O TEXTO VIRTUAL E OS SISTEMAS DE INFORMAÇÃO

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O TEXTO VIRTUAL NOS SISTEMAS DE INFORMAÇÃO e as propostas de Ítalo Calvino

Elmira Simeão e Antonio Miranda

Thesaurus 2004



ÍTALO CALVÍNO Poema de António Miranda* Para Elmira Simeão

I Um cavaleiro sem rosto vaga por cenários e tempos fracionários; uma cidade invisível emerge das brumas do impossível: libertos da arcana maldição do indizível. São exércitos errantes, bibliotecas ilegíveis, são cidadelas herméticas, espectrais, são animais, são muralhas indevassáveis, em idades

Extraído da obra RETRATOS & POESIA REUNIDA (Brasília: Thesaurus Editora/ FAC-DF, 2004).


indefinidas, códigos indecifráveis mas, ainda assim, inteligíveis.

II Calvino faz exercícios de memória em lugares que já não são lugares — são denominações registros ecos. Desvenda sentidos, vislumbra, presume, em estado de catálogo — devaneios, provendo combinações múltiplas absurdas fantasmais — fluindo como fantasias verbais. Palavras tais como esgrouviado na superfície do papel fluído passível de toda inscrição. Nomeando o mundo, inventando palavras e mundos, escrevinhando compulsivamente, desinteressado dos comos e porquês: palavras para inscrever todas as coisas. Palavras no mundo, horizontais, dando forma ao próprio mundo para que assim o mundo exista. E confessa: difícil é contar


na primeira pessoa, confessar-se sem deturpar os significados, sem falsear, tergiversar, viver os próprios sonhos e ilusões.

III Uma felicidade inquieta, uma alegria externa aos próprios sentimentos, querendo sempre estar em outro lugar e momento, pelas vertigens do pensamento, indiferente à natureza porque confessadamente citadino. Oh! Calvino, expectador viciado dos cinemas da adolescência, das marchas e bravatas fascistas, revoltado, como Fellini, indagando e maldizendo e blasfemando contra as instituições totalitárias, desconfiando de todas as certezas abjudicando toda burocracia. Filme da infância imaginária visto a partir do meio, seguido da metade do segundo, completado pela fração do terceiro, cenas de várias sequências,


diferentes cenários incompletos num quebra-cabeça ou colagem ou caleidoscópio fantástico! Filmes que evocam filmes, personagens migrando de enredo para enredo, cenas alternadas, entrecortadas de memórias de outros filmes já esquecidos numa mitologia antropofágica e voraz, numa galeria de personagens desprovidos de sentidos.


Sumário Prefácio ........................................................ 11 A leitura do texto e a açâo comunicativa 17 1 - Levem..................................................... 21 2 - Rapidez.................................................... 31 3 - Exatidão.................................................. 43 4 -Visibilidade............................................ . 53 5 -Multiplicidade........................................ 61 6 - Consistência.......................................... . 69 Bibliografia consultada.............................. . 73



Prefácio

Todo texto é virtual. Seja ele impresso ou digital. O texto dá-se sempre por um processo de objetivação, de exteriorização, no ato de torná-lo público e acessível. Exige, portanto, uma definida e definitiva materialidade, um corpus existencial para sua individualização em forma de objeto ("objetivo"), para que se torne autônomo, em certo sentido independente de seu(s)produtor(es). Desde a sua origem, conforme as tecnologias disponíveis, o texto da mensagem materializa-se: desde as cavernas de Altamira ou do Ingá, nas inscrições mesopotâmicas, nos papiros egípcios, no papel à disposição na gráfica de Gutenberg, no celuloide das microfichas e na gravação em chips de computador há sempre um registro sobre um suporte determinado. Mesmo na web o registro tem a sua materialidade e o seu endereço embora pareça "virtual" no sentido equivocado do termo, ou seja, de seu estado ilusório de não territorialidade. O que se mostra na tela é a sua imagem descorporificada que, pelo ato de baixar e imprimir, pode assumir outras formas possíveis de materialização.


ELMIRA SlMEÂO E ANTÓNIO MIRANDA Há quem veja na oralidade também uma forma de "publicação" a partir de uma base material (corporal) determinada embora que momentânea. Imaginemos o trabalho maiêutico de Sócrates com seus discípulos. Platão seria o responsável por buscar uma base mais sólida e duradoura para as mensagens do mestre através da escritura dos Diálogos. Na prática, há uma multiplicidade de suportes à disposição dos autores; na atualidade, é lícito admitir que cada suporte tem seus limites e possibilidades e que eles influem sobre os alcances da própria mensagem. Apesar de sua corporalidade, o texto é independente do suporte, presta-se a diferentes leituras e interpretações (hermenêutica). É virtual. A rigor, todo o processo de leitura também aponta na direção da virtualização porquanto, em seu sentido etimológico e filosófico, vem do latim virtualis - virtus, invocando o sentido de potencialidade e não de ato. Uma outra forma de realidade dentro da realidade pois o livro tradicional — coisificado nos limites de sua materialidade —estabelece um enlace para a interação com o imaginário e o virtual. O livro virtual (propriamente dito) usa recursos de hipermídia para estabelecer as inter-relações possíveis entre suas partes internas e/ou externas. Os limites entre o texto tradicional e o "virtual" (virtualizado) são mais de aparência, de suportes e arquiteturas do que de virtualidade propriamente dita, a menos que se queira entender o virtual —como equivocadamente há quem pretenda — no sentido tecnológico estrito. No ciberespaço acontecem simultaneamente a virtualidade do texto com a virtualidade do meio. Em verdade — e Calvino parece


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sugerir — a viagem de Dante com Virgílio ao Inferno, em seu sentido simbólico e imagético, exerce um impulso à fantasia, à imaginação e à virtualidade mais exacerbada sem valer-se mais do que do poder da palavra numa "arquitetura" literária inventiva e magnífica. Ou seja, a poesia também pode constituir-se numa forma de tecnologia nessa aventura de virtualizar. A virtualidade do texto reside em sua potencialização. Um texto pressupõe um código de escritura mesmo no caso da mídia e de qualquer recurso de grafísmo, seja ele icônico, gramatical e/ou acústico. Em seu estado material, antes da leitura e possessão pelo usuário (leitor ou espectador) ele é dependente de um suporte material dado à decifração ou decodificação. O registro objetivo do conhecimento (ou o que entendamos por isso) faz parte de um processo de comunicação que se consagra na recepção do conteúdo, que transcende na assimilação e interpretação e que pode ou não dar lugar a novos registros, num círculo virtuoso. Lévy, em seu já célebre texto "O que é virtual" (1997) concorda: "Desde suas origens mesopotâmicas, o texto é um objeto virtual, abstraio, independente de um suporte específico". Apoio-me muito nas análises de Lévy embora eu tenha, quanto ao tema do texto, uma viés de bibliotecário, de cientista da informação, para quem o documento em que o texto aparece tem uma corporificação quase mítica, com origem, autoria, nível, tamanho, preço, público e está sujeitos às leis do consumo e do obsoletismo... Derivado dessa visão profissional do texto, entendido como registro ou documento em seu sentido


ELMIRA SlMEÂO E ANTÓNIO MIRANDA objetivo e institucional, ele se transforma numa "massa documental" administrável, colecionável, um instrumental no processo de transferência da informação. Em tal situação o documento entra no sistema de informação como objeto disponível e acessível pelo tratamento biblioteconômico que facilite a sua incorporação como produto e que possa convertê-lo em serviço. Aqui não é o lugar para entendermos todas as acepções teóricas e técnicas que compreendem a organização da massa documental para chegar ao público, seja fisicamente nas bibliotecas (pela disponibilidade documentária) seja pela recuperação através de meios eletrônicos e digitais (a acessibilidade documentária) que estão na lógica dos sistemas e redes de informação que assistem hoje os pesquisadores e o público em geral. A origem do presente texto está justamente no curso de "Informação, Desenvolvimento e Sociedade" que venho ministrando, há muitos anos, no Programa de Pós-graduação em Ciência da Informação, na Universidade de Brasília. Entre os textos que às vezes recomendo aos mestrandos e doutorandos é justamente o livro de Ítalo Calvino sobre as "Seis propostas para o próximo milénio", onde o grande escritor releva as características da literatura que devem permanecer, na construção de textos, na era da pós-modernidade. É possível ver nas recomendações de Calvino uma extrapolação, verificar que não se restringem à literatura de ficção, mas também, a toda e qualquer literatura - a científica e tecnológica - e até, forçando um pouco a barra,


