MEMÓRIAS INFAMES
ANTONIO MIRANDA
MEMÓRIAS INFAMES Poemas
Belo Horizonte, 2009
Permitida a reprodução dos poemas deste livro desde que informando a fonte.
Miranda, Antonio Memórias infames / Antonio Miranda. Belo Horizonte: Anome Livros, 2008. 96 p. 2. Literatura brasileira — Poesia. I. Título. CDD: B869.15
Contato: antmiranda@hotmail.com www.antoniomiranda.com.br
Editor: Wilmar Silva ANOME LIVROS - anomelivrfos.com.br www.anomelivros.com.br
POEMATEMÁTICA DA ENTREGA Estas Memórias Infames de Antonio Miranda, compactadas, são na verdade um voo rasante sobre a existência do indivíduo em sua finitude, porque a asa do poeta sustenta a percepção aberta à vastidão da alma e nela fantasia, ou realiza, o que se interpreta por tempo vivido. Olho que se vê diverso, aqui o autor multiloga com o ser que o habita, demiurgicamente, e pratica a matemática pura da entrega: um que soma e se divide, restando o múltiplo de si mesmo, o poeta que não cabe só em si, porque o homem é vário. Ainda mais, conecta e adiciona tempos dessimétricos diante de paredes espelhadas, como se, entre cartas, atoasse como coringa, jogando com tantas faces e posições, dissecando o sentido da urgência, confessando a crença no eu aritmético, algébrico, geométrico, afirmando a palavra de língua precisa na meta imagética, posto que sem jamais perder a ternura e o lirismo. Os quatro poemas iniciais de metalinguagem, em que o registro do verbo/verso se dá desde o útero, são a antesala para o que ele intitula de memórias infames da puberdade, buscando-se nesta idade de afirmação em meio a estrofes que levam o leitor a uma viagem íntima, ora factual, ora ficcional, entre as lâminas das faces do espelho, perseguindo o amor, renunciado, mas certo de "ser útil pelo prazer". Pungente no memorial "O Jovem na Livraria", constrói o retrato do futuro bibliotecário, amante e colecionador de livros que se tornaria vida toda adiante, projetando-se do gênio generoso que o coabita sobre outros jovens futuros amantes das palavras dos livros. Belíssimo, "Um Caminho Para Ontem" revela o voo armado do adolescente, em sua indizível contradição-oposição ao tenebroso mundo adulto, para um destino de horizontes sonhados. Maiakovski, símbolo de rebeldia na poesia do século 20, que o diga, e sustenta e sanciona a teimosia filosófica da relação do autor com o mundo. Nessa viagem dentro e ao redor de si, Antonio Miranda, que é latino-americano por vivência de território e excelência, circun(e)screve-se transformável, errante, "Encurralado" diante da imagem do homem, esculpida a canivete por sua pontiaguda circunspecção. E fecha seu poemário de reminiscências — e não apenas — com a concisão do raciocínio lógico-poético táo peculiar à sua atlântica inteligência: evoca de Paul Valéry, um dos eleitos poetas de sua constelação particular, o cemitério marinho que tudo abarca e em que deposita, desde a imensidão mar-uterina, o marulho do marí(n)timo de águas revoltas, onde se banha infinitas vezes nesta saga. Dela e por seu verso, o leitor aporta certamente mais amplo, mais plural e lúcido. Angélica Torres Lima
SUMÁRIO
METAPOEMA O INDIZÍVEL ENTEDIANTE ANTES DE NASCER, EU OUVIA CÍRCULOS ESPELHO CEGO UM CAMINHO PARA ONTEM MEMÓRIAS INFAMES CONTRA-DICÇÕES MEU PRIMEIRO AMOR CON(T)ATO VÃ FILOSOFIA O JOVEM NA LIVRARIA BARCO À DERIVA JANELA PARA DENTRO SUICIDIO DE MAIAKOVSKY MAIAKOVSKIANAS NÃO MAIS NU EM SUORES RODOVIÁRIA DO PLANO PILOTO SE ME MOVO ENCURRALADO BARCO À DERIVA MAR ASSIM CAMINHA A HUMANIDADE
METAPOEMA
Tudo, tudo mesmo já se disse em poesia mas vale dizer de novo. Não se banha no mesmo rio duas vezes, não se lê o mesmo poema. E me descubro em verso que já havia esquecido — eu, ido e revivido. Escreve-se sempre o mesmo poema, que vai desta página até nunca. Este verso e o outro que é sempre o mesmo e o outro, lugar algum. O mesmo poema é muitos.
