TRIBUTO AO POETA 2008

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Tributo ao Poeta



Tributo ao Poeta Biblioteca Nacional de Brasília Organização

Brasília, 2008



Tributo ao Poeta Autores Homenageados Anderson Braga Horta Carlos Vogt Cassiano Nunes Fernando Mendes Vianna João Cabral de Melo Neto Joaquim Cardozo José Godoy Garcia José Santiago Naud Marly de Oliveira


Governo do Distrito Federal José Roberto Arruda Secretário de Estado de Cultura José Silvestre Gorgulho Conjunto Cultural da República Biblioteca Nacional de Brasília Antônio Miranda

Organizadora da Obra Maria das Graças Pimentel Salomão Sousa Projeto gráfico Wagner Alves Revisão João Carlos Taveira

Ficha Catalográfica B582b Tributo ao Poeta / organizador, Biblioteca Nacional de Brasília ; autores, Anderson Braga Horta … [et al.] ; apresentação, José Roberto Arruda, Silvestre Gorgulho ; prefácio, Antonio Miranda. – Brasília : Biblioteca Nacional de Brasília, 2008. 224 p. : 17 x 24 cm. Coletânea de ensaios e poesias apresentadas nas edições do programa Tributo ao Poeta da Biblioteca Nacional de Brasília – BNB. 1. Literatura brasileira. 2. Poesia brasileira. I.Biblioteca Nacional de Brasília (Brasil) (BNB). II. Tributo ao Poeta. III. Arruda, José Roberto. IV. Miranda, Antonio. V. Título. CDU 82-1 ISBN 978857062778


Tributo ao Poeta Conferencistas Antonio Miranda Anderson Braga Horta João Carlos Taveira José Jeronymo Rivera Lauro Moreira Maria de Jesús Evangelista (Majú) Marisa Lajolo Salomão Sousa Sylvia Cyntrão



Sumário Anderson Braga Horta

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por José Jeronymo Rivera

Carlos Vogt

51 por Marisa Lajolo

Cassiano Nunes

64

por Maria de Jesús Evangelista (Majú)

Fernando Mendes Vianna

83

por Anderson Braga Horta

João Cabral de Melo Neto

108

por Antonio Miranda

Joaquim Cardozo

151

por Sylvia Cyntrão

José Godoy Garcia

169

por Salomão Sousa

José Santiago Naud

189

por João Carlos Taveira

Marly de Oliveira por Lauro Moreira

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Apresentação José Roberto Arruda Governador do Distrito Federal A cidadania por entre livros


É com orgulho que anuncio o início efetivo das atividades da Biblioteca Nacional de Brasília, entregando à população da Capital um prédio moderno, com instalações confortáveis e tecnologia da informação de última geração. A Biblioteca Nacional já estava prevista no projeto original de Lucio Costa, como parte do Conjunto Cultural da República. Projetada pelo arquiteto Oscar Niemeyer, sua construção foi possível por meio de uma parceira entre os governos Federal e do DF. Sua inauguração ocorreu no final de 2006. No entanto, somente a partir de 2007, com a criação de uma Comissão Especial criada pelo Governo do Distrito Federal – com representantes da Secretaria de Cultura do DF, Universidade de Brasília e ministérios da Cultura, Educação e da Ciência e Tecnologia – foi formulada uma proposta de política efetiva para a instituição. Sua implantação obedeceu às exigências estabelecidas por esse grupo de trabalho – entre elas áreas de acervo, salões de leitura e tratamento técnico das coleções, além de programas de alfabetização e inclusão digital, inclusive para portadores de deficiências. Brasília passa a contar agora com espaços diários para leitura, pesquisa e recreação. A partir deste momento, começamos a cumprir a missão de dotar a cidade de um centro cultural e de aprendizagem. E a I Bienal Internacional de Poesia de Brasília faz parte deste esforço. É um chamado à criatividade de nossos autores, por meio de seminários, oficinas, exposições, projeções de filmes e rodas de leituras – das expressões mais populares às que envolvam as mais diversas formas de tecnologia. Esta primeira grande realização da Biblioteca Nacional exemplifica sua proposta de conquistar leitores, em estreita cooperação com entidades públicas e privadas, organizações sociais e não-governamentais. Quero ainda destacar o lançamento de um volume sobre os poetas aqui homenageados – em 2007 e 2008 – em eventos realizados ainda em meio às obras. Destaque para o poeta Joaquim Cardoso, que como engenheiro participou da construção da nova capital. Nossa cidade, de afortunada história, abre as portas de sua principal Biblioteca e descerra os caminhos das novas tecnologias da informação.


