Capa: Bruno Silva Edição: Luceildo Guedes
Antologia Bruno Silva
SUMÁRIO Antológicos
Bucólico
Bruno
Cavalos-Marinhos
Marta
Andrômeda
Lorenzo
Quadra 20, Lote 7
Laura
O Monstro Sagrado
Martim
Irene
Bento e Eva
Febre
Maia
Rua da Aurora
Sophia
Nota I
Oliver
Nota sobre a Maré Viva
Angela
INK
Helena
10003100 DSC_0795. JPG 27/01/2014 04:09:17
Sarah Henrique Elisabeth Brisa Ana Ícaro Lucas Alice Frida e Miguel
Antologia
Esconso Letras
“Sabemos, um dia cessa. A guerra é finita. Um dia a voz sussurra, o olhar descansa e os lobos se abraçam. Um dia todo mundo é vencido pelo amor. Eles serão. Nós também”. - Yasmin Diniz, Quintas e Quartos
Este é Bruno. Bruno se sente invisível, e daqui consigo ver o quanto isso lhe rasga a cara e o quanto a lágrima é capaz de preencher. Parece com a dor de saber onde encontrar o céu e não saber como tocá-lo. Em dias passados uma mulher aparentemente cansada e desarrumada subiu no mesmo ônibus que ele. Ela sentou na escada, cobriu o
rosto e chorou. Chorou até ficar vermelha. Ela desceu em um parque da cidade. Bruno não entendeu o motivo do choro, mas entendeu o porquê do parque. Encontrei Bruno dentro de um corpo pagã. Havia uma ponte escura e rostos por todos os lados. Rostos de pessoas que já morreram, rostos dos que já se foram, mas que ainda vivem no abismo da lembrança. Bruno estava no canto, perto do peito. Ele sussurrava todas as poesias que conhecia como se fossem um sinalizador, ou uma oração para que alguém chegasse. Agarrei Bruno pelas pernas e vi que uma de suas pernas é maior que a outra, que um de seus braços é maior que o outro e que seus dedos são tortos. Desde então percebi o quanto a perfeição cansa e que talvez ela nem exista. Aos doze ele descobriu o medo por insetos e até hoje, quando todos os cômodos estão apagados ele procura um pequeno ponto de luz vindo pela falha da porta. Bruno viu uma mulher ser julgada por ser fiel ao seu amor próprio e viu um homem com seus trinta e poucos anos chorar pelos quatro cantos. O amor não cabe nas mãos de ninguém, ele só é visto nos olhos de quem ama. Já vi gente com a andrômeda na retina. O amor já me deixou de cama, me fez correr, parar e olhar. Já me deixou mudo, surdo e já me fez ter coragens absurdas. O amor é o que eu não sei explicar. É o que faz me manter de pé enquanto o campo minado destrói tudo. Já é verão. E quem anunciou a chegada foi o pássaro azul que deu vida a quem morria, a quem não sabia mais voar. Bruno fecha os olhos e um cavalo-marinho sopra que a maré está alta, que a praia é perigosa, que o mar é maior que o quintal, mas que ele não vai nadar sozinho.
09/12/14
Esta ĂŠ Marta. Choveu, os cachorros procuraram abrigo em quintais abertos, os vizinhos se recolheram, a rua foi lavada. A horta ficou encharcada. mas o sol irĂĄ voltar, ele sempre volta. Marta sorriu.
01/12/2014
Este é Lorenzo. Lorenzo acorda às seis da manhã e trabalha em um fórum separando documentos. Seus pais morreram. O tornado que atingiu a cidade matou todo mundo. Haviam corpos em tudo o que era lugar: nas placas de Boas-vindas, nos quintais alheios, nas portas e nos trilhos dos trens. As árvores racharam o chão. Tudo tinha cheiro de algo sem vida, ou que estava perdendo ela. Lorenzo guarda todas as notas que recebe dos supermercados, ele só percebeu isso quando
no final do mês jogou uma sacola cheia delas. Sua casa não é bonita, mas não há muita gente para reparar nisso. A cerca está torta e do portão só se escuta o ruído da TV sem sinal. Provavelmente Ele dormiu. 10/11/2014
Laura, "É na soma do teu olhar Que eu vou me conhecer inteiro Se nasci pra enfrentar o mar Ou faroleiro".
