Anotações sobre a poesia brasileira de 1922 a 1982

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ANOTAÇÕES SOBRE A POESIA BRASILEIRA DE 1922 A 1982 por Affonso Romano de Sant´Anna



ANOTAÇÕES SOBRE A POESIA BRASILEIRA DE 1922 A 1982 por AFFONSO ROMANO DE SANT´ANNA

Extraído de: O LIVRO DO SEMINÁRIO. ENSAIOS. 1ª. BIENAL NESTLÉ DE LITERATURA. Organizador Domício Proença Filho. São Paulo: L R Editores, 1982. 304 p. 22,4x30 cm.


(...) COMEÇO POR DIZER que a poesia brasileira neste século passa por datas bem nítidas que assinalam suas transformações: 1922 – instauração do Modernismo com o exercício de uma poesia parodística e crítica tanto da série literária quanto da série social, atualizando o Brasil com os movimentos de vanguarda da Europa e despertando uma nova consciência estética e ideológica do país. 1930 – superação da fase inicial e experimental do Modernismo. Cumpridos oito anos de literatura grupal em torno de revistas, agora cada poeta começa a construir sua obra dentro de cânones mais individuais e classicizantes. 1945 – surgimento da Geração 45, que aliás só foi assim batizada em 1948. É uma tentativa da poesia “séria”, “lírica” e uma recuperação do romantismo, do simbolismo e das formas mais convencionais do verso. 1956 – início do ciclo das vanguardas que vai até 1968, quando eclode o Tropicalismo. Fazem parte desse ciclo Concretismo (1956), Neoconcretismo (1958), Tendência (1957), Violão de Rua (1962), Praxis (1962), PoemaProcesso (1967). 1973 – configuração de uma abertura poética que antecede à abertura política de 1979, mostrando que não só o ciclo das vanguardas estava encerrado, mas que havia surgido um novo momento do qual faziam parte: a poesia marginal, o novo erotismo feminino, sinais de uma nova poesia negra e a recuperação e reinvenção do verso e do poema que desde 1956 haviam sido extintos ou recalcados na prática dos poetas. Para sintetizar o que tenho a apresentar encaminharei uma série de proposições e tópicos que marcam a poesia brasileira dentro dessas datas. Estudando grupos não abrirei espaço para considerações individualizadoras de autores. Por outro lado, por questão metodológica, terei que deixar sem comentar eventuais autores importantes que não participaram dessas datas ou movimentos e eu merecem estudo outro. Não posso escamotear um no outro, mas procurarei tirar de um e outro que talvez possa contribuir para aclarar esse debate. Encaminharei a partir daqui uma série de tópicos e proposições sobre aqueles momentos que marcam a poesia brasileira contemporânea: o


1 MODERNISMO

Fonte: http://pt.slideshare.net/proflourdesadvent/a-segunda-gerao-modernista-nobrasil?related=1

Os estudos sobre Modernismo privilegiam em geral os seguintes enfoques: o histórico: onde se rastreiam a origem e a formação do movimento; o documental: que recupera os textos originais, analisa cartas, críticas e toda sorte de texto capaz de aclarar a performance de autores e textos; o estilístico: que considera as técnicas da escrita de cada autor e seus recursos retóricos; o sociológico: que levanta o problema dos conflitos ideológicos seja nos personagens seja na própria prática política contida na biografia dos escritores. Nesta primeira proposição gostaria de retomar algo que já fixei amplamente em três trabalhos anteriores: “Modernismo: Poéticos do Centramento e do Desenvolvimento”, Música Popular e Moderna Poesia Brasileira e Por um Novo Conceito de Paródia, Paráfrase, Estilização e Apropriação” (1). Parte-se aí do princípio de que o Modernismo, ao contrário do que se pensa geralmente, não é um movimento homogêneo. Embora tenha lançado o Brasil n século XX e instaurado uma atualização da inteligência nacional, é um movimento compósito e até contraditório. Para se estudar essa pluralidade de pontos de vista e essa complexidade ideológica e estética existem instrumentos apropriados. Basta que se comece por perceber que o solo linguístico em que se ergue o Modernismo é constituído por uma série de linguagens diversas (e até divergentes), que funcionam como camadas explicativas de sua complexidade. Falo, portanto, das diversas linguagens que constituem o solo modernista. Num primeiro momento de minha pesquisa (1972) concebia o Modernismo como a superposição de quatro linguagens: a paródia, a paráfrase, a mímesis consciente e a mimesis inconsciente. É impossível


reproduzir aqui ligeiramente o sentido desses termos. Mas posso encaminhar que minha proposta estava interessada em não apenas estudar as diversas linguagens do Modernismo, mas em assinalar a direção ideológica que elas assumiam. Assim, foi possível dizer que a paródia e a mímesis inconsciente estavam do lado de uma poética do descentramento ideológico e linguístico, enquanto a paráfrase e a mímesis consciente tendiam para a reprodução dos valores existentes. Segundo esse esquema didático se podia entender melhor a função parodística de Macunaíma, de Mário de Andrade, versus a função parafrásica de Martin Cererê. Ambos são uma metáfora do Brasil e sua história mas se diferenciam tanto quanto a paródia se diferencia da paráfrase. Igualmente, segundo essa técnica, pode-se confrontar a intenção mimética exterior, cópia retratista, folclórica, do Poemas Negros, de Jorge de Lima, e de muitos poemas de Ascenso Ferreira, versus a mímesis interior de Murilo Mendes, muito mais interessado em retratar as forças rebeldes de seu inconsciente. Como textos a serem confrontados dava o “Bumba meu Boi” de Ascenso versus o “Bumba meu poeta” de Murilo.

Posteriormente, retomei essa pesquisa aplicando-a agora ao estudo da música popular e da moderna poesia brasileira, vendo como a paródia e a paráfrase pontuavam tanto a série literária quanto a da música popular. Isto ficou registrado naquele livro citado sobre música popular. Recentemente, porém, retomei essas inquietações. Em Para Um Novo Conceito de Paródia, Paráfrase, Estilização e Apropriação não só ampliei as colocações mas adicionei dois elementos novos — a estilização e a apropriação. Pareceu-me, pela prática da análise, que esses instrumentos são bastante eficientes para se compreender o subsolo da poesia brasileira (ou de qualquer outra). Por aí se entende melhor o que seja ideologia, tal como foi redefinida pelas Ciências Humanas nas últimas décadas. Para se compreender isto bem, basta tomar, no período modernista, o jogo de intertextualidade eu esses poetas estabeleceram com “A Canção do Exílio”, de Gonçalves Dias: Texto original de Gonçalves Dias: “Minha terra tem palmeiras Onde canta o sabiá As aves que aqui gorjeiam Não gorjeiam como lá”.