Silvestre Gorgulho Secretรกrio de Cultura do Distrito Federal Passos de um novo tempo


“São tristes as coisas consideradas sem ênfase”, sentenciou Carlos Drummond de Andrade. E foi com muita ênfase e poesia que o governo Arruda resolveu ocupar, na confluência entre as estações centrais do metrô e da rodoviária do Plano Piloto, a Biblioteca Nacional de Brasília. A BNB cumpre, a partir de agora, sua vocação maior de unir pessoas, democratizar a informação e formar novos leitores. Brasília passa a usufruir – com a implementação efetiva do Conjunto Cultural da República – de um espaço nobre e adequado para as atividades de arte, ciência e cultura. Ao lado do Museu Nacional – consagrado como ponto de visitação dos mais importantes da região Centro-Oeste – a instalação definitiva da Biblioteca Nacional consolida o Setor Cultural Sul, um palco adequado para o encontro do Brasil com sua palavra, sua imagem, seus valores, seus ícones, seus acervos e sua capacidade criativa. A partir daí, formam-se acervos, promovem-se mostras nacionais e internacionais, define-se um abrigo seguro para a criação e o conhecimento. No ano em que Brasília foi escolhida como Capital Americana da Cultura 2008 e que o governo de José Roberto Arruda sanciona sua Lei da Cultura do Distrito Federal – assegurando recursos orçamentários para o fomento e a manutenção das manifestações e instituições culturais do DF – convocamos a população da capital a ocupar nossa Biblioteca Nacional de forma definitiva. E como que num brinde à sucessão de boas novas, a I Bienal Internacional de Poesia aproxima os extremos da tecnologia e da criatividade poética, transformando-os em símbolos de um processo civilizatório renovador a partir do Planalto Central. Como que anfitriões de um novo tempo, as novas tecnologias da informação aqui instaladas, os acervos físicos e digitais de livros e toda a gama de conhecimento aqui reunida fazem Brasília – uma cidade de inspiração modernista – romper a utopia da pós-modernidade e ensaiar os primeiros passos da hiper-modernidade que constitui o cenário do Século XXI. O livro Tributo ao Poeta é a obra inaugural das edições da Biblioteca Nacional de Brasília e rende homenagens aos autores que ajudaram a construir nossa melhor literatura.


Novas homenagens virão, na forma de títulos nas áreas de filosofia, arquitetura, artes plásticas. Enfim, de todas as expressões culturais da Humanidade, como exige a função maior de uma instituição que a isso se propõe. O fundamental é que todas as ações e homenagens levem em conta a alegria, a espontaneidade, a arte da poesia e de fazer amigos. Com ênfase. Muita ênfase!