O INDIZÍVEL
“Todo o silêncio pode ser dito”. E. M. de Mello e Castro
As palavras não podem dizer tudo: podem dizer mais do que tudo! As palavras não são as coisas, mas coisas em si mesmas: criando ou revelando realidades além das coisas — tentativa vã a de usar as palavras para descrever as coisas — serão outras coisas: a Poesia é essas outras coisas que só existem na Poesia.
ENTEDIANTE
desfiles enfileirados sonhos envidraçados (embaçados): um depois do outro o tempo retrocedendo eu vendo, no retrovisor — em sendo, o que é? — sim! tempo enfileirado de trás prá diante eu diante do antes (antes assim) o adiante não adianta — eu estagnado ambivalente as nuvens se desfazem e se refazem — eu, nem tanto e entretanto
ANTES DE NASCER, EU OUVIA
Antes de nascer, ouvia e gravava, sem entender: gritos, buzinas, canções. Sem consciência do mundo, eu gravava. Sons em movimento, eu inteligia? era o alimento que vinha, ou tardava, anunciado pelos passos, predizia? Eu me saciava e não sabia, mas havia, sim, havia, o esperar, e uma certeza de que algo viria. E eu me alimentava, sem comer; sem saber, eu me satisfazia. E ouvia, sim, eu ouvia e entendia. Faço a regressão, vou em busca do entendimento que não tinha, mas sabia, sem saber, eu sabia. Tento decifrar o que ficou gravado. Não sei o que é, mas o que não sei molda tudo o que sei, e o que serei. Minha mãe, triste, — eu sentia!—, minha mãe aflita estampada em minhas entranhas, mãe-filho. Ainda estamos juntos, depois da ida num eco sem som, decifrando sons extintos, indeléveis, tatuados na memória. Memória física, em códigos que eu não domino, que me domina. Como Champolion, tento entender-me.
CÍRCULOS
o círculo inclui o quadrado que inclui o triângulo em que me incluo das altas esferas que incluem os planetas em que a terra, em que Brasília, em que eu que — circulo e me circuns (e)screvo
ESPELHO CEGO
Irrefletido, o espelho sua, embaça, relativiza-se: imagens ausentes, passadas. O espelho cego. Memória de si mesmo, em camadas irrecuperáveis dos que se foram, que não mais verão. Verão. Verões que o espelho acumula, sem retorno. Sem testemunhas.
UM CAMINHO PARA ONTEM
Um caminho para ontem, sem volta. Amanhã é hoje, é nunca. Uma vaca estacionada na avenida, eu voando sobre os telhados, luzes, estantes vazias, mamãe lamentando aquela existência mínima, estancada. Meu pai assistindo a luta de boxe na TV em preto-e-branco. Papai de pijama, o chinelo envergonhado, havia mais anúncios que programas na TV! Eu me refugiava no quarto e sonhava; da janela avistava paredes, desconsolos, o Maracanã, balões flutuando, chuva. “Chuva me chama, o horizonte é uma interrogante que ainda vou desvendar”. Meu pai me levou, ainda adolescente, ao Maracanã. O Brasil perdeu a Copa! Meu pai chorou, eu torcia pelo Uruguai. Não entendi porque trocaram de lado, e continuaram o mesmo jogo, ao contrário. Ao contrário era eu, ainda adolescente, beijando-me no espelho, apaixonado. Depois me dividi com os outros.
MEMÓRIAS INFAMES
I São Luis do Maranhão, 1947 Preso no quarto escuro, rezo a sentença: “Deus seja louvado”; o padre usou o argumento da palmatória: — um rato no chão úmido e resvalante me ouve: Deus seja louvado, cem vezes, sem entendimento. Aos sete anos, não sabia de Deus, mas a missa era obrigatória. II
A viagem no Itaquicé O navio nas águas revoltas — minha revolta não é menor, na terceira classe. Ratos no porão. Música no convés em festa. Ouço o marujo ofegante no ato masturbatório, vejo-o e chega ao orgasmo pelo espanto. Gaivotas anunciam terra à vista — o carnaval no Recife: suspenso o medo, o marinheiro espreita, à distância. Mãe intuitiva me protege: “Herege!” Dissipa-se na multidão. Bonito, envergonhado. Ratos roem minhas memórias com o moralismo de plantão.