Paráfrase: Carlos Drummond de Andrade, in “Europa, França e Bahia”. “Meus olhos brasileiros se fecham saudosos Minha boca procura a “Canção do Exílio”? Eu tão esquecido de minha terra... Ai terra que tem palmeira Onde canta o sabiá!” Estilização: Cassiano Ricardo, in “Um Dias Depois do Outro”: Esta saudade que fere mais do que as outras quiçá Sem exílio, nem palmeiras onde cata um sabiá...” Paródia: Osvald de Andrade, in “Canto de Regresso à Pátria”: “Minha terra tem palmeiras onde gorjeia o mar, os passarinhos daqui não cantam como os de lá”. Por aí se pode ir desenvolvendo a ideia de que a paráfrase é um desvio mínimo, a estilização um desvio tolerável e a paródia um desvio total em relação ao texto primeiro. A esse modelo primeiro pode-se somar um modelo segundo pelo qual temos dois conjuntos de linguagem: 1. Conjunto das similaridades (paráfrase e estilização 2. Conjunto de diferenças (paródia e apropriação). Um terceiro modelo operacional ainda se destaca desse jogo de linguagens; a paráfrase como efeito de pró-estilização e a paródia como efeito contra-estilização. Esses três modelos usados convenientemente podem fazer do Modernismo um movimento bastante mais complexo e rico, adicionando algo àqueles métodos histórico, documental, estilístico e sociológicos no princípio.


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GERAÇÃO DE 45

1945 – Surgimento da Geração 45, que aliás só foi assim batizada em 1948. É uma tentativa de poesia

“séria”, “lírica” e uma recuperação do romantismo, do simbolismo e das formas mais convencionais do verso.

Lêdo Ivo (1924-2012), um dos expoentes da Geração 45, membro da Academia Brasileira de Letras.

Nos estudos cronológicos da poesia contemporânea no Brasil, depois do Modernismo vem a Geração 45. O essencial sobre esse grupo de poetas parece já foi dito pela crítica: uma oposição aos modernistas de 1922, uma volta ao verso de sabor romântico, parnasiano e simbolista; volta à métrica e à rima; prática de uma "poesia séria", contra o poema piada e de circunstância; uma busca de paternalidade e/ou identidade em Fernando Pessoa, Lorca, Neruda, Eluard, Rilke, T. S. Eliot, Vallejo. Gostaria de, nessa comunicação, ressaltar alguns pontos que me parecem relevantes para se compreender melhor esse instante de transformação de nossa poesia: 1. A geração 45 não é um fenômeno exclusivamente brasileiro. Ocorreu nos Estados Unidos, como assinala Louise Bogan. Aconteceu em Cuba, como lembra José Portuondo. Também na Itália, como frisa o poeta Salvador Quasímodo. E assim por diante, mesmo na Venezuela, Paraguai, Argentina, como exemplificam os manuais de literatura latino-americana. Enfim, há uma possível relação entre o fim da II Guerra Mundial e o efeito estético produzido sobre uma geração de escritores em todo o mundo. Psicológica e esteticamente entende-se a necessidade de toda uma geração de voltar a certos princípios conservadores, depois da devastação da guerra. Um modo do espírito repousar dos tumultos e transformações violentas.


2. No Brasil há uma identidade mais específica. A Geração 45 está para o soneto assim como o governo Dutra está para a sonetização da consciência nacional. Governo conservador, medíocre e Kitsch. A geração 45 se estabelece durante esse governo secundada pela voga dos boleros, tangos, sambas-canções dentro de um todo sentimental expressivo de certo momento da sociedade brasileira. Fernando Ferreira de Loanda disse: "Em 1945 lançou-se a primeira bomba atômica, a tecnologia tomava grande impulso, terminava a guerra, e sem qualquer compromisso com os modernistas, no seu esplendor, uma nova geração se alicerçava de equilíbrio e séria, sem herança, livre da endêmica influência epistolar e fraternal de Mário de Andrade, que desaparecia então" (2). É o caso de se perguntar: a realização artesanal de um soneto seria realmente o equivalente literário para a revolução tecnológica manifestada com a explosão da bomba atômica? Ou será que há uma relação mais lógica, pelo menos, entre a desintegração do átomo e a explosão das palavras ocorridas cerca de dez anos depois com o Concretismo e mesmo a desintegração das mentes e dos textos dos poetas americanos da beatgeneration? 3. Assim como os modernistas de 1922 vieram de uma linguagem parnasiana e simbolista é curioso verificar que 45 é uma encruzilhada, um ponto de partida para vários dos vanguardistas de 1956, que aí se iniciaram numa literatura retórica, simbolista, metafísica. Seria uma pesquisa curiosa ver os primeiros trabalhos de Haroldo de Campos, Augusto de Campos, Décio Pignatari, Affonso Ávila, Mário Chamie, Ferreira Gullar e outros para se perceber não apenas o ponto de partida de suas obras, mas a persistência de uma retórica que mesmo alguns de seus poemas vanguardistas não consegue apagar.


3 CICLO DAS VANGUARDAS Periodologicamente, após a geração 45, abre-se um novo ciclo na poesia brasileira; o ciclo das vanguardas. Começa um revezamento no que chamo de “poder literário”. Os espaços nos suplementos literários, antes controlados e abertos aos de 45, é agora ocupado pelos vanguardistas. Essa conquista do espaço gráfico corresponde a uma conquista do espaço cultural. E espaço é bem um tempo apropriado para se utilizar a propósito desse ciclo, porque a partir de 1956 a poesia brasileira esforça-se para sair da temporalidade e se construir na espacialidade. É o tempo de Brasília, da “repaginação” do Brasil, é a década da reorganização gráfica de vários jornais e revistas, inclusive o “Jornal do Brasil”.

