O património cultural da educação no espaço colonial

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O PATRIMÓNIO CULTURAL DA EDUCAÇÃO NO ESPAÇO COLONIAL: O LEGADO DO COLÉGIO DAS MISSÕES ULTRAMARINAS Ana Isabel Madeira Instituto de Educação, Universidade de Lisboa

António Manuel Martins da Silva ES Pedro da Fonseca, Proença-a-Nova

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HISTÓRIA da educação colonial tem-se afirmado como um campo disciplinar cada vez mais relevante dentro das ciências sociais ao comprometer-se com uma leitura crítica do encontro colonial, focando a sua atenção no papel das mais diversas instituições educativas na formação dos impérios europeus durante os séculos XIX e XX (Dulucq & Zytnicki, 2003, pp. 114-127). No presente trabalho procurámos contribuir para essa leitura crítica, tomando por objeto o Colégio das Missões Ultramarinas, uma instituição de formação de missionários para as colónias portuguesas, cuja importância para a história da educação colonial nos parece importante sublinhar. Quando nos referimos ao legado do Colégio das Missões Ultramarinas, queremos vinculá-lo a um entendimento particular do que é, afinal, este património educativo. Ele surge-nos como uma herança recebida dos antepassados, testemunho da sua existência, de uma visão do mundo, das formas de vida e maneiras de ser e fazer particulares (Yanes Cabrera, 2010, p. 65). Mas é sobretudo na relação entre a sua materialidade e imaterialidade que se procura oferecer uma imagem histórica, assim como um conjunto de pistas de trabalho, pois é neste cruzamento que se lega às gerações futuras conhecimento sujeito a aprofundamento e/ou contestação. O conjunto arquitetónico e paisagístico que integra o património cultural formado pelo atual Seminário das Missões não é independente dos bens imateriais ao qual ele está intimamente ligado, isto é, aos valores, crenças, rituais e simbologia que o relacionam com o contexto histórico local e nacional 1. No plano da história da educação, o património educativo é indissociável de uma quantidade de fatores relacionados com os processos educativos que situam a instituição escolar como geradora de uma cultura específica: a cultura escolar. Foi Dominique Julia quem introduziu este conceito na linguagem historiográfica da educação e, desde então, vários autores têm trabalhado no aprofundamento deste contributo, de resto amplamente utilizado nos vários segmentos que compõem o projeto Educação e Património Cultural: escolas, objetos e práticas 2. D. Julia entende a 1

Veja-se, a este propósito, as recentes monografias de Silva (2013) e de Pereira (2013).

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Julia, 1995; Chervel, 1998; Grosvenor, Lawn, & Rousmaniere (Eds.), 1998; Lawn, & Grosvenor (Eds), 2005; Escolano Benito (Ed), 2007; Lawn, 2009; Depaepe et al., 2000 e Yanes Cabrera, 2010.

Educação e Património Cultural: Escolas, Objectos e Práticas, 2013, Edições Colibri, Lisboa, pp.


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cultura escolar como um conjunto de normas que definem os saberes a ensinar, os comportamentos a inculcar e um conjunto de práticas que permitem a transmissão desses saberes, e a incorporação destes nos comportamentos. Estas normas e práticas orientam-se por finalidades próprias às épocas – finalidades religiosas, sociopolíticas ou simplesmente de socialização – pelo que a cultura escolar não pode ser estudada sem analisar as relações, de conflito ou pacíficas, que ela mantém, em cada período da sua história, com o conjunto das culturas que lhe são contemporâneas: cultura religiosa, cultura política ou cultura popular (Julia, 1995, p. 354). Este cenário torna claro que a conceção de património educativo transcende o conceito de cultura escolar ligado à história da instituição, indo ao encontro da perspetiva que aqui se pretende oferecer sobre o alcance da intervenção do Instituto das Missões na área da educação colonial. Esta abordagem enfrenta, porém, diversos problemas de ordem teórica e metodológica. Por um lado, devido às suas características particulares, a instituição aplicou processos educativos que se desenvolveram à margem de modelos de funcionamento escolar instituídos, de processos pedagógicos convencionais, e de princípios, ideológicos e programáticos, consagrados pela cultura escolar. O seu objeto era a formação de missionários laicos para as colónias ultramarinas portuguesas, em África e no Oriente, e esta orientação, por si só, propunha a construção de cidadãos – e de cidadãs – com características diferentes do comum dos alunos que frequentavam as escolas das demais instituições de ensino público ou privado, ao nível da formação primária e secundária, durante todo o período republicano. Por outro lado, tratando-se de uma escola dotada de um grau de autonomia considerável, o ensino fornecido no seminário organizava-se em torno de um plano de estudos específico, único no panorama nacional. O programa de formação traduzia-se num conjunto de objetivos muito particulares e associava-lhe um currículo articulado em torno de valores, competências e processos de aquisição de conhecimentos bem definidos. A ação formativa do Instituto das Missões Coloniais não se bastava, por isso, na transmissão de um conjunto de conhecimentos de ordem científica e técnica. Fornecia aos alunos um quadro interpretativo e paradigmas de referência com os quais podiam reorganizar e transformar a multiplicidade de informação acerca da realidade colonial, ajudando a compreendê-la e a transformá-la. E, neste aspeto, o Instituto possuía uma agenda de trabalho e uma gramática próprias, uma política e uma identidade que o distinguiam de toda e qualquer estrutura educativa da época, quer em termos nacionais, quer mesmo internacionais. Assim se construiu uma cultura escolar híbrida que articulava, por exemplo, modelos inspirados na organização eclesiástica e ideologias republicanas, currículos científicos e práticas confessionais laicizadas, combinando, por isso mesmo, elementos pertencentes a vários domínios discursivos, quer do ponto de vista pedagógico, científico-social ou político. Não estamos, é evidente, perante um tipo de ensino estandardizado, uniformizado, nem sequer comparável, em termos da sua estrutura curricular e organização programática, a outras escolas europeias congéneres, embora nelas pudesse ter havido alguma inspiração para a organização das suas práticas educativas 3. 3

Apesar de mencionar algumas escolas coloniais europeias, o Boletim das Missões Civilizadoras (daqui em diante BMC) não é explícito quanto à sua influência na estrutura organizativa, ou mesmo curricular, do Instituto de Missões Coloniais. Por outro lado, algumas destas escolas são citadas incorretamente ou de forma incompleta. As designações corretas seriam: Instituto de Missões de Nancy – Institut Colonial et Agricole de Nancy; Instituto de Missões de Nantes – desconhecido; Instituto de Missões de Marselha – Institut Colonial de Marseille; Escola ou instituto de Witzenhausen – Deutsche Kolonialschule der Witzenhausen; Escola Engelport – Oblaten der


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Compreender a cultura escolar do Instituto das Missões Coloniais implica considerar, antes de mais, que o currículo de formação missionária representava, como aliás qualquer currículo, um ideal utópico. Todavia, a visão histórica que o Instituto tinha sobre o papel de Portugal na colonização ultramarina era transmitida aos alunos de formas diversas, não apenas através do currículo, durante o período de formação, mas por intermédio de outros instrumentos de regulação (como é o caso do Boletim das Missões Civilizadoras), cujo efeito pedagógico-ideológico se prolongava para além do período de instrução formal. Nessa publicação, o diretor do Instituto, Abílio Marçal, reafirmava permanentemente a missão patriótica dos seus ex-alunos, agora missionários no ativo, ligando-a aos ensinamentos recebidos na instituição, à sua feição laica, cuja ação era tida como diferente, embora complementar, à dos missionários católicos e, sobretudo, alinhada pelo ideário republicano no campo da civilização dos povos africanos. Compreender a cultura escolar do Instituto das Missões Coloniais implica, portanto, conceptualizar o currículo de formação missionária como um plano de formação mais amplo e mais expandido no tempo, incorporando um ideal utópico, não apenas de capacitação individual, mas igualmente de transformação cultural. É facto que o estudo das intenções educativas não pode ser, em última análise, separado das suas relações com os efeitos educativos. Pelo que, antes de abordar os efeitos educacionais da escolarização sobre os alunos considerados individualmente (e sobre o seu impacto na sociedade colonial), temos de analisar o que é que sucedeu realmente durante o processo educacional – o que é que foi realmente ensinado e aprendido na escola. E se queremos compreender isso, o que é necessário não é tanto uma teoria da socialização, mas uma teoria desenvolvida dentro do próprio campo da história da educação (Depaepe & et. al., 2000, pp. 21-22). Como nos recorda Berrio, os principais elementos da cultura escolar compreendem os atores (os professores, as famílias, os alunos), os discursos e as linguagens (os modos de conversação e de comunicação), as instituições (a organização escolar e o sistema educativo), e as práticas, ou regras de comportamento, que se consolidam durante um dado período temporal. O estudo das instituições compreende, entre outros, o conhecimento do espaço escolar, os tempos escolares e as disciplinas escolares. Quanto às regras de comportamento, elas referem-se a “modos de atuar” que são gerados na e através da própria instituição, e que por sua vez podem ser partilhados com outros modos mais amplos, dentro ou fora das salas de aula (Ruiz Berrio, 2010, pp. 125-126). Segundo este entendimento, procuraremos documentar o património educativo material e imaterial do Colégio das Missões Ultramarinas em Cernache do Bonjardim, referenciando, através de descrições e imagens, o espaço de implantação do seminário, os materiais didáticos e equipamentos que se encontram armazenados nos laboratórios, e as salas de aula, oficinas e bibliotecas (com os seus respetivos instrumentos científico-didáticos, quadros parietais, mapas e cartas de navegação, espécimes destinados ao ensino da geologia, da biologia e da botânica coloniais, etc.). Através deste património procuraremos descobrir a história desta instituição, única no espaço nacional, ligando-a a vestígios que nos falam de quotidianos escolares, de práticas pedagógicas e de percursos escolares 4. Associada à extensa documentação escrita, em especial a que foi publicada nos

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Makellosen Jungfrau Maria; Instituto Colonial de Hamburgo – Hamburgishe Kolonialinstitut. Segundo Henry Rousso (1996) constituem fontes “todos os vestígios do passado que os homens e o tempo conservaram, voluntariamente ou não, sejam eles originais ou reconstituídos, minerais, escritos, sonoros, fotográficos, audiovisuais, ou até mesmo virtuais (desde que tenham sido gra-


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Anais das Missões Portuguesas Ultramarinas, nos Anais das Missões Portuguesas e no Boletim das Missões Civilizadoras, estas fontes remetem-nos para um conjunto de problematizações: a relação dos materiais com os seus locais de produção (as casas editoras, produtoras e distribuidoras); a relação destes materiais com os planos de reforma destinados a dotar a instituição da capacidade científica e técnica defendida pelas modernas teorias de colonização; os métodos de ensino e as inovações pedagógicas utilizadas nos processos de ensino-aprendizagem; a correlação dos materiais com as disciplinas escolares; a circulação dos modelos pedagógicos e dos discursos científicos no espaço metropolitano-colonial, e o modo como estes discursos foram convocados para construir uma representação do universo colonial. É certo que a materialidade em si não permite, tout court, aduzir das práticas pedagógicas. Mas ao ensaiar uma contextualização das aprendizagens nos espaços e com os materiais didáticos que produziram historicamente os quotidianos escolares dos alunos, estamos mais perto de compreender a história da formação científica e os processos de construção da identidade dos missionários do Colégio. Por outro lado, este inventário torna possível construir um conhecimento mais aprofundado da ação missionária portuguesa nos territórios coloniais africanos (e em Timor) e, até certo ponto, oferece elementos de análise que permitem contestar as críticas frequentemente desferidas, quer contra os “padres de Cernache”, durante a Monarquia, quer contra as Missões Laicas, durante a I República. Contra uns e outros, e com origem em fações diferentes da intelligentsia colonial, pendia em comum a acusação de uma formação excessivamente teórica, falha de conhecimentos científicos e práticos que pudessem rivalizar com a ação dos missionários das congregações estrangeiras. Recolectores incansáveis de artefactos de toda a espécie, a verdade é que, quer os “padres de Cernache”, quer os missionários laicos, ampliaram as coleções botânicas, geológicas e zoológicas recebidas com a reforma de 1885 e, apesar dos excessos republicanos (e de tantos outros), preservaram o património do qual hoje damos uma notícia sumária, deixando-nos um legado incomparável para a história da educação colonial portuguesa. 1. Do Seminário do Priorado do Crato à fundação do Real Colégio das Missões Em 1340, a Ordem de Malta, antes chamada Cavaleiros de Jerusalém e Hospitalários, fixou a sua sede na vila do Crato, Alto Alentejo. Ficou assim criado o Priorado do Crato, independente de qualquer diocese e governado por um Prior. Em 1789, o Papa Pio VI uniu o Priorado do Crato à Casa do Infantado e, em 1791, era seu Prior o príncipe herdeiro, o futuro rei D. João VI, sendo seu provisor e vigário geral o arcebispo D. Manuel Joaquim da Silva, natural de Cernache do Bonjardim. Vendo o estado de “pobreza” e “ignorância” em que se achava a maior parte dos habitantes do Priorado, D. Manuel Joaquim solicita ajuda ao Príncipe o qual, por decreto de 10 de março de 1791, reconhecendo “não haver cousa alguma mais útil e importante para o bem da Religião, do que ter Ecclesiásticos vados numa memória) e que o historiador, de maneira consciente, deliberada e justificável, decide erigir em elementos comprobatórios da informação a fim de reconstituir uma sequência particular do passado, de analisá-la ou de restituí-la aos seus contemporâneos sob a forma de uma narrativa, em suma, de uma escrita dotada de uma coerência interna e refutável, portanto de uma inteligibilidade científica” (p.86). Nesse horizonte os documentos, vestígios ou indícios que se acumulam nos arquivos e acervos públicos ou privados só adquirem o estatuto de fontes diante dos problemas de investigação formulados pelo investigador (pp. 85-91).


