “não, eu não leio Nazareno Tourinho, porque eu penso que Nazareno Tourinho é um ingênuo, um cara não sabe nada de Teatro”, - não! Eu vou lá leio e vou criticá-lo, com elegância, respeitando. Eu ainda não vi um texto dele assim, que desclassifique o outro, entende?! o Lúcio Flávio Pinto, portanto, para mim, é uma fonte de conhecimento, e se não é um cara que vai panfletar comigo, não vai para a Marcha da Maconha, por exemplo, o problema é dele, cumpadi! Agora, eu jamais serei um burro de negar a importância daquilo que ele faz aí nesse Jornal Pessoal, por mais anti-democrático que ele seja, R$ 3,00 entendeu?!, O que impede muita gente de ter acesso mesmo, por mais que sejam cretinas as desculpas, porque a galera tem dinheiro para se chapar, tem dinheiro pra isso, praquilo, para futilidade entenderam?! Felicidade para todos.


Mapa-relato em 10 pontos Paulo Tavares Agosto de 2011.

1) O grande Caribe político:

Primeiros decênios do século XIX: corria à boca pequena entre negros e negras, índios e mulatos, escravos e pobres que trabalhavam no porto de Belém, os zumbidos da insurgência, revolta... revolução. Entre panfletos clandestinos, rodas de cachaça e macumba, falava-se menos da tomada da prisão de Bastilha do que dos sangrentos conflitos na colônia francesa de São Domingo, uma pequena ilha do Caribe que por esta época abrigava a plantation de cana de açúcar mais lucrativa do Novo Mundo. O personagem mítico era menos o ilustrado Robespierre do que o escravo Toussaint Louverture, filho de negros capturados no Benin, que se fez liberto, organizou uma guerrilha clandestina, derrotou o exército de Napoleão e, nos primeiros anos do XIX, transformou São Domingo numa república independente, comandada por não-brancos, agora livres das amarras coloniais -- o Haiti. O poder da Revolução Haitiana estava não apenas em sua força transformadora local, mas em seu universalismo radical. Enquanto os Jacobinos declaravam que a “igualdade” era um direito universal, inalienável à todos os cidadãos, a ideia de cidadania era, em versão revolucionária francesa, algo restrito apenas aos brancos e aos homens. No Haiti a história foi diferente. Pois aqueles negros revolucionários eram, por assim dizer, “mais franceses que os franceses”, e radicalizaram a idéia de igualdade para qualquer e todo ser humano, independente de raça, sexo ou etnia: paradigma histórico do movimento abolicionista, marco inaugural dos modernos direitos humanos. Na minha imaginação sobre o grande Caribe, pequeno mapa do mundo que estende-se de Nova Orleans até os contornos da Bahia, foram as ondas livres que chegavam do Haiti até o porto de Belém que mobilizaram as paixões dos Cabanos do GrãoPará, que lá pela terceira década do XIX rebelaramse contra tudo que era opressor: as reminiscências do poder despótico da colônia portuguesa, a falácia independentista brasileira, os business man de Londres e seus comparsas locais, os terratenientes do delta do Amazonas. E foi esta a memória, uma memória Amazônida-Cabana, que encontrei em

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#Prólogo: Perigoso e Divertido

muitos parceiros e parceiras durante nossa imersão em Belém. Não aquela memória que fala de um anticolonialismo regionalista e doméstico, mais retórica que política, e no fundo, de pouco interesse, mas sim uma subjetividade política local, de-colonial, que fala da liberdade de homens e mulheres, de vários povos, etnias e raças: universalismo de origem Amazônida, Caribenha, Haitiana. Um projeto que foi massacrado pela contrainsurgência de Napoleão e pelas elites do Império de D. Pedro subservientes ao capital Inglês. Mas a memória resiste, como bem testemunhamos, e está no corpo, na comida, na palavra, no espaço e no batuque -- de fato, o toque de três pontos do voodoo Haitiano (que também escuta-se em Nova Orleans) é semelhante ao tambor do Carimbó Paraense. “Chama o mestre Verequete”!

2) O Haiti é aqui (#1):

Depois do colapso político-ecológico da antiga colônia de São Domingo com o terremoto em 2010, começaram a aparecer cidadãos Haitianos nas fronteiras do Acre, adentrando as bordas da comarca pau-brasil em direção à antiga capital do caucho, metrópole Amazônica – Manaus. O grande Caribe é sobretudo um espaço de fluxos, trocas e tráfico: refugiados políticos do Haiti, mulheres transladadas à força para servirem na indústria do sexo, pasta de cocaína, electro-beats provindos de Miami, reggae Jamaicano. Celi Abdoral, da Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos, navegou por estas e outras histórias durante sua apresentação no Parque dos Igarapés – “outro dia me ligaram de madrugada, peguei um avião às pressas até Rio Branco para resolver a situação dos clandestinos Haitianos”. Em conversa de canto, eu e Celi ponderávamos: se as forças militares brasileiras estão presentes no Haiti e, na verdade, são mais parte do problema do que da solução, porque o governo brasileiro recusa-se em dar asilo político aos refugiados quando emigrados ao “Império Brasil”? Lógica perversa que se assemelha ao poder branco ocidental europeu, que, em nome dos direitos humanos, joga bombas sobre a Líbia mas recusa-se em receber os mulçumanos na ilha de Lampedusa.

3) O Haiti é aqui (#2):

Quando Gilberto Gil canta “O Haiti é aqui” em levada de rap, o beat ressoa muito além da metáfora. O diplomata brasileiro Celso Amorim, hoje ministro das Forças Armadas, em entrevista à rede de televisão Al Jazeera, quando perguntado sobre as recentes ocupações militares dos morros cariocas, deu uma resposta precisa, que se bem me lembro, resumia-se na seguinte afirmação: “Só foi possível fazer a pacificação no Alemão porque temos know-how neste tipo de operação”. A referencia implícita ou explícita no termo “know-how” era, obviamente, a MINUSTAH -- Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti --, que está sob o comando das forças armadas tupiniquins desde 2004. Não há como não desdobrar o paralelo apresentado pelo nosso mais destacado diplomata ao massivo processo de despejo que observamos nas favelas do Rio de Janeiro atualmente (ver apresentação de Tati Wells): continuação do “processo de paz” em prol da nova economia bolha-Brasil dos grandes eventos globais. O irônico é que, como nos contou Celi Abdoral, este know-how já havia sido testado – choque-se! – durante a organização do Fórum Social Mundial em 2009, em pleno delta do Amazonas, quando em preparação para a realização do evento de onde se quer anunciar que “outro mundo é possível” , uma série de detenções arbitrárias ou o que Celi chamou de “limpeza étnica” – foram realizadas nas periferias da capital do Grão-Pará. As ambições do novo esquema Brasil Império a um acento no Conselho de Segurança da ONU devem desencadear mais um ciclo de repressão ao movimento Cabano... para inglês ver, of course.

4) Belém (#1 - impressões vagas, provavelmente imprecisas, entre conversas esparsas)

Arranha-céus pós-modernos esvaziados: muito vidro e ar-conditioning. Lavagem de grana via produção do espaço urbano desprovido de uso social, periferia em expansão, pirataria estrutural e muita pasta-química e violência policial para manter o povo em estado de confinamento. E a elite do Grão-Pará permanece no comando das terras férteis de Marajó.

5) Belém (#2):

Nada como chegar ou partir do aeroporto de Belém durante o dia, sobrevoar a cidade, e ver os rios, canais de água e o mato fundo.

6) Economia-política do enclave (Santarém):

Ao lado de Santarém existe Fordlândia - antiga plantation industrial de borracha, cidade moderna incrustada nas margens do Tapajós, que operava como um enclave extrativista dentro da cadeia global fordista. Hoje “abandonada”, resta-nos a memória, que espelha-se do outro lado do Atlântico, na África, onde o Sr. Firestone fundou Harbel, cidade gêmea de Fordlândia, mas que ao contrário de sua irmã brasileira, vingou gente grande, e até hoje perpetua o esquema neo-colonial plantation na Libéria (não vou nem enumerar a série de violações de direitos humanos registrados por aí...). O Haiti é aqui porque antes de ser Haiti, como nossa comarca, era África, e todos nós fomos colocados numa posição subalterna dentro da divisão territorial do trabalho: produzir commodities, eternas fontes de acumulação primitiva no esquema mercado-mundo, destinados a se perpetuar como exportadores de matéria prima e consumidores de tecnologia. Outrora exportávamos o caucho para produzir os pneus Firestones que equipavam os carros da Ford Motors que, depois, importávamos. Hoje minérios, seja das minas do complexo Trombetas ou Carajás, que equipam os tablets, lap-tops e smartphones que retornam via nossos im-portos, ou os one-lap-top-per-child doados pelas grandes potências ou magnatas filantrópicos e respectivos programas de inclusão digital. (questão: como pensar inclusão digital dentro de um esquema que considere a divisão global da produção de tecnologia?) (questão: pensando com Felipe Fonseca: por uma cartografia materialista das digito-técnicas, mapeando todos os materiais que compõe os circuitos eletrônicos, placas e memory-cards de nossos computadores e seus respectivos – e prováveis – lugares de produção: ouro, por exemplo, vem da Amazônia Peruana ou das minas do Congo? Lítio e as novas minas da Bolívia? Terras-raras e trabalho forçado na China ou as novas fronteiras minerais no Afeganistão? O que tal mapa nos contaria sobre nossos gadgets eletrônicos e a ruptura da divisão digital global?) E claro, soja, exportamos muita soja para criar as divisas de nosso projeto bolha-Brasil. Ao lado de Fordlândia, está Belterra, cidade similar que Henry Ford mandou construir alguns km’s ao norte, quando percebeu que as coisas iam dar com os burros n’água em sua primeira utopia industrial-disciplinar no coração da Amazônia. Getúlio Vargas visitou a cidade e ali encontrou um esquema econômico-espacial adequado ao seu projeto nacional-desenvolvimentista que, posteriormente, e guardadas devidas ressalvas,


7) Vivo

Protestos em Fordlândia, circa 1930: um carro Ford jogado às margens do Tapajós.

foi adotado inúmeras vezes no território Amazônico, ao ponto de, não acredito ser exagero afirmar, este esquema “enclave”, já presente em Fordlandia, ter constituído um esboço de projeto (econômico, territorial e, no limite, ideológico) no qual está fundamentado uma série de programas subsequentes que foram implementados na região. Que nos diga Lúcio Flávio Pinto, ou então, veja-se: Vila Serra do Navio (manganês), Jarí (celulose), Carajás (minério), e por ai vai... Hoje, Belterra, na sua paisagem sonolenta à americana, em seu bucolismo rural, oculta a reificação desta vocação histórica que foi (forçosamente) destinada à Amazônia: já não mais cercada por plantations de haveas brasiliense, mas por monocultivos de soja. Santarém é o nó terminal deste sistema produtivo de biomassa, verdadeiro enclave global de uma cadeia produtiva em escala mundo, cujo registro na paisagem são os terminais da transnacional Cargill junto ao velho e elegante porto, no final da BR163. Não se trata de mera coincidência o fato desta pequena cidade Amazônica ser um local dotado de infraestruturas de comunicação avançadas, regadas à fibra ótica e sistemas logísticos que devem operar em ritmo global – enclave territorial e digital. Mas se Fordlândia foi um esboço-modelo, há que se relembrar sua história de maneira integral, e daí tirar alguma lição: em 1930, trabalhadores rebelaram-se contra a dura disciplina imposta pelos técnicos da indústria, tocaram fogo nos galpões e destruíram o relógio que marcava o ritmo da fábrica. E jogaram um carro para afundar no Tapajós.

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#Vontade de Potência ≠ Vontade de Poder

7) Urbanização à Brasileira

A história de Fordlândia nos conta que, ao lado da cidade projetada, armou-se uma favela, na outra margem do Tapajós. Ali ficavam os bares, os bordéis, terreiros, as casas de jogos e de outros pecados, e toda a sorte de atividades que fazem parte da vida de qualquer cidade digna de ter o nome de cidade, mas que não cabiam no enclave-disciplinar imposto pelo esquema capitalista-puritano Fordista. E a história se repete: em Santarém, quando nos debruçamos sobre a cartografia da cidade com o pessoal do coletivo Puraqué, aprendemos que a grande periferia desta cidade cresceu durante a mesma época em que a Cargill e a economia da soja fortificava-se na região. História que nos é conhecida e que se repete em cada canto de nossa comarca pau-brasil, para não dizer em cada canto de nossa sub-América: o grande capital compra os pequenos sítios dos camponeses a preço de banana, formando novas plantations em grandes latifúndios. Elimina-se a produção de alimentos locais, e os camponeses e colonos, aqui também os índios, antes ricos, agora pobres, tornados sem terra, migram para a periferia das cidades, amontoando-se em bairros marginais desprovidos de água, energia elétrica e de tudo aquilo que o urbano deve oferecer. No mesmo dia em que chegamos à Santarém, um punhado de gente ocupava uma área ao longo da Avenida Fernando Guilhon. Aprendemos que, em troca de votos, políticos locais aceitam e legitimam ocupações semelhantes, e, ao mesmo tempo, liberam as áreas nobres à beira das praias para que os executivos das transnacionais que operam na região construam suas mansões no Caribe Amazônia. Ciclo perverso e recorrente que virou praticamente um padrão de cidade: urbanização à brasileira

Uma das coisas que mais impressiona na área de Santarém é a capacidade conectivo-digital implementada na cidade. Duas camadas parecem estar em operação: 1) dado a vocação de terminal global do circuito soja, parece lógico que o enclave-Santarém necessite de estrutura de comunicação e logística adequado ao tempo mundo ao qual está submetido (ver Milton Santos); 2) uma série de empreitadas voltadas à projetos de inclusão digital e práticas com novas mídias pipocam aqui e acolá. Grande parte deste investimento é capitaneado pela Vivo, conglomerado trans-nacional que desde 2010 é operado majoritariamente pela espanhola Telefônica. Aprendemos sobre um projeto que a companhia financia nas comunidades ribeirinhas do Tapajós: desenhou uma rede 3G na área e, para cada comunidade, oferece um smart-phone com 150 contos de crédito ao mês. Também aprendemos sobre 500 computadores que foram doados para uma área da cidade que mal conta com energia elétrica. E claro, aprendemos sobre nosso próprio papel dentro deste esquema, dado que nosso encontro é parte do que parece ser um programa de investimento gigante – tanto “pedagógico”, quanto infraestrutural, quanto de kapital – que a Vivo está implementando na região norte do Brasil. O que se anuncia, dado tal panorama, no meu entender é o seguinte: incluir digitalmente é preparar novos mercados de consumo ou subverter a própria lógica consumista no sistema new-media? Fio da navalha. Pode a ética hacker hackear o grande mecanismo coorporativo-estatal e manter certa autonomia política, apontando para novos futuros? ... o Puraqué nos diz que sim. (é preciso sempre pensar o pensamento e repensar a prática a cada rotação do planeta, à la chefe Mao).

8) 1989

“Quando o homem branco aqui chegou Trazendo a cruel destruição A felicidade sucumbiu Em nome da civilização Mas mãe natureza Revoltada com a invasão Os seus camaleões guerreiros Com seus raios justiceiros Os caraíbas expulsarão” 1983 - Como Era Verde o Meu Xingu “Mamãe eu quero Manaus Muamba, Zona Franca e Carnaval” 1984 - Mamãe eu quero Manaus “E a oca virou taba A taba virou metrópole Eis aqui e grande Tupinicópolis” 1987 - Tupinicópolis

Verdadeiro patrimônio imaterial da memória Cabana é o hardware de Arthur Leandro, que entoava a trilogia Amazônica da Mocidade Independente de Padre Miguel dos anos 80 enquanto conversávamos na orla de Santarém. Ao que Gisele Vasconcelos emendava -- “o pós-tropicalismo é samba enredo” -e isso não sai da minha cabeça. Porque para quem é filho da década de 80 -- ou da “década perdida” -como eu e tantos amigos, a memória dos anos 80 é algo a se refazer. Em 1989 a Rede Globo mostrava a novela “Vale Tudo”, anunciada por gritos estridentes da Gal Costa cantando Cazuza – “meu cartão de crédito é uma navalha”. A Inflação era rampante. Em 1989 Joãozinho Trinta entrou na Sapucaí com um Cristo Redentor coberto com uma manta negra -- porque a imagem de Cristo havia sido censurada pela justiça -- rodeado de mendigos, que carregavam todo o lixo – urubus e ratos – para fazer deles luxo, e a faixa sobre o peito de Jesus dizia: “mesmo censurado, orai por nós”. Os anos 80 foram um momento de abertura (lembrar Glauber Rocha) política e subjetiva, e a censura à Joãozinho era uma espécie de vestígio funesto do esquema militar-ditadura que, oxalá, iria sucumbir. Não foi o caso. Depois veio o esquema “combate aos marajás” e muita lambada tipo exportação, e o samba-enredo acabou que, em muitos lados, virou um negócio meio marketing. Só agora, após a ressaca neoliberal e certa inversão das regras (em escala Latino Americana) é que parece ser possível repensar a abertura político-subjetiva que ali se anunciava, e talvez re-considerar seu legado histórico. E portanto retomar Glauber, Joãozinho e a trilogia entoada por Arthur, que ao mesmo tempo que cantava a destruição da Amazônia, anunciava a revolta da “mãe natureza” – Pachamama – e a expulsão dos invasores. Isto é, cantava o colapso do esquema militar-desenvolvimentista no qual foi baseado a ocupação da Amazônia durante o regime militar até a “Nova República” e que, infelizmente, apesar do potencial, deu no que deu: continuidade-transitória para a era Collor, como outrora fora com a nossa independência feita pelo filho do Rei. Os anos 80 foram paradigmáticos não apenas porque testemunhamos a ordem bipolar da Guerra Fria desabar, mas porque novos atores apareceram em cena. Entre eles, e com toda a força como canta o samba, a Amazônia. Chico Mendes morreu assassinado em 1988, e em 1989 os índios Kayapó convocaram os engenheiros da Eletronorte e os representantes do governo Brasileiro para o Encontro de Altamira, e nesta ocasião, conseguiram suspender um empréstimo do FMI e bloquear o projeto da hidrelétrica Kararaô na Curva Grande do Xingu, projeto este que hoje o governo Lula-Dilma tenta retomar, agora com outro nome, Belo Monte. E o paradoxo se recoloca na encruzilhada Amazônia-Brasil. Mas os tempos não são mais os mesmos, pois memória que toca em samba é memória viva, e eis que a grande Tupinicópolis, nascida por volta desta mesma data, já não se curva mais tão facilmente. Chama Verequete.


10) Pedagogia Crítica / Cartografia Política:

Gisele Vasconcelos me contava o porquê tinha voltado para Boal, ao Teatro do Oprimido, como ponto de referência para que pudesse pensar novas articulações entre grupos, coletivos e pessoas no sistema arte-midia-tecnologia. Dois pontos: a ideia de democratização, via coletivização da performance; a ideia de transformação, via tomada de consciência através da performance coletiva. (e Boal articula, lembre-se, no contracorrente da ditadura, e, em certo sentido, como resultado dela, tal como emerge o sentido Amazônico no encontro de Altamira em 1989 ou com Chico Mendes no Acre). Me parece então que, pensando em mapas, a questão que nos cabe é: como trabalhar a ponte entre Paulo Freire, Augusto Boal e uma emergente cartografia política? Uma cartografia que inclua, necessariamente, uma dimensão pedagógica, pois só se conhece o território cartografando-o. E logo, a cartografia deve ser, por definição, uma prática:

9) Hackers e Peixes elétricos: Puraqué

Santarém é a Tupinicópolis. Logo na chegada, enquanto a rádio Muiraquitã estava sendo armada, Marcelo do Puraqué contavanos: “montamos o transmissor em Itaituba, aí colaram os federais para sondar o que estava acontecendo. Nós falamos que aquilo ali era um experimento, que estávamos estudando tecnologia”, algo assim, se bem me lembro. De fato, o que se aprende por ali no Puraqué -- o que eu aprendi -- e o que se produz ali, é tecnologia e conhecimento. Durante muito tempo a ideia hegemônica sobre a Amazônia era de que a floresta constituía um espaço “primitivo”, tecnologicamente atrasado, e que, portanto, era preciso levar o desenvolvimento até lá, penetrar seus rios e igarapés com novas tecnologias via nossos im-portos.

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#Vontade de Potência ≠ Vontade de Poder

Uma imagem, por exemplo, circulada na Revista Manchete de 1972, auge do regime militar e de seu projeto tecno-destrutivo para a floresta: um caminhão da IBM cruzando a Transamazônica anuncia uma mensagem clara: estamos penetrando os confins da floresta com as mais novas e desenvolvidas tecnologias. Hoje esse papo para boi dormir já não cola mais. Não cola porque, aprendemos que é da Amazônia que se origina um tipo de tecnologia nãobranca que, mais do que nossos formidáveis computadores, tornou-se essencial para nosso futuro – tecnologia arraigada em saberes ancestrais, memória coletiva que sustenta uma espécie de “política do comum” – ou, política do commons, como queiram. Tal política para qual o termo sustentabilidade é um referencial muito raso, fundamenta-se na estratégia de desejar apenas o que é suficiente – e não a abundancia insaciável do fetiche-mercadoria -, na construção cotidiana do que é coletivo -- e não da propriedade privada e do individuo -- no sumak kawsay, estéticapolítica do bem viver. O potencial, a meu ver – a lição que carrego desta imersão -- é que o coletivo Puraqué desdobra o que é conhecimento via modo de vida e saber tradicional com uma pegada rigorosa para as novas tecnologias. Verdadeira ecologia do futuro que mistura o digital e a terra, o saber primeiro e o os mais luminosos equipamentos da microeletrônica, o virtual e o material, como elementos contemporâneos e em simbiose. Ecologia semiótica, midiática, social e ambiental. Política é prática.

1) a ser democratizada (conversa com Pablo de Soto); 2) a tornar-se comum, permitindo uma espécie de tomada de consciência coletiva sobre o território, e portanto, transformadora. Pois mapas não são representações imagéticas de um território real, mas instrumentos de criação de territórios que trazem consigo projeções de espaços futuros e abrem caminho para intervenções no presente. Durante os anos 90 e lá vai cacetada, a ideologia liberal do livre fluxo de informações, sustentada pela NASDAQ, ficava nos dizendo que internet era coisa de “não-lugar”, presença virtual, todos em tudo quanto é canto e ao mesmo tempo em canto nenhum, desterritorialização e o escambau. Me parece que a questão política mais urgente, em se tratando de cartografia, seja reverter este discurso e fazer o mapa do acesso em dupla camada: acesso ao mundo das redes virtuais e do compartilhamento, e, do outro lado, acesso à cidade, direito ao ambiente e ao urbano - cidade como mídia - espaço comum.

PS: Em minhas incursões pela Amazônia sempre encontro alguma mulher cuja força me impressiona e inspira. Dois anos atrás foi Antônia Melo, liderança do movimento de defesa do Xingu, em Altamira. Este ano Dona Graça Gama, memória política Amazônida, em Santarém, a quem deixo um agradecimento pelo papo e dedico estas linhas tortas. Longas conversas, muito aprendizado, para sempre lembrar que a natureza-Amazônia é Pachamama-mulher: contra a falocracia do desenvolvimentismo macho-branco.


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[RMXTXTURA]

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Ilustração de Maécio Monteiro para o cartaz da festa “Party Belo Monster” cuja a renda era destinada à ida para o evento Xingu+23

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#Vontade de Potência ≠ Vontade de Poder

Vontade de Potência ≠ Vontade de Poder

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MIDAS

Armando Queiroz Depois de morto, roubaram-lhe a dentadura. Eis o nosso rei destronado, devolvido à sua solidão, fraco e pobre como o mais fraco e mais pobre dos seres. [Comentário sobre o personagem Boca de Ouro, da peça homônima de Nelson Rodrigues]

Miséria, hanseníase e abandono espreitam Serra Pelada quase trinta anos depois do início da febre do ouro. Restaram casebres abandonados, pessoas perambulando, quais mortos-vivos, numa cidade fantasma ao redor de um grande lago contaminado de mercúrio; o oco. Restaram velhos aposentados, mulheres e a prostituição infantil. O índice de HIV [Vírus da Imunodeficiência Humana] é altíssimo. O gigante ameaçador, percebido no clima tenso do local, está presente a todo o momento. O gigante quer terra, o gigante quer expulsão, o gigante tem papéis e advogados, o gigante tem anuência do poder decisório. O garimpeiro tem apenas uma amarfanhada carteirinha de autorização para exploração de minério e muita tristeza da sua atual situação. O garimpeiro tem, ao lado de si, muitas cooperativas, nem todas bem intencionadas. Muitos não deixam o local simplesmente por vergonha, não teriam condição de encarar seus familiares tantos anos depois, sem nada nas mãos. Regra geral ouvir que sairão sempre pior do que chegaram. Dos poucos que ainda exploram o minério, pouca ou nenhuma esperança. O olhar vago de um gaúcho à espera de um hipotético sócio — com dois meses de máquinas paradas — e de um também hipotético veio riquíssimo debaixo de poucos metros de rocha diz tudo.

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#Vontade de Potência ≠ Vontade de Poder

http://www.youtube.com/watch?v=HElemzBbFEM

Noventa mil homens, como insetos de uma gigante colônia a céu aberto, tiveram a capacidade de revolver inteiramente uma montanha! A montanha foi a Maomé! A montanha se curvou ao desejo e à cobiça. Cobiça, mãe-rainha desta colônia iracunda, deusa filicida. Rabos de dinheiro, viagens de tecoteco, em que o passageiro era apenas um chapéu prosaicamente esquecido. Mulheres, cachaça e muita coragem. “Bamburrar” foi para poucos; manter a fortuna, para pouquíssimos. Muita morte para que a montanha mantivesse suas vísceras à mostra. Reza a lenda que, em montanha que não é banhada por sangue, ouro não brota. Muita expectativa, pouca esperança. É comum a todos que vão à Serra Pelada perceber que aquele momento é um momento especial; algo de positivo irá acontecer brevemente; vã expectativa! Tudo retorna ao mesmo lugar: o lugar da espera, da desesperança. Como tatus cegos, que fuçam incessantemente a terra, esses homens não abandonam o sonho do ouro. Aquela cava submersa é ainda o jardim de rosas onde Midas acolheu o velho sátiro Sileno, mestre e pai de Ovídio. A morte paira na atmosfera de tudo. Por que fazer um vídeo de Serra Pelada e de seus mortosvivos? Reter suas dentaduras, suas bocarras? Por que gravar, aprisionar a ira de Baco vingativo? Esta bocaânus ancestral. Prazer e gozo. Lembrança de fezes e chocolate. Insetos e morte. Devoradora criatura que se deixa devorar sem fim, mãe-rainha deste golfento formigueiro. Por que aprisionar a ira do Baco ancestral? Uma ode aos primeiros vermes-insetos que irão comer nossas carnes frias. Seremos nós os garimpeiros cegos a fuçar a lama da cobiça? Onde estarão as rosas do jardim? Seremos nós o gigante ameaçador? Ou seremos todos o Midas eterno — orelhas de burro — em miséria, lepra e abandono?


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#Vontade de Potência ≠ Vontade de Poder


Amazônia é do Brasil ou é brasil? Amazônia terra de exploração? Pensamos que querem que sim. Ou melhor, que é assim, e sendo assim, do Brasil. Os planos de desenvolvimento são claros: a Amazônia como fronteira tropical fornecedora de matérias-primas para a região moderna do país. Somos colonizados, mas somos os revoltosos*. Como diria um de nós: fomos catequizados e traídos. Agora somos os traídores. Desertores na linha de fuga do vôo da bruxa, a partir da micro realidade individual-coletiva de Belém. Hidroelétricas, madeira, gado, soja. Exportação para fora ou para dentro, que no nosso ponto de vista também é fora. A relação metrópole colônia continua sendo reproduzida interna e externamente, regida pela balança econômica especulativa, pautada na histeria do superávit, que torna a realidade a sua própria ficção. Tentamos nesta cartografia um desvelamento, e se, com isso criamos uma outra ficção, ao menos criamos o embate, um contra discurso a hegemônica construção identitária imposta pelos meios de massa. O olho que tudo vê só enxerga o que quer, e a boca amplificada só reverbera o que lhe é interessante.Quando o corpo que geme não é o corpo que sente, inviabiliza-se uma autobiografia possível para a imposição de uma biografia cega, falseada, distorcida e tendenciosa... e seguem-se as devastações e as matanças.

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#Vontade de Potência ≠ Vontade de Poder

Com uma péssima receita de bolo, que começa desde os portugueses, passando pelos milicos e seus planos de desenvolvimento egoícos e megalomaníacos. Seja com o Radam que contribuiu muito mais para a escolha das melhores terras es suas tomada, legal ou ilegalmente, seja nas diversas hidroelétricas a serviço das multinacionais mineradoras. E é esse o plano de desenvolvimento para a Amazônia? Isso é o melhor para o Brasil? É melhor também pra Amazônia? Pensamos que não. Tais planejamentos são ora abstratos ora irresponsáveis. Os resíduos coletados denotam a história as avessas, avessa porque de dentro. Amazônidas falando do seu lugar, sobre o seu lugar, do micro-coletivo ao macrocosmo amazônida. Somos um bando e o mapa é o nosso manifesto! O progresso aqui não traz progresso, nem soluções. Traz doenças, mortes, conflitos de terra, desmatamento, inchaço populacional, alargamento dos bolsões de miséria, impunidade e pouco lucro. Pouco porque para poucos. As cifras são impressionantes, mas em que bolsos estão? Estamos sendo engolidos, estuprados, saqueados e ignorados! São motivos suficientes para o levante.

O mapazônia é antes de tudo uma materialização poética ou, para melhor dizer, poe(lí) tica, pois o discurso contido na forma não é alienígena a realidade de seus autores, pelo contrário, a realidade amazônica é nosso motivo, e no seus tentáculos orbitamos. Um mapa tenta descrever-narrar um espaço, espaço afetivo, físico, psicológico, visível e invisível. Propomos aqui uma narrativa cartográfica entrecortada de resíduos históricos, perspectivas políticas e processos poéticos para tentar abarcar as consequências estruturais, físicas e sociais de uma região desde sempre a serviço do mercado, um lugar preso ao mercantilismo colonial, escondido por de traz do discurso positivista do progresso. Como “todo”, tecemos uma macrovisão política da região confrontando os símbolos catastróficos do desenvolvimentismo com as formas de resistência nativas. Falamos o que a mídia de massa não fala. Contestamos a identidade a nós atribuída. O Mapazônia é um relato denúncia! O faz tanto na pesquisa histórica que materializa na linha do tempo as diversas etapas dessa construção progressista destruidora, quanto na dimensão imagética-gráfica, deflagrando os diversos pontos de tensão entre o colonizador e o colonizado, entre a busca da modernidade ocidental, onde todo o mundo é matéria-prima a ser explorada, e a cultura dos povos

da floresta, de integração e harmonia com a natureza. Na leitura do mapa, as empreiteiras, as mineradoras, os pólos madeireiros, as áreas de grilagem, e todas os sintomas do câncer que é para nós esse tal progresso. Planos de energia, planos de desenvolvimento x resistências humanas, graficamente ilustradas, em uma superfície sem sentido fixo, onde se pode entrar e sair por qualquer ponto, acompanhando a geopolítica caótica de um espaço de luta, e é justamente desse lugar de resistência que surge esse trabalho como contra-golpe aos maioranas e aos barbalhos, a Vale e seus empresários, Alcoa, Albras, Icomi, Orsa, Cargill, Eletronorte e seus políticos comprados, a morte de Chico Mendes e o massacre em Eldorado. Há pedaços da história que não podem ser apagados, o relato, a denúncia, o resgate são nossas trincheiras poelíticas. Eis uma outra história possível da amazônia hoje, a quem interessar possa... Texto-Manifesto Escrito por

Hugo Nascimento e Luah Sampaio


UHE Belo Monte - Mau me Quer! Fundação Lucia Gomes, 2011

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Descolonizar Tatiana Wells

Tendo como sul nossa mutante história de saque e re-significações - em enxames de caravelas, cruzes, minérios, pecuária, patriarcado, escravidão -, a nova geografia de nosso continente se redesenha, para dentro de si mesma; troca de pele neste ano da serpente. Aos poucos, acordamos do pesado sono, sendo outras. Assim, entre dois mundos, negamos os valores da vida humana como parâmetro único, mesmo que se aparentem como novos, hi-tech e ecológicos; no entanto, cada vez mais dispendiosos energeticamente, intrusivos e mortíferos; tubos de petróleo entupindo as artérias da terra; cimento, as das águas; quilômetros a dentro da superfície terrestre, no coração da selva, no horizonte - um dia guia - do pescador. Como as águas que desgelam dos Andes com força total, desconhecendo fronteiras, baixando por entre vulcões e planícies, criando a Amazônia continental, então capturada em sua potência natural para abrigar a mais nova fonte alimentadora dos caprichos artificiais das cidades maravilhas - hidrelétrica, moeda de câmbio climático. Já as capitais orientadas aos estranhos e familiares (patriarcais, severos, bélicos) desejos do entretenimento comercial global, em mais uma etapa de expulsão daqueles já desterritorializados. Êxodo e genocídio por todo lugar, da espécie humana, animal e vegetal. Belo Monte e Copa do Mundo - irmãos bastardos da nossa ignorância, de nossa despossessão de saberes e fazeres ancestrais, tudo o que havia antes do capitalismo, da colonização, sob o mesmo modelo desenvolvimentista-atodo-custo. Patrimônio genético, cultural, saúde e modelos conjurados junto com os habitantes locais, simplesmente descartados. As possíveis ferramentas de nossa descolonização estão não somente em resistir, barrar, frear os processos ditos como inescapáveis, mas também, paralelamente, reconstruir todas as categorias em que nossa racionalidade foi edificada, nossa identidade pseudo burguesa, nascida de estupro, que imita, de forma ridícula, sua ex-colônia, traumatizada, oprimindo.

Nossa identidade vira-lata nos permite operar nesse campo das ciências menores, experimentais, e o passo atrás é o mais importante. Todas as comunidades tiveram que traduzir - a dizer, reduzir, homogeneizar, generalizar - seus valores em mercadorias e isolá-las de sua esfera de produção e sua esfera de desejo. A cultura trazida em livros que nunca lemos foi nos dividindo entre mundo interior e mundo exterior; separando consciência (ou conhecimento) e crença; expulsando, com esse mesmo gesto, todos os corpos e todas as forças que povoavam esses mundos. Encontramo-nos agora entre o desejo e a necessidade desse devir outro, ao nos sentir antecedidos. Nossa história sendo bricolada, antropofagizamos, tropicalizamos, metareciclamos, digitofagizamos, no sentido de nunca nos tornarmos fixos, provocando sempre um fluxo necessário ao movimento e à mudança. Tanto nossa ancestralidade quanto nosso futuro imaginário estão aqui, agora, entre nós, em nossos re-enraizamentos. Juntamo-nos às pessoas de cor, imigrantes, mulheres, todas as pessoas cujas experiências de vida, memórias, línguas e categorias de pensamento foram substituídas por outras. Como a permacultura latina - resgate dos conhecimentos ameríndios, tecnologias ancestrais, apropriadas; novas cartografias afetivas, na necessária reconstrução das nossas histórias locais, novas peles e traçados; redes vivas de colaboração, que fomentam a troca como as comunidades de softwares livres, sementes nativas, mingas, mutirões, encontros para a troca de conhecimentos e reconhecimento de lutas; marchas, mobilizações populares. Essa é a nossa corpopolítica, uma sensibilidade fronteiriça, em desobediência epistêmica, desprendendo-se das teorias e fazeres do mundo que se apresenta como “moderno”. Aos projetos de aceleração do crescimento, rainha dos olhos da súdita-capitã de nossa nação atual, dizemos e agimos em nossas micropolíticas: não, não queremos. É com terra, sementes, espiritualidade, arte, bicimáquinas e linux que regressamos ao nosso continente. Não há uma opção digna que não contenha simultaneamente a liberdade e o decrescer.

somos todos índixs*, mestiços, não há o que temer, apenas a nossa omissão 56

#Vontade de Potência ≠ Vontade de Poder

http://iconoclasistas.com.ar/

* o X utilizado representa a multiplicidade de gêneros


Laboratório de cartografias insurgentes

O lab de cartografias se deu num momento de reconhecimento de iniciativas que giravam em torno do mesmo tema: megaeventos, megaprojetos, remoções ocorrendo por conta da Copa do Mundo de 2014 e Olimpíadas em 2016, no Rio de Janeiro, re-desenhos do espaço urbano, militarização, respectivas resistências. Paralelo ao encontro no Rio, oficinas de cartografia se deram em Medellin, por ocasião do primeiro encontro Labsurlab, e em Belém e Santarém, junto à iniciativa Hacklab, todas, de certa forma, relacionadas já há algumas pessoas e coletivos que traziam suas experiências de um encontro a outro, fortalecendo um sentimento de rede e experimentação. À época do laboratório (setembro de 2011), a cidade passava por uma série de derrotas, com as reintegrações de posse, de ocupações de moradia, e culturais (squats), como os Guerreiros Urbanos e Flor do Asfalto; enfrentava ainda a destruição de casas, como em Estradinha, e a total eliminação de comunidades, como Vila Harmonia, na zona oeste do Rio de Janeiro. Processos de resistência foram engendrados por toda a cidade, com reuniões semanais para acompanhamento dos processos de remoção, como o conselho popular, que recebe dezenas de pessoas que vêm procurar orientação para levar às suas comunidades, quando suas casas são pichadas pela Secretaria Municipal de Habitação – SMH, ou quando são somente informadas que terão de deixá-las (lugares que vivem por mais de 40, 50, 80 anos de forma autônoma); ou ainda como o comitê da Copa, que monitora, principalmente, a área central da cidade, onde se pretende que ocorra a maior das transformações; é como ocorre em outras cidades que sediarão a Copa do Mundo. A iniciativa do encontro surgiu desde um espaço chamado ip://, que, à época, ocupava uma casa no Morro da Conceição, uma mistura de mídia lab, okupa e lugar de oficinas livres relacionadas, principalmente, a tecnologias livres, arte e comunicação. Por um mês, foram conjurados encontros abertos, em que os temas cartografia e remoções foram discutidos exaustivamente com um coletivo organizador, formado por uma média de 10 a 30 pessoas. Durante o encontro, além da exposição das resistências em curso e das plataformas de trabalho colaborativas; do planejamento de ações de mídia tática e exibição de filmes relacionados ao tema; de oficinas por Skype, com o coletivo Iconoclasistas, e outras sobre redes livres; comida viva, cartografia com softwares livres e balões; uma agenda de trabalho conjunto foi traçada até o ano de 2014 (pelo menos, visto que o que acontece é só o princípio do que está por vir). Algumas das iniciativas que se agruparam durante o encontro, que surgiram logo antes, durante ou logo após (influenciadas) pelo encontro:

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#Vontade de Potência ≠ Vontade de Poder

cidade olimpica - http://cidadeolimpica.info (sítio paródia do original .com) deriva maravilha (caminhada pela cidade do rio observando os processos de re-configuração geográfica totalitária em curso) cartografia vila autódromo (cartografia feita com crianças da comunidade) reconstrução estradinha ja (campanha de reconstrução da comunidade junto a arquitetos e locais) olimpicleaks - http://olimpicleaks.midiatatica.info (sitio com informações oficiais - cartas de desoejo, tabela de indenizações, relatos, procesoss judiciários - a respeito das remoções) rio 40 kaos - http://rio40caos.com (sitio de midia tatica sobre a questao das remoções entre outros processos de “desenvolvimento” da cidade) rio toxico - http://riotoxico.hotglue.me (caminhada pelos pontos de tensão ecológica como minerdoras etc na cidade durante a rio+20) distopia - (filme sobre a questão das remoções no rio de janeiro) fronteiras imaginarias culturais (sitio experimental de cartografias afetivas) rio diagnostico (análise cultural e política dos processos em curso atualmente na cidade feita pelo coletivo colombiano antena mutante que possui experiências similares em seu local de origem) pela moradia - http://pelamoradia.wordpress.com (sitio sobre a questão da moradia no brasil) comite popular da copa e olimpiadas (comitê organizador de encontros semanais e ações com pessoas afetadas pelos processos de remoções na zona portuária do rio de janeiro) conselho popular - http://conselhopopular. wordpress.com (comitê organizador de encontros semanais e ações com pessoas afetadas pelos processos de remoções no rio de janeiro) ocupa rio - http://ocupa-rio.org (ação quase que simultânea ao lab que se beneficiou das pessoas e ações já engendradas para o encontro) dia de saturno - http:// (festa de despedida do ip:// em que o tema das remoções novamente foi pauta já que atingia o próprio coletivo) mnlm (movimento nacional de luta pela moradia) Logo após o lab de cartografias, o espaço ip://, que havia recém planejado ocupar o galpão para o encontro e pretendia manter o espaço aberto para atividades, foi tomado por pressões oriundas da especulação imobiliária no Morro da Conceição, muito provavelmente por ter sido, justamente, o espaço aglutinador de iniciativas afins ao tema remoção, sendo, assim, mais uma de suas vítimas.

Sobre o Laboratório de Cartografias Insurgentes Geo Abreu

Cartografia: carta + -o- + -grafia, proveniente por inflexão do francês. cartographie (1832 sob a f. chartographie) 'id.', (1838 sob a forma cartographie) 'id.', de carte (t. de geografia) + -graphie; Insurgente: do latim insúrgens,éntis, particípio presente de insurgère 'levantar-se sobre, elevar-se';

Enquanto o verbete 'cartografia' está cada dia mais em voga, a palavra 'insurgência', tão distante do uso coloquial, parece ter sido redescoberta. No Rio de Janeiro, a emergência de uma nova forma de governança global das cidades aportou massacrante, passando por remoções forçadas, reconfiguração do espaço da cidade, e nenhuma consulta popular a respeito dos novos fluxos de pessoas, valores e idéias. Esta é apenas uma mostra do que será o legado dos chamados megaeventos (copa 2014, olimpíadas 2016) à cidade maravilhosa. Em setembro de 2011 o Morro da Conceição, na Zona Portuária do Rio de Janeiro, abrigou um encontro para investigação de espaços de ruptura e desestabilização de significados. A idéia sugerida foi a da reunião de saberes em torno da criação de novos mapas críticos+afetivos que dessem conta não apenas das mudanças em curso, mas conseguissem expressar a potência verdadeiramente criativa da cidade, aquela sob a qual repousa seu fazer diário: a Megadinâmica dos Pobres.

Estratégias do desejo

Pesquisadores, participantes de movimentos sociais, a[r]tivistas, squatters, produtores culturais, comunicadores, trabalhadores autônomos, precários & simpatizantes formaram um grupo bastante heterogêneo cujas propostas e ações tiveram lugar em uma semana de pré-laboratório e dois dias de encontro intensivo. Sob o guarda-chuva do coletivo IP://, representantes de coletivos como Acidade, Antena Mutante, Mídia Tática, Rio 40 Caos, Hackitetura e Universidade Nômade proporcionaram a construção de um espaço de convergência para a aproximação das propostas de cartografia com as comunidades e organizações que tratam do tema das remoções, assim como a aproximação das próprias organizações – a troca de expectativas, sonhos, desejos. O chamado pré-lab contou com atividades&oficinas tão variadas quanto a composição do encontro: cartografia com pipas; redes sociais livres; comida viva; uma deriva pela região do futuro 'porto-maravilha'; e bate-papos que se estendiam noite a fora, cobrindo vasto perímetro e saindo

da Rua Jogo da Bola, passando pela Pedra do Sal, Morro da Providência, Vila Autódromo, Quilombo do Campinho, Tabajaras, Lapa-Central, Cali, Gijón, Belém, Santarém, entre outros caminhos. No sábado, a apresentação de ferramentas como o FIC1, englobando os relatos de pessoas que já passaram pela experiência coletiva da criação de alguns dos mapas que compõem o projeto2, e o papo via web com os argentinos do Iconoclasistas3, foram os pontos altos do primeiro dia, lotando a casa. O domingo abriu com o mesmo sol generoso do dia anterior, e assim, foi publicamente lançado o Olimpi(c)leaks4, site que copila documentos oficiais, linkes, imagens e vídeos sobre o atual processo de remoções, com especial atenção ao caso carioca. A ideia é transformá-lo num espaço de divulgação e denúncia, mas também de contraposição de discursos, apresentando a situação de um lugar que a mídia corporativa não quer alcançar. No mais, o dia correu como previsto, com a formação de três grupos de trabalho cuja intenção seria ultrapassar o espaço-tempo do laboratório, amadurecendo as investigações: um grupo se ateve a dinâmica de transformação da Zona Portuária; um segundo focalizou as energias nas lutas em curso em duas comunidades - Vila Autódromo e Estradinha; e um terceiro propôs pensar a criação iconográfica mais adequada para composição dos mapas. Para fechar o encontro, o grupo Anarcofunk trouxe a vitalidade de suas letras e ritmo, selando assim a congregação geral e a criação de nós para desenvolvimento dos caminhos a seguir. 1 “A plataforma Web FIC - Fronteiras Imaginárias Culturais - visa ser uma base de dados de conteúdos agrupados por mapas, retratando aspectos culturais de diferentes comunidades e coletivos, através de registro multimídia. Os mapas cognitivos, também entendidos como mapas mentais, mapa êmicos, psicogeografia ou cartografia social e imaginativa, podem ser apreendidos como representações gráficas de conjuntos de representações discursivas, contudo acreditamos que os mapas cognitivos extrapolam o campo da representação e abrem o horizonte das possibilidades, criam uma forma de reapreender o mundo segundo o registro da criação.” Fonte: http://fronteirasimaginarias.org 2 http://fronteirasimaginarias.org/mapas

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http://iconoclasistas.com.ar/ http://olimpicleaks.midiatatica.info/


Occupy Laboratório

Mesmo com a força do encontro promovido pelo Lab de Cartografias, a composição e os espaços de investigação mantiveram-se restritos por questões demasiado humanas. No entanto, a despeito desse pequeno ponto de convergência fluminense, a conjuntura global confluiu para a criação de um espaço de discussões riquíssimo: o Movimento Occcupy5, fruto da ocupação de praças por movimentos multitudinários, deu a tônica ao debate político durante o ano de 2011. Neste contexto , o Rio de Janeiro viu florescer a Ocupação da Cinelândia, cujo caráter único e ao mesmo tempo múltiplo, intrigou e atraiu6 um grande número de pessoas e opiniões. A ocupação permanente do espaço da praça chegou a ter mais de 100 barracas, abrigando estudantes, discussões, moradores de rua, leituras, aulas, atividades e assembléias públicas pensando a construção de novos espaços de representatividade e participação política. O Laboratório de Cartografias Insurgentes esteve presente e acompanhou de perto a autoformação deste monstro. A carne da multidão mostrando com toda a potência que “embaixo da pele, o corpo é uma máquina a ferver”. O também chamado Ocupario durou pouco mais de um mês no tempo-do-capital7, mas ainda reverbera no tempo-do-desejo e em iniciativas como o Ocupa Teoria8, grupo surgido na acampada e que tem organizado ciclos de discussões horizontais sobre temas como propriedade, identidade, representatividade e variações sobre o conceito de comum, intentando a ocupação temporária das praças a cada final de ciclo, levando as discussões até as pessoas e levando as pessoas até a discussão. Em dezessete de dezembro passado comemorou-se com intensa programação – mesmo sem as barracas, removidas duas semanas antes um ano que na cidade de Sidi Bouzid, Tunísia, Tarek Bin Tayeb Bouazizi, mais conhecido como Mohamed Bouazizi, um jovem ambulante de 27 anos, saiu para o trabalho e combinou com seu tio e padrasto que fosse buscá-lo às 11h para irem juntos rezar. No decorrer da manhã Mohamed ficou furioso porque confiscaram sua mercadoria. Ele foi 3 vezes a prefeitura, reclamou, chorou, mas ninguém o ouviu, ninguém quis ajudá-lo. Ele não sabia o que fazer. A única coisa que ele queria era que lhe devolvessem as frutas, mas Fayda Hamdi, a fiscal que o atendeu disse que as tinha dado a uma entidade de caridade e não podia fazer nada por ele. Dizem que foi nesse momento que ela lhe deu um tapa na cara. Em frente à prefeitura, Mohamed subiu no seu carro de frutas, com um líquido na mão, provavelmente gasolina, derramou5

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http://en.wikipedia.org/wiki/Occupy_movement

http://www.quadradodosloucos.com.br/2064/ocupario-e-muitos/

7 http://www.quadradodosloucos.com.br/2136/ummes-de-ocupario/ 8 60

http://ocupateoria.wordpress.com/

#Vontade de Potência ≠ Vontade de Poder

o na cabeça e ateou fogo. Um amigo tentou contê-lo antes, mas ele dizia: "Não se envolva. Respeite-me." Depois desse episódio as praças da Tunísia foram ocupadas e logo depois as praças de todo o mundo também. É com essa energia que um chamado global está sendo feito para a reocupação das praças em doze de maio. Que a globalidade das lutas siga se corporificando. E continue, e continue... com>

De: Naldinho Motoboy <naldinhomotoboy@gmail.

