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Antonio Miranda com ilustrações de Zenilton Miranda
Brasília, 2008
4 © by Antonio Miranda e Zeniltom Miranda 2008 Todos os direitos reservados Capa: Elmira Simeão, a partir da ilustração de Zenilton Miranda Projeto Gráfico: Elmira Simeão Editoração: Beto Paixão Ilustrações e arte: Zenilton MIranda Revisão: Antonio Miranda Publicação especial com tiragem limitada (200 exemplares) não comercializada e lançamento especial programado na I Bienal Internacional de Poesia - Brasília, 2008.
Do Azul Mais Distante / Antonio Miranda e Zenilton Miranda. - Brasília : Publicação especial em lançamento limitado por 000 p. ; . - (poemas) ISBN 85-XXX-XXX-X I. Miranda, Antonio. II. Miranda, Zeniltom.
Sumário Retrato Na Parede ......................................... 15 As Origens ........................................................ 18 Havia o Trem .................................................. 25 Aves de Arribação ......................................... 27 O Cabra Fornicador .................................... 29 As Virtuosas ..................................................... 33 Teias e Tramas Genealógicas.................... 35 O Parto da Virgem Endiabrada .............. 39 Os Albinos do Quilombo .......................... 45 Poetas Malditos ............................................... 49 O Circo Chegou ............................................ 51 O Vaticínio ........................................................ 53 Ventos Aziagos................................................. 55 O Casamento................................................... 59 A Língua dos Mortos .................................... 61 Tanto Sol .......................................................... 63 O Passamento .................................................. 67 O Coito do Sátiro........................................ 69 A Penitente ........................................................ 76 Ciclos .................................................................... 78
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A Decisão ......................................................... 80 Tralhas e Trilhas ............................................ 82 Lampejos.............................................................. 84 Absorto................................................................ 86 Horror ................................................................... 87 In Memoriam ....................................................... 89 O Quarto de Nelson .................................. 92 Monogramas ....................................................... 95 Acasalamentos .................................................. 97 A Gata Borralheira ....................................100 Longa Jornada Noite Adentro .............103 Do Outro Lado da Vida .........................111 Visita à Casa Paterna ................................113 Repasso .............................................................116 Os Nervos da Memória ............................117 Solistício de Inverno ......................................119 Paisagem com Sombras ..............................121 O Trem ..............................................................123 Monólogo da Enjeitada ...............................127 Ubiquidade .......................................................130
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Do Azul Mais Distante Tive o privilégio de escutar estes poemas, ainda inéditos, recitados pelo próprio autor. A intensidade, a força, a ternura me conquistaram desde as primeiras linhas até envolver-me no enredo, urdido brilhantemente. A aspereza da história era mitigada pela calidez da voz e pela singularidade do lugar onde estávamos: a Biblioteca Nacional de Brasília, belíssima construção de Niemeyer de onde contemplávamos a Esplanada dos Ministérios. Espaço amplo e aberto criado pelo engenho que também favorece a liberação dos sentidos, o proceso criativo da palabra e o desdobramento da imaginação. Este poemario que teme mão, leitor, não se parece a nenhum dos outros muitos escritos por Miranda, de fato não se parece com nenhum outro libro que tenha lido, é um libro-conto, um libro-origem, um libro-história, um libro-sonho, um enredo genealógico de enredos, de equipagem e percurso, de horror, em definitivo, um legado da memoria abandonada na lembrança de adolescente mas com a lucidez que propicia uma vida plena, uma vivida vivida, uma mirada serena. Um livro-conto, que narra, nos conta a história das irmãs Teixeira, com seus anseios, ambições, suas paixões e misérias, enfeitadas com pó-de-arroz e folhetim, com amor, ódio, concubinato, violações e adoração até a morte: todo um conto.
8 Um livro-história, repleto de referências a uma etapa da história do Brasil, momento concreto em que se desenvolve a ação, momento difícil, na primoeira metade do século XXX, numa das mais pobres e abandonadas regiões do pais —o Piauí. Uma história que também faz referencia à riquíssima arqueología da região. História da terra, de su aterra. Um livro-origem, que permite ao autor evocar lembranças de sua infancia e traê-las ao século 21, com a ternura de um menino e rudeza de um camponês nordestino. Com a memoria nos fala do principio e nos remete às origens. Uma introspecção que parte do vestigio e se enfeita com a caligrafia do escritor, do adulto-menino, do ser humano capaz de dar forma artística, beleza, a uma crónica trágica. Um livro-sonho, cheio de elementos mágicos que convertem o sobrenatural em algo cotidiano. Maravilha do escritor, feitiço de poeta. O realismo mágico brilhou intensamente na literatura hispano-americana dos anos sesenta e setenta, movimento literque não se expressou principalmente através da poesía, mas da narrativa; no entanto, o poeta Antonio Miranda nos faz conviver com a língua dos mortos, paisagens com sombras, ubiqüidade e vaticínios tristemente cumpridos. É aquí onde o onírico permite ampliar-nos, comprometer-nos, reconoher-nos? Podia ter sido o destino de qualquer outro Édipo coetâneo que a contragosto não impusesse seu desejo. Os poemas têm uma continuidade linear, entrelaçados por um discurso interno, calibrado, que modera a intensidade de alguns poemas, muito duros, próximos do primitivismo animista original, intercalando outros mais leves, mais líricos, envoltos no devir dos días, capaz de aligeirar o recorrido, protegendo contra o excesso de angustia.