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como embasamento para entender massas documentárias mais amplas como sejam as bibliotecas virtuais e os acervos de bancos de dados. E até para entender questões mais amplas como os programas de qualidade total e a inteligência competitiva, como Rogério Vianna (1992) interpretou, assim como outros autores. Isso devido justamente à virtualidade do texto... A dra. Elmira Simeão foi justamente uma pesquisadora que penetrou no texto calviniano em sua tese de doutorado e compôs um capítulo específico sobre as "propostas", com o seu olhar de jornalista e de cientista da informação. A sua tese estuda o fenómeno das revistas eletrônicas (2005) na web, mais especificamente no Portal da CAPES, consolidando os conceitos de "comunicação intensiva" e de "comunicação extensiva", assim como os fenómenos intemetianos da interatividade, da hipertextualidade e da hipermidiação. Tudo isto tem a ver com o texto virtual. Nada é verdadeiramente novo embora a tecnologia de que se reveste nos informe de sua modernidade. Em verdade, como conceito é possível traçar as origens virtuais do texto em épocas tão remotas como a Suméria e a Grécia. Na leitura mais primitiva já havia a possibilidade da hipertextualização, assim como podem ser considerados seus indícios a presença de notas de rodapé e bibliografias na época gutenberguiana... Os interessados no aprofundamento da questão da comunicação extensiva e temas correlates devem recorrer à tese de Elmira Simeão (2003) - uma edição impressa em forma de livro está sendo providenciada —, enquanto aqui pretendemos ampliar apenas o capítulo


ELMIRA SlMEÂO E ANTÓNIO MIRANDA

citado sobre Calvino, ao qual me dediquei como coautor. Aquelas observações que surgiram das análises em aula e de minhas elucubrações sobre o texto tentei inserir no referido capítulo. Desenvolvemos, a quatro mãos, numa , parceria de textos que tem resultado muito profícua e prolixa,. O presente ensaio sobre o tema necessariamente expande-se ou relaciona-se com outros textos que já publicamos (com as devidas orientações de leituras - eu quase caí no neologismo da "lincagem" - perdoem-me os puristas da língua! - para sugerir os inter-relacionamentos de textos próprios da comunicação extensiva em que hoje vivemos...). Não pretendemos esgotar o tema. Apenas queremos despertar o interesse, oferecendo os elementos mínimos mas instigantes para uma aproximação da questão da virtualidade do texto e de sua inserção nos sistemas de informação.

António Miranda


Elmira Simeão e Antonio Miranda

O TEXTO VIRTUAL NOS SISTEMAS DE INFORMAÇÃO e as propostas de Ítalo Calvino

(foto em http://www.emory.edu/EDUCATION/mfp/cal.html)

2004



A LEITURA E A AÇÃO COMUNICATIVA Literatura, comunicação e tecnologia na visão de Calvino. Desde suas origens mesopotâmicas, o texto é um objeto virtual, abstrato, independente de um suporte específico (P.Levy). Para compreender aspectos relevantes na relação da tecnologia com o texto, matéria prima para qualquer formato de publicação e peça fundamental dos profissionais ligados à Ciência da Informação, recorre-se ao trabalho do escritor Ítalo Calvino e suas Seis propostas para o próximo milênio, ciclo de palestras proferidas a convite da Universidade de Harvard em 1985 e publicada no Brasil em 1990. Calvino define quais valores literários são essenciais para a literatura e por extensão, para a informação neste período de transição e adaptações que muitos consideram da pós-modernidade. A análise foi construída a partir de leituras críticas do trabalho de Calvino destacando os pontos mais importantes para o objetivo da presente obra: avaliar o comportamento e contextos da informação diante da tecnologia e seu aparato técnico. Decompõe-se o livro “Seis propostas para o próximo milênio”, numa tentativa de buscar características genéricas que a comunicação, através da informação em processo continuo de disseminação, deverá manter


nesse novo século marcado pela inserção rotineira de instrumentos de comunicação com impacto global. O início do novo século carrega todo um conjunto de práticas e tradições que tendem a dinamizar-se. Ao aproximar-se do fim do milênio, o escritor Ítalo Calvino propõe-se, em 1985, a defender valores especialmente necessários à literatura neste momento de transição, quando a experiência histórica e os avanços da ciência afetam a maneira de pensar do homem, alterando sensivelmente o saber científico e suas diversas formas de manifestação. Esse esforço resultou numa obra inacabada que marca também os últimos dias de vida do escritor. Preocupado com o destino da literatura, Calvino se dispõe a reordená-la através de Seis propostas para o próximo milênio (CALVINO, 2000).1

O

autor,

numa

demonstração

de

sua

incontestável

competência, faz considerações sobre as qualidades essenciais do texto literário. Através dos argumentos e idéias de Calvino, pode-se analisar perspectivas muito mais amplas em um estudo que passa pelos meios de comunicação da informação, via “internetização” dos processos de disseminação e recuperação. A literatura talvez seja a técnica mais precisa para trabalhar e entender a força da palavra, instrumento prioritário da expressão humana, veículo de divulgação da ciência e da arte. No instante em que um autor qualquer se propõe a

1

Todas as referências do livro foram retiradas da obra de Calvino, mantendo a interpretação do autor sobre o trabalho de escritores, poetas, cientistas e sua visão pessoal de personagens e contextos.


usar esta forma de expressão, torna-se um artista-experimentador. Através da construção de textos em seus respectivos contextos, autores e leitores, de alguma maneira, contribuem para as modificações que irão se processar nos conteúdos formando assim comunidades interpretantes. O fenômeno da internetização e, conseqüentemente, por força do

emprego

das

hipertextualização,

novas permite

tecnologias uma

da

coleção

informação, de

da

informações

multidimensionais disposta em rede para a navegação rápida e intuitiva (Levy, O que é virtual, p.44). Levy continua “Ora, a hipertextualização objetiva, operacionaliza e eleva a potênxcia do coletivo essa identificação cruzada do leitor e do autor” (p.45), levando àquela responsabilidade que ele acredita ser “ ruptura das funções da leitura e da escrita” (p.45). . O fenômeno da comunicação eletrônica e seus múltiplos recursos ainda não são totalmente conhecidos, mas é para esse processo que mergulhamos e para o qual estamos destinados no século XXI, quando importantes transformações científicas darão um suporte às novas aspirações de autores cada vez mais ansiosos. Encontrar similitudes entre a poetry desenvolvida por CALVINO com o tema proposto neste trabalho, é acreditar no autor e suas propostas: “minha confiança no futuro da literatura consiste em saber que há coisas que só a literatura, com seus meios específicos, nos pode dar" (CALVINO, 2000, p. 11).


Admitindo um certo exercício de “futurologia” do autor, são essas as seis características:

Leveza Rapidez Exatidão Visibilidade Multiplicidade Consistência


1 – Leveza CALVINO começa sua tese argumentando a favor da Leveza, fazendo oposição àquilo que tem peso. É através de um esforço pessoal, com base na experiência de escritor, que se volta para várias estratégias possíveis para aliviar o peso da literatura, um trabalho que pode estender-se não só à literatura como também às obras de arte e outras formas de representação do conhecimento. Quando afirma que sente muitas vezes o mundo transformado em pedra, CALVINO demonstra inquietação com o texto imaturo e algumas formas de representação descuidadas, uma incômoda relação com o que lhe parece

estático

e

enfadonho,

burocrático-normativo.

Quando

compreende que a ausência de movimento traz peso e produz certa cristalização, cria o primeiro paradoxo, pois toda forma de representação é estática e única e toda interpretação empobrece o mito e o sufoca. Conseguir leveza é, portanto, “prender” idéias e significados ao peso de uma representação, ou melhor, apreender, como uma atitude necessária para registrar e descrever um fato, objeto ou ato, equilibrando-se entre o imaginário (leve) e o peso da representação. Admitir a possibilidade de peso-leveza, numa correta postura de equilíbrio e bom senso, é procurar ser cortês e nobre. São grandes as possibilidades da cortesia, como exemplo o autor exalta a interatividade: é uma das formas elegantes capazes de difundir


informações, aproximando o autor de leitor, no processo de troca, uma entrega e um retorno. Esse rigor na representação, no atual momento de compulsão tecnológica, aponta que as interfaces amigáveis de comunicação tentam uma nova maneira de “cortejar” leitores, numa estratégia

de

tratamento

do

instrumental

tecnológico

e

do

conhecimento a ser disponibilizado. O peso de uma máquina de processamento de informações (hard) pode ser compensado se a leveza de uma relação homem-computador puder ter fluxo constante de informação. O peso da vida, segundo Kundera (apud CALVINO, 2000, p.19) se revela nos conflitos, nas formas de opressão (pública e privada). Na vida, tudo que escolhemos pela leveza acaba, portanto, se tornando com o tempo um peso insustentável. Para CALVINO, somente a vivacidade e a mobilidade da Inteligência escapam dessa maldição. Estar vivo, pulsante, é uma exigência da leveza. Estar vivo significa funcionar integralmente, com sentidos apurados, de acordo com a expectativa de um sistema com o qual se está integrado, tendo objetivos a serem alcançados. A mobilidade da Inteligência talvez seja o aspecto mais favorável ao crescimento da tecnologia. Segundo CALVINO, essa inexorável necessidade de mudança não é uma fuga, traduz-se como o ver coisas de uma forma diferente para, então, superar-se. Sistemas que funcionam com essa lógica resgatam uma mobilidade de “múltiplas escolhas”, onde os resultados devem deter-se na satisfação de quem testa o sistema e de quem procura informações para a solução de um problema imediato e específico.


