O perseguidor - Cortazar trecho

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o perseguidor Julio Cortázar

ilustrações José Muñoz tradução

Sebastião Uchoa Leite

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In memoriam Ch. P.


Sê fiel até a morte Apocalipse, II,10 O make me a mask Dylan Thomas

Dédée ligou pra mim à tarde dizendo que Johnny não estava passando bem, e fui logo direto ao hotel. Há vários dias que Johnny e Dédée estão morando num hotel da Rue Lagrange, num apartamento de uma só peça do quarto andar. Bastou-me ver a porta do aposento para perceber logo que Johnny está na pior das misérias: a janela dá para um pátio quase negro, e à uma da tarde é preciso ter a luz acesa, caso se queira ler o jornal ou enxergar a cara do outro. Não faz frio, mas encontrei Johnny enrolado num cobertor felpudo, encaixado numa poltrona estragada que solta pedaços de estopa amarelecida por todos os lados. Dédée está envelhecida, e o vestido vermelho lhe cai muito mal; é um vestido para o trabalho, para as luzes da cena. Nesse quarto de hotel converte-se numa espécie de coágulo repugnante. – O companheiro Bruno é fiel como o mau hálito – disse Johnny à guisa de saudação, subindo os joelhos até neles apoiar o queixo. Dédée me passou uma cadeira e eu tirei um maço de Gauloises. Trazia um frasco de rum no bolso, mas não quis mos-

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trar logo até ter uma ideia do que se passa. Creio que o mais irritante era a lâmpada com seu olho arrancado suspenso do fio sujo de moscas. Depois de espiá-la uma ou duas vezes, colocando a mão em quebra-luz, perguntei a Dédée se não podíamos apagar a lâmpada e contentar-nos com a luz da janela. Johnny seguia as minhas palavras e gestos com uma grande atenção distraída, como um gato que olha fixamente mas que se vê que está completamente noutra; que é outra coisa. Finalmente Dédée se levantou e apagou a luz. No que restava, uma mistura de gris e negro, nos reconhecemos melhor. Johnny tirou uma das suas enormes mãos magras debaixo do cobertor e pude notar a flácida tibieza da sua pele. Então Dédée disse que ia preparar uns nescafés. Fiquei contente em saber que pelo menos têm uma lata de nescafé. Sempre que uma pessoa tem uma lata de nescafé concluo que não está na última das misérias; ainda pode resistir um pouco. – Faz algum tempo que a gente não se vê – disse eu a Johnny. – Um mês pelo menos. – Você não faz outra coisa senão contar o tempo – respondeu mal-humorado. – O primeiro, o dois, o três, o vinte e um. Em tudo pões um número, tudo. E essa aí é a mesma coisa. Sabe por que está furiosa? Porque perdi o sax. Tem razão, no fim das contas. – Como você pôde perdê-lo? – perguntei, sabendo na mesma hora que era justamente o que não se pode perguntar a Johnny. – No metrô – respondeu Johnny. – Para maior segurança eu tinha colocado ele sob o assento. Era magnífico viajar sabendo que o tinha debaixo das pernas, bem seguro. – Só notou quando estava subindo a escada do hotel – disse

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Dédée, com a voz um pouco áspera. – E eu tive que sair feito uma

– Não sei. Hoje, eu acho, hein, Dédée?

louca para avisar lá no metrô, na polícia.

– Não, depois de amanhã.

Pelo silêncio que se seguiu percebi que tinha sido tempo per-

– Todo mundo sabe as datas, menos eu – resmunga Johnny,

dido. Mas Johnny começou a rir como faz sempre, com um riso

tapando-se até às orelhas com a coberta. – Eu jurava que era esta

por trás dos dentes e dos lábios.

noite e que hoje à tarde tinha de ir ensaiar.

– Algum pobre coitado deve estar tentando arrancar algum

– Tanto faz – disse Dédée. – A questão é que não tens um sax.

som dele – disse. – Era um dos piores saxes que já tive. Estava-

– Como tanto faz? Não é a mesma coisa. Depois de amanhã é

-se vendo que Doc Rodríguez tinha tocado nele, estava comple-

depois de amanhã, e amanhã é muito depois de hoje. E hoje mes-

tamente deformado pelo lado da alma. Como instrumento em si

mo é bastante depois de agora, quando estamos papeando com o

não era mau, mas Rodríguez é capaz de estragar um Stradivarius

companheiro Bruno, e eu me sentiria muito melhor se pudesse

só tentando afiná-lo.

esquecer um pouco o tempo e beber alguma coisa quente.