Este é Martim. Martim escreveu seu primeiro verso aos oito anos de idade. Falava sobre um garoto que aos oito anos de idade ainda se escondia embaixo da cama. Aquele era o melhor lugar que ele conhecia. Ele ouvia vozes distantes vindo da cozinha, passos vindo dos corredores e conseguia sentir o cheiro da sua própria poeira. Martim cresceu e ficou maior que a cama. Aos trinta anos Martim escreveu seu segundo verso sobre um garoto que aos oito anos de idade ainda se escondia embaixo da cama. Voltou a falar das vozes distantes que nem reconhece mais e dos passos arrogantes que agora vinham da rua e das estações de trem. Martim voltou a escrever sobre o cheiro da poeira que ainda é sua e que o tempo não levou. 03/11/2014
Estes são Bento e Eva. Eva entrou pela porta da frente, preferiu tirar os sapatos. Entrou sem se importar com a mancha de café esquecida na parede. sua visão se voltou ao que havia escrito no canto do quarto, quase apagado, mas que dizia: "Amo o teu sistema de vida e morte". Para Eva, Bento foi o abrir dos olhos de quem teve a última chance de olhar o mundo.
Para Bento, Eva era como os lençóis lavados uma vez na vida, mas que eram as únicas coisas limpas que ele conhecia. 22/10/14
Esta é Maia. Maia tem cheiro de eucalipto e sua respiração parece anunciar o maior choro que eu já vi na vida. Ela passa horas tentando imaginar como deve ser a visão de uma mosca e como ela enxerga um pé de ipê sendo visto por milhões de olhos.
Maia engoliu o mundo: os prédios, as cidades, os dias, as noites, as camas, os pisos, as faixas de pedestres e o lixeiro que joga guimbas de cigarro no chão. Ela me olha como se eu soubesse a cura. Ela me olha como se eu soubesse para onde ela deve ir e porque seus braços tímidos se escondem. 13/10/2014
Esta é Sophia. Sophia não gosta da imagem que o espelho reflete de sua face, mas gosta de se olhar em poças de lama. A cada chuva, ela ganha o mundo e o perdoa logo em seguida. A cada poça, ela consegue tocar seu próprio calcanhar, consegue rir do cenário e do rosto que a água suja insiste em comprovar que é imperfeito. Enquanto ela se olha, sem pressa, o vapor de sua imagem crua sobe aos céus e a nuvem que se forma não será passageira. Enquanto lava os pés sujos de lama, ela almeja que a rua não fique seca por muito tempo. 29/09/2014
Este é Oliver Oliver sonhou que um lírio branco brotava no ferimento de sua unha roída e que suas costas se abriam para que suas raízes não morressem. O sol entra pelas rachaduras do telhado, aquece o piso gelado e antecipa a primavera. 22/09/2014
"Angela, finalmente consegui comprar a bicicleta que nos faria conhecer metade do mundo. Depois de muito tempo consegui voltar na loja. A lembrança de te ver ali, parada, me quebraria as pernas. Eu te devo o mundo e o perdão por ele. Eu sei que você chorou quando fui embora. Eu tive a certeza disso quando me falaram que o seu
portão estava enferrujado. Ontem a loucura me fez ouvir tua voz doente. Abri os olhos, olhei para o chão e vi uma foto tua. Aquela do inverno passado. Desliguei a TV e voltei a dormir. Angela, troca o portão e faz o café que amanhã eu chego com a bicicleta que nos fará chorar de rir". Angela trocou o portão, fez o café, mexeu os pés e esperou. 15/09/2014
Esta é Helena. Helena não lembra qual a cor da roupa que usou ontem, não lembra o último filme que assistiu, mas acha que foi algum drama do seu diretor favorito.
