Rio Claro
RAILWAY
do sucateamento à esperança
“
Por: Antonio Archangelo Fotos: Diga Xis / Arquivo Municipal
Assim que o trem voltar a funcionar, iremos para Campinas, passear. Você vai ver como é gostoso”, disse Lourdes Machado, ao olhar nos olhos da neta de quatro anos em frente à antiga Estação Ferroviária de Rio Claro.
Desde a última viagem de passageiros, datada de 1998, são duas décadas de espera para que o rio-clarense volte a contar com o transporte ferroviário. De lá para cá, a situação da malha paulista é um grande vazio urbano para cidades que se consolidaram com a chegada da ferrovia, problema que vem sendo enfrentado por municípios, no que diz respeito à retirada de trilhos sem utilidade dos centros urbanos.
Barracões da Companhia Paulista no coração de Rio Claro 110
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Antiga estação de Rio Claro em 1.882
Vagão dormitório feito em Rio Claro
Rio Claro – A expansão ferroviária ao Sertão do Morro Azul
Inauguração da Estação Ferroviária de Rio Claro, imagem anterior a 1882 Locomotiva da Companhia Paulista
A primeira ferrovia do Estado de São Paulo começou a operar há mais de 140 anos, em 1867. A São Paulo Railway Company, que fazia a ligação entre os municípios do interior do Estado, onde se localizavam as fazendas de café — passando pela capital paulista e as cidades do ABC — e o porto de Santos, onde os grãos eram exportados. De acordo com Célio Debes, um dos fundadores da Academia Paulista de Letras, a “linha da Companhia Paulista de Estradas de Ferro de Jundiaí a Campinas foi inaugurada em 11 de agosto de 1872”, porém a via férrea foi originariamente projetada, desde o início de sua cogitação, para chegar até Rio Claro e atender os influentes fazendeiros do sertão do Morro Azul. The Rio Claro São Paulo Railway Company
Primeira locomotiva elétrica brasileira 112
O êxito de ambos os empreendimentos citados permitiu a conquista de rica zona agrícola, bem como ensejaria as inaugurações da linha até Rio Claro em 11 de agosto de 1876 e do ramal de Mogi Gua-
Vagão especial fabricado em Rio Claro para transportar o Rei Alberto da Bélgica
çu até Porto Ferreira, em 1880. Foi construída, posteriormente, uma ferrovia, de bitola estreita, ligando-a a Araraquara, sob a denominação de Estrada de Ferro São Carlos do Pinhal, conhecida por Estrada Rio Claro, em 1883. No ano seguinte, a Estrada Rio Claro foi vendida a uma empresa inglesa e passou a chamar-se The Rio Claro São Paulo Railway Company. “Tornava-se, em decorrência, menos fácil a aspiração de avanço da Paulista. A importância daquela estrada ganhava, dia a dia, maior relevo diante do interesse de outras ferrovias (Mojiana e Ituana) em ligar suas linhas à dela. À vista dessa realidade, a Paulista, que deixara de efetuar a fusão – sua diretoria, equivocadamente, considerara o valor das ações da Rio Claro inferior ao das suas – acaba comprando a The Rio Claro, arcando com elevado custo (1892), agravado pela periclitante situação econômico-financeira gerada pelo encilhamento. Mesmo assim, realizou a transação, vantajosa a longo prazo. Graças a essa aquisição, pôde expandir suas linhas em direção, num sentido, às barrancas do Rio Grande, nas divisas com Minas Gerais, e noutro, progressivamente, às margens do Rio Paraná, nas lindes com Mato Grosso”, cita o autor. 113
Estação Ferroviária de Rio Claro da década de 20
Edmundo Navarro de Andrade
Vagão gaiola utilizado para transporte de gado
Carro feito na Companhia Paulista de Rio Claro para viagem do Rei Alberto, da Bélgica
Oficina da Companhia Paulista – sala das turbinas
Antigo vagão de inspeção
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Com a compra da Estrada Rio Claro, a Companhia Paulista teve que enfrentar problemas advindos com a I Guerra Mundial (191418), sobretudo em relação à importação, da Inglaterra, de carvão, o combustível que acionava suas composições. É neste contexto que o nome da cidade de Rio Claro é novamente estampado na história da ferrovia brasileira. O problema foi contornado “graças à perspicácia de Navarro de Andrade, um funcionário categorizado que, prevendo a deflagração do conflito, bem antes de sua eclosão, levou a estrada a criar hortos florestais. Com a introdução neles do eucalipto”, cita Debes. A aquisição de terras da antiga fazenda Santa Gertrudes e de outras propriedades transformou o Horto Florestal de Rio Claro no seu laboratório de ensaio, criando um grande jardim botânico e berço genético do eucalipto na América Latina. Para a pesquisadora Flávia Mengardo Gouveia, o desenvolvimento de Rio Claro, como local moderno, somente foi possível devido à vinda da produção cafeeira para a região. “A produção do café trouxe consigo a ferrovia, aparato modernizador e modernizante que fazia, num primeiro momento, o transporte e o escoamento da produção cafeeira até a capital (São Paulo) e depois até Santos, seguindo em direção à Europa, e num segundo momento trouxe os imigrantes europeus para o interior, a fim de trabalharem nas lavouras cafeeiras”.