Augusto de Campos, Décio Pignatari e Haroldo de Campos, criadores do Concretismo.

Esse ciclo das vanguardas tem contornos hoje bem nítidos par nós. Começa em 1956 com o Concretismo e se fecha em 1968 com o Tropicalismo. O Concretismo é o movimento mais original e importante desse ciclo. Mas para se estudar esse período é necessário levar em conta os seguintes outros grupos que surgiram: . . . . . . .

Concretismo Neoconcretismo Tendência Violão de Rua Praxis Poema Processo Tropicalismo

— 1956 — 1958 — 1957 — 1962 — 1962 — 1967 — 1968


Além daquilo que outros e eu próprio temos dito sobre essa época há alguns pontos a serem aclarados. 1. Sendo um período de identidade entre a poesia e as artes plásticas e visuais, mesmo assim, alguns desses grupos de vanguarda resistem atendo-se mais às raízes literárias e semânticas em sua elaboração. A rigor, poderíamos ver aí dois grandes conjuntos. De um lado uma poesia mais vinculada à semiótica (Concretismo, Neoconconcretismo, Processo). De outro lado uma poesia mais presa à palavra (Tendência, Praxis, Violão de Rua). O Tropicalismo já seria uma “terceira margem do rio”, para lembrar aqui uma expressão de Guimarães Rosa. Está num outro espaço e problematiza outras questões, como veremos adiante.

Fotografia de um ato do movimento Poema/Processo no Rio de Janeiro, década de 60.

2. Violão de Rua é ainda um problema. Não foi estudado responsavelmente até hoje. Pertence ou não às vanguardas desse período? É um problema a ser discutido, pois a sua elaboração parte de um conceito de vanguarda social e política e não de uma vanguarda puramente estética. É uma questão rica sob muitos aspectos. Deve-se e pode-se discutir isto. O que não se pode é simplesmente alijar este grupo por não se concordar com sua proposta. 3. Deve-se conceber esse período como uma fase de brilhante vitalidade da poesia brasileira, que foi, a exemplo do Concretismo, capaz não só de estabelecer um diálogo com o que se fazia de mais sofisticado no gênero fora do país, mas capaz mesmo de impor-se lá fora como um sinal de maturidade do pesquisador e do intelectual brasileiro. Realmente, como queriam Haroldo e Augusto de Campos mais Décio Pignatari a poesia brasileira foi exportada perdendo sua característica estética provinciana e paroquial. O radicalismo estético e ideológico do Concretismo foi proveitoso para sua penetração no


mercado internacional da poesia. Mas foi danoso para sua relação com os poetas brasileiros contemporâneos e sobretudo com os poetas jovens.

Em outros termos, o discurso extremamente radical do Concretismo e dessas vanguardas mencionadas fez com que esses grupos se fechassem em si mesmos, fez com que iniciassem entre si uma série de desgastantes rivalidades e fez com que se verificasse uma consonância entre a vanguarda e o autoritarismo. Com efeito, esse período tão rico de propostas e invenções revela, sob a ótica de uma sociologia da literatura, que não se pode estudar o problema da vanguarda sem se considerar a questão do poder e da utopia. Há nas vanguardas um componente utópico, militar e até mesmo fascista. A vanguarda não admite meias verdades. Ou melhor, despreza e ignora a verdade do outro. A Verdade da vanguarda é total, monológica, totalitária. Pode-se perguntar: seriam essas razões suficiente para se ser antivanguardista? Não. Condenar a vanguarda é ser igualmente totalitário, fascista, egocêntrico. O que se pede é lucidez, capacidade de descentramento, saber distinguir a diferença entre uma tática momentânea e uma estratégia global. 4. Deve-se entender esse período (1956-1968) como o cumprimento de um ciclo que começou com a explosão do verso e da palavra na página em branco e terminou com a própria página em branco, repetindo façanha dramática ocorrida já na pintura de Malevitch quando também pintou o “Brnaco sobre o Branco”. Ocorreu o fechamento de um ciclo, o advento do “eterno retorno” de que fala Mircea Eliade em antropologia. Aliás, não era a primeira vez que esse ciclo se desenvolvia e se fechava. Ela já havia se fechado em Mallarmé em 1897. Abriu-se e fechou-se com as vanguardas do princípio do século, tendo o Dadaísmo chegado à nadificação de tudo. E até esporadicamente, em certos autores ele ocorreu de novo, como um autor alemão que, na década de 30, publicou um livro de páginas brancas. As vanguardas do Brasil, nas décadas de 50 e60, expuseram também uma ambiguidade típica: serem portadoras de um discurso “novo”, “evangélico”, “messiânico”, mas extremamente literário e elitista. Se, por um lado, os poetas aperfeiçoaram seus instrumentos de expressão, por outro lado tornaram-se isolados ainda mais do público já escasso de poesia. Faziase uma poesia experimental, de laboratório, mas, por outro lado, os poetas ansiavam por atingir o grande público. Por isto voltaram-se para o poemacartaz, armaram-se da teoria da informação e tentaram toda sorte de “poesia participante” dentro dos estreitos limites que se impuseram. Evidentemente, a venda de poesia caiu ainda mais. A poesia converteu-se mais e mais em monólogo formalista. Paradoxalmente, o que ele ganhou esteticamente perdeu em eficácia social.