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Figura 1. Aspeto do Parque do Bonjardim, junto à igreja matriz de Cernache, c. 1615-1620

Fonte: Gravura extraída de um códice manuscrito existente no Arquivo do Seminário de Cernache do Bom Jardim, da autoria do arquiteto régio Pedro Nunes Tinoco (1620)

capazes, por seus costumes, e por sua doutrina, de encher as santas funcções a que estão destinados…” determina a fundação, o mais rápido possível, de um seminário no Grão Priorado do Crato (Teixeira, 1905). Talvez por influência bairrista de D. Manuel Joaquim da Silva, foi escolhida a vila de Cernache para sede do recém-criado seminário, que se destinava a formar clero secular para as igrejas do Priorado. Dada a urgência, as aulas começaram a 25 de outubro desse ano em casas particulares, e a direção foi confiada aos padres da Congregação de S. Vicente de Paula, também chamados padres Vicentinos ou Lazaristas. Entretanto, foi iniciada a construção de novas instalações que, em 1794, estavam prontas a ser habitadas. Os encargos financeiros foram suportados pela Fazenda Pública da Coroa e Casa do Infantado. A transferência foi efetuada a 19 de Outubro desse ano, iniciando-se as aulas no dia seguinte. Este seminário, chamado de S. João Baptista, patrono dos Hospitalários, recebia também alunos candidatos para as Missões da China, estando dotado para isso, a partir de 1800, por determinação régia, com a quantia de 600$000 réis provenientes das rendas do legado deixado pela rainha D. Mariana de Áustria, esposa de D. João V, para as Missões do Oriente. Por decreto de 24 de julho de 1805, o Príncipe Regente ordenava ao arcebispo que estabelecesse, no mesmo lugar, uma casa de educação e recolhimento de meninas, dedicado a Nossa Senhora das Dores, com sete lugares gratuitos para meninas órfãs e pobres, naturais do Priorado. Além destes, deveria haver mais doze lugares para meninas pensionistas filhas de homens “honrados” e “distintos” que pagariam 4$800 réis por mês, antecipadamente. Assim, nas instalações iniciais do seminário, o arcebispo estabeleceu o Colégio e a Ordem Terceira das Servas de Maria. As meninas aprenderiam as regras da civilidade, a ler, escrever, contar e a gramática portuguesa; a fiar, a fazer meia, coser e bordar por todas as formas, com tudo o que pertence ao bom


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governo de uma casa, e o mais que é conveniente a qualquer senhora bem-criada para ser digna mãe de família (Teixeira, 1905). Quanto ao seminário, aceitava ainda alunos leigos, de condição social humilde, mas inteligentes e interessados em estudar, recebendo, por determinação régia, a partir de 1828, a quantia de 40$000 réis. Este primeiro seminário de Cernache do Bonjardim foi encerrado em 1834 no âmbito da legislação de Joaquim António de Aguiar, aquando da extinção das Ordens Religiosas pois, embora fosse uma instituição de formação de clero secular, era dirigido por congregacionistas, os frades de S. Vicente de Paula, e pertencia ao Priorado, ele próprio também abrangido pela extinção. À data, era frequentado por 80 alunos externos e 30 internos. 1.1. De Colégio das Missões na China a Real Colégio das Missões A extinção das Ordens e Congregações Religiosas, em 1834, acentuou as dificuldades pondo em perigo a tradição missionária de Portugal e, de alguma forma, a presença portuguesa no império. Os seus membros foram expulsos das colónias e os seus seminários fechados no continente. Após o encerramento, a igreja do Seminário foi entregue à paróquia de Cernache e os terrenos anexos foram alugados a particulares. O edifício ficou ao abandono cerca de duas décadas. Entretanto, o Estado português ia descurando os negócios religiosos das colónias esquecendo quase por completo os deveres consignados pelo direito de Padroado. As dificuldades e a incúria, todavia, já eram anteriores a 1834. Em 1833, por decreto de 28 de Dezembro, já o governo, percecionando o perigo, convidava duzentos eclesiásticos para se dedicarem às missões ultramarinas, não tendo o convite encontrado o eco desejado. A ruína das missões teve como primeira consequência a perda de imensos trabalhos realizados e a destruição de obras materiais construídas pelo esforço anterior e, ao mesmo tempo, dava pretexto e espaço à entrada de missionários estrangeiros. Foi neste contexto, e atentos ao perigo que pairava sobre as colónias, que alguns políticos – entre eles Almeida Garrett – e a Igreja Católica se empenharam na descoberta de uma solução. D. Veríssimo Monteiro da Serra, lazarista, bispo de Pequim, regressado ao reino em 1830, comprou uma casa no Bombarral, ofereceu-a ao governo para seminário da missão na China, e disponibilizou ainda os seus serviços como professor. O governo, por decreto de 21 de Maio de 1844, aceitou a oferta e mandou criar aí o Colégio das Missões da China, dotando-o com 1.200$000 réis anuais retirados dos fundos das missões da China, administrados em Macau. D. Veríssimo ficou nomeado superior do seminário. No dia 2 de Fevereiro entrou o primeiro aluno e, em 1848, o colégio era frequentado por 8 estudantes. Entretanto, D. Veríssimo, que não podia despender o esforço necessário ao bom andamento do seminário devido à sua idade ia sendo, a pouco e pouco, substituído pelo padre Luís Bernardino da Natividade. Este, vendo que a casa do Bombarral era pequena, pediu e obteve do governo, pela portaria de 27 de novembro de 1850, a parte superior do extinto Recolhimento do Amparo, à Mouraria, para ali estabelecer uma filial. Preparava-se o edifício, quando D. Veríssimo morreu, no Bombarral, a 9 de outubro de 1852. O Ministro da Marinha ordenou ao padre Natividade que inventariasse os bens e mandasse os alunos para suas casas até nova organização do colégio. Uma portaria de 17 de novembro de 1852 encarregava o padre Natividade dessa mesma reforma orgânica e disciplinar. A 13 de novembro de 1853, o Colégio reabria no Bombarral com trinta alunos e fundos orçamentais de 1.200$000 réis vindos de Macau e com alguns donativos particulares.


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Logo se reconheceu que a casa do Bombarral voltava a ser pequena e não permitia o crescimento do seminário. Almeida Garrett, que reconhecia o estado de acintosa incúria e culpável abandono em que o nosso governo tinha deixado há muitos anos as missões portuguesas, sugere o convento de Brancanes, em Setúbal, mas o seu proprietário recusou as ofertas. Avançou-se depois com a hipótese do antigo Convento de Bouro, mas também não foi adiante. O mesmo aconteceu com Mafra, Tomar ou Barro, perto de Torres Vedras. Entretanto, avançou o nome de Cernache do Bonjardim, onde as instalações do antigo Seminário de S. João Baptista estavam quase ao abandono. Cidadãos ilustres de Cernache apelavam frequentemente para que a imprensa insistisse e lembrasse ao governo a grande utilidade de aproveitar as referidas instalações. O mesmo acontecia com a Junta da Paróquia que, já em 1848, tinha solicitado à Rainha a reabertura do seminário. O padre Natividade deslocou-se então a Cernache e, depois de examinar o edifício, considerou-o adequado, pedindo num ofício ao governo, a 5 de março de 1855, para transferir para lá o Colégio do Bombarral. Em decreto de 2 de agosto de 1855, o governo manda a Secretaria de Estado dos Negócios da Fazenda colocar o edifício à disposição do Ministério da Marinha. A 15 de setembro desse ano, as instalações estão disponíveis para o padre Natividade, que tomou posse delas a 5 de Outubro de 1855. 1.2. O Real Colégio das Missões de Cernache do Bonjardim (1855-1911) O edifício encontrava-se em mau estado, devido ao abandono de mais de 20 anos. A população de Cernache e os povos vizinhos contribuíram com donativos suficientes para as primeiras obras de recuperação. Do Bombarral vieram 14 alunos que, acompanhados do padre Natividade e de frei João Baptista de Jesus, em vez de se entregarem ao estudo, trataram de tornar habitável aquele montão de ruínas. Com a boa vontade da população, demorou apenas dois meses a reparar o mais necessário. O seminário de Cernache do Bonjardim reabria, assim, no dia 8 de dezembro de 1855. Em maio de 1856 já lá estudavam 19 alunos internos e 20 externos sob a direção de frei João Baptista de Jesus. Em portaria de 7 de abril de 1856, o governo, em nome de El-Rei, louvava os esforços do padre Luís Natividade e de todos os que o tinham auxiliado naquela obra. Em 12 de agosto de 1856, a carta de lei, referendada por Sá da Bandeira, que D. Pedro V nomeara para a pasta da Marinha e do Ultramar, determinava que o Seminário ou Colégio Central das Missões Ultramarinas ficava em Cernache e incorporava o Colégio das Missões da China denominado S. José do Bombarral. Designar-se-ia Colégio das Missões Ultramarinas e, se de futuro parecesse mais conveniente, podia ser transferido para qualquer outro edifício nacional. A lei não se limitava à fundação do novo estabelecimento. Continha um sistema geral de iniciativas e preceitos sobre a educação e instrução do clero e a preparação dos missionários para as dioceses e Missões do Real Padroado na Ásia, África e Oceânia. Essa educação e instrução seriam realizadas no Colégio central e nos seminários já existentes ou que de futuro viessem a ser estabelecidos naquelas dioceses. Nomeavam-se os já existentes: Chorão e Rachol no arcebispado de Goa, o de S. Tomé em Meliapor, o de Vaipicota em Cranganor, e o de S. José em Macau. O de Covelong, também de Meliapor, incorporava-se no de S. Tomé. Previam-se novos seminários em Cabo Verde e na Cidade de Moçambique. O de Angola havia de abrir, logo de seguida, em virtude de uma outra lei promulgada recentemente. Em suma, o novo Colégio destinava-se aos seguintes fins: a


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Figura 2. Vista aérea do exterior do Colégio das Missões Ultramarinas

Fonte: Propriedade da Sociedade Missionária da Boa Nova

preparar sacerdotes europeus para o serviço das missões no ultramar; a formar professores para os seminários das dioceses ultramarinas; a aperfeiçoar o ensino e a educação eclesiástica dos alunos dos referidos seminários, que por seus respetivos prelados fossem escolhidos entre os mais hábeis e exemplares para esse fim, e a dar hospedagem e agasalho a quaisquer missionários que, autorizados pelo governo, se dirigissem às missões do ultramar ou delas regressassem. Criado pelo Estado, o Colégio Central das Missões era uma obra estatal. Nasceu como serviço público, de carácter escolar, e o mesmo acontecia com os futuros seminários para o ultramar, pois de acordo com o artigo 13.º da lei de 1856, um dos seus objetivos era suprir a falta de liceus e escolas públicas. A sua administração superior competia ao Ministro da Marinha, aconselhado pelo Conselho Ultramarino, ao qual cabia inspecionar o estabelecimento. O plano de estudos, os programas, a admissão de estudantes, a permanência no ultramar, o financiamento, tudo era decidido superiormente e passava pelo crivo das autoridades estatais. A ideia política que está subjacente à carta de lei de criação do Colégio é a do reconhecimento do estado catastrófico a que tinha chegado a situação ultramarina. A criação do Colégio integra-se perfeitamente no esforço de Sá da Bandeira para implementar a sua visão estratégica para África que era ocupar, efetivamente, a costa de Angola e ligá-la a Moçambique. As missões religiosas seriam um instrumento nessa estratégia. Contudo, há uma diferença em relação ao entendimento anterior. Agora, as missões são entendidas como se representassem apenas um interesse do Estado. Retirava-se-lhes a dimensão religiosa. Curiosamente, não vai ser este o entendimento que os futuros missionários de Cernache vão ter ao longo da sua formação e da sua atividade desenvolvida no império. Os primeiros anos de vida do novo Seminário não foram muito felizes nem produtivos, acreditando no teor dos ofícios dirigidos pelo padre Manuel Joaquim Mendes, superior desde 1860 a Julho de 1861, ao Ministério da Marinha e Ultramar, em que expõe a imoralidade e devassidão em que encontrou a direção do Colégio. Não admira que os Jesuítas fossem chamados para dirigir a instituição. De 1861 a 1866 tiveram a seu cargo a direção temporal e espiritual, com o ensino e formação dos missionários. De 1862 a 1865