No caso da literatura ou mesmo em outros campos, o trabalho com um texto tem infinitas possibilidades. Estilos e formas que podem mudar a imagem do mundo e tirar-lhe o peso. Na era da informática a densidade (hard) das máquinas se curva ao comando do software: “A segunda revolução industrial se apresenta como bits de um fluxo de informações que corre pelos circuitos sob a forma de impulsos eletrônicos” (CALVINO, 2000, p. 20). Bits, portanto, invisíveis aos olhos, são imagéticos, detentores da força da leveza, pois se traduzem como peças de comando da representação. Infinitamente minúsculos tornam-se poderosos e um imperativo à liberdade, tal qual o átomo para a matéria. Essas substâncias que envolvem projetos e objetos pulverizam, segundo CALVINO, o peso da vida, refrescando a realidade mais dura: “O conhecimento do mundo é a dissolução de sua compacidade: para Ovídio também existe entre todas as coisas uma paridade essencial, contra todas as hierarquias de poder e de valor” (p. 21). Na apreensão de significados, a necessária busca do equilíbrio entre peso e leveza. Representar, portanto, se traduz em equilibrar a significação, um processo de criação e sensibilidade que só poderá satisfazer se for produto de uma afinidade com o mundo e sua ética. É possível a leveza de todas as coisas e há também sua representação precisa, tal qual se espera. Ao analisar sonetos de Cavalcanti sobre as imagens da beleza e a visão do inferno de Dante, CALVINO comenta: “Bianca neve scender senza venti” (alva neve que baixa sem ter vento) “Come di neve in alde sanza vento” (Como a neve nos Alpes sem ter vento), frases de construção semelhante, mas com total oposição tendo em


vista seus respectivos contextos. Apesar da dicotomia, observa-se uma leveza nas duas construções que evocam significados diferentes, sentidos quase opostos, com profunda sensibilidade e imagens assimiláveis. O peso de cada palavra em uma respectiva frase transforma-se em leves representações. A construção frasal é sempre pesada (hard), mas a imagem que cria para o leitor é leve (soft), embora formato e conteúdo sejam independentes 2. Considerando os estilos de cada poeta, observam-se técnicas que transformam o texto em formas leves, quase irresistíveis. Para explicar melhor o método da leveza, CALVINO distingue o estilo de Dante do estilo de Cavalcanti, pelo qual parece ter maior afinidade. No primeiro a técnica é “extrair da língua todas as possibilidades sonoras e emocionais. Capturar no verso o mundo em toda variedade de níveis, formas e atributos” (p. 28). Ou seja, uma representação sistemática, objetivada e coerente: “transmitir a idéia de um mundo organizado num sistema, numa ordem, numa hierarquia, em que tudo encontra o seu lugar” (p. 28). Para o poeta Cavalcanti, descrito como “poeta da leveza”, a técnica é oposta “dissolve a concreção da experiência tangível em versos de ritmo escondido, de sílabas bem marcadas, como se o pensamento se destacasse da obscuridade por meio de rápidas descargas elétricas” (p. 28). São técnicas distintas que, atingindo o mesmo objetivo, se assemelham: uma tende a fazer da linguagem um elemento sem peso e a outra tende a comunicar peso à linguagem. As duas sinalizam formas de representação coerentes em suas propostas e 2

Sobre a relação entre conteúdo e formato , ler MIRANDA e SIMEÃO, 2002....


atingem a leveza que, segundo CALVINO, é associada à precisão e à determinação, nunca ao que é vago ou aleatório. Nos dois casos têmse objetivos claros, não importando a forma, caminho e percursos, e sim a mira “é preciso ser leve como um pássaro, e não como uma pluma” (VALÉRY apud CALVINO, 2000, p. 28). Na técnica de Cavalcanti, CALVINO conceitua leveza destacando três características: despojamento da linguagem, variação de um raciocínio ou de um processo psicológico, uso de uma imagem figurativa e emblemática. “Há invenções literárias que se impõem à memória mais pela sugestão verbal que pelas palavras” (CALVINO, 2000, p. 30). Não é necessário, portanto, muitas peças representativas para que uma informação se transforme em leveza, mas sim o uso de peças

precisas,

consistentes,

capazes

de,

sozinhas,

leve

e

organizadamente, darem um sentido à representação atingindo objetivos, provocando o “conhecer”, mesmo que figurativo ou metafórico. Em Cyrano de Bergerac, CALVINO também vê leveza e descreve a técnica do fazer literatura com “atomismo”, celebrando a unidade de todas as coisas (animadas ou não), observando a fragilidade dos processos que as fizeram nascer. Cyrano consegue “subtrair-se à força da gravidade” e numa inequívoca demonstração de criatividade impõe às palavras a capacidade de inventar sistemas e fazê-los funcionar, num excitante exercício de criatividade. Na literatura, por exemplo, há representações que evocam leveza, assim como a brisa do mar ou um sorriso de criança, mas a lua é sempre a eleita para uma investigação de tal característica. Certo da imensidão de “dados” que obteria numa investida como essa, CALVINO dá o


mérito a outros escritores. É prudente quando vê na natureza e não no homem a capacidade de provocar representações precisas, pois é mais inspiradora e motivadora. “Desde que surgiu nos versos dos poetas, a lua teve sempre o poder de comunicar uma sensação de leveza, de suspensão, de silencioso e calmo encantamento... coube a Leopardi o milagre de aliviar a linguagem de todo o seu peso até fazê-la semelhante à luz da lua” (p. 37). CALVINO vê na literatura uma contínua busca pela leveza através do conhecimento, assim como na ciência, busca-se formas precisas de representação (p. 39). A necessidade de leveza revela-se como uma forma de superação, uma busca que modifique a realidade, ainda que lentamente. Vôos a outros mundos são situações comuns à literatura de todas as épocas, como na figura das bruxas que surgiram no momento em que as mulheres viviam um período de privações e limitações. A imagem acaba superando o peso de uma situação real, usando artimanhas da própria realidade, para tentar mudá-la. Na chegada do século XXI os escritores encontram na leveza um caminho seguro, coerente, de possibilidades justas: “iremos ao encontro do próximo milênio sem esperar encontrar nele nada além daquilo que seremos capazes de levar-lhe” (p. 41), uma responsabilidade limitada à própria condição humana. Nós temos a experiência sensível do peso das coisas, mas o contrário parece não ser verdade: a experiência sensível da leveza, como experiência de certo despojamento em relação ao mundo, como ação cotidiana ou como alegoria de valor emblemático, isso não parece nos mover ou entusiasmar”. (Castro, p. 171).


Quando montamos uma biblioteca convencional ou virtual, isto é, quando montamos um acervo, com um estoque considarável de conteúdos, essa aludidade sensação de peso, ou de leveza se impõe a nossa consciência. O acervo leve é sempre aquele voltado para o essencial, para a satisfação das necessidades legítimas, segundo um plano

determinado,

impondo-se

desbastamentos

e

descates

constanytes para ajustar a oferta às demandas contingentes. O acúmulo de dados obsoletos, informações impertinentes, e de conhecimentos irrevelantes, para os objetivos do sistema, por mais que potencialmente mantenham sua validade per se como registros, recorrentes em outras circunstâncias, torna o sistema entulhado, consequentemente pesado para sua operacionalidade, ocupando espaço, tomando tempo, Torna-se esteticamente injustificável porque o excesso é inconveniente até para a compreensão do sistema pois o usuário reage sempre ao estímulo de maneira (pragmática) necessária e justa. Continuando no mesmo raciocínio, uma base de dados é tanto mais leve quando consegue manter-se nos limites de sua especialidade programada. O Dr ..............chamava a isso de crescimento zero, isto é, a faculdade de desenvolver-se em qualidade, sem crescer em quantidade, incorporando novos elementos segundo as necessidades emergentes, e excluindo todo o peso morto de itens para descarte. Não se trata, no entanto, de ver o mercado passado como um guia cego no


futuro, ao contrário, mas de exercitar a capacidade de prever e fomentar desmandos no curso da ação planejada e monitorada.