Os livros dos vanguardistas eram edições artesanais e praticamente for do comércio, distribuídas individualmente ou editadas em convênios. As revistas, a exemplo de “Invenção”, “Tendência” e “Práxis”, não tinham circulação comercial. Este é um panorama totalmente diferente do que ocorreria uma década mais tarde com outra geração. A geração da préabertura e da abertura, que editaria revistas como “Escrita”, “Ficção”, “Inéditos”, “José”, “Siriará”, “Poesia Livre”, “Poesias Populares” e “Saco”, vendidas em edições de cinco, dez e quinze mil exemplares nas bancas. Obviamente, os propósitos dessas revistas eram diferentes dos propósitos vanguardistas. E aqui não estamos entrando no mérito estético comparativo de umas e outras, mas somente assinalando que faziam discursos diferentes, e que essas publicações dos anos 70 souberam responder à necessidade de um discurso procurado, reclamado e esperado nos tempos da abertura. Em última instância, pode-se dizer que na década de 50 até princípios da década de 60 o discurso restrito e sintético das vanguardas tinha uma justificativa em si, porque a prática literária e quotidiana eram retóricas e exageradamente discursivas. Mas, a partir de 1964, e sobretudo de 1968, quando o regime impôs a censura e a interdição de todo e qualquer discurso articulado contra o governo, a literatura discursiva passou a ser instrumento mais legítimo e mais eficiente. Razão porque ele preencheu muito melhor as expectativas sociais nos últimos anos, que as vanguardas dos anos 50 e 60. 5. Daí que se entende melhor a tentativa de aliança da vanguarda com a música popular brasileira a partir de 1967. Tendo-se impossibilitado a palavra poética de viver sobre a página do livro, procurava-se agora um outro espaço para sua ressurreição. Diante da aporia a que chegaram os poetas, a música popular brasileira, sobretudo a partir do Tropicalismo, seria a viabilidade de retomada de um discurso, agora sob a aura de uma possível popularidade.


Assim, o discurso poético de 1956 e das vanguardas tornou-se novidade dentro da música popular. Saindo da série musical, o discurso vanguardista se recondicionava e se prolongava. Esse fenômeno, que chamo de transposição serial, é curioso e deveria interessar muito à semiologia das artes e ciência. Para fornecer apenas um curto exemplo, já que estamos falando dos anos 60, aí se verificou a popularização do conceito de entropia graças à teoria da informação. Esse conceito, no entanto, chega à teoria do discurso com uns 100 anos de atraso, pois foi elaborado na Física do século passado. No entanto, em outra série, produziu um efeito enriquecedor.


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TROPICALISMO

O ciclo das vanguardas se fecha com o Tropicalismo em 1968. Mas desse os primeiros “festivais de canção” que arrebataram o país a partir de 1965, a música popular começou a ocupar um espaço agigantado na vida cultural brasileira. Isto, de um lado, correspondeu ao movimento do “poder jovem” através da música em todo o mundo, quando então apareceram mil grupos na esteira dos Beatles. Contudo, na Brasil houve uma especificidade nessa hipertrofia da música popular. Ela foi aos poucos ocupando o espaço deixado vago por uma série de atores da vida política e cultural que foram silenciados pela ditadura ou que então tiveram que se exilar, sobretudo a partir de 1968. Ocorreu o fenômeno do deslocamento cultural. Os músicos tornaramse porta-vozes das esperanças e amarguras da oposição, da classe média e da esquerda. Como a poesia literária havia destruído o verso e o poema e chegado à página em branco, a poesia começou a ser servida em forma musical com muita eficiência política e estética. Sintomaticamente, quando os sinais de abertura no governo Geisel e, depois, no governo Figueiredo, os políticos, escritores, artistas e demais intelectuais começaram a voltar a assumir seu espaço e a fazer o seu discurso, a música popular voltou ao seu espaço natural. E essa volta ocorreu com muitos quiproquós. Acostumados a serem os líderes da fala da oposição, os compositores e cantores se atrapalharam em suas declarações políticas em tempos de abertura. Revelou-se a insuficiência de seu discurso político diante de uma realidade mais complexa. Agora já não bastava ser apenas da oposição. Era necessário uma sutiliza um pouco maior. Duas consequências desse quiproquó foram as discussões em torno de quem é ou não “cooptado” e a “questão da patrulha ideológica”, que poderiam ser melhor tratados em outro ensaio.


De qualquer maneira, consta-se que a fragmentação da oposição ocorreu primeiramente no setor cultural, antes que se desse com a própria oposição política. Esse deslocamento e hipertrofia da música popular verificou-se ainda claramente nos livros didáticos, que passaram a incluir os jovens compositores atuais como grandes poetas, ocupando o espaço antes devido a um Olavo Bilac, Casimiro de Abreu, colocando-os ao lado dos modernistas e dos autores de vanguarda. Igualmente, na universidade, os textos desses compositores passaram a ser assunto de teses e dissertações. E mesmo coleções especializadas como esses fascículos sobre música popular da Editora Abril começaram a convocar professores e críticos para escreverem sobre os músicos. Aí se podem encontrar tanto um ensaio de Antônio Cândido sobre Vinícius de Moraes, quanto, mais recentemente, um ensaio sobre Chico Buarque de Holanda. E já que vou assumindo a primeira pessoa neste texto, adiciono que desde 1967 escrevia sobre música popular e em 1978 reuni no livro — Música Popular e Moderna Poesia Brasileira (Ed. Vozes) — uma série de artigos comparando o desenvolvimento da música e da poesia do Modernismo aos nossos dias. Neste livro desenvolvo as seguintes linhas de análise: 1. A poesia modernista de 1922 e o samba de Noel Rosa: a paródia e a crítica social. 2. A poesia de paráfrase e do poder nos anos 30 e o ufanismo verdeamarelo de Ary Barroso e outros; 3. A geração de 45 e o tango-bolero; 4. A bossa-nova e o concretismo; 5. O Violão de Rua e a música de protesto; 6. O Tropicalismo e os carnavais dos gêneros artísticos. 7. A poesia marginal, o “underground” e a quarta-feira de cinza pós tropicalismo e pós-1968.


5 EXPOESIAS

“De cavanhaque estava Affonso Romano de Sant'anna, o idealizador desse encontro que reuniu aí entre outros, Jards Macalé, Gilberto Gil, João Cabral de Melo Neto, Chico Buarque.” O encontro do Expoesia, em 1973 Fonte: http://jornalggn.com.br/ 1973 é uma data inaugural dentro da poesia brasileira. É nesse ano que a proximidade do novo governo Geisel começa a insinuar gradualismos e vaise saindo da quarta-feira de cinzas que foi o período do terrorismo, da repressão e das torturas. Em 1973 ocorre uma abertura poética antes que ocorresse verdadeiramente a abertura política. Dois fatores configuram isto nitidamente: a criação do Jornal de Poesia e as Expoesias I, II e III, realizadas, respectivamente , no Rio, em Curitiba, e Nova Friburgo. Assumindo, portanto, o tom crescente de depoimento, devo adiantar que, em 1973, Alberto Dines, então editor do JB, convidou-me para editar duas páginas de poesia no Caderno B, sob o título de “Jornal de Poesia”. Era uma oportunidade insólita. Estava eu, pessoalmente, na saída de um impasse poético, que, julgo, correspondia a um impasse visível na poesia nacional. Depois de participar e assistir os movimentos poéticos que se acumularam a partir de 1956, de ter participado do “Suplemento Literário do Jornal do Brasil”, que lançou nacionalmente o Concretismo, de ter participado do Tendência de Belo Horizonte, de ter colaborado nos três volumes de Violão de Rua e na Semana Nacional de Poesia de Vanguarda em Belo Horizonte, desde a publicação de meu primeiro livro em 1965 — Canto e Palavra — vivi a exasperação e exaustão do ciclo vanguardas, conforme testemunhado em Poesia sobre Poesia (1975), que reúne poemas que cobrem o período 65-75.