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acrescentaram os estudos de humanidades e retórica para os jovens da Companhia. O noviciado esteve lá entre 1861 a 1864. De 1866 a 1871 ficaram apenas com a direção espiritual e o ensino dos missionários. Entretanto, o Colégio funcionava sem estatutos aprovados e lutava constantemente com falta de meios. O edifício estava por concluir e o que havia sido reparado já se encontrava em mau estado. Foi nestas circunstâncias que o bispo D. João Maria Pereira Botelho do Amaral e Pimentel, nomeado superior, em 4 de Julho de 1865, foi encontrar a instituição. Com vontade férrea e extrema dedicação, foi levando por diante as suas intenções. O edifício encheu-se de alunos, conseguiu em 1867, do Cofre da Bula de Cruzada, a primeira prestação de fundos para as obras extraordinárias e o Ministro da Marinha e Ultramar encarregou-o de as dirigir. De tal modo a situação do Real Colégio das Missões tinha melhorado que, quando o conselheiro José Rodrigues Coelho do Amaral o foi inspecionar, em 1867, na qualidade de membro do Conselho Ultramarino, ficou tão satisfeito que, entre outras propostas, apresentou a do aumento de 2.400$000 para 4.800$000 réis de subsídio anual, que era recebido dos rendimentos dos bens das missões de Macau. Este inspetor foi encontrar cinco padres como professores e 32 alunos que haviam entrado depois de 1 de Janeiro de 1866, quase todos apenas sabendo ler, escrever e contar. Não era possível admitir mais porque não havia instalações. Cada professor, em 1866, recebia 100$000 réis, além do alimento e roupa. Não havia dinheiro para mais. No relatório apresentado pelo Superior do Colégio ao inspetor, é referida a já citada dotação de 2.400$000 réis, a que se somam 100$000 réis anuais dados pelo Ministério da Marinha e Ultramar para sustento e vestuário de cada aluno, de 50$000 réis extraordinários aquando da entrada de cada novo aluno, e outros pequenos rendimentos próprios do Colégio. A receita de 1866 havia sido de 6.129$440 réis e a despesa 6.485$950 réis, entrando nesta verba a quantia de 346$005 réis, deficit de anos anteriores. Chama-se a atenção da tutela para o facto de se prever uma diminuição de receitas nos anos seguintes porque, da receita apresentada, 1.150$000 réis provinham de entradas de alunos e as instalações estavam sem capacidade de receber mais. O reconhecimento de que o Colégio não estava suficientemente dotado de recursos financeiros fez com que, por decreto de 21 de Setembro de 1870, a comissão das Missões Portuguesas na China fosse obrigada a dar dos rendimentos daqueles bens a dotação anual de 7500 patacas ao Colégio das Missões de Cernache. Quanto ao seu regimento, a carta de lei de 1856 encarregava o superior do Colégio de organizar os estatutos, já que vários projetos haviam sido enviados à tutela sem que algum fosse aprovado. O último havia sido apresentado no princípio de 1871. A 13 de setembro desse ano, apareceram publicados no Diário do Governo os estatutos do Colégio das Missões, contrariando em todos os pontos essenciais as propostas apresentadas pelo superior, sem este ter sido avisado dessas alterações. Em 1867, D. João Maria Botelho do Amaral e Pimentel, para chamar a atenção de Portugal sobre o Colégio, fundou os Annaes das Missões Portuguesas Ultramarinas, publicação que dirigiu até 1872, ano em que deixou de ser superior. De 1874 a 1884, o bispo D. José Maria da Silva Ferrão de Carvalho Mártens foi superior do Colégio. Durante o seu mandato viveu-se uma das piores crises da instituição. A lei que instituiu o Colégio dispunha no seu artigo 5.º que ele tivesse no reino um ou mais colégios filiais e autorizava o governo a aplicar provisoriamente para esse fim os edifícios dos extintos conventos que se achavam em poder do Estado e que fossem necessários. Em 1880, 24 anos depois, ainda não tinham sido concedidos edifícios e rendimentos para se estabelecerem colégios filiais. D. João Maria Pimentel pensou que tinha chegado o momento certo e insistiu para


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Figura 3. D. João Maria Botelho do Amaral e Pimentel (1815-1889)

Fonte: Col. Particular

que fosse posto à disposição do Colégio o extinto Convento de Chelas, cujas rendas o escrivão da Fazenda, em 1879, havia calculado em 4.624$672 réis. Por decreto de 30 de Setembro de 1880 as instalações foram postas à disposição do superior de Cernache, bem como as rendas, por decreto de 3 de junho de 1881. Todavia, os tempos não haviam de ser favoráveis às boas intenções do bispo de Cernache. As rendas de Chelas não foram cobradas, em 1882 e 1883 foi inesperadamente suprimida a verba proveniente da Bula de Cruzada, e as obras de recuperação e adaptação do edifício do Convento exigiam mais dinheiro do que o esperado. Para agravar a situação, o montante das rendas calculadas pelo escrivão da Fazenda era inferior à realidade e nem sequer chegavam, se cobradas, para as despesas do novo colégio. Faltando os recursos para Chelas, o superior de Cernache viu-se obrigado a desviar para Lisboa uma parte importante dos rendimentos da casa mãe, os quais, todavia, mal chegavam para aquela instituição. Progressivamente foi-se endividando. A situação a que se chegou em Cernache é assim descrita por D. António Thomás da Silva Leitão e Castro, bispo de Angola, e superior de Cernache em 1884 e 1885, numa pastoral datada de 13 de Julho de 1891: Os professores, os empregados e os criados serviam, havia quasi dois anos, sem receberem ordenado, o vice-reitor abandonara o estabelecimento, que não tinha officialmente encarregado de o governar; os alumnos, rotos, esquálidos, sem a roupa mais necessária, eram alimentados com o que o reverendo padre Inácio obtinha sob o seu crédito pessoal, porque os fornecedores nada já fiavam do colégio; a igreja, os quartos, a cozinha, todo o edifício immundíssimo, por não se poder exigir muito do pessoal diminuto, não remunerado e imperfeito, e as aulas com o pavimento podre, onde vegetavam enormes cogumelos, completavam este quadro tristíssimo, que muito amargurava o bondoso e compreensivo superior. (Teixeira, 1905, p. 75)

É neste contexto que surgem os dois relatórios apresentados por Luciano Cordeiro à Comissão de Missões do Ultramar, em 1880. Os relatórios resultam da análise de docu-


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mentos oficiais chegados à Secretaria do Ultramar e referentes aos anos entre 1853 e 1880. Avisa o relator que se circunscreveu positiva e intencionalmente aos documentos que lhe foram enviados e que examinou, “com absoluta reserva de muitas opiniões próprias” (Cordeiro, 1880a, p. 10). O primeiro relatório, datado de 19 de Outubro, refere que a situação “é perfeitamente desgraçada, vergonhosa, insustentável”. Faltava pessoal, faltava formação e faltava remuneração conveniente. Considerava aquela situação como incompatível com a lei e hipócrita. Depois refere o estado calamitoso das missões ultramarinas em Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné e Padroado do Oriente, onde tudo parecia estar mal, desde a falta de missionários, a falta de verbas, o incumprimento da lei, a ruína física das igrejas, a instrução deficiente dos missionários, a falta de disciplina moral e legal dos padres. A situação era de tal modo grave, que o Governador de Angola chegou a escrever ao Ministro do Ultramar que o melhor serviço que ele poderia prestar era não mandar mais missionários. A realidade era “desoladora”, escreve. Para mais adiante concluir: Não temos missões e não temos missionários, no sentido e na aplicação moderna da palavra. (…) O nosso missionário o mais que chega a ser é padre, mas só padre (…) não estudou hygiene, não conhece um offício mechanico, esquece facilmente os rudimentos truncados de sciências naturaes que lhe ensinaram como preparatório legal, nunca pegou talvez num barómetro, numa bússula, numa espingarda, não sabe como se affeiçoa um madeiro, como se roteia um terreno, como se determina uma altitude; não tem noções positivas, seguras da vida real, prática; da industria, do commercio, da civilização moderna, ou se as tem são geralmente falsas, inconvenientes. Em summa, é necessário crear o missionário, porque a verdade é que não o tem. (Cordeiro, 1880a, p. 11)

Por isso o nosso território ultramarino estava a ser invadido por missões estrangeiras, algumas hostis à religião católica e ao Estado português, concluía. Luciano Cordeiro, neste primeiro relatório, refere-se ao Colégio de Cernache referindo que, em tese, era um bom estabelecimento que até enviava para África alguns missionários competentes, reconhecendo a sua direção como “intelligentíssima, dedicada e idonea”. Desculpa-o de não poder “nas circunstâncias presentes, produzir número suficente de missionários verdadeiros, como hoje os queremos e comprehendemos, como os das numerosas missões inglezas, francezas, italianas, etc.” (Cordeiro, 1880a, p.12). Era questão “incontroversa”, afirmava. Termina apresentando cinco recomendações finais: 1) é preciso refundir e reformar inteiramente a Igreja ultramarina portuguesa; 2) é necessário reformar inteiramente a organização e preparação do clero ultramarino; 3) é necessário restabelecer definitivamente a instituição das missões; 4) convém estabelecer dois seminários centrais de preparação do clero ultramarino, um em Portugal outro na Índia; 5) convém promover a organização de uma grande associação de missões que, por subscrição permanente de quotas mínimas generalizada a todas as paróquias, estabeleça um fundo e renda auxiliar das despesas que o Estado terá de fazer com o serviço das missões (Cordeiro, 1880a, p.13). Depois de ter analisado os documentos enviados pela Direção Geral do Ultramar e chegados à Comissão de Missões do Ultramar entre 19 a 26 de Outubro de 1880, Luciano Cordeiro, no segundo Relatório, parece mudar de opinião no que ao Colégio de Cernache diz respeito. Começa por descrever o quadro de estudos de Cernache e lamentar o seu


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carácter demasiado teórico, reconhecendo a inexistência de um “ensino prático ou de aplicação”. Também não se mostra muito favorável a que os missionários aprendam, e depois ensinem, as línguas nativas nas missões, porque o que eles devem é “civilizar, nacionalizando, assimilando, e a língua portuguesa é um dos primeiros elementos de assimilação social e politica” (Cordeiro, 1880b, p.7). Está de acordo que é indispensável aprender as línguas nativas, mas nunca para estabelecer um ensino isolado e particular de cada língua ou dialeto. No que respeita às dotações financeiras, o segundo Relatório conclui, reconhecendo alguma margem de erro, que as receitas somaram, entre 1855 e 1880, a importância de 153.016$000 réis e as despesas, o total de 153.845$000 réis reconhecendo-as como exíguas. Mas acrescenta que exíguos foram também os resultados no que se refere a alunos formados e enviados para o ultramar. E apresenta alguns dados mostrando que de 1855 até 1871, apenas 11 missionários foram “produzidos” e enviados para as colónias (o custo de cada um era de 8.000$000 réis, conclui); que o número de alunos matriculados, desde 1858 até 1871, foi de 297, média anual de 23, sendo o maior número de aulas de preparatórios, e que em 1877/78 a frequência era de 53. Declara não ter conhecimento de outros anos. Luciano Cordeiro considera “estas cousas graves porque levam a condemnar irremissivamnete uma instituição que nas suas condições naturais e justas póde e deve ser muito proveitosa” (Cordeiro, 1880b, pp. 10-11). Relativamente à disciplina no Colégio, e na ausência de outra documentação, refere apenas uma carta, datada de 1872, em que o vice-reitor avisa que aquele estabelecimento está “em perigo de perder a existência em razão das violências da parte dos seus alumnos e das famílias dos mesmos” (Cordeiro, 1880b, p. 5) referindo um caso concreto. Seria apenas um caso isolado que, numa época de crise, foi generalizado? Não se conhecem outras referências. O que o segundo Relatório refere é que também havia o caso de muitos alunos pedirem a remissão do seu compromisso de missionários, pagando os custos feitos até então para não terem que ir para o Ultramar, mostrando um grande receio em ir para África. São situações que nos levam a questionar a qualidade da ação educativa daquele estabelecimento religioso. Luciano Cordeiro conclui que o Colégio das Missões não deve permanecer em Cernache do Bonjardim e lembra a transferência para Mafra. Deixa uma proposta final: Que é necessário reorganizar inteiramente o collegio das missões, subordinando esta, como outras instituições, a uma organização geral dos diversos serviços enherentes ao padroado portuguez no ultramar, e dotando uma e outra, de condições serias de acção moral, instrutiva e politica, sob o aspecto dos interesses não somente religiosos, mas portugueses e científicos”. (Cordeiro, 1880b, pp. 10-11)