Helena nunca entendeu as pessoas. Semana passada ela saiu arrumada e avisou que ia andar. Quando chegou, havia um aviso grudado na geladeira: "Helena, a cada dia que passa a sua loucura me espanta. Semana que vem nós iremos ao médico. A janta está pronta". Helena foi vista como louca porque saiu para andar. Mas se Helena saísse sem avisar e carregasse consigo alguns papéis e uma mochila, ela seria vista como uma mulher normal que saiu para resolver alguns problemas. Helena coleciona pedras. Pedras do mar ou pedras que ela encontra na rua. Ela começou a colecionar depois que perdeu a primeira pedra que encontrou. Era azul e ela dizia que certamente aquela era alguma joia ainda sem nome e que só ela tinha. Ela perdeu quando se mudou. Encontrei Helena numa tarde sem sentido. Seu cabelo tinha o cheiro da rua, a rua onde fica o meu lugar favorito de toda a cidade. Helena disse que precisava ir, Que as costas doíam, Que a mochila pesava E que estava cheia De pedras. 01/09/2014
Este é Henrique todos os rombos na parede do quarto falam de Henrique. o rombo que ele mesmo fez após chegar bêbado em casa e perceber que todos os seus amores nunca se findaram, e os rombos que o tempo fez sozinho e que ele faz questão de sentar no chão para imaginar figuras e sorrir para elas.
Henrique é dono do mar. hora mar de lembranças, outrora mar de lágrimas. ele sempre se afogou, mas nunca morreu. todas essas paisagens mórbidas, todos esses sinais de socorro que Henrique carrega nos olhos um dia já viram o amanhecer. um dia ele foi. 25/08/2014
Esta é Elisabeth. Elisabeth tem 28 anos, gosta de lírios, de ver os peixes nadando no aquário da sala, de assustar os peixes e de comer leite em pó. Sua palavra favorita é "ambíguo" e gosta da cor marrom.
Elisabeth sempre sonha com um abissal gigante. Ela sempre acorda chorando. Quase sempre a TV está ligada, ela se sente menos sozinha. Elisabeth tem medo do que nunca viu. O caderno acabou e Elisabeth saiu para comprar lírios. Não volta tão cedo. Mas quando voltar, espero que ela troque a água do aquário e tenha uma boa noite de sono. 18/08/2014
“Sarah, eu te amo e sinto a tua falta. Você se foi e até agora não encontrei meu programa favorito. Ninguém reclama mesa de jantar. Só você reclamava. Você rir? Sarah, você se foi e ninguém me acorda lembrar de ser feliz.
ninguém para reclamar do da forma como me sento na lembra quando me matou de cedo aos domingos para me
Volte quando puder. A casa ainda é sua, a eternidade ainda é nossa”.
Esta é Brisa. Brisa entrou pela porta, me agarrou pelos pés e pediu ajuda. Falou que segurou em pulsos apressados, que abraçou feridas,
que cantou para ouvidos surdos, que precisava de abrigo, mas não podia ficar. Levei Brisa para passear, ela chorou no meu ombro, me desejou boa sorte, bagunçou meu cabelo e se foi. Brisa só queria alguém para vê-la desaparecer e deixar como lembrança um frio na barriga. 04/08/2014
Esta é Ana. Ana gosta da cor da mesa da cozinha, Gosta do barulho que a louça faz quando ela arruma, E da caixinha de música que toca todas as vezes que o verde vira preto. Ana é como o quadro triste guardado na última gaveta,
Ê como a criança que acorda cedo no såbado para assistir seu desenho favorito. 28/07/2014
Este é Ícaro. Há um reino do outro lado da janela de Ícaro. Cavalarias destemidas e soldados de chumbo. Navios de papel navegando em mares feitos com poucos pingos de chuva e que cabem no buraco da calçada.