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Introdução

A Biblioteca Nacional de Brasília (BNB) é uma aspiração que remonta à própria concepção da cidade, no plano original de Lucio Costa. Chegou a ser criada oficialmente por determinação do então Primeiro Ministro Tancredo Neves, no início dos anos 60 do século passado, mas as turbulências políticas do período republicano adiaram a sua instalação. Chegou a ter projeto arquitetônico do mestre Oscar Niemeyer no final dos anos 80, mas a sua efetiva construção só aconteceu no início do presente século. Mais de quarenta anos depois de idealizada. Um enorme vazio em plena Esplanada dos Ministérios, no Setor Cultural, aguardando decisão política para sua edificação. Toda a área do Conjunto Cultural da República ficou por último, por razões que a própria razão desconhece… A inauguração do prédio, em 2006, foi anunciada como sendo a efetiva abertura da BNB, mesmo sem móveis, equipamentos, acervo e pessoal para atender a população. Exigindo um plano para sua ocupação, o que demanda tempo e investimentos. Ninguém tira o mérito da obra, que a população esperou por tanto tempo. Se durante a construção do prédio tivessem tomado as providências para o acervamento, seu processamento técnico e treinamento de pessoal especializado, – o que requer o mesmo tempo da construção—, a abertura teria sido feita de forma definitiva. Uma biblioteca construída e planejada no século 21 tem que considerar cenários diferentes daqueles que orientaram as bibliotecas nacionais do passado. No caso de Brasília, com mais razão, porque o país já tem

Introdução

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a Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, agora uma Fundação. Esta tem o privilégio da Lei do Depósito Legal que obriga os editores a enviarem dois exemplares de suas publicações para a BN, além do acervo histórico e precioso da Coleção Real, vindo na época da fuga do monarca para o Brasil, considerado nacional depois da Proclamação da Independência. Cabe à Biblioteca Nacional de Brasília uma outra política de acervos, o que foi apresentado à Comissão Especial do Conjunto Cultural da República e deverá ser discutida e aperfeiçoada durante audiência pública. A capacidade da BNB está limitada a 250 mil volumes, o que a leva a optar por bibliotecas digitais, na tentativa de criar um repertório vasto para atender usuários locais e de outras latitudes. Deverá concentrar-se em coleções que espelhem a literatura científica e cultural sobre o Brasil, além da produção de Brazilianistas e brasileiros que vivem em outros países ou que foram traduzidos a outras línguas, material menos representado na BN do Rio de Janeiro, na intenção da complementariedade de acervos. Cabe ressaltar que a BNB se constitui em centro de inclusão digital, com uma plataforma tecnológica avançada para garantir acessibilidade ilimitada a seus estoques informacionais e para orientar leitores e pesquisadores para outros acervos correlatos em bibliotecas brasileiras e estrangeiras. Para não ficar apenas em acervos e tecnologias da informação, a BNB persegue um amplo projeto de inserção cultural na cidade, projetando Brasília em cenário internacional. Daí a proposta de uma Bienal Internacional de Poesia (I BIP) na época da inauguração de seus serviços ao público. E se antecipou, ainda nas instalações precárias, com um ciclo de Tributos ao Poeta, um por mês, para atrair intelectuais, artistas, poetas, escritores e o público em geral. Nove tributos foram programados em 2007 e 2008, agora reunidos no presente volume, dedicados aos poetas: 1.

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Fernando Mendes Vianna, carioca radicado em Brasília desde os tempos pioneiros, que goza de um prestígio internacional inegável, com traduções de sua obra poética a outros idiomas. A homenagem póstuma, com a presença da família, ocorreu pouco tempo depois de sua morte, cujo texto foi encomendado ao também poeta Anderson Braga Horta. José Santiago Naud, gaúcho também pioneiro da cidade, e um dos fundadores dos cursos de literatura da Universidade de Brasília, com carreira internacional em centros de estudos brasileiros em diversos países hispano-americanos, é o segundo homenageado, com apresentação do poeta João Carlos Taveira. Anderson Braga Horta, mineiro de Carangola, que passou por diversas cidades antes de radicar-se definitivamente em Brasília; filho de poetas; prêmio Jabuti e um dos representantes mais significativos da poesia de Brasília foi apresentado por José Jeronymo Rivera, seu parceiro de tradução e amigo desde a juventude.