Se a situação era má em Cernache, em Chelas não era melhor. A dívida aumentava continuamente nas duas instituições e o superior de Cernache, incapaz de solucionar os problemas, viu-se obrigado a renunciar em maio de 1884. D. António Thomás da Silva Leitão e Castro foi nomeado superior interino em 31 de maio de 1884 e encontrou uma instituição desmoralizada e destroçada. A mesma perceção tinha Manuel Pinheiro Chagas, então Ministro da Marinha, que decide visitar o Colégio e estudar a melhor solução. Em 1884, no preâmbulo do Decreto de reforma dos estatutos, de 3 de dezembro, apresenta ao Rei a fundamentação para a reforma estatutária. Começa por salientar a importância das missões religiosas como fatores de civilização e de progresso dos povos ultramarinos, e reconhece que aos missionários se deveu a civilização, a ciência, o cristianismo e as mais


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nobres e mais perduráveis das conquistas portuguesas, tornando-se urgente, em seu entendimento, que não se perdesse a tradição e que os sacerdotes continuassem na “vanguarda do exército civilizador”. Continua chamando a atenção para o facto de, para conseguir aqueles objetivos, não ser suficiente enviar “varões piedosos e resplandecentes das mais variadas virtudes”, e lembrando que os antigos missionários eram homens “largamente habilitados com todos os conhecimentos que no seu tempo se possuíam” (Annaes das Missões Portuguezas, 1889, p. 1). Prossegue lamentando a decadência que a situação coeva lhe apresentava. E refere: “Caminhou a sciencia, não caminharam com ella os estudos dos missionários portuguezes. Ao lado dos missionários da propaganda (Propaganda Fidei), os nossos, que têem sobre eles tão decididas vantagens, acham-se, de baixo do ponto de vista de educação scientifica, numa verdadeira e lamentável inferioridade” (Annaes das Missões Portuguezas, 1889, p. 1). Por isso se impunha a reforma dos estatutos de Cernache. E essa reforma surge no sentido de dar aos estudos um carácter mais prático e utilitário. Vai no sentido de que os missionários tivessem mais noções científicas, adquirissem conhecimentos práticos de medicina, de cirurgia, e de higiene para os tornar úteis e realçar o seu prestígio entre os povos ultramarinos, e que conhecessem a arte do desenho “para que estivessem aptos a prestar à ciência relevantes serviços nos paízes onde cada passo, que se dá, abre novos horizontes e patenteia novos tesouros à ciência” (Annaes das Missões Portuguezas, 1889, p. 1). Introduziu também o ensino da Ginástica para que não fosse descurada a educação física dos missionários, “cujo corpo tem de estar sujeito a tantas provocações”; os futuros missionários aprendiam ainda os rudimentos de algumas artes e ofícios porque muitas vezes “teriam de contar apenas com as suas próprias forças e com os seus próprios recursos” (Annaes das Missões Portuguezas, 1889, p. 2). Para executar a reforma pretendida, Pinheiro Chagas estava consciente da necessidade de recrutar dirigentes e professores competentes e dedicados. Para isso, garantiu aos professores “um futuro tranquilo” e ao superior os meios necessários: concedia-se uma remuneração condigna ao superior (até então as funções eram exercidas gratuitamente), e os professores passavam a ter, como os professores de liceu, uma aposentação segura. Aos alunos pouco mais se prometia que “ao menos uma velhice tanto mais repousada e serena, quanto mais demorado fosse o seu peregrinar pelas terras do seu sagrado exílio” (Annaes das Missões Portuguezas, 1889, p. 2). Acreditava ele que com esta reforma Portugal ficava habilitado a manter devidamente disciplinada e bem armada para o combate essa legião sagrada de missionários, “que há-de, na vanguarda de todos, pelejar as batalhas da fé, e mostrar aos que nos acusam de não sabermos cumprir os deveres que nos impõe a extensão do real padroado ultramarino, que é ainda nas nossa fileiras que se recrutam os mais prestantes missionários e os que mais alto levantam a bandeira da civilização e da fé” (Annaes das Missões Portuguezas, 1889, p. 2). Dos relatórios de Luciano Cordeiro e desta reforma de Pinheiro Chagas, que vem na sequência deles e em seu resultado, parece poder concluir-se que se estava perante o renascimento do conceito de missão com uma dupla dimensão, a religiosa e a patriótica. Recuperava-se a ideia que parecia ter estado afastada na carta de lei de 1856. Ao mesmo tempo, Pinheiro Chagas decide fazer melhoramentos no edifício. Sob fiança, ou garantia do governo, o Banco de Portugal emprestou ao Colégio de Cernache a quantia suficiente para pagamento das dívidas: o Colégio reembolsou o que mandara para Chelas e o novo colégio era fechado, satisfazendo também a sua dívida. Os recursos concentraram-se em Cernache para que não se interrompesse a educação dos missionários para o Ultramar.


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Educação e Património Cultural: Escolas, Objectos e Práticas

Também por isso, no artigo 101º do decreto de 3 de dezembro de 1884, era o governo autorizado a inscrever sucessivamente no orçamento o que de futuro fosse preciso para o desenvolvimento do projeto das missões e, pelo artigo 102º, o edifício do Convento de Chelas ficava sob administração superior do colégio de Cernache, que o aplicaria na formação de missionários.

Figura 4. Cónego António José Boavida (1838 – 1910)

Fonte: Pereira (2013, p. 23)

O Colégio de Cernache entrou, a partir de então, num período de estabilidade e de algum progresso. O cónego Dr. António José Boavida foi nomeado superior por decreto de 21 de maio de 1885, tomou posse a 31 do mesmo mês e manteve-se na direção até à sua morte, em Agosto 1910. Foi o executor da reforma de Pinheiro Chagas, e durante o seu mandato de 25 anos, o Real Colégio das Missões Ultramarinas atingia, quase plenamente, a finalidade para que havia sido criado. Sob a direção do Cónego Boavida, foram recrutados novos professores para as diversas cadeiras que constavam do novo plano curricular, a biblioteca foi reequipada, construiu-se uma tipografia, e o museu e as salas de aulas foram apetrechadas com equipamento e material didático moderno. O cónego Boavida conseguiu ainda do governo a concessão de um extenso terreno anexo ao Colégio, para o desenvolvimento de atividades de investigação e experimentação com espécies botânicas tropicais. A mata foi cultivada com plantas e sementes provenientes das matas nacionais, não tendo contudo chegado a efetivar-se o projeto do horto-viveiro tropical. O Colégio recebeu ainda livros e mapas geográficos do ministério da Marinha, coleções botânicas e zoológicas do Jardim Botânico da Universidade de Coimbra, e modelos de gesso e cartão da Academia Real das


O Património Cultural da Educação no Espaço Colonial

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Belas Artes 5. Em 1886, o superior do Colégio solicitou à Direção Geral dos Correios, Telégrafos e Faróis a instalação de uma escola telegráfica no Colégio das Missões Ultramarinas que funcionou, pelo menos, até à implantação da 1ª República. No quadro das iniciativas ligadas à organização, reforma e fortalecimento do Colégio das Missões Ultramarinas enquanto instituição de formação de missionários, a sua ação orientou-se sobretudo pela necessidade de dar execução a um ensino mais prático e experimental, e pela preocupação em dar visibilidade ao trabalho missionário realizados nas colónias.

Figura 5. Gaveta de sementes das colónias e exemplar da coleção botânica

Fonte: Fotografia realizada no Seminário das Missões de Cernache do Bonjardim (Col. Particular).

Figura 6. Esqueleto e representação em cartão

Fonte: Fotografia realizada no Seminário das Missões de Cernache do Bonjardim (Col. Particular).

5

Ata da sessão extraordinária do conselho geral do Colégio das Missões Ultramarinas celebrada no dia 26 de Outubro de 1885. Anais das Missões Portuguesas (1889, p. 38).


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Educação e Património Cultural: Escolas, Objectos e Práticas

Figura 7. Coleção de minerais oriundos das várias colónias ultramarinas

Fonte: Fotografia realizada no Seminário das Missões de Cernache do Bonjardim (Col. Particular)

A publicação dos Annaes das Missões Ultramarinas, de que foi diretor entre 1888 e 1891, reflete, a este propósito, um esforço de organização do acervo legislativo e documental, de carácter oficial ou informal, que permite compreender as circunstâncias que envolveram as decisões metropolitanas e a sua execução nas províncias ultramarinas 6. A pouco e pouco consegue triplicar o número de alunos e obter os recursos necessários ao pleno funcionamento do colégio, nomeadamente que o legado de D. Mariana de Áustria fosse totalmente entregue à instituição de Cernache, em 1904, e não apenas as rendas respetivas. Os orçamentos também se tornaram maiores e o saldo financeiro positivo, tendência que se manteve até ao final da Monarquia. A título de exemplo, registe-se os orçamentos do primeiro ano de gerência 1885/86 e o de 1903/04. O primeiro mostra receitas de 12.123$519 réis e despesas de 12.063$687 réis; o segundo, receitas de 23.803$345 e despesas de 23.756$760. Subiam os montantes envolvidos e equilibravam-se as contas, com ligeiro superavit, até. Nada comparável com o que vinha acontecendo antes. Durante o seu mandato, só até 1905, ordenaram-se 164 padres, dos quais 162 foram missionar no ultramar. Apesar da reforma geral de 1884 e da tentativa de modificação dos planos de estudo do Colégio das Missões Ultramarinas, a maioria dos políticos e africanistas continuaram a criticar a formação excessivamente teológica dos “padres seculares” e a insistir na alteração dos métodos de trabalho missionário desenvolvido pelos missionários portugueses em África. Com efeito, a reforma dos planos de estudo não passou do papel, e o Colégio funcionou na prática como um seminário diocesano, onde eram ordenados padres com 6

Sucedeu-se aos Anais das Missões Portuguesas Ultramarinas, que se publicaram desde 1867 a 1872.


O Património Cultural da Educação no Espaço Colonial

REFORMA 1871

CURSO PREPARATÓRIO (SEIS ANOS) • • • • • • • • • • •

1884

Latim Latinidade Francês Inglês Concani, língua chinesa e dialectos de Timor Aritmética e geometria Retórica, oratória sagrada, literatura clássica (especialmente portuguesa) Filosofia racional e moral e princípios de direito natural História e geografia (com especialidade nas colónias) Princípios de física e química (com aplicação nas artes) e Introdução à história natural Princípios gerais de higiene pública e de economia doméstica

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CURSO SUPERIOR (TRÊS ANOS) • • • • • •

História sagrada e eclesiástica Teologia fundamental Dogmática especial Teologia moral Teologia sacramental e pastoral Direito canónico e eclesiástico português

DISCIPLINAS ACRESCENTADAS AO PLANO DE ESTU-

DISCIPLINAS ACRESCENTADAS AO PLANO

DOS PREPARATÓRIO

DE ESTUDOS SUPERIOR

• Física e química (praticada nos laboratórios) • História natural (apoiada em colecções mineralógicas e botânicas) • Etnografia e agricultura (apoiada em colecções etnográficas e de produtos agrícolas coloniais) • Fotografia (oficina)

• Ciências médicas (estudo auxiliado por manequins e plantas anatómicas)

Tabela 1. Planos de estudo do Colégio das Missões Ultramarinas após as reformas de 1871 e 1884 7

sentido de missão, mas não propriamente missionários adequados à situação de competição religiosa que se vivia na África portuguesa (Pereira, 2013, pp. 40-41). De 1905 a 1910 seriam apenas ordenados mais 75 padres, o que viria a dar um total de 311 padres formados entre a fundação do Real Colégio e o advento da 1ª República. Tornava-se evidente que o seminário não tinha capacidade para ordenar o número suficiente de missionários para todas as colónias ultramarinas, africanas e asiáticas. De facto, no início da República, o número de missões em África, especialmente em Angola e Moçambique, era perigosamente diminuto em relação à presença de estações missionárias, católicas e protestantes, que acolhiam missionários ingleses, franceses, austríacos e belgas. Por morte do Cónego António José Boavida, em agosto de 1910, a direção do colégio das Missões foi entregue ao reverendo Cónego Manuel Anaquim, da Sé de Lisboa. Entretanto, com a implantação da República, a direção foi substituída por leigos e sacerdotes adeptos do novo regime, suspensos do exercício das suas ordens. Em 1911, com a Lei da Separação e a nova expulsão das Ordens e Congregações Religiosas de Portugal e Ultramar, o Colégio voltou a passar momentos difíceis. A instituição não estava abrangida pela nova legislação porque era secular e oficial, e a própria lei de separação, no seu artigo 7

A informação resumida nos quadros resulta de dados recolhidos a partir das seguintes fontes: Anais das Missões Portuguesas Ultramarinas (1867 e 1871), 1 a 20; Ofício do padre Joaquim Inácio, vice-reitor do Real Colégio das Missões, ao bispo de Bragança e Miranda, superior do mesmo Colégio, 20 de Outubro 1880, In L. Cordeiro (1880b), pp. 11-12; Boavida (1893), pp. 32-33.