Data: 22 de novembro de 2011 12:09 Assunto: Re: Fwd: Festival CulturaDigital.Br - LAB - Cartografia Experimental Para: Laboratório Experimental - FCDBR <labx-cdbr@ googlegroups.com> Cc: tai.revelles@gmail.com, tati.xx@gmail. com, saraguchoa@gmail.com, mramaciel@gmail.com, cinthiamendonca@gmail.com, victor.ribeiro@gmail.com E ae galera, beleza? Eu sou Naldo Silva (aka Naldinho Motoboy), nasci numa antiga vila de pescadores que hoje, por cauda dos mega empreendimentos cariocas, corre risco de remoção. a vila fica à beira da lagoa Jacarepaguá, zona oeste do Rio de Janeiro. Mas eu agora vivo no centrão do Rio. Ganho a vida como motoboy de dia e camelô de noite. Tô fazendo supletivo e tô muito afim de entrar para a universidade. Gosto bastante de internet e nesses últimos anos, trabalhando nas ruas, aprendi muito. Tô na batalha! Colaboro com o projeto Olimpicleaks, Cartografias Insurgentes e ainda com outras iniciativas de mídia, arte e ativismo. Eu conheci a galera do ipê vendendo cerva na rua. troquei uma ideia, gostei da parada e tô colando lá! Tô amarradão colaborando, tamo fazendo altas reflexões ae do que tá acontecendo agora com a vida da gente nessa cidade loka. Nessa época ae que conheci a galera, um dia eu sonhei que sequestrava um caveirão. Acordei com um paradão na porta da minha casa e resolvi bate lá. Não tinha ninguém, entrei dentro e saí pra dar um rolé. Fui pra zona sul, Copacabana, Ipanema, Leblon, céu azulão, praia, curtição. E a galera? nem preciso dize, né? tinha gente desmaiando, gente apontando, tirando foto e achando graça, gente telefonando pro governador! pena que foi só um sonho... Mas é com essa sensação de tá dirigindo um caveirão na zona sul que eu me sinto toda vez que posso fazer alguma coisa irada contra essa merda de vida que oprime a gente e que quer que a gente seja escravo dela. Eu quero uma vida livre, digna e sem medo, eu não quero ser escravo de ninguém, por isso, devez em quando, dirijo um caveirão na zona sul... Mas eu tô colando aqui pra fazê uma proposta, valeu? Fico afim demostrar pra vcs a cidade em transformação. Meio que esse é um dostemas do Cartografias Insurgentes, tá ligado? a cidade e suastranformações, os impactos sofridos por causa dessa estória deMegaeventos e tal...Sugiro ae pra todo mundo poder ver mermo de perto um pouquinho de comoestá as coisas e também pra galera poder experimentar, dou a ideia da gente faze uma deriva que vai do MAM até o Morro da Conceição onde fica a casa do Ipê. Durante essa caminhada vamos falando das coisas que interessam. chegando lá no ipê teremos uma surpresa pra vcs! vai ser irado!!! a gente sai do Mam, atravessa a passarela e sai na praça 4 de julho. dalí seguimos pra cinelândia, depois praça mauá e depois morro da conceição. esse trajeto ae tem 2,5 km e deve dar 30min de caminhada. devagar, batendo papo a gente faz em 1h, no máximo. No meio do caminho vou vendendo uma cerva gelada, vou na minha bike com o isopôr cheião! chegando lá no ipê, vcs vão ver a surpresa irada que vamos preparar pra vocês com muito carinho. É porque sem amor essa vida não é nada! Bem, é isso aê! E ae o que vcs acham? Por favor, galera, colabora ae na construção dessa deriva e qualquer coisa meus companheiros vão complementar ae aquilo que eu não me liguei, valeu? um abração! Naldo.


OUTRO RELATO PARA O IPE Faz quase um ano desde que me senti atraída pelas cartografias, espelhismos transformadores de representações, coletivos, consensual e dissidentes, uma rede que se traça desde as memórias até os futuros de ação... Toda uma atração cativante que uma antropóloga, com interesse nas narrativas, não pode evitar, justamente quando se trata de uma possibilidade que já estava procurando em Cali, a cidade onde se constrói meu olhar enraizado. Cali, cidade sub-dimensionada, alegre, salsera, gostosa e completamente desigual. Um 80% de pobreza com avenidas que dividem cidades irreconciliáveis. Violência na Calicalentura, muito quente. Subverter as representações de identidades acabadas, perfeitamente autocomplacentes com as lógicas do turismo, políticas de desenvolvimento e investimento estrangeiro e poder conceber ações estratégicas para complementar isso era um dos meus maiores anseios. Faz quase um ano desde que comecei a enfitar um rizoma que só tinha que misturar os desejos diversos, já acumulados pelos anos, e essa enorme vontade de re-conhecer o país vizinho, o Brasil.

A PRIMEIRA SEMENTE COLABORATIVA Dentro das redes de colaboração e cumplicidade, nasceu a primeira semente da minha residência não oficial no ipê; no encontro de laboratórios do sul, Labsurlab, em Medellín, Colômbia, em abril de 2011. Atraída por algumas experiências, como fadaiat, entre outras, Oskar e eu nos inscrevemos na oficina de videocartografia metropolitana - novamente a cartografia como ponte, uma conexão. Ali mesmo consegui falar pela primeira vez em portunhol com a Tati Wells e o Ricardo Brazileiro. Sim, visualizei a possibilidade de conectar os nodos. Lembro desse email, que escrevi pra eles, inspirado no texto construído coletivamente depois do Lsl; “Há muito pra fazer sobre o que vocês chamam de tecnoxamanismo digitofágico e considero que aqui em Cali, pelo menos, podemos traçar alguns caminhos conjuntamente.” A resposta chegou com o convite pra participar no laboratório de cartografías insurgentes. Minha residência não ia ser como as outras; eu não fui chamada por ter experiências ou reconhecimentos acumulados. Nesse sentido, foi uma residência não oficial, com uma vontade clara: aprender e compartilhar. Assim foi se fiando o caminho da semente como manifestação das possíveis convergências do sul.

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#Vontade de Potência ≠ Vontade de Poder

PENSAR ESPACIALMENTE É REFLETIR SOBRE A MORADIA. DESCOLONIZAR NOSSAS PRÁTICAS. O ipê me foi apresentado como um espaço nômade. O ipê, germinação de outros sonhos. A casita mostrava seus anos bem levados nas paredes e no chão (um chão bem frágil!). A casa 24, da rua Jogo da Bola, Morro da Conceição, na zona portuária, foi a maior interface de aprendizagem no Rio. Quando eu cheguei, estava se cozinhando o que ia ser o laboratório de cartografias insurgentes e fui me inserindo nesse ambiente tão cálido; sorrisos no rosto e muita cadência ao falar; disposição na convergência em meio das mudanças da “cidade maravilhosa”. Mas... foi assim mesmo? Eu quero compartilhar minha observação desde o sentir, e desde a moradia de setembro até novembro de 2011, para contribuir na reflexão sobre nossas práticas colaborativas. Achei muito interessante a convocatória; experiências tão ricas e diversas; tantas vozes e caminhos andados dentro das possíveis linhas de fuga. Mas o lab não conseguiu (nesse momento específico) convergir as diferentes dinâmicas que percebi um pouco atomizadas. Os espaços de experimentação foram substituídos por uma sequência de apresentações sobre o que poderia ser a melhor experiência cartográfica. Por que isso acontece?

O encontro foi chamado de laboratório de cartografias insurgentes. A insurgência é uma dessas palavras cativantes, mas, quando está esvaziada de problematização, termina por reproduzir aquilo que tenta combater e se torna pouco coerente na prática. Acho que a insurgência vem de dentro, das práticas cotidianas, das micropolíticas que compõem o espectro de possíveis ações a nos juntar contra essa máquina de guerra e desapropriação que é o projeto Cidade Olímpica. Especificamente e com as exceções respectivas, a sensação dentro do evento foi de um afastamento das iniciativas dentro de poucas mãos que nesse momento, e como piada, senti como egos insurgentes. De repente, achei que algumas formas reconhecidas de fazer e tanta certeza sobre as ferramentas e sobre a tática insubmissa, às vezes, impossibilita a criação coletiva. O lugar incômodo e libertário é esse que tá todo o tempo se perguntando; não fica tranquilo. Encontrar e reproduzir as mesmas perguntas sem olhar além de seus próprios passos (inclusive se nossos contextos se refletem), não contribui a convergir nas diferenças para se transformar. Com certeza, o laboratório é um processo lento... “vamos lento, porque vamos lejos”, e os caminhos que conectam realidades globais continuam se reconhecendo dentro dessas vozes e rostos irmãos. Assim, as tentativas de desconstrução desses abusos disfarçados de maravilhas podem ser alimentadas e reforçadas em outros contextos, e contribui para melhor repensar as táticas colaborativas. A vivência mais profunda, a moradia foi quem me mostrou o caminho de descolonização. A casita estava cada dia mais perigosa lá em cima e o Tuninho

E ASSIM...CALI CHAMANDO

Eu quis sair de casa pra morar um tempo no Brasil. Eu queria tanto, que ainda tinha que voltar na minha cidade pra compreender algumas lógicas deslocalizadas, algumas contradições... sim, bem refletidas em outros contextos com ritmos e cadências diferentes. Nessa moradia, senti chegar a onda dos movimentos occupy na cidade; muita gente se encontrando nas praças e ruas. Assim mesmo, eu olhava todo o tempo pra Colômbia, que tinha aberto seu processo de mobilização pela educação; muitas ações de alegre rebeldia florescendo. Quando voltei em Cali, percebi a moradia refletida pela galera do baobá voador, uma descolonização efetiva desde o cotidiano, com permacultura e mais proximidade com a comunidade do bairro. Também continuei seguindo o processo contínuo das cartografias táticas, as múltiplas possibilidades de subversão dos megaeventos no Rio. Nesse momento, senti a fortaleza de algumas conexões latentes, que continuam até hoje, sensações e formas de interagir aqui e ali, um terreno fértil pra futuros encontros.

e o Peixe, que estavam tentando consertar isso que os anos tinham roído tanto, foram meus melhores parceiros lá na casa, desde o almoço até falar sobre o que constituem as diferenças entre os vizinhos países; foi sempre a ponte de convívio, de intercâmbio constante. Em um nível mais geral, o morro está no centro do projeto Porto Maravilha, que consegui conhecer pela deriva maravilha feita dentro do prelab (assim mesmo foi com Vila Autódromo e Tabajaras, núcleos de resistência territorial). Essa iniciativa faz parte dos grandes megaprojetos que têm, no centro, uma contradição muito grande: se apresentam com benefícios incrivelmente exagerados nas mídias e têm nomes muito lindos (como é o caso do projeto de revitalização do centro de Cali, “Ciudad Paraíso”), Paraíso, Maravilha, Transcarioca... grandes contrastes com o fato inevitável de remoção e aniquilação das opções de permanência, e um aumento da precariedade numa cidade tão grande, tão rica e tão pobre. Como a casita estava sendo reformada e tinha muito pó todo o tempo, os outros residentes ficaram doentes. Morei sozinha ali mesmo, onde estava reforçando minha afetividade com um lugar que tanto clamava convívio e ações conjuntas. A galera do anarcofunk começou a chegar com as possibilidades de ocupação. Um dos melhores momentos de discussão dentro do ipê, pra mim, foi precisamente a questão da ocupação como reflexão íntima da situação geral compartilhada na cidade. A casa caindo em pedaços exigia repensar as formas de morar e resistir desde o cotidiano.

OUTRA VOLTA AO SUL

Hoje novamente posso tentar fiar alguns pontos nessa rede da qual faço parte, uma rede tecida por eventos, processos dentro e fora do Brasil, pessoas, contextos, apropriações, ferramentas livres e táticas. Há pouco, novamente no labsurlab, em Quito, senti um pouco encontrar isso que eu estava procurando quando quis sair correndo para o vizinho país; compartilhar das formas de ação, cada contexto, cada forma de se encontrar e colaborar, as cumplicidades do sul para o sul. Em cada região, continuam se refletindo e se juntando cumplicidades, recolhemos as experiências similares com as bicicletas, os festivais de troca troca, as hortas se expandindo, projeções de filmes, as reflexões e ações nas ruas. Continuamos cartografiando nuestros territorios, pero nos encontramos para hacerle el quiebre a este sistema, comprendemos así que las magias invisibles siguen orbitando señales de resistencia y rebeldía. La red, como la semilla se expande. Que se sigan expandiendo más encuentros en el sur!


Rio Distópico. Controle e segregação no arquipélago carcerário. Coletivo Antena Mutante

Este texto faz uma série de reflexões sobre nossa experiência no Rio de Janeiro, a cidade em que estivemos percorrendo durante quase um mês e meio. Queremos mostrar-lhes como nos situamos em uma grande e complexa urbe com o fim de estabelecer uma série de conexões que nos permitiram analisar o que acontece na cidade, o projeto transformação urbana abrigada na cidade global. Realizaremos isto jogando com a idéia de arquipélago e os enclaves. Concentrando-nos no caso da zona portuária do Rio de Janeiro que está sendo revitalizada em função do megaprojeto Porto Maravilha. Aproximando-nos à idéia de arquipélago queremos trabalhar para compreender como são as dinâmicas de uma cidade global, desenhada em função da indústria do turismo. Local onde implementam-se alguns fortes dispositivos de regulação, instaurando um controle social, onde tudo o que acontece deve ser aceito como algo necessário. Começaremos, então, nossa deriva pelo Rio Distópico. Estar contra as purificações, as reproduções do disciplinamento e uma arquitetura obsidional entre guetos, prisões e fortalezas, deixar emergir o nomadismo, movimento, a diversidade que faz a diferença, é o que nos motiva. Romper com a simbiose da cidade como uma prisão ou das partes da cidade como prisão. Vera Malaguti

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#Vontade de Potência ≠ Vontade de Poder

A deriva pelo centro e pela zona sul do Rio de Janeiro. Caminhando pelas ruas do Rio de Janeiro, nos encontramos desprevenidamente com uma cidade bonita, onde misturam-se praias, cultura, natureza e uma grande cidade com marcantes contrastes dentro dela. Permitindo-nos experimentar a cidade vertical que se confunde com os morros, lugar onde localizam-se as famosas favelas. Pouco a pouco vamos experimentando diferentes situações que vão provocando um distanciamento desta cidade bonita e deslumbrante. Sobretudo porque fomos convidados a um encontro de cartografias insurgentes para apresentar uma proposta de mapeamento sobre as problemáticas da cidade do Rio de Janeiro, com relação aos problemas pontuais de desalojos e remoções dentro do contexto dos megaeventos transnacionais a realizar-se na cidade. Referindo-se sobretudo ao mundial de futebol e às olimpíadas. O Rio de Janeiro é uma cidade de grande interesse para a indústria do turismo global, depois de ter entrado em decadência ao deixar de ser a capital do Brasil. Concentram-se em consolidá-la em uma cidade acolhedora para os turistas. Estes empreendimentos relacionam-se em função de mesclar atrativos turísticos com todo o imaginário em torno dos esportes, este primerio esforço já ocorreu nos Jogos Panamericanos de 2007, mas as tranformações urbanas que aconteceram não cumpriram as expectativas. “O Rio de janeiro é uma cidade em decadência, abandonada pelas instituições oficiais e dominada pelos interesses especulativos e a demagogia política. Um momento de brilho, que poderia ter sido gerado

para a celebração dos Jogos Panamericanoenclaves (2007), foi negado pela mediocridade e opacidade das obras realizadas, que além do mais, não geraram intervenções radicais na deteriorada estrutura urbana. É triste verificar que no início do século XXI apagaram-se as luzes do teatro da Cidade Maravilhosa”. (Segre, p. 34, 2008) Agora retorna o projeto, mas já com características globais e isto provoca as remoções e desalojos em busca do novo desenho de cidade que propõe-se como uma cidade global. Por cidade global poderiamos entender o seguinte, exposto por Saskia Sassen, a criadora do conceito: “ O enfoque dirige-se às práticas que constituem o que se entende por “globalização econômica” e “controle global”, ou seja, produzir e reproduzir a organização e a administração de um sistema de produção global e de um mercado global de capital, ambos marcados pela concentração econômica”. (p. 125, 2007). Vemos esta cidade focada na indústria do turismo e dos megaeventos. Neste contexto nos encontramos com uma sociedade mobilizada em torno destes aspectos com um tema que os atravessa desde as políticas públicas e é o da mudança. Que, por sua vez, é geral para o contexto Brasileiro.

atrativo turístico das cidades, tanto pela vista privilegiada que possuem, como pelas pessoas que as habitam e a cultura que elas produzem. Esta lógica de cidade global consiste no seguinte: “o capitalismo global tem de reestrutar a combinação entre a lógica do capital e a lógica territorial, via uma institucionalização do comando das redes e fluxos financeirizados montando um padrão ou regime de controle territorial sobre os homens e os objetos”.(idem, p.45)

Rio, a cidade Global. Controle e segregação.

Experiência na Zona Sul, Centro e Zona Portuária

Quando falamos do global devemos antes compreender sobre qual cidade estamos falando e vivendo. O Rio de Janeiro arrasta uma tradição escravocrata, a cidade tem tomado forma segregando socioespacialmente a seus habitantes, especialmente os descendentes de escravos africanos, um passado marcado por processos de resistência e dominação onde adquiriu a forma atual e as favelas emergiram desejando misturar-se com a cidade. Estes conflitos históricos deverão ser solucionados para chegada dos espectadores da cidade. Além disso, a Prefeitura tem a necessidade de dar acesso aos habitantes das Favelas à cidade planificada para que o Rio de Janeiro não se esfrie – com no caso do carnaval – requerendo gerar controle sobre os cidadãos e cidadãs tanto nas Favelas com na cidade planificada, para que encontrem-se em certos momentos nas ruas. “ O Rio de Janeiro deverá funcionar nos próximos 6 anos como território produtivo das práticas de controle e captura das dinâmicas e conflitos sociais, através de sistemas de ação e sistemas de objetos conduzidos por um capitalismo que precisa atualizar sua gestão do desenvolvimento desigual através da construção de inúmeras fronteiras nas cidades e entre os países.” (Cunca, p.2009,54) Neste contexto necessita-se entrar e controlar diretamente as Favelas, pois também fazem parte do

A marcha dos excluídos:

A poucos dias no Rio de janeiro participamos da contra marcha da independência (grito dos excluídos) que se realiza no 7 de setembro, onde o Estado do Rio de Janeiro exibe todo seu armamento e quem os operam. A contra marcha mobiliza algumas pessoas que saem às ruas para denunciar na paralela da avenida Presidente Vargas, onde se apresenta o desfile militar. Mobilizados sobre o tema de violação aos direitos humanos e direito à cidade. É ali aonde vemos emergir as grandes questões em torno à essa proposta de mudança e como tem afetado aos cidadãos: o tema das remoções, o tema do transporte, os agrotóxicos, a cidade policial, o tema do racismo, entre outras problemáticas.

Conseguimos experimentar a cidade em percusos desprevenidos que nos foram aparecendo em certos lugares de referência que marcaram o transcurso da experiência no Rio de janeiro. Em poucos dias conhecemos grande parte do centro histórico da cidade, duas Favelas – Rocinha e Santa Marta-, as praias do sul, o parque da Tijuca, a zona norte e algo de suas academias. Neste sentido quisemos conhecer os detalhes do projeto Rio40Caos que vinha trabalhando em torno do que acontecia na cidade, além de nos apresentar um contexto desde o qual conseguiamos ter uma perspectiva mas ampla dela, onde nos foi apresentada a mobilização da contra marcha chamada “grito dos excluídos” em 7 de Setembro. As fortalezas instaladas como projetos urbanos nos complexos, com no caso de Manguinhos, o bonito bairro de Santa Teresa, as mobilizações da Rádio Pulga – Rádio livre que teve seu transmissor apreendido pela policia dentro da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais -, o lugar de encontro dos nordestinos e muitas outras coisas. Neste contexto, sempre considerando o contexto de controle, o tema da cidade policial e da segregação socioespacial que se apresenta, mostrando-nos as situações em que se encontram o Complexo do Alemão e Manguinhos.


Cartografia Crítica. Arquipélago Carcerário. Cidade Policial e vigilância.

Preparando-nos para o encontro de cartografia que abordamos desde uma perspectiva crítica, gostaríamos de apresentar uma proposta e nos atrevemos a sugerir a idéia de compreender o Rio de Janeiro como um arquipélago de ilhas carcerárias; “uma coleção de cidades carcerárias, um arquipélago de <<cercos normatizados>> e espaços fortificados que atrincheram, tanto voluntaria como involuntariamente aos indivíduos e às comunidades em ilhas urbanas visíveis e não tão visíveis, supervisadas por formas reestruturadas de poder e autoridade pública e privada” (Soja, 2008:420). Esta hipótese de trabalho da cidade nos permitia compreender uma série de novas configurações territoriais impostas sobre a militarização e a vigilância, introduzindo as desconexões das problemáticas que lhes concernem a todos os habitantes da cidade, como as remoções e os desalojos. Também a consideramos importante porque pode-se indagar sobre o passado e entender como o Rio de Janeiro chegou a adquirir esta forma. O exemplo mais evidente é o que tem-se gerado em torno das UPPs – Unidade de Polícia Pacificadora – instaladas nas Favelas e o aumento da polícia militar fortemente armada por toda a cidade. “As políticas de segurança pública implementadas recentemente em distintas favelas da cidade do Rio de Janeiro fazem parte de projetos mais amplos de renovação urbana, visando preparar a cidade para a realização de importantes eventos internacionais, como a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016. Assim, desde dezembro de 2008, começaram a ser instaladas em favelas cariocas as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), uma forma de ocupação por um determinado contingente

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#Vontade de Potência ≠ Vontade de Poder

policial com a finalidade de garantir a segurança local e, sobretudo, o cessar da criminalidade violenta ligada ao tráfico de drogas nesses espaços”.(Vieira da Cunha, p. 371, 2011) Estas questões não eram muito distantes de nossas indagações sobre a Colômbia – especialmente Bogotá e Medellin -, e também com a referência que temos dos territórios Palestinos, que poderiam chegar a ser úteis em algum momento. “... aparece sempre como o questionamento básico das obras de urbanização propostas, os seus riscos e impactos bem como a sua relação com o conjunto de ações de ocupação policial que criam um quadro de alta complexidade, no qual são manejadas as mais variadas imagens, muitas das quais remetem aos modelos aplicados em Bogotá e Medellín”. (Cunca, p. 51, 2009) A cidade conta com um contingente de polícia militar muito grande, sistemas de intervenção nas Favelas como é o caso de Santa Marta, com o traçado de um muro e vários experimentos das UPP – Unidade de Polícia Pacificadora -, também encontraremos um sistema de transporte bastante segmentado como no caso do metrô que cobre do centro à zona sul da cidade. O arquipélago está sendo implementado pela Prefeitura, agrupando algumas Favelas em Complexos como o Alemão e Manguinhos. Também resguardando territórios como as praias do sul – Copacabana e Ipanema – e o enclave barra da Tijuca – a Miami Carioca -, iniciando processos de revitalização como o da zona portuária e a infraestrutura dos equipamentos olímpicos. Este processo isola as populações da Favela do mar e controla o acesso e circulação dos habitantes da cidade. Um ponto que gostaríamos de enfatizar é sobre como a estrutura social dominante se produz sobre uma série de desigualdades e segregações que ronda desde o passado da cidade.

“O fato das UPPs estarem restritas ao espaço de favelas, e de algumas favelas, já seria um indício luminoso para desvendar o que o projeto esconde: a ocupação militar e verticalizada das áreas de pobreza que se localizam em regiões estratégicas aos eventos desportivos do capitalismo vídeo-financeiro. É o caso do que Souza exemplifica no Estado que “governa mais para o interesse hegemônico do que para a sociedade brasileira”. Com isso queremos frisar que as UPPs aprofundam as desigualdades e as segregações socioespaciais no Rio de Janeiro”.(Malaguti,p. 2, 2011) Neste ponto entra o que se conhece como a “Pacificacão”, que está sendo implantada nas Favelas vizinhas à urbe planificada, é o processo de intervenção que a Prefeitura tem para controlar os habitantes em seus territórios, eles contam com uma vista privilegiada da cidade e têm passado por processos de resistência e organização onde acabam sendo capturados. Este processo já ocorreu no Brasil onde recuperaram os territórios no norte do país; “O estabelecimento da centralização do território para o Império brasileiro também foi chamado de pacificação. Só no estado do Grão-Pará foi massacrada quase a metade da população na luta pelo domínio do território dos cabanos” (idem, p. 4) A pacificação consiste em intervir militarmente nas Favelas, dado que ali se encontram os nichos do tráfico de drogas para a cidade dos turistas e o controle armado dos territórios – Territórios exercidos e definidos por diferentes atores que habitam as Favelas, problema complexo no qual não poderíamos aprofundar com clareza. Além de intervir nos processos culturais, gerar projetos de intervenção urbana como no caso do Complexo do Alemão e do Morro da Providência onde planeja-se um teleférico, baseado na experiência da Comuna 13 em Medellin, além da presença de ONGS – turistas militantes – do “primeiro mundo” que mediam estes conflitos.

O problema de tudo isto é que se intervêm de uma forma armada com sérios mecanismos de repressão e criminalização – questões que não solucionam o conflito – e sim, criam profundos problemas ao não permitir espaços autônomos para que estas populações gestionem os seus projetos de vida e sejam parte do projeto de cidade em seu conjunto desde suas particularidades, questões que, segundo Vera Malaguti, conserva e preserva todo o tema da segregação socioespacial. Esta consideração foi levada em conta para trabalhar de forma diferenciada cada uma das ilhas que a prefeitura define e a polícia militar delimita ativando sistemas de vigilância e ordem policial diferenciados para cada uma delas, tudo isto em função da “livre” circulação de pessoas, informação e dinheiro. Este tema é considerado e relacionado ao controle social da cidade e como este controle se efetua pela necessidade de realizar rapidamente uma transformação à uma cidade que deve estar preparada para ser visitada por muitos consumidores – turistas- que esperam o melhor da cultura, das mulheres, lugares históricos, desportivos e todo tipo de diversão. A cidade se constrói de acordo com os interesses de circulação do dinheiro, informação e pessoas, até às desconexões e conexões que provocam o novo desenho da metrópole. Esta questão em primeira instância requer pacificar as Favelas que inevitavelmente não podem ser removidas e que encontram-se próximas ao centro e à zona sul. Dentro do nosso trabalho estivemos residindo no Morro da Conceição na casa do Coletivo IP, um morro que não é uma Favela, onde na parte mais alta encontra-se o ministério de guerra dos governos anteriores. Um bairro constantemente sob custódia de um batalhão militar, localizado em frente à zona portuária e perto do centro. Ficamos onde a avenida Rio Branco cruza com a avenida Presidente Vargas.


Sensibilização e Medo. Produto do controle social.

Observamos uma cidade sensibilizada pelas transformações da cidade global. Neste contexto fazemos referência à obra de Vera Malaguti, na qual propõe, baseando-se em Eagleton, a seguinte reflexão em torno da questão estética no marco do medo do Rio de Janeiro: “Acontece , então, um processo de estetização do regime. A obediência à lei vem agora do interior do sujeito, fixada através de “hábitos, devoções, sentimentos e afetos”. (Malaguti,p.76,2003). Esta questão da estetização do regime apresenta-se e a relacionamos com a questão da memória, o processo de trazer o passado ao presente no marco da cidade proposta. Vemos como o projeto se articula a “Criar uma condição amnésica na qual essas noções pareçam jamais ter existido, colocá-las num espaço para além de nossos poderes de concepção”. (idem). Fazemos referência a isto porque neste projeto de cidade volta-se a ratificar a segregação desde as formas contemporâneas de controle e exclusão. É importante destacar o tema das sociedades de controle na medida em que os habitantes do Rio de Janeiro que têm acesso à cidade urbanizada, à produção cultural e à educação relacionada com o global, encontram-se já conformados frente ao que está acontecendo e buscam permanecer em uma posição cômoda dentro da mudança. Uma posição de servidão ao turista. “Na base deste desenvolvimento tem uma ideologia de mercado total, que é a ideologia de luta. Interpretando e tratando a sociedade inteira sob o ponto de vista do progresso em função do mercado total. A mística do mercado total transforma-se em uma mística de luta de mercados, à qual submetemse todas as esferas da sociedade. Nesta perspectiva total, aparece agora a mística de uma guerra contra os que resistem a este submetimento de todas as esferas da sociedade à luta de mercado. Aparece assim a imagem de um inimigo que é o produto mesmo desta mística da luta de mercados. Este inimigo não é um adversário competitivo na luta dos mercados, não é participante no mercado, e sim o adversário na vigência do mercado total e de seu resultado. É inimigo quem resiste à transformação da luta de mercado no princípio único e básico da organização inteira”(Mattellard, p.173,2009) No Rio de Janeiro apresentam-se uma série de elementos que sustentariam a crítica à cidade global. Tomamos então a decisão de trabalhar a cidade

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#Vontade de Potência ≠ Vontade de Poder

por fragmentos, estes fragmentos são territórios que vão-se demarcando em torno à dispositivos de controle empregados pela Prefeitura – ilhas-. Isto nos serve para introduzir o tema do medo que vive esta cidade, o medo ao que não vive ou não está disposto a viver na cidade feita para os turistas e consumidores. Este medo encontra-se nas pessoas mais conformadas com a mudança e que exigem políticas de segurança pública, sentem-se ainda mais em perigo quando percebem a quantidade de pessoas que estão sendo encurraladas e forçadas a entrar nas dinâmicas propostas pelo novo projeto de cidade. Outro aspecto a considerar é como estes territórios seguros demarcados no centro e na zona sul da cidade desfrutam de uma infraestrutura de conectividade ampla, enquanto as outras zonas encontramse em condições precárias de acesso às tecnologias de informação e comunicação. É importante também levar em conta porque os conectados através das máquinas de informática são os que estão tendo acesso às informações sobre o novo projeto de cidade, enquanto os demais são afetados e estão sendo forçados a ter acesso à estes meios para que se conheçam suas problemáticas, sem obter resposta sobre o porque dessas obras já terem sido aprovadas. Neste panorama e dadas as problemáticas anteriormente descritas, vimos a necessidade de concentrarmos em um fragmento da cidade. Dados os inconvenientes de mobilidade e os inconvenientes para conectar com posturas críticas da cidade, decidimos experimentar a transformação da cidade global em uma área acessível e que poderia ser lida sob diferentes aspectos e referências que nos brindaram os membros da okupacão Flor do Asfalto e o projeto Rio40caos. A zona portuária do Rio de Janeiro possui uma carga histórica que sob nosso ponto de vista contém muitos elementos que permitiram trabalhar o que acontece na cidade. Neste momento a zona portuária e a área demarcada pelo projeto Porto Maravilha esta habitado por: “Neste contexto, a área limítrofe à zona portuária da cidade recebeu uma grande quantidade de população de baixa renda, expulsas da então valorizada área central da cidade, em função das obras de modernização impostas nas gestões citadas. A nova localização possibilitou a esse contingente de mão de obra barata, situar-se em um lugar “perto, mas longe do centro”, para assim ter acesso às oportunidades que esta oferecia”.(Lima Carlos,p.36,2010)

Revitalização da zona portuária do Rio de Janeiro

O encontro com a ocupação Flor do Asfalto nos apresentou as relações com o passado que guarda a zona portuária do Rio de Janeiro, onde chegaram os escravos, onde formou-se a primeira Favela e ocorreu uma das grandes revoltas da cidade – A Revolta da Chibata - , esta área da zona portuária é a que se intervirá neste projeto de revitalização e desde a okupação observa-se como este processo acobertará esse passado. Em seu relato, esta nova cidade caracteriza-se por “níveis crescentes de manipulação e vigilância” e “novas formas de segregação” colocadas a serviço de uma “cidade de simulações, a cidade da televisão, a cidade como um parque temático” (xiii-xiv). David Harvey (1994) reitera a preocupação, frequentemente expressa, acerca de que as cidades estão sendo transformadas em cópias higiênicas e monótonas umas das outras, “praticamente idênticas de cidade em cidade”(Judd,p. 52,2003) Esta história se segue, na medida em que hoje, a área que compreende a revitalização da zona portuária é ocupada por muitas famílias que têm tomado edifícios e bodegas do porto para morar. Um caso especial é o espaço do coletivo da okupação Flor do Asfalto – que encontra-se ali há mais de 5 anos – um lugar que se produz graças ao trânsito de diversas pessoas do Brasil. Um lugar de encontro de nômades latinoamericanos. Também encontramo-nos com uma experiência de ocupação popular de moradia chamada Chiquinha Gonzaga. É interessante isso que acontece neste fragmento da cidade porque é uma margem que tem tentado tomar a cidade, criando experimetações de encontro e sobrevivência, gerando uma densidade política e cultural com referências ao passado, de organização e que nestes momentos elabora-se toda uma campanha midiática para sinalizá-la como um lugar degradado, sem considerar o contexto e as intenções com as quais o lugar é produzido.

Porto Maravilha - Porto Morte da Vida-

A zona portuária do Rio de Janeiro tem sido sempre descrita como uma zona obscura, a nossa forma de ver o lugar é o da resistência e portadora da memória da cidade. Tomamos a decisão de gerar uma análise e representação do projeto Porto Maravilha por que nos permite compreender alguns aspectos socioespaciais da cidade e por que a partir da análise e reflexão que realizam-se nesta zona, poderíamos deixar para cidade uma experiência de cartografia crítica, com representações própias da cidade que poderiam ser retomados para outros processos de análises e representação. Neste sentindo poderíamos jogar um pouco com o tema dos arquipélagos e os enclaves. Quem vêm sendo trabalhado nos temas do urbanismo crítico contemporâneo – Soja(2008), Petit(2007) -, isto para sugerir como desde estas iniciativas urbanísticas apresenta-se a conservação da matriz de segregação socioespacial. O arquipélagos compreendem-se como uma série de ilhas interconectadas onde apresenta-se uma série de conexões para os turistas dentro de uma cidade e são resguardadas por extremas medidas de vigilância e controle policial. Propomos isto desde a observação do paradigma da segurança e o controle que expande-se nos territórios palestinos. “A cidade e o território contemporâneo estão modificando-se segundo um desenho espacial preciso ditado pelo paradigma da segurança e do controle. Tal desenho é evidente nos Territórios ocupados palestinos, mas está presente, em diversas formas e com intensidade diferente, em outros contextos geográficos. Ilhas residências costeiras (Dubái), cidades turísticas (Sharm El Sheikh), comunidades segregadas – urbanizações privadas – (Estados Unidos), vias secundárias expressas (Los Ângeles, Toronto, Melbourne), centros de confinamentos para estrangeiros (Europa), cúpulas mundiais (G8), são algumas das possíveis inclinações de um modelo espacial que tem-se denominado arquipélago-enclave”. (idem)


No caso do Rio, o projeto Porto Maravilha é um nodo de interconexão do arquipélago carcerário onde se gera toda uma infraestrutura de uma densidade cultural resguardada em museos e infraestrutura de comércio. “Lo spazio contemporaneo puó essere descritto e interpretato attraverso la contrapposizione di due figue: l’arcipelago (lo spazio liscio dei flussi) e l’enclave (lo spazio dell’eccezione)”(idem). As UPP fazem parte das ilhas do arquipélago, a UPP conforma-se para resguardar acesso aos morros da cidade e começar a conectar toda a infraestrutura da cidade planificada; luz, esgoto, água, telefone, televisão e internet. Gerando um processo de gentrificação no sentido que muitos habitantes das Favelas deverão sair pois não conseguirão pagar por estas novas mercadorias na lógica na inclusão social. Neste processo começamos a trabalhar com três linhas de análises que construiram-se desde a experiência de transitar pela revitalização da zona portuária e os diversos referentes de crítica que fomos encontrando e fazendo alusão a outros trabalhos que havíamos realizado em Antena Mutante-GeoMalla, atravessando a fronteira, WarLab – desejando encontrar como poderíamos começar este processo de cartografia crítica. Os tópicos para a observação, investigação e análises foram: gentrificação, especulação e pacificação. Estes três processos que vive a zona portuária poderiam-se ser descritos da seguinte maneira.

Gentrificação: o processo de revitalização de uma área da cidade que busca expulsar os habitantes e começar um processo onde dá vida novamente às construções que marcaram a presença do poder político, econômico e cultural de uma cidade. Observamos este processo em torno aos desalojos das ocupações e as remoções das edificações com as ocupações de moradia, algumas representadas pelo movimento Sem Teto. Produzindo um processo de especulação imobiliária. Estes processos de revitalização devem desenvolver-se com base na história do lugar, quem os habita, e gerando toda uma forma de intervenção que possa levar em conta como tem-se produzido o espaço dentro da zona portuária. “a conservação das variáveis materiais e imateriais dos sítios urbanos (conceito de lugar), iniciada pela Convenção para Conservação do Patrimônio Cultural Imaterial (Unesco,2003). Posteriomente, essa tendência foi confirmada e difundida por meio da Declaração de Quebec, sobre a preservação do “spiritu loci” -espírito do lugar- (Icomos, 2008), elemento fundamental na caracterização das áreas 70

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urbanas. Dita declaração destacou que as “comunidades que habitam o lugar, especialmente quando trata-se de sociedades tradionais, deveriam estar intimamente associadas à proteção de sua memória, vitalidade, continuidade e espiritualidade”(Lima Carlos, p.26, 2010) O que se esta vivendo na zona portuária compreende-se como um processo de gentrificação: “Este fenômeno define-se como uma forma de apropriação de determinadas áreas urbanas por “máscaras poderosas e de capital privado, que a “re-qualificam” de maneira concentrada com outros atores, incluindo o poder público, criando-se uma situação de exclusão e especulação, que converte espaços remanescentes e degradados em espaços de consumo para uma classe social ascendente. (Godet,1999)”. (idem, p.27)

Espetacularização: este processo onde a cidade torna-se um espetáculo, onde trata-se de apresentar uma cidade cheia de cores e de construções ostentosas, revitalizando, gerando vida novamente a tudo aquilo que marcou a vitória sobre a cidade negra. Vemos isto no tema das reformas à abandonada zona portuária, aos museus que estão criando e em toda questão dos equipamentos olímpicos que empregaramse nela. Com a finalidade de que os turistas que cheguem encontrem uma ordem e uma boa imagem da cidade global. “De acordo com os investigadores urbanos, os enclaves turísticos faciliam o controle autoritário do espaço urbano, modificando o consumo e destruindo a cultura local com “ambientes Disney”. Tim Edensor (1998) reitera a observação de Lefebvre (1991) acerca de que os espaços turísticos “são planificados com o maior cuidado: centralizados, organizados, hierarquizados, simbolizados e programados ao enésimo grau” (384). De modo similar, John Hannigan (1998) afirma que a uniformidade dos espaços que habitam os turistas sujeita-os a “uma forma de experiência urbana medida, controlada e organizada” (6), que elimina a imprevisível qualidade de vida cotidiana nas ruas”. (Judd, 52, 2003) A questão é que não encontra-se como pode o projeto Porto Maravilha resistir às questões de segregação, pelo contrário, o que vemos é como o projeto dá o golpe final para que esta cidade fique sem nenhuma referência de cidade negra e elimine qualquer possibilidade para que se pratique o urbano de acordo com sua espiritualidade e espontaneidade. “Trata-se de uma tendência predominantemente política relacionada com a gestão das cidades mundiais dirigida, infelizmente e cada vez mais, ao

objetivo de expandir e diversificar os benefícios urbanos para responder às crecentes demandas das classes sociais privilegiadas. Neste sentido observa-se que as experiências de conservação urbanas mundiais vincularam-se às estratégias de marketing cultural e aos empreendimentos turísticos, que identificaramse com a competência entre cidades instauradas sob os efeitos globalizadores de uma economia mundial apoiada em princípios neoliberais. (Lima Carlos, p.29, 2010) Além do mais ignora-se o que tem-se produzido sem o menor interesse de compreender e dar potência ao que tem-se conseguido por parte dos habitantes da zona portuária. “Essa nova ordem imposta “nega a singularidade dos lugares, as memórias, as estratégias e táticas de sobrevivência das camadas populares”, que compõem uma trama íntima ligada à materialidade dos lugares. Sem ela não existe urbanizaçao, somente “artificialidade”, ou seja, o cenário desejado pelas grandes corporações, pelos proprietários dos meios de comunicação e pelos donos das marcas. O novo modelo de cidade global, caracterizado pelo artificial, “tem sido cuidadosamente confeccionado pelo novo economicismo, através de vínculos operacionais entre economia, política e cultura”.(idem) É importante destacar também o processo que se conhece como musealização. “Essa postura baseia-se em intervenções que resaltam o caráter físico e funcional do sítio, dirigidas à intervenções cenográficas, definidas por Arantes (2001: 125) como “uma verdadeira consagração da eternidade da cena – bem polida, limpa, adornada, transformada em museu”. (idem, p.33) A memória, o fantasma da cidade do Rio de Janeiro segue vagando pela cidade nos camelôs, okupações, mídia livre, samba, Capoeira Angola, hiphop, funk, etc. O processo de musealização que está chegando opera sobre os lugares da “memória cruel” onde somente se dá conta da morte e tráfico de escravos, como o cemitério dos novos pretos, Cais do Valongo, etc. Caberia a pergunta, qual é a mensagem que a Prefeitura e seu projeto de cidade olímpica deixa? A escravidão terminou ou a morte espera aquele que procura conhecer o passado?

Pacificação: Nesta linha buscamos, dentro

do processo de revitalização, todo o tema da cidade policial. Incluindo a UPP na Favela da Providência, a qual começa a intervir em territórios, criminalizando a população. Algo a ressaltar é como a zona portuária tem, além do mais, uma grande presença de edificações da

polícia, além de que no Morro da Conceição encontra-se o ministério de guerra dos governos anteriores e existe um batalhão que opera ali. Estas questões nos interessaram na medida em que não são visiveis no projeto Porto Maravilha, mas estão igualmente envolvidas dentro do marco da zona de intervenção do projeto. Além de que na zona portuária encontrase a primeira Favela. “em 1897, do morro da Favela (atual morro da Providência), lugar de habitação da população de baixa renda, formada originalmente por ex-combatentes da campanha militar de Canudos, que foram autorizados pelos “chefes militares, a instalarem-se ali”, apesar das autoridades municipais. A concessão se deu a título de benefícios relacionados aos serviços prestados à pátria”(Valladares, 2005:26). (idem) Analisando o projeto de revitalização do Porto Maravilha descobrimos que este emerge com um nodo de interconexões entre diferentes nodos turísticos da cidade, apresentando-se desde a perspectiva que perde toda a inoperância no traçado da cidade e pode permanecer conectado aos fluxos de turistas que a cidade global quer provocar. Para isto conectou-se com o estádio Maracanã, com o corcovado, as praias de Copacabana, Lapa e os aeroportos. Lugares emblemáticos da cidade onde o turista poderá visitar depois de haver experimentado um contexto cultural dentro da matriz de segregação socioespacial da cidade, dentro dos museus que foram preparados na zona portuária. Neste contexto queremos compreender como funciona o arquipélago carcerário para a cidade turística, como desde o projeto Porto Maravilha vaise desdobrando um processo de revitalização que lida com o mar e não havia sido confiscado para o turismo nem para o espetáculo. “Os turistas que habitam espaços enclávicos são animados a atuar essencialmente como operários de uma fábrica, sujeitos a “um horário, a um controlador de tempo, um informante e multas” (Thompson, 1967). Por enquanto encontram-se limitados por barreiras físicas e são destinados à atividades especializadas, certos lugares como os estádios esportivos, centros de convenções e shoppings podem efetuar uma regulação quase total do corpo. (Judd, 55, 2003) A zona portuária deverá estar limpa e segura para isto, deverão ordenar tudo o que escape desta compressão. Neste sentido compreender como este projeto requereu pacificar a primeira Favela e as áreas próximas à favela como a central de transportes, empregando-se agentes da polícia militar para despejar os camelôs – vendedores de rua - e os moradores de rua.


O enclave – A Favela do espaço de exceção ao projeto de espaço de fluxos

O interessante das UPP é que a partir de sua existência abre-se uma área conformada por fronteiras reais e imaginárias, que originam-se através do passado que carregam nestas ilhas da cidade. No caso de Santa Marta e no caso da Providência, estes serão lugares de interconexão do arquipélago carcerário do Rio de Janeiro, onde planeja-se o turismo de Favela. Outro tema a destacar é como o porto, uma área com um passado tão forte na cidade, vem a ser revitalizado de acordo com os requerimentos da cultura global. Deixar para trás o passado obscuro da cidade do Rio de Janeiro, condenar a cultura da Favela aos ditames da UPP social é sintoma de como este projeto conserva toda questão da segregação socioespacial da cidade do Rio de Janeiro. Apresentase a compreensão do enclave compreendido como espaço de exceção. Gerando intervenção direta na produção cultural, proibindo as expressões do Funk e do Hip-Hop. “O Estado de exceção permanente ganha formato constitucional e jurídico- político como Estado de Segurança. O processo de construção de um modelo ideal para essa lógica neo-imperial de controle sobre fontes energéticas, sobre movimentos de protesto e rebeldia social, na conjuntura pós-Guerra Fria, se ergue como institucionalidade na gestação do experimento do regime de segurança máxima como ocorre na política colombiana de Álvaro Uribe”. (Cunca, p.45, 2009) A excepcionalidade sobre os territórios será cada vez mais marcada. Algo interessante é que o próprio movimento de resistência cultural metamorfoseia-se e gera novas formas de expressão em movi-

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mento, sem perder as referências do passado. O problema é tratar de pensar nestes territórios pacificados como conseguirão adquirir movimento, como poderão estabelecer novas conexões e encontros nestes contextos de controle social e de criminalização? Todo este percurso que acabamos de apresentar-lhes é parte das referências que fomos produzindo para fazer emergir mensagens em forma de: mapas, músicas, gráficos, vídeos e fotografias. É parte também de um projeto que vinhamos explorando com o coletivo Rio40Caos, que chamamos DISTOPIA 021, que busca apresentar algumas destas considerações em um formato documental, gerando uma experimentação com a proposta de trabalho coletivo. São temas que temos investigado e fazemos circular para que apresentem-se diferentes visões sobre a cidade global, para que venha surgir perguntas sobre a situação de controle nas cidades da América Latina. De nossa parte, para levar em conta que o conflito armado na Colômbia não é interno como querem fazer-nos acreditar, as políticas de segurança democrática foram exportadas. Estas questões também nos fazem pensar sobre o movimento de pessoas à escala latinoamericana, escolhendo de forma seletiva cidades para ativar a circulação de pessoas e condicionando de tal maneira, que a cidade fique igual a qualquer outra das que se têm selecionadas. Nestas circunstâncias os encontros e conexões desde as quais nos encontramos na América Latina serão cada vez mais complexas de estabelecer. Em função destes arquipélagos que vão se conformando e os enclaves que vão emergindo seria possível geral outros arquipélagos conectando os enclaves desconectados?