– E não pode arranjar outro?

— A água já vai ferver, espere um pouco.

– É o que estamos investigando – disse Dédée. – Parece que

– Não me referia ao calor pela ebulição – disse Johnny. Aí pu-

Rory Friend tem um. O pior é que o contrato de Johnny… – O contrato – arremedou Johnny. – Que interessa o contrato?

xei o frasco de rum e foi como se acendêssemos a luz, pois Johnny abriu a boca de par em par, maravilhado, e seus dentes se puse-

Tenho de tocar e acabou-se, e não tenho sax nem dinheiro para

ram a brilhar, e até Dédée teve que sorrir ao vê-lo tão assombrado

comprar um, e os rapazes estão na mesma.

e contente. O rum com o nescafé não estava de todo mau, e nós

Essa última afirmativa não é certa, e nós três sabemos disso.

três nos sentimos muito melhor depois do segundo trago e de um

Ninguém se atreve mais a emprestar um instrumento a Johnny,

cigarro. Naquela altura eu já tinha advertido que Johnny se re-

porque ou perde ou acaba com ele logo depois. Perdeu o sax de

traía pouco a pouco e que continuava fazendo alusões ao tempo,

Louis Rolling em Bordeaux, quebrou em três pedaços, pisando

tema que o preocupa desde que o conheço. Vi poucos homens tão

em cima e batendo, o sax que Dédée tinha comprado quando o

preocupados com tudo que se refere ao tempo. É uma mania, a

contrataram para uma excursão pela Inglaterra. Ninguém sabe

pior das suas manias, que são tantas. Mas ele a desenvolve e a ex-

mais quantos instrumentos já perdeu, empenhou ou quebrou. E

plica com uma graça a que poucos podem resistir. Lembrei-me de

neles todos tocava como creio que apenas um deus pode tocar

um ensaio antes de uma gravação, em Cincinnati, e isso foi muito

um sax-alto, supondo que tenham renunciado às liras e flautas.

antes de vir a Paris, em 49 ou 50. Johnny estava em grande forma

– Quando você começa, Johnny?

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naqueles dias, e eu tinha ido ao ensaio para escutá-lo, apenas, a

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ele e também a Miles Davis. Todos tinham vontade de tocar, estavam satisfeitos, andavam bem-vestidos (lembro-me disso talvez por contraste, pelo fato de Johnny andar agora tão mal vestido e sujo), tocavam com gosto, sem nenhuma impaciência, e o técnico de som fazia sinais de contentamento por trás da sua janelinha, como um babuíno satisfeito. E justamente nesse momento, quando Johnny estava como que perdido na sua alegria, de repente deixou de tocar e, dando um murro não sei em quem, disse: “Isso eu estou tocando amanhã”, e os rapazes ficaram perturbados, apenas dois ou três continuaram uns compassos, como um trem que demora a frear, e Johnny batia na testa e repetia: “Isso eu já toquei amanhã, é horrível, Miles, isso eu já toquei amanhã”, e não conseguiam fazê-lo sair disso, e a partir daí tudo andou mal, Johnny tocava sem vontade e desejando ir embora (para drogar-se outra vez, disse o técnico de som, morto de raiva), e quando o vi sair, cambaleando e com a cara cinzenta, perguntei a mim mesmo se aquilo ainda ia durar muito tempo. – Acho que vou chamar o doutor Bernard – disse Dédée, olhando de viés para Johnny, que bebe o seu rum a pequenos goles. – Estás com febre e não comes nada. – O doutor Bernard é um triste idiota – disse Johnny, lambendo o seu copo. – Vai me dar umas aspirinas e depois dirá que gosta muitíssimo de jazz, por exemplo, Ray Noble. Imagina, Bruno. Se eu tivesse o sax o receberia com uma música que faria ele baixar de volta os quatro andares com a bunda batendo em cada degrau. – De qualquer maneira não te fará mal nenhum tomar as aspirinas – eu disse, olhando de viés para Dédée. — Se você

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quiser, telefonarei quando sair, assim Dédée não tem que des-

beça com o punho cerrado. A cabeça soa para ele como se fosse

cer. Escuta aqui, mas esse contrato… Se você começa depois

um coco.