2. – Rapidez O início desta conferência é uma investigação sobre o tempo, primeira idéia que surge quando se fala em rapidez. Agilidade no desempenho de tarefas, a prisão dos prazos e horários prédeterminados, atitudes de preferência controláveis. Para CALVINO, o relógio, instrumento medidor do pulso do tempo universal, assemelhase à morte. Nesta perspectiva, a necessidade de mensurar é quase uma sentença, uma premeditada condenação ao desaparecimento. Faz-se necessário, portanto, reavaliar esses conceitos para que “rapidez” assuma um outro significado. Sob o estigma da “era da velocidade”, os veículos de comunicação tendem a encontrar, tecnicamente, formas mais ágeis de expressarem conteúdos, com informações mais concisas e orientadas para públicos específicos. Essa é a técnica da aceleração, motivada com o advento da internetização. A inserção de informações no “media” digital provoca uma maneira de comunicar diferenciada, mais global e dificilmente monitorada. Rapidez, na visão de CALVINO, é uma sucessão de acontecimentos que escapam à norma (p. 46), uma das técnicas da literatura que constrói encadeamentos para dar a uma narrativa ritmo contínuo, dinâmico, mas observável. Estabelecer continuidade entre palavras ou signos assegura à narrativa o dom da “eternidade”, ou


seja, da plenitude, o que lhe liberta do relógio e da morte. Tanto palavras quanto imagens, pessoas ou objetos podem, com a devida posição, ser portadores dessa habilidade. O autor, ao comentar a história de Carlos Magno, descreve: “objeto mágico é um signo reconhecível que torna explícita a correlação entre personagens ou entre acontecimentos” (p. 46). Em muitos casos a continuidade pode estar em um objeto, em um símbolo, em pessoas, basta que se torne parte de uma descrição. A continuidade é uma correlação de idéias, interesses que implicitamente (e em detalhes) podem desencadear um novo conteúdo. Há sensação nos detalhes porque estes se revelam velhos conhecidos. Têm os poderes dos portadores da nova informação e quando misturados a outros personagens dão vida à cena. “Não quero de forma alguma dizer com isso que rapidez seja um valor em si: o tempo narrativo pode também ser retardador ou cíclico, ou imóvel” (p. 49). A versatilidade no tempo da narrativa provém de um tipo de técnica que trata o processo de comunicação como algo contínuo, atrelado a idéias e significados construídos a cada momento. Essa comunicação pode ser “retardada” ou “ágil” em um tempo que pode ser dilatado ou contraído. A sucessão de fatos, atos ou palavras devem “se responder uns aos outros” (p. 49), no entanto, devem estar contritos, concisos para evitar a poluição trazida por outros códigos que não se harmonizam com a narrativa expressa. Na ciência, por exemplo, há o cuidado em conservar coerência à técnica e um senso comum à narrativa e a experimentações. Ao relatar o conto do rei, com poucas linhas, CALVINO descreve uma história completa e


concisa onde tudo que foi dito tem uma função necessária. A economia de expressão é que garante rapidez à narrativa, que só é conhecida por aqueles que realmente a compreendem e sentem seu ritmo, decifram o essencial. Os defeitos de um narrador inepto, enumerados por Boccacio, são principalmente ofensas ao ritmo; mas são também os defeitos de estilo, por não se exprimirem apropriadamente, segundo os personagens e a ação, ou seja, considerando bem, até mesmo a propriedade estilística exige rapidez de adaptação, uma agilidade na expressão e no pensamento. (p. 53). Estamos soterrados no mundo da velocidade, que orienta as pessoas para a pressa contínua nas ações e nas ágeis máquinas de pensar, capazes de acrescentar às tarefas mais comuns uma velocidade inalcançável pela habilidade humana, mas muito mais apropriada às exigências do tempo. Tal qual o viajante de De Quincey ficamos “à mercê da inexorável precisão da máquina”, sujeitos a um “bug” que poderá chegar ou não. “O tema que aqui nos interessa não é a velocidade física, mas a relação entre velocidade física e velocidade mental” (p. 54). Tal qual a velocidade física, a mental também dá uma sensação de liberdade, uma vivacidade que não conhece fronteiras e limites. Como

será então

possível avaliar um desempenho

satisfatório? A rapidez e a concisão do estilo agradam porque apresentam à alma uma turba de idéias simultâneas e a fazem ondular numa tal abundância de pensamento, imagens ou sensações espirituais, que ela ou não consegue abraçá-las todas de uma


vez nem inteiramente a cada uma, ou não tem tempo de permanecer ociosa e desprovida de sensações. (p. 55). A arte de construir com rapidez ou provocar rapidez é fruto de um conhecimento, de uma competência incontestável, da mente que reúne informações relevantes (institucionalizadas ou não) para estimular um uso apropriado, promovendo o crescimento do saber. É um discurso que se impõe para ser absorvido, degustado, discurso como raciocínio (Galileu), que sugere deduções e eleva o indivíduo. Nas qualidades descritas por Galileu para uma ordem discursiva, CALVINO destaca “o estilo como método de pensamento e como gosto literário – a rapidez, a agilidade do raciocínio, a economia de argumentos” (p. 56). A combinatória do alfabeto, segundo Lucrécio, funciona como a estrutura atômica para a matéria. Vislumbrando o poder da comunicação, Galileu também entendia o alfabeto como instrumento de comunicação entre as pessoas distantes no tempo e no espaço, tal qual atualmente visualizamos na Internet. Na rede virtual se concretizam as visões de Galileu e Lucrécio, sendo necessário também estar “alfabetizado”, conhecer combinações de fonemas, a construção de frases e seu significado dentro de um contexto virtual. Numa época em que outros media triunfam, dotados de uma velocidade espantosa e de um raio de ação extremamente extenso, arriscando reduzir toda comunicação a uma crosta uniforme e homogênea, a função da literatura é a


comunicação entre o que é diverso pelo fato de ser diverso. (p. 57). A exaltação a literatura, diferenciando-a de outras formas de comunicação, não considera a possibilidade de que todos os meios alcancem um status literário. O cientista escritor precisa fazer a relação entre o conhecimento a ser comunicado e as proprieades da literatuta, ampliando as possibilidades da transferência de informação. “Dir-se-ia que a literatura consegue passar por onde a perícia encontra um obstáculo. Como se, afogado na densidade do sentido, o não-saber soubesse aquilo que, transbordante de informação, o saber não saberá jamais” (Michel Serres, op. Cit. p.9) E arremata: “ as vezes só se compreende sob a condição de diluir sua ciência na narrativa leal das circunstâncias”. No fenômeno da internetização, onde há convergência de vários aparatos, configurando uma nova forma de expressar, é possível que a velocidade mental seja investigada e trabalhada com mais recursos. Não que possa ser medida como objeto de disputa, comparável (p. 58), mas há de se vislumbrar uma forma de compreendê-la melhor: “um raciocínio rápido não é necessariamente superior a um raciocínio ponderado, ao contrário; mas comunica algo de especial que está precisamente nessa ligeireza” (p. 58). A Internet, portanto, esforça-se por manter esse contato ágil, multimídia, sua lógica binária interage em multimeios tentando evitar o fim da interação homem-máquina. Entre a divagação do emaranhado de informações à absorção de um conhecimento, procura-se a fixação de uma idéia. Mesmo com técnicas diferentes tanto a literatura quanto o processo de ïnternetização podem levar o indivíduo a construir


amarras simbólicas, estimulando sua criatividade, alargando a visão em relação a determinado assunto. O segredo talvez esteja na máxima latina festina lente – apressa-te lentamente, ou , numa acepção mais popular:”vamos devagar que eu estou com pressa”, preceito que, de forma mais sofisticada, constitui-se um dos intentos da qualidade total.. Devemos estar seguros tecnicamente de um projeto de comunicação para, só então, lançá-lo no tempo e no espaço onde estarão outras idéias, provocando uma ligação eficiente entre dois pontos, ligando-os em linhas retas ou longas curvas de significados, mas estabelecendo elos consensuais. CALVINO se define como um escritor que sempre procura o curto caminho entre os “dois pontos”, mas não desconsidera o divagar como recurso para uma dinâmica de apreensão de significados. Os produtores de informação técnica têm como objetivo clássico percorrer o trajeto mental reunindo um maior número possível de pontos interligados no tempo e no espaço como se fosse a única dinâmica mental. Mas a percepção de idéias é global (cultural) e descrita, tal qual gestalt. É absorvida dentro de um contexto, tem um tempo próprio para cada indivíduo e há de se equilibrar entre os objetivos do produtor de informação e os do público que o conhece. Tal como o escritor que vasculha frases justas, “encontro de conceitos que sejam os mais eficazes e densos de significado” (p. 61), trabalha na busca de uma expressão correta, única e densa, mensurável. Nos manuais de redação dos grandes jornais e editoras, nas orientações expressas em normas para editoração, manuais de aplicação, há busca de um consenso para a expressão, uma densidade para o conteúdo a