Bibliografía: Cunca Bocayuva,Pedro Cláudio (2009) Os riscos da comunidade capturada versus a plataforma da “favelania” Otra Economía - Volumen III - No 5 - 2o semestre. Judd, Dennis R. (2003) El turismo urbano y la geografía de la ciudad Revista eure (Vol. XXIX, No 87), pp. 51-62, Santiago do Chile, setembro 2003 Lima Carlos, Claudio Antonio S. (2010) Una mirada crítica a la zona 2010: 23 - 54 Universidad Nacional de Colombia, Bogota Revista Bitacora Malaguti, V. (2003) O Medo na Cidade do Rio de Janeiro. Dois tempos de uma história, Revan, Rio de Janeiro __________ (2011) O Alemão é Mais Complexo, http://lastroufrj.wordpress. com/2011/09/15/o-alemao-e-mais-complexo-porvera-malaguti/ __________ (2011) Las políticas públicas de seguridad y convivencia: el caso de Rio de Janeiro. Ponencia presentada en la Universidad de Antioquia. Seminario Los laberintos de la violencia. Traducción Max Yuri gil Ramírez, asesor Personería de Medellín. Mattelart, A (2009) Un Mundo Vigilado. Paidos -Estado y Sociedad- España, Barcelona Sassen, S (2007) Una sociología de la globalización . Buenos Aires: Editorial Katz Segre, Roberto (2008) Río de Janeiro: una vocación histórica policéntrica Centro-h, Revista de la Organización Latinoamericana y del Caribe de Centros Históricos No. 2, dezembro 2008, pp. 25-36 Soja, E. (2008) Postmetrópolis. Estudios críticos sobre las ciudades y las regiones. Traficantes de Sueños. Madrid Petti, A. (2007) Archipelaghi e enclave. Architettura dell’ordenamento spaziale contemporaneo, Bruno Mondadori, Milán Vieira da Cunha - da Silva Mello (2011) Novos conflitos na cidade: A UPP e o processo de urbanização na favela DILEMAS: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social - Vol. 4 - no 3 - JUL/AGO/ SET 2011 - pp. 371-401


Os mapas do 15M ao 15O Pablo de Soto

Chegam vozes (desde a outra margem do mediterrâneo) é um vídeo clip que começa com um mapa do mediterrâneo, no qual uma luz começa a aparecer na margem sul. Ver vídeo em: http://www.youtube.com/watch?v=cgI5Jwkuzjc

O novo ciclo de lutas, que começou com a Primavera Árabe e a Revolução Islandesa, e que tem tido reflexo na margem norte do mediterrâneo com o movimento 15M e Democracia Real Já, propaga-se na atualidade a uma escala global. Estes movimentos se caracterizam por (a) trabalhar em dois níveis, na internet e nas ruas, com a ocupação de praças e assembleias; (b) ter uma organização autopoiética1 de enorme escalabilidade e interatividade; e (c) produzir revoluções de código aberto, onde saberes, técnicas, práticas e estratégias são aprendidas e replicadas com melhorias pelas distintas sociedades conectadas. Como parte fundamental da tekné2 deste novo movimento global, está a cartografia, que revela sua enorme importância para os processos de auto-organização, de ação distribuída e descentralizada, inclusão e imaginação social.

Esta dimensão emancipadora da cartografia tem como referente o pensamento dos filósofos franceses Deleuze e Guattari, que foram os primeiros a teorizar sobre a potência da apropriação da arte da cartografia pelos movimentos sociais:

1 A autopoieses é um neologismo proposto em 1971 pelos biólogos chilenos Maturana e Varela, para designar a organização dos sistemas vivos. Uma descrição breve seria dizer que a autopoieses é a condição de existência dos seres vivos na contínua produção de si mesmos.

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2 Aristóteles descreve a arte (tekné) como uma ação a partir da qual o homem produz uma realidade que antes não existia. 74

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A cartografia, como ferramenta de conhecimento crítico e insurgência, tem uma larga trajetória no estado espanhol, e vale destacar o trabalho de Cartac ou hackitectura.net. Vinculados em um momento inicial, ao que a mídia de massa denominou como movimento antiglobalização, nos últimos anos, produziram-se mapas alternativos do território geopolítico do Estreito de Gibraltar e das cidades de Sevilha, Málaga, Barcelona, Veneza e Atenas. Desde muito tempo, a cartografia vem convertendo-se em uma forma de ativismo global14. O objetivo deste artigo é re-compilar e sistematizar as diversas cartografias produzidas desde o movimento 15M, começando nas sequências anteriores – a partir da crise de 2008 -, percorrendo mapas da corrupção até o momento atual, da organização de campanhas contra os despejos e culminando com o mapa de movimentações globais do 15 de Outubro. É uma produção própria da era digital em que nos encontramos, de caráter audiovisual e definida pelas comunicações instantâneas em rede. Sobre a tecnologia de software empregada, alguns dos mapas são mash ups (remixes) do google maps (serviço de pesquisa e visualização de mapas e imagens em satélite da terra), que têm acertado em sua definição e ímpeto. Outros são projetos desenvolvidos com software livre, em servidores autogestionados.

Desde o ponto de vista dos conteúdos, poderíamos classificar as cartografias do 15M em quatro categorias principais: Mapas de análises e diagnóstico São mapas descritivos, que analisam dados públicos e constroem representações críticas com os mesmos. Respondem à primeira fase de “indignação” do movimento. Mapas de representação do movimento São mapas que funcionam por agregação e são, por definição, interativos. São os mapas das acampadas, de marchas e dos fluxos de atividades nas redes sociais. Mapas conceituais O mapa conceitual é uma prática usada para a representação gráfica do conhecimento. Desenvolvese uma rede na qual os nodos representam os conceitos e as conexões, as relações entre os conceitos. Mapas para a ação A última categoria é, quiçá, a mais nova e transformadora na fase atual da arte da cartografia cidadã insurgente e a que possui maior potencial para nos conduzir como sociedade a territórios inexplorados. São mapas criados em sua maior parte por hacktivistas e que, em muitos casos, supõem a programação e melhoria de novas ferramentas de software.

Ver o trabalho de Bureau de Etudes da França ou Iconoclasistas da Argentina. 4

Mapas de análises e diagnóstico Casas tristes

Cidades sem fronteiras

Plataforma web2.0, que visualiza as casas vazias na Espanha, esclarecendo de maneira gráfica e acessível, diferentes aspectos econômicos e sociais vinculados ao problema de acesso à moradia na Espanha. Denuncia a elevada porcentagem de casas vazias na Espanha. http://casastristes.org

Campanha impulsionada por uma extensa rede de cidadãos espanhóis e estrangeiros, com e sem papéis, que se rebelam contra a discriminação e reivindicam a igualdade, denunciam a precarização e ressaltam os direitos de todas as pessoas que habitam as nossas cidades. Localiza espaços de exclusão, barreiras, faz denúncias, assinala lugares de encontros e tudo aquilo que possa se pensar desde a cidade com e sem fronteiras. http://www.ciudadessinfronteras.net

“Fazer mapas, como fazem a orquídea e a vespa, é mais ação que representação; a cartografia, antes de representar um mundo que esteja dado, supõe a identificação de novos componentes, a criação de novas relações e territórios, de novas máquinas.”3

Félix Guattari e Gilles Deleuze que, em Mil Platôs (1980), propunham os princípios de cartografia e decalcomania para explicar o conceito de rizoma. Ainda hoje nos referimos mais aos territórios reticulares do que ao rizoma. Continua sendo interessante a relação que Guattari estabelece entre seu conceito de cartografia e os de agenciamento, máquina e produção de subjetividade. O arquiteto José Pérez de Lama tem escrito extensivamente a respeito.


Corruptódromo

Elaborado pela plataforma cidadã Não votem nel@s, situa os pontos cruciais de nosso país, onde se têm denunciado casos de corrupção política. Destacam especialmente o litoral levantino (parte do mediterrâneo ocidental da Espanha) e a Comunidade de Madri. A plataforma Não vote nel@s, que pede o não-voto ao PP, PSOE e CiU, tem desenvolvido um Wiki (ferramenta de edição online), onde os internautas podem incorporar mais lugares e onde se tem denunciado casos de corrupção. Já contam com 177 casos documentados. http://wiki.nolesvotes.org/wiki/Corruptódromo

O Disparate

A Espanha é um dos principais atores na compra e venda internacional de armas. Cada ano, as distintas comunidades autônomas importam e exportam armas a diversos países, com valores de milhões de euros. Quem conhece quanto gasta a sua comunidade com a compra de material bélico? Quem sabe a que países se vendem as armas produzidas em sua comunidade? O Disparate é uma iniciativa que pretende mostrar com claridade o opaco mercado das armas, o grande disparate do comércio legal da morte. http://www.eldisparate.de

Mapas de representação do movimento Mapas das acampadas

No mapa, podem-se observar tanto as acampadas que atualmente estão surgindo nas distintas praças, quanto as que têm previsão de acontecer nos próximos dias e as que foram desocupadas pela polícia. “As acampadas são somente um símbolo. Na realidade estamos em todos os lados. Educamos seus filhos, preparamos suas comidas, recolhemos seu lixo, conectamos suas chamadas, dirigimos suas ambulâncias e inclusive os protegemos enquanto dormem. As pessoas não deveriam temer o governo, o governo deveria temer a seu povo. Nós somos o povo, nós somos o sistema, somos anônimos, somos legião. Não esquecemos, não perdoamos, espere-nos.” http://www.thetechnoant.info/campmap/

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Mapa das conversas

Trends Map é uma ferramenta de “escuta ativa” que, em tempo real, analisa todas as conversas que se produzem no twitter. Tem uma visualização em tempo real sobre o mapa, geolocalizando as palavras, os hashtags que estão sendo produzidos no momento, para poder observar quais são os temas por países e cidades. http://trendsmap.com/topic/%2315o Interações entre usuários 15M Mostra geoposicionada de mensagens entre os participantes do movimento 15M em redes sociais. Uma linha entre os pontos indica o que o nodo de partida tem mencionado nesse momento ao nodo de chegada. Realizado pelo Instituto de Investigação em Biocomputação e Física de Sistemas Complexos da Universidade de Zaragoza. http://15m.bifi.es

Mapas conceituais

Mapa conceitual da acampadasol

Mapa da não-violência

Este mapa conceitual se transborda a cada instante e está permanentemente atualizado. É somente uma ajuda para pintar o irrepresentável. É um mapa humilde, incompleto, inerentemente precário. http://www.unalineasobreelmar.net/mapa-conceptual-de-la-acampada/

http://www.unalineasobreelmar.net/2011/08/15/ mapa-conceptual-de-la-no-violencia-del-15-m/

Mapas para a ação Mapa para a denúncia do 27M

Campanha Pare os Despejos

É um mapa da praça Catalunha (Barcelona, Espanha), que inclui um formulário criado com o objetivo de reunir informação sobre o que sucedeu no dia 27 de maio de 2011, na “operação de limpeza”, por parte dos órgãos de segurança. Na dita operação, o corpo policial agrediu muitas pessoas, roubaram objetos pessoais, foi limitado o direito de reunião, entre muitas outras violações dos direitos humanos. A finalidade deste mapa-formulário é saber quantas pessoas foram prejudicadas e de que maneira o foram, para poder fazer um informe mais completo. http://acampadadebarcelona.org/denunciacolectiva27m

Os ativistas de tomalaplaza.net, em colaboração com a PAH (Plataforma de Afetados pela Hipoteca), têm desenvolvido um mapa de despejos, para que qualquer pessoa que queira colaborar (agregando informação, participando na resistência anti-despejo ou solicitando ajuda contra seu próprio despejo), pode agora fazê-lo facilmente. A ferramenta envia alertas para se saber quando e onde famílias vão ser despejadas�.[5] ��http://stopdesahucios.tomalaplaza.net


15O: um mapa de ação do tamanho do planeta Cinco meses depois do 15 de Maio, repete-se uma convocatória como a de então, mas o mapa já não é mais o do estado espanhol, mas o mapa do mundo. A demanda por uma democracia participativa se estendeu a quase metade dos países do planeta e, em mil cidades, acontecerão marchas e ocupações de praças sob o lema unitário de “Unidos pela mudança global”.

Mapas, mapeamento e disputas territoriais na Amazônia Ricardo Folhes em roda de conversa

Mapa da mobilização global de 15 de outubro

Dando uma olhada no mapa do mundo sobre o qual se tem representado com um ponto vermelho cada um dos atos programados, dá para se ter uma ideia de como, em poucos meses, a indignação tem se estendido como uma mancha de tinta. As ocupações que começaram em setembro, nos Estados Unidos, continuam e existem manifestações previstas em lugares tão distintos e afastados como Santo Domingo, Hong Kong, Dakar, Belo Horizonte, Johanesburgo, Cairo, Melbourne e Moscou. http://map.15october.net http://convocatorias.democraciarealya.es/?id_plan=3

“RT @isaachacksimov: vejo mais de 80 petições/segundo a 15october.net há 36 horas, algo vai acontecer… algo grande… #15Oready”

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#Vontade de Potência ≠ Vontade de Poder

Minha última experiência de pesquisa vem acontecendo no Vale do Jari, que fica numa região de fronteira entre os Estados do Amapá e Pará. Fui convidado pra fazer um trabalho de mapeamento dos conflitos no Vale do Jari pelo Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Santarém- STTR, e lá chegando, em novembro do ano passado, na região de Monte Dourado – município de Almeirim, constatei que a situação fundiária era bem mais complexa do que o STTR poderia imaginar. Vimos que com o conhecimento que possuíamos tanto da região como da situação dos diferentes posseiros lá existentes não teríamos como fazer nenhum trabalho de mapeamento participativo ou poderíamos correr o risco de fazer um mapa que nem de longe tivesse capacidade de representar a complexidade da situação de conflito lá existente. Foi então proposto ao STTR a necessidade de permanecermos mais tempo na região convivendo com os posseiros, fazendo levantamento da história, tentando entender melhor a situação. Durante esses contatos iniciais começamos a receber várias doações

de vídeos. Existe uma situação de conflito lá entre mais de 1000 famílias com uma grande empresa que no último ano deu origem a uma série de processos de reintegração de posse. A empresa chegava, derrubava a casa de muita gente, expulsava eles da terra e eles começaram a registrar isso com celular, com máquina digital. E quando eu estive lá eles começaram a me passar – inclusive alguns depoimentos que eles registravam. Surgiu então a ideia de editarmos um filme que pudesse contar um pouco da história das relações políticas da região hoje, enfim, que a gente pudesse materializar um pouco a situação de conflito num documentário. Bem, a história dos mapas é tão antiga quanto a história da civilização. Inicialmente, mapas foram muito utilizados como apoio ao planejamento da divisão de terras e aí tem alguns registros bem interessantes de mapas realizados no Delta do Rio Nilo que serviam ao planejamento territorial, anualmente. Eram feitos em argila, nas pedras, etc. A partir do século XVI esse processo ganha corpo com uma dis-


ciplina, ele começa a se tecnificar, fica meio que excludente - quer dizer, o mapeador passou a ser um matemático que detinha um determinado conhecimento científico, que seguia um método científico, e ele é que tinha a legitimidade pra poder fazer. Dando um corte temporal grande, podemos dizer que hoje a cartografia é uma área do conhecimento amplamente tecnificada que permite fazer cruzamento de grandes bases de dados, embora simbolicamente o processo de representação dele seja simples, mas eles agregam uma complexidade de dados muito grande e sistemas de informação bastante complexos, que por outro lado também vem possibilitando atualmente que o processo seja democratizado novamente. A produção cartográfica brasileira desse século ficou na mão do governo, dos órgãos públicos até os anos 60, 70. A partir de então o processo ainda era bastante caro, com algumas empresas ainda entrando no mercado, e a partir dos anos 90, principalmente nos últimos dez anos as tecnologias de informação: software livre, enfim, essas novas mídias vem possibilitando que haja um processo de democratização novamente. E a gente tem que problematizar esse processo. Historicamente, mapas muitas vezes foram utilizados pra legitimar determinadas posições hegemônicas em relação ao território. Tem um exemplo bem clássico: os mapas produzidos pelos americanos na Guerra Fria que uniam o território do Alasca ao território da Sibéria pra aumentar o temor de uma invasão russa entre os próprios americanos, e isso fazia com que houvesse uma legitimidade política. Internamente havia destinação de recursos pra indústria bélica. E na história recente da Amazônia brasileira isso não foi diferente. Se a gente for analisar o projeto RADAM1...vocês sabem o que é o projeto RADAM? O projeto RADAM foi talvez o primeiro mapeamento de larga escala da Amazônia realizado por instituições brasileiras – com apoio de órgãos internacionais. O projeto RADAM mapeou em grande escala a distribuição de recursos naturais a distribuição de florestas. Ele deu um 1 Assim, em 1970, no âmbito do Ministério de Minas e Energia, cria-se o Projeto RADAM propriamente dito, com a finalidade de implementar um Programa de Sensoriamento Remoto por Satélite e realizar, com base nas imagens assim obtidas, o levantamento integrado dos recursos naturais em uma área de restrita a 1.500.000 Km² ao longo da rodovia Transamazônica, posteriormente ampliada até abranger a totalidade da Amazônia Legal. Fonte: http://www.projeto. radam.nom.br/metodologia.html

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impulso significativo ao planejamento territorial da Amazônia, mas fundamentalmente ao planejamento de atividades econômicas, ao loteamento dos recursos naturais da Amazônia. É muito curioso observar que o projeto RADAM em nenhum momento humaniza os mapas. Não há distribuição de comunidades, de municípios, de gente. Em grosso modo toda essa ausência de dados sociais nos mapas produzidos pelo Projeto RADAM contribuiu com a legitimação do lema “Terra sem gente pra gente sem terra” do governo militar.

Cadê a gente dessa terra nessa região?

Existe um processo de migração bastante antigo. Nos anos 70, foram criadas grandes políticas regionais, de integração regional, de colonização – a Transamazônica e antes dela, a Belém-Brasília foram criadas a partir desses projetos. Então você começa a ter políticas públicas concorrentes também. Em 70 foi criado o INCRA, os projetos de integração, integrados de colonização na região da Transamazônica em construção. Em 1973 foi criado o Estatuto do Índio2. Começava ali já a criação de legislações que depois da Constituição de 88 deram emergência a uma série de direitos: direitos a terra, direitos étnicos, etc... A partir dos anos 90, mais nos últimos dez anos na Amazônia, várias experiências de cartografia participativa vem apresentando de alguma maneira contestações a essa conjuntura instalada pelos grandes projetos e de certa medida a coisa caminhou de tal forma que hoje a gente já não sabe mais pra quem a participação está servindo. Um exemplo de disputa cartográfica, derivada de uma disputa territorial: Rio Tapajós – Rio Amazonas. Santarém fica na confluência dos dois rios. Divisa do Estado do Amazonas e do Estado do Pará. Aqui uma das últimas regiões de floresta em terras públicas estaduais do Pará que recentemente foi palco de uma disputa muito grande que fez com que a Ana Júlia (ex-Governadora do Pará) decretasse em 2008 uma área de limitação administrativa provisória pra toda essa região, pra que esses conflitos pudessem ser mediados. 2 O Estatuto do Índio é o nome pelo qual ficou conhecida a lei brasileira Nº 6.001 , que dispõe sobre as relações do estado e da sociedade com os povos indígenas.

Eu participei da mobilização, da elaboração de uma proposta dos movimentos sociais e acompanhava toda a mobilização do setor madeireiro, que também produziu muitos mapas com vários indicativos de áreas para a exploração madeireira, reserva para futuras explorações madeireiras. São perspectivas amplamente antagônicas. A gente tá agora na região vendo acontecer a concessão de florestas públicas. Existe uma lei no Brasil chamada Lei de gestão de florestas públicas, desde 2006, que prevê a licitação de florestas públicas para grupos empresariais. Então, essa região toda compõe uma área de quase 800.000 hectares que vão ficar à disposição do processo de licenciamento de florestas, e a área é bastante habitada. Nós temos no Brasil o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais - INPE que há pelo menos sete anos disponibiliza imagens recentes do mundo inteiro de dois satélites diferentes, um satélite americano e um satélite produzido pelo Brasil em parceria com a China. Essas imagens juntas ao uso de softwares livres possibilitam a realização de vários trabalhos num site do INPE você também baixa o software pra poder fazer mapas, manusear essas bases de dados. Isso em convergência com o uso de GPS que também se popularizou bastante, onde muitas organizações sociais já tem pelo menos acesso a 1 GPS e pontos de internet livre. Na Flona – Floresta Nacional do Tapajós pelo menos três comunidades têm acesso aos telecentros de inclusão digital, do outro lado do rio também tem. Existem programas de integração entre esses telecentros. Na época que eu trabalhava numa ONG local, o Projeto Saúde e Alegria de Santarém, a gente pensava muito na integração da produção cartográfica associada ao uso dos telecentros pra poder disseminar e criar desde sistemas de vigilância até a democratização das informações coletadas. Atualmente você vê o processo de mapeamento participativo sendo desenvolvido pela academia: são vários etnomapeamentos em curso, etnozoneamento, mapeamento de uso da terra que são utilizados em processos de pesquisa. As ONGs trabalhando cada vez mais nisso: fazendo inventário de recursos naturais, apoiando as questões indígenas, realizando etnozoneamentos, muitas fazendo mapas de conflitos. Mais recentemente está entrando na cena fundações criadas por empresas para realização de mapeamento participativo. Vocês viram no vídeo a Fundação ORSA que é uma organização não governamental criada por uma empresa pra fazer intermediação de conflitos. Muitas dessas fundações estão entrando no viés da cartografia participativa. E tem também as políticas públicas, por exemplo, o Sistema nacional de unidades de conservação que foi criado em 2000 e que pressupõe a elaboração de planos de manejo participativos pra algumas modalidades de unidades de conservação, como as

reservas extrativistas. Toda reserva extrativista tem que ter um processo participativo de elaboração de planos de manejo. E o mapeamento participativo é uma ferramenta muito usada. Entretanto, o que muitas vezes poderia ser entendido como um direito ou benefício, acaba funcionando como ferramenta de controle e vigilância, que procuram - pelo viés da participação, legitimar ações e políticas de Estado, de empresas e de ONGs, numa tentativa de apaziguar conflitos fora dos limites territoriais das unidades de conservação. Giseli Vasconcelos: Esses inventários e planos participativos que viraram tara nacional, o zoneamento econômico e ecológico passa por fora. Queria que tu colocasse a visão que tu tens do zoneamento econômico e ecológico. Ricardo Folhes: Eu trabalhei no zoneamento econômico e ecológico do Estado do Pará. Fazia a integração de dados produzidos por dezenas de pesquisadores do meio físico e socioeconômico. Excelente trabalho de pesquisa que depois de integrado era apresentado em audiências públicas com objetivo de realizar de maneira participativa o mapeamento em cima daquela base integrada. No entanto, a capacidade dos participantes das audiências públicas fazerem contribuições qualificadas sobre as bases cartográficas disponibilizadas foi muito prejudicada pelo tempo destinado a essa atividade, que não possibilitava a realização de debates aprofundados. Porém, como de fato mapas eram disponibilizados e pessoas variadas rabiscavam sobre eles, a “participação” mesmo desorganizada e pouco qualificada acabou legitimando as audiências públicas, que foram vendidas como participativas. Celi Abdoral: Não existe modelo de desenvolvimento que seja sustentável. Essa é a forma como eu penso. Artur Leandro: É que gera aquele termo (sustentável) e de repente o capital ou o meio de produção se apropria do termo pra transformar a ideia que se tem de desenvolvimento sustentável numa coisa completamente diferente. Ricardo Folhes: A experiência da Fundação ORSA é bem emblemática nisso que você tá dizendo. Penso que devo explicar o que é o FSC, acho que quase ninguém deve saber aqui. FSC é um certificadora de boas práticas sociais e ambientais. Ela certifica a exploração de produtos madeireiros e não madeireiros. E ela ratifica que naquela exploração as comunidades foram incorporadas nos processos produtivos e a legislação nacional foi obedecida. Teoricamente haveria um sistema de inclusão social e de respeito às questões ambientais. Embora o FSC seja a organização com maior respaldo em nível mundial, em vários lugares do mundo já sofre contestações muito sérias. Por exemplo, ela começou a certificar há alguns anos a produção de Eucalipto na Amazônia, ela


certifica o grupo ORSA. Então que lógica ambiental é essa que entende ser viável ambientalmente falando a produção de eucalipto na Amazônia? Eu coloquei aqui rapidamente “cadastros participativos viraram tara nacional”, por que vocês não imaginam o quanto hoje as comunidades são procuradas por pesquisadores, ONGs, governos, diferentes projetos. Todo mundo chega com o GPS, muitos querem fazer oficina de capacitação de GPS, depois pega todos os dados que o cara coletou e nunca mais retorna na comunidade. Você não sabe pra quê isso está sendo usado. Tem um cara que numa mesma árvore já bateu mais de cem vezes um ponto com GPS...tô exagerando bastante... mas é mais ou menos por aí. Existe uma série de metodologias de mapeamento participativo, na verdade não existe uma maneira única de fazer isso, mas as diferenciações acontecem desde a escolha dos objetivos. Muitos projetos de mapeamento chegam prontos às comunidades ou a um determinado movimento social, quer dizer, eles não tem nem a oportunidade de discutir o que eles vão fazer. Eles são incluídos no processo porque são parceiros de uma determinada ONG, que se beneficiam de outros projetos, e o mapeamento é mais um deles. Alguns procedimentos de mapeamento discutem a questão metodológica antes de fazer o mapeamento propriamente dito – isso eu acho fundamental: os caras tem que opinar a forma de fazer e estar envolvidos desde o início mesmo. O processo

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tem que ser participativo inclusive na discussão de concepções. Na coleta de dados, a participação e capacitação de GPS, muitas experiências usam apenas imagens, bases cartográficas, e a partir dessas bases cartográficas o pessoal desenha, faz inventários de recursos ou de limites comunitários ou de limites de áreas reivindicadas, disputas territoriais. Pouquíssimas experiências trabalham de maneira participativa com a definição de cores, os mapas, dos símbolos, da melhor maneira de representar determinado problema ou conflito ou zona. Menos experiências ainda discutem os resultados dos mapas: quais usos políticos esses mapas devem ter, quais são as estratégias políticas que eles podem orientar. E depois na gestão de dados, os resultados são gerados por aquele que levou o recurso. E as populações locais em suas variações identitárias e de mobilização política, como ficam? Essa é uma discussão boa. Essas denominações, autodenominações, denominações exógenas: a “população tradicional” não deixa de ser uma, largamente aceita, “povos da floresta”, outra... Celi Abdoral: Exatamente, a nomenclatura vai ser, de certa forma, o olhar que se dá...É um dos paradigmas interessantes na cartografia é que a gente possa ter a atenção de olhar a forma como as pessoas se autoidentificam. É a escuta, a atenção no momento do traçado da cartografia... Ricardo Folhes: Tive uma experiência num assentamento de reforma agrária em duas reservas

extrativistas no Estado do Amazonas, foi muito interessante. Fui fazer o mapeamento de uso da terra, e os agentes ambientais do ICMBio3 ficavam preocupados quando as comunidades mostravam no mapa o uso da terra fora dos limites da unidade de conservação. Um limite de unidade de conservação é um limite imposto, um rio que na verdade não limita a interação de quem tá de um lado da margem do rio pro outro... aqui unidade de conservação, aqui reserva extrativista, aqui terra indígena e ali é uma outra modalidade de unidade de conservação que por lei não permite a presença humana, embora muitas vezes elas sejam criadas aonde há bastante gente morando secularmente... No momento em que a gente fazia o mapa de zoneamento, o mapa de uso da terra, as comunidades mostravam os seus usos pra dentro da terra indígena e os caras do ICMBio ficavam descontentes por que isso provavelmente causaria um problema institucional com a FUNAI. Celi Abdoral: Um outro exemplo dessa manipulação é quando se compara dois mapas importantes que foram cartografados ali na área da Volta Grande onde vai ser construído o projeto de Belo Monte. E vê uma diferença muito clara quando percebe que o mapa cartografado pelo grupo que coordena a implantação da hidrelétrica: diversas comunidades não aparecem no mapa, e esse mapa é referenciado pela FUNAI. Então a gente se pergunta, Quem é que indica o Diretor da FUNAI? O Presidente da República... Já no mapa que foi construído por técnicos e apoiadores do Comitê Xingu Vivo para sempre, várias comunidades que aparecem não foram identificadas no mapa oficial da implementação do projeto. Como é que isso vai impactar nessas comunidades? Isso vai impedir que essas comunidades possam ser beneficiadas ao menos do processo de mitigação que já é por si só um processo terrível, porque implica numa não escolha, numa aceitação, e essa não escolha também vem acompanhada de um pagamento em dinheiro, você é indenizado de certa forma porque é considerado um atingido. E aí a gente vai ver um novo nível de tensão política, a disputa de quem é e quem não é atingido nesse grande projeto. Ricardo Folhes: Vimos aqui o projeto Jari. Na primeira vez que eu estive lá, recebi de alguns comunitários um mapa produzido por duas ONGs que tinham estado lá meses antes, em nome de um projeto de desenvolvimento sustentável para o município de Almeirim. Eles fizeram uma cartografia bastante intensa, foram mais de vinte mapas produzidos. Me chamaram atenção pelo menos dois mapas: um mapa 3 Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade é uma autarquia em regime especial. Criado dia 28 de agosto de 2007, pela Lei 11.516, o ICMBio é vinculado ao Ministério do Meio Ambiente e integra o Sistema Nacional do Meio Ambiente. Fonte: http://www.icmbio.gov.br/portal/quemsomos/o-instituto.html

de comunidades, que só aparecem 5 comunidades em um universo de 127, sendo que as 5 comunidades são justamente as parceiras da empresa; e o mapa de uso econômico onde aparecem somente os arranjos produtivos de interesse da empresa. Algumas coisas pra gente discutir: Como surgem estas experiências de mapeamento? Existe um processo muito intenso de vir de cima pra baixo, de ser ofertado às comunidades, havendo pouco tempo para a discussão da validade de um projeto desses. Se os caras querem fazer mesmo ou não, mapear pra que? Vamos mapear o quê? Então, muitos processos participativos, no caso do zoneamento econômico e ecológico, são feitos pra legitimar uma ação de Estado que já foi levada pronta pra eles, e que ganhou uma conotação participativa porque num dia juntou um monte de gente de movimento social em torno de um mapa e a partir dali, aquele mapa de zoneamento ganhou a alcunha de um mapa participativo. Celi Abdoral: Eu só queria fazer uma complementação dessa ideia do participativo. Como é que esse processo de implementação participativa do projeto de Belo Monte tá acontecendo na Região do Xingu, que ali é a região da Terra do Meio é a última reserva de Mogno do Estado. O processo participativo acontece a partir de audiências públicas onde as comunidades vão ser ouvidas e as partes envolvidas também vão ser ouvidas, e o fruto desse processo é uma consulta à comunidade, uma consulta de autorização. No plano ideal, esse instrumento é muito interessante de exercício direto de democracia, mas quando a gente pensa em Amazônia, Brasil e Latino América a gente não pode pensar em um substrato ideal de democracia. Podemos no máximo falar que existe uma democracia formal nos códigos processuais, nos substratos legislativos, mas não se pode falar de uma democracia substancial. Então esses processos de consulta à comunidade, que na maioria das vezes são audiências públicas, são processos que substancialmente não são válidos porque a comunidade chega no espaço, a mesa é tomada por autoridades, a divisão dos tempos de falas são desiguais e na maioria das vezes as comunidades não tem acesso à informação segura. A gente tem percebido também que em algumas audiências públicas existe a presença ostensiva armada dos grupos de segurança, e em especial da Força Nacional. Ao final de tudo, esses processos de audiências públicas servem muito mais pra legitimar a pretensão governamental e dos grandes grupos empresariais do que promover um processo democrático de diálogo e de consulta à comunidade, como deveria ser.


Invisibilidades e Questões de Gênero Celi Abdoral

Tomando o vídeo exibido como ponto de partida, gostaria de fazer algumas considerações sobre lugares e não lugares, questões de invisibilidade e de reconhecimento; além de outras questões que são reflexos das demarcações simbólicas sobre a divisão sexual do trabalho, presentes no contexto dos Grandes Projetos e nas propostas de desenvolvimento pensadas para a Amazônia. Essas demarcações influenciaram e influenciam decisivamente não só no processo de colonização recente da região como também as definições cartográficas clássicas que são traçadas sobre ela. No filme, as falas dos representantes das instituições e órgãos envolvidos nesse Grande Projeto, e, até mesmo a fala das lideranças do movimento social local, são quase sempre masculinas. Quer dizer, feitas por homens, ainda que os problemas atinjam mulheres e homens. Assim, o vídeo vai mostrando essas demarcações dos lugares, onde tudo o que é público acaba sendo do âmbito masculino e tudo que é privado do âmbito feminino, não reconhecido ou subvalorizado - em termos comparativos e proporcionais podemos pensar no Congresso Nacional, por exemplo. É a falta desse reconhecimento que infelizmente reforça a superexploração feminina e a invisibiliza. Traçar uma outra cartografia da ocupação da Amazônia, possibilita reconhecer que nesse processo, juntamente com os homens pioneiros vieram também as mulheres pioneiras - e elas vieram para fazer esse serviço do lugar que é estabelecido para nós na sociedade, na divisão sexual do trabalho, que é o âmbito do privado. Apesar de não haver o devido reconhecimento - são atividades que possuem a mesma dignidade que as desenvolvidas por homens. Então vieram para cozinhar, para lavar, para passar, para prestar serviços sexuais. Também faziam atividade de garimpo, coleta do látex e agricultura. O filme é muito interessante e mostra, na primeira fala uma mulher relatando justamente essa realidade de migração feminina para a Amazônia. São mulheres em busca de estratégias de sobrevivência, como no caso desse Projeto, onde se estabeleceram nas casas de prostituição, tabernas, vendas e cozinhas ali no entorno do “beiradão” e do “beiradinho”. A questão também é dialética, pois no caminho, cada vez mais conquistamos espaços e formas de reconhecimento, presidimos sindicatos e nos auto organizamos. Não é a toa que, o conteúdo imagético de fora,

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a visão primeira da coleta do látex, na colonização do Acre, por exemplo, é geralmente a de um homem com uma cuia na mão e uma faca, que vai lá lascar a árvore nos seringais, como se nesse processo não existisse também nenhum dos trabalhos das mulheres. Da mesma maneira, podemos pensar que uma grande a companhia, sempre adota como um de seus marketings a estampa de cuidado, limpeza e eficiência, e nessa lógica os trabalhadores devem se apresentar sempre com o uniforme impecável - e isso é capital social para a empresa. Aí me vem a pergunta: quem cuida dos uniformes dos trabalhadores dessas grandes companhias? Certamente são, em grande maioria, as mulheres, que lavam, engomam e passam esses uniformes, e isso é apropriado em forma de capital social; mas, no entanto o trabalho dessas mulheres é invisibilizado. E nessa relação perversa de invisibilidade, a apropriação do trabalho feminino por grandes empresas que se instauram na Amazônia ocorrem de diversas maneiras. Esses são só alguns exemplos. É por isso que eu costumo dizer; se a gente parar para pensar nós somos muito filhos das putas, e somos mesmo. Resignificando o sentido do termo, no processo do serviço sexual na Amazônia, foi onde os filhos nasceram - então nós somos mesmo filhos das putas com muito orgulho. E vejam, não se quer com isso, em hipótese alguma, reduzir o trabalho feminino ao trabalho sexual. Eu queria dizer assim, quando falamos de prostituição e das prostituas, a ideia da vitimização não é uma ideia boa, por que ela traz uma ideia de passividade. Na verdade, nós mulheres também ingressamos no mercado do sexo, como estratégia de sobrevivência, nem sempre somos enganadas, sabemos que iremos desenvolver o mercado do sexo, muitas sabem de tudo isso. O problema é que costumamos colocar no lugar comum “ai coitadinhas, elas iam trabalhar como babá e não sabiam”. Algumas sim! Mas outras sabiam. O fato de se trabalhar no mercado do sexo, o fato de você trabalhar em uma fazenda ou carvoaria, o fato de você precisar tanto, que essa necessidade faz com você disponibilize sua dignidade não dá ao outro o direito de a aviltar. Quando a gente fala de aviltamento da dignidade na exploração sexual não estamos falando de usar ou não usar o serviço da prostituição, mas sim de exploração sexual, que é o uso do trabalho desrespeitando a dignidade da profissional, ou do profissional do sexo, sobretudo no

Bela Gorda - Paloma Franca Amorim

que diz respeito a sua autonomia e as garantias mínimas de desempenho de um trabalho, como acontece em qualquer outro. Não existe trabalho indigno, o que existe são condições indignas de trabalho! E assim, gosto sempre de falar sobre isso, porque é um processo que acaba sendo invisibilizado, ao final de contas, quando se discute cartografia, ou se discute a questão social dos impactos dos Grandes Projetos pouco se discute o papel das mulheres neles. Em Serra Pelada, por exemplo, e aquele “formigueiro” de homem andando com baldes na cabeça. Na foto tão famosa sobre a Serra Pelada não se vê, por exemplo, a referência do trabalho feminino, nenhuma fotografia, nenhum documentário - e é uma parcela muito expressiva desse trabalho. A cidade que se ergueu no entorno, agregando famílias e pessoas, recebeu muitas mulheres que migraram para Serra Pelada, não só para trabalhar como garimpeiras, mas também em serviços domésticos, pequenas vendas, cozinha e para trabalhar no mercado do sexo, se é que a gente pode falar assim, porque na verdade; no contexto desses Grandes Projetos o que mais se vê é exploração sexual e não prostituição, que são coisas completamente diferentes. A primeira é violação dos direitos humanos fundamentais da pessoa explorada; a segunda é estratégia de sobrevivência de mulheres autônomas – é, portanto trabalho. Atualmente, a comunidade de Serra Pelada ainda existe, mas vive esquecida na poeira tóxica da estrada que corta a comunidade, Hoje, é a localidade com o maior

número de hansenianos do mundo; enorme número de idosos e mulheres vivendo no calabouço do fundo do poço da linha da pobreza; e hoje não podem sequer explorar a mina, já que o conflito envolve outro Projeto, o da mineradora “Serra Leste” cuja principal responsável é a Vale. A gente costuma falar muito em trabalho escravo, e a sua característica política do aviamento em fazendas e carvoarias: nela o trabalhador já sai de casa devendo o dinheiro da passagem, chega lá deve o sabonete que custa 30 reais, deve o aparelho de barbear que custa 30 reais, e, assim ele se vê numa divida que se transforma no seu próprio cárcere, ele não sai da fazenda. Primeiro porque a mesma está vigiada ou ele não viu por onde entrou; devendo pode morrer; ou ainda acredita que deve honrar a dívida, mesmo ela sendo injusta, pois o que lhe resta é sua honra de pessoa honesta, e por isso, muitas vezes consente com a exploração de si, por não ter outra opção melhor. É o que eu chamo de consentimento inoptável de aviltamento da dignidade. No entanto, ainda no processo de invisibilidade sequer vemos que também as mulheres são alvos dessa política do aviamento no âmbito da exploração sexual como forma de trabalho escravo nos mesmos moldes. Se passarmos em uma estrada ao lado de uma pensão onde tem o peão de trecho, ali aguardando para ser arregimentado pelo “gato”, para ir para as fazendas ou garimpos - lá tem também a outra pensão – a casa de tolerância (como dizem no


Aurora - Paloma Franca Amorim

mais perverso machismo), pois lá elas toleram tudo, as garotas de programa, as meninas de programa que também chegam nesses lugares, através da mesma lógica do trabalho escravo. As suas passagens também são “financiadas” a um preço exorbitante, ou são levadas sob violência; e lá, precisam pagar muito caro pelo perfume, pelo sabonete, pela comida, pelo absorvente. São obrigadas a transar mesmo estando doentes de malária, sem pausa na menstruação, com extensas jornadas de trabalho. Se quiserem fugir, não podem - tem capanga armado vigiando; vivem em uma situação também de escravidão. E essa forma de trabalho indigno, se replica para todos os espaços ou conjunturas. Quem não conhece uma casa, na Capital mesmo, onde mandaram buscar uma menina pretinha de preferência e do interior pra trabalhar? “damos comida, estudo e roupa”, dizem. Aí, as roupas são as que não servem mais na filha, a escola é a pública e a comida é o que sobra do almoço. E a situação se agrava ainda mais na geografia inter-fronteiras, porque, muita das vezes, a mulher estrangeira quando entra ou a mulher brasileira quando sai ficam em uma situação de ilegalidade – ou porque já assim chegaram ou porque muitas chegam portando passaporte, documentação, visto aprovado; mas têm seus documentos tomados ou destruídos - isso deixa as pessoas em uma situação de não documentadas, o que as faz cair nas “garras” da ilegalidade, da clandestinidade. Então, sem a situação de legalidade, não têm como acessar nenhum

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tipo de política publica, se sofrem violação de direito, não podem ir à delegacia, porque se forem, acabam deportadas. Se sofrerem alguma agressão ou ficam doentes não podem ir a um posto de saúde, rebeber atendimento médico, porque lá vão constatar a situação de ilegalidade e serão criminalizadas, cuja pena mais comum é a prisão ou detenção até a data da deportação. Se sofrerem algum abuso no âmbito dos direitos trabalhistas, também não pode ir até a justiça do trabalho, porque também acabam deportadas. Se pararmos para analisar, isso é extremamente lucrativo dentro da lógica da máxima apreensão do lucro no capitalismo, tanto dentro do Brasil, que também recebe muitos migrantes (país emergente, sabe como é!!!) quanto com as pessoas que vão trabalhar fora daqui. É um mercado extremamente lucrativo e exploratório esse de migrantes não documentados, pois não podem reclamar nenhum direito e se submetem a todas as regras do jogo. E importa atentarmos, pois, muitas das vezes mudam-se alguns termos e no entanto, as práticas continuam as mesmas. Nessa imposição de uma “globalização” de cima para baixo; a gente sai aí só falando, now how, folow, in side/ out side, buusines, development, green energy, agrobusines, palavras super estrangeiras e atraentes - que no processo de cooptação ideológica também são estrangeiradas para que se reduza o impacto do dano e destruição que causam. Hoje, escutamos com frequência se falar de bio combustível ou Green energy, mas poucos discu-

tem os processos de desestruturação das atividades tradicionais e ancestrais no uso do dendê e do coco de babaçu para a produção do biodiesel. Ruralistas passam a desenvolver agrobusiness, forma de maquiar uma velha prática - a monocultura de latifúndio - agora com requintes de crueldade, pois trata as pessoas como lixo de difícil reciclagem humanística. A palavra só mudou, mas a lógica é a mesma, monocultura, latifúndio e trabalho escravo. E vejam, reflorestamento, também é monocultura de latifúndio – Tem fábrica de lápis que adora fazer, reflorestamento de eucalipto. Quando se planta uma monocultra de eucalipto nos solos da Amazônia, e depois usa a sua madeira pra fazer lápis, dá-se a mesma lógica da cana de açúcar e do álcool. Eucalipto sendo usado na mesma lógica, da monocultura, da apropriação do lucro, então é muita cara de pau querermos falar em reflorestamento com eucalípto no Amazônia. Apesar de que agrobusiness é uma palavra bem bonita... Vistas de perto, as propostas de (des) envolvimento sustentável (última tendência da moda) não respeitam as comunidades locais e as afastam dos processos de decisão, por isso eu escarneço dizendo que essas propostas “(des) envolvem a comunidade”. No caso de Belo Monte- Rio Xingu- Pará o discurso é o da energia limpa, renovável e sustentável. Diversas comunidades indígenas e não indígenas perderão seu território, sua fonte de alimentação, pois o desvio afetará muitas piracemas. O estudo de impacto ambiental e seu relatório - o EIA-RIMA, ainda que com diversas falhas, impôs o cumprimento de 64 condicionantes antes do início do Projeto. O Estado Brasileiro autorizou o início das obras, tendo o Consórcio Energético que é formado por multinacionais (dentre elas empresas subsidiárias da Vale) só cumprido 04 das 64. Um político da região, identificando-se com o projeto discursou em plena conferencia nacional dos povos indígenas, que aconteceu ano passado no Xingu- em Altamira/ PA dizendo: “a vocês exigem 64 condicionantes? Então tá, 64: 6-4=2, 4 é mais que 2 - cumprimos mais

da metade, vocês estão é com sorte!!!” Esse é o campo que se imergimos nossa ação, por isso gostaria de finalizar como eu gostaria de ter começado toda essa conversa, refletindo qual imaginário que a gente ocupa nos corações e nas cabeças dessas pessoas. Quanto mais se globaliza o discurso da globalização, mais exóticos nós nos tornamos, até para nós mesmos. E por falar em exoticidade, lembrei das feiras dos bairros daqui da Amazônia onde a maioria só vende maçã, pera e uva. Passamos a tratar como exótico nosso cupuaçu, o bacuri a castanha – frutas que não encontramos mais com tanta facilidade nem na feira do Ver-O-Peso. Essa é a parte antropofágica do processo de globalização, onde eu incluo o desejo e, falando em desejo ... E falamos muito sobre desejo hoje de manhã eu e Luizan – tornamo-nos iguarias exóticas também. No mercado do sexo e do turismo sexual globalizado os turistas e pessoas não buscam apenas nossas comidas exóticas, ou floresta e suas plantas e animais exóticos; buscam também degustar as pessoas e especialmente a mulher brasileira em sua exoticitade - agora imaginem quando se pensa nessa parte dita misteriosa do Brasil, que é a Amazônia. É temos que driblar as armadilhas do assistencialismo, que hoje repaginado, vem acrescido de métodos sutis e sofisticados como as teorias de participação, consulta e parceria com a sociedade civil, acabando por se colocar - sem uma avaliação mais crítica e autônoma sobre o novo papel do estado e das possibilidades de mudança - como melhor opção para a política de dominação, pacificação e de integração dos povos indígenas e das comunidades afetadas pelos impactos dessa proposta de (des) envolvimento pensada para a Amazônia e a Latino América. E/ou especialmente como alternativa à política de extermínio e limpeza étnica tão marcante no processo de formação do Estado Brasileiro.