Lençóis viram castelos, galhos viram torres, Não há sinos para lembrar do tempo que corre feito rio. Só se escutam risos, Vida longa ao rei. 14/07/2014
Este é Lucas. Lucas inveja todas as pipas que dançam no céu mais de uma vez. Lucas, uma pipa que caiu numa mata fechada. Lucas é uma pipa que ninguém nunca foi pegar. 07/07/2014
Esta é Alice. Há um banheiro sujo, há restos de Alice no ralo Um desespero estranho, cheiro de vômito Quatro paredes frias, Dois olhos que gritam, Um pedido de socorro. 23/06/2014
Estes são Frida e Miguel. O retrato Ê de 1993, um ano antes de Miguel entrar em alto-mar Miguel nunca mais voltou. Hoje, vinte anos depois, Frida arruma a sala e as lembranças. Feridas expostas. Miguel virou mar, E a saudade um barquinho de papel. 16/06/2014
CAVALOS-MARINHOS lagartas e suas metamorfoses numa árvore velha no quintal aguardam as badaladas do sino da aurora. libélulas no varal implorando por mais 24 horas de vida, pares de asas secando ao sol das 17:00 horas. larvas abrindo feridas em um corpo que sorri ao lado do sanitário. um grito em cada tentativa de levantar. esqueceram de apanhar o jornal, o vento espalhou pela casa notícias que não falam da tua paz, nem da tua respiração quase morta. ignora os versos sujos, te escrevo com a cara limpa, com as coxas frias e com os joelhos que nunca esqueceram o caminho até a sua casa. todas as músicas bonitas que eu conheço falam de ti. algumas me fazem te procurar para assistir a sua essência rara e lembrar da primeira vez que beijei seus pés. “- ei, olha só o que eu achei: cavalos-marinhos”. logo em seguida, me abraçou e contou das chuvas. segura nas minhas pernas que não sabem para onde vão e diz que o segredo é ir, e que o mar é o céu de quem não consegue olhar para cima.
ANDRÔMEDA os espirais reluzentes que carregas na retina são como vagalumes pairando o céu de agosto. crateras inflamadas nas costas de um corpo celeste que dorme em um manto azul almejando não virar pó do que o feriu. cosmos rasurados nos quatro cantos do quintal, nos quatro cantos dos meus piores poemas, nas lacunas do nosso cenário, e no teu ombro vermelho com o peso do dia. nossa batalha ganha só é vista do alto, nossos pontos se ligam, nossas mãos se abraçam e não somos cadentes.
Quadra 20, Lote 7 "o amor comeu minha paz e minha guerra. o meu dia e minha noite. meu inverno e meu verão. comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte". o que sobrou do céu quando a sua máquina de escrever sorriu e a gargalhada te deixou surda? eu pude ouvir teu choro, cantar no teu ouvido e limpar seu rosto em carne viva. em dias passados o teto chorou, achei que fosse desabar. tinha sal nas cobertas, um monstro embaixo da cama e o chão parecia um buraco negro que eu mesmo fiz com as mãos. te fiz lembrar das suas quintas-feiras e você não me disse adeus. coloquei ácido na tua ferida protegida por um titã e você me olhou desnorteada. tão pequena, tão cansada, e com os braços maior que todas as ruas da cidade. ruas que você se esquece, ruas que eu invejo. um dia seu ombro ficará roxo, irei pedir perdão e estender a mão suja de sangue. eu te amo por todas as pipas azuis que nós nunca soltamos, e por todo o tempo do mundo que nós ainda temos.
O MONSTRO SAGRADO rascunhos abstratos de desenhos sorridentes gritam embaixo da cama com as mãos nos ouvidos. poeira ácida de quatro paredes com olhos de sangue e trechos de nós. olhando daqui, existe um pequeno intervalo de tempo entre te escrever e apagar a luz, e certamente seu punho fechado seja o melhor lugar para descansar. teu silêncio é quase maior que os teus braços e teus olhos de quem quase tudo viu sentem fome do teu azul particular. nossos medos secretos nos fazem dormir em camas frias e acordar sozinhos procurando um norte. sinto que vou ser engolido por todos os monstros que me fazem vomitar palavras que eu nunca disse e pelo medo quase secreto de te ver sem rumo. nossas costelas doem, nosso asma quase mata nossas borboletas. se me encontrar por ai carregando as mesmas dores e de cabeça baixa, canta aquela canção que me fez levantar e fechar a torneira para que sua voz não disputasse espaço com um barulho solitário de uma gota caindo.