9 (...) As irmãs Teixeira andavam alvoroçadas com a chegada do circo. Um engolidor de facas, a mulher barbada, os palhaços (farrapentos), leões (famintos), e o trapezista bonito de olhos azuis que fisgavam os corações das meninas!!! (...) Continúa com alusões à tradição dos costumes nordestinos, com regionalismos plenos de sabor local, que constituem a crônica de uma época. (...) As crianças correndo atrás de um cabrito assustado. Sombra de ingazeira generosa e um claror repentino que apagava tudo no céu sem fundo. (...) —— (...). Um sol sempre vermelho e reverberante, gado importado (quem sabe?) de Cabo Verde nas terras novas de plantio voltadas para o curso do rio Parnaíba.(...) ——
10 (...) Havia homens recitando sonetos e carcamanos com seus fardos ambulantes. Seriam judeus errantes cristianizados, miscigenados com índias apresadas, (...) Tensão-contradição, jogos de palabras que estremecem na mescla do terrestre com o divino, imagens que comovem enquanto espantam, como no imponente poema Ventos aziagos: (...) Passava a procissão do Senhor Morto, passava a procissão de São Pedro de Alcântara, passava fome e um bumba-meu-boi em farrapos. Vivia-se de enfermidades aviando medicamentos. Morria-se na véspera, antes mesmo de nascer: corpos adubando o solo. —
11 Havia mais mortos enterrados do que vivos, e do fundo da terra, milhares de olhos observando os mortos futuros.
Ventos aziagos que assinalam, a pesar do poder religioso que a procissão indica, a dor permanente, a fome indomável. A perpétua doença que os remédios não alcançam curar, a morte que se antecipa à própria vida, morte que se torna morte antes que a vida seja vida. O vazio, o buraco, a ausência. A morte. Personagens que amam, sofrem, conquistam, temem, anseiam, ambicionam, morrem e voltam à vida com o imponente saber da morte. A estas outras passagens do poemario que não permitem desejar, como acontece com Nazinha, na lembrança compartilhada, como a vida que nos vai construindo-descontruindo
Nazinha, a mais velha, é a mais tímida. Sonha com homens fardados, varões engalanados em desfiles militares. — A virgem que acasalou com o trapezista:
12 grávida, escorraçada, seguiu o circo mambembe. Avós putrefatas, tios decapitados, bestiários. Tio Nelson era o único testemunho do Além. — Queria morrer. Via sargaços e aves e revia o gado perdido no campo. Chorava para si. lava nem ouvia. Nem via mais o mar, olhava para dentro. Devia contrapor as sensações que estão em tempos diferentes e em espaços sem contigüidade, inteligindo sem a razão do entendimento. Do azul mais distante, um título lírico, um verso doce, que realça um poemário duro, penetrante e profundamente intenso, lembrando Antonio Machado em
13 seu último verso: Estos días azules y este sol de la infancia, que com estas palavras o poeta espanhol concluía sua obra. Poeta, sim; filósofo também, certamente um pensador, como também Antonio Miranda nos conclama a pensar, sem deixar de imaginar. Do azul mais distante parece marcar também uma etapa, a da maturidade expressiva que proporciona o conhecimento, o saber da experiência vital acumulada nos estratos pouco erodidos pelo tempo, pela reflexão capaz de sobrepor-se ao passado, vertendo distantes días azuis em páginas comovedores, para o gozo dos leitores Aurora Cuevas Madri, julho de 2008
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1 Retrato Na Parede (Floriano, 1935) As irmãs Teixeira sentadas na poltrona acolchoada, espaldares arredondados, fundo estampado: uma foto ensaiada, retocada pelo fotógrafo em seu estúdio. Moldura em relevo. Os olhos das meninas saltam do espaço recortado, antecipando migrações.
Estão vestidas assim tão arrumadinhas com golas e franzidos nas mangas, os cabelos cacheados, enfeitadas. Olhares de horizontes largos, sem precisão do que pretendem. Nada da aparente placidez de ovelhas amestradas, de sujeição. Os irmãos já se foram para o sul. Nascem e já saem na direção do marcomo alimárias errantes.
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2 As Origens Estas terras nunca foram benfazejas. Sem os metais preciosos, o litoral piauiense nunca teve porto de atracação. Um sol sempre vermelho e reverberante, gado importado (quem sabe?) de Cabo Verde nas terras novas de plantio voltadas para o curso do rio Parnaíba. Dunas e areias movendo-se em direções azarosas, sobre lençóis movediços, sediços, luzidios, fulgurantes, fugidios.
Os navios passam ao largo, indiferentes. Léguas de terra em quadro, fazendas criadas por Domingos Afonso Mafrense em ciclos de crescimento e estagnação desde a expulsão dos jesuítas. (Havia ossos deles enterrados pelos cemitérios abandonados, adubando o chão cáustico.) Trilhas mulares do sertão pela ausência de horizontes. Veredas infindas, chapadas rasas e baixios ribeirinhos, passo dos viandantes.
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Carnaubais, babaçuais. CemitÊrio marinho fossilizado no leito de mares extintos: um mar entranhado que ainda ruge do fundo da terra.
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O Ressurrecto (Floriano, 1936) Desenterrado vivo depois de anos de escuridão: intacto sob uma cobertura de pó em camadas de fina tessitura. A palidez ebúrnea, vinda das paragens desconhecidas da morte, cheiro súbito de coisa parada no tempo, sambaqui enterrado. Inscrições rupestres na Serra da Capivara. No Piauí vagam animais da mais remota antiguidade. Vestígios por toda parte.