A proposta do Jornal do Brasil coincidia com um curso que eu havia iniciado com meus alunos de Mestrado da PUV-RJ, segundo semestre de 1973, onde nos propúnhamos a ler não só os textos produzidos a partir das vanguardas de 1956, mas a descobrir quais os textos escritos no princípio dos anos 70 pelos poetas desconhecidos e mal conhecidos, para se ter a noção dos caminhos possíveis de nossa poesia. O prestígio do Jornal do Brasil, que nos anos 50 já modificara a rota da poesia brasileira propiciando a divulgação do Concretismo e Neoconcretismo, foi determinante para que o “Jornal de Poesia” se transformasse num espaço reunificador e problematizador da poesia brasileira. Explicando aos leitores e poetas os propósitos daquela publicação na sua primeira edição, dizíamos: A Necessária Poesia. “Depois de um período de efervescência na produção de diversos movimentos de poesia de vanguarda (Concretismo, Neoconcretismo, Práxis, Tendência e Processo), de há alguns anos a essa parte a poesia parece terse silenciado ou vivido às expensas da música popular. Uma observação mais atenta, no entanto, revela que a poesia permanece sob os mais variados disfarces e que não apenas sobrevive com exige olhos novos para ser percebida. Hoje, ao invés de ser vendida em livrarias, a poesia está sendo vendida nas butiques, e os jovens poetas imprimem rudimentarmente seus versos, fazendo-os circular fora do comércio. Criaram-se vários hábitos nesse novo contexto: vender poesia nas portas de bares e teatros e passar adiante ou revender o livro lido para que a poesia circule. Na verdade, nunca se produziu tanta poesia como hoje. Isso pode parecer estranho ao menos avisados, pois ocorre não só dentro de uma poluição tecnológica, mas no exato momento em que as chamadas Ciências Humanas se deixam seduzir por propostas de cientificidade. Menos estranho, no entanto, se se observar que, por outro lado, as chamadas Ciências Exatas retornam exauridas de tanta cientificidade


e buscam enfoque mais “humanistas”, como revela sintomaticamente o internacional “Journal of Physics”. O Jornal do Brasil, que na década de 50 foi sensível ao processo de renovação da linguagem poética e da literatura em geral através do “Suplemento Dominical”, agora abre um novo espaço à poesia. Hoje, os livros de história da literatura, dentro e fora do país, se referem ao episódio atualizador que foi o Concretismo e os movimentos daí decorrentes, assinalando que nas últimas décadas a poesia brasileira converteu-se num objeto altamente sofisticado, exportável e influenciador de poesia em outros países. Nas escolas e universidades estudam-se Concretismo, Neoconcretismo, Praxis, Tendência, Processo e até mesmo o Tropicalismo como algo pertencente à área do documento. O episódio de ontem converteuse em história de hoje.

Este espaço reservado à poesia é, ao mesmo tempo, causa e efeito, e volta-se para um determinado momento da vida nacional. Cabe ao jornal, na sua confecção diária, configurar o universo de leitura da comunidade de maneira aberta. Poesia é abertura e vida. Por isso, Platão, que a expulsou da República, estipulou os mais variados artifícios para trazê-la de volta. Fortes indícios existem de que a poesia, antes abrigada em formas musicais e em formas plásticas, revém recobrando sua literalidade. Que a música com poesia continue, que a poesia com a plástica permaneça, mas que se crie também espaço à palavra como morada do ser. Esta página não adotará posições estético-partidárias. Haverá necessariamente um critério de seleção baseado em especialistas universitários e em poetas experimentados, mas a poesia será aceita, venha de onde vier. O objetivo é fornecer um panorama da poesia brasileira hoje. E já que o assunto é poesia, seria, talvez, pertinente anotar: a poesia voltou, voltou antes mesmo da primavera”.


Como resultado, milhares de poemas começaram a chegar à redação do jornal. Tal foi a repercussão testemunhada em cartas, telegramas e outras manifestações de escritores e políticos que o próprio Jornal do Brasil dedicou um editorial “Além do Econômico” (8-9-72) analisando essa afluência e Tristão de Athayde, no artigo “O Fruto do Decênio” (11-10-73), analisava a função da poesia de novo, numa sociedade traumatizada pela violência institucionalizada em 1964 e 1968. Esses textos estão reproduzidos no final desta comunicação (3). O que o “Jornal de Poesia” propiciou foi: 1. fora do espaço convencional dos suplementos literários, aliás, praticamente extintos nesse período; 2. superar as briguinhas de grupelhos e vaidades pessoais, pois as inimizades entre aqueles grupos citaos (Concretismo, Neoconcretismo, Tendência, Praxis, Processo) eram ferrenhas; 3. levar ao grande público e à nova geração não só exemplos de poesia feita sob a influência das vanguardas desde 1956, mas abrir espaço para os novos, muitos deles identificados como poetas marginais, que pela primeira vez emergiram fora do underground e de seus pequenos grupos; 4. mostrar que havia um clima de descentralização, democracia, liberdade de criação, que cada um podia fazer o que quisesse e seguir na direção escolhida. A poesia, assim adiantava-se à abertura política.