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Mapa “Rede de ligações regionais no cenário de oferta previsto para 2040” da ANTT
Planos de reativação Depois de anos sem investimentos em transporte ferroviário de passageiros, o governo tem em mãos estudo coordenado pela Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) que identifica 21 projetos de reativação de linhas férreas para implantação de trens regionais, incluindo Rio Claro. Seis deles foram definidos como prioritários, já com estudos de viabilidade. Caso todos os projetos planejados no Brasil saiam do papel no prazo previsto, o país pode ganhar 3.334 km de trilhos para transporte em 14 estados até 2020. Desde 2003, o Governo Federal lançou o Plano de Revitalização das Ferrovias, visando ao desenvolvimento e à ampliação dos sistemas e serviços ferroviários, e incluiu, nesse plano, o “Programa de Resgate dos Transportes Ferroviários de Passageiros”. O país se afastou dos trilhos nos anos 1950, com o plano de crescimento rápido do presidente Juscelino Kubitschek, que priorizou rodovias. Em 2012, os trens brasileiros carregavam somente 3% dos passageiros do País (incluindo metrô). 116
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De acordo com a agência, que com exclusividade se posicionou à JC Magazine, “Os trabalhos do Grupo contaram com a participação de representantes das diversas esferas públicas e privadas que atuam na área de transportes metroferroviário de passageiros, e possibilitaram a construção de uma plataforma de informação que congrega projetos em implantação e em estudo, entre diferentes unidades da federação e dentro de um mesmo estado, região metropolitana ou cidade brasileira. Esta plataforma visa proporcionar um panorama sobre o setor em nível nacional, e informações mais detalhadas poderão ser obtidas com os gestores dos projetos. Os trabalhos também permitiram identificar alguns gargalos que dificultam o desenvolvimento e a expansão dos serviços ferroviários pelo Brasil, dentre eles aspectos regulatórios e institucionais.” Estudos federais A JC Magazine teve acesso ao estudo da ANTT que aponta, de acordo com a estimativa de viagens diárias via transporte ferroviário, a pretensão de incluir Rio Claro na nova rota de transpor-
te ferroviário até o ano de 2030. De acordo com a ANTT, “o estudo realizado por Grupo de Trabalho denominado Trens de Passageiros (GTTP), instituído pela Portaria n° 266 – de 18 de março de 2013, da Agência, recebeu como atribuição elaborar diagnósticos e propor ações que possibilitem incrementar a participação do transporte ferroviário de passageiros no Brasil, utilizando-se da malha ferroviária existente e das futuras concessões resultantes da nova malha que está sendo construída”. No setor ferroviário, o programa prevê investimentos de R$ 99,6 bilhões em construção e/ ou melhoramentos de 11 mil km de linhas férreas. “A venda da capacidade das ferrovias do Programa de investimento em Logística será destinada aos usuários que quiserem transportar carga própria e/ou passageiros; aos operadores ferroviários independentes; e aos concessionários de transporte ferroviário.” Com relação ao Financiamento do Desenvolvimento do Setor, sugere-se que os investimentos do setor poderiam ser planejados e controlados pela nova empresa, órgão ou empresa existente, de
fontes tradicionais como o Programa de Aceleração do Crescimento – PAC, convênios com entidades nacionais e internacionais e outras receitas operacionais, como concessões de vias e terminais, ou de faixas de domínio. O estudo também aponta o Programa do Governo do Estado de São Paulo de Trens Regionais encampando pela CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos). O programa foi desenvolvido considerando o recorte territorial definido como Macrometrópole Paulista, polarizado por algumas cidades de elevado porte, como São Paulo e Campinas. “Trata-se de um território complexo, principalmente quanto à mobilidade e à logística. Na Macrometrópole Paulista encontram-se as regiões metropolitanas de São Paulo, de Campinas, da Baixada Santista, do Vale do Paraíba e Litoral Norte; três aglomerações urbanas (Jundiaí, Piracicaba e Sorocaba) e também as microrregiões de São Roque e Bragantina”, evidencia o estudo. A cidade de Rio Claro está incluída na proposta de implantação do transporte ferroviário até o ano de 2030. 117
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Ascensão dos trens?