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Do chão arcaico emanam forças capazes da ressurreição das espécies. Havia relatos de outros casos em Oeiras e Picos. Havia também pássaros descomunais com bicos de carcará e asas de morcegos vindos das cavernas e peixes migrando do delta do Parnaíba na direção das águas enterradas da Gurguéia, para a derradeira morte. Pedaço do fim do mundo antediluviano. Terras profanadas pelos colonizadores. A maldição: os peixes serão impedidos de subir as águas
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do rio com a construção de uma represa; as águas cada vez mais poucas e barrentas impedirão a navegação dos últimos vapores.
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Havia o Trem Havia o trem para São Luis do Maranhão passando pela ponte estrepitosa em seus metais antigos. Teresina com suas ruas retas, cruzando-se. Uma população invisível convivendo com os falsos vivos. Havia homens recitando sonetos e carcamanos com seus fardos ambulantes. Seriam judeus errantes cristianizados,
miscigenados com índias apressadas, pregadores da volta de Cristo nos cafundó do Judas, seriam desgraçados jurados de morte e homens-bodes sobrevivendo às agruras da seca e da fome. Gibões de couro e um sebastianismo recalcitrante.
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5 Aves de Arribação Notícias da Guerra chegavam a intervalos. O gado morrendo de sede, carnes humanas calcinadas, desidratadas, soldados federais caçando cangaceiros, justiceiros a soldo saldando dívidas de honra, cobranças, desavenças. Os arroubos versejantes da intelectualidade ludovicence nos sobrados assustados da Atenas brasileira; bondes trôpegos e morosos, chapéus da moda,
os ternos claros dos comerciantes cearenses. Almanaques entretidos e folhetins romanescos
não eram muitos naquelas lonjuras. Meninas sonhadoras, os olhos esbugalhados, vôos contidos de aves de arribação.
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6 O Cabra Fornicador Tio Nelson colecionava palavras em cadernos volumosos numa mala velha de couro ressecado. Caligrafia de ourives, pescava palavras na beira do rio, nas rodas de pescadores, nas prédicas do sacerdote, e nas preleções do juiz de fora. Palavras de redenção. As palavras estão na origem do mundo —garantia—, criadas por Deus
para facilitar o entendimento das coisas. Os sábios gregos falavam diretamente com os deuses, recebiam deles os ensinamentos e podiam dissentir e argumentar. O povaréu de Floriano ouvia o discurso enviesado com fascínio e escárnio. Ressurrecto, tio Nelson conhecia o outro lado da vida. Passava horas lendo em voz alta, seus olhos de cera ainda mortos, a única intimidade era mesmo com as palavras de seu dicionário. Dizem que tio Nelson fornicava com as cabras, seria um sátiro, pênis espiralado, no desespero de sua solidão.
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Dizem que tio Nelson fornicava com as cabras, seria um sátiro, pênis espiralado, no desespero de sua solidão.
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7 As Virtuosas Nazinha, a mais velha, é a mais tímida. Sonha com homens fardados, varões engalanados em desfiles militares. Militar de verdade, não um capitão-do-mato como o avô. Inês sonha com um homem de letras, um poeta, um advogado com a melhor oratória. Culto, refinado, galante. Capaz de escrever belas cartas de amor e recitar textos arrebatadores. Neusa, a mais nova, é arredia e irritadiça,
na contramão das vontades alheias. Freqüenta as aulas de francês e as práticas de um piano desafinado. Quer um príncipe de verdade. Minhocas na cabeça! —vocifera o pai Florêncio. A cartomante, depois de comer do famoso doce de limão da casa dos Teixeira, vislumbrou tragédias e desassossegos na família mas, agradecida, vaticinou um futuro retumbante.
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8 Teias e Tramas Genealógicas O patriarca costumava reunir a parentela para contar a história dos antepassados. As mulheres abanavam leques fingindo interesse. As crianças, impacientes, sonhando com o bolo depois da litania genealógica e da liturgia dos defuntos. Fotos ovaladas, ornadas com flores de papel crepom. Heráldica difusa, inventários imprecisos. (Ocultava os crimes, os abusos, aberrações.) Cronologia desencontrada, discurso labiríntico.
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Notícias de freguesias extintas, referências a arquivos queimados, lápides de um cemitério afogado na última cheia do rio Parnaíba. Não havia certificados de sesmarias e datas, nem herdades patrimoniais claras nos cartórios. Não obstante o zelo da religião em suas vidas, uma miscigenação aleatória e até promíscua, incertos acasalamentos com padres estrangeiros, e incestos, rizomas subterrâneos, tramas insondáveis. A tia empertigada na foto como se usasse espartilho, saía do baú para as assombrações noturnas. Morrera de peste seguida de febres e estertores,
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recolhida ao monte de cadáveres a serem queimados a céu aberto para excomungar as penas inculcadas em suas carnes ímpias onde o fogo-fátuo acendia a libertação de suas almas de bodes e calangos —derradeiras agonias. A virgem que acasalou com o trapezista: grávida, escorraçada, seguiu o circo mambembe. Histórias do destino humano vigiando fontes e riachos temporários para garantir a sobrevivência da estirpe, pastando cabras como ovelhas bíblicas. O Amor seria o resultado indesejável de uma química perversa,
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alheio ao controle humano, subjugante —garantia o patriarca—, próprio dos seres fracos e incivilizados. Neusa dedilhava, depois, valsas no piano fanho e era então servido o patrimônio culinário de bolos, biscoitos e doces de família. Dona Filomena palavreando receitas com o eco de vozes defuntas. Avós putrefatas, tios decapitados, bestiários. Tio Nelson era o único testemunho do Além. As crianças ficavam cativas de pesadelos: bois encantados, pavões delirantes, cabeças-de-cuia.