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POESIA MARGINAL

Autoria: Hélio Oiticica

Em 1973 ocorreu um outro evento, que ao lado do “Jornal de Poesia” contribuiu para aproximar os jovens até então ilhados e silenciados naquele clima terrível de censura, denúncia, sobressalto e medo que caracterizou o governo Médici. É preciso lembrar que naquele tempo não havia evento cultural algum que agrupasse espontaneamente as pessoas. Só a partir de 1975 é que surgiram encontros com os “Debates do Teatro Casa Grande”. Por isso, a realização da Expoesia 1 na PUC/RJ, seguida da Expoesia em Curitiba (a convite do prefeito Jaime Lerner) e da Expoesia 3 e Nova Friburgo, foram acontecimentos relevantes. Outras expoesias foram solicitadas para serem organizadas em Belo Horizonte, Salvador, Brasília, Porto Alegre, São Paulo, mas aí já seria necessário uma empresa para organizar isto. A Expoesia 1 se originou de um fato muito simples: com o mesmo propósito de ilustrar e alimentar o curso que dava para os alunos de mestrado da PUC no 2º semestre de 73, resolvemos fazer uma exposição das principais tendências da poesia brasileira desde o Modernismo. Além do material correspondente a cada grupo foi divulgado que todo e qualquer poeta poderia remeter seu material para ser ali exposto, fosse poesia visual ou escrita, poesia corporal ou em super-oito, enfim, todas as modalidades concebíveis ou não e que merecessem de seus autores o rótulo de poesia. O objetivo era ver o que produziam os poetas àquela altura do campeonato. Embora tivéssemos, no princípio, dito que selecionaríamos os trabalhos, tivemos que mudar de orientação. Tal foi a avalancha de poemas de grupos de poetas que procuraram a universidade que, dentro do momento


político enfartado de repressão, julgamos que o acertado seriafazer contrário: expor o que chegasse. O resultado é que não só toda a área dos pilotis da Universidade foi utilizada com stands, mas também o terceiro andar da Biblioteca Central, numa exposição aberta dia e noite, que recebeu a visita de dezenas de colégios e de unversidade e que, na noite de abertura, contou com a surpreendente presença de mais de três mil pessoas para o lançamento de 20 livros de poesia, a exposição mais de três mil poemas e uma série de happenings, além do relato que faço em Música e Moderna Poesia Brasileira. Para se conhecer melhor o episódio, deve-se consultar os jornais da época, especialmente o Jornal do Brasil, O Globo, O Jornal. Ver também o suplemento literário da Tribuna da Imprensa (27-28, out/73), News — edição especial com distribuição de 200 exemplares na noite da abertura, e a revista Argumento (Ed. Paz e Terra, Rio, no. 3) com ensaio-reportagem de Antônio Carlos de Brito e Heloísa Buarque de Holanda: “Nosso Verso de Pé Quebrado”. O “Suplemento Literário de Minas Gerais” (13-7-74) dedicou um número especial à realização das Exposia 1 (Rio) e Expoesia 2 (Curitiba). A Veja considerou a Expoesia um dos eventos mais importantes da cultura na década de 70. Esse mutirão poético realizado numa época em que não havia nenhum tipo de congresso, seminário, mesa-redonda, onde os artistas e intelectuais pudessem manifestar-se livremente, abriu uma sequência de happenings. No ano seguinte, no Museu de Arte Moderna do Rio, Carlos Henrique Escobar, reaglutinando aqueles poetas das exposias e chamando outros, organizou o Poemação, durante uma semana, com cerca de milhares de pessoas. E em 1976 ocorreu em São Paulo, no Teatro Municipal, a I Feira Paulista de Poesia e Arte, segundo a Veja de 17-11-76, reuniu 8 mil pessoas. Estava configurada definitivamente uma nova etapa na poesia brasileira. Na década de 70 ocorre um fenômeno curioso. Assim como os poetas de 1922 publicaram suas “poesias completas” na década de 50, formalizando o seu classicismo e significando que o fundamental de suas obras já estava erguido, na década de 70, vários poetas da G-45, e sobretudo os poetas vanguardistas dos anos 50/60, publicaram também reuniões de suas poesias mostrando o essencial de sua trajetória. É como se reconhecessem que o essencial de seu recado estava dado. Sintomaticamente, na década de 70, João Cabral, que há muito havia reunido suas “poesias completas”, anuncia, em repetidas entrevistas, que havia terminado sua carreira poética e que se considerava aposentado. Some-se a isto a um outro fator aparentemente desimportante, mas que altera o quadro de relações entre os autores e obras. Na década de 60 morreram diversos poetas modernistas: Ribeiro Couto, Tasso da Silveira, Ascenço Ferreira, Anibal Machado, Guilherme de Almeida, Sérgio Milliet e Augusto Frederico Schmidt. Agora na década de 70, além de Augusto Meyer e Murilo Araújo, morrem Emílio Moura, Murilo Mendes e Cassiano Ricardo — esses dois últimos com atuação marcante também no período das vanguardas.


Se a isto se somam vários outros fatores, como as modificações políticas introduzidas como “gradualismo” e com a “abertura”, temos não só uma nova geração cronologicamente falando, mas elementos novos dentro do cotidiano que permitem a elaboração de uma nova linguagem poética. Enfim, aí está a poesia no seu eterno retorno renascendo continuamente de suas cinzas. É necessário, contudo, apontar algumas características da poesia entre nós na década de 70. 1. a poesia se tornou adolescente outra vez. Deixou de ser feita (ou controlada) por respeitáveis publicitários, senhores advogados e renomados homens de letras para ser feita por garotos a partir dos 14 anos que publicavam grupalmente seus livros, em equipes, em edições mimeografadas, assinando às vezes o livro só com o primeiro nome, como se aquela publicação fosse um brinquedo de turma de rua ou de alegre sala de aula. 2. Os poetas de 70 reinventaram o verso, reelaborando o poema longo e reinvenção do verso devo esclarecer ao meu amigo Moacyr Feliz, que em artigo mal entendeu essa expressão, que isto não significa que tudo tenha saído do nada, ou que não existissem mais poemas longos dentro e fora de nossa literatura nas décadas precedentes. Significa que apareceram textos significativos engrossando essa tendência, “coincidindo” com uma necessidade do povo brasileiro de recuperar sua “voz” e seu “discurso”, depois da ditadura ou do período em que a poesia de vanguarda gaguejou significados ou se diluiu no branco sobre o branco, repetindo o suicídio de Mallarmé no século XIX. 3. Eroticamente, há um surto renovador na poesia dessa década até o surgimento, hoje, da “poesia pornô”, que assume de vez o que vinha sendo intensificado desde os tempos do underground. Fazendo um blague, em 1922, ser pornográfico era colocar o pronome fora do lugar. Em 1970 a pornografia perdeu seu caráter de marginalidade e o poeta usa de todas as palavras para descrever o que quiser. Aliás, nessa década o palavrão entrou para a linguagem normal das famílias e jovens, até com certo charme social. Neste sentido, configura-se, pela primeira vez uma poesia de homossexuais e lésbicas transitando seus textos abertamente sem os constrangimentos e limitações anteriores. Evidentemente, isto não é uma invenção brasileira. A poesia ocidental, desde o movimento hippie iniciado na Califórnia e com a disseminação do underground, praticou esse tipo de literatura libertinada e catártica. E a esse respeito, como apêndice, é conveniente que alguém, algum dia, estude mais a fundo o underground e a marginalia brasileira como efeito semelhante de um fenômeno ocidental, o que seria uma oportunidade para se conferir ou não a originalidade de certos poetas e para se entender a prática e a metafísica daquilo que classicamente se chama de estilo de época”. 4. Surgiu também mais nitidamente a partir dessa época uma poesia feminina eroticamente mais agressiva; poesia feminina e feminista, que