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Cassiano Nunes, o mestre de todos, figura querida e cortejada. À época do tributo estava hospitalizado e veio a falecer em seguida, para tristeza dos amigos e admiradores. Paulista, pesquisador da obra de Monteiro Lobato, teve o perfil elaborado pela Drª Maria de Jesús Evangelista (Majú), biógrafa do autor. Marly de Oliveira, poetisa e musa, reconhecida por poetas universais como Ungaretti, foi apresentada pelo Embaixador Lauro Moreira, nosso representante junto à Comunidade de Nações de Língua Portuguesa, em Portugal. Na ocasião, a família doou o acervo bibliográfico da autora para a Biblioteca Nacional de Brasília. João Cabral de Melo Neto, foi apresentado por Antonio Miranda, aproveitando um ensaio de sua autoria sobre a vertente metapoética do grande poeta pernambucano, tornado célebre pela encenação de sua obra Morte e Vida Severina e de uma produção poética muito pessoal já consagrada em termos internacionais. Joaquim Cardoso, poeta pernambucano e engenheiro (responsável pelos cálculos das edificações de Oscar Niemeyer no período JK), é outra figura de reconhecimento sem fronteiras, em análise competente da Drª Sylvia Cyntrão, do Departamento de Teoria Literária da Universidade de Brasília. José Godoy Garcia, o polêmico poeta goiano radicado em Brasília, falecido recentemente, mereceu uma homenagem do poeta Salomão Sousa, estudioso de sua obra engajada e crítica em questões políticas e culturais. Carlos Vogt, poeta paulista com notável trajetória acadêmica e administrativa (como reitor da Unicamp e diretor da Fapesp), poeta com obra vasta e conhecida, mereceu um estudo da Drª Marisa Lajolo, vinda especialmente de São Paulo, com o patrocínio da Fundação Conrado Wessel para apresentar o autor. A leitura dos poemas foi feita por atores e poetas locais: Angélica Torres, Antonio Miranda, Iris Soares, João Carlos Taveira, Julianny Mucury, Salomão Sousa e Cláucia Oliveira. Os tributos inauguraram o Auditório da Biblioteca Nacional de Brasília e plantaram uma tradição de atos culturais que logo deu lugar a uma diversidade de outras atividades por parte da própria Biblioteca e por entidades locais ligadas a diferentes esferas e segmentos sociais – mulheres, negros, direitos humanos, inclusão digital, literatura, ciência e arte em geral. O presente livro também planta a linha editorial da Biblioteca Nacional de Brasília, como primeira publicação da casa, com o auspicioso signo da poesia e no âmbito da I Bienal Internacional de Poesia de Brasília, outra instituição que se pretende plantar raízes na vida cultural da cidade e do país. Antonio Miranda Biblioteca Nacional de Brasília

Introdução

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Aragão Júnior

Organizador do Recital – Conferência

José Jeronymo Rivera, nascido no Rio de Janeiro é poeta e tradutor e está em Brasília desde 1961. Colaborou, entre outros, nos periódicos Literatura, de Brasília, Revista de Poesia e Crítica, de São Paulo, SP, Revista da Academia Brasiliense de Letras, Brasília, e Boletim da ANE, Brasília (diversos números). Participou das antologias Alma Gentil (Ed. Códice, Brasília, 1994) e Caliandra (André Quicé, Brasília, 1995). Publicou os livros Poesia Francesa: Pequena  Antologia Bilíngüe (Thesaurus, Brasília, 1998; 2ª ed., 2005); Cidades Tentaculares, de Émile Verhaeren (Thesaurus, Brasília, 1999); Poetas do Século de Ouro Espanhol (tradução, em colaboração, Embaixada da Espanha no Brasil/Thesaurus, Brasília, 2000); Rimas, de Gustavo Adolfo Bécquer (tradução, Emb. da Espanha/Thesaurus, Brasília, 2001); Poetas Portugueses y Brasileños: del Simbolismo al Modernismo (tradução, em colaboração, Instituto Camões/ Emb. de Portugal em Buenos Aires, 2002); Victor Hugo: Dois Séculos de Poesia (tradução, em colaboração, Thesaurus, Brasília, 2002); O Sátiro e Outros Poemas, de Victor Hugo  (tradução, em colaboração, Galo Branco,  Rio de Janeiro, 2002) e Gaspard de la Nuit, de Aloysius Bertrand (FAC, Secretaria de Cultura do DF/Thesaurus, 2003) e Antologia Pessoal de Rodolfo Alonso (tradução, em colaboração, Thesaurus, Brasília, 2003). Recebeu os prêmios Joaquim Norberto de Tradução – 2001, da União Brasileira de Escritores-RJ, por Poetas do Século de Ouro Espanhol, e Cecília Meireles de Tradução – 2002, também da UBE-RJ, por Rimas, de Gustavo Adolfo Bécquer.