de amanhã, creio que se poderá fazer alguma coisa. Também

– Não há nada aqui dentro, Bruno, nada do que se diz. Isto não

posso tratar de arrancar um sax de Rory Friend. E na pior das

pensa nem entende nada. Nunca me fez falta, pra te dizer a ver-

hipóteses… A questão é que você vai ter que andar com mais

dade. Começo a entender dos olhos para baixo, e quanto mais bai-

cuidado, Johnny.

xo, melhor entendo. Mas não é realmente entender, nisso estou

– Hoje não – disse Johnny fitando o frasco de rum. – Amanhã, quando tiver o sax. De modo que não há por que falar disso agora. Bruno, cada vez mais percebo melhor que o tempo… Acho que

de acordo. – Vai aumentar tua febre — resmungou Dédée do fundo do aposento.

a música ajuda sempre a compreender um pouco esse assunto.

– Oh, cala tua boca. É verdade, Bruno. Nunca pensei em nada,

Bom, não a compreender, porque a verdade é que não compreen-

somente de súbito me dou conta do que pensei, mas isso não tem

do nada. A única coisa que faço é perceber que existe algo. Como

graça, não é mesmo? Que graça tem perceber que se pensou algo?

esses sonhos, não é mesmo?, em que se começa a suspeitar que

Nesse caso tanto faz que tu pensasses ou qualquer outro. Não sou

tudo vai se perder, e se tem um pouco de medo antecipado; mas

eu, eu. Simplesmente tiro proveito do que penso, mas sempre

ao mesmo tempo não se está nada seguro e de repente tudo dá

depois, e é isso o que não aguento. Ah, é difícil, é tão difícil… Não

uma reviravolta como uma panqueca e você está deitado com

sobrou nem um trago?

uma garota maravilhosa e tudo é divinamente perfeito.

Dei-lhe as últimas gotas de rum, justamente quando Dédée

Dédée está lavando as xícaras e os copos num canto do quar-

voltava a acender a luz; já quase não se enxergava nada no quarto.

to. Percebi que nem sequer têm água corrente no quarto; vejo

Johnny está suando, mas continua enrolado na coberta, e de vez

uma bacia com flores rosadas e uma jarra que me faz pensar num

em quando estremece e faz a poltrona estalar.

animal embalsamado. E Johnny continua falando com a boca

– Percebi quando era muito pequeno, quase depois de apren-

meio tapada pelo cobertor, e ele também parece um animal em-

der a tocar o sax. Lá em casa sempre tinha uma zorra danada, e

balsamado com os joelhos contra o queixo e sua cara negra e lisa

não se falava de outra coisa senão de dívidas, de hipotecas. Sabe

que o rum e a febre começam a umedecer pouco a pouco.

o que é uma hipoteca? Deve ser algo terrível, porque a velha

– Li algumas coisas sobre tudo isso, Bruno. É muito esquisito,

arrancava os cabelos toda vez que o velho falava da hipoteca, e

e na realidade tão difícil… Acho que a música ajuda, sabe? Não a

acabavam aos bofetes. Eu tinha treze anos… mas você já ouviu

entender, porque na realidade não entendo nada. – Bate na ca-

tudo isso.

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Ora, se já ouvi. Ora se já não tratei de escrever isso muito bem e veridicamente na minha biografia de Johnny. – Por isso lá em casa o tempo não acabava nunca, sabe? De briga em briga, quase sem comer. E para cúmulo tinha a religião, ah, isso você não pode nem imaginar. Quando o professor me arranjou um sax que você morreria de rir se visse, aí creio que percebi logo em seguida. A música me tirava fora do tempo, embora isso não seja mais do que uma maneira de dizer. Se queres saber o que realmente sinto, acho que a música me metia dentro do tempo. Mas aí é preciso acreditar que esse tempo não tem nada a ver com… bom, com a gente, por assim dizer. Como há tempos conheço as alucinações de Johnny, de todos que têm uma vida como a dele, escuto-o atentamente mas sem me preocupar demais com o que diz. Em compensação fico pensando como terá conseguido a droga em Paris. Terei que interrogar Dédée, suprimir sua possível cumplicidade. Johnny não vai poder resistir muito tempo nesse estado. Penso na música que se está perdendo, nas dúzias de gravações em que Johnny poderia continuar marcando essa presença, esse avanço assombroso que tem em relação a qualquer outro músico. “Isso estou tocando amanhã” se enche de súbito de um sentido claríssimo para mim, porque Johnny sempre estará tocando amanhã e o resto vem a reboque, neste hoje que ele salta sem esforço com as primeiras notas da sua música. Sou um crítico de jazz bastante sensível para compreender as minhas limitações, e percebo que o que estou pensando está abaixo do plano em que o pobre Johnny trata de avançar com as suas frases truncadas, seus suspiros, suas raivas súbitas e seus choros.