ser trabalhado: “é verdade que a extensão ou brevidade de um texto são critérios exteriores, mas falo de uma densidade especial que embora possa ser alcançada também nas composições de maior fôlego, tem sua medida circunscrita a uma página apenas” (p. 62). Os modelos e as padronizações, na verdade, funcionam como conhecimento consensual. É uma construção individual com fins coletivos, tal qual o saber científico, comunicado para ser universal. Por isso é preciso ser conciso, breve e consistente. Na era da Internet, repleta de lixo informativo e inutilidades atraentes, só terá consistência o conteúdo gerado de outros conteúdos já conhecidos e sedimentado sob padrões. É pertinente considerar “sedimentado” como aquele conhecimento que cita e é citado, que “redobra e multiplica uma biblioteca imaginária ou real“ (p. 63), que libera o pensamento para um vôo, sem congestionamentos. CALVINO descreve as narrativas cristalinas, sintéticas e esquematizadas, próprias do saber científico, como as mais rápidas. Sua maneira de narrar conduz a uma linguagem tão precisa quanto concreta, cuja inventiva se manifesta na variedade de ritmos, dos movimentos sintáticos, em adjetivos sempre inesperados e surpreendentes (p. 63). Mas a concisão é apenas um dos aspectos da rapidez, mais fervorosamente destacado pelo autor, que pode ser trabalhado em textos e imagens como expressões representativas de uma composição inteira, de uma história, ou de uma cultura. Mesmo que o processo de construção narrativa, característico da Internet, represente um risco para a literatura, se faz necessário seu aprendizado. Como bem assinalou o filósofo Michel Serres (p.20) “ o escrever mobiliza e recruta um conjunto tão refinado de músculos e terminações nervosas


que, em comparação, qualquer ofício manual fino, como a óptica e a relojoaria, é grosseira. Ensinar esta capacidade a uma população torna-a, em primeiro lugar, numa coletividade de pessoas destras” ou seja, a interiorização de uma habilidade adquirida e desenvolvida tanto pelo aprendizado formal e ou pela prática, como a que possibilita a leitura tradicional e a própria internet.

Os sentidos do homem

precisam de uma base para conexões rápidas de conteúdos. No fim da conferência sobre a rapidez, um tributo especial à “Hermes-Mercúrio”, o Deus da comunicação e das mediações: Mercúrio, de pés alados, leve e aéreo, hábil e ágil, flexível e desenvolto, estabelece as relações entre os deuses e entre os deuses e os homens, entre as leis universais e os casos particulares, entre as forças da natureza e as formas de cultura, entre todos os objetos do mundo e todos os seus pensantes. (p. 64). Essa homenagem ao deus grego é uma ode e ecoa as ligações existentes entre micro e macro espaços, em relações que se estabelecem entre o local e o global, nas hipóteses buscadas em pesquisas, instáveis e oscilantes, troca que ora coloca o produto informação como algo isolado e melancólico, ora o descreve como um ser mercurial. O papel de Hermes é o do intermediário, através de cuja conduta “se espera que transmita mensagens como um vidro transparente, portanto nulo, mas que transforma toda a paisagem cultural a cada informação” (Serres, op. Cit. 36). Calvino também percebe que toda intermediação impõe um viés, um posicionamento


que só pode ser relativizado pela objetividade do método de análise e do próprio discurso.

Figura 1 – Hermes-Mercúrio, deus da comunicação e da mediação. Personifica a mudança, a transição, a passagem de um estado para outro.

É um equilíbrio entre o temperamento do artista e o sujeito universal guiado pela técnica e habilidade comercial. É o impasse entre o vigor da imaginação e o rigor da representação. Para o indivíduo mercurial não basta a sintonia com o mundo para construir o saber científico, focaliza-se os esforços para um aspecto único, entendido e praticado com competência, “uma mensagem de imediatismo obtida à força de pacientes e minuciosos ajustamentos” (p. 66) onde “o tempo flui sem outro intento, que o de deixar as idéias e sentimentos se sedimentarem, amadurecerem, libertarem-se de toda impaciência e de toda contingência efêmera” (p. 66).


3 – Exatidão Ensaio sobre o uso da palavra e sua precisão O conceito de exatidão é descrito por CALVINO em três características: um projeto de obra bem definido e calculado, a evocação de imagens visuais nítidas, incisivas e memoráveis e a linguagem que seja a mais precisa possível como léxico e em sua capacidade de traduzir as nuanças do pensamento e da imaginação. Na verdade, essa conferência é um tratado de defesa da literatura, uma homenagem ao poder da palavra, às suas possibilidades criadoras. Mostra a preocupação do escritor com a necessidade de uma precisão no uso e aproveitamento de cada termo. Não é à toa que CALVINO encerra a conferência com um texto de Leonardo Da Vinci, o poeta da pintura. Descreve com sutileza e exatidão a imensa figura de um monstro marinho. Feita a descrição, resta fixar na memória a imagem do monstro que cada qual é capaz de criar da própria experiência, evocando as mesmas sensações de Da Vinci, mas que determinam diferentes pinturas, em suas formas abstratas, desconhecidas e livres de modelos. É a literatura o instrumento que responde às exigências do homem-criador de palavras e imagens: “terra prometida em que a linguagem se torna àquilo que, na verdade, deveria ser” (p. 72). Repudiando formas inadequadas do uso da linguagem, o escritor é crítico contumaz das próprias idéias, paranóico e perfeccionista como aqueles que se apegam aos detalhes para


entenderem de maneira mais consistente as generalizações. A incorreção no uso da palavra é também fruto do excesso de informações que povoa nosso mundo. No lixo da Internet, alguns conteúdos jamais serão conhecidos a não ser pelos próprios autores. O lento processo de seletividade, normalmente iniciado com catálogos e páginas de busca, é a única forma de defesa à epidemia, caracterizada pela “perda da força cognoscitiva e de imediaticidade” (p. 72). O excesso de termos ou imagens poluindo o essencial tende a “nivelar a expressão em formas genéricas, anônimas, a diluir significados, a embotar os pontos expressivos” (p. 72). Essa poluição atinge textos e a cultura visual. Na opinião do escritor a invasão é efeito dos meios de comunicação de massa que criam um jogo de espelhos, manipulando o saber, construindo-o de forma arbitrária. Em oposição a CALVINO, supõe-se que a palavra ideal também poderá vir dos media, pois também respondem a uma necessidade interna do indivíduo, comunicando uma “força capaz de impor-se à atenção, como riqueza de significados possíveis” (p. 73). “Mas também a inconsistência não está somente na linguagem e nas imagens, está no próprio mundo” (p. 73). Se a vida, em si, é um exercício de imprecisas representações, a exatidão se prenderá à incoerência ou à completeza de um conceito e sua lógica temporal. CALVINO cita Giacomo Leopardi e explica que exatidão poderá ser também algo de indeterminado, visto que, para ele a linguagem será tanto mais poética quanto mais vaga e imprecisa for. O autor lembra que “vago”, em italiano, significa também gracioso e atraente (p. 73). Uma idéia de movimento e mutabilidade que é associada, em italiano, tanto ao incerto e ao indefinido quanto à graça


e ao agradável. Seria prudente que no instante de fazer a escolha exata, tivéssemos a possibilidade de várias alternativas, “um verdadeiro elenco de situações propícias a suscitar no espírito a sensação do indefinido” (p. 74), do “multifacetado”. Como método para construção da exatidão, uma dica paradoxal: ”para se alcançar a imprecisão desejada, é necessário a atenção extremamente precisa e meticulosa que ele (Leopardi) aplica na composição de cada imagem, na definição minuciosa dos detalhes, na escolha dos objetos, da iluminação, da atmosfera” (p. 75). O poeta do vago, explica CALVINO, é também o poeta da precisão, que sabe colher a sensação mais sutil com olhos, ouvidos e mãos prontas e seguras. É necessário, nesse método, dar o dito pelo não dito, um prazer que somente será conhecido por aqueles que dispõem de competência literária, um conhecimento sedimentado. Não se trata de exaltar o mundo das sensações, das especulações (metafísico) ou limitar-se ao rigor de uma fórmula matemática. Se o elemento observado for a própria exatidão, se o isolarmos e o deixarmos desenvolver, se o considerarmos como um hábito do pensamento e uma atividade da vida, e permitirmos que sua força exemplar aja sobre tudo o que entra em contato com ele, chegaremos então a um homem no qual se opera uma aliança paradoxal de precisão e indeterminação. Ele possuirá esse sangue frio deliberado, incorruptível, que é o próprio sentimento da exatidão; mas afora tal qualidade, todo o resto será indeterminado. (MUSIL apud CALVINO, 2000, p. 79).