Na luta, vamos buscando estratégias de sobrevivência, construindo redes alternativas (alternativa é uma palavra que também voltou à moda) negociando nossa moeda de troca em ações coletivas (ações coletivas também é uma palavra que está na moda). Nessas terras daqui ainda são presentes os casos de extermínio, pistolagem, criminalização e imposição cultural. Pra dizer por fim que nesse processo de enfrentamento e resistência, descobri - a partir da minha experiencia com a rede aparelho, e as pessoas que eu conheci Arthur, Pedro, Bruna, Ângelo, Giseli, Nando, Darling, Luah, Romáio, Lucas (e tantas outras que não nominei por pura sequela) – que a arte despojada de sua arrogância é uma estratégia interessante para criar condições de possibilidades ao estranhamento, à critica, à ação e à reação. Poder, por exemplo, falar sobre direitos humanos usando outras linguagens além do megafone ou de duas horas de palestra em uma conferência; poder estar na rua com a arte, a musica, a poesia o teatro, o cinema, a intervenção, a performance – tem me possibilitado de maneira mais fluida mobilizar as pessoas que queremos. E aprender a reconhecer também a potencia dessas comunidades e pessoas e suas incursões artísticas. Reafirmar a arte feita por indígenas e quilombolas artistas como arte e o direito que estas comunidades têm de terem seu acervo artístico dentro da comunidade e não recluso em um museu da Europa ou de qualquer outro país rico. Eu não estou falando daquele discurso da arte engajada, como espécie do gênero arte, mas de arte, que em um momento foi música de protesto, em outro foi grafitte e performance em todos. Ou seja, eu estou falando de causar estranhamento, mesmo por 2 segundos, se for já estará valendo, se a gente consegue causar estranhamento por 5minutos já está valendo.

Luanda - Paloma Franca Amorim

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#Vontade de Potência ≠ Vontade de Poder

Então hoje a SDDH tem o café com direitos humanos, eu acho o termo meio quadradinho, porque é uma luta dentro de instituições tradicionais, no entanto vamos tentando, ainda que pela via da institucionalidade, propor essa nova linguagem, ou melhor, essa outra linguagem, que não é nada de nova, mas na verdade apenas conta com novos aparelhos tecnológicos. E é uma luta se desprender, é uma luta fazer o velho militante operar um notebook, um datashow, uma câmera de celular (dependendo de quem ler isso essas coisas já serão antiquadas) . Também a apropriação da tecnologia por nós certas mulheres, que temos medo ou não temos acesso à tecnologia, porque esse é um lugar masculino. Participei de um evento com 350 mulheres e a professora palestrante solicitou a presença “do rapaz responsável para ligar o datashow”. Uma menina do interior lá de Moju/PA disse “professora, nós somos 300 mulheres, por que a senhora está chamando por algum rapaz... Eu sei ligar o datashow!”. Se não é possível falar em revolução ainda, vamos causando fissuras, de estranhamento, do reconhecimento de diversos paradigmas como igualmente válidos e dignos. Não cabe a essa realidade um paradigma que separa o sujeito do objeto; o a pessoa da natureza... Falávamos de porosidade, ontem de porosidade... Eu tenho a pretensão de criar aqui alguma uma porosidade, se alguém vem junto, se a cena é coletiva, caótica, diversa e divertida melhor ainda!.

Melanchta- Paloma Franca Amorim http://plmfa.wordpress.com/


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#Estamos de Greve

em Greve

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Identidade e diferença de quem pinta o corpo para a guerra ou para a festa: A trajetória da poética de resistência do Grupo Urucum no período de 2001 a 2005 Arthur Leandro

PREÂMBULO

Minha intenção é analisar a produção de trabalhos coletivos do Grupo Urucum no período de 2001 a 2005 - período em que participo ativamente do grupo, perguntando se podemos chamá-la de uma produção de arte contemporânea, e, mais, qual a necessidade de caracterizá-la assim. São nove as ações do universo dos trabalhos do grupo que tomo como objeto: 1) “Os catadores de orvalho esperando a felicidade chegar” (Macapá - 2001); 2) “Desculpem o transtorno – estamos em obras” (Rio de Janeiro – 2002); 3) Projeto Rejeitados (2002/03); 4) “Mensagens Vazias” (Macapá-2002/03); 5) “Divisória - Imaginária” (Macapá-2003); 6)“Bicicletas elétricas” (Nova Iorque-2003/04); 7) “Lotação de paus mandados” (Macapá-2004); 8) Corpo Fechado (Rio de Janeiro-2004); 9) “Concerto de Roque-roques” (Macapá/Kassel-2005). Estas ações coletivas do grupo são realizadas a partir de motivações baseadas na realidade local, mesclando questões poéticas com a tensão social, a vivência na cidade de Macapá, as relações entre a cultura amazônica e a globalização ou tencionando a relação entre artistas e instituições mesmo quando são ações realizadas para participação em eventos em instituições culturais. A participação do Grupo em eventos em instituições culturais acontece pela conexão em rede de comunicação com outros artistas, como no “Desculpem o Transtorno – estamos em obras”, realizado no Palácio Gustavo Capanema – sede da FUNARTE no Rio de Janeiro; do “Projeto Rejeitados”, pensado para o Museu de Arte Moderna da Bahia e nunca realizado; e do “Bicicletas elétricas”, realizado no American Society, em Nova Iorque. E a partir de então, por convite direto como no “Mensagens Vazias”, realizado a partir de convite para intervenção na Casa das 11 janelas – Museu de Arte Contemporânea do Pará - o trabalho foi pensado e realizado para uma intervenção para a qual fomos convidados e que nunca aconteceu; “Corpo Fechado”, pensado em Macapá e realizado na praia de Ipanema no Rio de Janeiro - proposição para o projeto de

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intercâmbio INTERFACES, entre a EBA/UFRJ e o Reseau L’age d’Or - o Grupo Urucum participa a partir da argumentação de que minha pesquisa para doutoramento naquela escola tratava da poética do coletivo do Urucum e não caberia uma proposição individual se meu trabalho era no Grupo; e “Concerto de Roque-roques”, realizado simultaneamente na Feira Maluca em Macapá e no Kunsthalle Museum Fridericianum, em Kassel – Alemanha.

CONTEXTO

Apesar de em Macapá não haver espaços de exposição integrados ao circuito oficial e mercadológico da arte brasileira, de alguma forma os membros do grupo puderam tomar contato e se relacionar diretamente com o universo institucional (impositivo) que legitima e controla a produção artística brasileira, e nesse contato assumiu o trânsito institucional sem integrar-se totalmente a ele, assumiu uma postura crítica que tenta não ser submissa ao poder. O meu interesse por essa parcela da produção do Grupo Urucum dá-se pelo uso de estratégias diferenciadas em relação ao procedimento tradicional e secularizado de legitimação artística. Pela experimentação poética de relação direta com a sociedade e realização de propostas em espaços urbanos – sem a mediação institucional. Pela participação crítica quando em eventos no interior das instituições culturais. Pela participação em redes de comunicação e ações conjuntas com outros artistas e coletivos artísticos. O que pressuponho é que os usos dessas estratégias caracterizam as ações do coletivo como atividades de resistência política e cultural1. Na minha proposição e no meu texto eu falo na primeira pessoa alternando o posicionamento do singular com o plural, mas em todo caso declarando a proximidade com as ações e com o grupo, eu também faço parte do objeto e para mim é difícil especificar 1 E também nas duas participações do Grupo no “Dia do Nada”, em 2003 e 2004, com os trabalhos “Estamos em pleno rio-mar… Doido espaço… Estamos em pleno rio-mar… Dois infinito…”; e “Farofa de ovo – ou Tudo o que há no rio, nada!”, respectivamente.

qual é a pessoa que fala, a do singular ou a do plural, e para usar a alegoria poética: me imagino como um peixe na pirapora»> pira=peixe, pora=salto»>. Como quem salta para encontrar sua singularidade fora do coletivo (o plural) e novamente mergulhar na massa social liquida tentando analisar aquilo que percebeu tanto na convivência coletiva quanto na singularidade do salto que realizou na tentativa de vencer a corrente do rio, a análise é na contracorrente e não separo o artista do teórico e nem do ativista. Mesma mistura, ou alternância de posições, com que caracterizo minha participação nas ações do grupo Urucum.

IDENTIDADES, DIFERENÇAS E ESTRATÉGIAS DIANTE DO SISTEMA

O exemplo dos projetos modernistas – de uma arte “desinfetada” – que acompanham a racionalização imposta pela modernização acaba por gerar códigos artísticos que impossibilitam cada vez mais o acesso do homem comum às produções simbólicas consideradas legítimas. Estes projetos implantados na América latina são denunciados por Nestor Garcia Canclini como um simulacro urdido pelas elites e pelos aparelhos estatais, sobretudo os que se ocupam da arte e da cultura, mas que por isso mesmo os torna irrepresentativos e inverossímeis da cultura viva e híbrida que se manifesta paralela ao crescimento da vida urbana. As elites – que pretendiam manter sua distinção em relação às outras classes através do monopólio dos códigos estéticos considerados superiores quando comparados aos populares ou massivos – não consideravam as desigualdades em seus projetos modernos, sendo estes sempre excludentes da maioria da população, à qual restam as opções do folclore popular ou das produções massivas geradas pela indústria cultural2. No início do século XIX a história lusobrasileira foi marcada por dois grandes acontecimentos: a invasão de Portugal pelo exército francês e a transferência da família real e da Corte portuguesa para o Brasil. Consequência direta da invasão francesa, a chegada da Corte lusitana, em 1808, representou para o Brasil um momento de profunda mudança institucional e cultural. Diante da nova condição de sede do governo metropolitano, a colônia americana passou por uma importante reestruturação políticoadministrativa, entre 1808 e 1810 o governo lusitano promove a abertura dos portos às nações amigas; revoga as proibições à manufatura; cria instituições como as escolas de medicina na Bahia e no Rio de 2 CANCLINI, Nestor Garcia Culturas Hibridas: estratégias para entrar y salyr de la modernidad. Buenos Aires, Barcelona, Mexico: Paidos. 2001.

Janeiro, academias militares e intendência de polícia - entre outras, dando início à construção do aparato burocrático-estatal necessário para atender as novas exigências de sede do governo português. Como parte da (re)estruturação administrativa e política, em 1816 D. João VI contrata um grupo de artistas franceses encarregados de implantar a Academia de Belas Artes, que passa a funcionar a partir de 1826, e cujo objetivo era o ensino e propagação das artes e ofícios artísticos segundo os modelos vigentes na Europa. Alguns anos depois, Marx e Engels, no Manifesto do Partido Comunista, apontaram a necessidade de expansão (a partir da Europa) de mercados para a produção industrial, expansão que revoluciona constantemente a tecnologia e seus instrumentos de produção e arremessa todas as nações para a torrente da civilização. Eles dizem ainda que, para a inserção no seio da chamada civilização, a burguesia obriga “todas as nações (…) a adotarem o [seu] modo de produção”, imposição que identificam como o projeto de reprodução das relações burguesas por toda parte, para assim conquistar a terra inteira3. O Manifesto do Partido Comunista se refere apenas aos meios de produção de bens e de capital, mas facilmente podemos projetar esse universo para a produção artística e cultural. Para tanto recorro ao conceito de hegemonia formulado por Antônio Gramsci. Gramsci fala da hegemonia e a caracteriza como a liderança cultural que garante a dominação, considerando que os mundos imaginários funcionam como matéria espiritual para se alcançar um consenso reordenador das relações sociais, conseqüentemente orientado para a transformação e explica que as formas históricas da hegemonia nem sempre são as mesmas e variam conforme a natureza das forças sociais que a exercem. Sérgio Buarque de Holanda exemplifica o caso brasileiro de hegemonia e dominação ao dizer que a tentativa de implantação da cultura européia no extenso território e em condições naturais hostis está nas raízes do Brasil, e conclui dizendo que somos desterrados na nossa terra, e, ainda, pergunta se realmente podemos representar as formas de convívio, instituições e ideias das quais acreditamos que somos herdeiros. Sem considerar a experiência da produção artística que, à revelia dos desejos dos mandatários do Estado, acontecia misturando signos culturais de diversas etnias de três continentes distintos, a missão francesa oficializa a arte produzida segundo o gosto do governante e relega à planos inferiores todas as demais produções artísticas fruto da diversidade cultural brasileira. A história registra esse período como de grande efervescência cultural, mas analisada pela ótica da dominação cultural, a história 3 MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. Manifesto do partido comunista. Porto Alegre: L & PM. 2002, p. 28-32.


da arte brasileira torna-se ambígua. Se a política oficial para a cultura registra em nossa história alguns governantes como grandes incentivadores e financiadores das artes, a política aqui aplicada, inclusive a cultural, também é responsável pela imposição de uma identidade única, hegemônica, dominadora e opressora. Então, a história da arte brasileira pode ser entendida como fruto da tensão pelo embate entre a manutenção de identidades culturais diversificadas frente à hegemonia da herança da modernidade européia, ou como ocorre na contemporaneidade, com a expansão da sociedade de consumo norteamericana e no mundo neoliberal do mercado globalizado, a imposição de um único modo de produção e circulação de arte e bens culturais em constante conflito com identidades resultantes da experiência dos povos dominados, escravizados ou imigrantes. O manifesto do partido comunista prevê a globalização do mercado para a manutenção do sistema capitalista, que trás em si as relações de domínio, subordinação e dependência, pois os instrumentos de produção de bens e o conhecimento tecnológico que impulsiona o progresso, inicialmente posse exclusiva da burguesia que Marx e Engels criticavam, e que permanecem sob o domínio de uma elite econômica agora representada pelas corporações transnacionais na economia neoliberal, cujos interesses de mercado passam a interferir em todas as instâncias de decisão em escala mundial, inclusive nas políticas nacionais. O Brasil, não possuindo meios de produção, está sujeito a imposição de interesses dos países industrializados e suas corporações econômicas transnacionais, inclusive no meio artístico. Na crítica Arte e burocracia, de 1967, Mario Pedrosa diz que o “Brasil é assim, o único pais do mundo que reconhece duas espécies de arte, uma ‘acadêmica’ ou ‘clássica’ e outra moderna”4, sua crítica propõe a reflexão sobre a confusão na prática artística provocada a partir do duplo investimento da política cultural brasileira que nos últimos anos da década de 1960 concedia prêmios de viagens e bolsas para o exterior em dois salões de arte distintos e divergentes, mas que permitia aos artistas concorrerem em ambos “o exercício do sistema já criou mesmo a aberração. Como? Permitindo a um participante do Salão acadêmico, (…) no dia seguinte apresentar-se ao Salão “moderno” e ganhar neste o grande prêmio de viagem cobiçado. Assim reconhece-se oficialmente a possibilidade de um sujeito, já consagrado como artista “acadêmico” ou “clássico” ser meses depois consagrado como artista “moderno”5. 4 PEDROSA, Mario Mundo, homem, arte em crise. São Paulo: Perspectiva. 1986. p 104. 5 Idem

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Pedrosa ainda especula os motivos desse duplo investimento, ele supõe que talvez seja por que nesse período fosse necessário responder com investimentos à produção “acadêmica” para a elite que sustentava a política interna ao mesmo tempo em que o pais deveria parecer “moderno” para as conexões internacionais, mas ainda assim discriminatório à produções artísticas que não se enquadrem em suas regras. O próprio Pedrosa afirma que os “artistas jovens (não apenas de idade) e revolucionários dos nossos dias estão marginalizados, conservados bem a distancia dela [a arte], enquanto burocratas, confinados no seu isolamento, tratam de montar ali uma arte oficial, a seu gosto e pequena dimensão”, e com isso avalia os interesses estatais na política cultural que classifica como “fora do compasso da atualidade, indiferente ou estranho ao que se faz hoje no Brasil de mais arriscado, de mais vivo e de mais… brasileiro.”6 Em meados da década de 1980 a função de “montar ali uma arte oficial” e indiferente ao que se produz de “mais vivo e de mais… brasileiro” migra do aparato estatal para outros agentes, desta vez ligados ao mercado, que criam, também isoladamente, as novas regras para a arte brasileira. São agora os jornalistas e dirigentes de instituições culturais no Rio de Janeiro e São Paulo quem vão traçar identidades únicas para a inserção da produção do Brasil no mercado internacional. Em São Paulo, Sheila Leirner defende uma geração feliz no jornal Estado de São Paulo. No Rio de Janeiro, Roberto Pontual, autor do opúsculo Explode Geração! Encomendado pelo galerista Thomas Cohn, apresentava os jovens artistas no contexto do pós-modernismo internacional e da abertura política brasileira, situando-os como opositores do “isolacionismo e do autoritarismo conceitual da geração precedente”(1984). No O Globo, Frederico Morais dava sequência a uma série de artigos, que vinha escrevendo desde 1982, difundindo as teorias do crítico italiano Achille Bonito Oliva, mentor da transvanguarda7 e interlocutor do neoconservadorismo artístico no cenário internacional... As exposições Europa 79, Bienal de Veneza, Documenta 7, e Bienal de Paris (1) difundem a transvanguarda e dão impulso ao mercado internacional de arte nos fins dos anos 70 e início dos anos 80. O Retorno à Pintura enquanto “última tendência da arte contemporânea” - tal como na ocasião chegou a ser festejado pela crítica dos anos de 1980 - representou mais do que uma confissão do mercado quanto a sua limitação para continuar absorvendo as transformações da linguagem da arte contemporânea que havia décadas vinham 6 7

Ibidem. Ou “retorno à pintura!”

sendo promovidas por sucessivos movimentos vanguardistas. Em verdade, “o Retorno à Pintura foi um movimento artístico e teórico representativo de diversos grupos de artistas, críticos e acadêmicos defensores de uma cultura pós-moderna opositiva à cultura do chamado alto modernismo” 8. Analisando as edições da Bienal de São Paulo de 1983 e de 1985, além da mostra “Como vai você, Geração 80?”9, realizada no Rio de Janeiro em 1984, chegase facilmente à constatação de que esses eventos não apenas introduziram o fenômeno do Retorno à Pintura e sua estética anti-historicista como símbolos da “chegada” do pós-modernismo no Brasil, como também serviram para propagar na órbita do mercado de arte e do mecenato institucional do país a “pirâmide da felicidade” em que havia se transformado mundialmente aquele fenômeno. Ricardo Basbaum esclarece que o corpo teórico formulado por Bonito Oliva foi gerado a partir da produção de seu país e, devido ao seu amplo e rápido destaque, foi estendido a outras tendências internacionais da nova pintura10. Em outras palavras, novamente o Brasil absorve tendências que lhe são estranhas através da invenção intencional de uma situação que lhe aproxima da produção internacional dominada pelo mercado. A história da arte brasileira absorveu facilmente os preceitos ditados por Oliva e relegou ao esquecimento parte da produção “mais viva e (talvez) mais… brasileira” de toda a década, Márcia X, artista performática atuante na década de 198011, disse que o problema é a incompreensão que existe no meio das artes plásticas, o descrédito que existe no Brasil em relação à performance, à arte política, à arte das minorias, e que “é preciso lembrar que a geração 80 não produziu somente pintores, e que esse pensamento se difundiu porque junto com os pintores o mercado de arte se fortaleceu e fez surgir essa “versão oficial” da década de 80.”12 Essa prática invencionista que em ciclos muito bem definidos obriga a adesão às regras adotadas pelos agentes das instituições culturais no Brasil foi implantada pela monarquia absolutista portuguesa 8 REIS, Ronaldo Rosas Conformismo pós-moderno e nostalgia moderna. In Cyberlegenda. Revista, numero 1, Niterói: UFF, 1998. 9 Participam da exposição : Antônio Dias, Cildo Meireles, Ivens Machado, Jorge Guinle, Leda Catunda, Leonilson, Roberto Magalhães, Sérgio Romagnolo, Tunga e Victor Arruda. 10 BASBAUM, Ricardo. Pintura dos anos 80: Algumas observações críticas. Gávea no.6. R Revista do Curso de Especialização em História da Arte e Arquitetura no Brasil. Rio de Janeiro. PUC-RJ, 1988 11 Uma entre tantos esquecidos pela historia da arte oficial dos anos 80, como, apenas no contexto carioca : “Alex Hamburger”, “Dupla especializada”, “Grupo A Moreninha”, “Aimberê Cesar” e outros. 12 X, Márcia, em entrevista datada de 2001. Fonte: http:// www.marciax.art.br/mxText.asp?sMenu=5&sText=3

e permanece na contemporaneidade como se fosse um DNA que passa como herança do Estado para a sociedade, ou do financiamento estatal para o mercado – através do desmanche dos serviços públicos desde o governo Collor de Mello, e da criação das Leis de incentivos fiscais que afastam a arte oficial do gosto e dos interesses do governante para jogá-la no seio do mercado. A história da arte brasileira, quando relacionada às políticas culturais oficiais, é a historia do controle sobre a produção, sobre a manipulação e sobre a circulação de bens simbólicos, visando à manutenção do poder sob o domínio político e cultural de uma elite conectada com interesses internacionais que oficializa a arte que lhe interessa e marginaliza qualquer tentativa de diferença. Talvez o melhor exemplo dessa prática tenha sido a política adotada pela ditadura militar depois do golpe de1964. Se por um lado o governo militar implanta a censura e a repressão à produção ideologicamente contrária ou crítica ao regime opressor, por outro foi o regime militar um grande financiador da arte brasileira. É nesse período que é criado – como já havia acontecido na ditadura anterior, a de Vargas – o aparato institucional, e a dotação orçamentária, que até hoje dita às regras da política cultural no Brasil, instituições como a FUNARTE, EMBRAFILME, Conselho Federal de Cultura, Instituto Nacional do Cinema, Pró-Memória, que, ainda sobreviventes ou remodeladas em outras siglas (juntamente com outras entidades oficiais criadas posteriormente que também) permanecem na estrutura do Estado brasileiro. Se não é possível afirmar que os governantes da ditadura militar eram intelectuais preocupados em criar incentivos estatais para a produção artística, podemos especular que a criação desse aparato visava a utilização da produção de bens simbólicos para a legitimação do poder constituído. No discurso proferido pelo presidente Médici sobre a economia brasileira13, no início de seu governo, ele afirmou ser muito simples a política econômica dos militares, resumindo tal pensamento na frase “os ricos devem ficar mais ricos para que, por sua vez, os pobres possam ficar menos pobres”. É possível transpor esse pensamento para a política cultural da ditadura militar, aliás, para uma analogia mais razoável temos no Manual Básico da Escola Superior de Guerra14 as diretrizes do tratamento dado aos meios de comunicação, ditando que quando estes forem “bem utilizados pelas elites constituir-seão em fator muito importante para o aprimoramento da Expressão Política; [mas quando] utilizados 13 CNN, Para além de cidadão Kane. Vídeo-documentário. Londres: CNN, 1992. 14 Departamento de estudos MBtin75,p. 121. Apud ORTIZ, Renato A moderna tradição brasileira. São Paulo: Brasiliense. 2001.


tendenciosamente podem gerar e incrementar inconformismo”. Como no conceito de Gramsci, o controle serve para obter a hegemonia, que leva à liderança, que garante a dominação cultural, que funciona como matéria espiritual para se alcançar um consenso (re)ordenador das relações sociais. Renato Ortiz diz que, para a cultura brasileira, a Lei de Segurança Nacional não detinha apenas o poder de repressão, mas interessava-se no desenvolvimento de uma determinada produção cultural submetida à razão do Estado, reconhecendo as relações de poder na produção cultural e entendendo a produção cultural como benéfica quando circunscrita no poder autoritário15. A ditadura militar fortaleceu economicamente a elite brasileira e ampliou o aparato institucional para controle ideológico dos meios de comunicação e fez o mesmo com a produção cultural, transformando a produção artística em aparelho ideológico para manter o conformismo na população e com isso atingir sem muito esforço a manutenção do poder político. Embora em ambiente hostil, artistas promoveram a resistência no seio das instituições culturais, como Artur Barrio que lançou em 1969 seu “manifesto contra as categorias de arte, contra os salões, contra as premiações, contra os júris, contra a crítica de arte (Manifesto Estética do Terceiro Mundo)”. Contra, portanto, o sistema de arte e suas categorias, considerando-as uma imposição aos artistas latinoamericanos. Barrio considerava sua situação econômica particular e dos artistas como um todo quando dizia que “no sentido do uso cada vez maior de materiais considerados caros para nossa, minha realidade, num aspecto socioeconômico de 3º mundo (América Latina inclusive)”, e, ainda, avalia a imposição do uso de material importado ao dizer que “devido aos produtos industrializados não estarem ao nosso, meu, alcance, mas sob o poder de uma elite que eu contesto”, lança sua proposta libertária afirmando que “… a criação não pode estar condicionada, tem de ser livre”. E acrescenta num manifesto escrito à mão distribuído na abertura do II Salão de Verão, em 1970, que os Salões estão “desestimulando novos valores e revelando o que já deixou de existir há muito tempo”16. Para Barrio, a utilização de materiais caros e convencionais em trabalhos artísticos representava a continuidade dos “serviços” da arte ao gosto das elites, e em contraponto propõe materiais baratos e perecíveis para problematizar a questão econômica na arte. Fernando Cochiarale explica que “a partir 15 ORTIZ, Renato. A moderna tradição brasileira. São Paulo: Brasiliense. 2001, p.116. 16 BARRIO, Artur. Manifesto da estética do terceiro mundo In LENZ, André & BOUSSO, Daniela (org.) Artur Barrio, a metáfora dos fluxos: 1968/ 2000. Rio de Janeiro, Salvador, São Paulo: MAM-RJ, MAM-BA , Paço das artes. 2000.

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da crítica a essa realidade socioeconômica, étnicopolítica e estética Barrio deduz, com uma clareza rara na arte brasileira, o eixo fundamental de sua singular poética: conspirar contra o gosto das classes dominantes - no campo em que essas exercem seu poder cultural e operatório (poder assentado na crença da existência de um campo verdadeiro e puro da arte) - pela utilização de materiais precários e perecíveis, colhidos nos rejeitos de nossos trânsito no fluxo da vida”17. “Trouxas de carne”, situação proposta por Artur Barrio para o evento “Do corpo à terra”18, é composta de pedaços de carne e ossos embrulhados em trouxas de pano espalhadas em espaços públicos, segue o princípio da transcendência da natureza cotidiana na qual se origina para a transposição de resquícios dessa vivência para o mundo da arte, onde, segundo Cochiarale, eles perdem a conotação da propriedade física, visual e, por vezes, olfativa para assumir um estatuto crítico19. Para sua conspiração contra o gosto das elites, Barrio vai às ruas e intervém no cotidiano das cidades sem perguntar às pessoas se é isso que elas queriam. Age a partir da sua percepção da realidade, inclusive a econômica, usando os rejeitos da sociedade de consumo para fazer seu trabalho em relação direta com a sociedade. Paulo Herkenhoff diz que a atitude de Barrio sustentou dois debates: o primeiro pela liberdade de expressão na ditadura e o segundo contra a desigualdade de expressão no capitalismo.20 A consciência dos efeitos da economia mundial na economia e na produção artística latinoamericana somados aos aspectos socioeconômicos 17 COCHIARALE, Fernando. Arte em trânsito: do objeto ao sujeito. In LENZ, André & BOUSSO, Daniela (org.) Artur Barrio, a metáfora dos fluxos: 1968/ 2000. Rio de Janeiro, Salvador, São Paulo: MAM-RJ, MAM-BA , Paço das artes. 2000, p.17,18 e 19. 18 Realizado no Parque Municipal de Belo Horizonte, em abril de 1970. “O evento Do Corpo à Terra durou três dias, durante os quais foram realizadas ações, rituais e celebrações tais como a queima de animais vivos por Cildo Meireles, a explosão de granadas coloridas por Décio Noviello, o lançamento de ‘trouxas ensangüentadas' por Barrio num ribeirão que corta a capital mineira, a queima de faixas de plástico com napalm por Luiz Alphonsus, trilhas de açúcar na terra por Hélio Oiticica ou o emprego de carimbos com frases de impacto por Teresa Simões. O crítico Francisco Bittencourt referiu-se a esse grupo de artistas como Geração Tranca-Ruas, e Frederico Morais, organizador do evento, no texto Contra a Arte Afluente: O Corpo É o Motor da Obra (Revista Vozes, 1970), afirmava: 'O artista hoje é uma espécie de guerrilheiro”. Apresentação Ernest Robert de Carvalho Mange In MORAIS, Frederico. Panorama das artes plásticas séculos XIX e XX.São Paulo: Instituto Cultural Itaú, 1991. 19 COCHIARALE, Fernando Arte em trânsito: do objeto ao sujeito. In LENZ, André & BOUSSO, Daniela (org.) Artur Barrio, a metáfora dos fluxos: 1968/ 2000. Rio de Janeiro, Salvador, São Paulo: MAM-RJ, MAM-BA , Paço das artes. 2000, p. 17,18 e 19. 20 HERKENHOFF, Paulo Barrio – liberdade, igualdade e ira. In LENZ, André & BOUSSO, Daniela (org.) Artur Barrio, a metáfora dos fluxos: 1968/ 2000. Rio de Janeiro, Salvador, São Paulo: MAM-RJ, MAM-BA , Paço das artes. 2000, p. 26.

dos artistas brasileiros é o que impulsiona o manifesto de Barrio, uma declaração da existência de imposições econômicas externas à arte e ao contexto da arte brasileira, inclusive imposição das indústrias de materiais artísticos. Ele reconhece a interferência na critica, nos júris, nas premiações, e nos salões que mantém a classificação e distinção das categorias das artes plásticas em pintura, escultura, desenho e gravura21; e a contestação política, reflexão critica das relações de poder, ou mesmo proposições provocativas à reação e enfrentamento feitas direto ao público impulsionam a experimentação poética dos artistas plásticos durante os anos de chumbo. Se não de todos, ao menos de parte qualitativa e quantitativamente relevante de artistas atuantes nesse período. Ações e trabalhos classificados como ‘de resistência’ foram realizados por artistas desde a implantação da ditadura militar brasileira e da sua política cultural autoritária. Antônio Manuel faz, em 1968, “Imagens da violência”, em referência direta às imagens de conflitos entre a sociedade civil e o governo militar, um ano antes Carlos Zilio havia exposto “Lute (Marmita)”, uma marmita de alumínio, objeto do cotidiano de operários e outros trabalhadores assalariados, com um rosto anônimo em papier maché – a marmita é coberta com um filme plástico com a inscrição: LUTE. “Do It Yourself: freedom Territiry” (1968) [Faça você mesmo: território de liberdade], de Antônio Dias, apresentada no Museu Nacional de Arte Moderna de Tókio, é composto de demarcações no chão de espaços quadrados com adesivos (ou plotagem) de um metro de comprimento, formando um retângulo de 6×4 m., a proposição nos dá várias possibilidades de significações, inclusive a de provocação ao público do museu. Para fora do circuito oficial da arte, mas nem por isso fora da crítica ao sistema, Cildo Meireles veicula seus trabalhos em meios cotidianos e oficiais de uso popular, assim são suas “Inserções em circuitos ideológicos” – uma operação provocadora da ordem pública, interferência nas estruturas que simbolizam e garantem o poder estabelecido. Em 1970 realiza o “Projeto coca-cola” – garrafas de cocacola com a inscrição “yankees go home”, em branco - frase que somente era vista quando as garrafas estavam cheias do refrigerante símbolo do poder do Imperialismo norte-americano – e na operação de Cildo, a mesma garrafa que difundia o império capitalista divulgava, como uma imprensa oculta também difundia a mensagem antiimperialista. Da mesma forma a mensagem “Quem matou Herzog?” carimbada em notas de cruzeiro de baixo valor agia 21 E que hoje podemos acrescentar a fotografia, o vídeo e demais meios eletrônicos absorvidos sob o novo termo de Artes Visuais.

contra a violação dos direitos individuais na ditadura. Na mesma direção provocativa, Carlos Vergara apresenta a obra “Fome” (1972) na ‘EX-Posição’, com as letras da palavra FOME escritas com grãos de feijão sobre algodão umedecido. Os grãos germinam e as letras se misturam, entrelaçam e perdem a forma original não podendo mais haver a leitura da palavra, referência direta ao slogan dos governos militares “em se plantando, tudo dá”. Esses artistas que trabalhavam com questões muito particulares do momento político brasileiro, distanciam a produção nacional da filiação à obra dos chamados ‘mestres’ consagrados pela história da arte universal, procedimento comum desde a vinda da missão francesa e a fundação da Academia Nacional de Belas Artes que se constitui através do estudo dos códigos de representação utilizados pelos artistas consagrados pela “história da arte” para depois atualizá-los... Ou seja: adaptá-los à temáticas locais, subvertê-los, contestá-los etc., procedimento moderno de produzir arte referendada na própria (história da) arte – arte pela arte. Ao se distanciar desses procedimentos, os artistas, os críticos e o público criam condições para que o ambiente artístico brasileiro subverta o interdito oficial e funcione como espaço vivo de debate e circulação de ideias, bem como de resistência política e cultural22.

A emergência neocabana

“Na realidade, arrancado debaixo de canhões e baionetas alugadas a dom Pedro I, o acordo angloportuguês de falsa capitulação e rendição das forças coloniais portuguesas no Pará abafa e tira de cena a luta independentista do povo paraense coerente com sua antiga história em sempre pertencer a velha terra dos Tapuias ao grande país do Cruzeiro do Sul. (...) o Pará velho de guerra pegou fogo e o povo assumiu o poder em armas (1835-1836). Historiadores conservadores escondem os crimes do Império no genocídio dos cabanos (30 mil mortos numa população de, aproximadamente, 100 mil habitantes) sob falsa acusação de separatismo: na verdade, ao contrário, uma longa luta popular para a brava gente do norte ser brasileira de parte inteira.” José Varela Pereira23

Primeiramente, embora eu não vá fazer isso aqui, é necessário rever a historiografia regional e difundir a história do Grão-Pará antes e depois da “adesão” à independência do Brasil, se faz necessário que a população da região norte compreenda como nos tornamos a “Amazônia brasileira”. No momento que se compreende o processo histórico de incorporação do território do Grão-Pará, se evidencia a origem do sentimento de ‘não pertencimento’ em 22 Tanto quanto nas artes cênicas e na musica. E viva Cacilda Becker! 23 In http://viagemphilosophica.blogspot.com. br/2010/08/o-dia-que-o-grao-para-se-tornou.html


relação ao Brasil e podemos compreender melhor a sensação de que nós por aqui deixamos de ser colônia portuguesa para nos tornarmos colônia brasileira. Na Amazônia os contextos de produção artística são agravados pelo isolamento histórico da região, o processo de dominação que o Brasil sofre dos países industrializados, ele reproduz na região amazônica e impõe uma identidade artística nacional (única) que desrespeita a diversidade da produção regional e as formas de circulação de trabalhos artísticos. No período colonial, seja a colônia da monarquia portuguesa ou do império brasileiro, o reflexo da segregação também atinge a arte que, importada para o deleite da elite, é negada à maioria da população. João de Jesus Paes Loureiro afirma que do ponto de vista oficial da classe dominante sobre a cultura amazônica, e “refletindo a separação qualitativa entre o alto e o baixo, [a visão oficial] tem entendido rigidamente como alto a produção alienígena e, como baixo, a produção local, regional”24. E explica que no período da borracha, ápice na economia regional, consagrou-se esse modelo que legitima o ‘importado’ como boa arte, relegando a produção local à sua própria sorte na luta por sobrevivência e afirmação. Esse entendimento chega aos anos de 1980 como o que Paes Loureiro chama de ‘história trágica de uma queda’, que instituiu a marca da elite em depressão psicossocial – um estado psicossocial maníaco depressivo traduzido pela tristeza generalizada pela perda do refinamento artístico que o declínio econômico trouxe como consequência. Olhando de outra perspectiva, Osmar Pinheiro Junior afirma que o isolamento cultural da região em relação à produção artística brasileira, ou mesmo a de outro país, criou “formas agudas de esquizofrenia cultural”, pois na Amazônia “discutia-se questões de arte, sem obras, e caminhos sem referenciais, movimentos de arte sem cronologia, ou seja, sem história” (sic), resultado da “prática de uma elite sequiosa de diferenciação cultural, [que] determinou uma forma de estagnação cujas consequências se fazem sentir ainda hoje”. Para ele a história da arte amazônica é culturalmente dependente de modelos externos, uma “sucessão de episódios isolados sem nenhuma organicidade.”25 Osmar Pinheiro percebe nas coloridas pinturas de fachadas de casas, de embarcações, e em toda a produção de cultura na mestiçagem amazônica, a revelação de “condições particulares de uma outra ordem, onde não existe mercado de arte, onde o suporte da obra é a casa, o barco, o boteco, o 24 PAES LOUREIRO, João de Jesus Por uma fala amazônica. In FUNARTE, As artes visuais na Amazônia, reflexões sobre uma visualidade regional. Rio de Janeiro/Belém: FUNARTE/ SEMEC. 1985. p.112 - 122.. 25 PINHEIRO JR., Osmar A visualidade amazônica. In FUNARTE, As artes visuais na Amazônia, reflexões sobre uma visualidade regional. Rio de Janeiro/Belém: FUNARTE/ SEMEC. 1985. p.51

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papagaio, o brinquedo. Onde o artista são todos… (...) Onde arte e trabalho são parte de um mesmo movimento cuja razão é o afeto; que quatro séculos de violência colonizadora não foram capazes de destruir.”26 Paes Loureiro acrescenta, ainda, que essa produção subalterna é nossa contracultura, forma de resistência. É uma inversão na ótica da exploração, já que propõe a apropriação da herança cultural do colonizador para que se ‘capture o capturante’, e a região passe “a ser vista por dentro, como quem olha ‘da região’, e não como quem, mesmo de dentro, olha ‘a região’.”27 Em outras palavras, a segregação, que foi marca da origem colonial, ainda é percebida como um colonialismo interno há cerca de vinte anos atrás, tanto na política cultural do Brasil pós-ditadura militar quanto na historiografia regional que legitima a versão da decadente elite local. A possibilidade de resistência cultural se apresenta, senão na hipótese improvável de se tornar pura, ao menos na consideração das nossas relações com a natureza, ordem social e seus símbolos, que nos livra da mordaça dos cânones modernistas e nos alforria daquilo que nada acrescenta para fazer soar a voz dos marginalizados no processo controlador de desenvolvimento regional. No nosso caso no Grupo Urucum, entendo como um voltar-se pra si que não exclua um expandirnos para os outros aliados às ações que visem à consciência de existência e possa contribuir com a mobilidade social de capacidade transformadora. Entendo esse movimento como o questionamento à autonomia moderna na instituição arte, percebida pela população como pertencente a um espaço separado e sem comunicação com outras esferas da vida que afasta a arte da sociedade para outro mundo onde a arte quer bastar-se em si mesma, essa separação a torna (ela, a arte) entorpecente e inofensiva.

PARA A GUERRA OU PARA A FESTA

Macapá, capital do Estado do Amapá, ainda hoje não possui espaços físicos que lhe possa garantir um circuito de arte consolidado, apenas a galeria do SESC funciona regularmente e não há nenhum museu de arte. Tem, ainda, uma escola de artes plásticas que funciona com cursos livres de ensino de técnicas, outra de música, e o curso de licenciatura em artes visuais da Universidade Federal do Amapá.28 Situa-se geograficamente na Amazônia oriental, na foz do rio 26 Idem 27 Obra citada. 28 Criado em 1991 como licenciatura plena em Educação Artística do Núcleo de Educação de Macapá – NEM/UFPA

“Os catadores de orvalho esperando a felicidade chegar” GRUPO URUCUM Amazonas, sendo conhecida por ser a única cidade brasileira cortada pela linha do Equador. Urucum é palavra da linguagem indígena, uru’ku, ‘vermelho’, cuja polpa é usada como pigmento, e também evoca rituais dos povos indígenas, ditos primitivos, porque com ela se faz sulcos cor de sangue na pele e que é, ao mesmo tempo, identidade e diferença de quem pinta o corpo: para a guerra ou para a festa. Quando em 1996 eu fui para o Amapá o Grupo Urucum já existia, minha integração ao grupo acontece em 2001, quando retornava novamente para a cidade depois de passar uma temporada no Rio de Janeiro. Participei de alguns debates no atelier de trabalho do grupo onde discutimos sobre a política cultural do Amapá, as questões propostas na produção individual dos membros do grupo – inclusive na minha -, e sobre a realidade da cidade de Macapá. Como o grupo é formado pelas pessoas que dividem o espaço de trabalho naquele local, e eu não ocupei o espaço físico do Urucum para o desenvolvimento das minhas propostas individuais, a mim passou despercebido o momento em que fui reconhecido como parte integrante da comunidade. O grupo, que havia se formado como alternativa solidária para realização de propostas individuais na perspectiva de formação de mercado, e experimentava a criação coletiva em esculturas/ monumentos, marcos comemorativos em Macapá e Kourou, na Guiana,29 e planejava uma ação para a ‘esquina das andorinhas’- cruzamento das avenidas Padre Julio Maria Lombaerd e Cândido Mendes, na área comercial de Macapá. É uma espécie de parada de descanso na rota migratória das andorinhas, fenômeno natural que gera um debate constante na cidade, inclusive de saúde pública, por deixar resíduos fecais nas vias públicas do centro de Macapá. Da realidade local e do debate público sobre as consequências do fenômeno natural da migração das andorinhas que param na cidade durante sua 29 Encomendas oficiais por parte do governo estadual para esculpir totens, na realidade marcos-monumentos, com elementos da cultura amazônica na estação rodoviária de Macapá em 1999, e em 2000 para um entroncamento rodoviário entre Kourou e Cayenne, que é o símbolo da integração entre o Amapá e a Guiana, Brasil e França. Existe outro inacabado em Laranjal do Jarí, de 2002-03

rota migratória e afetam a vida urbana, fizemos uma ação: ocupamos a ‘esquina das andorinhas’ espalhando penicos coloridos pelos quatro cantos das duas vias. Éramos “Os catadores de orvalho esperando a felicidade chegar” (titulo do trabalho), chegamos vestindo uniforme preto com touca de natação, meias brancas e óculos de descanso no mesmo momento que iniciou o “balé” do pouso das andorinhas na rede elétrica. Passamos a noite toda velando o descanso dos pássaros e movimentando cores na esquina, andando, dançando e mudando de posição para procurar o melhor lugar para acertar no alvo do penico a mira dos projéteis fisiológicos das andorinhas, a merda que gera o debate entre os ambientalistas e o poder publico e tanto incomoda o comércio e agências bancárias localizadas na esquina. Nossa presença e a falta de reconhecimento de objetivos práticos para aquela movimentação em torno das andorinhas resultou em interpretações diversas no público passante, e tensões que por pouco não resultaram em conflito. Tensão com o poder político-econômico, ao ser interpretado como ação da administração pública ou do comércio para afastar – ou matar – as andorinhas e seus dejetos da área comercial. Poética e política confundem-se na ação que provoca a reação popular ao poder constituído, e que quer transformar merda em orvalho e proporcionar o encontro da felicidade, a felicidade de presenciar a revoada das andorinhas, de parar na esquina para ver o que acontece, de reconhecer o diferente, de movimentar objetos coloridos pelos prédios cinzentos. Criamos um evento, uma tragédia – no sentido sociológico de quebra da rotina – que permitiu o deslocamento da percepção de alguns dos próprios habitantes sobre a realidade de Macapá. O cotidiano da cidade se torna matéria poética. Raoul Vaneigem trata da familiaridade entre a vida cotidiana e aquilo que a destrói, e diz que existe um momento definido historicamente, pela força e fraqueza do poder, de superação nessa relação, e que a superação está na realização do projeto de liberdade individual, construído pela subjetividade e espontaneidade, o modo de ser da criatividade, que é um estado de subjetividade. Para ele a poesia é a organização da espontaneidade criadora que a


difunde no mundo e gera novas realidades, gesto revolucionário por excelência30. Mário Pedrosa identifica a integração da arte na vida social como o problema em questão, e a integração do homem ao seu trabalho e às relações sociais implícitas nesse processo, com isso criam-se as possibilidades da arte se afastar do circuito oficial – e dos seus agentes, e da lógica do mercado, para integrar-se na coletividade, dissolvendo o artista e a autoria da obra de arte na sociedade31. Buscamos essa situação de inserção no corpo social, em outras palavras podemos até veicular os registros dos trabalhos em instituições culturais, mas as ações desenvolvidas pelo grupo visam atingir diretamente a população e suas questões, e assim colocamos nosso trabalho no debate [embate] das tensões da natureza do lugar em que vivemos. A população e seus anseios é a questão do “Mensagens vazias”32, realizado a partir do convite para uma intervenção na sala de experimentação da Casa das Onze Janelas - Museu de Arte Contemporânea do Pará. O convite partiu da curadora Rosely Nakagaw, consultora do Museu e o grupo aceitou fazer um trabalho para as ‘11 janelas’ desde que não fosse uma obra, mas os registros de uma proposta de ação relacionada à vida amazônica realizada nas duas capitais da foz do rio Amazonas33. Trabalhamos com a ideia de evento, e mais especificamente da festa, mas na fissura temporal, na passagem… onde não podemos definir exatamente em que ano estamos. Instalamos-nos próximo à Fortaleza de São José de Macapá durante a passagem de ano, de 2002 para 2003, e abordávamos as pessoas pedindo que escrevessem seus desejos em pedaços de papel para colocar esses bilhetes em garrafões que foram lançados ao rio Amazonas. Integrada a essa ação criamos uma instalação/ intervenção com garrafas vazias na área de Santa Inês durante a maré seca - que também foram levadas pelo movimento de maré -. Aqueles que aceitavam a sedução do grupo terminavam por compartilhar seus desejos com outros desconhecidos, misturando pedidos, vontades e desejos íntimos aos desejos também secretos de todos os outros. Independente de credos, origem social ou étnica, os transeuntes transformaram os garrafões numa grande integração dos anseios do povo de Macapá. O real e a representação são parte do jogo proposto pelo grupo. Se a arte sintetiza emoções através de sua representação, nós convocávamos 30 VANEIGEM, Raoul. A arte de viver para as novas gerações. São Paulo: Conrad. 2002. (Col. Baderna) p. 175 – 214 31 PEDROSA, Mario Mundo, homem, arte em crise. p. 87. 32 Concebido em conjunto com a poeta Josete Lassance. 33 Não sabemos os motivos pelos quais esses registros nunca foram expostos na sala para o qual foi concebido à convite do próprio museu.

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todos a exporem suas emoções ao escreverem seus desejos e com isso relembrarem os motivos que os fazem desejar. O sentimento não é mais escamoteado, está todo aqui no momento do agora! Dessa forma não emolduramos representações, mas engarrafamos as emoções da população em um escambo onde a arte está no campo da vida – não se trata de trazer a vida para a arte, mas confundi-las – e ao se completarem caminham para o domínio do real e não mais da representação. A postura é inversa à garrafa do gênio que surge da fumaça para realizar seus desejos, aqui você os coloca nas garrafas, as garrafas vão para o rio e é você quem pode realizá-los. Sobre o real e a representação do real Claude Levy-Strauss observa na arte dos Caduceus uma operação diferenciada dos estudos artísticos europeus, de percepção e representação (inclusive a mimética) do real, os caduceus, como a maioria dos povos autóctones, pinta, ou grava em tatuagens, sobre o corpo em carne e osso – diretamente no real. Da observação straussiana, Mario Pedrosa reflete sobre a diferença de atitude entre os povos (ditos) primitivos e a concepção de arte européia: a tradição artística ocidental tende para a representação do real, enquanto a manifestação e manipulação simbólica das sociedades tribais intervêm no corpo, no real34. Já Richard Huelsenbeck, no manifesto Dadá de 1918, apontava para a necessidade de uma prática cultural de caráter libertário no seio da sociedade, para ele “a arte, para sua execução e desenvolvimento, depende do tempo no qual vive”, e que a arte maior será aquela que apresentar conteúdos conscientes dos múltiplos problemas de seu tempo, “aquela que se fará sentir como sendo sacudida pelas explosões da semana precedente, aquela que tenta se recompor depois das vacilações da noite anterior”, pois pra ele os artistas são um produto de sua época, e “os melhores e mais insólitos artistas são aqueles que a qualquer momento arrancam pedaços do próprio corpo, do caos da catarata da vida e os recompõe”. Na experiência coletiva vivenciada pelo Grupo Urucum a arte se aproxima das questões cotidianas daqueles que se envolvem no trabalho, e por isso mesmo tende a atingir diretamente a vida dos membros da comunidade e tornar-se reflexo da sociedade em contrapartida da ideia de arte como produto de gênios criadores que vivem em um mundo inalcançável aos ‘seres comuns’. A concepção é da arte com função social, como pregava Huelsenbeck, em contrapartida da doutrina da arte pela arte, que Benjamim identifica como antecessora da ‘teologia negativa’ da arte sob a forma de arte pura, a arte que rejeita toda função 34 222.

