MORRI - Antønio Falcão

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Antønio Falcão

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MORRI Antønio Falcão

REUNIDO NO VERÃO DE 2017



For the Love of Ivy (ET GILLES)



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A GAIOLA E O PÁSSARO [INTRODUÇÃO DO AUTOR À PRESENTE EDIÇÃO]

JÁ TENHO a ficha. Vamos ver se a consigo introduzir. Aos três anos tive sarampo e creio que esse foi o momento mais relevante da minha vida, que acabou por desenhar todo o meu destino. Ou, se preferirem, este é o entendimento que tenho dele, a uma distância de mais de quatro décadas. O que é certo é que produziu uma série de imprevistos em cadeia que chegou até ao dia em que agora escrevo estas palavras. Puxo o fio. Por causa dessa enfermidade, comum em crianças nos anos setenta, fiquei estrábico. Isto é o que a minha mãe diz. Mas também quem é que pode confirmar? Na altura, vivíamos no tortuoso Alto Alentejo. Não era mau de todo, o tempo era verdadeiramente extenso e os dias duravam anos. Por causa do estrabismo, os meus progenitores, preocupados com o meu olhar enviesado, indagaram por um especialista que me curasse e encontraram-no em Lisboa, onde passei a ir com mair regularidade. Ia quase sempre nas férias. Lembro-me de que o calor apertava. Eu e a minha mãe ficávamos alojados com uma amiga chegada, na Rua da Rosa, no Bairro Alto. A casa da querida Berta, creio que num primeiro andar, era fresca e tinha um grande gato. E uns varandins interio-


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res. E eu adorava aquela estranheza. Do Bairro. O médico ficava perto do Marquês, na avenida que desce do Saldanha, e era aí que o relógio parava, dentro de salas escuras, com outras crianças que padeciam do mesmo mal. Para além do olho tapado que passei a usar, condição perfeita para a troça escolar, o meu karma cobria-se de enfado nas sombras coloridas de exercícios ortópticos. Na primeira vez ainda perguntaram se víamos bem e mostraram-nos letras de pernas para o ar. Via lindamente, o problema não era esse, isso era só o prelúdio para o que veio a seguir: o meu fiel tormento. Imaginem uma espécie de lobotomia ou um call center aplicados à visão. Colocamos o queixo numa máquina de slides onde existe uma distração diferente para cada olho e, durante o que parece ser uma infinidade de tempo, permanecemos estáticos. É uma transparência com uma imagem que se acende e apaga, que começa a baloiçar até conseguir chegar às traseiras da nossa retina para nunca mais de lá sair. Uma violência para a percepção humana, num miúdo de três anos, mas também – e particularmente – uma iluminura de visionário que se abre para todo o sempre. Uma taluda. Monótona, neste caso. No final, tínhamos um exercício: era preciso colocar uma imagem dentro da outra. Calhava-me sempre a Gaiola e o Pássaro. Não sei se havia mais ou se para o meu caso era mesmo assim. Se era apenas a terapia adequada. Não interessa, só sei que esse é o ponto alto da minha história, não porque eu nunca conseguisse colocar o raio do pássaro na porcaria da gaiola de modo consciente – porque é preciso fazê-lo numa cabine reservada do cérebro, onde as orientações cognitivas não nos iludam a todo o momento –, mas porque em vez disso tomei a noção precisa do que era aldrabar.