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9 O Parto da Virgem Endiabrada A Enjeitada começou a dar sinais de transtornos e convulsões, tonteiras e derramamentos de sangue. Foi logo enclausurada no quarto de onde nunca deveria ter saído —na condenação verbal da mãe Filomena. Sentia cólicas e erupções, queimando gases venenosos, suores peçonhentos, desmaios constantes. Banhos-maria, rezas de benzedeira, chás e emplastros vegetais, pomadas e ungüentos nas têmporas e nas regiões úmidas e abrasantes
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de seu sexo de adolescente, os lábios inchados e o ventre crescendo a olhos vistos. Amarrada ao madeiro do catre como fera encurralada, babava e grunhia. Padre Fernandes (que não era um exorcista) acudiu com preces e ladainhas inúteis. Gravidez estranha, de virgem enclausurada. Espírito maligno encostado, entendeu o pai-se-santo: Exu e suas mulheres-hospedeiras, ovo de serpente do diabo em gestação interminável.
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Estranhos desígnios! Onde já havia um morto-vivo agora a possuída pelo Belzebu em carnatura. Movimentos da besta nas cavidades profundas da menina inocente. Rezas, descarregos. Na madrugada escura, finalmente, uma coisa pardacenta e gelatinosa, movente e sem cabeça, sem cordão umbilical, na gosma visguenta e luminosa, é recolhida em urinol de ágata, e logo enterrada no quintal com várias camadas de terra. Livre da abdução, a menina desfalece. Neves, a enjeitada, era uma brotação indesejada
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que a própria mãe esconjurava. Castigo do céu pelos pecados cometidos, estrupício, produto de estupro, uma cruz que levava ao calvário. Havia que buscar um marido para a desgraçada.
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10 Os Albinos do Quilombo O bairro dos quilombolas era invisível, coberto por uma nuvem de pó e dissimulo. Não pagava impostos aquela gente miserável, sem registro no cartório. Analfabetos. Ruelas sem árvores, sem iluminação, desolação a céu aberto, deserdados da sorte, condenados à morte, sem remissão. Casebre de pau-a-pique com folhas de palmeiras. Sorte que viviam à jusante do rio e as sujeiras desciam na enxurrada.
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Prófugos da escravidão, desmemoriados, descendentes de escravos forros esquecidos. Albinos escondidos, como leprosos vivendo com os espíritos errantes, possuindo seus corpos em transe em noites argênteas e premonitórias. Conhecido como bairro dos albinos por causa de seus hábitos noturnos. Extrema brancura da pele, não obstante as feições negróides e cabelo enrolado. Ostentavam olheiras escuras e usavam roupas folgadas até às extremidades. “São holandeses”, garantia uma velha
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já centenária e cega de catarata. Bastardos abandonados pelas naus condenados à diáspora infinda dos não-cristãos, primitivos, animistas. Nas labaredas eternas do inferno das regiões equatoriais, a pele em chagas. Havia também espécimes listrados e malhados como vacas e zebras. Expostos como atração bizarra ou exterminados em partos clandestinos para não se ter que alimentá-los na penumbra de choças, como inúteis.
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Protegidos pela escuridão e o anonimato, dialogando com as almas dos falecidos, comendo raízes sem sal, com papeiras deformes como galinhas agourentas. Um deles trajava vestes femininas quando deu à luz um monstro que ostentava um rabo de réptil e uma genitália de jumento.
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11 Poetas Malditos Sabia Rimbaud de memória, ruminava versos de poetas malditos. Poetas de almas doentes vivendo em paraísos artificiais, flores do mal. Que paraíso haveria além daquele criado por Deus (que era um inferno, admitia). Nelson havia ressurgido da tumba.
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Havia precedentes na Bíblia, ressurreições, mistérios insondáveis. “Aprendeu francês com o demônio” —sentenciou o pároco Fernandes—, no inferno, onde conversava com hereges e degenerados.
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12 O Circo Chegou As irmãs Teixeira andavam alvoroçadas com a chegada do circo. Um engolidor de facas, a mulher barbada, os palhaços (farrapentos), leões (famintos), e o trapezista bonito de olhos azuis que fisgavam os corações das meninas!!! Artistas tocando tambor pelas ruas da cidade. Uma contorcionista, e sobre um elefante, o empresário com chapéu de lantejoulas. A lona (remendada) no descampado
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ás margens do rio Parnaíba. Um galinheiro de gente apinhado mas era mesmo bonito o trapezista de olhos azuis. Louro como nos contos de fada. Só não estava lá a desafortunada da Neves porque estava prometida a um fazendeiro rico.
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13 O Vaticínio O espírito baixou no terreiro dos albinos. —”Vosmicê vai ser como uma cortesã, coberta de jóias, vai ver o mar e morrer pelas próprias mãos”. Desconjuro! Neves estremeceu. Quem seria o rico fazendeiro com quem esposaria? Só podia ser um velho feio,
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um gordo sujo. Mas havia o consolo do mar. Pra que serviriam as j贸ias a uma prisioneira?
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14 Ventos Aziagos A miséria como maldição. Secas intermináveis devastavam plantação e gado. As vendas de muitas portas na rua de São Pedro e poucos compradores. Passava a procissão do Senhor Morto, passava a procissão de São Pedro de Alcântara, passava fome e um bumba-meu-boi em farrapos.
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Passavam a febre amarela e a cólera-morbo combatidas com suco de limão, infusões de pimenta malagueta, enxofre em pó nas meias e a simpatia das moedas de cobre penduradas no pescoço. Apensados, obstrutos e ventruosidades —nó nas tripas e beriberi. Passava sezão, gota, pleuris maligna e verminose. Vivia-se de enfermidades aviando medicamentos.