III Rio de Janeiro, 1953 A gravura na parede mostrava o caminho do bem e os labirínticos caminhos do mal. Anjos coroavam as alturas e demônios terrestres açoitando os incréus, os desviados. Do azul ao rubro infernal em sua função mais exemplar. Os anjos assexuados; os demônios fálicos incitavam os pecados da carne. Um deles era o marinheiro, estava em toda parte e habitava os porões dos ratos e as madrugadas mais felizes. IV Rio de Janeiro, 1958 Nas ruas imundas do meretrício — no Mangue — tetas nas janelas como olhos, espreitando: línguas acenando com lascívia e marinheiros de joelho sugando mel, ou urinando pelas calçadas escuras. Suor e êxtase. Exceção e medo. A noite encobre as vergonhas e iguala virtudes e pecados. Vamos rezar e dormir sossegados.
V Olhando para trás: assustados, corpos petrificados. Alheios. A maldição dos homens em pecado: de sal, perdidos, condenados. Desmemória. Estátuas de carne, adiante. Eu menino, errante por caminhos divisados, pressentidos. E o marinheiro em êxtase. Eu menino, ele adulto, anos passados. Agora, no tempo reverso, ermo: ele jovem, eu já velho, buscando-o sem termo. Nós dois, frente a frente, em tempos diferentes, (ele, antes, eu agora) observando-nos: eu velho, ele jovem, de sal, cristalizado, com um sorriso de encanto. Teve-me sem consumir-me. Tive-o, sem possuí-lo.
VI Poeta suicidado. Loquaz. Lendo no escuro, falando sem palavras, envergonhado. As palavras mentem, as palavras não se referem ao real, são outro realidade. Palavras tomadas emprestadas, imprestáveis. Saídas do ostracismo em que vivi, palavras redivivas eu-ontem. Ouvindo-me do passado. Agora! Um marinheiro sorrindo, cínico. Persigo-o em meandros secos de um rio extinto. Puro instinto. Ao mar, sem reservas, indomável. * Tardes esmaecidas, líquidas. Anos infindos, soledades.
VII Um corpo nu, inteirinho. Pela primeira vez, exposto. Dedos de ver, mãos de desatar, desalinho e susto. Árvores decepadas, sem raízes flutuando no espaço. Fui outro para ser amado. Imaginei o corpo que possuía. Sensações antecipadas, logo ruminadas: a timidez do presente dissimulado, do prazer pretérito, do gozo escondido. Um roce dissimulado, um beijo imaginário, frente a frente, ausentes. VIII Habitava outro corpo, que me possuía. Lençol amarfanhado. Potro encurralado. Eu-outro, trocando de posição, inversões, espasmos, orgasmos. Solitários. Urgência de viver.
IX Fizemos um pacto: eu era outro. Nunca me viu (além do que via) como devia ver. Eu me via nos outros ou me via como eles deviam me ver: idade da afirmação. No oco da vestimenta, na forma imposta — que importa? : fôrma. Se (me) n amava e saía de mim. Meus avós vigiando dos retratos na parede; refugiado no quarto, lendo, lendo para um diálogo comigo: buscando-me.
Identidade — dialética — inversa.
X País de privações e limites. Disciplina(s). Subúrbios apagados, cinemas promíscuos, roces, no anonimato procaz. Corpos ardentes, desconhecidos, de não-mais-ver, fugazes. Esquinas da escuridão, vigílias, pernoites, incertezas, sustos. Como (mas) é possível o impossível?!