Musil recorda a existência de “problemas matemáticos que não admitem uma solução geral, mas antes soluções particulares que, combinadas, se aproximam da solução geral” e “tal método poderia ser aplicado à vida humana” (p. 79). Exatidão como única possibilidade de transformação de uma idéia em conhecimento. Ao propor a exatidão, CALVINO imagina, inicialmente, voltar-se para as próprias limitações do termo, à sua determinação: ”queria lhes falar de minha predileção pelas formas geométricas, pelas simetrias, pelas séries, pela análise combinatória, pelas proporções numéricas, explicar meus escritos em função de minha fidelidade a uma idéia de limite, de medida” (p. 82). Ao aprofundar-se na literatura, no entanto, confronta-se com o oposto que é complemento do tema em questão, pois a idéia de limite impõe o contrário, ou seja, aquilo que não tem fim. É quase como uma obsessão, que chama para si o oposto do que é “o que me interessa é uma outra coisa diferente, ou seja, não uma coisa determinada, mas tudo o que fica excluído daquilo que deveria escrever: a relação entre esse argumento determinado e todas as suas variantes e alternativas possíveis” (p. 83). Arriscando ao vazio dos excessos, ou à imensidão de um nada temos um conflito que atormenta o autor, a mesma oposição entre ordem e desordem “fundamental na ciência contemporânea” (p. 84). E em CALVINO, a lembrança de entropia solidifica o conceito de exatidão, voltando a própria origem do universo. Em um prefácio de Massino Piattelli Polmarini, o cristal é símbolo da beleza das limitações geométricas, modelo de perfeição,


emblemático, “imagem de invariância de uma forma global exterior, apesar da incessante agitação interna” (apud CALVINO, 2000, p. 85). É essa a grande questão da atualidade: procurar ordem no caos, sobreviver ao clima de crise constante, superando as dificuldades, como oportunidades imperdíveis:

Cristal e chama, duas formas de beleza perfeita, da qual o olhar não consegue desprender-se, duas maneiras de crescer no tempo, de desprender a matéria circunstante, dois símbolos morais, dois absolutos, duas categorias para classificar fatos, idéias, estilos e sentimentos. (p. 85). A experiência humana com a ciência permite que o avanço paulatino das diversas áreas seja um movimento que obedece à evolução de métodos empíricos e métodos lógicos, passo a passo, como que um completando o outro. Essa disputa é também uma forma de crescimento porque é integradora. O modelo que melhor define essa construção é uma enorme teia de idéias, como se cristalizam as possibilidades de comunicação através da Internet. Na obra Lê cittá invisibili, CALVINO já trabalha a noção da hipertextualidade estudando a tensão entre a racionalidade geométrica e o emaranhado indefinido da existência humana (p. 85). Confessa naquela obra, a tentativa de explicar tal fragmentação:

Construir uma estrutura facetada em que cada texto curto está próximo dos outros numa sucessão que não implica uma consequencialidade ou uma hierarquia, mas uma rede dentro


da qual se podem traçar múltiplos percursos e extrair conclusões multíplices e ramificadas. (p. 86). Essa ramificação de possibilidades é que determina a exatidão de um conceito, uma idéia, um projeto, pois o que vale, na verdade, é o esforço pela escolha de uma alternativa, uma combinação de idéias, uma construção.

Percebi claramente que minha busca de exatidão se bifurcava em duas direções. De um lado, a redução dos acontecimentos contingentes a esquemas abstratos que permitissem o cálculo e a demonstração de teoremas: do outro, o esforço das palavras para dar conta, com a maior precisão possível, do aspecto sensível das coisas. (p. 88). São duas pulsões distintas no sentido da exatidão que jamais alcançam a satisfação absoluta; em primeiro lugar, porque as línguas naturais dizem sempre algo mais em relação às linguagens formalizadas, comportam sempre uma quantidade de rumos que perturbam a essencialidade da informação; em segundo, porque ao se dar conta da densidade e da continuidade do mundo que nos rodeia, a linguagem se revela lacunosa, fragmentária, diz sempre algo menos com respeito à totalidade do experimentável. (p. 88). “Um exercício sobre a estrutura versus exercício da descrição, gratificações e frustrações no uso da palavra e do silêncio” (p. 88-89) uma reconstrução da “fisicidade do mundo por


meio da impalpável poeira das palavras”, palavra como “substância do mundo” (p. 90). Há, no entanto, pessoas para quem o uso da palavra é uma incessante perseguição das coisas, uma aproximação, não de sua substância, mas de sua infinita variedade. Ser exato, portanto, na literatura, é compreendê-la como um instrumento que associa o visível à coisa invisível. Na ciência, que tenta compreender os fenômenos da natureza e do homem, é preciso acurácia no uso da palavra e em suas formas de manifestação documentada, pois, o “justo emprego da linguagem é aquele que permite o aproximar-se das coisas (presentes e ausentes) com discrição, atenção e cautela, respeitando o que as coisas (presentes e ausentes) comunicam sem palavras” (p. 91).

4 – Visibilidade Na frase “Chove dentro da alta fantasia” (p. 97), alta fantasia é a própria imaginação, aquela que, conforme Dante, é capaz de se impor às nossas faculdades e à nossa vontade “extasiando-nos num mundo interior e nos arrebatando ao mundo externo” (p. 98). Um fenômeno que transpõe o limite do possível, nos separando de uma realidade objetiva. Visibilidade como evocação do próprio espírito, traduzindo-o em visões que se projetam de forma fantástica. “Podemos distinguir dois tipos de processos imaginativos: o que parte da palavra para chegar à imagem visiva e o que parte da imagem visiva para chegar à expressão verbal” (p. 99). Esses processos, continuamente alimentados, são sempre resultados de um esforço pessoal. No primeiro caso, experimentamos a construção de


imagens quando durante a “leitura” processamos a informação e dependendo da eficácia do texto, somos capazes de ver a cena ou imaginá-la, ou seja, a imagem foi antes um texto que se projetou processado pela imaginação, em etapas, como se uma “tela interior” (p. 99) fosse capaz de reproduzir um filme à cada leitura. A composição visiva tem significativa importância, pois, a partir dela, se pode de forma concreta aos olhos da imaginação, projetar algo que pareça ainda vago para o entendimento. Nesse processo, nada impede de aproveitar o momento, participar da própria cena, vivenciá-la e envolver-se completamente. CALVINO destaca que a igreja é a instituição que sempre se serviu dessa capacidade para, através de textos direcionados ao estímulo da figuração, fazer com que a imaginação dos cristãos metaforize-se sobre seus ensinamentos, de forma impositiva “tratava-se, no entanto, de partir sempre de uma dada imagem, proposta pela própria igreja, e não da imaginada pelo fiel” (p. 101). Essa passagem da palavra para a “imaginação visiva”, pode também ser uma construção própria, o mais importante é que através dela se pode enxergar (compreender melhor), trata-se de uma “via de acesso ao conhecimento de significados profundos” (p. 102). Mas o homem também forma um imaginário pessoal que reflete uma época, são “chuvas de imagens”, que se traduzem em formas representativas originais, revelando competência no saber. O momento mais importante realmente é o da escolha das imagens que irão refletir, de maneira fiel às representações do mundo. No Renascimento, relata CALVINO, imaginação é a “comunicação com


a alma do mundo” (p. 103), uma idéia que encontra eco no romantismo e no surrealismo. Tal idéia contrasta com a da imaginação como instrumento de saber, segundo a qual a imaginação embora seguindo outros caminhos, que não os do conhecimento científico, pode coexistir com esse ultimo, e até coadjuvá-lo, chegando mesmo a representar para o cientista um momento necessário na formulação de suas hipóteses. (p. 103). A imaginação como estratégia para o conhecimento científico é o suporte que libera a criatividade, ajudando o pesquisador. Não é possível, nessa analogia, distinguir totalmente onde começa a visibilidade representativa da “ciência” que não seja a do próprio homem, de sua capacidade de formular conceitos a partir de imagens que podem visualizar com segurança e que são sua fonte de imaginação, “são as próprias imagens que desenvolvem suas potencialidades implícitas” (p. 104). É o pesquisador que tratará de organizar imagens em conceitos, dando sentido prático, pois na ciência “é a palavra escrita que conta” (p. 105). São os documentos que garantem continuidade às idéias. O processo que transforma imagens em texto ou vice-versa, quase sempre colocando, no caso da literatura a imagem à mercê das palavras, é uma forma de organizar idéias e representá-las, dando a elas um sentido, um significado que possa ser compartilhado por outras pessoas, uma solução comunicativa. Na literatura é a escrita que domina o campo visual, “não restando à imaginação visual senão


seguir atrás” (p. 105). Sob esse ponto de vista é possível então extrair da literatura científica, imagens representativas de suas formas conceituais, como também é possível representá-las em qualquer meio de comunicação. Quando o ponto de partida é o discurso científico caracterizado

por

um

saber

sistematizado,

construído

comunitariamente sob rígidos preceitos, a representação é um terreno arenoso para leigos e, muitas vezes, acidentado para os próprios pares. O texto, em algum momento, mostrar-se-á representativo (visível para o leitor) podendo a partir de uma simples expressão, instigar o desenrolar de outras idéias que poderão ser transformadas em novas pesquisas. As novas idéias devem surgir “tanto no espírito do texto de partida (o original) quanto numa direção completamente autônoma” (p. 105). No instante em que esses documentos assumem novas características adentrando de forma multimídia os sentidos do homem no contexto internetizado, por exemplo, podem unificar texto e imagem estimulando a representatividade, numa lógica própria que mais tarde será modificada pelo raciocínio de quem procurar entendêla. “As soluções visuais continuam a ser determinantes, e vez por outra chegam inesperadamente a decidir situações que nem as conjecturas do pensamento, nem os recursos da imagem conseguiriam resolver” (p. 106). As novas técnicas multifacetadas estimulam o saber, a percepção. Em Starobinski, CALVINO apresenta duas opções de visibilidade: a imaginação como instrumento do saber ou como identificadora da alma do mundo. Qual a mais lógica? Deixar-se levar pelo racional, pelo conhecimento extra-individual e extra-objetivo (p.