se insere não só, de novo, dentro de um fenômeno ocidental de libertação da mulher, mas dentro de um quadro brasileiro específico de redefinição de papéis sociais. 5. Uma poesia de poetas negros também se articula mais visivelmente junto com os movimentos de reencontro das raízes e identidades do negro no Brasil Curiosamente, a década que se iniciou com uma literatura marginal publicada em xerox e toda forma manual e artesanal de produção terminou com um grande desempenho editorial convencional no qual as editoras passaram a editar e a vender largamente poesia. No final da década, ouviase de vários editores essa frase rara: “poesia vende”. Parece-me, finalmente, que a poesia marginal e grupal que se praticou claramente nesta década já forneceu, grupalmente, o que tinha que fornecer. Agora ela já é reconhecida e estudada classicamente nas escolas, dentro de algo que se pode chamar de abertura de nossa universidade ou de consumismo cultural. Os poetas desse movimento tem a chance de daqui para frente continuar a construir sua obra mais individualmente. Foi assim em 1930, depois de 8 anos de experiência desde 1922. Foi assim em outros momentos de nossa literatura. Há momentos de agrupamentos e momentos de individualização.


NOTAS E ADENDOS: 1. O primeiro ensaio foi apresentado no Festival de Inverno de Ouro Preto em 1972 e depois reunido no livro Música Popular e Moderna Poesia Brasileira (Ed. Vozes). O estudo Para um Novo Conceito de Paródia, Paráfrase, Estilização e Apropriação foi publicado pela D.I.E., PUC/RJ, 1980. 2. Cf. citação em Música Popular e Moderna Poesia Brasileira, no Capítulo “Geração 45: um mal-entendido faz 25 anos”, p. 52. 3. Anexo I. Além do Econômico (Jornal do Brasil — Rio, 8/11/73). “É tradição dos jornais brasileiros dedicarem espaço à divulgação da literatura. Em 1905, no inquérito que ficou famoso, O Momento Literário, conduzido por João do Rio, as conclusões mostraram que o jornalismo, em vez de prejudicar a literatura, dava-lhe acolhida, servia-lhe de primeira estampa. Naquele inquérito, houve quem dissesse que a melhor literatura continuava a passar pelas redações, às quais emprestava o brilho de sua pena, chegando a influir, muitas vezes, na feitura do jornal. Os jornais brasileiros modernizaram-se, mas a administração empresarial e a predominância, no jornalismo, da técnica sobre a improvisação, não impediram que os jornais continuassem a ser veículo de cultura. A colaboração literária e artística ficou restrita aos suplementos de letras e artes, que se editavam, em geral, ao sábados e domingos, e às colunas especializadas. Esses suplementos marcaram época, reflexos que foram de um período intenso de nossa vida intelectual. No Rio, que ditava o diapasão literário, eles praticamente desapareceram. Restam poucos nas outras capitais, como o suplemento literário do Minas Gerais, o do Correio do Povo, o do Diário de Brasília. Apesar dos esforços isolados, a cultura brasileira parece relegada a segundo plano. O progresso econômico e o aperfeiçoamento nos meios de comunicação podem significar dificuldades de acesso à cultura. Pelo contrário, supõe-se que o consumo de massa promova a democratização do bem artístico e literário, abrindo-lhe horizontes mais largos. Todos os que desejam o desenvolvimento com maior participação das manifestações do espírito aplaudiram o lançamento sábado passado, em nossas páginas, do Jornal da Poesia. Já antes haviam considerado a importância do suplemento Livro, agora circulando quinzenalmente com o Jornal do Brasil. As iniciativas de acompanhar de perto o que se escreve e se publica no país, e de retirar a poesia brasileira de seu ostracismo, mostram, pela repercussão despertada, o quanto é extensa a pauta de necessidades no setor. O progresso de um povo implica desenvolvimento cultural, até porque o espírito é a premissa das realizações materiais. Enquanto essa doutrina não se define sob a forma de incentivos e estímulos diretos à produção e conservação de bens culturais, impõe-se mais ainda a iniciativa particular. Cultura é dever de todos, na medida de suas contribuições. Promovê-la, neste momento, significa acreditar no pensamento do país como laboratório de criatividade e oficina de progresso, sempre com a mira assentada no bem-estar crescente do homem”. 4. Anexo 2. O Fruto de um Decênio (Jornal do Brasil, Rio, 11/10/73). Tristão de Athayde. “Se me perguntassem de repente: “se Tristão, que benefício nos trouxe a revolução de 64?”, que daqui a seis meses vai completar seu primeiro decênio, eu hesitaria por certo em contestar. Ou responderia simplesmente: “não sei.” Ou, se estivesse de mau humor, diria: “nenhum.” Ou então, se quisesse ser justiceiro: “10 anos de relativo progresso econômico e um decênio de absoluto regresso político.” Ou qualquer faceta ou evasiva, que no momento me ocorresse. Mas se hoje, com seis meses de antecedência, um colaborador precavido do Departamento de Pesquisa do JB me fizesse essa pergunta, talvez lhe respondesse: “foi a ressurreição do interesse pela poesia no Brasil.” Há tempos, a Tribuna da Imprensa inaugurou um suplemento literário em que, semanalmente, uma turma de jovens desconhecidos (ao menos para mim, velho crítico afastado das arenas literárias), no meio do bagaço natural, nos vem trazendo revelações animadoras. Enquanto o Estado de São Paulo vem estremecendo, de Camões ou de Bocage, suas colunas diárias, não apenas por evasivas anticensoriais... Antes disso, durante os anos mais recentes, amiudavam-se os meus remorsos por deixar, sem uma linha sequer de agradecimento, os livros de poemas e de poetas acumulados sobre a minha mesa. Enquanto


