Antonio Miranda
I O ruído fervilhoso de mil celulares como bocas cariadas blasfemando orelhas aguçadas, sirenes soando chamadas alucinadas no âmago da noite interrompida, aquelas vozes todas, aqueles anúncios espalhafatosos imagens tortuosas nos painéis eletrônicos, carros passando distraídos com senhores circunspectos, calados sinos de igrejas invisíveis, queixosos parafusos obstinados, pregos, vozes indignadas anunciando o fim dos tempos.
Crianças com armas na mão. Abandonados por Deus! Dilacerados, pensamentos errantes, incredulidades. Terroristas tramam sequestros de celebridades, para o regozijo do homem da mídia enquanto traficantes violam containers e médicos amputam sepultos padres rezam missas solenes leem homilias dominicais saem bugigangas chinesas de caixas voltam a crucificar Jesus, serram-no ao meio, exibido na TV, para servir de exemplo e admiração.
Iras, arrependimentos, imprecaçþes. Assaltos, rezas, sobressaltos ruas desertas, ferrolhos, grades trancas, alarmes, circuitos monitorados, escutas telefônicas.
II Aquela bala perdida tinha um sentido; aqueles mortos calcinados riam de nós policiais encapuzados sitiam quarteirões abandonados, desovam cadáveres torturam, atiram em qualquer direção. Parece que é um vídeo-clip ou um game coisa pelo estilo. Ninguém sabe ao certo.
O ministro da justiça elabora plano para a polícia federal – se possível – atingir o nível das organizações criminosas e pede outras providências: armas tão poderosas quanto as que ostentam os contrabandistas.
Plano mirabolante mas verossĂmil Hiper-realismo alucinante: fantasia sangrenta, fĂştil, absurda, violenta bela e terrĂvel como no cinema.
Dá-se então o toque de recolher. Um bandido é morto outro é empossado. Fecha-se o comércio metralha-se um posto policial abre-se um túnel mas o preso sai pela porta da frente.
III Oh n谩usea, oh nojo! Sangue mais que sangue v么mito mais que v么mito. O senhor delegado reclama a sua parte. Fezes mais que fezes! O senhor deputado rende a sua homenagem.
As covas revelam os seus segredos os lixos desbordam e as fossas abertas mostram os seus mortos putrefactos. O senhor vigário o líder comunitário o dirigente sindical. As nuvens seguem indiferentes as chuvas caem ácidas os valões transbordam águas estagnadas os pântanos poluídos pestilentes.
Anjos raivosos estupram monjas e drag-queens eufóricos comemoram o carnaval fora de época. Reivindicam-se terras públicas enquanto deputados retóricos aumentam os impostos e os próprios salários. Estandartes exibem São Fernando de camiseta e bermuda na procissão dos deserdados. Por isso é feriado, dia santo.
IV Há luzes e gritos e algazarra na cela dos condenados. Chegam pizzas on delivery Maconha on demand mulheres, mulheres, mulheres a escória em festa celebra. Tem a lei vigente mas que não cola tem a lei do cão que predomina leis que derrogam leis e leis que se auto-defenestram.
São Fernando Beira-Mar tambÊm dita suas leis, com força de lei. O bandido obedece o comerciante obedece o policial obedece parece que o ministro quer usar o modelo numa medida-provisória. O ministro quer saber se a lei emana do povo ou de alguma divindade.
V Desce do céu, vem da selva, sobe o morro uma saraivada de balas, fogos de artifício anuncia sua chegada. Urubus velando vítimas anônimas cadáveres insepultos moleques aprendizes correm desenfreados olheiros meninas de seios rijos celebram desejos no strip do baile funk (quadris exultantes, febris).
Que coreografia! Como é belo o pavor dos inimigos! São Fernando aparece entre batedores festivos rajadas de metralhadoras barba de guerrilheiro, ícone vivo, poderoso sem limites desafiando a morte, justiceiro, vingador. Viril. Preso, é maior ainda o seu poder. Celas sem paredes celulares, advogados além das grades, dos muros, das leis.