106) ou elevar-se contemplativamente à alma do mundo? Na concepção de Giordano Bruno a imaginação é “repertório do potencial, do hipotético, de tudo quanto não é” (p. 106). Não seria esse o grande estímulo à própria ciência e suas formas de representação, já que a partir do hipotético, investe-se tempo e saber na procura de novas potencialidades, a partir da alma do mundo, criam-se hipóteses concretas. “A mente do poeta, bem como o espírito do cientista em certos momentos decisivos, funcionam segundo um processo de associações de imagens que é o sistema mais rápido de coordenar e escolher entre as formas infinitas do possível e do impossível” (p. 107). CALVINO ao mesmo tempo em que se entusiasma com a possibilidade da combinação do discurso com a composição visual, alerta para o risco de uma contaminação na cultura pelos meios de comunicação de massa. Ponto de vista polêmico, já que a tecnologia é influenciada pela própria cultura e história. O autor garante que a capacidade de pôr em foco visões de olhos fechados (a imaginação), ou seja, de pensar por imagens autênticas, está desaparecendo. A visão interior estaria sufocada por um mosaico criado pelos veículos de comunicação, com os quais aprende-se a conviver. Para o autor nada se extrai de original desse conjunto de imagens, o imaginário do homem está subordinado ao imaginário da tecnologia. Argumento polêmico e radical, já que o autor se diz influenciado pelos quadrinhos de “Comiere dei Piccoli”, figuras marcantes de sua infância. Bastavam as figurinhas para que pudesse criar imagens fantásticas, formular histórias diferentes, com variações que podiam mesclar quadrinhos e personagens de enredos diferentes.


Afirma ainda que “versos simplórios de rimas emparelhadas não forneciam informações tão inspiradoras” (p. 101), o que mostra sua predileção pela cultura da imagem. As figurinhas foram para CALVINO “uma escola de fabulação, de estilização, de composição da imagem” (p. 109). No mosaico tecnológico pode-se formar uma cognição visual, prendendo os modelos e imagens mais reveladores e abortando tantas outras por não servirem aos interesses daquele momento. CALVINO explica o método de formação da imagem literária. Diversos elementos concorrem para formar a parte visual da imaginação literária: a observação direta do mundo real, a transfiguração fantasmática e onírica, o mundo figurativo transmitido pela cultura, em seus vários níveis, e um processo de abstração, condensação e interiorização da experiência sensível, de importância decisiva tanto na visualização quanto na verbalização do pensamento. (p. 110). Será que a literatura conseguirá sobreviver à invasão de imagens do século XXI? Duas são as possibilidades para fugir dessa fatalidade. A primeira é “reciclar as imagens usadas, inserindo-as num contexto novo que lhes mude o significado” e a segunda é “apagar tudo e começar do zero” (p. 111). A primeira parece mais coerente, pois as imagens criadas e reproduzidas pelos mídia também servem de referencial. O importante nos dois aspectos é o destaque à simplicidade e à coerência, balançando entre o visionário e o realista, procurando consistência e emoção nas duas possibilidades, revelando uma capacidade de admirar o belo e reconhecê-lo: “percebi que o


conto pode ser também interpretado como uma parábola sobre a literatura, sobre a diversidade inconciliável entre expressão lingüística e experiência sensível, sobre a inapreensibilidade da imaginação visiva” (p. 112). Divagando entre a instabilidade de Balzac (no uso da literatura fantástica) e o surrealismo de Freenhover, admite que a ambigüidade do conto é a sua verdade mais profunda. Três mundos coexistem pontuando estas ambigüidades: o da fantasia (potencial criativo), o mundo da experiência de vida humana, e as formas representativas desses dois mundos revelam o terceiro, povoado de representações concretas, palavras no papel, tinta na pena “a correlação entre os três mundos é indefinível” (p. 113) criando a figura paradoxal de um conjunto infinito dentro de outro conjunto infinito. No trabalho de representar, o escritor realiza operações que envolvem o infinito de sua imaginação ou o infinito da contingência experimentável, ou de ambos, com o infinito das possibilidades lingüísticas da escrita (p. 113). Nossa capacidade de criar não estaria, portanto, limitada a experiência individual entre o nascimento e a morte, superaria esse limite para o espaço fantástico da imaginação, onde há figuras que não conhecemos e não sabemos compreender.

5 – Multiplicidade Muitas vezes, imagina-se que multiplicidade diz respeito a variações, idéias que se repetem, mesmo que temporariamente


apagadas. Elas ressurgem, brotam, como que aguardando um motivo para mostrarem-se. Antes fosse... Para justificar sua quinta proposta, CALVINO retoma, entre vários romancistas enciclopédicos, um trecho do romance do chileno Carlo Emílio Gadda “reformar em nós o sentido da categoria causa, qual havíamos apreendido em Aristóteles e Emmanuel Kant, e substituir causa por causas” (p. 119). Gadda é um escritor que, como Calvino, vê o mundo como um 5sistema de sistemas”, buscando representar o mundo como um rolo, uma embrulhada. Para Gadda o mundo vale pela sua complexidade, pela heterogeneidade das coisas mais simples que se revelam uma junção de eventos, um conjunto de detalhes, nem sempre percebidos. O romance, nessa perspectiva, é uma “enciclopédia”, um “método de conhecimento e uma rede de conexões entre fatos, pessoas, entre as coisas do mundo” (p.121) e é dessa maneira que se deve compreender o mundo, como uma conexão de coisas, fatos ou pessoas, determinantes acabam por afetar a realidade criando então novas conexões. “Gadda se entrega todo a cada página que escreve, dando vazão às suas angústias e obsessões” (p. 122). Como a técnica se transforma em uma neurose, o escritor muitas vezes deixa livros inacabados, obras incompletas ou fragmentárias e isso não lhe tira o mérito, pois é possível encontrar em suas obras uma composição acabada. Semelhante a multiplicidade da literatura, existem inúmeras afinidades com as formas de comunicação utilizadas nas redes virtuais. É um fenômeno interativo, mas que tem como principal característica a multiplicidade das conexões trabalhadas pelo próprio


usuário. Ao observar alternativas, ele faz escolhas e constrói conhecimento. São infinitas as possibilidades e, por isso, é que se faz um mapa personalizado na ação comunicativa.

Esse conhecimento das coisas enquanto relações infinitas, passadas e futuras, reais ou possíveis, que para elas convergem, exige que tudo seja exatamente denominado, descrito e localizado no tempo e no espaço. Isso ocorre mediante a exploração do potencial semântico das palavras, de toda variedade de formas verbais e sintáticas, com suas conotações e coloridos e efeitos o mais das vezes cômicos que seu relacionamento comporta. (p. 123). A riqueza da língua é multiplicada por inúmeros sentidos, idéias criadas, retocadas como algo com o qual temos o domínio absoluto em construir alterando também as perspectivas. Antes mesmo que a ciência tivesse reconhecido oficialmente o princípio de que o observador intervém para modificar, de alguma forma o fenômeno observado, Gadda sabia que “conhecer é inserir algo no real, é, portanto, deformar o real” (GADDA apud CALVINO, p.123). Toda forma de representação é, portanto, uma construção e (des)construção do real. Envolver-se nesse processo é submeter-se também à alterações. Essas mudanças geram tensão que ora apontam para a exatidão racional, ora divagam na natureza humana, como se as soluções não tivessem um ponto de equilíbrio, dirigindo-se a um extremo e percebendo-se frustradas correm rapidamente a outro onde também serão imprecisas. Nas múltiplas passagens de um extremo a


outro saberão encontrar um ponto intermediário que seja também total e conciliador. O conhecimento, para Musil, é a consciência do conflito entre duas polaridades contrapostas: uma que denomina de exatidão, lógica matemática, espírito puro, ou mesmo a mentalidade militar e outra que chama de alma, irracionalidade, humanidade e caos (apud. CALVINO, 2000, p. 125). Sob essa perspectiva, CALVINO contrapõe o estilo de dois escritores para concluir que a multiplicidade refere-se ao que é infinito, o que torna toda idéia uma forma inacabada que oscila entre quem se envolve na rede de relações ou aqueles que “dão impressão de sempre compreender tudo na multiplicidade dos códigos e dos níveis sem nunca se deixar envolver” (p. 125). A tecnologia também é resultado da multiplicidade das escolhas, comunicando o mais rápido possível o maior número de idéias, uma antiga ambição de representar a multiplicidade das relações em ato e potencialidade (p.127). No momento em que a ciência desconfia das explicações gerais e das soluções que não sejam setoriais e especialísticas, o grande desafio para a literatura é o de saber tecer em conjunto os diversos saberes e os diversos códigos numa visão pluralística e multifacetada do mundo. (p. 127). A própria ciência especializada não se contenta mais em responder de forma restrita suas hipóteses, o que faz com que as disciplinas adquiram novos contornos mesclando-se umas às outras.