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Morria-se na vĂŠspera, antes mesmo de nascer: corpos adubando o solo. Havia mais mortos enterrados do que vivos, e do fundo da terra, milhares de olhos observando os mortos futuros.
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15 O Casamento O noivo veio a cavalo. Não tinha parentes nas redondezas. Recebeu a menina depois dos ofícios (do sacrifício no altar) como quem recebe uma encomenda e enganchou-a na garupa para uma viagem de incômodos e soluços. Via-a como um fardo que agora deveria alimentar
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e servir-se dela como esposa. Ela sentiu a gravidade de seu desterro.
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16 A Língua dos Mortos Aprendeu a língua dos mortos. Em vez de roncar, recita textos em língua ininteligível. Coisa de sonâmbulo, de morto-vivo que vive duas vidas: uma regular, como todo mundo, e a outra habitada por divindades e demônios. Deve ser o sânscrito, o aramaico, um dialeto da Ásia menor ou o tal de papiamento que ninguém sabe de onde é.
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Não pode ser o latim
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—garante o pároco— que é língua de santos e não de bruxos. Tio Nelson escrevia versos na calada da noite naquela caligrafia que nem ele entendia. Palimpsestos sobre papel de padaria, matéria de paleógrafos. Escrevia-os para os espíritos. “– Todo homem deve escrever os seus pensamentos, para a posteridade. Mas só deve revelá-los depois de morto.” – Mas ele já morreu...
17 Tanto Sol A bĂşssola aponta para o sul. As galinhas uivam e os gatos assoviam; os patos solfejam e as vacas sonham. Nestas terras abandonadas nĂŁo se pronuncia
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o nome de Deus sem o arrepio da dor —clamor e penitência. Carcarás domesticados os homens-jegues arrependidos com seus fardos . Os pássaros desencantados os romeiros e as rameiras e os retirantes, penitentes os esmoleres conformados e os tropeiros e os ciganos —discursos ensarilhados.
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Nestas terras de usura não tem fartura, se tortura, não há sossego e perdão; tem gibão e fogo na carnatura — ave de arribação. Nas agruras do sertão nas lonjuras insondáveis vaga o homem, e cisma em seu confinamento — tanto sol e solidão.
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18 O Passamento Dona Filomena amanhecera morta ao lado do marido. A mão na testa —sentiu a frieza da ausência de vida. Florêncio não saberia mais viver só sem o amparo da mulher (ou mãe). Não sabia onde estavam os chinelos e a ceroula que ia usar naquele dia.
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Depois vieram as carpideiras e um enterro com pompas e luto fechado. Mal não fariam à defunta aquelas ladainhas e orações solenes.
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19 O Coito do Sátiro Na penumbra de uma lua minguante enxergou uma casa modesta, coberta de telhas arruinadas e nenhuma cama decente para descansar da fadiga caminheira. Redes no meio de um quarto sem adorno e sem móveis. Um cenário de sombras. O sátiro arrojou-a na rede suja e esforquilhou-se sobre seu corpo trêmulo, despindo-a com rudeza, com os pés plantados no assoalho.
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Desvestiu-se da camisa e, uma perna depois da outra, desvencilhou-se da calça de brim escuro. Apareceram, então, entre as pernas, dois pênis imensos excitados e vibrantes como duas serpentes libertas. Dois pênis sobrepostos, olhos de fera, faiscantes. A lamparina extinguia-se lampejante, exalando um cheiro de queimado. Carnes indefesas, busuntou-a com sucessivas demãos de saliva grossa e começou a introduzir-se com fúria. Tamanha a dor e acabou desfalecendo.
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Depois ele repetiu o assalto pelo ânus. Começou a penetrar as cavernas até não mais poder. Um estrebucho de frêmito até aos estertores do gozo, relinchando vitorioso. Acordou as galinhas nos poleiros e os animais nas coxias. O sangue jorrava dela enquanto o fauno saía correndo para o riacho próximo, arrojando-se nas águas para apagar as brasas de seu corpo enfermo. II O silêncio acometeu os corpos exauridos. O homem estremecia no sonho saciado
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e perturbava a noite com os roncos de bicho extenuado. A jovem no torpor de um pesadelo e gemidos constantes. Na tarde do dia seguinte abriu os olhos e viu as rĂŠstias de luz invadindo o quarto hediondo. O companheiro dormia um sono ruminante. Saiu engatinhando atĂŠ a soleira da porta para ofuscar-se com as luzes invasoras de uma tarde declinante. Avistou uma ingazeira portentosa e um pasto ralo no horizonte difuso. Encontrou mais adiante um cocho com ĂĄgua da chuva e meteu a cara atĂŠ sentir afogamento
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quando percebeu que estava nua.
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Viu um machado repousando junto à porteira e agarrou-se a ele com a força que não tinha. Sentiu o ímpeto de salvar-se valendo-se daquele instrumento de justiça. Tentou arrancá-lo das entranhas da madeira de um tronco caído mas não foi capaz. Ainda intacto o saco em que trouxera seus minguados pertences. O vestido de noiva prostrado sobre o chão poeirento. Saiu avexada até embrenhar-se na caatinga em direção desconhecida. Errando pelos caminhos de tropeços e espinhos. Arfando e farejando “com sôfregas narinas” como escreveu o poeta Humberto de Campos.
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20 A Penitente
Minhas sandĂĄlias puĂdas, minhas ancas aviltadas, minhas entradas sofridas. Aves desterradas, potrancas. Andar fatigante. Feridas. Sol luzidio, inclemente, assim arredio e abrasante, — estradas, sustos, arrepio. .