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E a partir daí nunca mais deixei de o fazer para resolver assuntos incompreensíveis. Sim, o pássaro ficava preso. A senhora da clínica dava-me os parabéns e tudo. Mas nada daquilo era verdadeiro. Era intuitivo. Era tudo encenação. Era o mundo a apresentar-se ali em todo o seu esplendor dentro de uma sala obscurecida. O que era aquilo? O que era a vida? Perguntava eu, em modo de criança, remoendo ideias cá dentro que não sabia interpretar, quando saía dali e a minha mãe me levava a comer um gelado num canto dos Restauradores. Depois daquilo, não havia nada que me restaurasse. Esclareço. Durante as sessões, que duravam trinta ou sessenta minutos, eu podia ver todo o meu destino a passar-me diante dos olhos. Não o via claramente, é certo, não o via de modo nenhum, porque não estava ali com habilidade para o descodificar, mas era exactamente isso. Um sonhar acordado, cheio de coisas vividas ainda por viver. Se nos sonhos assistimos a representações do real e nos lembramos das imagens, ali não, ali é tudo encriptado. Via-me a crescer, naqueles arco-íris pretos, por vezes de cabeça partida. Via-me a voltar para Lisboa, onde passei toda a minha juventude. Uma escolaridade trivial. De bom aluno que se esbateu. Completamente desinteressado. A querer fugir sempre dos intervalos, quando era preciso conviver. A perder-me na demora. A entender outro mundo que nunca era aquele que chegava à minha vista, que no sentido físico até ficara um pouco menos retorcida. Via-me a errar pelo campo, por azinhagas e ruelas. A ver os avós. As persianas dos prédios que se estoiravam com bolas de couro. Uma apetência para corridas de fundo. E sempre uma alegre solitude. A ouvir música. A ler. Hemingway, Salinger, Dostoiévski e os outros russos. Isso que os putos adolescentes lêem. Vian


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e companhia. Livros de bolso, de ficção científica. As Lollobrigidas que o Balalaica levava na marmita. Livros pequenos e grandes. Os novos e os clássicos. Países longe do meu lugarejo de puto charila em folhas de papel, onde encontrava um extenso ultramar às costas de um argonauta sem leme. Sem Argo. Mas o visionamente prosseguia, nunca parava. Amizades e amores de Verão que foram ficando para mais tarde. Mais as amizades do que os amores, que sempre ficam para a vida. O despertar para outras artes e outras faunas mais noctívagas. Mas a percepção assolapada da optometria – ou do sarampo! – nunca parava de fagulhar, conquistando mais espaço e criando aterros nos miolos da carne. Ou vice-versa. Inflamando a convicção – que sempre existiu – de que não estava ali isolado. Que cá dentro havia sempre alguém que também dizia. Que não era simplesmente eu. Que não era eu quando me via. Quando me ouvia a falar. A voz que não era a minha. Mas a ter que me habituar a ela. A dizer sim, quando devia dizer não. E a ir por aí. Sem freios. Com os olhos lassos que me induziriam na Fotografia. E na matéria digital. Num motel de prusidente. Isto não é sobre mim. É sobre a bonança que teve necessidades de se desorientar. Era isso que via enquanto me martelavam o estrabismo e dava comigo a abandonar o barco e a dirigir-me para os antípodas com o Oriente a cair-me no caldo, cheio de humidade relativa e com uma mão vazia à minha espera. Apenas com vontade que a agarrasse. E Macau a acontecer. Tudo a acontecer como nas páginas de uma obra escrita. É-se feliz, sim, mas dificilmente se equipara ao que se vive dentro de um livro. Não sei o que é, se é o tempo de leitura, se é o incorpóreo a actuar, a livrar-se de mim e a ficar apenas com o outro. O último homem em Saturno a mergulhar no cinema de grande ecrã. A sua droga pura. O livreiro