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social e determinação objetiva35e ele mesmo já havia dito, em relação às práticas dadaístas, que “o menor fragmento autêntico da vida diária diz mais do que a (representação pela) pintura”36. À formulação de exigências revolucionárias na política artística, que Benjamim propõe na introdução da ‘A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica’37, e que já estavam no manifesto dadaísta, encontra ressonância em Jean-Jacques Lebel, que aponta com a possibilidade de falar de arte e política em termos dionisíacos. Sem importar-se se é uma formulação legítima, ele conceitua anarcodadaísmo como ‘um sentimento de alegria que faz dançar’. Para ele é necessário dadaizar “o discurso e a ação revolucionários, conferindo-lhes um corpo”38. Lebel reclama do ‘reino da ordem mortífera’, com que chama a calma absoluta, a glaciação, provocada pela submissão resignada obtida por narcose medial, e aponta o incentivo musical, poético, artístico e filosófico à dança (no sentido anarcodadaísta) como alternativa à imobilidade social, “de modo que essa [sociedade] possa recomeçar a dançar os próprios desejos, em vez de negá-los ou militarizá-los”39. Mesmo que a historia da arte, o manifesto dadaísta ou mesmo os textos de Lebel sejam desconhecidos da maioria dos integrantes do Grupo Urucum, e que o debate público, a mobilidade social e outros preceitos artísticos ditos revolucionários estão presentes nas ações do grupo, bem como a intenção de agir no seio da sociedade e de que nossos trabalhos tenham ressonância social. O caminho para que essas coisas aconteçam é que foi diferente daqueles pressupostos para legitimação artística – o que construímos foi a poética como referência social. Sinto como se tivéssemos trilhado o caminho oposto para convergir pro mesmo ponto, porém é como se a consciência de que não foi o caminho da arte potencializa a ação.... Entenda este texto como anotações para construções teóricas que virão no futuro, o que me interessa aqui é dizer que isso tudo não precisa ser arte porque está vivo na sociedade enquanto a arte está morta em paredes de museus – pra mim é resistência política e cultural.

35 BENJAMIM, Walter Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política.Vol.I. São Paulo: Brasiliense. 1994.p.171. 36 Idem. 37 Idem 38 LEBEL, Jean-Jacques. Dadaizar a sociedade. In Revista Libertária. São Paulo: Imaginário, janeiro de 1998 39 Idem.

BIBLIOGRAFIA BARRIO, Artur. Manifesto da estética do terceiro mundo In LENZ, André & BOUSSO, Daniela (org.) Artur Barrio, a metáfora dos fluxos: 1968/ 2000. Rio de Janeiro, Salvador, São Paulo: MAM-RJ, MAM-BA , Paço das artes. 2000. BASBAUM, Ricardo. Pintura dos anos 80: Algumas observações críticas. Gávea no.6. R Revista do Curso de Especialização em História da Arte e Arquitetura no Brasil. Rio de Janeiro. PUC-RJ, 1988. BARROS, Aidil J.P. & LEHFELD, Neide A. de S. Fundamentos da metodologia. São Paulo: McGraw-Hill: 1996. BENJAMIM, Walter. Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política. Vol.I. São Paulo: Brasiliense. 1994. CANCLINI, Nestor Garcia. Culturas Hibridas: estratégias para entrar y salyr de la modernidad. Buenos Aires, Barcelona, México: Paidos. 2001. CNN, Para além de cidadão Kane. Vídeo-documentário. Londres: CNN, 1992. COCHIARALE, Fernando. Arte em trânsito: do objeto ao sujeito. In LENZ, André & BOUSSO, Daniela (org.) Artur Barrio, a metáfora dos fluxos: 1968/ 2000. Rio de Janeiro, Salvador, São Paulo: MAM-RJ, MAM-BA , Paço das artes. 2000. FREIRE, Paulo. Cartas à Guiné Bissau. Rio de Janeiro: Paz e Terra: 1978. HERKENHOFF, Paulo. Barrio – liberdade, igualdade e ira. In LENZ, André & BOUSSO, Daniela (org.) Artur Barrio, a metáfora dos fluxos: 1968/ 2000. Rio de Janeiro, Salvador, São Paulo: MAM-RJ, MAM-BA , Paço das artes. 2000. LEBEL, Jean-Jacques. Dadaizar a sociedade. In Revista Libertária. São Paulo: Imaginário, janeiro de 1998. MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. Manifesto do partido comunista. Porto Alegre: L & PM. 2002. MORAIS, Frederico. Panorama das artes plásticas séculos XIX e XX. São Paulo: Instituto Cultural Itaú, 1991. ORTIZ, Renato. A moderna tradição brasileira. São Paulo: Brasiliense. 2001. PAES LOUREIRO, João de Jesus. Por uma fala amazônica. In FUNARTE, As artes visuais na Amazônia, reflexões sobre uma visualidade regional. Rio de Janeiro/Belém: FUNARTE/ SEMEC. 1985. PEDROSA, Mario. Mundo, homem, arte em crise. São Paulo: Perspectiva. 1986. PINHEIRO JR., Osmar. A visualidade amazônica. In FUNARTE, As artes visuais na Amazônia, reflexões sobre uma visualidade regional. Rio de Janeiro/Belém: FUNARTE/ SEMEC. 1985. REIS, Ronaldo Rosas. Conformismo pós-moderno e nostalgia moderna. In Cyberlegenda. Revista, numero 1, Niterói: UFF, 1998. VANEIGEM, Raoul A arte de viver para as novas gerações. São Paulo: Conrad. 2002. (Col. Baderna). X, Márcia, em entrevista datada de 2001. Fonte: http://www. marciax.art.br/mxText.asp?sMenu=5&sText=3


Divisória – Imaginária Marisa Florido

Ao meio- dia do equinócio a incidência do sol aqui na linha do equador - é vertical, 90º em relação à Terra, a sombra não existe ou oculta-se sob o corpo, não extrapola o espaço do corpo (por isso o titulo da minha tese é "Pra pisar na própria sombra"). É um momento ínfimo, impossível de ser medido, esse em que ficamos sem sombras nos equinócios...1 Arthur Leandro (Grupo Urucum, Macapá) Macapá, no último Equinócio de outono. O sol, em seu movimento aparente, intercepta o equador celeste. O Grupo Urucum borda em linhas vermelhas, sobre lenços brancos, as palavras: Divisória e Imaginária. Estão todos sentados sobre o monumento que desenha, sobre o corpo terrestre, a abstrata linha do Equador, o marco zero que reparte o mundo em dois. Indiferente às simbologias imaginárias que essa divisão constrói, a vida escorre lentamente na ponta da agulha. Os bordados desconhecem históricas rivalidades ou geografias fixas circunscritas de exclusões ou de pertencimentos: sobre o tecido branco, o mundo não se separa em binários norte/sul, ricos/pobres, o eu/o outro. Ao largo das grandes disputas mundiais, dos poderes e privilégios autorizados, das grandes verdades e racionalizações modernas, o cotidiano parece tecer-se apenas de pequenas suposições. E de morar no norte pertencendo ao sul, se o mundo é dividido aqui na fronteira não entendemos isso, talvez estejamos numa parte ainda impossível de qualificar nesse mapa. Temporalidades e territorialidades estranhas, alheias! Contudo tão próximas...2 No Equinócio, a duração do dia iguala-se à da noite. Ao meio-dia, suspende-se a dialética de luz e sombra. Esta não se inclina para lado algum, nem ao norte, nem ao sul. Sem sombras, ou circunscrito o seu contorno, o corpo parece situado em seu próprio eixo enquanto transita pelo mundo nas fissuras ínfimas do espaço e do tempo, em suas geografias circunstanciais. Nesse espaço/tempo fronteiriço, intersticial, emergem figuras complexas de alteridade e estranhamento, temporalidades e espacialidades

1 Carta eletrônica enviada por Arthur Leandro, artista paraense integrante do Grupo Urucum em Macapá, onde leciona na Universidade Federal. Foi doutorando na Pós-graduação em Artes Visuais, na EBA/UFRJ. Esta, assim como as demais citações e fotografias de trabalhos que constam deste texto me foram enviadas por artistas de diversas localidades do país, quase sempre pela internet, no decorrer destes últimos dois anos. 2

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Ibidem.

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fortuitas e contraditórias que colocam a necessidade de se transpor as polaridades e subjetividades originárias para acolher a diferença e o alheamento em sua fenda. As imagens do evento circulam pelas redes eletrônicas: signos que chegarão a outros locais, outros contextos, outros sistemas. Alcançarão, quem sabe, latitudes do orbe em que as noites são longas e frias, que desconhecem um Estado brasileiro chamado Amapá, que ignoram esse estranho idioma chamado português. Apenas as palavras: Divisória e Imaginária. Permanecendo separadas, bordadas sobre dois círculos que não se interceptam.

Fronteiras móveis

As especulações contemporâneas cedem um lugar de destaque à fronteira. Nela, as delimitações geopolíticas desvelam-se nebulosas e contestáveis. As identidades fechadas dos Estados-nações, da cultura, da língua, de povo, de território, das etnias, exibem-se como ficções da totalidade. Estratégias das grandes narrativas modernas, da razão iluminista. Os poderes que a controlam, e exilam o estrangeiro, reforçam o seu aparato coercitivo na proporção em que a fronteira se torna a arena de conflitos, mas também de perigosos, complexos e ricos intercâmbios. Suas instituições disciplinadoras parecem não deter movimentos cada vez mais nômades: circulam não só migrantes, como também o capital global, as imagens do mundo pela mídia, as informações processadas e emitidas pelas novas tecnologias. Os antigos repertórios que supunham homogeneidades cerradas, dicotomias mistificadoras (como o civilizado e o selvagem, o nacional e o estrangeiro, o mesmo e o outro, o público e o privado, o indivíduo e a sociedade), grandes estruturas coerentes de decodificação de uma cultura e de uma sociedade, - velhas coleções desbotadas e erodidas - não dão conta de responder à complexidade da vida contemporânea. Sequer de enunciar a pergunta apta a interrogar nossa perplexidade diante destas épocas e suas identidades “diacrônicas”, destas disjunções e descontinuidades no tempo e no espaço. São simultaneamente desterritorializações e “territorialidades estranhas e alheias”: fragmentações e heterogeneidades que se mesclam e se reconstroem sem cessar. Algo se passa nas fronteiras de nossa percepção do mundo, do outro, de nós mesmos. Se as fronteiras desejam preservar as identi-

“Divisória Imaginária” GRUPO URUCUM dades, também são epidermes porosas nas quais as contaminações ocorrem. Ali, as identidades se tornam mutáveis e instáveis: se fundem, se metamorfoseiam e se extraviam em fugas imprevisíveis. “É um momento ínfimo, impossível de ser medido, esse em que ficamos sem sombras nos equinócios”, escreve o artista do Urucum. Se atravessarmos as fronteiras, elas também nos atravessaram: fron3 teiras “portáteis” , diz Fredrik Barth; “hibridismos 4 e interculturalidade” , conclui Nestor García Canclini. As fronteiras são móveis, e isto implica que, se o Outro não pode ser mais “reificado como absoluto” – como uma ontologia negativa da qual derivaríamos as identidades essencialistas e autênticas -, é porque vivemos uma espécie de complexa pluralidade cultural e polissêmica. Não só coexistem mundos diversos, mas principalmente estes se relacionam por “in5 úmeros entrecruzamentos” , como revela Barth, por 6 “alianças fecundas” , como reitera Canclini. A supressão de um sistema hegemônico permite-nos fazer emergir espacialidades alheias, diversas temporalidades, acontecimentos e narrativas pequenas,ou discretas, como percebe Canclini. Permite que bordados sutis da vida cotidiana participem do universo (antes erudito e excludente) da Arte. O homem desloca-se por várias teias que se interconectam, “participa de universos de discurso múltiplos, mais ou menos discrepantes”, reconstruindo-se nos contatos ao qual é exposto. Percorremos vários mundos e camadas da vida, pertencemos a

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BARTH, Fredrik. Apresentação. In: O guru, o iniciador, e outras variações antropológicas. Org. Tome Lask. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2002. p.21.

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CANCLINI, Néstor García. Notícias recientes sobre la hibridación. In: Arte Latina, cultura, globalização e identidades cosmopolitas. Org. Heloísa Buarque de Holanda e Beatriz Rezende. Rio de Janeiro: Aeroplano Editora, 2005. p.60.

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BARTH, Fredrik. Op.cit. p.217. CANCLINI, Néstor García. op.cit. p.64.

múltiplos grupos, desempenhamos diversos papéis, por uma subjetivação processual e aberta, em um mundo fluidamente interconectado: a fronteira deixa de ser uma barreira, um muro, e passa a ser o espaço e o tempo liminar de intercâmbios e contaminações. Logo, surgem as questões: Como nos situar em meio à heterogeneidade? Como perceber as relações de novos sentidos que se reconstroem nas mesclas? Se aos habitantes das zonas fronteiriças, como o Grupo Urucum, fosse indagado sobre sua identidade (étnica, nacional, de classe, de hemisfério), não ocorreria uma palavra (apenas) que a definisse: ou ela foi suprimida de seu vocabulário ou coloca múltiplas designações em constante atualização: “E de morar no norte pertencendo ao sul, se o mundo é dividido aqui na fronteira não entendemos isso, talvez estejamos numa parte ainda impossível de qualificar nesse mapa...” E longe dos centros que continuam devaneando sobre sua Origem, sua Loba-mãe, sua Roma extraviada, as margens demonstram que metamorfoses ocorrem de ambos os lados. Remo ousou atravessar a fronteira e foi assassinado pelo irmão Rômulo. Quais assassinatos hoje nos ocorrem? Que estranha fronteira é esta que nos constitui, já que atravessamos tramas distintas que se interceptam, vários contextos em que representamos vários papéis, em que criamos nossos próprios percursos transversais de significação? Algo similar ocorre às inquietações subentendidas nas experimentações artísticas atuais em todo o país. Há um interesse, no momento, pela constituição de uma rede orgânica e descentralizada de artistas de todo o país, ou atuando em projetos coletivos, em um sistema de trocas, ou em iniciativas individuais ainda que de algum modo conectadas. Comunicando-se, principalmente pelas redes eletrônicas, eles atuam tanto nas ruas das cidades, como


em suas casas, onde vivem, trabalham, recebem e hospedam outros artistas, onde abrigam exposições de arte. Eles intervêm, enfim, naquela que foi por tradição, a arena dos conflitos e da convivência de complexas diferenças: a cidade; e naquele que foi o espaço da intimidade doméstica, abrigo metafórico da interioridade do sujeito e das relações familiares, a casa. Como escreve a curadora Juliana Monachesi, “a potência maior da arte contemporânea está na rua ou está na casa – duas possibilidades não antagônicas de encontro, troca e afeto. (...) do ponto de vista do museu, a rua é a casa também. Teríamos chegado a um descompasso tal que a epifania da arte só não é 7 mais possível em espaços tradicionais?” . Tais experiências vêm colocando em questão o que pode ser considerado como esfera pública e/ ou privada, e como dimensão estética, quais os campos por elas interceptados, o que elas determinam. Ao ensaiar o engendramento de outros modos de convivência, impõem a redefinição do sentido de coletividade, e explicitam que a arte só pode ser compreendida como “um ângulo de visão ou um modo de apreensão que só se abre em e por meio de um co8 abertura com outro” , tal como a define Jean-Luc Nancy. São fronteiras móveis, erguidas e diluídas na co-abertura com outro.

Conclusão

Este texto é um rascunho, impregnado de dúvidas e imprudências. É a reunião de observações tecidas a partir de contatos com alguns artistas. Contatos realizados pessoalmente, por trocas freqüentes de e-mails e por conversas ao telefone. E, uma vez que essa articulação dos artistas em redes é bastante recente, se tentássemos extrair destas, um traço comum, seria essa zona fronteira, esse busca de novos modos de endereçamento ao outro não-absoluto, mas inscrito em contingências e particularidades. A arte como fronteira é uma superfície de contato: um entre-dois, um entre-lugares, entre-dispersões, entre-outros, múltiplos. Essa zona liminar que, se afasta o estranho, também adere ao seu desconhecimento e à sua revelação. Uma senda/fenda relativa e relacional nos re-agenciamentos dos processos de intersubjetivações. (........)

Qual o papel da arte?" Qual é o lugar que esta pode ainda ocupar no mundo em que vivemos? Talvez no lapso do desejo, responderia o Urucum. Nas mensagens vazias como resposta ao Tempo. No lapso do desejo. Resposta ao tempo: Grupo Urucum recolhe desejos e envia “Mensagens Vazias” Instalados próximo à Fortaleza de São José durante o réveillon para 2003, os artistas do Urucum abordavam as pessoas pedindo que escrevessem seus desejos para colocar os bilhetes em garrafões que foram lançados ao rio. Integrada a essa ação criaram uma instalação/ intervenção com garrafas vazias na área de Santa Inês durante a maré seca, também levada pelo movimento de maré. Mensagens Vazias” faz parte de uma intervenção proposta para a Casa das 11 Janelas, que é o Museu de Arte Contemporânea do Pará, o grupo aceitou fazer um trabalho para a sala de experimentação do Museu desde que não fosse uma obra, mas os registros de uma proposta poética relacionados à vida amazônica, para realização nas duas cidades. Daqui de Macapá aqueles que aceitavam a sedução do grupo terminavam por compartilhar seus desejos com outros desconhecidos, misturando pedidos, vontades e desejos íntimos aos desejos também secretos de todos os outros. Independente de credos, origem social ou étnica, os transeuntes transformaram os garrafões numa grande integração dos anseios do povo de Macapá. A população correspondeu às abordagens dos artistas, ainda que houvesse aqueles que, desconfiados, perguntavam se era pago ou se tratava de feitiçaria. (...) Mas como no jogo dos desejos realizados pelo gênio, o Urucum também tem um correspondente hipotético, alguém que vai olhar para essas garrafas n’água como algo mais do que sucata, mesmo que a temporalidade desse achado não possa ser determinada. E se este alguém se dispuser a se corresponder com os desejos da cidade de Macapá, completará o ciclo da comunicação, mas quem sabe ainda assim será com mensagens vazias”. Jornal de Macapá, Janeiro de 2003

7 MONACHESI, Juliana. A casa onírica. In: Catálogo da exposição realizada no Espaço Cultural Fernando Arrigucci,no período de 26 de abril a 11 de maio de 2003, em São João de Boa Vista, São Paulo. 8 NANCY, Jean-Luc.Uma Conversa. In: Arte & Ensaios 8, Revista do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais EBA/UFRJ. Rio de Janeiro: 2001. p. 146. 104

#Estamos de Greve

Como o Divisória-Imaginária, Mensagens Vazias escolhe uma ocasião, um hiato na circularidade do tempo: o Equinócio lá, a passagem do ano ali - o intervalo de tempo correspondente a uma revolução completa da Terra em torno do Sol como aos desejos

“Mensagens Vazias” GRUPO URUCUM

de uma renovação da vida. Atuando em duas cidades, Belém e Macapá, e ainda convidando outras cidades 9 litorâneas ou ribeirinhas a participar da ação , operam, assim, em um tempo transitivo na ubiqüidade do espaço. Em ambos os casos [Divisória-imaginária e Mensagens Vazias] trabalhamos com ritos de passagem, com a sensação de não estar em 2002 e nem em 2003, mas apenas no lugar do desejo.10 O presente deixa de ser o momento de torção entre o passado e o futuro, entre signos já compartilhados e sua atualização, para ser o intervalo ampliado e descentrado da experiência. E a experiência da vida não pode ser reduzida nem a uma distinção entre o que pode ser mostrado e o que deve ser oculto – entre o público e o íntimo –, nem circunscrita à sua inversão moderna que revelou como o oculto pode ser rico e múltiplo em situações de intimidade. Ao convidar as pessoas na passagem do ano a expor seus desejos mais secretos e enviá-los a estações e destinos desconhecidos, o Urucum incita-os a um rito de iniciação extraterritorial e intervalar, a um trânsito intersticial que ignora polaridades e identidades primordiais e fixas, que subverte as leis duais: as muitas dimensões da vida possuem e conectam-se por intermitências. O que é rico e múltiplo não habita a interioridade, mas se constrói nas permutas com a exterioridade. A ação do grupo chama cada um na

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O convite era geralmente feito via e-mail. Não temos informações se outros grupos ou artistas concordaram em participar da ação.

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Relato de Arthur Leandro sobre as ações realizadas pelo grupo Urucum.

praia amapaense, no réveillon equatorial, a inscrever a existência nos deslocamentos do desejo. Pois este opera no lapso: de um outro tempo e de um outro lugar, de um adiamento e de um deslocamento da alteridade. A tensão do desejo rasga e exibe o espaço de cisão de uma identidade como reflexo de um outro. O Urucum, ao convocar a pequena multidão a uma publicação, explicita o artifício ilusório da existência solipsita. Existir não é refugiar-se em sua consciência de um Eu privado, não é refugiar-se no teatro interno em que o sujeito é o único espectador solitário. É uma demanda, uma evocação a manifestar-se para o fora, adquirindo existência e sentido, colocando-se sob o olhar de sua alteridade e estendendo-se a ela. É a marca desse lapso que as garrafas contêm, mas como estratégia de sobrevivência, para que as vozes polissêmicas e dissonantes da Amazônia se enunciem em seu próprio nome, tanto sem o enquadramento autorizado do poder, como no desejo de encontrar e misturar-se a outras vozes e segredos de local e data imprevistos. As mensagens chegarão vazias a algum posto incidental que renova e irrompe a atuação tanto do tempo circular dos rituais, o tempo mágico dos feitiços, quanto do tempo linear das causalidades e finalidades. Um “entre” que deverá ser preenchido – ou não – pelos desejos de outros. Mas, cuja garrafa encerra, sem dúvida, o desejo por uma renovação criativa da existência.


Flor manifesto Leandro Haick

A Flor Manifesto surge de uma necessidade de comunicar, de elevar a voz na cidade, como uma forma de grito na rua, sendo que a imagem é a prioridade desse acontecimento, servindo de canal para esta comunicação aberta - digo aberta por entender que o outro, o transeunte, o espectador andarilho, pode e deve fazer suas significações sobre aquilo que vê, dentro de sua própria perspectiva. O surgimento dessa performance é oriunda de algumas necessidades; uma delas é a acadêmica, que, à época da disciplina que cursava (Performance), exigia a criação de uma performance livre, a critério do aluno; uma necessidade pessoal, pois embora sendo um acadêmico, sou um indivíduo/ performer inquieto com o meio em que vivo, e tenho a ânsia de articular pensamentos junto com o coletivo. Nesse mesmo contexto surgiame a incomodação da não-atitude com relação a ausência de ações públicas que manifestassem o descontentamento em relação a uma série de questões diante das quais a sociedade se encontra aflita, mas, no entanto, limita-se a se queixar nas rodas de conversa, nas mesas de bares, dentro de suas casas; uma indignação comportada na cama da acomodação, como algo

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que lhes protegesse de alguma forma. Isso me incomodava muito, como nós não tivéssemos alguma liberdade de expressão para preencher as ruas onde todos os dias, debaixo de um sol de labuta, não pudéssemos nos fazer perceber. E por essas inquietações surgia a Flor Manifesto; e, usando uma expressão que os mais próximos se referem ao meu respeito, “o homem kamikaze”, é que eu me arvorei em utilizar do meu corpo como forma de manifestação dos meus pensamentos inquietantes, algo que também não é raro, dentro de minhas experimentações artísticas e performáticas. Mas para a Flor Manifesto cair na avenida foi necessário reunir alguns signos, de forma que tornasse real e contundente o seu ato. São eles: A flor de papel/poema, o nu, o trajeto santo urbano. A flor de papel/poema, imprime a ideia da segunda pele, como se fosse uma espécie de armadura surreal, uma utopia vestida que, ao invés de faixas com dizeres panfletários, as flores simplesmente ficariam penduradas neste corpo “kamikaze” à espera da leitura de quem as pegasse, ou somente sendo observadas efemeramente, sendo que no trajeto percorrido elas seriam oferecidas, através de uma pergunta:

você aceita o meu manifesto? A abordagem, seca e direta, sem espaço para alguma hesitação, e quem a tomasse como sua teria como resposta um poema metafórico, que dialoga com a sociedade, chamando atenção para os valores simples da natureza do homem, os direitos humanos e a sua liberdade. O poema que me refiro é o Estatutos do Homem, do poeta manauara Tiago de Melo, um dos poetas mais influentes e respeitados, reconhecido como um ícone da literatura regional. Esse poema foi criado no exílio em que ele se encontrava, durante a ditadura, em Santiago do Chile, em abril de 1964. Além disso, o fato de que o outro tome a atitude de receber a Flor Manifesto o faz coparticipante da arte manifestada e do pensamento que ali está sendo proposto, sendo motivado pela curiosidade, ou por alguma forma de entendimento através da identificação. Confesso que não conhecia nem o poeta e muito menos o poema, mas um amigo filósofo, que sabia do meu trabalho, ofereceu-me de presente este achado e que sem dúvida nenhuma, caiu como uma luva. Setenta flores estiveram penduradas em meu corpo, mas somente �dez foram aceitas, seguiram caminhando com outros corpos. Fracasso no

resultado? Não, considerando que as flores eram uma extensão viva do meu corpo pensante, gritante, ambulante. A negativa, uma resposta de quem esteve de alguma forma comigo, uma recepção daquele que vê e sente, dentro do seu entendimento particular. O nu, “O corpo como meio de expressão artística” (Glusberg, 2008, p.51), a ação do performer acontece por gestos físicos e miméticos do cotidiano ou por ações que demonstrem seus pensamentos e sentimentos. Como não há uma fala verbal, a apresentação teatral é substituída por gestos e atitudes algo que é comum na performance. E em outros aspectos o corpo pode recriar significações. “O corpo nu, ou vestido, as transformações que podem operar-se nele, são exemplos das inúmeras possibilidades que se oferecem a partir do simples, do imprevisto trabalho com o corpo. Porém as performances e a body art particularizam o corpo, da mesma forma que o arquiteto particulariza o espaço natural e o transforma em espaço humano. A nudez é uma espécie de reencontro consigo mesmo, como uma forma de regresso ao ser primitivo, uma volta às origens. Ao mesmo tempo é lidar com o real, com


aquilo que as pessoas não estão acostumadas a falar, tocar no proibido; o corpo despido ainda é visto como segredo, algo tão intimo que não pode ser mostrado em público. E como a performance, o nu é visceral, quebra com a ilusão, é pele com pele, os poros estão totalmente abertos, para um possível caos instalado. “Não há proibição que não possa ser transgredida. Frequentemente uma transgressão é admitida, e, às vezes, até recomendada.” (Bataille, 1968, p.56) Muitas vezes a atitude de negação para quem observa é tão real que chega a assustar. Linguagens misturadas de um corpo nu: morte, transcendência, transgressão, indigência, sexo, carne, semiótica, satisfação, medo, manifesto, entre outros. Umas das intenções de expor o nu era de incitar na sociedade a exposição dos seus preconceitos, que na maioria das vezes se encontra velado, por de trás uma falsa educação ou de um comportamento politizado a favor das minorias. A flor manifesto na rua é quase um homem bomba para sociedade; a flor por sua vez é leve, suave e mais fácil de ser recebida. Mas poderia dizer

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também que este homem desnudo é a própria flor desabrochando a olhos nus, emanando seu odor extremamente forte sobre as pessoas. Vou para rua com alguns questionamentos, através de uma frase muito usada pelos antigos: guarde tua vergonha, menino! Se as pessoas não têm pudores de mostrar suas vergonhas (intolerância sexual, o preconceito racial, o desrespeito sobre a liberdade, sexual, religiosa, étnica e social), por que então eu teria vergonha de mostrar as minhas, que seria simplesmente o meu falo? Para maioria das religiões o corpo é algo sagrado, ou melhor dizendo, a sua alma, pois a carne é corrupta. O maior problema da humanidade está na fragmentação. Vemos a espiritualidade como algo de ordem superior, localizada da cabeça para cima ou acima dela e, em contrapartida, colocamos a sexualidade na esfera do inferior, situando-a da cintura para baixo. O corpo é visto como fonte de impurezas, típico de uma cultura judaico-cristã. Por isso que as pessoas se ofendem tanto sem pensar de fato o porquê de suas ofensas.

O trajeto da “santa”, o homem que de sagrado não tinha nada sai na trajetória do percurso nazareno a olhos nu. O traslado do corpo nu ressignifica uma berlinda de carne e osso, de sentimentos e desejos, carregando em seu meio toda a minoria, os que vivem à margem, que sofrem de alguma forma direta ou indireta a discriminação, pelo seu credo, raça, etnia, sua condição sócio econômica e sua sexualidade; a “santa” são eles, onde a sociedade já se encontra anestesiada. O performer vai alterando o espaço onde ele passa, desconstruindo a rotina dos transeuntes e trabalhadores, e reciprocamente o corpo do performer vai se alterando também. O sol instigante, as ofensas das pessoas o oprimem, a quentura do asfalto torna mais difícil o trajeto. Neste percurso podemos fazer também um paralelo do sacrifício religioso do Círio, com o sacrifício do homem performer dentro de sua manifestação, mas também algo interno se faz perceber; como que aquele caminho feito diariamente por ele se tornara uma única mistura, a rua era ele, e ele era a rua.

Chegar ao seu objetivo era, a princípio, impossível, e o percurso poderia ter tido vários desfechos. Porém, o que houve foi uma proteção tecnológica, o aparato das câmeras e filmadoras no local, tendo em vista que a apropriação desses equipamentos, na sua maioria, pertence a uma classe social mais elevada, criando sem intenção alguma quase que uma barreira de proteção contra a imputação deste manifesto, deixando paralisados os que de fato poderiam ter se manifestado em poder da autoridade pública (a polícia). Mas seguiu livremente pelas ruas de asfalto quente e de teto formado pelas copas das mangueiras, adentrou no santuário da mãe de deus, de um chão de mármore infernal que o sol beijava e que, por sua vez, castigava os pés do andarilho de causa justa, e findando vai de encontro ao vergalhão das almas padecentes, onde por fim põe sua carcaça de flores. Combatendo assim o bom combate! ( II carta a Timóteo, 4, 7)


Androgino - Ismael Nery

Formas agudas de esquizofrenia cultural 110

#Estamos de Greve

Osmar Pinheiro Junior

https://www.facebook.com/indiatransex.brasil


Sangria Desatada

intervenção fez parte de um movimento artístico chamado 48h Ditadura Nunca Mais que articulou várias manifestações em território nacional em repúdio a publicação da Folha de São Paulo e à comemoração dos 45 anos do golpe.

Rede [aparelho]-:

“Demarcação [mapeamento] dos locais usados pela ditadura militar para a prática de tortura em Belém do Grão Pará, rede [aparelho]-: + Corredor Polonês Atelier Cultural + quem se juntar a nós. A partir do dia 31 de março de 2009 e a qualquer momento, e continua…São lugares comuns do cotidiano da cidade, alguns transcodificados em espaços de arte e de beleza, entretanto, de suas paredes ainda ecoam gritos de torturados… A cada nova informação, demarcamos o lugar com uma mancha vermelha, mancha de alerta e de memória…”1 Dia 31 de março de 2009 comemorou-se os 45 anos do golpe militar que deu inicio a ditadura no Brasil. Em 17 de Fevereiro de 2009, foi publicado na folha de São Paulo um editorial se referindo ao Hugo Chavéz, presidente da Venezuela, como maior ditador da América do Sul, e que a ditadura no Brasil na verdade teria sido uma “Ditabranda”, haja visto o “horror” que os venezuelanos estavam passando:

Limites a Chávez: Apesar da vitória eleitoral do caudilho venezuelano, oposição ativa e crise do petróleo vão dificultar perpetuação no poder, o rolo compressor do bonapartismo chavista destruiu mais um pilar do sistema de pesos e contrapesos que caracteriza a democracia. Na Venezuela, os governantes, a começar do presidente da República, estão autorizados a concorrer a quantas reeleições seguidas desejarem. Hugo Chávez venceu o referendo de domingo, a segunda tentativa de dinamitar os limites a sua permanência no poder. Como na consulta do final de 2007, a votação de anteontem revelou um país dividido. Desta vez, contudo, a discreta maioria (54,9%) favoreceu o projeto presidencial de aproximar-se do recorde de mando do ditador Fidel Castro. Outra diferença em relação ao referendo de 2007 é que Chávez, agora vitorioso, não está disposto a reapresentar a consulta popular. Agiria desse modo apenas em caso de nova derrota. Tamanha margem de arbítrio para manipular as regras do jogo é típica de regimes autoritários compelidos a satisfazer o público doméstico, e o externo, com certo nível de competição eleitoral. Mas, se as chamadas “ditabrandas”- caso do Brasil entre 1964 e 1985- partiam de uma ruptura institucional e depois preservavam ou instituíam formas controladas de disputa política e acesso à Justiça-, o novo autoritarismo latinoamericano, inaugurado por Alberto Fujimori no Peru, faz o caminho inverso. O líder eleito, mina as instituições e os controles democráticos por dentro, paulatinamente. Em dez anos de poder, Hugo Chávez submeteu, pouco a pouco, o Legislativo e o Judiciário aos desígnios da Presidência. Fechou o círculo de mando ao impor-se à PDVSA, a gigante estatal do petróleo. A inabilidade inicial da oposição, que em 2002 patrocinou um golpe de Estado fracassado contra Chávez e depois boicotou eleições, abriu caminho para a marcha autoritária; as receitas extraordinárias do petróleo a impulsionaram. Como num populismo de manual, o dinheiro fluiu copiosamente para as ações sociais do presidente, garantindo-lhe a base de sustentação. Nada de novo, porém, foi produzido na economia da Venezuela, tampouco na sua teia de instituições políticas; Chávez apenas a fragilizou ao concentrar poder. A política e a economia naquele país continuam simplórias -e expostas às oscilações cíclicas do preço do petróleo. O parasitismo exercido por Chávez nas finanças do petróleo e do Estado foi tão profundo que a inflação disparou na Venezuela antes mesmo da vertiginosa inversão no preço do combustível. Com a reviravolta na cotação, restam ao governo populista poucos recursos para evitar uma queda sensível e rápida no nível de consumo dos venezuelanos. Nesse contexto, e diante de uma oposição revigorada e ativa, é provável que o conforto de Hugo Chávez diminua bastante daqui para a frente, a despeito da vitória de domingo.

Na escala do real, isto é, nas ruas da cidade, a Rede[Aparelho]-: fez um mapeamento da tortura em Belém. Rememorando e demarcando os locais onde eram torturados os presos políticos na época da ditadura militar; com tinta sangue de Urucum, vegetal tipicamente amazônico, pintou-se em frente aos espaços onde o derramamento de sangue humano foi fato: Uma Sangria Desatada.

Folha de S. Paulo - 17 de fevereiro de 2009 Esta publicação revela o caráter corruptível e editável das informações nas grandes mídias, de acordo com seus próprios interesses políticos; já que um jornal, neste caso, este, um dos mais lidos do País, tem potência imensurável de formação de opinião. Dentro dessas mídias abertas e consumidas pela maioria da população brasileira, as informações passam por mecanismos de construções de verdades, e a noticia só é dada de acordo com “jogadas” políticas previamente estabelecidas, seja da oposição, seja do governo e seja ainda do setor privado que paga por publicidade. Sendo que o dinheiro é o único limite e a realidade da informação absolutamente editável. Sangria Desatada foi uma ação feita para questionar esses mecanismos, e fazer uma crítica direta a este editorial. Esta 1 Anúncio publicado em http://aparelho.comumlab.org/archives/96.

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Muitos gigas de registros fotográficos e audiovisuais foram feitos e publicados em vários sites de mídia independente, fazendo circular assim a memória histórica de um povo maltratado e que a grande mídia quis fazer esquecida. Essa intervenção é um bom exemplo de ação direta que escapa aos domínios do poder maior, atuando como Máquina de Guerra, cada vez que esses registros são acessados, logo, mantendo a memória desse período duro na história do Brasil. Bruna Suelen


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Amai-vos, Lúcia Gomes, 2005, ação de distribuir beijus (bolacha regional feita com farinha de mandioca) com a inscrição “amai-vos”, pintada com tinta vermelha comestível.

Pedágio. 2010. Romário Alves.


Pira-paz-não-quero-mais ou a difícil arte da martelada* Gil Vieira Costa

Qual o lugar das ideias que não se acomodam? A produção artística de Lúcia Gomes ocupa territórios diversos. É marginal. À margem das convenções da arte, mas também à margem da apatia que acomete a cultura. Sua militância iconoclasta não permite qualquer política de boa vizinhança, somente marteladas. Não se trata, diga-se de passagem, de marteladas única-mente destrutivas. Seus alvos em geral possuem nome e sobrenome, e nem sempre seus golpes objetivam derrubar, e sim, também, esculpir consciências e ideias. Em um país no qual os poderes e as justiças escrevem o monólogo exaustivamente reproduzido, é bastante incômodo o ruído de sua arte. Sua voz mórbida canta e ainda espanta o mau agouro, nessa terra onde o silêncio literalmente é de ouro... Oi, tudo bem? Tudo bem... fora o tédio que me consome todas as vinte e quatro horas do dia, fora a decepção de ontem, a decepção de hoje e a desesperança crônica no amanhã. Fora a adolescente que ficou presa em uma cela com mais de vinte homens, pelos quais foi diariamente estuprada. Fora a incompreensível ab$olvição do ex-deputado Luiz Sefer, depois do mesmo ter encomendado a vinda de uma criança para sua casa e (supostamente) abusado sexualmente da mesma durante anos. Fora a decisão do Supremo Tribunal Federal de empossar o político Ficha Suja Jader Barbalho. A arte de Lúcia Gomes dói como um soco na boca do estômago. Sua lucidez farpada atinge meu marasmo existencial sem meias palavras. Que não se engane o espectador desatento: não há ingenuidade, talvez malícia, mas, seguramente, resistência. Que, aliás, é o título da ação realizada neste 18 de maio, dia

nacional de combate ao abuso e à exploração sexual contra crianças. A poética da guerra. De travesseiros, obviamente. De um sono interrompido pelo estampido dos estouros. Dos balões que se rompem deixando uma fronha esmirrada, vazia. Deve haver beleza nisso aí, mas não, obrigado, não estou interessado. A pira-paz contemplativa eu não aceito, eu quero é a guerra. De travesseiros. Ou de ideias. Não sei se faz sentido falar de arte uma hora dessas, portanto quero falar mesmo é de travesseiros, de balões rompidos, de fronhas magrelas, de crianças tocadas. O pai é o agressor mais comum, seguido do padrasto, do tio, de algum primo. Os vizinhos e desconhecidos são a minoria. O perigo está dentro de casa, o silêncio mora ao lado, e/ou: dormindo com o inimigo. Tenha um bom sono. Quero é martelar travesseiradas na consciência alheia. Quero é amolaecer os corpos. Quero é o estranhamento do brincar, tanto de quem vê quanto de quem faz. Quero é contrapor ao corpo adestrado (pela etiqueta e normas de bom comportamento) o corpo atentado do moleque que já não somos. O moleque atentado que busca do próprio corpo o prazer, a liberdade, a resistência. Quero é demolir meus pudores, minhas vergonhas. Afinal, melhor empunhar o travesseiro que a arma, melhor martelar ideias que mãos de cristos. Quero é resistir. Mas quero meu corpo pra divertir, não pra violentar. Pra provocar o riso, jamais o trauma. Pra martelar as ideias e incomodar as consciências, como quem derruba a anacrônica e ensebada muralha que divide o mundo...

“Resistência” - Fundação Lucia Gomes (Realizado no Gempac. No Puta Dei)

Pra não dizer que não falei das flores:

“Resistência”, a ação de Lúcia Gomes, não é somente um ato contrário à violência sexual perpetuada em nossa sociedade, mas igualmente um ato de resistência contra algumas noções cristalizadas a respeito da arte. Sim, a arte, aquela tão pretendida e inacessível princesa, encastelada atrás de inúmeros dragões. Ancorada em uma tradição conceitual, que se inicia nas décadas de 1960 e 1970 no Brasil e no mundo, a arte de Lúcia Gomes não busca a beleza das formas, mas a pertinência das ideias. De cara já chega invertendo todos os pressupostos: Lúcia Gomes instiga a ação do outro lado do oceano, na Suíça, país em que reside há alguns anos. Daqui, respondem às provocações tantos outros inquietos. Nada de dominar pincéis e tintas – o colorido das fronhas e balões se faz com o movimento dos corpos, e a ação jamais pode ser capturada por um flash momentâneo. Também o rigor e reverência dos templos da Arte aqui não se enquadram: qualquer lugar é lugar, e tanto melhor quanto mais diverso for em relação aos museus e territórios artísticos. O que vale é a incitação, a desordem conceitual. A utopia: qualquer lugar, qualquer coisa, qualquer pessoa... arte.

Recusar o espaço delimitado e frio e se apropriar dos espaços cotidianos, flexíveis, polifônicos. Onde as muitas vozes são proferidas, silenciadas, extravasadas, admitidas, contrapostas, negadas. Basta à ação e à arte que sejam um ato de resistência. Portanto, que não se calem. Que sejam como a frieza do prego incomodando a língua que se delicia com o doce. Que sejam como o estouro das balas/balões nas guerras que travamos desde sempre. Que sejam como portas, diante das quais aquele que vê jamais permanece o mesmo. Portas – tanto obstáculos quanto passagens. Tanto limite quanto saída. Que a arte soe como atrevimento. Quanto às ideias arcaicas, quanto às violências da opressão, quanto às perversões do espírito, quanto às ganâncias humanas, quanto aos vícios enrijecidos dos egos inflexíveis, só resta ao martelo de s p e d a ç a r -----------------* Texto fotocopiado e distribuído no dia 18 de maio de 2012, no hall da ESMAC (Escola Superior Madre Celeste), durante a realizAÇÃO de “Resistência” por alunos e professores da instituição.

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#Estamos de Greve

“PIPAZ”.2004. Brasilia. Fundação Lucia Gomes


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#Estamos de Greve

http://www.youtube.com/user/qualquerjamcine


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[RMXTXTURA]

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A Moeda Muiraquitã foi confeccionada artesanalmente, com barro, mas seu principal valor está no objetivo de sua utilização, como troca ou bônus que pode promover a educação ambiental ao mesmo tempo em que abre portas para novos conhecimentos no mundo da cultura digital. Coletivo Puraqué

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ARQUIVOS RMX : capixaua_part2.mpg - YouTube.mp4 | FUNK DA LAMA - BELÉM PA (BALANÇO GERAL).mp4 | bernardo sayam.avi | brega_sa_xvid_2009.avi | bboy002.mpeg | Ctdn d - Ciclovia Au gosto n’ Montelixo.mpeg | Bicicleta em Afuá PA – Report.mpeg | Vídeo0013.mpeg | Tem Boto Na Rede do Tunico_x264.mpeg | Necronomicon parte 1.mpeg | ABATE 25.avi | Entrevista Marat 1.mov | Teia Amazônica INOVACINE intervenção.mp4 | APJCC apresenta Crítica pra quê - Parte 2.mp4 | ambul- 004.mpeg | Belo Monte - anuncio de uma guerra.mp4 | Banco Comunitário Muiraquitã - Prêmio FBB de TS 2011.mp4 | MVI_7788.mov | MVI_7788.mp4 | Museu do Marajó em Cachoeira do Arari - Ilha de Marajó – PA.mp4 | ladrao nao rouba ladrão.mp4 | Rumo Norte.AVI


Cidade; labirinto das mediações. FERNANDO d’ pádua Quem nunca se perdeu em um labirinto? Aqui e ali alguém se perde quando não se tem um mapa definido. Mas para que serve um mapa? De onde vêm os mapas? Quem os desenhou? Quem os programou? No grande labirinto, muita coisa se recombina na dinâmica dos encontros. Na efemeridade própria da duração dos acontecimentos em constante movimento. A cidade-labirinto, assim como a vida, é o que é por ser o que não é: um espaço fechado. Cidade como um labirinto elaborado para mediações variadas se transforma em uma dinâmica inversa, múltipla e rizomática por ser constituir no presente, no entre de uma coisa e outra. Assim, a ideia de cidade idealizada é posta a prova na contraposição das mimetizações presentes nos modos de operar, de ver e no agir coletivo próprio dos processos de condicionamento urbano; nas ilusões forjadas a ferro e fogo, compactas e incrustadas como verrugas sobre a pele da massa dispersa induzida pelo discurso oficial representadas nas mil estratégias de dominação das paixões e dos desejos para controle da subjetividade como prática de coerção do corpo. Palco material das disseminações de sentidos estetizados, produzidos pelo sistema de produção predominante para um melhor o controle social, ideológico, político e cultural das relações sociais. Amálgamas

atravessadas por práticas poe[lí]ticas1 na dimensão ordinária da experiência estética; chapa de ferro, plásticos, arames e madeira fundidos aos suportes, conectadas aos costumes e tecnologias possíveis. Somente vivendo a cidade-real que encontraremos os motivos para não nos comportarmos como meros observadores passivos. Precisamos assumir a tarefa de desconstruir o que é posto como verdade absoluta, afirmando práticas libertárias e criativas. E para que isso ocorra, precisamos “descascar essa pupunha” de qualquer maneira, apropriando-se da cidade-labirinto como lugar favorável para provocar situações de forma irreverente e no jogo direto com as pessoas. O relato a seguir faz parte de uma experiência de viagem à uma cidade-labirinto no meio da Amazônia paraense, onde é possível experimentar estes outros lugares, outras cidades, não-lugares.

Prática rizomática para tratar sobre as questões ligadas ao funcionamento da cidade, no combate a lógica instaurada pelos discursos normativos sobre os aspectos que tratam da produção em arte em relação à cidade. O neologismo poe[lí]tica, foi elaborado por mim, durante o próprio fluxo das trocas em práticas autônomas de intervenção urbana, nas experiências em campo ampliado, observando e interagindo com as produções ordinárias e situações comuns próprias da cidade. (N.A) 1

Afuá, arquipélago do Marajó, Pará. Janeiro de 2011 Antes mesmo de conhecer a estrutura física da cidade do Afuá e experimentar sua dimensão psicogeográfica, escutei muitas histórias de pessoas oriundas desta cidade e também relatos de navegantes que encantados, descreveram algumas curiosidades que revelam características e peculiaridades relacionadas ao hábito cotidiano de pedalar sobre rodas em um labirinto erguido sobre palafitas. Afuá é conhecida por muitos como “Veneza da Amazônia” por conta de estar construída sobre as águas, e ser parecida, de longe, com a cidade Italiana. Comparação que não cabe aqui contestar, já que não conheço de fato esta outra cidade. Afuá localiza-se no arquipélago do Marajó, no extremo norte do Estado do Pará, às margens do Rio Afuá com o Igarapé Jaranduba do rio Cajaúna, já próximo ao Amapá, constituindo-se como uma cidade ribeirinha erguida sobre palafitas. Nessa viagem, foi preciso pegar um avião para Macapá, capital do Amapá, já que o trajeto pelo rio segundo alguns

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utilizadas como suporte para venda de produtos artesanais e industrializados traçando uma trajetória sinuosa cheia de molejo pelas margens das ruas. Estruturas que denomino conceitualmente de feituras, por tratar de objetos que demandam um saber ordinário elaborado empiricamente. Estruturas móveis/movíveis elaboradas em serralherias utilizando material residual, caracterizadas comumente por estar sempre em processo de “atualização”, reformulação.

viajantes se encontra muito perigoso em decorrência do grande índice de ação de piratas na região2. Já em Macapá, junto de minha companheira de viagem, pesquisas e da vida, Bruna Suelen, podemos perceber ao caminhar e pedalar pelas ruas desniveladas da cidade, muitas similaridades negativas em sua concepção espacial urbana, visto que todas são planejadas para o fluxo de veículos automotivos; sinais de trânsito por todos os lados, ausência de ciclovias, nomes de avenidas principais semelhantes as de outras cidades do Brasil e o típico comportamento agressivo praticado pelos motoristas de automóveis envoltos pelos simulacros da vida moderna. Entre uma caminhada e outra à deriva pela cidade, nos deparavámos com estruturas inusitadas

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Os piratas utilizam embarcações como canoas a remos ou rabetas com motor de poupa adaptada estrutura da embarcação para um melhor fluxo nos rios e igarapés as regiões ribeirinhas, são comumente chamadas de montarias.