Irene, A onda acabou com a casa, com o terreno, com as árvores, com as antenas de rádio e com as paradas de ônibus. A sala não existe mais, a minha cadeira não existe mais, a tua cadeira não existe mais, e pelo visto nem eu existo mais. Ninguém mais senta na praça, Irene. Aquilo virou um vazio igual a tua falta. Igual aquela triste cena da estrada te engolindo aos poucos. A tua poeira alérgica matou os nossos futuros fins de semana, me fez esquecer os nomes das nossas futuras crianças e agora tenho medo da velhice. O teu egoísmo me roubou a visão, Irene. A minha covardia não me deixou ver tudo isso com os olhos abertos. Fechar o olho dói, faz a cegueira rir numa caverna escura e o eco me acorda todos os dias. Os pássaros que tu alimentavas procuraram um norte melhor. Eles fizeram o que eu sempre quis fazer, mas desde que você foi embora eu sou pássaro morto observando os pontos pairando o céu e percebo que eles não voltam no final da tarde. Nossos amigos perguntam por onde você anda, sempre falo que você saiu para conhecer o mundo e que finalmente vai pisar na Índia. Eles arregalam os olhos e dizem que você deve estar se sentindo realizada. Por algumas noites a minha própria mentira me iludiu. Que fim levou o teu caderno de rabiscos aleatórios? Talvez o sentido da vida estivesse lá e eu nunca percebi. Que fim levou aquela fotografia grudada na porta da geladeira? Era 1995 e eu pedi pra você sorrir. Você sorriu e ele foi o sol de todas as estações que passamos juntos. Mudamos de geladeira algumas vezes, a fotografia ficou mais frágil, seu cabelo ficou mais curto, vieram as primeiras rugas no canto dos olhos, mas o teu sorriso estático ainda ilumina uma grande parte da cozinha que antes era branca. Tuas manias ainda são as mesmas, Irene? Ainda lava os pés antes de dormir? Tua gargalhada era mais alta que o som dos carros, o teu choro calava todos os cômodos. Foi por você que eu caminhei somente com a roupa do corpo, e graças a você eu entendi que a vida não é como eu imaginava, muito menos como você queria que fosse. Foi contigo que aprendi que deus é o que nos faz chegar em casa. Tomei gosto por sair aos sábados, Irene. Sempre depois do trabalho. Vejo todas aquelas luzes e me pergunto se alguma delas atinge a tua retina. A resposta chega quando vejo onde elas morrem. Meus amigos mudaram de cargo, estão mais ocupados. Semana passada conheci Iolanda em um bar que eu jamais te levaria. Iolanda era loira, aparentava ter uns trinta anos e fumava. Transamos no banheiro do bar. Me senti mais homem e menos humano. Voltei pra casa mais sujo que a marca de sexo ruim que deixamos no azulejo do banheiro. Irene, o vento soprou forte, meus olhos não te alcançam mais. A vida desviou o meu caminho do teu e sujou a calçada que havíamos feito para assistirmos o que nunca deveríamos ser. Irene, a vida continuou a partir do momento em que eu gritei o teu nome por todos os lugares que andei. A cidade me olhou com pena e ninguém gritou de volta. Desde então percebi o quanto teu nome é triste. Todos os cheiros que eu conhecia se foram junto aos teus vestidos. Irene, Escrevo para lembrar-te do que ficou para trás: Nós. O tempo fará de mim um bom campo para o teu pouso. Voa em paz e sem nós na garganta. Com amor e sem mágoas
Febre há um corvo comendo meu cérebro enquanto espero o remédio para dor de cabeça fazer efeito. feito um urubu faminto pousado numa cerca farpada debaixo do sol escaldante esperando minha morte súbita. a insônia voltou e a hemorragia nos olhos me faz ter medo de olhar para os dedos enquanto arrumo os antigos sapatos. lembro dos calendários que já joguei fora e choro calado enquanto sozinho lavo a louça do jantar. os cavalos-marinhos que desenhei na palma da mão ainda respiram, e se abraçam como se soubessem que a vida, depois daquilo, fosse como morrer num aquário de água suja. as canções que ensaio nas vésperas da loucura me furaram os pulmões e o eco de outrora era meu. a solidão é um uirapuru preso há mais de vinte anos. talvez o amor seja como aquela penumbra que se faz embaixo da porta da frente quando toda a casa está vazia e que se torna o único ponto de luz pra quem tem medo do escuro. a febre que me desarma é a mesma que me faz limpar o calcanhar para celebrar o sol que chega.