Onipotente. Um cérebro público, exposto, radiante um gênio além do bem e do mal. Um sorriso de triunfo, de escárnio. Fé inútil na justiça religiões subservientes juízes de aluguel. Preso, está em toda parte. A Organização é o paradigma do novo ministro. São Fernando abre caminhos a fogo sequestra, mata, vinga enquanto arrecada e distribui riquezas. Um herói, um santo um ídolo. Os jornalistas elegeram-no os policiais o protegem os políticos servem-no. Há um São Fernando em cada igreja Um Fernandinho em cada beco.
Na mais remota prisão de segurança máxima está um sósia, um clone. O ministro tem-no como assessor especial quer equiparar a polícia à organização dele equiparar seus efetivos (?!) aos dele. A isso chamamos joint-venture, parceria.
VI É a gosma ulcerante, a saliva viscosa é o escarro ácido, o catarro curtido. O ministro compra novas viaturas e há suspeita de super-faturamento. É o caminho viciado, a norma paralisante é a lei invocada para deter a própria lei. O ministro forma um grupo de trabalho para discutir matéria já decidida.
É o subterfúgio, o sub-reptício, o simulacro, é a procrastinação, o ato falho, arrepio da lei. Comissões de inquérito, auditorias surdas e mudas, grupos-tarefa, consultorias. O ministro pode ser substituído está com prazo de validade vencido.
VII O ministro tem uma cauda de pavão, o santo tem um falo grandiloquente. Na audiência pública o ministro manifestou indignação chorou sobre os corpos de policiais mortos beijou as viúvas com certo asco e enfado e declarou medidas para quer dizer, garantiu que depois de asseverar de ouvir os de citar alíneas e verbetes de dicionário. Garantiu uma trégua com os bandidos para os dias de carnaval.
A greve do sistema judiciário não afeta o muito menos o a menos que. Falta verba mas há vontade política. Espírito de corpo espírito de quê? O ministro posou nu para o noticiário e garantiu transparência nas investigações. No mais, apenas confabulações.
Ele continua ministro e há estatísticas que provam que os sequestros diminuíram mas aumentaram a produtividade. O sistema bancário saiu fortalecido incorporando seguradoras e sistemas de segurança. Fernando está desaparecido do noticiário está na masmorra, ou está em Miami está dirigindo seus negócios na favela na selva colombiana, pagando propinas coletando contribuições para as eleições.
(Um juiz escondeu as fitas daquele inquérito e ameaça os figurões do governo). Fernando perdeu a fé na democracia. Eu perdi o respeito pela poesia.
SAN FERNANDO BEIRA-MAR: RESENHA CRÍTICA Por RONALDO CAGIANO*
Obra de cunho crítico, satírico e picaresco, San Fernando Beira-mar, de Antonio Miranda, é a anti-celebração da insegurança que avilta a sociedade brasileira e que tem na figura de Luiz Fernando da Costa (vulgo "Fernandinho Beira-mar", um dos maiores traficantes de armas da América Latina), um de seus ícones. Épico às avessas, o poema tematiza a epopeia dos criminosos invencíveis, que amedrontam a sociedade brasileira, desafiam as autoridades e instauram o império do medo, construindo a grande tragédia humana e urbana das sociedades contemporâneas, fruto das misérias e injustiças sociais que vitimizam não apenas o povo brasileiro, mas os países periféricos, submissos ao capitalismo espoliativo. Assim como a máfia italiana, o crime organizado se instalou de forma avassaladora, colocando a nu a fragilidade do sistema legal, judiciário e prisional, criando um poder paralelo ao Estado e superando-o com vantagem. Com ousadia, Antonio Miranda disseca, com dilacerante poesia (onde não há espaço para o lirismo poético ou as expansões oníricas do espírito), esse clima de tensão, essa atmosfera de medo e essa geografia de violência que sustentam os obituários e tanto envergonham aos três poderes da nação. Na melhor tradição de poetas que refletiram sobre as mazelas do poder, como Gregório de Mattos, o nosso "Boca do Inferno", Miranda dispara sua metralhadora verbal para fazer um libelo contra uma realidade pungente e desafiadora. Nesse Brasil em que o bandido está armado, a polícia desarmada e a população alarmada, os versos de Miranda ajudam-nos a compreender o status quo político, econômico e social e refletir sobre o grande abismo que nos cerca, pois toca nas feridas, nos dá um soco no estômago, provoca indignação e não nos deixa indiferentes à banalidade da vida e da morte a que tantos se acostumaram.
*ensaísta, poeta, antologista. Brasília, agosto 2006