Prestação – Macapá, 2011. Percebendo a existência de tantas feituras que utilizam dessas tecnologias para ganhar a vida, busquei conhecer alguns serralheiros da região para saber um pouco mais sobre seus processos criativos. Fiz logo amizade com Seu Zé, nordestino imigrante que fora para Macapá na década de 80, por conta das promessas da cidade morena em pleno processo de ocupação urbana. Seu Zé trabalha com compra de peças de bicicletas e grades para residências, além de outras sucatas trazidas por coletores. Em sua oficina, que fica no pátio de sua casa, conheci parte de seus filhos e netos que vivem em contato direto com o modo de produção do pai/avô. A conversa rendeu bastante, percebi nele uma semelhança comum entre os demais serralheiros, que estabelecem relações ordinárias de concepção estrutural, utilizando resíduos, arcabouços sucateados da indústria. Uma prática de sobrevivência muito comum das zonas periféricas urbanas ou não, próprias do podemos chamar de uma estética da existência. Uma relação direta com a seleção dos objetos em função de sua significação prática. As estruturas empurradas por trabalhadores autônomos carregadas de produtos ordenadamente agrupados, ficam expostas sobre o suporte móvel feito de peças de bicicletas e motocicletas, são compostas de produtos industrializados para comercialização de objetos de desejo; “andarilhos” aparentemente em deriva, co-

mumente chamados de “prestação”3que trafegam a cidade na maestria própria de quem equilibra-se na corda bamba da vida. Seguindo percurso pela capital do Amapá, fomos à busca de registros na Secretaria de Cultura do município e na Biblioteca Pública sobre as manifestações artísticas que, de alguma forma, envolveriam as produções dos afuaenses, principal foco da viajem, por estar tratando de uma manifestação cultural desta cidade e pelo fato de apresentarem entre si uma ligação geográfica muito aproximada. Sem muita informação, achamos prudente viajar o mais breve para o Afuá. Ainda no porto da cidade, de dentro do barco, dava para observar os detalhes das feituras ali estacionadas; coisas como acabamento, improvisação de peças e materiais, combinações de cores e formas, galiqueiras, traquinarias, gambiarras compunham a produção e as funções de cada elemento na relação com o todo. Após sairmos do porto, ainda sobre as águas do rio daquela região que divide os dois Estados, Pará e Amapá, outras estruturas móveis instigavam a imaginação, provocando novas ligações conceituais com o objeto da minha pesquisa. Visto que as feituras, sejam elas elaboradas para transitar na cidade ou sobre as águas, fazem parte de dinâmicas orgânicas próprias da sensibilidade humana, desenvolvidas e adaptadas por métodos intuitivos e improvisações. Neste caso me refiro às rabetas, embarcações de madeira com motor de poupa, reconhecidas como um dos principais meios de transporte das populações ribeirinhas. Quanto mais adentrávamos as “bocas” dos rios, outra paisagem se mostrava predominante: açaizeiros, anhingas, palafitas e casas suspensas surgindo entre as matas. Aqui e ali, serrarias e mais serrarias construíam montanhas de serragens com tons variados de marrom. Dentro do nosso barco, muita gente compunha um cenário bem comum por essa região. Deitadas em suas redes, criavam massas de cores espalhadas por toda sua extremidade, que amarradas às colunas de madeira da embarcação, seguiam o ritmo da maresia no balançar dos corpos suspensos. Ao se aproximar da cidade, parecíamos estar delirando diante de tantas bikes, que tão logo se apresentaram comuns como os carros da cidade grande. Surgiam de toda parte: triciclos, quadriciclos, conhecidos como bicitaxi, carrinhos de empurrar e bicicleteiros por toda parte, indo de um lado para o outro. Após nos alojarmos, demos início à caminhada, ficamos vislumbrados com a possibilidade de desdobramentos das feituras utilizadas como meio de transporte e vinculação de conteúdos em trânsito na

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Vendedores ambulantes que comercializam produtos importados utilizando um sistema de crédito em boleto.


peças de embarcação, Baixote esmerilava uma peça no torno ao fundo do estabelecimento. Desviando das peças para não me machucar, me aproximei do fazedor sem dar alarde. Mostrando-se bastante receptivo, logo fizemos amizade. Iniciamos um “diálogo” informal para saber como ele elaborava suas estruturas, seu processo de feitura e concepção estrutural. Ele nos relatou sobre o modo de fazer ao pegar um projeto para desenvolver. Em suas próprias palavras:

­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­Feituras de lotação para transporte de mercadorias-Afuá, 2011. cidade. Verdadeiras gambiarras tecnológicas criadas para suprir necessidades primárias para subsistência da família dos muitos anônimos que mostrando certo orgulho, pareciam nos convidar para experimentar. Desconhecendo os hábitos dos afuaenses, assim como a estrutura semi-urbana da cidade, iniciamos a caminhada pelos labirintos erguidos sobre o rio e logo nos perdemos intencionalmente. Fomos do centro conhecido como Entroncamento, por conta do fluxo comercial, até o bairro do Capim Marinho I e Capim Marinho II, para conhecer os caminhos por dentro da cidade. . Após o primeiro dia observando e se adaptando aos hábitos locais, trocamos muitas ideias com a comunidade, várias reflexões passaram a ser esboçadas como, por exemplo, o poder da mídia na produção de bens de consumo4, facilmente encontrada em vários níveis de relações nesta cidade que na ausên-

4 A cultura-mercadoria se constitui no que Félix Guattari chamou de terceiro núcleo semântico onde se encontram todos os bens da cultura de massa como elemento fundamental da produção de subjetividade capitalística: “A cultura são todos os bens: todos os equipamentos (como as casas de cultura), todas as referencias teóricas e ideológicas relativas a esse funcionamento, tudo que contribui para a produção de objetos semióticos (tais como livros e filmes), difundidos num mercado determinado de circulação monetária ou estatal” In. GUATTARI,Félix. ROLNIK,Suely. Micropolítica: cartografia do desejo. Petrópolis: Ed. Vozes, 2010. p.23.

cia de outros meios, criou os seus, afirmando assim suas individualidades diante dos insistentes apelos midiáticos. Mercadorias de desejo materializadas no que os afuaenses chamaram de bicitaxi5, podem ser consideradas nesta dimensão ordinária, como uma ramificação da cultura automotiva que se instalou no cotidiano dos indivíduos da cidade, pelo fato de apresentar um formato muito próximo dos automóveis disseminados pela indústria. A cidade possui uma variedade de feituras singulares: triciclos, quadriciclos e bicicletas dos mais variados formatos, indo de simples estruturas à estruturas complexas, como a bicitrio que possuía um sistema de som conectado a um notebook com alimentação de energia independente que partia de um gerador a base de diesel. Dente os acontecimentos, uma pergunta ficou no ar: quem fabrica estas estruturas? Ao perguntar para a primeira pessoa que atravessou nosso caminho, logo o nome do fazedor surgiu. Conhecido como Baixote, o serralheiro que mora no Capim Marinho II, foi indicado para falar sobre esse modo de operar dos afuaenses. Fomos então ao encontro do Baixote, estava em seu ambiente de trabalho em uma serralheria próxima ao antigo porto da cidade. Em meio às sucatas e

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Termo utilizado para denominar as feituras utilizadas para lotação. Quadriciclos que substituem os automóveis (N.A)

“Pelo papel não tem medida de nada né?! Aí tu vai desenvolver tudinho né?! somente na mente. Aí vai cortando, fazendo. Adaptando o tamanho que é e que não é. Pra ficar toda adaptadinha, normal. Tem coisa que dá certo, e tem coisa que não dá, aí a cosia vai se desenrolando até dá... quando o cara não tem a peça né?! o cara vai pensando. Toda peça tem seu devido lugar. Tem que adaptar né?! Vai adaptando tudo. Corta uma aí não dá certo, aí vai atrás de outra...” Saímos então em direção a sua casa para ele me mostrar uma de suas obras, uma bicicleta feita com de ferro de uma cama tubular que faz o maior sucesso na cidade. A partir daí, outras produções foram surgindo; maneiras de fazer, pensar e lidar com as tecnologias pareciam bem frequentemente em uma cidade tão longe das grandes capitais do mundo. Dentre as curiosidades, a que mais despertou atenção é a utilização de bicicletas como principal meio de transporte da população pelo fato da cidade ser erguida sob palafitas, motivo que impossibilita a tráfego de veículos automotivos em decorrência do peso que estas estruturas possuem. Uma resistência natural ao processo de ocupação das terras na Amazônia, que diferente de outras cidades que sofreram processo de aterramento das áreas de várzea para que o “desenvolvimento” se instalasse como Macapá e Belém. A cidade do Afuá apresenta um índice zero de morte por acidentes de trânsito.

cia em meio a Amazônia, que apesar de fazer parte do grande simulacro de representações, proporciona uma realidade lúdica onde crianças, jovens e adultos, podem transitar sem correr o risco de ser surpreendido por algum agente mal intencionado. Palafitas que constituem a “limitação” estrutural da cidade por não comportarem os produtos oferecidos pela indústria de consumo implantada no inconsciente coletivo. Limitação subvertida pelo potencial criativo que proporcionou sua superação, levando-os à readaptarem seus desejos, transformando as matérias de acordo com seus interesses, construindo seus próprios produtos “semelhantes” ao propagado pela mídia. Fato que não exclui a interesse particular e hierarquizante de alguns indivíduos que possuindo um rendimento mais confortável, podem diferenciar-se de outros indivíduos customizando, ou “apimentando” a seu gosto suas feituras.

Quadriciclo- Afuá, 2011.

Bicitáxi. Afuá, 2011. Bicilância , Afuá, 2011. Bairro do Capim Marinho I – Afuá, 2011.

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Bicitrio. Afuá, 2011. Uma realidade urbana singular de resistên-


Coisa de Negro: Resistência cultural Icoaraci – Belém – Pará – Brasil - 2012 Clever dos Santos - Luizinho Lins – Nego Ray Luciane Bessa – Ney Lima – Gleidson Carrera Luisinho Lins: Nesses 12 anos são mais de 500 domingos que a gente vem fazendo vivências do carimbó no Espaço Cultural Coisa de Negro. Onde as pessoas vão para dançar, e para quem tem um certo conhecimento de música, sobe no palco e toca também. Temos a pretensão de fazer com que a vivência da música regional paraense funcione, pois falamos do carimbó, mas não tocamos só o carimbó, tocamos o xote, o retumbão, o lundu, tudo quanto ritmo que seja regional...o banguê, samba de cacete... A gente não se fecha em uma coisa segregada de só tocar carimbó, só tocar lundu, tentamos fazer uma coisa que chamamos de “globalizar o regional e regionalizar o global”. A gente começou a fazer que isso se tornasse parte do cotidiano, principalmente das pessoas que moram em Icoaraci, que começaram a participar das rodas regularmente. Por exemplo, o mestre Coutinho, quem conhecia o mestre Coutinho? Aqui, quem conhece o mestre Coutinho? Mas se eu chegar e cantar: “eu tava na praia, na praia de Marudá, brincando com mariinha, quando vi pássaro voar, avoou avoou, passarinho do mar, avoou avoou...” esse é o mestre Coutinho: “areia areia areiê, areiê, areia areia areia, areiá”. Quer dizer, um senhor que mora em Icoaraci, que está vivo, dança para caramba, e hoje está sendo conhecido, por ir para o espaço tocar aos domingos. E ainda tem uma nova geração que está tocando desde criança, que é o pessoal do Paramuru, um grupo de uma família, são todos filhos de um mesmo Senhor que toca carimbó já a muitos anos e agora tem um espaço pra tocar aqui em Belém . Antes os tocadores não tinham um espaço específico para as tocadas... Clever dos Santos: Eu gostaria de falar um pouco do que é o início de tudo. Esse instrumento chamado curimbó, que vem da língua tupi CURI-N'-BÓ, que significa: pau-furado que faz som. Então ele é tocado dessa maneira: o tambor fica deitado, e a pessoa fica em cima montada, em cada localidade tem um sotaque diferente, um som diferente que esse tambor faz. Quem toca curimbó não toca porque aprendeu na academia, ou aprendeu numa apostila, num software que está disponível, aprendeu vivenciando, olhando, escutando e tocando. A única maneira que se tem

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de aprender carimbó, é vivenciando. A transmissão que tinha até então, era única, através da oralidade. Então a partir daquele momento que pega-se aquele tambor e transforma em uma linguagem digital, tu pode disponibilizar também essas informações de maneira digital, então o nosso objetivo é fazer uma reutilização das mídias, principalmente fazer a documentação e registro, e repassar para todos esse dados, esses saberes, essas vivências. Carimbó não é apenas música, não é só ritmo, não é somente dança, mas é um coletivo, um conjunto de informações culturais, vivenciadas por cada localidade onde ele se encontra. Não existe um só toque de carimbó, ou seja não se toca e se dança carimbó de uma só maneira, cada localidade do Estado do Pará (que é gigantesco!), tem uma batida diferente. Para nós foi uma abertura muito grande para gente estar aqui agora. Durante o FSM em 2009 nós fizemos contato com o Submidialogia, com várias cabeças ligadas a mídia tática e uma vontade particular, que reverberava lá coletivamente no Coisa de Negro. Até convidei o Ney pra gente fazer essa vivencia lá, mostrar o carimbó, com esse pé de usar essa vanguarda tecnológica e aí criar uma outra linguagem, para que as pessoas pudessem ter acesso e que a gente pudesse documentar e registrar esse patrimônio imaterial. Nessa época, a gente já tinha acesso a nomenclatura do Iphan que é o registro e documentação do patrimônio imaterial, a campanha do carimbó já tinha deslanchado em 2005. Então, depois desse contato trocamos informações através das listas, e lá foi se ampliando o diálogo com essas novas linguagens, de fazer a própria mídia. Um ano depois o que era uma ideia concretizou-se com editais: o do BASA, quando a gente alavancou o primeiro festival de carimbó de Icoaraci, com essa perspectiva de mapear de dentro da campanha do carimbó; e do Min C, foi o prêmio de cultura popular Humberto Maracanã, dando suporte pra gente repensar e restruturar o Espaço Cultural Coisa de Negro com essa finalidade: registro, documentação e acesso. Luizinho Lins: Fomos contemplados também com o Carimbó.net, a Luciane escreve o projeto pra desenvolver esse trabalho lá no Coisa de Negro que eram oficinas de produção de música que pudessem

disponibilizar material virtual. Com o dinheiro deu pra comprar o notebook, a mesa do som e um projetor. Com a aquisição desse material acabamos desenvolvendo um estúdio para fazer gravação, e desse estúdio, começamos a fazer uma produção de conteúdo disponibilizando eles para as pessoas. A gente já tinha ideia de fazer uma rádio, então eu pesquisava algumas ferramentas na internet, também querendo transmitir a roda no Coisa de Negro ao vivo. Agora, neste último momento a gente conseguiu fazer pelo LIVESTREAM, basta ter uma conexão boa, a gente já transmitiu algumas rodas nesse processo! A primeira transmissão que a gente fez foi da oficina de banjo, no IAP - Instituto de Artes do Pará, e nessa brincadeira percebemos o interesse online pela oficina. Aos domingos nós fazemos a transmissão da roda, mas quando a conexão está muito baixa, acaba virando uma web rádio. Clever dos Santos: O Carimbó.net é um projeto que foi financiado pela Fapespa e pela bolsa de pesquisa da Proex-UFPA com a finalidade de criar um blog, uma rádio web e disponibilizar acesso a uma biblioteca digital do carimbó, através de oficinas de capacitação e montagem do acervo digital do carimbó. Ney Lima: Mas não do carimbó vivenciado dentro do Coisa de Negro. Clever dos Santos: Do Carimbó em geral, tendo como ponto de partida o Coisa de Negro. O projeto ainda está em execução. O blog já existe, é o http:// projetoscoisasdenegro.blogspot.com.br/ . O que tem nele é a oficina de audiovisual, captação e edição de áudio em software livre e a radio web, assim como a web TV. Que a partir das ferramentas, notebook, webcam, modem e servidor, em pouco tempo a gente começou a transmitir, só que ainda temos o problema da conectividade, e ainda só uma webcam, o que limita a transmissão pra uma imagem de cada vez, e o áudio é ambiente. Gleidson Carrera: Queremos melhorar. Clever dos Santos: Então esse é o “plus” do Carimbó.net, que seria o isolamento acústico do espaço já que o barulho incomoda e pagamos multas por ele, então há a necessidade do isolamento acústico e a pontencialização da WebTV, com mais de uma câmera e melhor a qualidade de transmissão. Luciane Bessa: Sobre o Carimbó.Net tu já falou bacana, eu queria mesmo falar um pouco sobre a relação do Coisa de Negro com a universidade, que começou por meio de eventos dentro de programações culturais. A gente começou a levar pros congressos estudantis o grupo de carimbó do espaço, isso começou a fomentar a pesquisa em torno do espaço, e já tiveram monografias na área de comunicação, turismo, além de artigos sobre gestão cultural, sobre

identidade, todos com o Coisa de Negro como objeto de pesquisa. Uma delas, a minha monografia sobre identidade relaciona com outras pesquisas que já foram feitas lá, como por exemplo a de um grupo de comunicação com um trabalho sobre a representação da identidade paraense, que perguntavam: qual é a música do Pará? E a maioria esmagadora respondeu, era carimbó. Mas aí se tu perguntas, tu vais no carimbó? Tu compras CD de carimbó? O que que tu conhece de carimbó? A pessoas não conhecem nada, ou seja, a identidade do Pará tá na merda, na lama, tá lá atrás jogada às traças. O Coisa de Negro faz parte de um processo que não é só local, mas parte de um projeto mundial de revalorização das raízes, e que por meio de várias estratégias ele tem consigo repercussão, trevalorização dos antigos mestres e tudo mais. Também, traz um processo assim, a identidade da Amazônia, como um todo ela é considerada ultrapassada, porque as pessoas confundem tradição com ultrapassado, quando na verdade é continuidade, uma coisa antiga que continua. E aí no Coisa de Negro, tu podes ver o cara com uma guitarra em cima do palco intervindo na roda de carimbó... as coisas se transformam, a cultura é dinâmica. Então a gente tá vivendo a tradição, num contexto que hoje é mundializado, globalizado. O contexto da globalização, da mundialização das mídias e tudo mais, acaba contribuindo para a revalorização das nossas raízes, no olhar para dentro de si, no olhar para o nosso passado, para nossa história. É interessante também ver que o tema do meu trabalho foi Identidade e Resistência na Globalização, que é parte do que o carimbó vem trazendo, do carimbó que é feito lá Coisa de Negro. Ele vem carregado de uma identidade de resistência, o próprio nome Espaço Cultural Coisa de Negro, se tu perguntares pro Nego Ray - que é o proprietário do local, ele diz – “eu coloquei esse nome mesmo, como um soco na cara do preconceito, é uma reação contra a discriminação da nossa cultura”. Luizinho Lins: Nós criamos reuniões lá pra fazer essa conceituação do que estávamos fazendo, tinha todas essas frases que consideravam carimbó uma tradição, que não podia ser modificado... Quando na verdade é uma coisa onde o passado vai se renovando, que cada um ali tá vivenciando. Foi em reunião que a gente começou a refletir os conceitos baseados no copyleft, creative commons, economia criativa, e sobre a própria origem afro-brasileira, pra gente definir o que é o Coisa de Negro hoje, para as pessoas chegarem e se identificarem com os discursos, uma coisa afinada com o que é a realidade do espaço sem inventar ou querer adicionar coisas que não somos. Luciane Bessa: o primeiro título do meu trabalho é: Dançar carimbó é um ato político, porque eu via ali


Curimbó do grupo de carimbó Paramuru / Belém - Pa

uma identidade política, uma identidade de resistência, formada muito pela história. Quando a gente diz quem a gente é, a gente tá assumido a história de um povo e a dança do carimbó traz a história do afro e indígena. O carimbó é representativo - lá dentro do Coisa de Negro, ele é representante dessas histórias de lutas e de resistências. Outro ponto é sobre a economia da cultura, mais baseada na economia solidária e na economia criativa. O que eu vi aqui das experiências, reforçam a ideia de que a cultura está se organizando em torno da economia solidária que é mais essa produção colaborativa e a autogestão. Lá no Coisa de Negro estamos fazendo shows, cobrando ingresso, buscando formas de resistência econômica por meio da colaboração. Então, a economia da cultura está crescendo, o termo indústria cultural está cada vez menos sendo pesquisado dentro da universidade, e está cada vez mais aparecendo o termo Economia da Cultura. A gente tá precisando se ligar que a gente faz economia solidaria para assim poder acessar as políticas públicas relacionadas.

Conhecimento Transversal

Luisinho Lins: Por ser música regional, tocada com instrumento rústico, os caras acham que não precisam ter pesquisa, um bom tratamento e uma boa qualidade de som. Isso foi uma das coisas que a gente começou a se questionar: Por que o carimbó não pode ter esse mesmo tratamento? Por que os grupos regionais não podem ter essa preocupação de fazer pesquisa e registro? Foi aí que a gente passou a fazer um trabalho de pesquisa sobre o banjo, um instrumento que existia nos relatos há mais de 200 anos, mas que estava desaparecendo da cena. Então, fomos rever e estudar esse instrumento, de alguma uma maneira melhorá-lo e depois desenvolver oficinas. Clever dos Santos: Esse banjo aí foi feito pelo Ney Lima pela necessidade de tocar e de ter o instrumento. Andando na rua ele viu um pedaço de madeira e enxergou um banjo. Se você observar ele é todo lata, uma pele de tamborim foi doada, e o resto é tudo resíduo... foi corda de pesca, o captador também foi

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Web-tv Coisa de Negro

doado, uma sucata, o braço também foi feito manualmente, os traços, então esse é um objeto sonoro metareciclado, que foi feito na cidade, mas com uma conotação lá do rural, do pau que é utilizado para fazer o carimbó. Esse é um exemplo bem clássico, bem claro, do que a gente está falando aqui em termo de reciclagem, de reutilização de resíduos sólidos e metareciclagem. E não podemos deixar de falar que temos o Nego Ray, que é o responsável por essa parte de instrumentos, e a partir dos ensinamentos dele, o Ney começou também a produzir os próprios instrumentos. Gleidson Carrera: Tem o seu Lourival também. Clever dos Santos: O Seu Lourival Igarapé é um cara que faz também instrumentos. O Ronaldo Farias é outro. Ney Lima: Uma informação, o Seu Lourival é militante da cultura popular. O que eu achei interessante quando eu cheguei lá na casa dele foi ver uma muda de cuieira, que ele plantou, que cresceu, agora está bem frondosa. Ele está usando as cuias de lá para fazer maracas, com sons incríveis...a do Gleidson é uma delas. Então, para mim isso aí, ele sentiu a necessidade de ter esse material para poder produzir e plantou. Gleidson Carrera: Ele plantou na casa dele, no fundo do quintal, para poder depois desfrutar. Ney Lima: Ele já deve ter, pelo menos, uns 8 pares de maracas. E maracas boas... ele chegou com o Ray, e disse: - “olha, fiz essa!”. Quando ele ouviu, respondeu: “eu vou ficar com essa aqui!” E justamente essa questão, a do repasse de informação, na oralidade: Seu Lourival usa para desbastar a cuia um instrumento que é meio difícil usarem agora, chamado grosa. É como se fosse um ralador, só que esticado, mais ou menos, como se fosse uma chave de fenda, só que achatada e com estrias. é ele que cava os curimbós do Ray. Pois é, então ele usa isso, e vai desbastando, balançando até encontrar a diferenciação do som das duas maracas, e principalmente da intensidade do som de cada uma, por conta dessa desbastação já que é muito grossa a cuia.


Coletivo Puraqué ativismo de base

TIC1 - uma ferramenta de inclusão social

Marie Ellen Sluis2

1 Tecnologias da Informação e Comunicação 2 Este artigo pertence a um capitulo da tese Ellen: Amazonian Geeks and Social Activism: An ethnographic study on the appropriation of ICTs in the Brazilian Amazon. A gambiarra tem sido um elemento fundamental nas inúmeras iniciativas de ativismo de base que emergiram em todo o Brasil. Essas iniciativas buscam a apropriação do “faça-vc-mesmx” e da baixa tecnologia à realidade espacial local, buscando uma alternativa aos projetos de inclusão digital de cimapara-baixo – que ocorrem com frequência no setor público e privado – de uma forma que busque criar uma autonomia dentro do atual modelo capitalista desigual. Em Santarém, Puraqué é um coletivo de ativistas sociais que espalham a ideologia na região, buscando engajamento social e emancipação por meio de um conhecimento coletivo crescente. Como brasileiros inovadores, eles procuram uma forma de sustentabilidade baseada na geração de riqueza e por meio do conhecimento sobre a realidade cotidiana e local (exploração, violência, drogas, sexo e desemprego) das pessoas1.

História

Aproximadamente oito anos atrás, Jader e Tarcísio fundaram o Puraqué, na vizinhança de Mapirí, em uma época em que aquela era uma das piores vizinhanças da cidade. Muitos adolescentes estavam envolvidos em gangues, tráfico de drogas e violência extrema nas ruas, causando mortes. Ambos vieram de famílias que sempre haviam se envolvido em movimentos sociais. Dona Alice, mãe de Tarcísio, considera a si mesma uma feminista e o pai e a mãe de Jader sempre foram membros do movimento social local. Tarcísio também me contou que, quando eram adolescentes, eles já tinham criado um grupo de amigos chamado Gaepa (Grupo de Amigos Estudando para Agir) com o objetivo de lutar contra os crimes ambientais. Por exemplo, criaram uma campanha contra os pescadores que usavam bombas na água para matar grandes quantidades de peixe, mas

1 Gama, J. “PURAQUÉ: Uma história do futuro do software livre na Amazônia”. Retirado de http://puraque.comumlab.org/?page_id=2 em 07/08/2010 e Lima, P. “Santarém terá Pontão de Cultura Digital”, Retirado de http://pontaotapajos.redemocoronga.org.br/2009/03/18/pontao-de-culturadigital-do-tapajos/ em 07/08/2010 130

#Redes Locais e Autonomia

Rádio e conectividade da Casa Puraqué

simultaneamente matando vegetação e outros animais. Quando cresceram, eles se distanciaram. Alguns foram para a universidade em outras cidades, outros casaram ou decidiram que tinham que arrumar um emprego e renda. Jader, por exemplo, começou uma gráfica. No entanto, por conflitos internos com seu companheiro, ele decidiu deixá-la. Oito anos depois da separação dos jovens ativistas, Jader reencontra Tarcísio, que já estava desapontado com o setor corporativo. Ambos se conscientizam da importância de um tipo de projeto social que envolvesse tecnologia e que pudesse melhorar a situação terrível da vizinhança. Desde então, eles estão determinados a continuar trabalhando na mesma direção. Desde sua primeira base em Mapirí, os puraquean@s2 têm se movido pela cidade, trabalhando em uma série de vizinhanças à procura de um projeto que promova coesão social. Em Mapirí, por exemplo, suas atividades tiveram um significativo impacto na situação do bairro. Tarcísio me disse que, naquela época, Mapirí era considerado o bairro mais perigoso, com alto índice de criminalidade e pobreza. Naturalmente, isso era a principal razão para começar o projeto justo ali, com o propósito de ocupar os jovens criminosos por meio de cursos e oficinas de informática e provê-los com um espaço alternativo à rua. No primeiro ano, o espaço alternativo foi uma pequena garagem em uma casa de seus pais. Usaram dois computadores velhos para realizar suas primeiras oficinas. Para juntar os estudantes, eles se aproximaram dos líderes das gangues mais perigosas e os convenceram a assistir às aulas e frequentar o projeto. Rogerio, um ex-puraquean@, me disse: “Surpreendentemente, esses caras, até quando eram de outras gangues, realmente se respeitavam dentro do projeto. Enquanto eles podiam se matar fora do prédio, ali dentro eles colaboravam. E eram da mesma sala!”. O objetivo principal do Puraqué era

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Eles escrevem puraquean@s, ao invés de puraqueanos ou puraqueanas, ao se referir a homens e mulheres, respectivamente, porque não querem distinguir entre participantes masculinos ou femininos. Todos são considerados iguais.

oferecer um espaço alternativo para esses jovens, já que normalmente não tinham nenhum outro lugar para ir. Infelizmente, nas primeiras semanas, uma tensão crescente entre duas gangues levou ao assassinato de um homem por três pessoas de uma das gangues. Como resultado, esses três foram sentenciados à prisão até hoje e deixaram o Puraqué. Isso joga luz na situação daquela vizinhança, que ainda é realidade em muitas outras. Tarcísio me contou uma história da participação de um menino num jornal mensal, à época de um dos cursos. Para uma das edições, ele escreveu sobre sua situação em casa: ele escreveu como percebia o álcool arruinando sua família e prometeu nunca provar de uma garrafa de álcool. Ele desenhou uma garrafa de Cachaça 51 com uma cruz vermelha grande sobre ela. Como as crianças dependem de seus pais e, normalmente, os tomam como exemplos, é muito difícil achar um caminho para fora da miséria. Mesmo que a criança odiasse o comportamento de seu pai naquele momento, se a ele faltasse uma forma de se manter, ter esperança ou confiança para viver independentemente, ele muito provavelmente terminaria da mesma forma. No Puraqué, ele achou um espaço para refletir sobre seus problemas e expressar seus sentimentos sobre seus pais, sem sentir a opressão deles. Em Mapirí, a vida mudou significantemente. Durante minha estadia em Santarém, eu vivi em Mapirí e, mesmo que permaneça uma vizinhança simples, a vida nas ruas é relativamente calma e pacífica. A vizinhança de Dona Alice, a senhora que me recebeu, sabia da gringa que estava visitando Santarém. Até à noite, as pessoas sentavam às portas de suas casas, curtindo a brisa fresca, e normalmente tinham breves conversas comigo. Nada parecia apontar à atmosfera violenta e agressiva que era tão preponderante uns dois anos atrás. Para atender uma área maior, eles operavam em bairros diferentes. Quando as coisas melhoraram em Mapirí, eles foram para outras áreas. Recentemente, deslocaram-se para uma periferia bem

distante, chamada Santo Amaro, onde as atividades começarão em breve. Hoje, Santo Amaro também é uma vizinhança muito pobre. Quando eles ainda estavam construindo sua nova base, os moradores locais estavam curiosos, quase suspeitos. Normalmente toma um tempo até que os locais aceitem o projeto e comecem a participar das atividades. Além dos cursos em suas bases, eles dão oficinas em associações vizinhas ou em escolas do município e viajam para disseminar a cultura digital - por meio da implementação de Telecentros - e formar monitores em diversas comunidades fora da área urbana. Assim, eles operam simultaneamente em sua localidade e na região.

Atividades e Estrutura

A base do Puraqué é onde eles realizam suas atividades regulares. Durante minha estadia, eles ainda estavam construindo sua nova base em Santo Amaro. Tinham recém comprado uma casa branca, de tamanho mediano, com três quartos e uma pequena cozinha; é cercada de um terreno grande, com uma variedade de plantas e árvores. Os três quartos da casa servirão, respectivamente, de auditório, de estúdio multimídia e de quarto para possíveis visitantes. Notavelmente, o quarto e o fato de ter uma cozinha demonstra o caráter acolhedor e caseiro do projeto. Qualquer um é bem-vindo. A cozinha é usada para o almoço e, especialmente, para o preparo de lanches para os participantes. A grande garagem à direita da casa servirá como um laboratório de computadores, que será equipado com mais de vinte máquinas. No amplo jardim, um mastro para uma antena de 15 metros estava sendo instalado para receber o sinal de internet. Estavam ainda construindo uma oca3 de 30 m2, que eles usarão para atividades particulares, oficinas e outros eventos. Cada parede, dentro e fora da casa, foi grafitada, variando da palavra puraqué, na frente, a verdadeiros trabalhos de arte e um enorme e assustador peixe poraquê nas paredes de dentro da casa.

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Uma oca é uma moradia robusta, construída pelos povos indígenas brasileiros.


As pessoas são encorajadas a desenvolver múltiplas habilidades.

cosntrução de mapas na imersiva Hacklab Santarém

Em sua base, usualmente ocorrem inúmeras atividades. São diversos cursos de três meses, entre eles: básico de informática; informática avançada; áudio; vídeo; multimídia; uso de blogs e internet; e metareciclagem. Cada curso dura de 25 a 30 aulas, de uma hora e meia ou duas horas cada, e, depois de três meses, os participantes recebem um certificado. As pessoas podem fazer quantos cursos desejarem, contanto que se inscrevam. Uma vez que um curso está com turma completa, só é possível participar da próxima, três meses depois. Durante as horas livres dos cursos, as pessoas são sempre bem-vindas no laboratório, para ajudá-los em suas atividades e oficinas, ou para ganhar responsabilidades, como voluntários. Quando um participante é capaz de ensinar em um curso, ele vai fazer isso, ou pelo menos ajudar, paralelo ao curso em que está inserido no momento. A uma jovem mulher chamada Biene, por exemplo, já lhe foi permitido que ensine a metareciclagem e ela mesma assume a função do professor usual, caso ele não possa ir; ao mesmo tempo, ela participa das aulas de informática avançada. As pessoas são encorajadas a desenvolver múltiplas habilidades, no sentido de manter uma estrutura horizontal. Assim, as pessoas são tanto professoras quanto alunas e não há um “professor principal”, com poder decisivo absoluto. Dessa forma, como projeto, eles não dependem exclusivamente de uma pessoa só e todos têm chance de desenvolver um conhecimento mais amplo, já que eles sabem um pouquinho sobre muitas coisas. A participação no Puraqué é totalmente voluntária. O grupo central, que sempre varia, consiste de pessoas que mantém uma renda em outro lugar e gastam seu tempo livre no Puraqué. Jader trabalha no Ministério da Cultura como “consultor de cultura digital” e, simultaneamente, participa em diversas atividades quando está em Santarém. Marcelo, que é outro membro central, por dois anos agora, é

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contratado da Secretaria de Educação do município, para manter os computadores reciclados nos laboratórios das escolas públicas. Assim, eles combinam as atividades do Puraqué por meio de trabalhos que correspondem a essas atividades ou que eles possam aplicar ou combiná-las.

metodologia puraquean@

Valendo-se de um discurso mais profundo sobre as TICs, Puraqué tende a ir além dos seus princípios básicos de uso. No lugar disso, eles focam nos assuntos sócio-políticos que estão relacionados às TICs e à sociedade atual - como o capitalismo, o consumismo e os assuntos ambientais -, tendendo a usar as TICs de forma a pensar alternativas. O ponto de partida é a ideia da gambiarra; no lugar de consumir cegamente tudo o que é produzido no mundo ocidental, eles focam no que está ao redor deles, nas ruas, ou no para quê eles podem usar aquilo4. Uma vez criaram antenas de internet usando latas de óleo, por exemplo. E em diversas cidades e vilas, foram construídos transmissores de rádio FM a partir de velhos componentes e peças de uma fonte de PC. Assim eles demonstram que não somente não dependem do Ocidente ou do mercado capitalista ou de recursos financeiros, mas que podem criar alternativas sustentáveis. Essas atividades demonstram às pessoas como prover acesso às TICs de uma forma alternativa e, simultaneamente, encorajar os indivíduos a, coletivamente, usar esse conhecimento para transformar uma região que está sujeita à exploração em outra, na qual o desenvolvimento de tecnologias digitais possa ser sua principal característica. Atualmente, as atividades se tornaram razoavelmente organizadas e vão além da gambiarra. Suas atividades não são mais ações táticas e efêmeras

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ROSAS, R. "The Gambiarra: Consideration on a Recombinatory Technology", in Boler, M., (ed) Digital Media and Democracy. Tactics in Hard Times. Massachusetts Institute os Techonology, 2008

para se opor às estruturas e iniciativas públicoprivadas. As atividades informais se transformaram em cursos organizados e com uma metodologia didática, que estimula a colaboração, a solidariedade e o pensamento crítico. Assim, eles se opõem ao modelo educacional paternalista tradicional, que notoriamente funciona a serviço do sistema capitalista5. Dessa forma, eles não focam em prover acesso às TICs como um fim e, sim, em usá-las como uma ferramenta de um tipo de melhoramento social, buscando a autonomia e o desenvolvimento sustentável. Acompanhando suas atividades, pude reconhecer quatro elementos de sua metodologia, consistindo em metareciclagem, uso de lixo eletrônico, Floss6 (software livre e de código aberto) e pensamento crítico; juntos, formam um discurso sóciopolítico que envolve todo o Puraqué.

A internet para o pensamento crítico

Finalmente, e crucial para a sua metodologia, Puraqué busca aumentar o conhecimento crítico dos participantes. Os puraquean@s argumentam que o conhecimento é o que falta na região a fim de desenvolvê-la de uma forma igualitária e sustentável, sendo que as TICs podem servir como uma ferramenta para obter esse conhecimento. Portanto, eles não meramente focam em acessar, usar e entender as TICs, eles também mergulham o discurso em uma série de atividades extras. Por exemplo, eles organizam muitos projetos e eventos em que essas questões são dis-

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KUCUKAYDIN, I, and TISDELL, E. "the discourse on the digital divide: are we being co-opted?", in: InterActions: UCLA Journal of Education and Information studies. Vol. 4, (1), 2008.

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Como a diferença entre os movimentos "Software Livre" e "Código Aberto" está apenas na argumentação em prol dos mesmos softwares, é comum que esses grupos se unam em diversas situações ou que sejam citados de uma forma agregadora através da sigla "FLOSS" (Free/Libre and Open Source Software).

cutidas. Teve lugar aqui a 1º Feira de Conhecimentos Livres nos Bairros com a presença de centenas de pessoas. E elas não eram somente participantes do projeto, mas pessoas dos setores público e privado, que estavam interessadas nas ideias do Floss, da reciclagem (de código-aberto) de hardware e projetos colaborativos. Também organizaram debates e eventos sobre tópicos sócio-políticos e noites de cineclube (assistir filmes de arte da casa e discuti-los depois). Eles também implementaram esse discurso através dos cursos. Assisti a diversas aulas em que os estudantes desenham um flyer sobre os perigos ambientais. Um grupo fez um flyer sobre o desmatamento. Eles tinham que acessar a internet para retirar informação relevante sobre o tópico que eles queriam escrever. Depois de visitar alguns sítios relevantes, eles copiavam-e-colavam partes de textos e reescreviam outras partes para informar sobre as consequências ambientais e sociais do desmatamento. Também procuravam por imagens que editavam no Gimp (programa de manipulação de imagens GNU). Consequentemente, eles importavam tanto o texto quanto a imagem para o Inkscape (editor gráfico), para terminar o desenho do flyer. Como é uma tarefa de grupo, os estudantes interagem uns com os outros, trocam opiniões e discutem a informação. Assim, de forma colaborativa, aumentam seu conhecimento tanto em conteúdo quanto em forma. Problemas ocorrem, por exemplo, com certas imagens que querem usar, mas que parte do texto dessa imagem não corresponde ao conteúdo do texto. Quando discutem isso e comparam com a imagem em particular, eles se engajam profundamente com o tópico da classe. Como encorajam os participantes a usar a internet como recurso para adquirir informação sobre tópicos sócio-políticos, os estudantes aprendem como usar outras funcionalidades da internet. Isso é importante, já que um dos objetivos do Puraqué é obter conhecimento e desenvolver habilidades de pensamento crítico, mais que meramente usá-la para redes sociais e consumo.


Muiraquitã

De acordo com sua ideologia de desenvolvimento sustentável e autonomia, eles desenvolveram um sistema alternativo de pagamento para a participação nos cursos. Em Santarém, o lixo é um problema sério. Nunca vi tantos urubus – uma ave-derapina da família do Condor, cuja dieta é composta de carcaças, matéria de plantas mortas e lixo – nas ruas urbanas. Puraqué reconheceu a importância de criar consciência sobre essa questão, além de achar uma solução sustentável para esse problema. Também querem que o curso seja acessível a todos. Eles não queriam cobrar dinheiro pela participação. Então decidiram criar uma moeda social específica, chamada Muraquitã7, que simultaneamente provê uma solução para o problema do lixo da cidade. O Muraquitã equivale a vinte garrafas PET. Espera-se que os participantes tragam uma quantidade suficiente de garrafas PET para pagar pelo curso (um curso de três meses custará por volta de 30 muraquitãs) e o Puraqué vende8 o plástico para um reciclador de plástico. Assim, o lixo plástico nas ruas diminuirá, as pessoas tomarão consciência do problema do lixo e todos poderão participar dos cursos. Eles estão tentando disseminar a moeda pela cidade, mais ainda poucos lugares estão realmente dispostos a reconhecer a moeda como uma forma de pagamento.

Quando o primeiro passo é criar um conhecimento técnico profundo das TICs para estimular um engajamento social e autonomia, eles eventualmente buscam aumentar o conhecimento crítico como um recurso valioso na região. Ao contaminar e educar os outros, esse conhecimento crescerá exponencialmente. Como os puraquean@s são ativistas, sua ideologia de fato é o seu bastão principal no processo de inclusão digital. Eles lutam contra o capitalismo que explora a região, destrói o meio-ambiente e causa pobreza. De acordo com as teorias presentes no “capitalismo digital olhando para o Sul” e “capitalismo informacional” introduzido no capítulo 2, eles são cautelosos com o setor privado e tendem a criar autonomia através de tecnologias de código aberto (hardware e software). Eles querem que as pessoas tomem consciência disso e, de forma colaborativa, trabalhem nessa alternativa ao modelo existente, aumentando o conhecimento colaborativo e usando isso para pensar e criar alternativas sustentáveis. Isso também inclui uma forma de participação ativa, em que os usuários são capazes de produzir conteúdo ou, criticamente, analisar informação, ao invés de ser um consumidor passivo. O mais importante, no entanto, é socialmente elevar o indivíduo, partindo da ideia de que o usuário pode decidir o que é benéfico para ele sem implicar com isso certas regras ou ideias9.

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Muiraquitã (do tupi mbïraki'tã, "nó das árvores", nó das madeiras", de muyrá ou mbyra, "árvore", "pau", "madeira" e quitã, "nó", "verruga", "objeto de forma arredondada"), para os índios brasileiros do Baixo Amazonas, é um artefato talhado em pedra (na maior parte das vezes feito a partir do jade, pela cor esverdeada) ou madeira, representando pessoas ou animais (uma rã, peixe, tartaruga, por exemplo), ao qual são atribuídas as qualidades sobrenaturais de amuleto. Também é conhecido pelos nomes de pedra-das-amazonas e pedra-verde.

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Para cada quilo de garrafas PET (que equivale a 20 garrafas) eles ganham um real. Em média, custa a eles 33 centavos para criar a moeda e eles têm que cortar e prensar manualmente cada garrafa. Assim, eles não têm nenhum lucro significativo nesse processo.

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Veja em: BUZATO, M., "Inclusão digital como invenção do quotidiano: um estudo de caso". IN: Rev. Bras. Educ. [online], vol.13, (38), 2008, pp.325-342. Fonte: http:// www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S141324782008000200010&lng=pt&nrm=iso em 11/12/2009. Ele mostra uma série de exemplos concretos de um colaborador de Telecentro que tem uma determinada visão sobre como “incluir” um usuário e como ensiná-lo, desde a perspectiva de um “já incluído”. O usuário, de outro lado, muitas vezes usa a tecnologia de uma forma diferente, que diretamente beneficia suas necessidades.


Rede de Cineclubes

Comunidades Tradicionais de Terreiros dão o exemplo. Arthur Leandro, francisco Weyl, Isabela do Lago, Rodrigo Barros (Gt de Comunidades Tradicionais da PARACINE)

II Diálogos Cineclubistas - Construindo a Jornada Paraense de Cineclubes (MANSU NAGENTU - Marco da Légua - Belém)

A primeira experiência com projeção de filmes no Mansu Nangetu aconteceu em 2005. Arthur Leandro voltava a morar em Belém depois de uma longa temporada residindo em outras cidades, trouxe em sua bagagem dois rolos de filmes de 16mm que conseguiu quando comprou móveis para a mobília de sua residência temporária para cursar doutorado. Fez as compras de um ferro velho na periferia da cidade do Rio de Janeiro, os móveis eram de um leilão de alienação do Centro Técnico do Audiovisual/CTAV - MinC, e nas gavetas veio o brinde de duas películas: “Egungun” e “Mito e metamorfoses das mães Nagô” (Iya-Mi-Agbá - Arte sacra negra II), ambos produzidos pela Sociedade de Estudos da Cultura Negra no Brasil – SECNEB, em parceria com o CTAV, e a descoberta dos “brindes” foi considerada uma benção. Em dezembro de 2005, quando já residia novamente na capital paraense, organizou um evento cultural para exibir essas relíquias audiovisuais para a comunidade afro-religiosa da zona metropolitana de Belém, pediu um projetor emprestado para a Fundação Curro Velho – FCV, e com a colaboração do funcionário da instituição, Eduardo Kaliff, e com a divulgação feita na base do boca-a-boca projetou o filme nas paredes brancas do terreiro para um publico de seis pessoas. Quando do acender das luzes ao final do filme, um intenso debate espontâneo tomou conta dos presentes, com o mote da necessidade da comunidade afro-religiosa ter acesso e poder conhecer a produção audiovisual brasileira que tem como assunto e argumento a cultura religiosa de matriz africana no Brasil. Essa projeção em parceria com a FCV foi o embrião para o Cineclube Nangetu. Foi a conversa depois do filme que despertou os membros do ter-

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reiro para a potência do cinema para colocar em questão assuntos relacionados com a cidadania afrobrasileira, e no ano seguinte repetiram timidamente a mesma experiência com os dois filmes, pois sempre havia alguém cobrando de nós uma nova projeção, mas nem sempre o equipamento da Fundação estava disponível. Mais ou menos no mesmo período que a atuação da rede [aparelho]-: ganha força pelas ruas da cidade, e da parceria que se formou entre as duas organizações o Cineclube pode ter acesso a mídias digitais e acervo de filmes disponíveis na internet e, com isso, manter maior regularidade em suas atividades. E assim, entre parcerias solidárias e colaborações dos membros da comunidade do Mansu que o Cineclube Nangetu mantém a regularidade de sessões de cinema no terreiro, colocando em discussão problemas sociais e abordando temas difíceis para a sociedade brasileira como o racismo e a intolerância religiosa. Ano após ano a ação foi ganhando força e os impactos que causou contribuiu para a formação da Rede de Cineclubes nos Terreiros da zona metropolitana de Belém, uma proposição para o GT de Povos e Comunidades Tradicionais da Federação Paraense de Cineclubes/ PARACINE, da qual fazem parte: Cineclube Nangetu, Cineclube ti Bamburucema, Cineclube ACIYOMI, Cineclube ACAOÃ, Cineclube Maristrela (AFAIA), Cineclube Estrela Guia Aldeia de Tupynambá, Cineclube do Turco Jaguarema, Cineclube da ARCAXA, Cineclube da Irmandade de São Benedito, FEUCABEP, Cineclube do Turco Ricardinho. A comunidade afro-religiosa da zona metropolitana de Belém é bastante heterogênea e agrega pessoas oriundas de outras cidades, de

Sessão no Cineclube MarEstrela (Conj. Maguary - Icoaracy - Belém)

diversos bairros de Belém e de distintas classes sociais. Entretanto, na grande maioria são pessoas que vivem num universo de exclusão social e cultural, e que sobrevivem de prestação de serviços domésticos [faxina e cozinha], na base da pirâmide da hierarquia de produção: agentes de serviços gerais [motorista, faxineiro, vigia, segurança e outras atividades], ou usam suas habilidades para inserir produtos no mercado informal, principalmente na oferta de quitutes em bancas e tabuleiros ambulantes. Nesse universo, o acesso aos bens culturais também é deficiente: é um público que não freqüenta exposições, nem teatros e tampouco o circuito comercial de cinema, pois não tem recursos financeiros para tal, e que consome produtos culturais basicamente através da circulação promovida pela industria da pirataria. A ausência de equipamentos culturais nos bairros periféricos e nas demais cidades da zona metropolitana acentua a exclusão cultural e, falando especificamente de cinema, a situação se agrava com a extinção dos cinemas de bairro em razão do circuito 'moviecom' - contexto aparentemente inevitável que afastou ainda mais essa parcela da população das salas de exibição públicas. As atividades cineclubistas que desenvolvemos tem incentivado a comunidade para a produção de seus próprios filmes - mesmo que não tenhamos realizado oficinas especificas de formação em audiovisual, imaginamos que com o acesso freqüente principalmente aos documentários exibidos, aliado à popularização de equipamentos portáteis como câmeras fotograficas e celulares com recursos de mídia, foram fatores determinantes para a circulação na internet de registros e documentação das atividades e das historias de personagens da comunidade. Assim, as ações cineclubistas realizadas pela rede de

Sessão no Cineclube ACAOÃ (Canudos - Belém)

cineclubes nos terreiros, atendem tanto as demandas de bairros desprovidos de salas de cinema quanto de comunidades historicamente excluidas de todo o sistema produtivo brasileiro. Apresentamos prioritariamente filmes com a temática afro-brasileira, e com isso valorizamos a afro-brasilidade assim como a comunidade afroreligiosa. São documentários sobre as relações com o continente de origem, sobre personalidades afrobrasileiras, sobre a visão preconceituosa que a cristandade tem da afro-religiosidade, sobre a musica, até documentários sobre a cosmologia afro-amazônica e sobre o cotidiano dos terreiros. Também tem filmes que tratam da construção da imagem do negro e da religiosidade afro-brasileira na nossa sociedade, abordagens da condição socioeconômica, moradia, violência e resistência política e cultural. Mas também trazemos temas de cidadania, como a discussao da condição feminina, temas de meio ambiente e outros. Em cada exibição propomos uma roda de conversas com membros das comunidades e/ou com outros convidados para discutir os assuntos tratados nos filmes. A rede tem utilizado o calendário festivo e ritualístico dos terreiros como estratégia para a realização de exibições. Nos dias festivos encaixamos a exibição ou antes ou depois da festividade, como um atrativo a mais para os convidados. Por vezes há rituais que exigem a presença de sacerdotes por dias seguidos no Terreiro, temos usado os intervalos de tempo de folga desses dias de rituais internos para o cineclube, como uma alternativa de lazer e de convivência lúdica da comunidade. O importante dessa rede é registrar que de uma formiguinha já se fornou um formigueiro.