Rua da Aurora você não coube nos céus e os deuses que nós dois conhecemos cuidaram da sua queda com as mãos de quem segura a última estrela que escolheu brilhar na calçada do Marco Zero. tuas malas foram um dos maiores pesos que eu já imaginei alguém carregando numa avenida lotada de tantos ombros e costas cheias de tantas estradas. talvez pelo zíper aberto, talvez por avistar um pedaço da planta que te fez quebrar o vidro da janela para observar uma vida que se move e o vento que te fazia sorrir sem querer nada em troca. nosso acaso não coube na sacola de supermercado que você usou para carregar a carta que me mandou um dia. e é por isso que você o carrega no âmago. assim como eu. e pelo o que eu te conheço, a eternidade vai além dessa vida que voa, dessa vida que pousa e da vida que nos encontramos. sei que teu passo é lento, mas não sei o jeito do teu caminhar. teus sonhos ainda moram em ti, eu sei. o teu choro me fez querer proteger a tua casa erguida sobre pilares de sal. desfiz o teu telhado pra te olhar de cima e a primeira coisa que encontrei foi o teu esconderijo.
NOTA I O último pássaro do bando É sempre o meu favorito. Ele voa sem pressa. Ele sabe voar.
NOTA SOBRE A MARÉ VIVA vi uma foto tua diante do mar, a tua forma de se manter de pé era tão bonita... ele te olhou por tanto tempo... até ver o que não queria, até ver o que ninguém viu. você voltou pra casa sendo a única testemunha da maré bonita que ele fez em teu nome.
INK o céu borrou a tela em branco, a tua visão deitou-se numa mancha de tinta que nunca saiu do teu colchão. o sol do teu sorriso nasceu no meio de uma madrugada e a vida voltou a crescer dentro de um jarro com terra. tua raiz me agarrou pelo pulso, teu tronco me serviu de ponte, teu fruto me falou sobre o mar, e disse que posso ser rei. você me fez correr para longe, me fez voltar e juntar as folhas mortas que o vento forte esqueceu, que a chuva forte não levou. a tua desgraça me lembra a minha. sei que a tua loucura é o que te move, é o que te deixa imóvel na cama por dois dias. ou mais. é o que te faz sair de casa para ver se o mundo é realmente aquele que você assiste pela janela, é o que te faz ficar em casa por sentir desgosto do que viu. você soube o que fazer com a árvore rosa que ainda faz um barulho bonito quando o vento dos teus cabelos vermelhos atinge a vida que nasceu em um dia de paz. vejo o passado e sinto a necessidade de ter te conhecido antes. onde você estava quando quase morri de pneumonia? vejo algumas das tuas fotos quando criança e imagino você aprendendo a andar de bicicleta na mesma calçada que a sua avó vez ou outra toma sol. me pergunto como você se vestia, me pergunto se você também se escondia das pessoas, se o seu maior sonho também era ter uma casa na árvore. me pergunto como era a tua vida quando não havia problemas em andar de pés descalços em um pedaço de terra que um dia vai te engolir. percebo que o azul da tua aquarela é sempre a primeira cor a acabar. amo a tua facilidade em pintar um céu escuro e ele não parecer triste.
eu pude amar a andrômeda estendida no teu varal, e os poemas bonitos que você tanto esconde na parede de jornal cheia de notícias de ontem. pude amar o piso gasto pelos rastros de quem já se foi, de quem já voltou e de quem nunca soube o caminho de volta. é domingo, a tua cidade continua suja, os muros gritam pelas bocas caladas. é domingo e o último colibri faz um ninho na tua coroa de flores.