CONTRA-DICÇÕES
o feio e o belo o justo e o injusto a certeza e a dúvida são faces de uma mesma moeda se te amo me odeias egoísta, mira-se no espelho e o que reflete não é o que se mostra se me perguntas não respondo mas sabes a resposta se me humilho cresço em teu apreço meamoteme — disse aos 17 anos e repito agora! teu lado belo que é o mais feio, com a certeza da dúvida
MEU PRIMEIRO AMOR
“A vida que se espera em fim de tudo” Basílio da Gama (1601)
1. Um corpo ereto, excitado, na revelação de sua plenitude, pela primeira vez. Na puberdade, um susto! Corpo a corpo, cobrindo-se, descobrindo-se, brindando-se, despindo-se: temor, tremor. Armas ensarilhadas, virilhas em chamas — proclamas de amor, precipitadas; — fereza da ira, ternura e beleza, ímpeto. Acossado, assustado: arde nas entranhas, estranhas emoções. Cego desejo que se nega e renega, sem remissão nem culpa, engano; fingimento. Justo quanto belo, ser-sendo. Que nome tinha aquele amor de momento? Aquele encantamento furtivo! 2. Como Rinaldo, no “Orlando Innamorato” (sec. XVI) do conde Matteo Boiardo, sempre fugi de quem me amava, só amava quem fugia de mim. O amor tem faces e disfarces cruéis.
Amava-se, mas nem era amor. Fulgor, estertor. Talvez, prazer e dor, mas tão intenso! Tão forte, definitivo em sua fatuidade. Princípio-fim, perquirição: a sorte, “um golpe de dados não abolirá o azar”. Fatalidade. 3. Por que as pessoas se emparelham? Mas continuam sós. Quanta renúncia! Que as atrai, que as separa? Espelho em que outros se vêem (mas estamos ocultos). Meu primeiro amor, rumino e revivo: é a mente que inflama o corpo, é o corpo que envilece a mente? Mas, a certeza de ser útil pelo prazer.
COM(T)ATO
Em silêncio é que nos comunicamos: tocando-nos, descobrindo-nos, amando-nos.
Silêncio não é a ausência de som mas de contato pois os corpos se falam mesmo sem palavras; — o silêncio (também) vem das palavras: desentendimento. Os corpo se falam mas, nem sempre, se entendem.
VÃ FILOSOFIA
na progressão infinita não haverá insumo para um consumo total (a menos que, afinal...) a natureza se acomoda alheia a qualquer arbítrio ou ciência; razão da irreversibilidade: nem toda energia se renova nem toda matéria se refaz nem toda memória faz sentido — (alheia à razão apenas para os sentidos) Valha a vã filosofia!!!
O JOVEM NA LIVRARIA
(um memorial)
De pé, lendo na livraria. Nas proximidades, os bondes confluindo no Tabuleiro da Baiana; marmiteiros na direção de grotões com valões a céu aberto; trens trepidando e perdendo-se nas penumbras ignotas e tristes de um desterro suburbano. De pé, lendo na livraria. La fora, analfabetos e letrados revezando-se no espaço sem solução à vista: Brasil, país do futuro! (Escuro, muro, desconjuro.) Transeuntes, ambulantes e uma elite na livraria. Senhores nos botecos, goles de café, “lotações”; ainda havia batedores de carteira, malandros, funcionários públicos (barnabés) pelos institutos de previdência. O garoto, de pé, na livraria lendo Drummond, Bandeira, vindo do bairro mais distante. Brasil, afinal, Campeão do Mundo! Sorrisos sem dentes, salário mínimo, programas de auditório, carnaval. Mundo mundo, vasto mundo, eu não me chamo Raimundo, mas Antonio, flébil, esguio, com dinheiro apenas para o pastel e o ônibus; os livros eram leitura de livraria, de pé. O pai, barnabé; a mãe, costureira. De pé, lendo na livraria: Drummond, Cabral, Bertrand Russell, e algo mais. Um fragmento de Baudelaire, um pedaço de Aimé Cesaire, frase de Nietzsche. “-Que livros você quer levar, meu jovem?” Pensou: “nenhum”. Gostaria, mas não podia.
Lá fora, tantos outros como ele.
Personagens sem olhos, sem boca. Massas humanas movendo-se anônimas; bacharéis luzindo anéis. “A vida como ela é”, do Nelson Rodrigues. Vedetes de teatro de revista, Ibrahim Sued. Miss Brasil não falava inglês e já imitavam jazz e rock e a bossa-nova queria ganhar o mundo! E o garoto, de pé, na livraria. “Pode levar os livros que quiser, sem pagar”. (...) “Sim, isso mesmo, jovem, os livros que quiser: dois, dez, à vontade”. Quis correr, encabulado, assustado. “Uma pessoa viu-o lendo, e emocionou-se: (...) Um magistrado, um homem abastado.” (...) Deixou crédito aberto a seu favor...” “Machado de Assis? Jorge Amado? Menotti del Picchia? Sartre? Camus?” “O que quiser, o que consiga levar!” (...) Na estante de casa havia livros emprestados da biblioteca pública. Sorte que havia bibliotecas públicas!!! Levou para casa o J. C. de Melo Neto e a filosofia difusa de Lin Yutang. ............................................................... ............................................................... ............................................................... ............................................................... Outros livros seguiu adquirindo por conta própria: tantos, tantos! E ali está, de pé, na livraria, outro jovem suburbano lendo um livro!!!