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Epilógo: Entre ruas e rios...

ARQUIVOS RMX : Belo Monte - anuncio de uma guerra.mp4 | FITZCARRALDO.m4v | Nas cinzas da floresta.avi | A descoberta da Amazonia pelos turcos encantados.AVI | Chama Verequete Parte 02.mp4 | 1_Muragens_DV.mp4 | Eu.Receberia. As.Piores.Noticias.Dos.Seus.Lindos.Labios.DVDRip.XviD-3LT0N.avi | Antitemplo.mp4 | Creature From the Black Lagoon O Monstro da Lagoa Negra – 1954.mp4 | LÚCIO FLÁVIO PINTO CONTRACORRENTE O FILME PARTE 2.avi | TambordaUniao.avi

Projeções realizadas na fachada da Igreja da Sé, Belém-Pa. Durante o Segundo encontro do Hacklab.

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O imaginário social sobre a Amazônia: antropologia dos conhecedores Samuel Maria de Amorim Sá O artigo aborda o tema do imaginário social sobre a Amazônia, e se fundamenta em uma base teórica que vê o imaginário como parcela da realidade social e como meio relevante para formar conhecedores. faz referência a situações e autores que tratam direta ou indiretamente sobre o tema. Um dos aspectos analisados no artigo é a relação da saúde pública com o imaginário. A conclusão destaca a importância do imaginário para que não se importem padrões de comportamento e soluções para problemas locais acriticamente, como uma modalidade de consumismo, mas que se combinem instituições ou soluções de fora e de dentro ou tradições endógenas e exógenas em contínuo reprocessamento. PALAVRAS-CHAVE: imaginário social, Amazônia, conhecedores, antropologia dos conhecedores.

Introdução

Tomamos o imaginário no contexto de um estudo sobre conhecedores. Imaginar ou fabular é um dos papéis de quem busca ou produz conhecimento. Então entendemos inicialmente que o imaginário é muito mais que um produto anônimo, que um processo cognitivo congelado. Nesse muito mais, destacamos componentes que são sujeitos e não objetos, narradores e narratários, como se diz em análise de narrativas. Desse modo, acentuamos uma posição que traz à cena possibilidades intersubjetivas do imaginário. Quer dizer, assumimos que conhecedores são pacientes e agentes em um coral de polifonia (e de polissemia?), em resposta à necessidade de tratar com a realidade objetiva, porém buscando a mediação de representações mutuamente inteligíveis visando à intercomunicação. Para essa abordagem, nos valemos do filósofo Luiz Carlos Bombassaro (1997), em seu estudo sobre As fronteiras do conhecimento e em particular quando detalha sua argumentação a respeito das relações entre historicidade e racionalidade. Bombassaro, que se faz apoiar em Habermas e Rorty, destaca, no conhecer, a produção, o produto e o produtor; de certo modo, ele replica o esquema do processo de comunicação, ou seja, a mensagem, as mediações e os interlocutores processadores. Adicionalmente, tomamos para diálogo o conceito de atos de fala de John R. Searle (1981, pp. 29, 30-1, 27). Neste contexto nos apoiamos em duas referências desse autor: 1) “Freqüentemente, o que dizemos significa mais do que (aquilo que) realmente dizemos”; e 2) “Falar é uma forma de comportamento regida por regras”. Na primeira sentença, o que nos

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interessa? Interessa-nos aquele “mais” (com um al dila da canção italiana de Domenico Modugno). Esse “mais” ou esse al dila transborda a materialidade e a intencionalidade da fala. O imaginário, aqui tomado como equivalente, é “ato de fala” e não ato falhado. Há, por hipótese, uma como “terceira margem”, ou seja, um flanco explícito ou implícito, mas aberto, disponível ou para se perder como um “demais” ou para ser recanalizar como uma exuberância de energia, a qual por analogia da antropóloga Mary Douglas (1998, p. 116), retomando Ilya Prigogine poderá tanto ser simplesmente “dissipada” ou esquecida, ou até ser “aproveitada” ou “usada em novos padrões de complexidade”. Aqui também podemos resumir e assumir o alcance proposto pelo semiólogo Humberto Eco com seu construto de “obra aberta”. Ademais, nosso entendimento se constrói na trilha de Cornelius Castoriadis (1980), com o conceito de instituinte. Deste autor, podemos reconceituar hipoteticamente o imaginário social como ato de fala instituído ou ato de fala instituinte como movimentação de tensão do primeiro. Foi esse posicionamento que nos levou a assumir o sentido do imaginário social a ser visto como possibilidade intersubjetiva, já referida assim há uma possível “colheita” de sentido que o traz, hoje, para os exercícios pré-decisórios, os quais aparecem na construção de cenários para fins de planejamento estratégico tramado em escala regional ou nacional. Como podemos tornar mais explícito o conceito de imaginário no contexto de um estudo sobre conhecedores? Por contraste, se há conhecimento entendido como produto e objeto, há também conhecedores como sujeitos que observam, indagam, aceitam ou não aceitam, imaginam ao fazer asso-

ciações e dialogam com outros conhecedores e com outros conhecimentos que equivalem a situações prazerosas e provocadoras de interlocução e admiração. Dialogar quer dizer estabelecer interlocução, ultrapassando o diletantismo do tipo “conhecer por conhecer”, supõe articular atos de fala que levam a atos “de fato” presentes ou em vista de ação futura. Desse modo, a realidade nascida em experiências dos outros pode gerar passividade e conformismos, mas pode igualmente provocar avanços no sentido “primeiros passos”, “primeiras versões” ou de simulações úteis e práticas. É assim que temos projeções, como são os mapas de geografia, que atualmente já têm em Mercator uma relíquia, e nos de Peters que já se valem de dados tomados por satélites. Gerard Mercator, cartógrafo flamengo sistematizou idéias sobre representação plana de superfícies curvas (Melo, 2000, p. 21), verdadeiras precursoras de cenários de planejamento estratégico, que funcionam como uma representação antecipatória, sob o nome de cenários com obstáculos para situações desejadas ou não desejadas. Como exemplo, podemos citar os Cenários Brasil 2020, formulados para o Centro de Estudos Estratégicos do Ministério da Ciência e Tecnologia (dez. 1997). Desse modo, o imaginário pode ser uma prisão ou uma construção libertária em lugar de o congelar admitimos por hipótese que ele é como um porto apenas medianamente seguro e, portanto, aberto a novos sentidos e desdobramentos. Faz sentido trabalhar com o imaginário se os admitimos na órbita de atos de fala na trilha de John R. Searle (1984). Searle, filósofo da linguagem, conceitua atos de fala como objetos de várias questões, entre as quais destacamos a seguinte: “Como fazem as palavras as vezes das coisas?” Quer dizer, o imaginário falado ou escrito não é marginal por parecer que nasceu apenas ao acaso, como luxo ou excesso desnecessário e irrelevante. Também, ele não cabe na categoria de maktub, isto é, de ato mágico ou fatalista, pelo contrário, ele é espelho de experiências com e sem datação, com e sem autoria; e poderá ser também um recurso intencional de antecipação e extrapolação visionária. Não esqueçamos esta virada do milênio, quando muitas incertezas tentam ser acolhidas em outro tipo de predição. Se assim for, como pôr os pés no “chão” do imaginário, ou seja, em situações onde ele aparecera antes e aparece agora?

Um acervo

Um acervo do imaginário social sobre a Amazônia assim se apresenta: ora são falas a respeito da Amazônia como “celeiro do mundo” (Humboldt, cientista), paraíso perdido (Euclides da Cunha, geólogo), inferno verde (Alberto Rangel, romancista), El Dorado (conquistadores espanhóis), pulmão do mundo (anônimo contemporâneo), counterfiet para-

dise (Betty Meggers, arqueóloga). Analiticamente, esses modos de falar são modos de olhar mais de longe que de perto e podem recair em pólos de uma dicotomia que o cientista político José Murilo de Carvalho(1998) expressou para o Brasil, considerando-o como um todo: o ponto de vista edênico e o ponto de vista satânico. Mas é muito limitado permanecer na bipolarização. Será possível não descobrir outras instâncias de presença do imaginário que, sem esquecer o que há de advertência ou de fantasia, embeba de intenção a imaginação para tirar o papel do conhecedor da arena do cálculo diletante sem dono e sem endereço? José Murilo de Carvalho sente-se instigado quando admite que há um certo sinal relativamente dizível e indizível e que, portanto, transborda o lado cartesiano que pensa a evidência mais delimitada, com fronteiras mais distintas, e resiste em admitir que o imaginário também seja racional. Aqui ocorre o problema de admitir um status de racionalidade para o imaginário. Na história recente da Amazônia, das tentativas de Henry Ford, de Daniel Ludwig, da Icomi, dos chamados grandes projetos e mesmo de Serra Pelada, todos acabam ligados a uma fugacidade que os faz símbolos de um imaginário meramente econômico e desgarrado do meio e das populações nativas. Salvo colaboradores cooptados no meio local, foi notório o desvio decisório que colocou Daniel Ludwig mais na órbita de Brasília do que do poder local; mesmo a Hidrelétrica de Tucuruí (PA), sabidamente, trabalhou com um conceito de ciências da natureza do qual se excluíam os seres humanos (Monosokwski, 1991). Como abstração, um tal imaginário das ciências da natureza que exclui seres humanos não permanece letra morta, pois teve efeitos perversos: alterou o nicho de insetos como os mosquitos, que, conseqüentemente, alteram a saúde de populações nos arredores da usina hidrelétrica de Tucuruí. Nesse imaginário recente, a memória bem sabe que apenas desejos não carreiam benefícios humanos. Supostamente, mais perto da racionalidade, por falta de consideração aos saberes ou tradições de populações locais (Freire, 1997), essas imaginações levam a insucessos. Mesmo o moderno projeto Radar na Amazônia (Radam, década de 1970) ficou como uma página que está por ser mais útil como empreendimento pago com dinheiro público; as informações de satélites hoje alertam sobre queimadas e desmatamentos; mas será que no conjunto esses alertas têm informado o processo decisório local? Em contraste, o imaginário trabalhado na primeira metade do século XX por ficcionistas estudiosos como Mário de Andrade, em seu Macunaíma, e Monteiro Lobato, em seu Jeca Tatu, resulta de uma busca menos apressada, isto é, o contato de Mário de Andrade com a Amazônia e com boas fontes, bem como o contato de Monteiro Lobato com os “caboclos” de São Paulo


põem a imaginação cercada de sentinelas que não a deixam desvairada Temos dois tipos de imaginário, então, escapando da dicotomia anterior: um que cavalga um saber alheio à região e que outro, mesmo feito fora da região, bebe em fontes antropológicas ou, pelo menos, em fontes mais próximas do saber e das inquietações das populações humanas.

Diálogos

Dialogar com o imaginário pode ser um exercício unilateral, diletante, sem conseqüências, mas também pode ser conseqüente. Como outros exemplos de diálogos, escutamos vozes como a de Peter Maricourt, que em 1260 anteviu invenções que depois saíram das mãos de Leonardo Da Vinci; ou como a de Ilya Prigogine, que conta seu achado na correspondência de Albert Einstein, que, por sua vez, dizia ter aprendido mais com Dostoievski do que com os físicos; ou como a voz de um historiador da economia da revolução industrial, John U. Neff, que deduz que nos alicerces da civilização industrial havia a influência da arte, da busca de perfeição e uma preocupação com seres humanos. Nem precisamos ampliar o número desses interlocutores, mas podemos digerir boa parte do que eles viram como fruto de conhecedores de mais longe com outros longínquos. Um corte, inacabado que seja, nos põe à escuta de outras vozes? Por ocasião da Eco-92, uma publicação da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) incluiu cenários de prospecção sobre a Amazônia. Uma publicação do Ministério das Minas e Energia, a respeito de um plano de eletrificação que cobre até 2010, inclui a Amazônia como fornecedora de energia hidrelétrica sem que ela seja beneficiada reciprocamente. Publicação da Secretaria de Estudos Estratégicos (1998), da Presidência da República, propõe um cenário para o Brasil e para a Amazônia. Mas essas encenações passam por um processo decisório centralizado, em que o lado social do imaginário tem a marca da tecnocracia que pouco aprendeu com Mário de Andrade ou Monteiro Lobato ou Einstein ou Ilya Prigogine. O valor da pergunta-escuta de outras vozes se apóia no benefício da dúvida: o que pode ser conseqüente em termos de ciência, de política e de identidade regional ou nacional? Assim, uma história atual da Amazônia poderá ser escrita, ou reescrita, levando em conta o imaginário ou os imaginários na justa medida em que eles refletem, além de saber exógeno, também saber local de “experiência feito” local e duradouramente. Podemos voltar à indagação do começo. Além dos lados edênico e satânico dos imaginários sobre a Amazônia, redescobrimos (nas dramatizações para comemorar cinco séculos de Brasil) o desafio da polissemia de outros tipos de imaginário que

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nos rondam: aquele imaginário exógeno, outro mais literário, aquele imaginário apressado, aquele imaginário de pé no chão, aquele imaginário-tecnocrático. E talvez haja um imaginário militante ou instituinte, que pode ter tido um precedente em um tipo de imaginário trágico do tipo absolutista e napoleônico de “vencer ou vencer”, ou outro, de tipo escatológico das utopias de direita ou de esquerda como Orwell (em seu 1984), ou a liberdade, igualdade e fraternidade da Revolução Francesa, ou a “mãe” ou Gorki, ou “o nosso Independência ou Morte”. Hoje podemos ainda ter outra versão, na medida em que for possível pensar uma reforma agrária que imagine e também reconheça a curto, médio e longo prazo o saber de índios, caboclos, imigrantes e de populações locais? Assim não ficaremos reféns de imaginários endógenos ou exógenos que especulem sobre uma Amazônia de coitadinhos, de vítimas, de cobiçados, que não redescobriram ainda nem a Amazônia nem a si mesmos como sangrados ex-colonizados

Conclusão

Para Searle (op. cit.), as falas são analisadas como ações e não apenas como fenômenos sonoros e, portanto, elas não apenas carregam significados, mas, de certo modo, também criam ou transbordam significados ou podem levar da interpretação a ação e a decisões. A interpretação fantasiosa de Orellana quanto à Amazônia como país das mulheres amazonas, valentes, de seio amputado , após sua viagem a partir do Peru, pode ser tomada como um desdobramento desse tipo (Valverde, 1997). Então, Orellana seria um conhecedor fantasioso. E, mais perto de nós, Gilbert Durand (1997), nos seus estudos sobre o imaginário, resgata a possibilidade analítica a partir do imaginário como parte da realidade das culturas. Durand aviva o status heurístico dos fenômenos que não são realidade do tipo quantificável, mas têm concretude suficiente para merecer atenção e destaque entre os trabalhos de quem for consumidor-interpretador-recriador ou produtor de conhecimentos, de reconhecimentos ou reconfigurações. Um modo admitido de operar o conhecimento da Amazônia é feito por meio de mapas. A história do tratado de Tordesilhas traz um primeiro sinal de como um território pode ser simplificado por meio do estabelecimento de novas fronteiras, no papel, não obstante o valor geopolítico gerador de realidade. As mitologias podem filtrar um outro tipo de antecipação da realidade uma versão moderna de mito é dada por imigrantes para o sul do Pará, contando que parte de sua atração vinha da fabulação interpretando a via-láctea, como constelação que aponta para essa região como uma espécie de “terra da promissão contemporânea”. Mais um tipo contemporâneo de imaginário pode ser localizado em fabulações como o

Jeca de Monteiro Lobato (1918), que tinha, na composição de suas personagens-base, suas observações e inquietações concretas ao ver caipiras transformados em trabalhadores de mérito nas plantações dos trapistas franceses de Tremembé. Ou temos também a imagem de Macunaíma, de Mário de Andrade, envolvendo, além da imaginação, uma viagem do autor pela Amazônia. No caso do Macunaíma, há um certo retrato da Amazônia e uma crítica que aparece no entendimento do personagem admirado sem abdicar de sua maneira de entender a vida e, portanto, sem ser apenas consumidor do modo de vida dos outros pois também Macunaíma pode ser visto como um protótipo de conhecedor-viajante: “El hombre sabe por viejo, pero mas sabe por viajero.” Viajero, viajante, emigrante, imigrante. Quando hoje se fala em imaginação científica. há lugar para um tipo de imaginação que, entre outras elaborações, poderá sair de simulações de computador (como de certo modo o cinema dos efeitos especiais tem aliado significativo na informática, o mesmo uso ocorre com a construção civil ou com a engenharia de aviões). Assim, damos um passo além do imaginário puro e simples e podemos reconhecer no imaginário um poder de antecipação e deleite prático e estético (lembrar Julio Verne), mas ele é também um recurso que valoriza sonhos, desde que estes também sejam analíticos e críticos em relação ao que chamamos de realidade factual, por contraste a uma realidade que podemos chamar de emergente (ou de realidade instituinte, na terminologia de Cornelius Castoriadis). Tomando a saúde como foco do imaginário em algumas aplicações, é bom recordar, como Affonso E. Taunay, autor do romance Inocência, encontra um lugar para o texto de Chernoviz, precursor de tratamentos de saúde que tomaram por base aplicação de conhecimentos disponíveis em um circuito de relações que não era necessariamente o dos médicos. Podemos lembrar o dr. Noel Nutels, sanitarista que trabalhou com populações rurais e indígenas e que envolveu a literatura de cordel e seus cantadores como um veículo para comunicação entre profissionais de saúde e pessoas doentes. Ou tomamos o estudo de Charles Wagley (1988), que esteve nos anos da Segunda Guerra Mundial nas raízes do Serviço Especial de Saúde (hoje Fundação Nacional de Saúde), como parte de um esforço de saúde para populações rurais. O estudo de Wagley inclui um tópico sobre “passagem da magia à ciência” (cap. 7): o autor começa notando a substituição gradual de explicações mágicas em favor de explicações científicas; no caso, Wagley advoga a mudança dessas crenças, ou, digamos, desse imaginário. Mas os processos educativos poderão ter sucesso ou insucesso, e em todos os outros capítulos advoga, com maior ênfase, o respeito ao modo de vida e, portanto, às soluções autóctones até porque

ele reconhece que “crenças e práticas fundem magia com conhecimento empírico” (op. cit., p. 253). Desdobremos um pouco mais o tema da saúde na referida obra. Durante a guerra de 1939 a 1945, Wagley testemunhou a introdução do DDT, por meio do então Serviço Especial de Saúde Pública em Breves (PA). Nesse momento, era arma de sucesso contra a malária. Mas a visão de Wagley, que fazia antropologia aplicada à saúde, provavelmente mudou, quando chegou o best-seller de Rachel Carson (1962) e com ele a crítica das experiências de aplicação do DDT; porém mudaria muito mais, certamente, quando ele consultasse o texto do Instituto Evandro Chagas, de Belém (1983), que relata a situação da malária na década de 1980 e acentua como a resistência do mosquito transmissor da malária foi desdobrada por meio da resistência de dadas populações humanas, que, entre outros argumentos, enfatizavam que o DDT enfeiava a pintura das casas, matava insetos, que, por sua vez, eram comidos por animais de criação doméstica e que afinal morriam por causa do veneno. Resta acrescentar a imaginação recente que visa ao controle de base biológica para os mosquitos, e, nesse sentido, se insere a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) com um bioinseticida que age sobre larvas de insetos da malária, dengue e filariose. Nesse caso, o imaginário alcança outra dimensão: ele acumula memória e história de experiências. Enquanto especialistas em comunicação se vêem às voltas com a entropia nos atos comunicativos o imaginário também pode reprocessar memórias e tirar conclusões, vestir novas roupagens ou novas máscaras (no sentido, de um disfarce que reforça o sentido em lugar de ceder à chamada “entropia dos símbolos”). Um ponto adicional relativo ao imaginário social da Amazônia permite distinguir o imaginário social de nativos da Amazônia daquele de imigrantes ou de outras vivências que vêm desaguar em propostas de solução para problemas amazônicos. Nesse sentido, podemos referir o desastre de Henry Ford com o projeto Fordlândia (Belterra, PA). Mas há também invenções de fracassos nativos quando estes, como aqueles, abdicam da imaginação e a limitam copiando instituições que deram certo em outras localizações: como indústrias de calçados, de cerveja, produtos farmacêuticos, ou mesmo palácios oriundos de tempos coloniais. A margem de adaptação e de enraizamento dessas invenções parece ter sido mal calculada ou foi imaginada de modo consumista, sem considerar o papel das mudanças na sociedade, ao longo do tempo. Mais um tipo desse consumismo acrítico aparece no campo da saúde, nas Santas Casas da Misericórdia de Belém, Manaus, São Luís (PA, AM, MA), abaladas pelas grandes alterações na demanda e na mediação econômica e tecnológica, com os planos de saúde privados e o desgaste das instituições de saúde pública.


Podemos referir ainda a pauta de exportações da Amazônia, que, ainda hoje, envolve majoritariamente matéria-prima incipientemente beneficiada, como uma moldura colonial em tempos que se dizem descolonizados. E daí a tensão: melhor que tudo, poderemos trabalhar para que a relação “espaço e doença na Amazônia” (Rojas, 1997) provoque a promessa e concretização de um imaginário de “reconfiguração” que traga à tona a outra relação, entre “espaço e saúde” na Amazônia. No ano 2000, na Amazônia e no Brasil, ocorre a presença de um moderno tipo de profissional do imaginário: os que se dedicam a planejamento estratégico. Vale registrar que, no ano de 1998, a Universidade Federal do Pará (UFPa), investiu recursos para que suas autoridades tivessem acesso à teoria e prática de planejamento estratégico; o mesmo pode-se dizer em relação ao Governo do Estado do Pará. Além disso, a Secretaria (Nacional) de Estudos Estratégicos da Presidência da República prepara cenários prospectivos. Aqui já ocorre uma espécie de imaginário que quer tirar o ranço de passado. Fica o problema de que os especialistas do imaginário em antropologia e em sociologia sabem como eles não podem ser infantilizados (ou ignorantes da história e das experiências), como o imaginário não poderá ser um cálculo sem tensão e sem contradições. Durand (1993, p. 107) chega mesmo a fazer referência a uma tensão dialética que opera em relação ao imaginário. Essa tensão dialética pode ser um outro conceito para o dinamismo de um imaginário que não é diletante, e sim militante, pragmático, e que enfrenta o desafio da realidade social operando nas continuidades, descontinuidades, e recontinuidades, filtrado por meio de sujeitos conhecedores, para os quais o imaginário faz sentido e transborda o dito, o falado, o escrito, o instituído. Nesta análise, são revistas parcelas do imaginário social sobre a Amazônia. Mais propriamente, busco uma abordagem antropológica sobre o imag-

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inário social com seus limites (fracassos potenciais e impossibilidades), mas também como um tipo de saber que é semente, flor e fruto de inserção ou não inserção social de atores que o trabalham, pondo à prova as instigações, antecipações, simulações que ele pode oferecer. Vindo quer de nativos quer de imigrantes, o imaginário social pode ser entendido como uma primeira moldura para prospecção de situações viáveis e inviáveis para seres humanos e para toda a natureza na Amazônia. Ele poderá ser visto como imaginário diletante ou puramente ficcionista, ou ele poderá ser de outros tipos, entre os quais o imaginário instituinte, se antecipa situações para além da estreita factualidade e, portanto, transborda as limitações de um positivismo exacerbado, sem contexto, sem horizontes, sem poesia (no sentido estrito do termo), sem seres humanos como parte da natureza, isto é, como sujeitos decisores, “eixo e flecha” da evolução, tomando uma expressão do visionário Teilhard de Chardin (1881-1955), em sua reflexão sobre o “conjunto zoológico humano”. Chardin, a seu modo, foi um conhecedor que enfrentou as tensões entre imaginários sociais mascarados em ideologia de uma dada área. Repensar conexões entre perguntas e possibilidades intersubjetivas do imaginário em relação à Amazônia em geral e à saúde pública em particular nos leva a destacar, brevemente, as seguintes situações: a) a vertente utópica de Charles Wagley, que ao longo de trinta ou mais anos manteve presença e contatos com a Amazônia de citadinos, índios, caboclos. Wagley sonhou, com sua experiência de antropologia aplicada à saúde pública, um modo de vida em que o bem-estar físico, social, mental, econômico estivesse devidamente contextualizado e enraizado em atores, recursos naturais e saberes autóctones que existem nos trópicos, assim como nas zonas temperadas; b) a utopia de Oswaldo Cruz em suas missões amazônicas: sua lucidez ajudou, mas a Estrada de Ferro Madeira Mamoré combina as imagens de ferrovia do diabo, e de tentativa frustrada, com valor atual de

objeto de museu em Porto Velho (capital do estado de Rondônia). A febre amarela e a malária ainda são flagelos e no naipe atual de mosquitos ainda somamos os vetores da dengue que têm cenário nacional; c) os cenários de planejamento estratégico da Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (Sudam) são exercícios pré-decisórios. Não são uma tentativa de antecipação de situações. Mas quando serão uma tradição eficiente continuada e conseqüente?; d) as utopias mapeáveis de Fordlândia e de Jari (estado do Pará), nos dias de hoje, podem ensinar por meio dos obstáculos? São elas multiplicáveis em suas lacunas, seus efeitos e em suas causas?; e) as outras utopias recentes, como o enclave do manganês no exterritório do Amapá, a mineração da serra de Carajás, e o ouro de Serra Pelada, onde a saúde humana valia menos que qualquer pequeno ou grande risco para bamburrar. De certo modo, todas essas situações, quer como sonhos quer como práticas, têm algo de espetáculo que aglutina, mas também dissipa energias. Afinal, se o imaginário social é ato de fala e não ato falhado as situações referidas não são exaustivas, mas didáticas. Continuando com uma geração de hipóteses, dizemos que cabem em um estudo sobre o imaginário social. Não se trata apenas de rememorar, mas talvez de ativar a memória conectada e apoiada (ou analisada) por estruturas sociais; sem isso a entropia chegará a anular a memória (hipótese da antropóloga Mary Douglas, 1998). Daí a recorrência do imaginário que for aprisionado na narrativa, esta, porém, pode ser desvendada, se for crivada pela orientação dupla de não reeditarmos o mito de Sísifo e, na prática, não reeditarmos o espetacular fatalismo que o perpassa. Então, aqueles pontos serão imaginariamente tratados como primeiras versões ou primeiros passos que pedem retomadas; recomeçar, repensar em ritmo anti-sísifo, anti-maktub.

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Paradoxo Amazônico Entrevista:

Alfredo Wagner Berno de Almeida Conflitos sociais, territorialização, identidade cultural, povos tradicionais, direitos coletivos. Todos esses elementos compõem o foco do trabalho do professor Alfredo Wagner Berno de Almeida. Doutor em Antropologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, ele pesquisa na Amazônia desde 1972. Há quase quatro anos tem se dedicado ao projeto Nova Cartografia Social dos Povos e Comunidades Tradicionais da Amazônia, que produz interpretações atentas da problemática social, econômica e ecológica de quebradeiras de coco, comunidades negras e indígenas, homossexuais, populações extrativistas, ribeirinhos e pescadores, entre tantos outros. Leia abaixo trechos da entrevista que Alfredo Wagner concedeu à CONTRA CORRENTE* A partir da perspectiva das populações tradicionais, como o senhor avalia o atual projeto do governo brasileiro para a Amazônia? Primeiramente, é importante constatar que, até outubro de 2008, quando da deflagração de uma das mais graves “crises financeiras” do capitalismo, persistia uma visão triunfalista dos agronegócios e das expectativas face ao mercado de commodities agrícolas e minerais, sobretudo no que concerne, de um lado, às empresas mineradoras (ferro, ouro, caulim), às industrias de papel e celulose e às usinas de ferro gusa, e de outro lado, às agropecuárias e plantações industriais homogêneas. No entanto, os grandes interesses, vinculados à sojicultura, à agropecuária, à plantação de eucalipto e demais grandes plantações, face à queda abrupta de preços das commodities, passaram a anunciar falta de crédito, redução das áreas cultivadas, demissão de trabalhadores e demandaram do Estado a anistia de dívidas e créditos facilitados. A flutuação do mercado de commodities e o caráter volátil dos créditos do mercado futuro evidenciaram toda a fragilidade de um sistema econômico apoiado na monocultura, na flexibilização das leis trabalhistas, na exportação de commodities e na destruição indiscriminada de recursos naturais. Diferentemente do velho sistema agrário-exportador, que resistiu por décadas, senão séculos, às flutuações de preços e à derrocada, tem-se agora um novo modelo de plantations, paradoxalmente, com uma aparência de maior fragilidade às crises. Tem-se, portanto, uma grande plantação mais atrelada ao capital financeiro e às flutuações de preços. A volatilidade de recursos aplicados em bolsas de produtos agrícolas, contratos de curtíssimo prazo, oscilação célere dos preços e a precariedade das relações de trabalho evidenciam que esse tipo de unidade de produção precisa ser melhor estudado. Os mecanismos de inspiração neoliberal que se revelaram absolutamente fragilizados, como o idealismo neoliberalista de afastar o Estado da economia, de enxugá-lo ao extremo e de imaginar que

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a racionalidade e a eficácia só se realizam plenamente nos empreendimentos privados, desaguaram no “Estado-hospital”. Coube aos aparatos do Estado atender, mais uma vez, às demandas de quem, até dias antes, tinha especulado à larga, ilegalmente, inclusive, e obtido lucros astronômicos. E aí o discurso do “capitalismo de crise” apareceu com toda nitidez sob o manto de que é “mesmo assim” e que, após as “crises”, o Estado tem que socorrer, como já aconteceu depois de 1929. A ideologia dos ciclos volta a reinar e não há responsabilidade social naquilo que é vivido como “natural”. Os empresários especuladores se eximem de qualquer “culpa” e fica por isso mesmo. Porém, tanto a ideologia dos ciclos quanto aquela de que estamos a um passo da crise final e que a autodestruição do capitalismo é questão de tempo devem ser relativizadas. Na Amazônia, o mercado de terras estava superaquecido, o mercado de crédito de carbono também. As agências de crédito multilaterais estavam intervindo na estrutura formal do mercado de terras e na política de acesso aos recursos naturais. Com a “crise”, no entanto, passaram a não dispor de recursos e a não ter como financiar a implementação de suas próprias “invenções”. A retração na Amazônia não inicia por falência de bancos e empresas imobiliárias, mas pelas empresas mineradoras reduzindo a sua produção, demitindo em massa; pelas usinas de ferro-gusa paralisando seus fornos em Marabá e em Açailândia (103 dos 161 fornos de ferro-gusa no Brasil estão parados); e pelas áreas de plantio de soja sendo reduzidas. A Vale reduziu a sua produção em 10%, por exemplo. As entidades patronais rurais - onde se encastelam os pecuaristas, principais responsáveis diretos pelas elevadas taxas de desmatamento na Amazônia nos últimos dez anos, segundo relatórios do próprio Banco Mundial - agora demandam anistia de suas dívidas junto ao governo federal. Há uma inibição das agências multilaterais para investir na Amazônia. Os grandes projetos, como o

novacartografiasocial.com/ - Fascículo 27 - A Luta das Quebradeiras de Coco Babaçu contra o carvão Inteiro - Bico do Papagaio Palmas, Tocantins

PPG-7 [Programa Piloto para a Proteção das Florestas Tropicais do Brasil], estão praticamente parados. O governo, por sua vez, acena com uma nova política agrária e com a criação de uma agência mais ágil e eficaz que o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). No entanto, os dispositivos que acionou só fizeram legalizar aqueles que ocuparam terras ilegalmente no passado e no presente, ou seja, os grileiros. O tipo de regularização agrária que poderá ser implementado agora não vai alterar a estrutura agrária. Percebe-se que, a despeito da “crise”, estão dadas as condições institucionais para uma “retomada”, senão uma continuidade, daquela visão triunfalista. A MP 422 [que passa de 500 para 1.500 hectares o limite que dispensa a licitação para a venda de terras públicas] e a instrução normativa no. 49, para titulação das terras de quilombos, do Ministério do Desenvolvimento Agrário, vão no sentido de flexibilizar os direitos territoriais de povos e comunidades tradicionais. No legislativo, continuaram as tentativas de reduzir a dimensão física da Amazônia, facilitando a expansão dos agronegócios. O anteprojeto de lei do senador Jonas Pinheiro e aquele do deputado Osvaldo Reis, que pretendem tirar o Mato Grosso e Tocantins, respectivamente, da Amazônia são dois exemplos. Em 1953, todos os empresários queriam fazer parte da Amazônia devido aos créditos facilitados e incentivos fiscais. Agora, todos querem sair, principalmente os produtores de soja, ferro gusa, papel e celulose. Outra ação que enfraquece a Amazônia é a diminuição da faixa de fronteira de 150 km para apenas 50 km, com o objetivo de abrir as terras para o mercado de commodities. A “crise” ou as alterações no cenário econômico não se refletiram no legislativo, já que

estes projetos continuam tramitando a todo vapor. O objetivo das Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIns) contra os direitos territoriais de indígenas, quilombolas, quebradeiras de coco babaçu, ribeirinhos e comunidades de faxinais e fundos de pasto é claro: enfraquecer a Constituição de 1988, remover as bases legais que asseguram os direitos territoriais de povos e comunidades tradicionais. Eles são vistos como um obstáculo à expansão do mercado de commodities, aos desmatamentos e à destruição de rios e fontes d’água. Os direitos territoriais das populações tradicionais acham-se tão ameaçados hoje quanto antes da “crise”. É sob este paradoxo que a Amazônia se insere hoje: por um lado, verifica-se uma descontinuidade econômica da ofensiva dos grandes conglomerados financeiros sobre a terra e demais recursos naturais e, do outro lado, uma continuidade política da ofensiva dos dispositivos neoliberais na esfera do legislativo. A sua atual experiência com o trabalho de cartografia social conseguiu detectar como se dão essas ofensivas aos direitos territoriais e de identidade das populações amazônicas? O que se constata a todo momento são sucessivas tentativas, por parte de setores conservadores, de flexibilizar estes direitos territoriais. Atualmente, todas as questões sobre as terras indígenas e qui- lombolas passam a ter no judiciário a sua palavra final. Tudo vai para o STF [Supremo Tribunal Federal], como o caso da homologação das Terras Indígenas Raposa Serra do Sol e dos Pataxós. O sociólogo Boaventura de Souza Santos analisa processo similar como “judicialização da justiça”. O propósito conservador é rediscutir todos os territórios de comunidades tradicionais: indígenas, quilombolas, faxinais, fundos de pasto, quebradeiras de coco babaçu, ribeirinhos etc.


São tantas as formas de pressão, no judiciário e no legislativo, e tantos são os meios para divulgá-las que parece uma campanha de desterritorialização. Tratase de criar uma instabilidade para as terras indígenas e quilombolas já reconhecidas e as que estão por serem reconhecidas, propiciando condições para que ingressem no mercado de terras. Por outro lado, está havendo uma reação a estas tentativas de impedir a vigência dos direitos territoriais. Os movimentos sociais estão conseguindo, em certa medida, impor a sua pauta. Em Rio Preto da Eva, no Amazonas, o prefeito municipal assinou uma Lei de Desapropriação destinando um imóvel urbano de mais de 40 hectares para os indígenas da Comunidade Beija-Flor. Em São Gabriel da Cachoeira, além de terem eleito um prefeito indígena, foi regulamentada a lei municipal que cooficializa o tukano, o baniwa e o nheengatu como línguas oficiais. Há um outro padrão de relações políticas em curso? O debate vai começar a esquentar com a discussão sobre as ambiguidades do desenvolvimento capitalista na Amazônia. Desmatar no ritmo do agronegócio ou preservar para se apropriar do patrimônio genético? Sem ter discernimento, fica difícil refletir sobre as medidas em curso. A iniciativa de limitar o Incra, instituindo uma agência agrária, pode fazer com que 2009 seja o ano 1970-71 da ditadura militar, em que foi criado o próprio Incra e intensificada uma ação de colonização cujos efeitos dramáticos até hoje se fazem sentir. Existem novos instrumentos operacionais de regularização, de desapropriação e de reconhecimento fundiário? Não. Se não há, será que adianta fazer mudanças burocráticas e artificiais? O que mais se percebe na cartografia social é o esforço de cada comunidade tradicional na identificação dos recursos essenciais. O tradicional neste sentido nada tem a ver com o passado, com a linearidade do tempo. O tradicional está relacionado com a maneira de uso dos recursos e com sua persistência. Ele tem a ver com o futuro. Os grupos sociais estão construindo situações de autosustentabilidade. É um momento de construção de sonhos e de possibilidades e não significa outra coisa que limites para o agronegócio, que anseia uma expansão desmedida. Quais são as conseqüências de grandes obras de infraestrutura na Amazônia, como o Complexo Hidrelétrico do Rio Madeira? Até hoje, você tem comunidades coladas com Tucuruí e Balbina que não têm energia elétrica. Comunidades localizadas ao lado da Alcoa, no Maranhão, ou da Albrás, em Barcarena, no Pará, que não têm acesso aos direitos agrários elementares. Esse modelo de “progresso” tem que ser repensado. As beneficiadas com a construção de Tucuruí foram as grandes empresas de alumínio, como a Alcoa e a Alcan, e as mineradoras.

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Os grandes projetos são apresentados como ícones de progresso, mas eles, na verdade, cristalizam as desigualdades. Eles são apresentados como se, fora daquela realidade, viesse o caos. E ainda, minimizam toda uma complexidade, colocando de um lado as comunidades “atrasadas” e do outro lado o “progresso”. A atual crise financeira revela que a irracionalidade se encontra justamente onde se afirma que a “eficácia” reina e prospera. Assim se veem e são vistas as mineradoras e empresas, como a Aracruz e a Votorantim, que especulam e, pior, utilizando recursos públicos. Afinal, o BNDES financia essas empresas especuladoras? Esta é uma pergunta que tem que ser feita. Elas foram financiadas com recursos públicos? A Amazônia foi desmatada sofregadamente, em um ritmo jamais visto, sob a batuta do mercado de commodities. Para estes interesses não há limites. Eles são capazes de transformar a maior floresta tropical do mundo em savana para gerar dividendos para o agronegócio. Com a crise, essa concepção leva um choque e cria condição para que se reconheça que preservar a Raposa Serra do Sol é mais racional do que entregá-la para seis arrozeiros. Não dá para dizer que limita-se a uma opção do “progresso” versus a economia primitiva. As áreas mais preservadas são as áreas onde residem os índigenas, os ribeirinhos, as quebradeiras. Você acha que uma quebradeira irá destruir babaçuais? Que os seringueiros vão destruir seringais? Os ribeirinhos, os rios, as florestas de igapó? O suicídio de um grupo social como um todo, é possível? Eles não vão se suicidar. Não irão destruir as fontes de sua própria razão de ser e de existir. Atualmente, até mesmo as transnacionais da mineração afirmam que suas atividades são sustentáveis. Como o senhor avalia a real atuação delas em contraposição ao discurso que propagam? De acordo com o antropólogo José Sérgio Leite Lopes, a “ambientalização” é uma forma de discurso consensual. Todo mundo passa a ter esta preocupação ecológica de preservação, sustentável. Atributos são criados para designar as empresas, com seus gerentes e setores especializados. O discurso incorporado e uma suposta consciência ambiental profunda ganham destaque. Tudo isso é uma figura de retórica. Os procedimentos de conservação modelo destas empresas não passam dos viveirinhos, dos bosques e das cascatas artificiais. A Serra dos Carajás tem um pequeno zoológico, um jardim botânico, um pequeno museu. Apresentam até preocupações de pesquisa e preservação arqueológicas. Isso tudo faz parte desse suposto desenvolvimento, que supostamente atende aos quesitos ambientais. Essas figuras de retórica, como “o maior lago do mundo”, “muito piscoso”, “construção gigantesca”, criam uma visão idílica,

http://www.novacartografiasocial.com formada de pequenos bolsões. Cria-se uma idéia de arquipélago, de pequenas ilhas de florestas, mini zoológicos, que são criados junto com cada grande empreendimento na Amazônia. A Serra do Navio tem a sua área preservada. Ninguém pergunta de onde sai o carvão para alimentar os fornos das empresas de ferro gusa. Trata-se de carvão vegetal, e ele é retirado da floresta, na grande maioria dos casos. Com a crise, a oportunidade de evidenciar de que autosustentabilidade estamos falando, aumenta. Que desenvolvimento é este? O castelo de cartas está caindo e a curto prazo vai provocar algumas percepções diferentes. De que modo a atual estratégia do agronegócio impacta na desterritorialização das comunidades? Há uma visão economicista que prevalece e precisa ser relativizada. Por que não desenvolver uma ágil política de reconhecimento para os castanheiros, seringueiros, quilombolas, peconheiros? Quando tentam operacionalizar os procedimentos de reconhecimento imediato, não existem mecanismos ágeis. Como instituí-los nesta quadra adversa ao mercado de commodities? Por outro lado, não se pode parafrasear Guimarães Rosa, dizendo que “é a hora e a vez dos povos e comunidades tradicionais”. Afinal, os mecanismos de grilagem continuam reconhecidos sem maior contestação. O que não vale para a comunidade tradicional que está ocupando e tem a posse permanente de seu território há séculos, vale para o latifundiário que veio de fora há alguns anos, desmatou e fez um imenso pasto, pensando em ven-dê-lo para um sojicultor.