A que pecados corresponde semelhante castigo; a que infâmias e insânias estarei sujeita — umbigo cortado, mal das entranhas, encarnações. Medos, tamanhas provações. Uma dor estranha e alheia — sem culpa, sem remissão, de um perdão que não se alcança: previsão insana. Espinhos, cansaços, solidão.
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21 Ciclos O rio é uma coisa viva como uma serpente, uma nuvem em estado líquido. Sem estribeiras, destruindo choças e roças ao longo das ribeiras. Penitências. O rio é vingativo e violento quando se vê encurralado
mas as cheias depositam hĂşmus sobre as terras de plantio. Depois, o estio e suas consequĂŞncias.
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A Decisão O patriarca definhava: ácido, distraído, casmurro. Falando pelos corredores, imprecação aos muros, mais acordado que dormido, dormido quando acordado. Convivendo com a defunta, alma ausente. Mais morto que vivo. O irmão Nelson não dava sinais de envelhecimento — meio-morto ou meio-vivo. Restavam as filhas, descartada a fugitiva. Pior eram as secas, acentuadas pelo desmatamento. Seres predatórios, merecendo a fúria dos elementos — castigo pela insânia e pela ignorância. Era hora de partir.
Que viesse a represa prometida, que os afogasse a todos e extinguisse peixes e sonhos: pasmaceira e atraso. Política menor, sem voz própria. De circunlóquios e ventríloquos. Restava o caminho do sul. Decidiu não mais recompor os estoques da farmácia.
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23 Tralhas e Trilhas Havia uns móveis antigos e arruinados que ainda lembravam a linhagem dos Teixeira. Fotos de família em molduras ovaladas e um piano decrépito, descascado que guardava pompas antigas da estirpe. Vendeu tudo ao preço que podiam pagar. Jogou o que sobrou num baú velho, umas roupas em malas de couro e negociou um frete até Fortaleza, de onde partia o Ita para o sul. ***
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O mar era verde, era azul, era vermelho, era branco, era cinza. Vastidões sem termo, espaço-tempo refletindo angústias. Queria morrer. Via sargaços e aves e revia o gado perdido no campo. Chorava para si. Mermavam suas forças. Não falava nem ouvia. Nem via mais o mar, olhava para dentro. Aguas revoltas apoucavam as criaturas. As filhas, mocinhas, em estado de graça, libertas numa taça de champanha, borbulhantes, as espumas subiam das quilhas ao convés.
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24 Lampejos Florêncio via a claridade branca da caatinga nos dias excessivos. As crianças correndo atrás de um cabrito assustado. Sombra de ingazeira generosa e um claror repentino que apagava tudo no céu sem fundo. Remoia e ruminava sempre os mesmos episódios de sua vida pequena. Havia um sol branco que cegava, que vinha da infância.
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Queria morrer, ultrapassar as fronteiras da vida, reencontrar-se com Filomena que partira desta para melhor.
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Absorto
Nelson vivia absorto dentro de um terno de defunto. Não falava nem ouvia. Devia contrapor as sensações que estão em tempos diferentes e em espaços sem contigüidade, inteligindo sem a razão do entendimento.
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26 Horror Acometido por uma síncope fulminante, nem chegou a pedir socorro. Em sua mente imagens numa sucessão de fogos de artifício: a casa em que nascera, o rio manso deslizando, as cabras galgando as pedras insolentes, relíquias de família no oratório da sala, e a cena do estupro
da esposa pelos bandidos na noite do cerco Ă fazenda. O horror estampado na face do morto.
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27 In Memoriam Morto, irei por onde queira a força do vento por não haver pensamento. Como poeira ou nuvem passageira sem destino algum. Livre, finalmente sem constrangimento e contente.
Contente, sem sentimento do mundo, no silêncio profundo. Contente, de contido redimido de culpa e sofrimento. Ido, simplesmente por não ir por conta própria. Desponta o quê na outra ponta ao não-crente?
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Permaneรงo ente ou desapareรงo para sempre? Vagarei com os mortos esperando a volta como castigo? Recolhido ao jazigo quer-se paz ou tanto faz?
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O Quarto de Nelson Para quem nada tinha, nada lhe faltava. Um guarda-roupa improvisado com tábuas e uma velha poltrona suspensa no tempo. Sem exigências de espaço. Celibatário. Lia e reescrevia os mesmos livros, escrevia e reescrevia os mesmos textos.
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Mergulhado nas trevas vislumbrando paisagens intermitentes de abandono e extrema felicidade.
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Monogramas As irmãs Teixeira foram morar no Rio de Janeiro. Fizeram curso de datilografia e para auxiliar de escritório e secretária. Que mais havia? Neusa trabalhava na agência dos correios e ganhava para comprar os tecidos com que costurava as próprias roupas (e para o pó de arroz). Bordavam monogramas incompletos
em peças de enxovais adventícios. Pontos de cruz e meandros de crochê. Iam às matinês dos cinemas e ao clube ávidas de futuro e folhetim. Tio Celino alertava para as licenciosidades e promiscuidades da cidade grande.
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30 Acasalamentos Nazinha conheceu um militar no bonde —era bonito e altivo e ostentava bigodes de bolero— e casou com véu e grinalda. Ela falava umas coisas, ele ouvia outras. Arrumava a sala todos os dias e passava cera e escovão no assoalho. Neusa nunca desceu da nuvem em que pairava sobre a terra. A face redonda como lua prateada,
falava direto às estrelas. Adorava sonetos de Fagundes Varela e Olavo Bilac. Sempre arrumadinha, coque e coquete esperando algum confete. Casou com um português que se dizia fidalgo e lidava com secos e molhados. Inês era tão recatada e foi às núpcias com um francês que era professor da Universidade do Brasil —ela dedicou-se aos cuidados da casa, ele às discussões sociológicas e ideológicas de dia e às farras e fanfarras de noite nos inferninhos da zona sul.