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A ele não interessa nem um pouco que eu o ache genial, e nunca se

gião existiam quando eu deixava de tocar e a velha entrava com o

envaideceu de sua música estar muito além da que os seus compa-

cabelo caindo em grandes mechas e se queixava de que eu estava es-

nheiros tocam. Penso melancolicamente que ele está no princípio

tourando os ouvidos dela com essa-música-do-diabo.

do seu sax enquanto eu vivo obrigado a me conformar com o final. Ele é a boca e eu a orelha, isso pra não dizer que ele é a boca e eu…

Dédée trouxe outra xícara de nescafé, mas Johnny contempla tristemente o seu copo vazio.

Todo crítico, aí, é o triste final de algo que começou como sabor,

– Essa história de tempo é complicada, me agarra por todos os

como delícia de morder e mascar. E a boca se move outra vez, gulo-

lados. Começo a perceber pouco a pouco que o tempo não é como

samente a grande língua de Johnny recolhe um esguichozinho de

uma bolsa que se recheia. Quer dizer, ainda que se troque o recheio,

saliva dos lábios. As mãos fazem um desenho no ar.

na bolsa só cabe uma quantidade e acabou-se. Estás vendo a minha

– Bruno, se um dia você pudesse escrever isso… Não por mim,

valise, Bruno? Cabem duas roupas e dois pares de sapatos. Bom, ima-

entende, a mim não interessa. Mas deve ser bonito, eu sinto que

gine agora que vai esvaziá-la e depois colocar de novo as duas roupas

deve ser bonito. Estava te dizendo que quando comecei a tocar, em

e os dois pares de sapatos, e aí você percebe que só cabem uma roupa

criança, percebi que o tempo mudava. Contei isso uma vez a Jim e

e um par de sapatos. Mas o melhor não é isso. O melhor é quando você

ele me disse que todo mundo sente a mesma coisa, e que quando

percebe que pode meter uma loja inteira dentro da valise, centenas e

alguém se abstrai… Disse assim, quando alguém se abstrai. Mas não,

centenas de roupas, como eu meto a música no tempo quando estou

eu não me abstraio quando toco. Só que troco de lugar. É como num

tocando, às vezes. A música e o que penso quando viajo no metrô.

elevador, tu estás num elevador falando com os outros, e não sentes

– Quando viaja no metrô!

nada estranho, e entretanto vai passando o primeiro andar, o déci-

– Eh, aí é que está o negócio – disse Johnny astuciosamente. –

mo, o vinte e um, e a cidade ficou lá em baixo, e estás terminando a

O metrô é uma grande invenção, Bruno. Viajando no metrô você

frase que começaste ao entrar, e entre as primeiras palavras e as úl-

percebe tudo o que poderia caber na valise. Vai ver que não perdi

timas há cinquenta e dois andares. Percebi quando comecei a tocar

o sax no metrô, vai ver que…

que entrava num elevador, mas era um elevador de tempo, se é que

Desanda a rir, tosse, e Dédée o observa inquieta. Mas ele não

posso te explicar assim. Não pense que eu me esquecia da hipoteca

faz gestos, ri e tosse misturando tudo, sacudindo-se debaixo da

ou da religião. Só que nesses momentos a hipoteca e a religião eram

coberta como um chimpanzé. As lágrimas lhe escorrem e ele as

como a roupa que não se vestiu; sei que ela está no guarda-roupa,

bebe, sempre rindo.

mas você não vai me dizer que essa roupa existe neste momento.

– Melhor é não confundir as coisas – diz depois de algum tempo. –

A roupa existe quando estou vestido com ela, e a hipoteca e a reli-

Perdi e acabou-se. Mas o metrô me serviu para perceber o truque da

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