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Educação e Património Cultural: Escolas, Objectos e Práticas

189º, ordenava nova reforma para o Colégio das Missões. Contudo, em abril desse ano, os alunos revoltaram-se e, à exceção de meia dúzia, declararam que não queriam seguir a vida eclesiástica por não terem vocação. Muitos destes alunos iremos encontrá-los, em 1920, nas Missões Laicas, que entretanto se iriam formar, como por exemplo Cândido da Silva Teixeira, António Ribeiro Vaz e José Lopes Xisto. Logo a seguir, o episcopado recusou ordenar os poucos que declaram não desejar seguir a vida eclesiástica. Em consequência, o governo secularizou o colégio, fez cessar a cadeira de Teologia e nomeou, em 12 de abril de 1912, o primeiro superior secular, o capitão João Baptista Valente da Costa, que conduziu os destinos do colégio até 15 de novembro de 1913. Desaparecia o Real Colégio das Missões Ultramarinas, com sede em Cernache do Bonjardim. Preparava-se a criação de outra instituição missionária, de feição laica e com uma orientação totalmente distinta.

Figura 8. Pormenor de um mapa representando a barra do rio Limpopo em Moçambique e globo terrestre em cartão

Fonte: Fotografia realizada no Seminário das Missões de Cernache do Bonjardim (Col. Particular)

2. O Liceu Colonial e a criação do Instituto de Missões Coloniais Entre 1913 e 1917 funcionou no edifício do Seminário de Cernache do Bomjardim o Liceu Colonial, reforma conduzida por Abílio Marçal, advogado, membro do Partido Republicano Português, deputado, congressista ilustre e amigo pessoal de Afonso Costa 8, na altura a presidir ao Governo da República. Terá sido esta ligação a favorecer o estabelecimento em Cernache do Liceu Colonial (1915-1917) e depois do Instituto de Missões 8

Para uma biografia completa de Abílio Marçal, cf. Pereira (2013), pp. 465-504.


O Património Cultural da Educação no Espaço Colonial

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Coloniais (1917 – 1923), numa altura em que existia uma forte corrente política tendente à fundação, em Lisboa, de uma escola de Artes e Ofícios destinada à formação de agentes para África. Mas o apoio de Afonso Costa, que já por várias vezes se manifestara pela opção de Cernache, indicava a confiança do Presidente da República em Abílio Marçal, que veio a apresentar um projeto de reforma do Colégio das Missões Ultramarinas, praticamente adotado na íntegra. Em 20 de outubro de 1915 o ministro da Instrução Pública, João Lopes Martins da Silva Júnior, mandava entrar em vigor o novo regulamento do Liceu Colonial (também conhecido por Liceu Ultramarino) e, logo de seguida, reunia-se a comissão encarregue de elaborar os programas das cadeiras a lecionar. O curso compreendia o ensino profissional e o literário. O curso profissional era constituído por oficinas de carpintaria, marcenaria, moldagem, serralharia, encadernação e tipografia. O curso literário subdividia-se em preparatório (equivalente aos 5 primeiros anos do curso dos liceus) e complementar (destinado sob uma forma prática, a desenvolver as matérias necessárias à ação colonizadora do agente de civilização). A versão definitiva deste regulamento seria publicada em abril de 1916, correspondendo-lhe o seguinte plano de estudos 9:

1º ano

2º ano

3º ano

1ª cadeira – Geografia colonial, descobertas e explorações. Noções de Economia e de Comércio. 2ª cadeira – Física e Química, com aplicação às artes e às indústrias. 3ª cadeira – Horticultura, Sivicultura e Análises de terras. 4ª cadeira – Administração e legislação financeira das colónias. Cartas orgânicas. Sistema de colonização para os diversos países coloniais. Tratados e convenções coloniais. 5ª cadeira – Agricultura, Zootécnica e noções de Medicina veterinária. 6ª cadeira – Higiene colonial. 7ª cadeira – Botânica com referência especialmente à flora tropical. Noções de Astronomia, Mineralogia e Meteorologia. 8ª cadeira – Agricultura colonial, Agrimensura e Topografia. 9ª cadeira – Noções gerais de Anatomia. Doenças mais vulgares dos países quentes e seu tratamento. Noções de Medicina e Farmácia. Tabela 2. Plano de estudos do Curso Complementar do Liceu Colonial (1915)

O responsável pela elaboração do programa do curso complementar e secretário do Liceu Colonial, Manuel Antunes Amor, era secundado por um conjunto de professores responsáveis pela elaboração e ensino dos programas das cadeiras. Contam-se entre eles Virgílio Nunes da Silva (1ª), Gualdim de Queiroz e Melo (2ª, 6ª e 9ª), e Ribeiro Gomes (4ª e 7ª). Cada aula durava cerca de setenta e cinco minutos. O currículo contemplava três aulas por semana destinadas às cadeiras 1ª, 3ª, 5ª, 6ª e 8ª, e cinco aulas por semana destinadas às cadeiras 2ª, 4ª e 7ª. As quintas-feiras eram destinadas às cadeiras 3ª, 5ª e 8ª, ou seja, ao ensino de matérias organizadas sob a forma de uma “escola agrícola”. Para além destas cadeiras, ministradas por dez professores, o Liceu Colonial dispunha de um professor de Agricultura e um de Ginástica, e de vários mestres de artes e ofícios e música que, em conjunto, eram responsáveis pelas questões do ensino. A educação pertencia aos “prefeitos”, no caso a Cândido da Silva Teixeira, ex-aluno do Colégio das Missões Ultramarinas (e futuro chefe da missão civilizadora “Pátria” em Moçambique). A diversidade 9

Novo regulamento do Colégio das Missões Ultramarinas, aprovado e mandado por em execução, provisoriamente, por despacho de S. Exª o Ministo de Instrução Pública, de 20 de outubro de 1915 – Diário do Governo (1916, 15 de abril), II série, p. 89.


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Educação e Património Cultural: Escolas, Objectos e Práticas

de matérias e de oficinas implicava um investimento enorme em equipamentos, materiais e criação de espaços adequados ao ensino e à prática dos conhecimentos que o Liceu se propunha ministrar. De facto, equiparado aos restantes liceus do país, a dotação do Liceu Colonial contava com 18.000$000 réis anuais, sendo que os professores eram pagos pelo orçamento da Câmara Municipal da Sertã. A verdade é que, em tempos de crise financeira, a dotação orçamental só chegou após a reforma do Colégio das Missões, o que não terá impedido o funcionamento regular do Liceu até essa altura.

Figura 9. Liceu Colonial: Anfiteatro de Ciências Naturais

Fonte: Fotografia realizada no Seminário das Missões de Cernache do Bonjardim (Col. Particular)

O processo de reforma que modificaria profundamente a estratégia do governo relativamente ao papel a ser desempenhado pelas missões portuguesas em África iria, contudo, continuar. Lógicas de governo, crises políticas e legislação desarticulada não impediram a confluência de vontades que aprofundou a reforma do Colégio, transformando-o, em 1917, na sequência da Lei de Separação de 20 de abril de 1911, em Instituto de Missões Coloniais 10. Com sede no antigo edifício do Colégio das Missões Ultramarinas, o Instituto passava a ser considerado como “uma escola de educação de alunos com destino ao serviço nas colónias como agentes de civilização” 11. Com este propósito em vista, o instituto organizava-se, à semelhança do Liceu Colonial, em dois graus de ensino: o curso preparatório e o curso complementar. No entanto introduziam-se algumas alterações. O curso preparatório compreendia o curso geral dos liceus, com a mesma duração e organização 10

Decreto nº 3352 de 8 de setembro de 1917.

11

Art. 2º, decreto nº 3352 de 8 de setembro de 1917. In Boletim das Missões Civilizadoras (BMC). (1920, maio), 2, pp. 44-52.


O Património Cultural da Educação no Espaço Colonial

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daquele, e seria “complementado por uma arte ou ofício ou ramo prático de qualquer conhecimento útil”, assim como por uma incidência das aprendizagens nos “trabalhos práticos respeitantes a cada uma das cadeiras”, para além da “prática desenvolvida das línguas francesa e inglesa” 12. O curso complementar, “destinado a um maior desenvolvimento das matérias estudadas no curso preparatório e a ministrar ao futuro agente de civilização os conhecimentos práticos necessários à boa ação colonizadora”, tinha a duração de três anos 13. O plano de estudos incluía um conjunto de alterações nas disciplinas oferecidas anteriormente pelo Liceu. Para além da mudança nas designações de algumas disciplinas, a grande inovação foi, sem dúvida, a ênfase dada à Pedagogia, que passou a ser ensinada em duas cadeiras do curso complementar. Com esta reorganização dos estudos, a direção do instituto considerava ter fundado “um estabelecimento em cuja organização” se tinha atendido a “todos os ensinamentos da experiência e às conquistas da ciência em matéria de ensino colonial” 14. 1ª cadeira – Geografia colonial, descobertas e explorações. 1º ano 2ª cadeira – Física e Química, com aplicação às artes e às indústrias. 3ª cadeira – Princípios de Direito civil, político e administrativo. 4ª cadeira – Agrologia, Agricultura, Horticultura e Sivicultura. 5ª cadeira – Higiene colonial. 2º ano 6ª cadeira – Botânica, Zoologia, Mineralogia e Geologia, com especial referência aos países tropicais. 7ª cadeira – Pedagogia geral. 8ª cadeira – Agrimensura, Topografia e Máquinas agrícolas.

3º ano

9ª cadeira – Noções gerais de Anatomia e Fisiologia; doenças mais gerais dos países quentes e noções de Medicina e Farmácia. 10ª cadeira – Administração e legislação financeira das colónias, cartas orgânicas, tratados e convenções coloniais. 11ª cadeira – Pedagogia especial e prática. 12ª cadeira – Agricultura colonial, Zootecnia e noções de Medicina veterinária.

Tabela 3. Plano de estudos do curso complementar do Instituto de Missões Coloniais 15 (1917)

Ao finalizarem a sua formação os alunos seriam colocados “à disposição do ministério das Colónias” e seriam, em seguida, nomeados “agentes de civilização” com destino a uma missão civilizadora, nos termos do decreto de 22 de Novembro de 1913 16. Em troca da formação recebida, os alunos contraíam a obrigação de servirem o Estado como agen-

Art. 3º, § 1º e 3º, decreto nº 3352 de 8 de setembro de 1917. In BMC. (1920, maio), 2, p. 44. Art. 3º, § 2º, decreto nº 3352 de 8 de setembro de 1917. In BMC. (1920, maio), 2, p. 45. 14 A. Oliveira Gomes. BMC. (1920, abril), 1, p. 7. 15 Decreto nº 3352 de 8 de setembro de 1917 (artigo 4º) In BMC. (1920, maio), 2, p. 45. 12 13

16

O decreto nº 233, de 22 de novembro de 1913, que tornou extensivas às colónias as disposições da Lei de Separação do Estado das Igrejas, estabeleceu as bases das missões civilizadoras e autorizou o governo a criá-las. Essa criação seria consagrada, seis anos mais tarde, no decreto nº 5778 de 10 de maio de 1919 (Lei das Missões).