10003100 27/O1/2014
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talvez sejamos um retrato, ou a explicação do retrato que eu nunca entendi. talvez sejamos os invernos passados, ou todos os verões que já fizemos um pelo outro. talvez sejamos a tua letra vista uma única vez, ou a poesia que você escreve quando perde o sono. talvez sejamos o silêncio mórbido do dia oito, ou reflexo que a lua fez no mesmo dia. talvez sejamos a ausência, ou os vestígios que guardamos do que ainda respira calado. talvez sejamos o que eu não sei, o que eu nunca vou saber ou o que eu me atrevo a escrever. você fica absurdamente lindo com os olhos cheios.
ANTOLOGIA Era 1994, minha mãe me segurava nos braços enquanto meu pai segurava minhas pernas. Nós três. Perto da mesa. Era meu aniversário de um ano e eu não fazia ideia do que estava acontecendo. Na foto, grande parte dos rostos dos convidados ainda são familiares. Os rumos não. Eles mudaram de casa e as companhias não fazem mais o mesmo som. Aos vinte sentei numa mesa com meus pais para ser testemunha de algo que já não existia mais. O cenário me deixou um nó permanente no estômago, mas jamais vomitei os almoços em família. Existe uma foto minha com o dedo no nariz enquanto minha avó fazia uma cara de nojo. Era meu aniversário de seis e tudo o que eu queria era um pedaço do bolo. Aos vinte refiz a cena para ela e ela disse que cresci rápido demais. Aos dezoito ganhei uma carta da turma da escola e uma festa surpresa feita por familiares e amigos. Hoje, se eu pudesse repetir uma única cena de toda a festa, seria a do meu pai dançando na sala. Aos vinte vi uma sala vazia sendo engolida pelo eco do nunca mais. Aos dezenove meu pai trabalhava, meus irmãos dormiam e minha mãe estava lá, perto da mesa, com um bolo pequeno e uma vela maior que ele. Ela cantou os parabéns inteiro e ficou muito mais linda com os olhos cheios de lágrimas. Aos vinte recebi uma ligação dela. Ela disse: “Esse vai ser o primeiro aniversário que eu não vou saber como tu vai acordar”. Aos vinte entendi o porquê dos cavalos-marinhos e ninguém nunca vai saber a minha reação diante da resposta. Aos vinte sonhei que era engolido por um abissal gigante e que virava pó dentro do estômago dele. Aos vinte cruzei a cidade, estacionei na casa azul e ainda não andei de trem. Ao longo dos anos conheci pessoas que levarei por toda a eternidade. Pude amar cada uma delas, suas imperfeições e tudo mais. Aos vinte vi o quanto é difícil sair de casa, por mais que ela não seja sua. Trago comigo todas as mãos estendidas que já encontrei nas ruas, todos os muros bombardeados com flores feitas de tinta. Aos vinte cantei tão alto, mas tão alto que o meu próprio som me deixou de cama. Aos vinte fui esquecido e isso me fez saber que eu também havia me esquecido. Aos vinte tive a certeza que vou morrer sem respostas. Aos vinte escrevi tudo o que ninguém tinha coragem de ler nos meus olhos e desenhei grande parte do que há em mim. Em nós. Aos vinte vejo todos os desenhos no canto do quarto, finalmente mexendo os pés.
“quando chove na cidade eu lembro de você daquela vez que caiu o céu e eu te coloquei debaixo de mim” - Vanguart, Demorou pra ser
eu aceitei a sua doen莽a sem saber quem de n贸s dois ela mataria primeiro.
Like a virus.
“Amo teu sistema de vida e morte�.