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marado por corridas de automóveis. Entre o Alentejo e Kowloon. O Bairro e o cabeço de Fuji. O Sarampo e uma livraria a afundar. E a regressar dezassete anos depois ao ponto de partida, para escrever novos desassossegos. Vi isso tudo. Pelas frestas da maquinaria. Ainda vejo. Sabia como iria ser lá longe. Experiências de todo o género e feitio de uma soberania a acabar. Paixões, desamores e a necessidade de redigir. Com a mão do meu ser soberano sem comando a desagregar a unidade física. O agente a subir para o palco. Joid. Ring Joid. Nascido num dia mau, a 35 de Abril. Tudo isso e Rock n’ Roll. Memórias indulgentes e aversões eléctricas. De alcunha de conversas virtuais para as páginas de um jornal. Lime & Purple. Não, não era eu. Eu estava ali quietinho a ver as luzes a passar. Um zelig que apanhava o que estava a ler. Palahniuk. Rulfo, Michaux. Walser. O que calhasse. Os espiões Bulgákov e Kharms. E os calhamaços de Borges, dentro da goela. A ver-se como os náufragos de Coloane, no Chile. “Espuma, e sangue, e cânticos nos lábios”. A expulsar o colonizador Valdivia e a deixar entrar o índio Lautaro. Com o coração na mão. Coisas. Muitas coisas. Ficou tudo registado. Os flashes dispararam milhares de vezes. No Grulhaço Terranovense. Já rodei a manivela. Podia ter explicado de outra forma o que vem aí a seguir. Como daquela vez em que me furtaram a máquina de fotografar e o piano miniatura onde compunha as minhas madrugadas. E por isso, tenho a certeza, que essa mão de meliante, de olhar de fundo de garrafa, também desviou o meu fado. Mas não. Sei o que veio a seguir. Foi assim que morri. Naquela sala escura no Parque Eduardo VII. Porque aí vivi tudo de uma vez. E ainda estou a viver. Aos três anos.


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A máquina rola cada vez mais depressa, já sem tempo, porque as luzes se vão acender. E não sei se foi da doença ou da vacina, que não tomei, mas a vida nunca mais foi a mesma. Como devem imaginar, não sei como era antes. Mas ainda há uns minutos porque, entretanto, ludibriei toda esta trapalhice e criei um descodificador. Não, não foi a porra de um YouTuber ou um comentador televisivo que me ajudaram, foi um asiático, trabalhador agrícola escravo numa vilória do Alentejo. É isso. Havia lixo e muito lixo. O que aqui se apresenta é a resma que resistiu à fogueira. É o que vão poder ler. A cores. O que estava a tentar explicar neste resumo. Que não deu certo. A senhora terapeuta já está a entrar. Despachem-se! Vai pedir-me para enfiar o Pássaro na Gaiola. Coisa que não consegui fazer até hoje. Nunca vou conseguir! Por isso vou aldrabar outra vez. Intuindo. E vai ficar lindo. Como sempre. Depois vou à Veneziana. Com a minha mãe. SFAX, AGOSTO DE 2017

…... Este livro é dominado por alguns factos do conhecimento público. Por vezes, focam a cronologia de determinado lugar mais concreto, introduzindo-lhe elementos imaginários, puramente ficcionados. Ou não. Evocam também nomes e personagens de carne e osso, figuras de estado e outras de que já ninguém se lembra. Chega a emitir ódios e preferências raciais ou de género, e outras coisas mais, mas é puro exercício de escrita que advém de um processo criativo assanhado. Alguma ofensa, sem propósito, peço que não a levem a sério. É como estar numa sala de cinema. Faz tudo parte da mesma viagem.



Indíce INTRODUÇÃO: A GAIOLA E O PÁSSARO ........................................................................ 9 ADEUS .............................................................................................................................................................. 13 LEVANTA-TE E CAMINHA ............................................................................................................. 14 CORES PROIBIDAS ............................................................................................................................. 16 ADIVINHA QUANTO EU GOSTO DE TI ............................................................................ 21 OLHAR PARA UM PALÁCIO ....................................................................................................... 26 DELÍRIOS DO CAMPO ...................................................................................................................... 31 OK QUERIDA ............................................................................................................................................. 35 VENENO DE RATO ............................................................................................................................... 40 TOSHIBA ZOOM JK-TU52H ......................................................................................................... 46 VIRGEM E SUICIDA ............................................................................................................................. 51 IRMÃZINHA ................................................................................................................................................ 54 MULHERES TAAÃO VIOLENTAS ............................................................................................ 59 O ISLANDÊS ............................................................................................................................................... 63 A AUTORIDADE DA CONCORRÊNCIA ............................................................................ 66 DAS COISAS QUE ME ESQUEÇO ......................................................................................... 71 O ABSOLUTO FINITO ......................................................................................................................... 75 ODE A TUDO ............................................................................................................................................. 80 VELOURIA .................................................................................................................................................... 85 A PRIMEIRA FORNADA ................................................................................................................. 90 POENTE TERMINAL .......................................................................................................................... 93 ALGUNS CÃES AFOGADOS NA AREIA ........................................................................... 97 O RADICAL LIVRE ............................................................................................................................. 101 A HISTÓRIA PEDE SEMPRE MAIS BRANCO ......................................................... 107 O CRIME ORGANIZADO ............................................................................................................ 112 NÃO SEJAS ESTÚPIDO ................................................................................................................. 116 SNOOZE ...................................................................................................................................................... 117 LÍNGUA PORTUGUESA ................................................................................................................ 122 DICCIONÁRIO ....................................................................................................................................... 126