Du Altimari, Michel Temer e a então ministra-chefe da Casa Civil Dima Rousseff em cerimônia de assinatura do termo de cessão do uso da antiga linha de trem
Brasil quer se tornar, enfim, um país de ferrovias
Aglomerado Urbano – encabeçado por Rio Claro, movimento “volta trem de passageiro” coletou assinaturas para que o transporte volte ao município.
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O vereador Geraldo Voluntário (DEM) explica que, conforme definido pela Secretaria dos Transportes Metropolitanos, “o governo estadual cuida de estimar por meio de pesquisa a viabilidade econômica da inclusão de Rio Claro no projeto que prevê o percurso do Trem Metropolitano até Americana”, cita ao mencionar o apoio do Parlamento Regional de Piracicaba e das câmaras municipais de Santa Gertrudes, Cordeirópolis, Limeira e Americana. O organizador do documento desembargador aposentado Irineu Carlos de Oliveira Prado já destacou, em outras oportunidades, que Rio Claro merece essa distinção por ter tradição ferroviária, além de estar muito próxima de Americana (50 km), onde a linha deve terminar. Ele ressalta que utilizou o transporte ferroviário enquanto este existiu, “de forma razoável até a década de 1980, começo de 1990. No meu ingresso na Magistratura, no final de 1979, para exames, busca de documentos, posse, etc., viajei de trem para S. Paulo, em torno de vinte vezes. Depois disto, só saudades. Até hoje me lembro dos horários de trens de passageiros em Rio Claro e, dormindo ou acordado, sonho que estou viajando nos trens da Paulista” recorda-se. “A Ordem dos Advogados tem recebido apoio do Prefeito, da vice Prefeita, da Câmara dos Vereadores, do Shopping Center Rio Claro, da União dos Ferroviários Aposentados, do Grêmio C.P., dos clubes de serviço, do Deputado Aldo Demarchi, da imprensa, e das igrejas de todos os credos (...) Confio no êxito da Campanha, e espero que o Todo Poderoso me permita viajar no trem metropolitano a S. Paulo, ainda que ‘em pé, na segunda classe” conclui. Já o deputado Aldo Demarchi (DEM), que também tem apoiado a campanha, alega que, “como deputado e membro da Comissão de Transportes e Comunicação, a intenção é sensibilizar o governo para que o trajeto inicialmente
previsto São Paulo-Americana seja estendido até Rio Claro. Assumiria naturalmente essa tarefa, mas agora, com o movimento popular em prol dessa causa, me sinto muito mais motivado e confiante na inclusão de nossa cidade neste programa”, cita à JC Magazine. “As viagens de trem fizeram parte da minha infância, adolescência e juventude. Naquela época, um dos principais meios de transporte era o trem, seja pra ir de Rio Claro a Santa Gertrudes, Campinas ou São Paulo”, conclui. A JC Magazine também conversou com Lorival Messias, vereador de Valinhos, ex-presidente Parlamento Metropolitano de Campinas e Coordenador da Frente Parlamentar Mista em Defesa do Transporte Ferroviário de Passageiros das Regiões de Campinas que, desde 2011, tem realizado a coleta de assinaturas para a volta do trem de passageiros naquela região. Para ele, “a região de Campinas conta com aproximadamente três milhões de habitantes e as cidades estão cada vez conturbadas. A opção do transporte dos trens da CPTM para Campinas e Região, terá reflexos na melhoria do sistema de transporte rodoviário, com uma redução considerável de veículos, e ônibus que viajam até São Paulo, principalmente pelas rodovias Anhanguera e Bandeirantes, que se encontram bastante saturadas, com trânsito pesado, e engarrafamentos diários”. Além do vazio histórico-cultural, a sub ou inutilização dos trilhos de outrora se transformaram em verdadeiros problemas urbanísticos para as cidades paulistas. Em Rio Claro não seria diferente. Desde que assumiu mandato como chefe do Executivo, o prefeito Du Altimari tenta revitalizar a região central dividida pelos trilhos e pela antiga oficina da Companhia Paulista. O projeto, dividido em duas partes, envolvia a retirada dos trilhos da Avenida 24-A até o Distrito de Batovi, e a transferência das oficinas para região da periferia para a
retirada de outra parte dos dormentes até Santa Gertrudes. Em janeiro de 2010, a então ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff (PT), esteve na cidade para assinar o termo de cessão do uso da antiga linha de trem envolvida na primeira parte do projeto. A ministra veio acompanhada do então ministro das Relações Internacionais, Alexandre Padilha, e do então deputado Michel Temer (PMDB). “Primeiro, essa cerimônia em que nós estamos assinando a autorização de uso dessa imensa área no centro de Rio Claro, o que, como o prefeito me disse, é até uma sorte, porque nós podemos ter aqui uma espécie de um Central Park Rio-
-clarense. E aí, prefeito, de fato, o senhor tem uma oportunidade única e, sem dúvida, em algum momento, nós seremos parceiros para fazer essa segunda etapa", disse Dilma na oportunidade. Até o momento, foram retirados 12 quilômetros de trilhos destinados ao Trem Republicano entre Itu/Salto, cujas obras foram anunciadas no final do ano passado. A intenção é utilizar o antigo leito dos trilhos para fazer uma avenida para ligar os dois lados de Rio Claro, a chamada Avenida Paulista. Para a primeira parte do projeto sair do papel, o município pleiteia recursos federais, o objetivo do prefeito é “deixar o projeto pronto” até o fim de seu mandato. 119
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Lembranças do chacoalhar do trem
O texto a seguir descreve uma viagem na linha entre Rio Claro e Araraquara – o escritor foi somente até São Carlos – no ano de 1912.
