Poesia Breve / Lêdo Ivo

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Lêdo Ivo POESIA BREVE



A LÊDO IVO, EM SEUS OITENT’ANOS Antonio Carlos Secchin

Indagador obsessivo, Na memória mora um arquivo, Que se acende, imperativo, Toda vez que o texto é vivo. Num sopro superlativo, Faz do poema um vocativo, Convocando o ser esquivo Para o mundo substantivo, Inventado pelo crivo Da linguagem de Lêdo Ivo.



A SÍLABA O mundo inteiro cabe numa sílaba e nela me refugio para esperar a aurora. Aprendi que Isto é Aquilo. Não preciso aprender mais nada. Já sei o essencial. A noite guardou as chuvas de verão e agora amanhece. O dia é um voo de pássaro.


O DIA DOS HOMENS Viver é preciso. Não existe Inferno nem Paraíso. Apenas o chão. E uma persistente chuva de verão.


OS SUSPIROS DE UM DESTERRADO Batista, o primoroso poeta parnasiano, morava num apartamento minúsculo. Sonhando com palácios de ametista e coçando os testículos, suspirava, nostálgico, ao crepúsculo.


A METテ:ORA DA GRUTA Jamais uma metテ。fora テゥ coisa de somenos, diz o poeta, penetrando numa gruta de Vテェnus.



PRESSA JUSTIFICADA Os mortos vão depressa e a explicação é simples: todos os cemitérios devem fechar às cinco.


A MORTE DE UM ESTILISTA Sua prosa era lapidar e a morte o surpreendeu quando estava castigando o estilo. Na missa de corpo presente, no recinto acadĂŞmico foi comparado a Camilo. E seus pares derramaram lĂĄgrimas de crocodilo.


A SUPREMACIA DA RAZÃO “Estou coberta de razão”, exclama ao marido indignado a bela dama surpreendida em flagrante de adultério. E estava nua na cama.


OS DOIS TEOLÓGOS “Se tudo é permitido, não há liberdade”, ponderava o poeta na mesa do abade.



O ALCOÓLATRA “Bebo porque Deus não existe”, dizia o alcoólatra, mirando o mundo com seus olhos tristes.


RESPOSTA NA PONTA DA LÍNGUA “Deus dá nozes a quem não tem dentes”, suspira o peralvilho vendo o ancião casado no papel com uma moça em flor. Mas do alto de sua dentadura, o outro, se o ouvisse, lhe diria, em igual língua ou idioma: “Quem tem boca vai a Roma”.


A REPRESร LIA Certo prosador, um dia, cometeu um anacoluto. Em represรกlia, os gramรกticos disseram que ele era puto.


PESCARIA Puta! Puta! Puta! A palavra absoluta salta da linguagem como uma truta.



PARADA DE テ年IBUS Nas filas dos テエnibus, quando anoitece, e o nada [recolhe ao seu arquivo mais um dia jogado fora, um cigarro entre os dedos テゥ tudo o que resta da iracunda piedade que o homem tem por si [mesmo.


AS PISTAS Onde encontrar Deus? Em qualquer lugar. Até na água leve da usina nuclear.


LAPA Esta noite o amor do mundo mira-se no espelho da puta desdentada vestida de vermelho.


LAMENTAÇÕES DE CAMÕES Fui amor, fui paixão e celebrei o mundo, o vento e as ilhas infinitas. Mas hoje, neste quarto centenário, me assombra o meu destino. Linguistas e filósofos fizeram de mim uma apostila.



QUEIXA DO EDITOR DE POESIA “Poesia não se vende, ninguém a entende!” − suspira o editor. Poesia! Poesia! Ninguém te entende. És como a morte e o amor.


A TRAVESSIA Quem ia na balsa que, naquela noite, atravessou o rio? Vestida de preto, era a pr贸pria Morte morta de frio.


A CEIA DO CANIBAL Deito-me e te como, pão da noite, última refeição do homem.


TEMPORAL NOTURNO A chuva desta noite pousa no meu sonho. Pรกssaro molhado.



OHIO O céu de Ohio é azul e branco. A neve de Ohio é azul e branca. O sol apaga as estrelas caídas sobre [ os dormentes da ferrovia por onde passam trens cheios de leite e milho. Pousado no castanheiro, um pássaro azul não segrega o seu canto.


ESTAÇÃO DE TRATAMENTO A gaivota sobrevoa o semáforo. Nenhum rumor da água. Nenhum frêmito de alga. Apenas os esgotos lançam no leve oceano o sigilo da vida.


O LAGO HABITADO Na água trêmula freme a pálida anêmona.



NUM BORDEL O mundo ĂŠ rumor e exagero. A puta que geme na cama diz que te ama.


A DURAÇÃO DO AMOR Deitada sobre mim és mais leve que a neve. E um toque de clarim torna a tarde mais breve.