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tes de civilização durante 12 anos, quer em Angola, quer em Moçambique 17. Sob proposta do ministro da Instrução Pública, Barbosa de Magalhães, o governo fez publicar o decreto nº 3469 de 19 de outubro de 1917, que aprovava o regulamento do Instituto de Missões Coloniais. Nesse documento, a finalidade do Instituto afirmava-se plenamente em acordo com os princípios ideológicos da conceção educativa republicana, uma vez que se reclamava uma instituição “destinada à preparação dos agentes de civilização dos nossos domínios coloniais, orientada no sentimento do dever, no amor do trabalho e no culto da Pátria e da República”. Esta educação incumbia agora a todos os atores: aos professores e aos prefeitos (de formação laica) com a colaboração do restante pessoal do instituto 18. Nesta aceção, o Estado retirava à Igreja não apenas a tarefa de formar, como a responsabilidade em educar os agentes de civilização. O mesmo regulamento esclarecia que apenas os alunos internos gratuitos eram obrigados ao serviço das missões civilizadoras, fazendo igualmente saber aqueles que estavam em condições de eximir-se ao pagamento de matrícula: os filhos de professores da instrução primária, os de portugueses falecidos ou incapacitados nas colónias ao serviço do Estado, os de pais que tivessem prestado bons serviços à República, os descendentes diretos de agentes de civilização, e os filhos de pessoas pobres, de preferência órfãos 19.

Figura 10. Abílio Correia da Silva Marçal (1867 – 1925)

Fonte: Silva, (2013, pp. 228)

2.1. A criação das missões civilizadoras O Ministro das Colónias, Dr. João Soares, introduziu no seu ministério duas importantes medidas: uma a dos altos-comissários, e a outra a das missões civilizadoras. Embora as Missões Laicas tenham sido criadas pelo decreto nº 233 de 22 de novembro de 1913, tornando extensivas às colónias as disposições da Lei de Separação do Estado das Igrejas, a sua lei orgânica só foi publicada no decreto nº 3352 de 8 de setembro de 1917. Foram 17

Art. 11º, 12º e 13º, decreto nº 3352 de 8 de setembro de 1917. In BMC. (1920, maio), 2, p. 46.

18

Artigo 1º, decreto nº 3469 de 19 de outubro de 1917. In BMC. (1920, junho), 3, p. 38.

19

Artigo 3º, decreto nº 3469 de 19 de outubro de 1917. In BMC. (1920, junho), 3, p. 39.


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dotadas e organizadas em 1919, pelo decreto nº 5778 de 10 de maio, e as primeiras quatro que partiriam para o Ultramar foram constituídas pelo decreto de 12 de junho de 1920. No entanto, já em 1916, e talvez algo precipitadamente, o Instituto das Missões Coloniais enviava para Moçambique o primeiro missionário, José Lopes Xisto. Este facto suscitou duras críticas do então Governador-Geral Álvaro de Castro, que considerava mais útil preparar os agentes de civilização nas próprias províncias ultramarinas: Nesta ordem de ideias fazia parte do meu plano a montagem duma missão modelo no interior, uma espécie de escola, onde os missionário recém-chegados fariam um estágio de um ou dois anos para se familiarizarem com o meio, estudarem os usos e costumes indígenas e psicologia do negro e aprenderem a língua como sua própria. Sem esta preparação a obra das missões e o trabalho dos missionários estará sempre sujeito a tais contratempos que os seus resultados, comparados com o esforço dispendido, parecerão mesquinhos. (BMC. (1920, maio), 1 e 2, p. 7)

Com a criação das missões civilizadoras institui-se uma nova conceção sobre o trabalho missionário nas colónias, de feição totalmente laica. No quadro do colonialismo europeu, esta configuração destaca-se como um dos momentos mais fortes da afirmação do republicanismo em Portugal, com um enorme impacte nas questões educativas das colónias africanas. Pelo disposto no artigo 1º do decreto nº 5778 de 10 de maio de 1919, foram assim criadas nos “nossos domínios coloniais doze missões civilizadoras, sendo seis em Angola, quatro em Moçambique, uma na Guiné e outra em Timor” 20. Cada uma dessas missões era constituída por indivíduos diplomados com o curso do Instituto de Missões Coloniais, denominados “agentes de civilização”, que deveriam ser em número de cinco por cada missão 21. A respeito das suas finalidades na obra de civilização, Abílio Marçal (1920), reconduzido a diretor do Instituto, comparava “as missões religiosas com as civilizadoras” distinguindo-as apenas nos objetivos: os dois organismos não colidem nem se excluem (…) são instituições diferentes, com o mesmo fim, é certo – civilizar as raças africanas – mas com objectivos diversos. Umas são missões de propaganda, as outras missões de ocupação e colonização. Umas são a obra civilizadora de grandes associações missionárias (…) as outras são a acção e a iniciativa do Estado, no cumprimento do seu (…) dever, na expansão da sua nacionalidade, pelo ensino da sua língua, da sua história, dos seus costumes e das suas instituições, na firmação e afirmação da sua soberania. (…) Entendo mesmo que umas e outras se completam e nessa cruzada bem podem dar-se as mãos. (p. 19)

As missões pressupunham uma gestão democrática, sendo administradas por todos os seus membros e chefiadas por um elemento sob proposta do Instituto. Um dos aspetos mais curiosos desta configuração dizia respeito à sua composição, já que, fazendo parte do seu pessoal, eram admitidos a cada missão cônjuges, irmãos e filhos dos agentes de civili-

Art. 1º do decreto nº 5778 de 10 de maio de 1919. In BMC. (1920, julho), 4, p. 25. Na realidade foram criadas doze missões, entre 1920 e 1925, mas apenas em Angola e Moçambique. 21 Art. 2º do decreto nº 5778 de 10 de maio de 1919. In BMC. (1920, julho), 4, p. 25. 20


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Figura 11. A Missão Civilizadora Camões.

Sentados: João de Jesus Ferreira e D. Leopoldina de Lacerda. De pé: Luís dos Reis, José da Conceição Moura e Carlos Correia de Lacerda (chefe da Missão) Fonte: BMC (nº 6, 1920, p. 3)

zação, desde que fossem de maior idade e tivessem o curso dos liceus até ao 3º ano 22. A noção de família – a criação de um lar em solo ultramarino – expressão da ênfase que o republicanismo atribuía à função integradora daquela instituição social, não colidia com a função de moralização social das missões religiosas. Para exemplificá-lo, Abílio Marçal (1920) concretizava o sentido em que as duas organizações podiam, e deviam, dar-se as mãos: Os agentes de civilização, levando as suas mulheres para o interior, deixam-nos a garantia duma vida morigerada e isenta de velhos abusos e incorrigíveis imoralidades, e levam ao negro o exemplo duma família civilizada. E é sobre a constituição da família que, segundo modernas e indiscutíveis teorias, deve assentar a nova acção civilizadora. (p.21)

Entre 1920 e 1925 seguiram para Moçambique cerca de 102 agentes de civilização do sexo masculino, e 26 do sexo feminino; para Angola seguiram 51 e 16, respetivamente, do sexo masculino e feminino 23. Às agentes de civilização e às auxiliares estava atribuído o 22

Art. 5º, decreto 5778 de 10 maio de 1919. In BMC. (1920, julho), 4, p. 26.

23

Ver em anexo, Movimento dos(as) agentes de civilização para Moçambique e Angola (1920-1925). Note-se que, entre os homens que foram para Moçambique, 4 faleceram devido a terem contraído malária, e outro agente faleceu em Angola por razões desconhecidas.


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ensino feminino, que compreendia, para além das matérias vulgarmente ensinadas no ensino primário elementar, rudimentos de instrução nas Ciências domésticas (costura, tecelagem, serviços de lavandaria, preceitos de higiene e noções de puericultura). No entanto muitas destas agentes, em virtude da falta de pessoal credenciado, ocuparam-se igualmente das escolas do ensino masculino. Durante a sua permanência nas missões laicas muitas destas famílias tiveram filhos, nem todos tendo sobrevivido às condições impostas pela vida no sertão africano. 2.2. O boletim das missões civilizadoras A determinação da publicação do Boletim das Missões Civilizadoras, estipulada no decreto de 8 de setembro de 1917, constitui um precioso auxiliar para a compreensão da história da implementação das missões civilizadoras laicas durante a República. De um modo genérico, os objetivos pretendidos com a sua publicação estão bem expressos no normativo que lhe conferia o primeiro impulso: O instituto publicará um boletim destinado à propaganda da nossa acção civilizadora, a tornar conhecidos os trabalhos dos nossos agentes e à discussão dos altos problemas de colonização. Será dirigido pelo director com a colaboração obrigatória de todos os professores 24. (Decreto nº 3352, de 8 de Setembro de 1917, p.47)

Apesar do seu carácter propagandístico e de vulgarização ligado ao estudo de assuntos coloniais, aquela publicação torna possível aceder a um grande conjunto de dados acerca da composição e atuação das missões laicas nas colónias, nomeadamente informações relacionadas com o seu quotidiano e com as condições de exercício das suas atribuições pedagógicas e científicas. Por outro lado, o Boletim das Missões Civilizadoras apresenta um conjunto de textos doutrinários centrados na função formativa das missões cujo conteúdo, além de revelar os debates e as polémicas em torno da dimensão religiosa ou laica dos agentes de civilização, torna explícita a estratégia missionária republicana para as colónias. Abílio Marçal, diretor do instituto, assinará a publicação desde o primeiro número até à data do seu falecimento em 1925, traçando o perfil do programa de civilização que se pretende implementar em África. Não se tratando de uma revista de ensino ou de reflexão pedagógica propriamente dita, o boletim aborda assuntos de teor pedagógico e educacional relacionados, na maior parte dos casos, com a fundamentação ideológica da atividade missionária e com a formação institucional dos seus agentes. O seu papel foi central no apoio prestado aos “agentes de civilização”, principalmente pelo facto da lei das missões não ter sido explícita em relação ao papel educativo e pedagógico das estações missionárias no plano da sua intervenção no domínio escolar. Com efeito, as missões laicas nasceram de forma indefinida, quer quanto ao seu papel educativo, quer no que dizia respeito às suas finalidades pedagógicas, cumulada pela ausência de um programa estratégico explícito de intervenção no contexto colonial. No Artº 3º da Lei das missões, afirmava-se que elas exerceriam “a sua acção por meio de escolas para o ensino da nossa língua e da nossa história, de artes e ofícios, explorações agrícolas, estabelecimento de enfermarias e demais meios de educação e ocupação” (Decreto nº 5778 de 10 de Maio de 1919). 24

Art. 18º, decreto nº 3352 de 8 de setembro de 1917. In BMC. (1920, maio), 1 e 2, p. 47.


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No Artº 17 do mesmo normativo, estipulava-se que “o ensino da língua portuguesa e da história de Portugal” era obrigatória em todas as missões e sucursais, e que só por portugueses poderia ser administrada. Para o Procurador-Geral das Missões, Abílio Marçal (1920), o papel central das missões assentava mais propriamente na “civilização” e na “ocupação” do território, afirmando oficialmente, para o indígena e para o estrangeiro, o domínio e a nacionalidade portuguesas. No que respeitava à “acção civilizadora”, a educação do indígena assentava no “exemplo prático da família civilizada”, motivo pelo qual o pessoal das missões laicas tinha de ser casado “como garantia de moralização da missão” (p.7).

Figura 12. A Missão Pátria.

Sentados: Luís José de Oliveira, Ana Rosa Pires Teixeira, António dos Santos Leão De pé: Ermelinda da Silva Teixeira, Cândido da Silva Teixeira (Chefe da Missão), Joaquim José de Sousa e Marieta de Sousa Fonte: BMC (nº 10, 1921, p. 5)

Estas intenções vagas foram objeto de interpretações e apropriações diferenciadas de acordo com as orientações políticas de cada governador. Esta liberdade de interpretação vinha na sequência das leis nº 277 e 278, de 1914, relativas às bases orgânicas da administração civil e financeira das colónias, reformuladas pela legislação de 1920, atribuindo aos altos-comissários plenas competências executivas 25. Em Angola, o Alto-Comissário Norton de Matos atribuiu às missões laicas o fim principal da instrução dos indígenas da Província, pertencendo-lhes a direção, gerência e administração das “escolas-oficinas” 26. No âmbito dessa atribuição, cabia-lhes espalhar a civilização portuguesa, prestigiar a Pátria e nacionalizar as populações indígenas; promover a vulgarização da língua portu25

Leis n.os 1015 e 1023, de 7 e 20 de Agosto de 1920 e Decreto nº 7008, de 9 de Outubro de 1920.

26

Artº 14, § único, Decreto nº 242 de 22 de Fevereiro de 1923.