SUICテ好IO DE MAIAKテ天SKI
os jornais me espreitam anunciando minha despedida: anúncios! eu-havido em nota funerária= rodapé: (letras mínimas!) o passamento, passa tempo os jornais me observam já na véspera, vespertina — jamais, nunca, ninguém. morte anunciada nos jornais o poema antecipa a morte em suicídio ou despedida “Fechem, fechem os olhos dos jornais!”* É no poema que me recolho encolho olho o. Vou ao meu funeral, cantando. *Trecho de “A Mãe e o Crepúsculo Morto pelos Alemães” (1914), de Vladimir Maiakóvski, em tradução de Haroldo de Campos)
MAIAKOVSKIANAS
1 Preso às palavras como o Cristo na cruz: pregos, pregos, palavras. Palavras-vértebras que me sustentam — vivem de mim. Nelas eu vivo. 2 Crânio-arquivo: versos ventríloquos vertendo a alegria. 3 Ódio ao burguês! Aqui, seguro, e o escuro porvir. 4 “Bananas-ananás!” Juízes em prontidão degustam frases sentenciam alíneas e vociferam incisos. Sem futuro, diante do muro. 5 Meus versos de cesura e esta conjura de burocratas contra o verso libertário. “Sem forma revolucionária não há arte revolucionária!” Não desço ao povo — que o povo ascenda e me entenda. Contra a poesia estacionária prisioneira do verso marmóreo e incorpóreo!
6
Céus de letras rebuscadas e horizontes de arame-farpado. Que o verso-aríete rompa o vazio do discurso oficial. Que o poema-pua avance sobre as redações do dia. Ao “poder das rimas imprevistas”. * *Verso de Maiakóvski no poema “Escárnios”, de 1916, em tradução de Augusto de Campos e Boris Schnaiderman.
Nテグ MAIS
Para Angélica Torres Lima
Eu te busco, mas não mais estás por onde ando — em tempos assimétricos, velo teu corpo inacessível, deixado há décadas na foto imputrescível. Eu te encontrei em outros pareceres, haveres, padeceres. Eu te busco, não mais existes. Estavas sempre a meu lado, ausente, desejado — corpo intermitente. Adotei teu nome, assumi teu corpo quase extinto, reencarnado, possuído tantas vezes, me refugio naquilo em que não estás, anseio. Eu te busco, não mais existes. E por seres o que nunca foste, te espreito e reconheço assim — transmutado, recriado, consumido e consumado, sumido, sido. Resta a foto que nem é tua. Tua carne nua, crua, que agora sua no prazer alugado.
NU EM SUORES
Para Aurora Cuevas Cerveró
Nu, em suores, naquela paisagem difusa cortando o ar em disparada: os braços balançando —e o sexo, um pêndulo; os cabelos voando, nervos hirtos. Do alto das árvores, ramagens indiferentes mas moventes com a nudez avançando; e os pássaros dormentes, sonhando espaços, seiva circulando, peito em frêmito. Nu, deslizando entre folhagens perturbadas, polens moventes, luzes trepidantes, cipós, nuvens distantes, troncos derruídos, sóis e o ermo corpo em seu afã de liberdade. Se a chuva, se a noite, se o farfalhar de cansado húmus em decomposição, cedendo ao passo célere de quem por não ter aonde ir, vai em qualquer direção. Nu, irredutível nu, naquela paisagem que é de qualquer um — se quisesse, sempre em movimento, deslizante, polido pelo roce e suor, saliva; arfante, pés. Nu, irremediável nu, em suores, cores, refletindo sua relação com o mundo.