O ALMOÇO SOBRE A RELVA O dia escondido na moita. A paisagem inclinada: o monte de Vênus.



A ORIGEM DO SAL Ao sul, o mar surge entre as angras. A noite cai. E os cata-ventos v達o convertendo toda a paisagem em sal, em sal.


NOITE DE DOMINGO Acabou-se a festa. Resta, no silĂŞncio, o rumor da floresta.


A INSPIRAÇÃO Não creio na inspiração, essa bruxa radiosa que sopra a canção e te faz alegre ou triste. Mas que ela existe, existe!


RI MELHOR QUEM RI POR ร LTIMO Deus? deuses? Com seus lรกbios de poeira os mortos riem a morte inteira.



PERDAS E DANOS1

Antonio Carlos Secchin

Os “terraços do mar” constituem a primeira das três partes de Curral de peixe2. Nela, 41 textos revelam a presença ostensiva de um poeta semeado de descrenças (“Toda vida é treva/ por mais que ilumine/ a luz de cem velas”) e de incertezas (“Não sei quem sou. Não sei quem bate à porta/ usando a minha mão”). A dúvida metódica diante dos desconcertos do mundo parece compor o fio unificador dos poemas. Circulando entre o solo natal, capturando em sua trivial miudeza, e o espaço cósmico, espelho ampliado da neblina humana, Lêdo Ivo vislumbra, em ambas as dimensões, signos similares de corrosão e perda. Todavia, o que tal opção poderia conter 1. Publicado originalmente no Caderno Ideias do Jornal do Brasil, em 07/10/95 2. IVO, Ledo. Curral de peixe. Rio de Janeiro: Topbooks, 1995.


de patético acaba por atenuar-se através da ironia, presente tanto na visada alegórica de “O que eu disse à craca” quanto na concepção de uma História regida pela paródia. Um desejo de História do nada, rasura plena sem vestígios, emana dos versos de “Queimada”. Queime tudo o que puder: as cartas de amor as contas telefônicas o rol de roupa suja ........................................................ Não deixe aos herdeiros esfaimados nenhuma herança de papel. O segundo bloco, “Dia e noite”, é integrado por 42 sonetos, de variadíssima fatura no que concerne ao ritmo, à métrica, à rima, e obsessivamente preenchidos pelos pares claro/escuro, manhã/tarde, noite/dia. Em algumas peças há uma curiosa convivência entre a medida “nobre” do


alexandrino e a “vulgaridade” da matéria nele contida: “Era um boteco imundo perto da Central. /(...) Entre putas escrotas e burros-sem-rabo/ eu escutava a chuva cair nos telhados”. A orfandade literal, expressa na parte 1, é agora ampliada para uma espécie de orfandade de si próprio, por meio da subtração de balizas de reconhecimento (“Para onde quer que eu vá levo sempre comigo/ um pronome incompleto. Como pesa esse embrulho!”). Nesse desnorteio radical, o poeta registra a perda do contorno legível do mundo (“O sol a pino e a sombra se equivalem”) e mescla no mesmo passo as caracterizações da pureza e da sordidez: “A noite triunfante enxota o dia./ Troca a luz pela sombra, e só nos deixa/ uma pomba arrulhando na sarjeta”. Já em “Salteador”, derradeiro segmento de Curral de peixe, a deriva epigramática se manifesta na quase totalidade dos 35 poemas. Verdadeiros exercícios de escárnio e mal-dizer, os textos fustigam a cupidez, a inveja, a gula e o adultério, dentre outras marcas humanas,


brandindo ainda, em “Um desafio litorâneo”, as armas do cinismo “politicamente incorreto”: Uma baleia ferida na praia de Saquarema A terra já problemática enfrenta mais um problema Como salvá-la da morte ou converte-la em poema? Nada disso, no entanto, se compara à mordacidade (elevada até o sarcasmo) dos versos dedicados à confraria literária. Leiam-se, a esse (des)respeito, “A morte de um estilista”: no recinto acadêmico foi comparado a Camilo. E seus pares derramaram


lágrimas de crocodilo. Ou ainda “Um inimigo supérfluo”: Era um poeta Muito conciso ................................................... Só e sumário agora o esconde o excesso póstumo de um epitáfio. No último poema do livro – “O poeta e os críticos” – Lêdo Ivo ironiza a flutuação dos traços com que os exegetas procuram classificar (isto é, reduzir) sua obra: poesia da claridade, da escuridão, do amor, da infância, da morte, do tempo, do laconismo, do excesso. Imerso em meio a tantas polarizações, indaga: “Onde começo e termino?”. Simulando não saber o que de si existe naquilo que de


alheio lhe é atribuído, o poeta, afinal, parece dialogar com o também crítico e memorialista Lêdo Ivo, que, em suas Confissões (1979), anotara: “Desconfiai dos que tudo aceitam, explicam e compreendem. A incompreensão é um ingrediente da inteligência”.




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