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guesa; criar agricultores e operários; incutir nos indígenas hábitos de limpeza, higiene material e moral; prestar assistência aos indígenas como enfermeiros; e, por último, prestar assistência às mulheres grávidas, crianças e recém-nascidos, velhos e inválidos. Por sua vez, Hugo de Azevedo Coutinho, Alto-Comissário da República em Moçambique, entendia que as missões laicas estabelecidas na província tinham outras prioridades, nomeadamente: o ensino elementar de primeira e segunda classe da escola primária; o desenvolvimento da moral e da cultura física; o ensino especializado numa ou mais profissões ou ofícios; a preparação dos alunos para os trabalhos agrícolas; e, por fim, a propagação dos indispensáveis conhecimentos de higiene. Para além destas prioridades, as missões laicas propunham-se ainda outros objetivos: promover o prestígio da civilização europeia e o da civilização e soberania portuguesa; promover a vulgarização da língua portuguesa; criar entre os indígenas o amor ao trabalho; fornecer assistência médica às crianças e adultos e ensinar-lhes preceitos de higiene; e, ainda, colecionar dados botânicos, zoológicos e etnográficos que deveriam ser remetidos às repartições da província27. Os dois governadores pareciam assim concordar na articulação da instrução com a da educação completada pelo serviço cívico, assente na assistência ao indígena. Foi, sem dúvida, a tentativa mais bem conseguida em dar algum sentido a um conjunto de disposições sobre a tarefa das missões laicas. Mas, como tivemos ocasião de assinalar noutro lugar, uma tarefa de enormes proporções (Madeira, 2013). Recorde-se que a definição de uma política para as missões laicas em contexto colonial coincidiu praticamente com o zénite da sua existência. As missões civilizadoras laicas tiveram o seu maior incremento em 1923, quando foram aumentadas as dotações e os missionários puderam aliviar as dificuldades em que se encontravam. Seriam extintas daí a dois anos pelo ministro das Colónias, João Belo, na sequência de um inquérito coordenado por Santa Rita, que ditaria o encerramento do Instituto das Missões Coloniais (Decreto nº 12886, B.O., 6, 1927). Tratou-se, em qualquer dos casos, de um empreendimento muito amplo de finalidades cuja amplitude, e sobretudo, magnitude, discordava dos meios e recursos que a República punha à disposição do Instituto e, igualmente, dos governos coloniais. Não deixa por isso de admirar, pelo conjunto de tarefas exigidas aos agentes de civilização, as expectativas megalómanas e algo irrealistas que recaíam sobre estes jovens, e ainda mais surpreendente aquilo que, neste capítulo bizarro da colonização portuguesa, foi possível alcançar. 2.3. Utopia, resistência e inovação: O fecho de um ciclo da história da educação colonial Em face de tantas indeterminações não restava aos agentes de civilização outra solução senão avançar com a sua própria interpretação programática, com a anuência do diretor do Instituto das Missões Coloniais, Abílio Marçal, que guiou a ação e animou o empenho dos jovens republicanos que deram “corpo e alma” ao projeto missionário republicano. O diálogo epistolar trocado entre os agentes de civilização e o Procurador das Missões foi, durante anos, o único apoio a que os missionários podiam aspirar do ponto de vista da regulação das suas práticas. Muitas dessas cartas, publicadas no Boletim das Missões Civilizadoras, apresentam verdadeiros quadros, fontes insubstituíveis de informação acerca das condições de vida dos missionários e missionárias, património único na história 27

Artº 1º, 2º e 3º da portaria provincial nº 42, de 7 de Fevereiro 1925.


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da colonização europeia em África. O estilo e o detalhe destas descrições permitem-nos reconstituir o processo de estabelecimento e de funcionamento destas missões, até porque elas figuram, tanto quanto apurámos, como as únicas formações missionárias laicas que um Estado europeu enviou para África durante o período da colonização. O período histórico e o contexto em que desenvolveram a sua ação constitui, por si só, motivo de interesse e matéria de reflexão para avaliar as tenacidade destes missionários. É preciso não esquecer que, em meados dos anos 20, uma viagem marítima até Moçambique demorava cerca de dois meses, que a correspondência chegava pelo menos de três em três, e que as deslocações na província eram difíceis, senão impraticáveis, não apenas pela inexistência de veículos motorizados, como pelas condições climatéricas que tornavam intransitáveis as estradas e os caminhos, principalmente durante a época das chuvas (Marques, 2001). A primeira tarefa destes missionários consistia em escolher os locais adequados para o estabelecimento das missões, decididos em função da proposta do chefe da respetiva missão e consultadas as autoridades locais. O primeiro embate resultava, justamente, de contrariedades relacionadas com o desconhecimento do contexto local, nomeadamente das condições climatéricas tropicais, não sendo raro terem de mudar-se de território e reconstruir tudo de raiz. A necessidade de acesso a materiais de construção e mão-de-obra tornavam igualmente os primeiros tempos muito dependentes do apoio dos administradores das circunscrições, numa altura em que as dotações das missões eram irrisórias e em que o conceito de missões laicas era ainda mal aceite e pouco compreendido nas colónias 28. Os critérios para a escolha do local de estabelecimento estavam dependentes de vários fatores: da densidade populacional na região, das condições para iniciar o cultivo das machambas, da existência de fontes de água, etc. No entanto, o “combate à desnacionalização” das províncias figurava, sem dúvida, no topo da lista das prioridades das missões laicas. Em diversos pontos da província de Moçambique os agentes de civilização portugueses constatavam, impotentes, a expansão e a superioridade – em recursos humanos, materiais e financeiros – das estações missionárias estrangeiras. Tinha o propósito de visitar uma missão estrangeira para ver como elas vivem, como funcionam o que fazem. Por curiosidade. E para conhecer o campo inimigo (…) Fui recebido com muita reserva e manifesta suspeita sobre a minha identidade [na Missão da American Board no Maxixe, missão do Chicuque]. Tudo ali é grande: hospitais, escolas, oficinas, residências. Muita gente. Movimento e vida. (…) O chefe é o Dr. Charles Stauffacher. É médico, olhos vivos, maneiras amáveis, mas pouco expansivo. A missão é por assim dizer uma povoação, constituída por várias construções, todas elas cobertas de zinco e algumas construídas em alvenaria. (…) O hospital é uma excelente casa, de primeiro andar, para mulheres e para crianças e várias dependências para instalação dos diversos serviços hospitalares, excelentemente montados e dotados de aparelhos e instrumentos que para a maior parte dos nossos hospitais constituem uma novidade. (…) Visitei as aulas numa das quais, a umas setenta raparigas, que variavam entre os quinze e os vinte anos de idade, se ensinava a Bíblia traduzida em… chilande, que é a língua indígena! (…) 28

A incompreensão das autoridades locais acerca do papel das missões e a indiferença relativamente às condições em que funcionavam foram frequentemente objeto da correspondência enviada pelos diversos chefes de missão em Moçambique ao Procurador-Geral das Missões, Abílio Marçal. Cfr., por exemplo, BMC. (1921, fevereiro a abril),11, p. 22 e BMC. (1921, novembro e dezembro), 14, pp. 25-26.


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Num pavilhão um pouco mais afastado um numeroso grupo de crianças cantava em coro, um hino…em inglês! Tudo é grande nesta missão a que mais propriamente poderíamos chamar uma colónia ou feitoria americana!... [Correspondência do agente de civilização José Joaquim de Sousa, da missão “Pátria”, endereçada a Abílio Marçal]. (BMC. (1921, outubro), 13, pp. 28-34)

A ideia de contrapor à ação das missões protestantes a influência dos valores nacionais e a imposição da língua traduzia-se, entre outros aspetos, na fundação de escolas e internatos onde os indígenas pudessem aprofundar os contactos com os portugueses. A tentativa de associar a instrução com a educação profissional e cívica estava bem presente no tipo de ensino e nos métodos utilizados pelos agentes de civilização. Apesar da sua frequência regular, as condições em que estas escolas, internatos e oficinas funcionavam expunha tanto a insuficiência de recursos como o excesso de confiança nos resultados esperados. No entanto, considerando que em cada estação missionária havia sempre uma escola, não estaremos longe da verdade se dissermos que existiam tantas quantas as missões e sucursais, isto é, cerca de uma dúzia entre as duas províncias. Envio a v. os mapas da frequência escolar desta missão central e da sucursal de Dacalo, bem como do movimento das ambulâncias. Em Nhambel a escola abri-a no dia 22 de Maio; tem presentemente uma frequência regular de 71 alunos, incluindo 15 do sexo feminino. (…) Em Julho abri a oficina de alfaiataria (…) tenho na oficina 12 aprendizes (…). Em Julho abrimos a oficina de costura e ensino doméstico, com 15 alunas matriculadas (…) Junto a esta abri uma oficina de tecelagem. (…) Finalmente tenho já a funcionar a oficina de carpintaria e marcenaria, por agora apenas com 4 aprendizes. Como v. verá tenho 4 oficinas (…) mas que em breve estarão em pleno desenvolvimento e actividade, e assim, lançadas as bases duma boa missão. (…) Construí já três barracões para habitação, três cozinhas, três capoeiras e dez palhotas para moleques, arrecadações e habitação dum cipaio e sua família. Tenho em construção um barracão de 15 por 6 metros onde vou instalar as oficinas de carpintaria e alfaiate” [Carta do chefe da missão “Pátria”, Cândido da Silva Teixeira endereçada a Abílio Marçal]. (BMC. (1922, agosto e setembro), 16, pp. 31-34) Tenho 91 alunos, incluindo 20 rapariguitas. É muito para uma pessoa só, porque eu não lhes ensino somente a leitura e a escrita: ensino-lhes também utilidades da vida doméstica. (…) Três são já uns belos cozinheiros, quatro lavam e passam a ferro excelentemente; seis cozem pão; quatro, destinei-os ao serviço de mesa e limpeza [Carta da missionária Ermelinda Teixeira de Oliveira da missão “Pátria” enviada a Abílio Marçal] (BMC. (1923, janeiro), 18, pp. 28-30). A minha aula tem 36 alunos, quase os mesmos que tinha em Moçambique (…) o sistema de ensino, a orientação é que tem de ser diferente. Na cidade ensinava crianças que já sabiam ler português; era só aperfeiçoá-las. Aqui não. Tive que começar primeiro por ensinar-lhes o nome das coisas em português, para que servem, de que são feitas, como se chama o artista que as faz, os instrumentos com que se fazem. Enfim, é uma lição de coisas. A primeira que vem à mão. Uma vez peguei no meu relógio, e a explicação desta caixinha e daquilo que com ela se relaciona, foi objecto de uma lição. (…) No dia seguinte sabiam o que era um ponteiro e um minuto e conheciam a hora e a divisão do tempo. (…) Depois de assim desbravadas, ensino-os a contar e é depois que começo a ensinar-lhes as


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primeiras letras. (…) É assim que consigo que os meus alunos estejam na aula satisfeitos e já falem desembaraçadamente a nossa língua [Carta do missionário Pedro Alves Gago, da missão “Camões”, enviada a Abílio Marçal]. (BMC. (1922, outubro a dezembro), 17, pp. 36-37)

Mas a necessidade urgente de transmitir a língua, os valores e os símbolos nacionais também pressionava à inovação. A utilização de métodos de aprendizagem da leitura e da escrita eficazes refletiu-se, nomeadamente, num certo experimentalismo pedagógico. As lições de coisas relacionando a leitura e a escrita com os artefactos e as atividades locais surgiam naturalmente aos agentes-professores como a melhor estratégia de ensino. Um dos manuais mais utilizados pelos agentes de civilização era a Cartilha Experimental (Fernandes, 1923), livro que realizava uma adaptação da filosofia da Cartilha Maternal à realidade africana. Do seu autor, Alfredo Fernandes, sabe-se que era natural de Proença-a-Nova (1888-1966) e que produziu outras obras de teor pedagógico, entre as quais Vida Infantil – Leituras para a primeira classe do ensino primário, e Baloiçando – Leituras para a segunda classe do ensino elementar. Quanto à Cartilha Experimental, que conheceu, pelo menos, 25 edições, tratava-se de um pequeno e simples manual para ensinar crianças a ler e escrever (Fernandes, 1923). A Cartilha tinha como subtítulo Processo intuitivo, analítico, sintético, inventivo, fonomímico, e legográfico, e seguia, segundo as palavras do autor, o “método globalístico”, apresentando primeiro a palavra, depois a sílaba, finalmente a letra, “porque a criança não começa a falar por frases mas sim por palavras”. O manual era acompanhado pelo vialitra, quadro de leitura auxiliar da cartilha, composto por uma caixa-quadro com letras móveis, moldadas e coloridas. Foi muito provavelmente através da ação educativa das Missões Laicas em Angola e Moçambique que a utilização da referida cartilha foi divulgada às províncias ultramarinas.

Figura 13. A Cartilha Experimental

Fonte: Imagens realizadas a partir do exemplar original (Col. Particular).