outros aqui me cercam, esperando vez... Semanas atrás, porém ao ler com surpresa o Jornal da Poesia, que o JB, em boa hora, decidiu incorporar mensalmente às suas páginas, senti realmente que era o momento, não digo de fazer um balanço ainda prematuro desse renascimento, o que já agora escaparia à minha capacidade, mas de confirmar as suspeitas, que há muito trabalhavam ea consciência deste velho crítico fora do baralho. O grande fruto que o movimento político trouxe à nossa terra, não foi de caráter econômico e muito menos político. Foi de caráter... poético. De caráter poético, repito, por oposição às suas consequências contraditórias em outros territórios intelectuais. Por exemplo, no teatro, que censura esvaziou exatamente no instante em que ele representava a face mais fecunda e original de nossa letras modernas. Ou mesmo no romance e, de certo modo, em todo território da ficção em prosa. Ou mesmo da crítica e da historiografia social, sem falar no jornalismo, também obrigada, pelo justo temor dos editores ou diretores, a deixar muita coisa inédita ou a tomar aqueles desvios “barrocos” a que se referiu Antônio Houaiss, para não correrem os mesmo risco do nosso bravo Enio Silveira. A poesia, essa, é por sua natureza um território emque a arte da camuflagem não representa um artifício ou uma impostura, mas sua própria indumentária. Se não mesmo sua natureza, como disse Fernando Pessoa, em uma quadra famosa. Por isso se julga capaz, e de fato é, de afrontar os mares mais encapelados e romper as neblinas mais cerradas para escapar aos holofotes inimigos, a serviços dos pretextos, utilizados por todos os regimes antiliberais, para garrotearem a liberdade de expressão, tanto aqui como na Rússia soviética. Foi precisamente por ter deixado o povo e a mocidade marginalizados, desde seu desencadeamento, que a revolução de 64 acabou prestando à poesia brasileira esse serviço. Andava ela esgotada depois dos grandes dias em que de Bandeira a João Cabral, nossos maiores poetas contemporâneos nos tinham dado uma colheita que igualou ou excedeu todo o nosso passado poético. Entrara em compasso de espera. Ou, então, em tentativas certamente fecundas mas esparsas de grupos mais ou menos secretos, , com aquelas sociétés dos séculos XVIII, haviam preparado a Revolução Francesa. Essas pequenas capelas poética, entretanto, não conseguiram construir uma igreja literária como o Modernismo o fizera em 1922.Ou como perseguira, no mesmo propósito a nova geração de 1930, a parte de 1928, com Augusto Frederico Schmidt ou Jorge de Lima. Esses grupos de movimentos parciais como o Concretismo, o Neoconcretismo, o Praxis, a Tendência, o Processo, e até mesmo o Tropicalismo eram, no entanto, o refúgio da inteligência e da liberdade criadora em poesia, que a revolução de 64, pelo seu complexo de defesa contra o espírito subversivo, obrigara à camuflagem. Ou à evasão intelectual. Ou ao neobarroquismo. Não digo que esse absolutismo político, mascarado pelo nominalismo vazio das fórmulas demagógi as para efeito de propaganda política a que estamos assistindo. Mas que concorreu decisivamente para ela, disso não tenho a menor dúvida. Como disse a lúcida apresentação do primeiro caderno dessa necessária poesia: “A poesia que permanece sob os mais variados disfarces e que não apenas sobrevive como exige olhos novos para ser percebida. Hoja ao invés de ser vendida apenas em livrarias (aproveito o ensejo para lembrar a figura do benemérito “mercador de livros”. Carlos Ribeiro, que nunca abandonou os poetas, apesar da modéstia dos seus recursos, como aliás não os esqueceu o nosso José Olympio, lembro eu, a poesia está sendo vendida seus versos fazendo-os circular fora do comércio.” A poesia se tornou clandestina em grade parte, para sobreviver aos ataques da Censura, do que foram vítimas até as canções de Chico Buarque. E teve até os seus Joaquim Silvérios... Mas, com tudo isso, a censura se tornou benemérita de nossa renovação poética. Olavo Bilac gabava-se em 1907, ao receber o grande banquete de homenagem de todas as classes sociais (fora a proletária, naturalmente...), que a poesia estava pela primeira vez, na própria história da nacionalidade e saía do seu gueto aristocrático. Por caminhos muito diversos, o movimento de 64 chegou sem querer a resultado semelhante. Os poetas foram levados a novos rumos, em grande parte marcados pelo larvatus prodeo de Descarte, para dizerem o que publicamente não poderia dizer. Com isso conseguiu a censura da revolução provocar novos momentos dessa joy for ever como Keats definiu o poder fecundante de todas as formas de beleza. Esses dois cadernos de poesia de JB, recebidos com as maiores demonstrações de apreço vieram confirmar os sintomas de ressurreição poética, que indiretamente devemos agradecer às intenções da censura intelectual imposta pelo movimento de 64. Não é só Deus que escreve direito por linhas tortas.”


COLOFÃO E-book realizado a partir do texto extraído d´O LIVRO DO SEMINÁRIO – Ensaios, da 1ª. Bienal Nestlé de Literatura Brasileira, publicado originalmente por LR Editores (São Paulo, SP, 1982), p. 269302. Montagem de Antonio Miranda e publicação no ISSUU por Nildo Barbosa, Brasília, 2015, para o Portal de Poesia Ibero-americana, com a autorização do autor.



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