Vale dizer que todos os grupos na Amazônia estão mudando de estratégias. Os bancos, as agências multilaterais, as ONGs e os governos. Os efeitos da crise sobre o mercado de terras estão vivos. Trata-se do tema da ordem do dia. Aliás, as próprias ONGs ambientalistas incorporaram a questão da regularização fundiária. Se apresentam na discussão como os novos especialistas em regularização fundiária, ao lado do BIRD [Banco Internacional para a Reconstrução e o Desenvolvimento]. Já os movimentos sociais, que há décadas tem nos conflitos agrários uma tragédia cotidiana, passam a olhar com cautela essas mudanças burocráticas e administrativas e a recusar os padrões da nova tutela, inclusive o da delegação de se falar em nome deles. Os agrocombustíveis representam uma ameaça à floresta Amazônica e aos seus povos? Plantations de palmáceas, como na Malásia, já constituíram o modelo do dia. Como política não lograram êxito. Por outro lado, onde há movimentos sociais não houve discussões mais aprofundadas. Apenas de babaçu, são 18 milhões de hectares no Brasil. Adicionando-se as extensões de outras palmáceas, das quais se pode produzir óleos vegetais, tem-se uma vasta região com comunidades extrativas que potencialmente podem ser mobilizadas e dispor seus produtos diretos. Por que não se abre uma ampla discussão sobre a viabilidade da produção de agrocombustíveis? *CONTRA CORRENTE é uma publicação da Rede

Brasil sobre Instituições Financeiras Multilaterais, em edição especial para o Fórum Social Mundial 2009 Janeiro2009


viver sem viver Viver:

Esboço para um Terceiro Manifesto Curau http://andaravozsilencio.blogspot.com.br/2012/06/viver-sem-viver-viver.html?spref=fb Comunidade Perdida, Comunidade Recuperada. Poderia, também, ser o título: evoca os paraísos de Milton: o Paraíso Perdido e o Paraíso Recuperado, para dizer: – Ando lendo, interpenetrando, Bauman <> Agamben, ambos tentando atravessar a Dispersão atual da espécie humana em demanda de um Centro de compreensão do que se passa agora no mundo, que, achado, permitiria um Ponto de Ações convergentes – aliás, Ponto já achado, no Sempre, onipresentemente no Ocidente por Eckhart e oniausentemente no Oriente pelo Tao. Bauman lendo no Visível, logo no Tempo Histórico, as gotas dispersas da Comunidade líquida atual, e se perguntando com contida angústia insegura algo que em palavras aqui minhas, significa: - Acharemos um Ímã? Ele lê no Ente, é claro. Agamben, com mais que confiança: Fé, lendo no, ainda, segundo ele, Invisível, e antes entrevisto por Benjamin, Tempo Messiânico, os fundamentos submersos de uma Ilha ontológica que resiste à dispersão, e recomendando, como estratégia de sobrevivência individual e auxílio valioso que cada um pode dar à recuperação da Comunidade humana extraviada, o que em palavras minhas há muitos anos já venho chamando nos livros de Andara: - viver sem viver Viver. Ele lê no Ser, é claro. Eu vejo a confusão humana na Terra como coisa Grave - Sim, porque sua força de gravidade atrai para o mais baixo com poder de autoextermínio capaz de varrer nós todos da superfície da Esfera Azul, sem que as levezas perdidas nos sustentem entre o Denso e o Sutil e que um só Justo, já nascido e fenecido ou por ainda por florescer, volte a tempo ou chegue, e Ascenda em suas Asas que nós, em nós, atrofiamos mutilando a Promessa de Leveza contida em nossas omoplatas que as aves realizaram. Mas também vejo que algo quer brotar, e espantosamente, atravessando a resistência e Espessura da Tecnologia, na nossa Onipresença Virtual – e nos Olhos do Hubble que vê sem olhar, as Presenças ocultas no Cosmos, percebendo e decifrando energias em cores. E entendo que para isso, nos dois casos, da presença virtual e da visão sem olhos, foram nos preparando ao longo dos séculos os Contos de Fadas, nos ensinando a Vida como coisa mais subterraneamente Real quando vivida como - Faz de Conta. Ora, é esse faz de conta quando praticado no Tempo Histórico, rigoroso Tempo do Ente e suas carências: Tempo do Corpo, que Bauman denuncia como mortal para nós. E é a esse faz de conta maligno que Agamben

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contrapõe o Façamos de Conta, Agora, para favorecer, com nossas práticas de vida, o heraclitiano advir Tempo Messiânico. Estamos, pois, entre o: - Tudo está consumado. E o: - Tudo está por se consumar. Para que Tudo não se consuma. O momento, então, é Grave, eu sei. Como sei o poder de realidade possível – chamem Utopia, como passos em um Caminho, indo para – do Faz de Conta que moveu Guevara, pelo sangue, na via utópica da Guerrilha, e Gandhi, pela mente, no via mística indiana do Ato de Vontade, que a ignorância ocidental só lhe permite entender como não violência, resistência pacífica. Mas sei que a palavra final será dada não por nós. Que quem a dará, em Silêncio universal, é: o Ponto. Querem saber como eu cheguei, faz tempo, lançado entre o Visível e Invisível ao nascer e após ter renascido em Andara, ao: – viver sem viver Viver? Assim. Tendo entendido – bobagem, devo dizer: Tendo Visto – que o Real nos aparece como realidades, vi a dispersão. E tendo visto que as realidades não são o Real em Si, vi o Ímã = o Ponto. O Centro. O Eixo. Deus? São nomes, dados pelos homens, para o Inominável, chamem como cada cultura quiser. Mas sintam em vocês o Chamado imanente. Oh, também transcendente. Toda Criança sabe resistir à deformação adulta dos Pais empregando o Faz de Conta, que lhe permite resistir na Infância a essas deformações tantas vezes bem intencionadas mas deformadas pelo Medo da espécie a não sobrevivência individual que o é sentido secreto do Filho. Somos filhos de uma Civilização que tende, claramente no Ocidente, para o túmulo que vem cavando para si mesma. Como resistirmos a ela? Às Crianças que ainda somos, se as despertarmos do nosso Sono de civilizados adult/erados, é isso o que Agamben nos recomenda, ostensivamente, em um dos seus livros mais recentes, sobre a Amizade e a Comunidade. E eu digo assim: - Façamos de Conta que estamos realmente vivendo todas as irrealidades, bebendo todos os Venenos, sonhando todas as ilusões, crendo em todas as falsas promessas que nos cercam, encarceram e sobretudo desviam da Via: da Vida Autêntica que nos caberia buscar, e buscando, achar quem sabe e Realizar plenamente, o que só saberemos se nos pusermos a caminho, em nós - em cada um e por todos nós. Segundo ele, é essencial, indispensável e cada minuto perdido pode ser a véspera do último, nos Fingirmos de Tolos, ou de Mortos - fingirmos que estamos ouvindo e vamos obedecer o que os Pais Perversos nos mandam fazer,

Frame de Matadouro, filme de 1975 de Cecim ó crianças mal tratadas que vivem nesta Casa/mundo agora vagando por corredores escuros, tropeçando em mentiras, se erguendo para cair em novas mentiras. E é essencial nos fingirmos de inexistentes, de já mortos para o que nos deforma, por que? Para que? Porque quanto menos reais para as irrealidades contemporâneas formos, mais reais seremos para nos libertarmos em direção a uma Real Comunidade Humana. E para que o Tempo Messiânico - tempo em que, já sem leis que o determinem por fora, venha a existir uma só Lei interior, que em cada um será igual em todos - possa Vir a Nós. Isso é quase uma exigência de merecimento, ou Graça. E para atender essa exigência, teremos que nos mover para a Graça e o Sagrado - com graça, graciosamente, lúdicos - não como entes em Fuga, mas como seres em Festa. É a mesma Palavra que nos autoriza agir assim e quer: Graça, graça. Da minha parte, passo a vocês todo o significado, a necessidade e a urgência do que vi, e entendi, se quiserem, como: - viver sem viver Viver. Achando que, porque nele se realiza o Ponto, já contém a resposta buscada pela Angústia histórica imanente de Bauman e a Fé utópica transcendente de Agamben. Eis: confirmado na Táboa de Esmeralda, de Hermes Trimegisto, três vezes mestre. Hermes nos confia o que Viu, e entendeu: - Que o Infinito é Real e que o Finito é irReal. – Mas que, vivendo no efêmero transeunte das realidades finitas, nós devemos viver o Finito como uma Realidade. Quando eu li isso, me disse: - - Uma ação mágica: viver o IrReal como se Fosse uma Realidade. Entendam: o que Hermes Trimegisto e o Saber Hermético há não sei quantos mil anos nos recomendam é: - Façam de Contas, aqui. Vivam: Lá. Essa é a Vida Real que cabe ao homem no Universo. Foi assim, na vida prática, que Guevara fingiu que era um guerrilheiro, não um médico, e destruiu a Ditadura de Batista em Cuba. Com muitos ais. E foi assim que Gandhi, sentado, imóvel, Não estou fazendo nada, meus Lordes, fingiu

que não estava Agindo e expulsou o Colonialismo do Império Britânico da Índia. Sem um ai. Mas, Vicente: - Faz de contas? E a Fome que devora o faminto, a Somália. E a Morte, que lateja em seu sono mortal nas dez mil Bombas Atômicas que continuam armadas de um lado e do outro da agora dissimulada Cortina de Ferro? Eu sei. Por isso tudo neste momento da Comunidade humana é Grave, muito grave. A isso eu respondo assim: - A Terra, já se sabe, não é o centro físico do Universo. Embora eu esteja perdidamente apaixonado por Ela desde que tive esta Visão faz uns dias: - Me vi, com uma grande Sede, pairando entre as galáxias, estrelas, matéria escura, buracos negros, cometas, meteoros, luas mortas: tudo ardendo em chamas demais, ou pedras frias, secas – e morrendo aos poucos de sede, como se diz, eu não achava Água em nenhum lugar do Universo. Foi quando percebi um pontinho azul, longe, mínimo – e um frescor arrebatou e me lancei na sua direção - e a Terra me deu de beber e me salvou e me guardou em Si – e encantado, me dei conta de que Ela é o Único lugar do Cosmos que tem Água: Nascente da Vida. Agora, mesmo perdidamente apaixonado, para sempre, ainda me disponho a aceitar que a Terra não seja o centro físico do Universo. No entanto, quem sabe o humano seja, em potência, seu Centro Mental no tempoespaço? Pelo menos um homem que existindo talvez na liberdade do Faz de Conta das Lendas, e por isso pode ser para nós, que mal damos conta do que somos, Três Homens em Um, Hermes Trimegisto, soube o seu Lugar. E, luminoso, quando perguntaram magoadamente a ele se não era uma maldade infinita que não haja realidade no Finito, respondeu: - Não. Se o Finito fosse real, isso é que seria Maldade, porque estaria condenado ao Efêmero – fixo, preso, imóvel – não poderia vir a ser Real. Entendo essas palavras como o anúncio da nossa – Liberdade para nos Realizarmos.


viver sem viver Viver Se faça de Ente para vir a Ser

PósEscrito Vejam claramente isto: não estou dizendo que devemos nos reduzir, ainda mais, à Passividade como submissão – estou dizendo que, já cercados por todos os lados por uma Civilização Brutalmente Indiferente tanto a Dor quanto a Alegria – usemos contra ela a mesma possibilidade de Mutações na existência humana manifesta que está sendo usada contra nós. Mas ao contrário: a nosso favor. Então, fique claro: viver sem viver Viver não é se omitir, consentido. Ao contrário. É uma Ação Inativa – uma Recusa, um – Eu me recuso a continuar vivendo no mundo que vocês me impõem, senhores do bem e do mal. Do ponto de vista de Pirro de Eléia e dos Céticos, filósofos da recusa das Farsas, Aparência e Ilusões – é praticar a Indiferença como libertação. E a trans-figuração da Amazônia – corrompida pelo Colonialismo das Caravelas e agora corroída pelo Imperialismo do Capital – em Andara, a convertendo em uma região verbal metáfora da vida, é a minha prática desse Dom de Mutações libertárias através da Literatura. O: viver sem viver Viver, como reinvenção da existência, se manifesta em Andara desde seu primeiro livro visível, A asa e a serpente, então, desde 1979, tempo em que as vozes de Bauman, Agamben ainda não eram ouvidas por aqui. E ouvir suas vozes recentemente, só me confirmou: viver sem viver, Viver. E foi o fundamento oculto que permitiria a Ação proposta por mim, em 1983, no Manifesto Curau/Flagrados em delito contra a noite, com esta formulação, aplicado a Amazônia : Nossa História só terá realidade quando o nosso Imaginário a refizer a nosso favor. Formulação que após o Segundo Manifesto Curau, ou não: No Coração da Luz, de 2003, agora se amplia para o mundo, assim:

Comentário do autor: Sobre dentes e sonhos

viver sem viver, Viver: Ninguém está entendendo, nada, que pena. Vou falar então como falo com meu neto Rafael de 3 anos: - O Imperialismo Luterano Ocidental - leiam Max Weber, sobre a origem luterana do Capitalismo - transformou este lado da Terra em uma prisão de onde foi expulsa a Vida Autêntica. Dentro da prisão, já não se Vive. Por isso, proponho: - Para escapar à Alienação desse viver sem viver que nos é imposto é preciso passar a viver sem viver Conscientemente disso - se recusando a esse Cárcere onde estamos adormecidos - e isso é uma Estratégia de reDespertar, de guerrilha psicourbana, entendam, a ser praticada no nosso dia a dia, em cada pensamento nosso, palavra, gesto, opção. Até que o Carcereiro, olhando de fora das grades, veja só uma cela vazia, e não havendo mais ninguém para vigiar, pois nos tornamos novamente homens, em nós mesmos, Livres e perdeu o sentido a sua existência - se retire - para o Inferno - deixando a porta agora inútil da sua jaula agora inútil aberta. Porta que então atravessaremos, reconvertendo o nosso viver sem viver voluntário, estatégico, em um retorno à Vida Autêntica, do lado de fora. Esse é o: viver sem viver para reViver. Confesso que seria mais veloz, e Digno, se os livros de História pudessem contar aos filhos dos filhos dos nossos filhos que tivemos a Coragem de arrancar a dentadas as grades. Mas onde um dia esperei dentes, que pena, só vejo agora sorrisos submissos. Amarelos. Humilhados. Mas contentes. Ler Morte a Crédito, de Céline, pode favorecer o nascimento de dentes. Mas eles só crescerão naqueles que verdadeiramente entenderem, e praticarem, o elogio do Poder do Imaginário contido nesta frase de Breton: - Do fundo de um cárcere, basta um homem fechar os olhos para destruir o mundo.

“Nossa irRealidade só se tornará Real quando o nosso Imaginário a recriar, a nosso favor.”

aVe, Vicente Franz Cecim segunda-feira, 4 de junho de 2012

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MINIBIO(S)

Antena Mutante | http://www.antenamutante.net É um projeto de comunicação, ação direta e experimentação social e tecnológica que trabalha desde do primeiro de maio de 2007. Antena busca produzir um movimento autônomo descentralizado do mercado, das instituições, do Estado e academia, é um movimento que busca transportar informação e pessoas a lugares que se encontram em tensão com as lógicas de exclusão e exploração implantadas por agentes tecnoeconomicos em escala global. Arthur Leandro | http://aparelho.comumlab.org , http://institutonangetu.blogspot.com.br Nasceu em Belém do Pará em 1967. É artista ou coisa parecida. Foi professor do curso de Artes Visuais da Universidade Federal do Amapá e hoje atua na mesma função na Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal do Pará. Ainda vive, mas não sabe dizer as referencias geográficas precisas, encontra-se em alguma fenda de espaço-tempo, um güera qualquer. Trabalha em vários ajuntamentos coletivos que promovem poéticas vivenciais e intervencionistas à margem do circuito oficial das artes visuais, mas nem por isso fora dele – vive em fronteiras. Como no Grupo Urucum e/ou Grupo Urucum do B, oficialmente sediado em Macapá; e na Rede [aparelho]-:, aparelhada em todo lugar. Armando Queiroz Nasceu em Belém do Pará, 1968. Sua formação artística foi constituindo-se através de leituras, experimentações, participações em oficinas e seminários. Expõe desde 1993 e participou de diversas mostras coletivas e individuais no Brasil e no exterior. Sua produção artística abrange desde objetos diminutos até obras em grande escala e intervenções urbanas. Detém-se conceitualmente às questões sociais, políticas, patrimoniais e as questões relacionadas à arte e a vida. Cria a partir de observações do cotidiano das ruas, apropria-se de objetos populares de várias procedências, tem como referência a cidade. Foi contemplado com a bolsa de pesquisa em arte do Prêmio CNI SESI Marcantonio Vilaça para as Artes Plásticas 2009-2010. Em 2009, seu site specific Tempo Cabano recebeu o 2º Grande prêmio do 28º Arte Pará. Em 2010, recebeu Sala Especial no 29º Arte Pará como artista homenageado do salão. Vive e trabalha em Belém. Bruna Suelen Sou Filósofa por formação e mestranda em Artes pela UFPA. Pesquiso Arte/Política//Educação/Vida. Tento ser coerente, por vezes me excedo. Atuo na rua. E sou professora da rede estadual de ensino na ilha de Colares, nas horas vagas. Acredito em Processos Colaborativos e no Façam Vocês Mesmos! como paradigmas fundamentais. Bruno Tarin | http://imotiro.org/ Tem experiência nas áreas de Produção Cultural, Gestão Pública de projetos de Cultura Digital e Artes com ênfase em Artes Eletrônicas e em Softwares Livres aplicados a produção Multimídia é Bacharel em Relações Internacionais e atualmente é mestrando da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro na linha de pesquisa Tecnologias da Comunicação e Estéticas. Idealizador e Fundador da ONG e Instituto de Pesquisa. Colabora com diversas redes ciber/midiativistas e participa ativamente do debate entorno da revisão da Propriedade Intelectual, da manutenção e extensão dos Bens Comuns e de Políticas Públicas de Inclusão Digital especialmente aplicadas a Cultura. Bruno Vianna | http://nuvem.tk É cineasta formado pela UFF. Realizou 4 curtas-metragens entre os anos de 1994 e 2003: Geraldo Voador, Rosa, Tudo Dominado e Nevasca Tropical. Seus filmes foram exibidos e premiados em diversos festivais no Brasil e no mundo, como Gramado, Festival do Rio, Rotterdam, Tampere, Havana, e Nova York. De 1997 a 1999, viveu em Nova York, realizando um mestrado em artes digitais na New York University. Em 2000, obteve uma bolsa da Universidade Pompeu Fabra, em Barcelona, juntamente com a poetisa Orit Kruglanski, para desenvolvimento de projeto de literatura interativa para PDAs - PalmPoetry. O projeto foi selecionado para diversos festivais de arte eletrônica como Art Futura. Nesse período trabalhou como consultor de desenvolvimento de conteúdos para celulares na Cluster Consulting, em Barcelona. Em 2005, realizou seu primeiro

longa-metragem, Cafuné, com financiamento do Ministério da Cultura a partir da seleção de roteiro de longas de baixo orçamento de estreantes de 2003. Em 2007 apresentou o projeto Invisíveis, um espaço virtual narrativo em realidade aumentada para celulares, no festival Arte.mov, em Belo Horizonte. No momento está realizando um doutorado em comunicação audiovisual pela Universidade Autônoma de Barcelona.

Carlinhos Vas Nascido em Belém do Pará, é músico, produtor cultural e musical. Durante muitos anos, produziu o Coletivo Rádio Cipó concebendo projetos, tocando, gravando e mixando os álbuns do grupo, além de promover mestres populares como Mestre Laurentino e D. Onete entre shows pelo Brasil e Europa. Carpinteiro de poesia/© Francisco Weyl Defino de forma poétyka o conceito através do qual a esta coluna deu-se o nome: Karpynteyro: do lati(m)do, ex-kapar: KAPAR a voz; Pynteyro: de palavra; Ynteyro: de silêncio (cio-em-cio).” + Autodenominado carpinteiro de poesia e de cinema, o poeta, realizador e professor de Cinema, Francisco Weyl é mestrando em artes (UFPa/ Brasil - 2012), pós-graduado (especialista) em Semiótica e Artes Visuais (UFPa/Brasil - 2003) e graduado (bacharel) em Cinema e Vídeo (ESAP Portugal - 2001); atualmente, como jornalista, é assessor de comunicação do Programa Nacional de Inclusão Digital para as comunidades Telecentros.BR / Polo Regional Norte e colabora com o jornal Liberal (Cabo Verde) e com a revista Vanguarda Cultural (Amapá - Brasil); coordena projetos educativos de intervenção artística e social e gere a WEYL Editora, o Cineclube Amazonas Douro e diversas redes sociais: resistenciamarajoara.blogspot.com / cinemaderua.blogspot.com / socialcine.blogspot.com / mazagao. com.sapo.pt / alba.com.sapo.pt / cinemapobre.blogspot.com Celi Abdoral Possui Graduação em Direito e Mestrado em Direitos Humanos pela Universidade Federal do Pará (2009). Atualmente é educadora popular e advogada da Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos - SDDH. Tem experiência na área do Direito, com ênfase em Direitos Humanos, Gênero e Políticas Públicas. Atua principalmente nos seguintes temas: educação popular, enfrentamento à violência de gênero, direitos sexuais, tráfico de pessoas para fins de trabalho escravo feminino, amazônia, fronteira, controle social e polícia. Coletivo Puraqué | http://puraque.org.br/ O Coletivo Puraqué é um espaço de fomento da cultura digital e livre, iniciado em 2001 com uma iniciativa de oficinas de informática para jovens em condições de risco da periferia de Santarém (PA). Ao longo do tempo, com a entrada de novos membros, aumentou sua abrangência de atividades para a região, oferecendo diversas oficinas como: produção gráfica, estúdio de gravação, rede de blogs locais, rádio comunitária e formação em ferramentas educativas. Coisas de Negro | http://coisasdenegro.blogspot.com Realiza todo domingo a roda de carimbó com Mestre de cultura, bem como com novos grupos, muitos deles autorais estimulados pelo Espaço para manter viva e atual a criação e produção do ritmo. Também são realizadas gratuitamente oficinas relacionadas ao carimbó - percussão, banjo, flauta, confecção de instrumentos -, e oficinas relacionadas ao mercado cultural – elaboração de projetos culturais, captação e edição de áudio, rádio web. O Espaço também é o local de execução do Projeto de Extensão Carimbó.Net (ICA/ UFPA).

Daniel Hora Aluno do curso de doutorado em Arte Contemporânea pela Universidade de Brasília. Bacharel em Comunicação Social pela Universidade de São Paulo e especialista em Crítica de Arte pela Universidad Complutense de Madrid. Tem experiência como jornalista, crítico e professor nas áreas de artes, audiovisual, comunicação e políticas culturais. Vencedor do prêmio Rumos Itaú Cultural Arte Cibernética, edição 2009-2011.

Felipe Fonseca efeefe tem algum envolvimento com a história da MetaReciclagem. Gosta de pensar em sistemas de conversas entre pessoas e acha que o site da MetaReciclagem um dia vai funcionar direito. Manja um pouco do CMS drupal, sabe encontrar coisas na web, toca guitarra mal mas insiste, bebe fermentados. Costuma escrever em http:// efeefe.no-ip.org. Fernando D’Padua | http://ciclovidapirata.blogspot. com.br/, http://olharesemderiva.blogspot.com.br/ Nasci em Belém do Pará, fui pixador de passarela na década de 90. Frequentei o curso de Artes na UFPA de onde quase não sai. Em 2012 defendi dissertação no mestrado em Artes pelo ICA e ainda estou enrolado com a academia por ter feito uma grande bagunça nos meus textos. Sou praticante de atividades de intervenção urbana e semi-urbana utilizando estruturas interativas e itinerantes elaboradas como pressuposto poe[li]tico. Hoje, moro na Ilha de Colares cerca de 100 k da capital paraense onde trabalho na roça, cultivando ervas Sítio Brilho Verde na zona rural da cidade. Atuo como professor da rede estadual de educação nas horas que me restam. Geo Abreu | http://uninomade.net/ É paraense, pesquisadora de Rede Universidade Nômade. Gil Vieira Costa 1988 (Belém-PA), é professor e aluno, mestre e aprendiz, bêbado e equilibrista, verdadeiro e falso, preto e branco, puta e padre, e foi visto pela última vez a 80 km por hora, compactado num navio negreiro em meio aos seus iguais. Giseli Vasconcelos | http://commlab.org Paraense, graduada em Artes pela Unesp-IA, concebeu e produziu festivais como Mídia Tática Brasil e Digitofagia, e ainda laboratórios experimentais como Autolabs – desenvolvendo novas metodologias em mídias e oficinas vinculadas as redes de ativismo e mídias táticas. Foi responsável pelo planejamento de websites, capas e concepção gráfica para a coleção Baderna, assim como para outros produtos da Conrad Editora. Organizou e produziu com o teórico Ricardo Rosas a publicação Net_Cultura 1.0: DIGITOFAGIA, financiado pelo programa internacional Waag Sarai Exchange Platform. Nos últimos anos, em Belém do Pará, estuda a vida nômade e coletiva entre convivências poéticas e politica através da Rede [aparelho]-: e Coletivo Puraquê. Planejou ações e orientou projetos para infocentros do programa de inclusão digital NavegaPará. Concebeu o edital – Ações colaborativas para cidadania digital, através da Secretaria de Estado de Desenvolvimento, Ciência e Tecnologia do Governo do Pará. Dirigiu e produziu a a edição norte do arte.mov - Festival internacional de Mídias Móveis, realizado na cidade de Belém em setembro de 2010. Reside entre Belém e Massachusetts/USA, de onde dirige e produz publicações e a iniciativa Networked Hacklab vs Amazônida. Guerrilhas Estéticas [PPG Artes | UFPa] Coletivo de pesquisintervenção urbanurural operando no dentrofora da aCADE/mia, nas zonas de CRIAção de outeração no corpo da cidademundo. Hugo Gomes Dos 23 anos de Belém que tenho, fotografei 5 em película, 2 em pixels e 1 em linhas. Das 10 exposições que tentei entrar passei em 4. Ganhei dinheiro em uma. Dos vídeos que fiz (parte) só o prazer da feitura. Pesquiso e produzo arte porque não se cala aquele que tem algo a dizer. Das cartografias que fiz parte essa é a segunda, talvez a terceira. Dos coletivos que integrei ou integro cito 2. Dos trabalhos que fiz parte cito 3. Coletivo câmera aberta // laboratório de cartografia WarZone-Terra do Meio // Quem matou quem morreu quem..? // fotoEscambo-SobreVivência. Dos links: http:// cameraaberta.wordpress.com/, http://www.speakingimage.org/ images/terra-do-meio-zona-de-guerra, http://coletivohomemso. blogspot.com.br/ . Das academias que fiz ou faço nada, não aqui. nada delas, nada de RG, nada de CPF.

Ícaro Gaya | http://www.youtube.com/user/3luavermelha 23 anos, graduando do curso de Licenciatura Plena em Artes Cênicas - Teatro, na Universidade Federal do Pará. Começou a fazer teatro aos 10 anos de idade nas oficinas de teatro infanto-juvenil da Escola de Teatro e Dança da UFPA – ETDUFPA. Em 2010 escreve o projeto de performance urbana “Estimação” aprovado pelo Min C, trabalhando com o grupo de artistas qUALQUER qUOLETIVO. A partir daí também começa a desenvolver um trabalho voltando o olhar para o cinema através de trabalhos em video atrelados à sua vivência com o teatro de rua e com a dança. Em 2011, através da aprovação do projeto Conexão Dança Residência Internacional, foi convidado pelo diretor da Companhia de Investigação Cênica, Danilo Bracchi, para viajar à Europa. Lá fica durante 3 meses participando de aulas de dança em diversos estúdios de Berlim (TanzFabrik, Laborgras, Marameo e Studio 152) e em Paris (Menagerie de Verre). Participa do processo e encenação do espetáculo de rua “Perifeérico: A Começar pelo pôr-do-sol” com o grupo de teatro de rua Perifeéricos. Atualmente, atua na Companhia de Investigação Cênica como produtor cultural, núcleo de comunicação e bailarino, no Grupo de Teatro Perifeéricos como ator, preparador corporal e assistente de direção e no qUALQUER qUOLETIVO como qualquer elemento, pau pra toda obra. Isabela do lago | http://beladolago.blogspot.com.br/ Soy artista de desenhar, de pintar, de fotografar e escrivinhar. Vivo em Belém desde que nasci, aqui enterrou-se a minha infância, aqui desde que nasci (na Comunidade de Cocal-Piauí 1977). Aqui é Belém do Pará da Amazônia do Brasil de ninguém, aqui fui e sou educada e cultivo meu descontentamento e minha euforia-alegria-vontade e percepção do off-mundo. Acredito no movimento cineclubista. Keyla Sobral | www.naolugar.com.br Paraense, artista visual, editora e fundadora da revista eletrônica Não-Lugar e colaboradora do blog Novas-Medias?!. Seu percurso começa no início dos anos 2000 e de lá para cá vem participando ativamente da vida cultural da cidade, em mostras coletivas e individuais, assim como em eventos fora de Belém. Participou e foi premiada no Salão Arte Pará nos anos 2003, 2005 (2º Grande Prêmio), 2007, 2008 e 2011 (Prêmio Aquisição). Luah Sampaio | www.blogdasesquinas.blogspot Há um tempo entre Esquinas! Estuda as Letras portuguesas e da mesma maneira que se comunica, acredita quase que com uma força mistica há nessa comunicação. Dentro do Grupo de prostitutas do Pará, participa de da construção do Cine Gempac, que se propõe um cineclube no bairro com histórico da Campina, antiga zona do meretrício e reduto da boêmia intelectualesca da cidade. Faz parte da construção do movimento ‘Ocupa’ aqui em Belém- Ações-distorções-outras metodologias-lambe-lambe-cineguerrilha-rodasdeconversa-aulaspublika-vivência que descontrói- as explicações com devidas pontuações. Textos-manifestos-etc- :www.ocupabelem. wordpress.com. É bolsita do projeto Diálogos em Cabana de Caboco coordenado pelo Professor João Simões da Faculdade de Ciências Socias da UFPA. O projeto se pretende a criar uma ponte com academia e uma troca de produção e conteúdo com o projeto Azuelar e o Instituto Nangetu que acontecem dentro do terreiro de Camdomblé Mansu Nangetu. Lucas Gouvea Lucas não acredita em biografias, o que pinta, ele assina, trabalha com o qUALQUER. Signo de Peixes, Cavalo no horóscopo chinês, Cristal do Mago Branco é o seu kin maia. uma grande mulher queacima de tudo é uma pessoa extrovertida, eclética, e poelítica. Lucas é a terceira pessoa, uma pessoa singular. Seu projeto de mandato para essa eleição é o cancelamento das leis da gravidade. Corpo Esguio, 2,05m de altura, 22 anos, olhos e cabelos castanhos, traços longilíneos, corpo sexy. Lucas Gouvêa Mariano de Sousa nascido no dia 21 de fevereiro de 1990, em campinas sp , Lucas é sua mãe, é seu pai, e seu próprio filho. Lucas é satã e é deus, e pouco lhe importa a Virgem Maria.


Lorena Marín Antropóloga sociocultural com interesse em ferramentas de comunicação (gráficos de computador, mapas, sites, etc.), utiliza software livre para o desenvolvimento de narrativas alternativas em pesquisa e participação social. Em sua tese de “Paraíso Público, acesso limitado: a territorialidade de tensão em torno da renovação do projeto urbano de Cidade Paraíso” http://territorialista.latenia.net/ investiga as contradições subjacentes a projetos de uso da terra na cidade de Cali (Colômbia). Sua carreira em comunicação alternativa começa no Direkta (2010), acompanhando vários processos como Nación Misak em movimento e cobertura do Congresso dos Povos em 2010. Lucia Gomes | http://luciagomeszinggeler.blogspot.com.br/ Papa-chibé, é de Belém-PA- Amazônia. É mulher, É artista, também. É cidadã. Atualmente mora na Suíça. Desenvolve intermediações entre a arte política e a vida. As fronteiras são móveis, rarefeitas. O ser humano se contamina, se compõe. Um ao outro. Lucia Gomes desenvolve trabalhos que aproximam corpos para a diversão. Mas sabe que há misturado o “perigoso e o divertido” . Traz o lúdico para debater o nocivo. Não é uma artista da arte da performance, ou da escultura ou do desenho ou... de um segmento consolidado. ELA EXPERIMENTA FLUXOS. Desde 80 quando se engajou no movimento estudantil do Brasil desenvolve atravessamentos artísticos entre >> linguagens-espaços -relações humanas... seus trabalhos estão ou estiveram tanto nos espaços oficiais da arte como também em praias, florestas, lixão no céu, nos esgotos, na neve, nas redes sociais...Acredita que Os Espaços são para comunicAção. A vida é o ponto de fuga. O aqui é o labirinto. Seus Trabalhos são políticos pois são criações de uma cidadã que vive >>respira expira e inspira>>nesse mundo, cheio de conturbações e abusos de poderes>> As interferências artísticas que causa com seus in-fluxos de pensamento, não sofrem coerção de instituições ou/e qualquer outro meio de controle. Seus trabalhos são desenvolvidos sem necessariamente precisar de incentivos financeiros. Posso gritar /chorar/rir. Gritam no vácuo o qual nos jogam os meios hegemônicos capitalistas. Luiz Augusto Pinheiro Leal Doutor em Estudos Étnicos e Africanos pela Universidade Federal da Bahia (2011), mestre em História Social pela UFBA (2002), especialista em Teoria Antropológica pela Universidade Federal do Pará (1998) e graduado em História pela UFPA (1997). Tem experiência no ensino de História e Antropologia, com ênfase em História da Amazônia, História Social da República e Antropologia Histórica. É autor e co-autor, respectivamente, dos livros A política da capoeiragem (EDUFBA, 2008) e Capoeira, Identidade e Gênero (EDUFBA, 2009). Atualmente é professor adjunto da Universidade Federal do Pará, campus de Cametá, onde leciona disciplinas relacionadas à História da África, História do Brasil e História e Cultura Afrobrasileira. Marie Ellen Sluis | http://barraco55.org, http://mapmob.org/ Ellen tem uma paixão pelo Brasil, onde atualmente reside. Ela escreveu sua primeira tese para o mestrado em New Media University of Amsterdã, sobre uso alternativo dos meios de comunicação na cidade de Santarém, Amazônia – convivendo alguns meses com o Coletivo Puraqué. Para seu segundo mestrado em Conflit Studies, durante vários meses ficou no Complexo do Alemão e em favelas do Rio de Janeiro. Como especialista em Brasil, Ellen agora trabalha como manager da plataforma digital Intercâmbio Cultural BR-NL no SICA, uma organização sediada na Holanda, com foco em atividades culturais internacionais. Marisa Flórido Cesar É pesquisadora, crítica de arte e curadora independente. Doutora pelo programa de pós graduação em Artes visuais da Escola de Belas artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro, na área de concentração de história e crítica de arte. Possui textos sobre artes visuais publicados em livros, revistas de arte, catálogos e periódicos, no Brasil e no exterior. Vive e trabalha no rio de janeiro.

Mateus Moura | http://www.youtube.com/matouocinema, http://www.youtube.com/qualquerjamcine, https://vimeo.com/garfoefaca Mente que finge sonhar cinema em Belém na Amazônia, e outras coisas. Acaba devaneando: filma, escreve, fala, canta, atua, silencia. É indivíduo. Também participa de ações em coletivo: literatura (incêndio) música (Les Rita Pavones), teatro de rua (Perifeéricos), cineclubismo (APJCC), produção cultural e comunicação (garfo e faca), qualquer quoisa (qUALQUER qUOLETIVO). Mantém um blog onde cultiva o seu pensamento e canais que guardam sua produção audiovisual. Michele Campos de Miranda Atriz-performer paraense, com Mestrado em Artes Cênicas pela UNIRIO (2010), na Linha de Estudos da Performance. Técnica em Ator pela Escola de Teatro e Dança da Universidade Federal do Pará - ETDUFPA (2002). Graduada em Comunicação Social pela Universidade da Amazônia (2001). Pesquisadora vinculada ao Núcleo de Estudos das Performances Afro-Ameríndias - NEPAA. Fundadora e atriz da Companhia de Teatro Madalenas desde 2002. Atuando principalmente nos seguintes temas: teatro experimental, performance, cultura popular, ritual, processos de criação. MetaReciclagem | http://rede.metareciclagem.org O bando MetaReciclagem é uma rede com centenas de integrantes no Brasil inteiro. Desde 2002, propõe ações de desconstrução e apropriação crítica de tecnologias de informação. Influenciou projetos por aí, ganhou prêmios e se espalhou. Continua buscando pessoas interessadas em usar tecnologias para mudar o mundo. Novas Médias!? | http://novas-medias.blogspot.com.br/ Nasceu inicialmente para dar suporte ao trabalho de mesmo nome que foi exposto na Galeria Theodoro Braga em Belém, em 2008. A idéia era utilizar o blog para tratar de assuntos diversos ligados a divulgação de informações construídas, simulacros e apropriações. Depois com o fim da exposição, resolvemos dar prosseguimento ao blog deflagrando nele informações sobre mídias novas, low tecnologia e arte contemporânea, sendo ele hoje nosso médium para divulgação de informação tendo em vista um caráter multidisciplinar. Um espaço que não defende nenhuma bandeira (até então), talvez um espaço que represente uma bandeira deitada, horizontalizada e esticada por várias mãos. Podemos até tomar partido...por quanto tempo!? Quem sabe!? Somos um grupo a espera de novos integrantes. E por enquanto sem fins lucrativos. Pablo de Soto | http://www.scoop.it/t/los-mapas-del-15m É arquiteto e membro fundador do coletivo hackitectura.net. Atualmente investiga a tekné do novo movimento global e trabalha no Laboratório de Cartografias Insurgentes de Rio de Janeiro. Paulo Tavares Arquiteto e urbanista graduado no Brasil, desde 2008 é professor no programa de mestrado no Centro de Pesquisa em Arquitetura Goldsmiths. Seus artigos apareceram em diversas publicações em todo mundo, incluindo Nada (PT), Alfabeta2 e Abitare (IT), Gabinete (EUA), Piseagrama (BR) e Third Text (UK). Seu trabalho tem sido exibido em vários locais, incluindo HKW, Berlin , CCA, Glasgow e Portkus, Frankfurt. Pesquisador filiado a CAPES, vive entre Londres, Quito e São Paulo. Qualquer Quoletivo | https://n-1.cc/pg/profile/qualquerquoletivo Não existe liberdade individual sem liberdade quoletiva, sem liberdade não há existência. Eu’s acreditamos no acaso. Não apenas individualizar o quoletivo mas quoletivizar o individual é O qualquer quoletivoTeoricamente?! o pode ser entendido pelo que Félix Guatarri chama de agenciamentos coletivos de enunciação>> nesse sentido, transamos com as in formações e com as des-formações circundantes no contexto vívido.

RedeCom | http://redecom.wordpress.com/ Rede Amazônia de Comunicadores Comunitários é um desdobramento da Rede Amazônica de Protagonismo Juvenil, projeto de pontão de cultura que foi realizado pelos Argonautas Ambientalistas da Amazônia em convênio com o Ministério da Cultura e também do projeto “Caravana Digital: Juventude Conectada pela Cidadania”, sendo articulada através de um convênio com a FAPESPA – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Pará. A Rede não é um espaço virtual, mas sim uma teia real de conexão entre pessoas que se conhecem e já praticam algum nível de interação entre si, buscam objetivos comuns e que se relacionam de forma não hierárquica, trabalhando nos princípios colaborativos, solidários e participativo, com metas, objetivos e princípios definidos pelos seus integrantes. Ricardo Folhes Graduado em Agronomia pela Universidade Federal de Lavras-MG, é especialista em Geoprocessamento pela Universidade Federal de São Carlos e Mestre em Ciências Ambientais pela Universidade Federal do Pará. Tem experiência em planejamento, desenvolvimento metodológico, aplicação/ produção de cartilhas e relatórios técnicos de projetos de mapeamento participativo de conflitos socioambientais e usos da terra, em assentamentos de reforma agrária, unidades de conservação, comunidades remanescentes de quilombos e comunidades tradicionais em processo de etnogênese na região oeste do estado do Pará. Realizou consultoria para diagnóstico da situação fundiária e para elaboração de planos de manejo participativos em Reservas Extrativistas nos Estados do Maranhão e do Amazonas. Foi consultor responsável pelos trabalhos de análise, integração de dados e produção cartográfica do Zoneamento Econômico Ecológico da Zona Leste e Calha Norte no Estado do Pará. Experiência em planejamento e preleção de palestras, oficinas e cursos de mapeamento participativo e geoprocessamento nos Estados do Pará e Rio de Janeiro. Atualmente, participa de projetos de pesquisas relacionadas às mudanças no uso da terra na Amazônia. Revista Não Lugar | http://www.naolugar.com.br Nasceu há dois anos com a proposta de discutir arte e cultura contemporânea, tendo como ponto de partida a Amazônia. Cada número com um tema definido, desmistificando a protagonização artística do sul/sudeste do país. A internet foi o suporte mais eficiente, e mais barato para esse tipo de difusão de conteúdo cultural. E veio como esse meio desmistificador de fronteiras. Roberta Carvalho É artista visual, designer e produtora cultural. Estudou artes visuais na Universidade Federal do Pará. Vive em Belém, cidade onde nasceu. Desenvolve trabalhos na área de imagem, intervenção urbana e videoarte. Foi vencedora de diversos prêmios, entre eles o Prêmio Diário Contemporâneo (2011), 2º Grande Prêmio do Salão Arte Pará (2005), Menção Honrosa no Salão de Pequenos Formatos (2006), além do Prêmio Microprojetos (2010) da Funarte (MINC). Foi bolsista de pesquisa e criação artística do Instituto de Artes do Pará (2006). Seus trabalhos integram acervos como o do Museu de Arte Contemporânea Casa das 11 Janelas e Museu da Universidade Federal do Pará. Participou de diversas exposições, entre elas Cartografias Contemporâneas, SESC-SP, Vivo Arte.Mov 2011, Virada Cultural de SP - Projeta Pompéia, Sesc Pompéia - SP, Circuito Sesc de Artes 2011 (SP), Manaus Bem na Foto (2011), 100menos10 - Belém-PA (2011), Symbiosis - Ateliê da Imagem, RJ, 2011. Projeto Symbiosis foi o projeto-destaque do Paraty em Foco 2011, Festival Internacional de Fotografia de Paraty. Em 2012 integrou a exposição Tierra Prometida, sob curadoria de Iatã Cannabrava, no Museu Casa America Cataluña em Barcelona - Espanha. Atualmente está circulando dezenas e cidades brasileiras e municípios da Amazônia com o Projeto #Symbiosis. Romario Alves Ñ, ñ é o jogador de futebol, mas Um outro qualquer.wellington Romário da silva alves assim batizado nessa vida. Nascido em Belém do PA em 89 é residente até hoje nesta parte urbana da Amazônia ? imagine o que é residir... blá blá blá.Por uma busk de objetividade aki neste ex-passo,e suposta-mente para encurtar dis---t---âncias digo, diz-se que sou>> Trans ~_~formista, Costureiro, Artista , Periférico, Pesquisador, artesão, Diretor de arte, Amazônida, Con-

strutor de ambientes, Poeta, graduando em artes visuais na UFPA , um Cidadão em aberto rodeados de palav (r) ios. Nomeio/conceituo/blá blu/tix/flu... minhas Pro-Posições q integram e diluem linguagens da arte com o cotidiano Vivenciando um outro atuar pensando arte cidade existÇencia , mais que social, vem pelos sentimentos. Dae, chego a me har-tre--ver> deslizamento, assim digo q ocorre um DESLIZAMENTO quando não finca-se algo/alguém na arte-vida-politik-oralidade-ciÊncia-imaginàrio-e.... Mas, desliza-se por entre todas essas expressões, vividas -criadas no cotidiano, sendo, é o que interessa

Roberto Traplev | http://issuu.com/recibo Traplev é o nome que Roberto Moreira Junior utiliza para publicar alguns de seus trabalhos como artista, e também em projetos colaborativos como curadoria, seminários e a publicação RECIBO de artes visuais. No seu trabalho Traplev investiga ações e conceitos através da fotografia, projetos para espaços específicos, instalações, apropriação de imagens, objetos, publicação, edição de múltiplos, espaços para reflexão e intercâmbio, entre outras linguagens. Tem interesse no texto como parte e corpo da obra, refletindo sobre aparências e sentidos da realidade crítica através de dispositivos que remetem a questões administrativas e cotidianas, testando o fato múltiplo da permissividade do circuito. Roberto MJ coordena as ações de Traplev Agenciamentos desde 2005, na qual organiza seminários, projetos de expedições temporárias, workshops, curadorias, exposições, assessorias e projetos colaborativos com outras instituições. Samuel Maria de Amorim e Sá Possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Pará (1967), mestrado em Antropologia - University Of Florida Gainesville (1976) e doutorado em Antropologia - University Of Florida Gainesville (1980). Atualmente é colaborador, Professor da Faculdade de Ciências Sociais, Universidade Federal do Pará. Tem experiência na área de Antropologia relacionada à Saúde Coletiva e ênfase em Antropologia. Tatiana Wells | midiatatica.info, baobavoador.noblogs.org É pesquisadora e praticante de projetos relacionados à produção digital colaborativa e tecnologias livres. Trabalha pelos férteis cruzamentos entre apropriações tecnológicas críticas e movimentos sociais. Nascida no Rio de Janeiro, com um mestrado em Estudos de Hipermídia pela Universidade de Westminster de Londres, Inglaterra (2001), trabalha com produção de eventos de arte, mídia e tecnologia; pedagogia e produção multimídia em software livre desde 2003, produzindo seminários, publicações, tutoriais, sítios web, ações e apresentações afins. Vicente Franz Cecim Nasceu e vive na Amazônia, Brasil. Autor de Viagem a Andara oO livro invisível. Seus livros visíveis emergem dessa obra transfigurando a Amazônia em Andara, região-metáfora da vida. 1988: Grande Prêmio da Crítica da Apca por Viagem a Andara que elimina a fronteira entre prosa e poesia. 1994: Silencioso como o Paraíso se profunda em pura escritura, para Leo Gilson Ribeiro “um dos mais perfeitos livros surgidos no Brasil nos últimos dez anos.” 2001: Ó Serdespanto, onde a Escritura agora dialoga com o Silêncio, é um os melhores ano para a crítica portuguesa e Cecim, para Eduardo Prado Coelho, “uma revelação extraordinária!.” 2005: com K O escuro da semente inaugura na obra a Iconescritura. 2008: com oÓ: Desnutrir a pedra aprofunda a demanda de uma escrita que exclui a palavra na página em branco e substituída pela Imagem. Também cineasta desde 1975, agora cria o ciclo Gaia de cinema virtual, com imagens e palavras: Canal KinemAndara: http://www.youtube.com/user/ vfcecim?feature=mhee. Escreve o Diário d oO livro invisível: http:// diariodoolivroinvisível.blogspot.com e Andara: VozSilêncio: http:// cecimvozesdeandara.blogspot.com Yuri Barros, graduando em Artes Visuais pela Ufpa. Cineclubista na horas vagas, desenhista vez ou outra, gostaria de fazer mais gravuras... E quando resta tempo faz intervenções pelas ruas ou simplesmente vagueia entre elas.


FICHA TÉCNICA: PUBLICAÇÃO

Organização/Produção Executiva Giseli Vasconcelos Editores Arthur Leandro, Bruna Suelen, Giseli Vasconcelos, Ícaro Gaya, Lucas Gouvêa, Mateus Moura, Romario Alves, Clever dos Santos. Produção/Logística Romario Alves Vídeos RMXTXTURA Mateus Moura e Lucas Gouvea Projeto Gráfico Lucas Gouvêa Produção Gráfica Roberto Traplev Colaboradores //Armando Queiroz // Ateliê do Porto// A Casa – Laboratório de Permacultura Urbana // Celi Abdoral // Contra Corrente // Espaço Cultural Coisa de Negro // Felipe Fonseca //Fernando D’Pádua // Gil Vieira // Hugo Nascimento // Instituto Nangetu // Integra Belém // João Simões // Lorena Marín // Luah Sampaio // Lucia Gomes // Luiz Augusto Pinheiro Leal // Marie Ellen Sluis //Michele Campos // Pablo de Soto // PARACINE// Paulo Tavares //Radio Cipó Arte & Entretenimento// Ricardo Folhes // Roberto Traplev // Tatiana Wells // Vicente Franz Cecim // Yuri Barros // Fotografias Arthur Leandro, Giseli Vasconcelos, Bruna Suelen, Espaço Coisa de Negro, Fernando D’ Pádua, Fundação Lúcia Gomes, Isabela do Lago, Keila Sobral, Qualquer Quoletivo, Roberta Carvalho, Samir Raoni

FICHA TÉCNICA: IMERSIVAS

Direção/Produção Executiva GiseliVasconcelos Mediação ArthurLeandro Produção/Rede: TatianaWells FelipeFonseca JaderGama Colaboradores Parque dos Igarapés IAP - Instituto de Arte do Pará Casarão Cultural Floresta Sonora Casa Poraqué Produção/Logística BrunaSuelen Produção/Áudio Carlinhos Vas Produção/Experimentação/Videos qUALQUER qUOLETIVO: Lucas Gouvea, Mateus Moura, Maecio Monteiro, Luah Sampaio, Romario Alves, Icaro Gaya, Hugo Nascimento e Luiza Cabral Agradecimento Especial Edna Vasconcelos e Edineia Sindona, João Simões Tiragem 1000 exemplares

Decupagem/Transcrição Bruna Suelen e Ícaro Gaia Tradução Tatiana Wells Revisão Bruna Suelen, Erika Morhy, Ícaro Gaya

comumlab@gmail.com

ESTA É UMA OBRA DE FICÇÃO

QUALQUER COINCIDÊNCIA É MERA SEMELHANÇA

BELÉM - PARÁ - AMAZÔNIA - BRASIL - 2012

Copyleft: Esta obra é livre, você pode copiar, compartilhar e modificar sob os termos da Licença da ArteLivre 1.3

ESTA É UMA OBRA COLABORATIVA

ARTIGOS E IMAGENS DESTA PUBLICACÃO SÃO DE RESPONSABILIDADE DE SEUS RESPECTIVOS AUTORES — COPIE REMIX E REFERENCIE A FONTE

DISTRIBUIÇÃO GRATUITA


Nossa irRealidade sรณ se tornarรก Real quando o nosso Imaginรกrio a recriar, a nosso favor. Vicente Franz Cecim


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#Pr贸logo: Perigoso e Divertido


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