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Tendo em conta as dificuldades, nomeadamente de ordem financeira, as missões laicas, com a sua carga excessiva de idealismo, lograram alcançar algumas proezas. Os mapas do movimento escolar nas escolas das missões e nas sucursais deixam imaginar o esforço empreendido pelos agentes nas suas diversas funções de instrução e educação cívica. No entanto, em termos quantitativos, estimamos com generosidade em cerca de um milhar a totalidade da população escolar que terá sido abrangida pela ação das missões civilizadoras laicas em Angola e Moçambique. Entretanto, nas páginas do Boletim das Missões Civilizadoras, as imagens enviadas pelos missionários laicos, reproduziam orgulhosamente as construções e os trabalhos realizados com o empenhamento de todos. Enquadradas, em primeiro plano, pelo “exemplo moralizador da família”, as oficinas, enfermarias, escolas e internatos conviviam, lado a lado, com a exuberância das machambas cultivadas. Sem dúvida que estes resultados se ficavam a dever ao zelo com que estes republicanos se dedicavam à causa da civilização já que, apesar dos constantes apelos para o aumento das dotações das missões, muitas construções tinham ficado por conta dos seus vencimentos, que asseguravam amiúde o funcionamento das várias valências da missão. Se acrescentarmos a este facto a má vontade das autoridades locais contra o estabelecimento das missões, a dificuldade em contratar pessoal auxiliar, os baixos salários e o alto custo de vida, agravado pelo pagamento de direitos aduaneiros sobre os produtos requisitados à metrópole, espanta imaginar as realizações conseguidas por algumas missões. Apesar de todos os entraves construíram-se escolas, oficinas e enfermarias que funcionaram, pelo menos, nas estações missionárias mais bem dotadas de pessoal; ensinaram-se ofícios e cultivaram-se machambas, aprendeu-se o abc, e com ele a língua portuguesa; introduziram-se métodos de estudo alternativos; afinaram-se cartas; desenharam-se mapas; constituíram-se famílias; sucumbiu-se à malária. Esta resiliência não deixou indiferentes as autoridades locais, tanto civis como religiosas. Após a reserva inicial, e até mesmo de desconfiança, para com as Missões Laicas, a atitude transformou-se, a pouco e pouco, em admiração e louvor. A expansão missionária estrangeira não dava tréguas, e o pragmatismo impunha-se com recurso a todos os meios de civilização disponíveis. No entanto, apesar de todos os esforços e sacrifícios patrióticos, os resultados alcançados pelas missões civilizadoras laicas foram pouco expressivos, tendo em conta que as doze missões (incluindo as sucursais) espalhadas pelas duas províncias eram manifestamente insuficientes para compensar, e muito menos contrariar, a influência das missões estrangeiras. Apesar de se terem estabelecido em locais densamente povoados, as missões localizavam-se preferencialmente próximo das circunscrições administrativas litorais, onde o clima era mais propício ao estabelecimento dos europeus. Pode por isso dizer-se que se tratou, desde o início, de um empreendimento votado ao fracasso, por uma série de razões. A primeira das quais residiu na própria lógica subjacente ao funcionamento das missões laicas, que reproduziu, no essencial, a organização funcional das missões religiosas, tanto no plano da sua estrutura organizacional, como no da sua constituição e funcionamento. A tentativa de organizar missões constituídas por famílias, não apenas por “razões morais”, mas também pelo exemplo de sucesso que as missões protestantes pareciam exibir, revelou-se sem dúvida astuciosa, mas algo ingénua. Por outro lado, a retórica republicana, apesar de insistir na cooperação entre as missões religiosas e protestantes, assim como entre as missões laicas e o Estado, deixou ao abandono os missionários laicos entregues ao trabalho com as populações indígenas no combate ao “inimigo” estrangeiro. Sem lhes oferecer apoio e recursos compatíveis com as expec-


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tativas exigidas, o Estado entregou à consciência individual a concretização do projeto de civilização republicano. A experiência demonstrou que o seu malogro se ficou a dever mais ao irrealismo do projeto, cujos reduzidos meios de ação não puderam acompanhar a magnitude do esforço exigido aos agentes de civilização, do que à falta de empenho destes últimos. 3. Epílogo As décadas que precedem a partilha de África, nos finais do século XIX, até ao final dos anos 30, no século XX, constituem um período fundamental para compreender o modo como os europeus organizaram os sistemas educativos coloniais. É neste período de cerca de sessenta anos que se experimentam estratégias de incorporação educativa nacionais com orientações divergentes mas com objetivos, todavia, consensuais: nacionalizar os territórios, unificar populações com origens étnicas e lealdades locais diferentes, criar populações capazes de se organizar em torno de princípios e objetivos orientados por conceitos de desenvolvimento individual (civilização) e de progresso social. Dois outros movimentos de âmbito transnacional cruzam-se com os objetivos dos Estados coloniais na definição das estratégias de incorporação educativa. O processo de laicização e secularização que acompanha a expansão das nações ligadas à Igreja católica romana, nomeadamente a França e Portugal; e o movimento de ressurgimento religioso dos Estados-nação que têm como religião oficial o protestantismo, caso da Inglaterra e dos Estados Unidos da América. O efeito cruzado destes dois processos ecuménicos sobre a construção dos sistemas educativos nas colónias africanas, nomeadamente em Moçambique e em Angola, teve como primeiro efeito a circulação de filosofias e políticas educativas, modelos pedagógicos e estratégias de incorporação muito diferentes, que se cruzaram no espaço de colonização, atravessando fronteiras políticas, barreiras naturais e demarcações étnicas. Espartilhada entre os compromissos assumidos no quadro dos tratados internacionais, e a necessidade de construir uma identificação dos africanos com a língua e a bandeira portuguesas, a administração colonial, a escola e os atores educativos que se moveram no contexto colonial formaram um conjunto dissonante de vozes e de práticas sobre a educação, sobre as estratégias educativas e sobre os métodos pedagógicos adequados à situação africana. A análise destes discursos é fundamental para compreender as descontinuidades que caracterizam contextos educativos marcados por processos de governo à distância, e os processos de tradução que transformam os discursos educativos em práticas indigenizadas, híbridas e apropriadas às condições de exercício da função educativa em contexto colonial. Este trabalho não se propôs realizar uma micro-história das escolas das missões laicas. Trata-se de um projeto inacabado que carece de futuras investigações. O surgimento recente de algumas monografias e trabalhos de investigação proporciona fontes organizadas de documentação, que levantam problemas que só agora começámos a explorar (Madeira, 2009, pp. 165-178 e 2013; Silva, 2013; Pereira, 2013). Eles começam a trazer à luz do dia o imenso potencial do património que o Colégio das Missões Ultramarinas representa para a história da educação colonial em Portugal. Bem mais importante do que sabermos qual o impacto efetivo das Missões Laicas no contexto da escolarização indígena africana, uma questão a que muito dificilmente se poderá responder, o que nos interessa perceber é o lugar destas configurações no quadro mais lato dos processos educativos


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ligados à nacionalização e civilização do Império português, processo acerca do qual sabemos, ainda hoje, muito pouco. O denominado “paradoxo pedagógico”, isto é o continuum intenção, realização, consequência possui pois, neste trabalho, um papel explicativo diminuto (Depaepe & et al., 2000, p. 8). Ao invés, parece-nos mais importante sublinhar o papel do património material e imaterial do Instituto das Missões Coloniais de Cernache do Bonjardim, em particular as coleções que compõem o património museológico formado pelos objetos utilizados no ensino pelos missionários, tanto durante a Monarquia como na República. Aí encontramos diversos exemplares de quadros parietais, cartas de navegação e mapas, coleções botânicas e zoológicas, instrumentos de medição, modelos mecânicos, instrumentos de medição, globos terrestres, espécimens de animais embalsamados, amostras de tecidos, peles e sementes variadas, laboratório de fotografia, para além de manuais de Medicina, Farmácia, Química, Física e Engenharia. Estas coleções de minerais, de matérias-primas, de plantas e animais encontrados nas diversas províncias do Ultramar português, e que foram efetivamente utilizadas no ensino pelos missionários laicos, mostram bem até que ponto o Instituto estava comprometido com uma visão moderna e científica do ensino, a par dos métodos pedagógicos mais avançados utilizados nas escolas coloniais europeias. As aulas de Biologia e de Geologia eram ministradas em salas organizadas como museus devidamente organizados, e eram auxiliadas pelo contacto com espécimens devidamente identificados. Quanto ao ensino da Física e da Química decorria em laboratórios apetrechados com o material mais moderno que à data se encontrava disponível.

Figura 14. Gerador Van de Graff

Fonte: Fotografia realizada no Seminário das Missões de Cernache do Bonjardim (Col. Particular)

Este espólio, que foi ampliado pelos objetos enviados para Cernache, inicialmente pelos missionários católicos e, depois, pelos próprios agentes de civilização, completa-se pela extensa documentação arquivada nas bibliotecas do seminário. Cabe aqui chamar a atenção para a importância do Boletim das Missões Civilizadoras como instrumento de circulação de informação entre os missionários e a instituição, uma espécie de rede que funcionava como fórum de discussão dos problemas encontrados, no terreno, pelos missi-


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onários que se encontravam deslocados nas diversas províncias do ultramar. Este fórum, que se desenrolou sob a forma epistolar, concede-nos uma entrada muito particular no espaço colonial, no quotidiano de funcionamento das missões, das famílias, das relações entre colonos e colonizados, entre autoridades metropolitanas e coloniais, desalojando visões consagradas sobre os mecanismos de governação imperial. Por outro lado, no campo da história da educação, estes relatos esclarecem quanto à utilização das mais variadas estratégias, nomeadamente pedagógicas, ensaiadas nas escolas das missões laicas, em Angola e Moçambique. Através delas ficamos a saber igualmente o tipo de construções onde as aulas decorriam, os processos utilizados no ensino indígena, o programa de estudos, os horários de funcionamento, os materiais escolares, o movimento escolar destas escolas e, talvez mais importante, os processos de inovação pedagógica que os missionários punham em prática no sentido de ultrapassarem a carência de recursos, materiais e didáticos, além evidentemente dos financeiros. Por outra parte o Boletim apresenta imagens dos edifícios das missões, dos terrenos desbravados, dos grupos de agentes civilizadores e dos seus familiares, aspetos etnográficos das populações coloniais e autoridades gentílicas, construindo uma literacia visual que foi indispensável à criação de uma sensibilidade relativamente ao longínquo mundo colonial. Ao lado destes exemplares, montra da missão civilizadora de Portugal em África e do papel do Instituto naquele empreendimento, encontravam-se os seus mentores: a iconografia dos heróis (presidentes da república, ministros das colónias, governadores-gerais, militares), as regras que geriam a instituição (leis, regulamentos, decretos) e os resultados da sua ação em África (relatórios, cartas, louvores, notícias da imprensa nacional e local). Desta forma o Boletim cumpria uma dupla função afirmando-se, por um lado, como instrumento de comunicação e, por outro, como veículo de propaganda para a formação de uma opinião pública nacional, tornando visível a ação patriótica das missões laicas nas colónias portuguesas. Referências bibliográficas Afonso, M. C. (1992). O Seminário das Missões de Cernache do Bonjardim (1791-1991). Cucujães: Editorial Missões. Almeida, F. de (1970). História da Igreja em Portugal (vols. III e IV), nova edição preparada e dirigida por Damião Peres. Lisboa / Porto: Livraria Civilização Editora. Belhoste, B., Gispert, H., & Hulin, N. (Dir.) (1996). Les Sciences au lycée. Un siècle de réformes des mathématiques et de la physique en France et à l’étranger. Paris: INRP et Vuibert. Burke, P. (2004). What is cultural history? Cambridge: Polity Press. Carrillo, I., & Collelldemont, E. (2007). Construir un museo pedagógico virtual. Fundamentos teóricos y elementos de gestión. In A. Escolano Benito (Ed.), La cultura material de la escuela. Berlanga de Duero – Soria: CEINCE – Centro Internacional de la Cultura Escolar, pp. 355-369. Chartier, R. (1998). Au bord de la falaise: l’histoire entre certitudes et inquiétude. Paris: Albin Michel. Chervel, A. (1998). La culture scolaire. Une approche historique. Paris: Belin. Depaepe, M. et al (2000). Order in progress: Everyday educational practice in primary schools: Belgium, 1880-1970. Leuven: Leuven University Press. Depaepe, M., & Simon, F. (2005). Fuentes y métodos para la historia del aula. In: M. Ferraz Lorenzo (Ed.), Repensar la historia de la educación. Nuevos desafíos, nuevas propuestas. Madrid: Editorial Biblioteca Nueva, p. 337-363. Depaepe, M., Simon, F., Catteeuw, K., & Dams, K. (2005). Filming the blackbox. First impressions on unused sources in the study of history of primary education in Belgium. In N. Peim, K.


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