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Neves, desaparecida desde a fuga da lua de fel de um casamento forçado. Livre, e entregue à própria sorte.
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31 A Gata Borralheira Mulher no mundo dos homens, Neves reunia forças para vencer os preconceitos. A versão sempre no lugar do fato, vivendo de aparências. Vivia com um homem desquitado sujeita ao disse-me-disse, a toda resistência. Teúda e manteúda, evidência pública de concubinato.
Neves só percebeu a dimensão da anomalia de seu relacionamento privado quando reencontrou a família. As irmãs casadas de papel passado e ela em amasiato escancarado. O Piauí de sua infância era um subúrbio no Rio de Janeiro nos tempos do pós-guerra. Descobriu que há várias cidades numa só e que há vários tempos em um tempo só. Só se tem uma vida para viver e deu a volta por cima.
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Longa Jornada Noite Adentro (Rio de Janeiro, 1955) I Andava amarrotado, mas limpo. Ia à Lapa pela rua Mem de Sá, um gentio despejado nas calçadas. Famílias congestionavam os sobrados decadentes. Idosos na porta dos prédios, vendedores ambulantes, prostitutas postadas nas esquinas e subindo escadas de pensões soturnas
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e bêbedos trôpegos pelo caminho. Alamedas opacas do Passeio Público, (ainda havia) filas nos cinemas do calçadão da Mesbla. Ia do Hotel Serrador ao bar Amarelinho. Casais saíam do Teatro Municipal, pederastas em alvoroço próximos ao Palácio Monroe, e aquelas ruelas fedorentas atrás da Cinelândia. Havia teatros de variedades, gafieiras e uma concentração de bondes no Tabuleiro da Baiana, bares e becos na solidão dos esquecidos. II Mulheres fantasiadas para o prazer alheio, lojas fechadas, portas com grades e ferrolhos —que a noite descia com seus disfarces.
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Na Praça Tiradentes havia hotéis iluminados, sons vinham de dancings, marinheiros abraçados com suas namoradas e os desempregados na direção da estação D. Pedro II para os derradeiros trens. No Campo de Santana, sem grades e portões, os notívagos buscavam aventuras, os saídos de sinucas e bilhares vinham urinar no mictório ou nas árvores entre gatos e preás, ratos e deserdados da sorte. Fazia aquele percurso até muito tarde. A boca é que ouvia, os ouvidos enxergavam, as mãos gesticulavam —grandiloqüentes— e sentia odores e pressentimentos.
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III Comia um pastel com caldo de cana. Já na Praça 11, depois do canal e das palmeiras, havia passagens obscenas na Zona do Mangue. Nádegas gordas e a plumagem das vaginas e a língua revolvendo com insinuações insidiosas. Soldados das forças armadas e senhores bem vestidos entravam e saiam de casas mal iluminadas. Nelson voltava, extenuado, os pés ardendo e a mente perturbada, para o quarto vazio e tomava um banho precário, quando não faltava água, e logo dormia. IV Na noite seguinte, e nas demais,
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atravessava a Avenida Presidente Vargas e voltava pela Marechal Floriano na direção da Praça Mauá. Circunlóquios. Na rua do Acre, os armazéns atacadistas, sisudos, fechados, imensas portas blindadas. Detrás do Edifício A Noite havia filas pela madrugada —gente disputando entrada para os programas de auditório da Rádio Nacional. Passavam os últimos lotações. Na porta do bar Flórida, mulheres de aluguel diante de navios insones do porto. Podia depois seguir pela Avenida Rio Branco, passar pela igreja da Candelária e logo, pelos becos empedrados, pelo Arco do Teles,
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divisar a estação de barcas da Cantareira onde havia barracas servindo angu quente e mate gelado e, mais adiante— e triste!—, o desmantelamento do velho mercado central. E por último, já cansado, fitava as fachadas hieráticas dos edifícios públicos do Castelo até retornar à pensão em que vivia, detrás do morro de Santo Antonio, já em fase de desmonte e desolação. Tantas igrejas mudas, batentes frios e alguma vela para os penitentes.
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Às vezes vagava pelas lembranças renitentes, como as do túmulo durante seus anos de ensimesmamento. Outras vezes revia episódios tristes como a partida de Neves depois do casamento forçado. Inerte sobre o catre, olhando o teto indevassável, fluía e pervagava por espaços e tempos sem continuidade ou contigüidade, sem controle. Deambulava pelas ruas antigas do Rio de Janeiro em presença e em ausência, ruminando sensações e impressões na memória inconsútil em que os momentos e lugares fugiam da lógica das cronologias e das topografias. Refazia percursos gravados e revividos numa sucessão aleatória. E até podia passar de um beco nas proximidades da Praça XV, no Rio de Janeiro, para as barrancas do rio Parnaíba, ou passar pela Igreja de Santa Luzia no bairro carioca do Castelo e entrar na de São Pedro
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de Alcântara, em Floriano, sem nenhum sobressalto. Numa dessas relembranças estava na casa da fazenda dos Teixeira, já em estado de abandono, depois do cerco dos jagunços e do estupro — guardado em segredo por tanto tempo — de sua cunhada. Talvez a casa nem existisse mais por lá, mas ele estava lá, chamado para um encontro com os antepassados, entre as penumbras da sala de visitas. Ali estavam os mortos da família, de diferentes épocas. Alguns ele nem sabia que viveram, todos reunidos silenciosamente, bastando-se com suas imanências, vagando pelos aposentos, ou postados à mesa para um diálogo sem palavras. De repente, estava de volta às ruelas traseiras da Praça Tiradentes dos tempos em que freqüentava os teatros de variedades. As imagens da visita à fazenda dos antepassados vagando intermitentemente nas horas seguintes. Para livrar-se delas, escreveu um poema, prática que acreditava não mais fazer parte de sua rotina.