Cada ponto de vista objetivado, concretizado, levanta uma certeza e cria contradições. Mas, para os céticos, a ciência é “metódica, prudente, humana, tem horror aos dogmáticos, aos metafísicos, aos filósofos” (p. 130) Não se trata de optar entre dois extremos, pois conhecimento é multiplicidade e se desenrola na medida em que o homem o fustiga. Os grandes romances do séc. XX, aponta o escritor, caracterizam-se como obras enciclopédicas, só que “abertas”, adjetivo que

certamente

contradiz

o

substantivo

enciclopédia,

etimologicamente nascido da pretensão de exaurir o conhecimento do mundo, num círculo. A atualidade não se contenta com um círculo fechado de idéias, não é mais um livro fechado, concluso: “hoje em dia não é mais pensável uma totalidade que não seja potencial, conjetural, multíplice” (p. 131). Há de se considerar a importância de obras integradoras, estáveis, unitárias, como representativas de sua própria identidade. Agora, no entanto, o que conta não é a harmonia, mas a força que se desprende da obra, “a pluralidade das linguagens como garantia de uma verdade que não seja parcial” (p.131). Mas não é sob esse ponto de vista que o multiplicar de idéias é visualizado. Para CALVINO, existem várias maneiras de alcançar multiplicidade na literatura: 

há o texto unitário que se desenvolve como o discurso de uma única vez, mas que se revela interpretável em vários níveis;

há o texto multíplice, que substitui a unicidade de um eu pensante pela multiplicidade de sujeitos, um modelo polifônico;


há a obra que, no anseio de conter todo o possível, não consegue dar a si mesma uma forma, nem desenhar seus contornos (permanecendo inconclusa);

há a obra que corresponde em literatura ao que em filosofia é o pensamento não sistêmico, que procede por aforismos (p. 132). Entre os valores que gostaria fossem transferidos para o próximo milênio está principalmente este: o de uma literatura que tome para si o gosto da ordem intelectual e da exatidão, a inteligência da poesia juntamente com a da ciência e da filosofia. (p. 133). Exatidão de imaginação e de linguagem, construindo obras que correspondem à rigorosa geometria do cristal. (p. 133). A densidade de concentração se reproduz em cada parte separada. Direi, no entanto, que hoje a regra da escrita breve é confirmada até pelos romances longos, que apresentam

uma

estrutura

acumulativa,

modular,

combinatória. (p.134). A multiplicidade tem a lógica do hipertexto porque vagueia entre conceitos para dar sentido ao anseio do “hiper-leitor”, e é sob formas simples de representação, pequenos módulos informativos, que vai se formando um novo conteúdo. Cada escrita breve exige uma resposta, uma decisão determinante e única. O projeto em construção


terá sentido único e mesmo inacabado dará vazão a uma necessidade de informação. Há, por conta disso; uma sistematização de interesses específicos, quase personalizados. Não há construção em um jogo difuso de idéias, pois mesmo na poesia encontramos regras e uma lógica própria “mas o milagre é que essa poética que se poderia dizer artificiosa e mecânica dá como resultado uma liberdade e uma riqueza inventiva inesgotáveis” (p. 136). A necessidade de um método para cristalizar as idéias é formadora de multiplicidade, já que cada um poderá construir seu próprio método de avaliar o que tiver disponível; o conhecimento construído será “possuído”, uma forma de dominação por competência. Para CALVINO, a pior praga existente na escrita de hoje é a generalidade. Apesar de viajar em muitas informações, muitas vezes de natureza genérica, ainda que ligadas a temas específicos, o indivíduo não poderá, por mais que queira, fugir do peso da própria construção, pois a liberdade “narrativa” estimula o “engenheiro do conhecimento” a adquirir novos materiais. A inspiração que brota na liberdade das “múltiplas escolhas” no hipertexto não pode ser cega, movida por impulsos, porque assim tornará o usuário um escravo do “não-dizer”. “O clássico que escreve sua tragédia observando certo número de regras que conhece é mais livre que o poeta que escreve o que lhe passa pela cabeça e é escravo de outras regras que ignora” (QUENEAU apud CALVINO, 2000, p.137). Quem nos dera fosse possível uma obra concebida fora do “self”, uma obra que nos permitisse sair da perspectiva limitada do eu individual, não só para entrar em outros e


seus semelhantes ao nosso, mas para fazer falar o que não tem palavra, o pássaro que pousa no beiral, a árvore na primavera e a árvore no outono, a pedra, o cimento, o plástico... (p. 138). Multiplicidade é uma apologia à poesia da grande rede que não afasta do autor a obra construída de mosaicos, ao contrário, revela na diversidade da obra, um inventário pessoal e universal. Todo homem é uma biblioteca, uma amostragem de estilos, ode tudo pode ser remexido e reordenado (p.138).

6 – Consistência Calvino não completou o trabalho sobre consistência, talvez porque esta característica sintetize a aplicação de todas as outras e seja a orientadora das ações e procedimentos. Certamente autores mais críticos contestariam a ultima empreitada do autor (gravura em: http://www.cce.ufsc.br/~neitzel/literatura/calvino.html.


Compreende-se consistência com uma arquitetura que considera todas as características citadas anteriormente, utilizando os recursos que poderão concretizá-las. De forma aplicada, representa a tecnologia de comunicação em rede e os formatos que viabilizam uma ação comunicativa diferente. No quadro 1 os indicadores compilados da própria obra de Calvino. Caracterização das seis propostas de CALVINO

Leveza

Rapidez

Exatidão

Visibilidade

Multiplicidad


C

Representação

Continuidade estética e

Projeto acabado e

Imagens e texto

Ligações inte

O

dinâmica

histórica

coerente

complementares

externas (con

desconstrução

N S

Possibilidade de

Continuidade

Facilidade de

Hipertexto conceitual e

I

múltiplas escolhas

conceitual

localização

de autoria

Estrutura mod

S T

Interação personalizada Concisão e clareza

Uso de Hipertexto* Hipermídia conceitual e e Hiperlinks*

E N

sentido)

Emblematismo

C

de autoria

Densidade na primeira

(múltiplas

Conheciment

página

escolhas)

de forma mul

*Obs: associando o

I Uso de Padrões

A

visível ao invisível

A produção da informação em uma sociedade global e virtual gera novas práticas de leitura e interação. Para Calvino as inovações causam conflitos no processo moderno de expansão da informação, uma “crise na linguagem convencional” mas não na comunicação de idéias, que devem ser ampliadas em um modelo comunicativo extensivo e conciliador. Segundo CALVINO, os autores e produtores de informação, historicamente isolados poderão, se quiserem, compartilhar sua produção desde o momento criador, fundador e mais particular, quando são senhores absolutos de suas idéias. Para isso, no entanto, terão que abrir mão da propriedade intelectual e da autoria, concebidos

combinatória

como

bens

privados.

Com

essa

perspectiva,

o


entrelaçamento de obras é inevitável e constrangedor principalmente no âmbito da comunicação científica, onde as vaidades superam a notoriedade dos trabalhos. Nesse aspecto alguns conceitos são limitadores como o de colégio invisível defendido por Crane. A

idéia

de

CALVINO

é

abrangente,

densa

e

extraordinariamente funcional. Sob a perspectiva da Ciência da Informação, é possível reconstruí-la examinando as modificações provocadas pela comunicação eletrônica no contexto das publicações científicas, com a reestruturação dos formatos dos documentos e das práticas de leitura. É sobre os produtores e editores das publicações, independentes de seus objetivos, que recai a responsabilidade de conservar a qualidade nos veículos de comunicação. As diretrizes podem estar na literatura que assume um caráter aglutinador das características fundamentais do texto e suas diversas formas de expressão, considerando a tecnologia e os arranjos que possam ocorrer. Os “valores literários” apontados por CALVINO estão situados numa perspectiva de mudança, onde apenas incertezas orientam vários campos do saber, entre eles, a Ciência da Informação, área de mediação entre os documentos e seus vários receptores.


Bibliografia consultada BUSH, Vannevar. As we may think: the growth of knowledge. Readings on Organization and Retrieval of Information. Atlantic Monthly, 176, n.1, julho, 1945, p. 101-108. Disponível em: http://www.theatlantic.com/unbound/flashbks/computer/bushf.ht m. Acesso em: dez. 2002. CALVINO, Ítalo. Seis propostas para o próximo milênio. Rio de Janeiro: Vozes, 2000.

FULLER, Steve. Postmodernism. In: Discourse Synthesis: studies in historical and contemporary social epistemology/ edited by Rymon G. McInnis. Westpoint (USA): Praeger Publi, 2001. p 286-298.




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