O FADISTA ................................................................................................................................................. 128 AMANHÃ SUBMERSO ................................................................................................................... 132 RETRATOS DA VIDA DE UM HOMEM ARMADO ............................................... 136 BAZA! .............................................................................................................................................................. 138 SALMÕES SATÂNICOS II ............................................................................................................. 140 QUE FAZER DAS CHUVAS E DOS VENTOS? .......................................................... 145 ROMANCE HISTÓRICO ................................................................................................................ 150 CHEIRA A NIRVANA ....................................................................................................................... 156 BABY, ESTÁ FRIO LÁ FORA ..................................................................................................... 161 CAVALOS DE FERRO ...................................................................................................................... 165 CRISE DE VEGETARIANISMO ............................................................................................... 169 TRANSMITIDO ORALMENTE ................................................................................................. 173 NO PASSEIO DOS OLHOS DE TODA A GENTE ................................................... 175 EUFURIBUNDO .................................................................................................................................... 178 ROY BATTY ............................................................................................................................................... 181 HÁ UMA LUZ QUE NUNCA SE APAGA ........................................................................ 185 AFINAL HÁ QUEM ESCREVA AO CORONEL ......................................................... 189 NUNCA VI UM VERÃO ASSIM ............................................................................................... 191 WOODY & ALIEN ................................................................................................................................ 196 SEM DOR, APENAS PRAZER ................................................................................................. 201 A COR DA CAMISOLA ................................................................................................................... 206 A LIMITADA FÉ DO INCRÉDULO ........................................................................................ 208 EXÉRCITO DE KAMIKAZES ..................................................................................................... 212 O ESQUIMÓ QUE ARDE DE FRIO HUMANO ........................................................ 217 SOCIEDADE SECRETA .................................................................................................................. 221 AVERSÃO ANTERIOR .................................................................................................................... 223 DOIS MIL E QUARENTA E OITO .......................................................................................... 227 EM CASO DE INCÊNDIO NÃO USAR O ELEVADOR ...................................... 232 O ULTIMO DIA DE DYLAN THOMAS .............................................................................. 236 TRIPLA PENETRAÇÃO .................................................................................................................. 240 ÉS SEMPRE ASSIM ........................................................................................................................... 241


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ISBN: 9781633430013

ANTØNIO FALCÃO nasceu em Lisboa, onde cresceu e estudou Design e outras filosofias. Viveu em Macau durante dezassete anos. Foi fotógrafo e teve uma livraria. Escreveu. Regressado a Portugal, rejeitou a densidade urbana e ancorou numa vilória na costa alentejana e, por isso, também na Lua. Como sempre. Não o via claramente, é certo, não o via de modo nenhum, porque não estava ali com habilidade para o descodificar, mas era exactamente isso. Um sonhar acordado, cheio de coisas vividas ainda por viver. Se nos sonhos assistimos a representações do real e nos lembramos das imagens, ali não, ali é tudo encriptado. Este livro é dominado por alguns factos do conhecimento público. Por vezes, focam a cronologia de determinado lugar mais concreto, introduzindo-lhe elementos imaginários, puramente ficcionados. Ou não. Evocam também nomes e personagens de carne e osso, figuras de estado e outras de que já ninguém se lembra.


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