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34 Do Outro Lado da Vida os ponteiros dos relógios em qualquer direção, e as estações trocadas: não há roce nem orgasmo nem suores mas o corpo está ávido, aflito, lívido haja espera e esperança (e desconsolo) no reverso incongruente da vida: nesse viver em morte contígua e exígua, irredutível, solerte
sentado na poltrona, aderno e o tempo, lá fora, estanca: eu aqui dentro, a vida fora de mim, exangue e ausente — buscando lugares inexistentes numa inteléquia de despistamentos ou numa estratégia de inconformidade.
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35 Visita à Casa Paterna Os mortos da família — tataravós, avôs, mães, filhos, netas — em conclave familiar — intactos e imputrescíveis desde as suas mortes. ttt
(Os mortos eternizam suas idades de mortos: não caberia dizer convivendo entre mortos). Mortos de diferentes idades,
mas eternos — imortais, se se quer. Alguns jovens com filhos mais velhos — ironia da eternidade. Reunidos à mesa da casa paterna, fartos, não demandam banquetes — inertes, impávidos, e graves. Vêm de tempos alternos e descompassados ao colóquio, numa genealogia
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de afirmações e recorrências. Antepassados? À mesa, presentes, constantes, vigiando suas passadas existências — nos parentes, pelo sangue extinto e permanência. Nas sombras, entre os mortos futuros das gerações conseqüentes.
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Repasso Entra ano e sai ano e n達o saio do lugar.
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37 Os Nervos da Memória É quando a memória me impõe suas condições, me contradiz, refaz situações que relegara ao esquecimento. Desencontros, desconsolos, descalabros. Recupero detalhes que nem percebera antes! Aparta de mim estas evidências! Revejo o que nem havia visto! Basta! Quero escapulir pela tangente, pelas mãos do amor que já esqueci e que era único, definitivo, insubstituível. Às calendas! Que não venham as amargas lembranças
que eu releguei ao esquecimento, mas que afloram como cogumelos. Que ressuscitem as paixões que me incendiaram até se desvanecerem em situações tão adversas. Não agüento mais! Quero recuperar o que mais queria e me vem o que mais desprezei. A memória é infensa aos meus apelos (tem nervuras sensíveis: contradizem minha vontade) e me devolve o que já ruminei e vomitei tantas vezes.
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38 Solistício de Inverno Em solstício me esqueço e permaneço inerte, centrado, desabitado de “outrem ninguém”, no solilóquio desfreqüentado, em precipício, insulado, no artifício de manter-se uno, desobrigado, inteiro e poder bastar-se, derradeiro, e asilar-se. No meu solipsismo radical de celibato nem cultivo o recato, afinal presumido, possuo sem ser possuído, se possuído não cultivo sentimentos, assumido temporão.
Não, não e não! Eu me afasto do mundo no mais profundo desvão, nem por isso casto pois a sina do recato me alucina com sortilégios, impropérios e falsos remédios. sombras
densas
diluindo-se
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39 Paisagem com Sombras
sombras
cruzadas
sombras
em direçþes
opostas
justapondo-se
( sombrasombras )
sombras
de
sombras
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40 O Trem A casa com muitas portas e nenhuma saĂda ou entrada. O caminho de muitas voltas, sem retorno. Havia muitos livros mas era o mesmo livro que eu lia sem fim nem começo. Depois o trem me trazia de onde eu nĂŁo estivera
ou, estando, não sabia se ia ou se voltava. Mas eu ia e voltava, voltava e reconhecia sem ter visto antes —se é que eu via. Não havia ir nem voltar, conhecer ou reconhecer mas havia, sim, havia o trem que ia e vinha. O caminho é que é (nem mais) era outro — estoutro, se dizia —
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e de trem é que se ia. Não sei bem aonde, menino que eu era, pois já devia ser memória do não ser. Mas, se o trem era, eu haveria também de ser, e a paisagem, se havia ah, se havia, já não era. Os trilhos que iam e vinham, eram os mesmos mas o trem que ia não era o mesmo que voltava.
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E eu, se ia, n茫o voltava ou era outro, o trem em trilhos im贸veis de ir e vir.
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41 Monólogo da Enjeitada Hei de morrer pelas próprias mãos. Não, eu não pedi para nascer, posso morrer a gosto e a destempo. No mundo dos homens — ledo engano!!! , apenas uma mulher... Meu imposto marido feneceu. Eu não sou viúva, sou livre! Mas a família — crosta óssea e impermeável —me segrega.
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Quando estiver realmente só, irremediavelmente só, meu companheiro ido, havido, e não puder viver sozinha hei de morrer pelas próprias mãos. Cumprindo meu desígnio, meu arbítrio, minha maldição.
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Ubiquidade Nasci em 1888 (ou em 1899) no Piauí, na cidade antiga de Floriano. (Não sou monarquista nem republicano.) Fui enterrado vivo em 1925 durante uma peste sazonal. Desenterrado dez anos depois, vivo em vários tempos simultâneos e em lugares diferenciados.
Personagem de mim mesmo, n達o durmo e troco as noites pelos dias sem a certeza da morte. (N達o sou albino nem guarda-noturno: sibilino, do azul mais distante.) Vou sobreviver ao meu criador. Assino, Nelson Teixeira.
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