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"Rio Claro!", gritou o ajudante do trem. Daí a pouco, a plataforma da estação regurgitava de viajantes apressados, carregando malas, segurando crianças, ensurdecidos pelos berros dos carregadores, do bufar insistente das caldeiras das máquinas, apitos dos guarda-chaves e rolar de carros em manobras. Um vai-vem, um vozerio sem fim. Partimos. No carro em que eu ia, cheio, repleto, a prosa irrompeu, e um amigo comenta: "Oh! Por aqui? Então de volta ao grupo?" – "Que fazer, meu caro! As férias acabaram-se, toca ao trabalho". Olhei para as pessoas que viajavam conosco. "Professores e professoras", disse o amigo. Conhecia alguns e algumas. "Olá, Paulo", exclamei, "como foi de férias?" – "Bem, e você?" – "Assim..." Bem em frente a mim, diversas moças chalreavam, numa expansão contente e alegre. Uma delas era magra, esguia, com um grande chapéu com abas e flores vermelhas de ornamento. Era a mais tagarela. A outra era gorda, bem feita, com umas formas delicadas e esplêndidas, escutava, respondia à amiga quase sempre com um sorriso amável e... olhava-me. Eu já a conhecia. Era de uma cidade vizinha daquela para onde eu me dirigia. Olhei-a. Tornamos a nos olhar. Sorrimos, num consentimento tácito de começo de flerte. Ela era bonita. Os cabelos negros, de um negror profundo de ébano, quase desapareciam debaixo do chapéu grande e todo ornado com fitas largas. Tinha uns olhos grandes e pretos, enormes de mistério e de encanto... Uns lábios fortes e grossos que inspiravam a tentação diabólica de um beijo. Ria muito... talvez soubesse que tinha lindos dentes. E o flerte pegou. Às vezes, para que não desse muito na vista o nosso namoro, eu me punha a olhar as paisagens que se sucediam rápidas, como nas fitas dos cinematógrafos, ora no sublevamento das
colinas ponteadas de cafeeiros, ora no abaixamento dos vales, onde se alinhavam filas de bananeiras ou emergiam do fundo, branquejando, casinhas miúdas pela distância. Chovia. Finas cordas de água acompanhavam lenta e copiosamente os capões de mato que bordavam a estrada, e lá, ao fundo, embrumados e indecisos, os morros apareciam tristes e desconsolados. Estações passavam. "Visconde de Rio Claro!", anunciou outra vez o ajudante de trem. Espera. Nós dois continuávamos a tarefa encetada de flertar. Como ela sabia jogar com o nervo patético motor! Que abaixamento estonteante e lindo das pálpebras de espessos cílios aveludados! E o trem recomeçava a correr na sua monótona canção das rodas sobre os trilhos, batendo, batendo sempre, batendo sem parar. Chegamos perto de São Carlos. A prosa dos carros redobrou, ativa, avivada, na ânsia de chegar breve. Poucos minutos depois, íamos de novo levados pelo comboio, correndo à procura dos pontos de chegada. "Caiubi!", gritou de novo uma voz. A melancolia apoderava-se lentamente de mim. Qualquer coisa de vago e impressionante eu sentia brotar inconscientemente por dentro de minha consciência. Ia-se acabar o flerte. Dali a pouco, entre o buliço da estação e o barulho das manobras, eu ia perder o atrativo dessa viagem que se tinha tornado tão agradável. Chegamos, enfim, à estação onde ela devia parar. Vi-a sumir por entre a turba que enxameava pela estação, com um andar altivo, direito, de garça real... Ainda tenho nos lábios o sabor delicioso dos seus olhares" (SudMennucci, 1912 - do livro Um dia o trem passou por aqui - a história e as estórias dos trens de passageiros do Estado de São Paulo e as saudades que eles deixaram, Ralph M. Giesbrecht, RMG, 2001). 121