ENCURRALADO
“Till the suggestion sinister Things are not what they are.” Emily Dickinson
Sendo o homem uma fera indomável, domesticado pela metade, encurralado, há de pagar suas penas sem remissão. Guerreiro cruel, ataca sempre, disfarça, mas seu instinto prevalece: mata. O mais tranqüilo esconde um gavião. O homem escraviza a família e o céu, devora seus semelhantes, trapaceia e se instaura como um deus dissimulado.
ASSIM CAMINHA A HUMANIDADE
“escombros sobre escombros” ”acordar os mortos e recompor as ruínas” WALTER BENJAMIN
a história da humanidade é a prova da insanidade a que estamos submetidos — sem deus, sem destino bilhões de seres calcinados reciclando a pervers(idade) readubando rancores, sortilégios agourentos, malfadados a história não tem ciclos nem fases, mas camadas — ossários, escombros matéria em decomposição recompor os mortos putrefactos, liquefeitos de olhos arregalados sem a noção de tempo anjos sem asas, desfeitos como poeira, atritando-se desviando-se no espaço de um tempo estagnado: tempo sem cronologia espaço de materialidade transformável e errante na indissolução do fim
RODOVIÁRIA DO PLANO PILOTO
concluindo: voltar, recomeçar. da janela do ônibus avisto o mar mas não há mar algum aqui: brasília um mar, sim, em ondas pelo planalto central (quem sobreviver verá) hordas humanas fervilhando na rodoviária — formigueiros no cerrado; horizonte infinito os brasis chegam de ônibus — pedestres caminh ando entre desconhecidos com quem me identi fico: domésticas desempregados, meninos-de-rua semáforos de ônibus é que vamos ao Brasil
SE ME MOVO
para Sergio Cohn
se me movo, o que vejo é novo mesmo sendo o mesmo: de novo se os pássaros me vêem, sou cristal se o rio passa, eu também passo — passado, frio, além, miragem se o rio me vê, em curso, eu fluo se o ar me aprisiona, me liberto flutuo, pairo, se em vapor se é novo deixa de ser, eu morro e o rio me leva, o ar me dissipa
MAR
o mar sem fissuras um mar sem vincos, estrias um mar-amplidão sem marcas, em movimento mar a que tudo vai mar adiante, mar amor cemitério de tudo, que tudo suga: mar em que deposito dúvidas, dádivas, devaneios mar mar mar em ondas petrificadas, em versos mar ginais = vaginas = ostras ostra(cismo) do mar mar-útero, mártir(io) m
a
r
adentro adentr adent aden ade ad (m) a (r) quando ao mar tudo vier o mar será isso tudo = mar sem margens mar
BARCO À DERIVA
Antes que os edifícios invadissem as dunas, que os peixes expostos em entrepostos, que os portos congestionados, ondas estancadas, maré sem retorno, nãos. Pássaros sem pouso, nuvens estagnadas. Ilhas (ainda) desabitadas, escaladas impossíveis. Sonhar. Ares degradados, repouso, vácuo e um olhar sem rumo, sem prumo, turvo. Dever haver uma saída, janela, fosso, muro abrupto, caminhos interrompidos. Deve haver uma saída, escada, cadafalsos, mapas imprecisos, vestígios indecifráveis. Antes que a orla virasse muralha e vidro, horizonte tapado, visão retroversa, errática onde os peixes, onde os pássaros, ondas, ais. Deve haver alguma saída. Antes que os.
JANELA PARA DENTRO
pássaro adiantado no tempo — o inverno anuncia dias calados. Que me falem de ti, onde andas. Sem notícias e mensagens. Animais gregários. Sapatos gastos. A janela olhando o horizonte, o horizonte dentro da janela. Olhando para dentro: sem você. Quando aportaremos, seguros? As paredes estalam. Estremecemos. Nada além disso, é o bastante. Hora impávida, ensimesmamento. Deve haver outra saída mais adiante. Uma chuva letárgica, atrasada molha sem pressa, afogando por onde passo, sem caminho — ofegante, buscando sem saber, sem saída, descalço — o dia em falso. Talvez. Deve haver outra saída. * * * As nuvens espreitam a lo lejos e me protege a sombra passageira.
100 (CEM) EXEMPLARES DESTA EDIÇÃO CONTÉM UM CD COM OS POEMAS NA VOZ DO AUTOR.
Primavera 2009 miolo papel offset 120 gr. capa cartão supremo 300 gr. Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil Editor: Wilmar Silva