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Perfil Humano e Poético de Anderson Braga Horta

Aragão Júnior

José Jeronymo Rivera

Honrado com o convite do ilustre Diretor da Biblioteca Nacional de Brasília, o escritor e amigo Antonio Miranda, para fazer a saudação ao Poeta Anderson Braga Horta na merecida homenagem que hoje lhe é prestada nesta Casa, deparei-me de início com dois aspectos da tarefa que me era confiada. Por um lado, o fato de ser a obra do homenageado bastante familiar aos interessados em literatura em nossa cidade e no País, graças à reconhecida qualidade de seus escritos, comprovada pelos inúmeros prêmios que lhe foram atribuídos ao longo de sua carreira de escritor; por outro, à circunstância de não poder escapar ao risco de, nesta apresentação, não poder deixar de repetir válidas apreciações de intelectuais de reconhecida competência – maior que a minha, modesto poeta menor e tradutor – sobre o trabalho desse dedicado cultor das belas letras que é o poeta, contista, crítico, ensaísta, algumas vezes teatrólogo e humanista sempre, Anderson Braga Horta. Acompanho o desenvolver da criatividade poética de nosso homenageado desde os tempos em que fomos colegas no saudoso Colégio Leopoldinense, nos primeiros anos da década de 1950, quando participamos com amigos, como nós escritores incipientes, do grêmio literário daquele educandário, e ainda realizamos vários programas na rádio local apresentando grandes poetas brasileiros de nossa afeição. E no pequeno jornal escolar a nós confiado – O Três de Junho – publicou Anderson alguns de seus primeiros trabalhos poéticos. É dessa época o belo – e, por que não dizer?, claramente romântico – Noturno, datado de Leopoldina, 1951, e até hoje inédito em livro, que tenho o prazer – talvez em primeira mão – de mostrar aos amigos:

Perfil Humano e Poético de Anderson Braga Horta 19


NOTURNO Vai-se esconder o Sol, à tarde, no horizonte. A noite faz surgir de uma insondável fonte as brancas florações de estrelas lá no céu. As trevas vêm cobrir a terra adormecida, e os vaga-lumes no ar –meteoros em corrida– piscam loucos, voando, em mágico escarcéu. Vê como a Lua espreita os ternos namorados! Olha como o luar escorre nos telhados e corre a mergulhar no lago dos teus olhos! Não ouves da palmeira o farfalhar queixoso? Silêncio tudo mais… solidão e repouso… e os astros a brilhar, quais eternos in-fólios, onde se lê o amor e se percebe a vida! Vem contemplar o céu, junto de mim, querida, na quietude da noite estranha e misteriosa. Não ouviste no bosque a brisa que passava, trazendo as mil canções que o mar lhe segredava? São murmúrios de amor… e a noite é tão formosa… Aconchega-te a mim. Deixa-me em teu regaço dormir, sob o luar… Nos teus braços me enlaço, mais macios, meu bem, que a mais sedosa alfombra!… Mergulho em teu olhar meus olhos ansiosos… Sussurra a brisa ainda uns gemidos saudosos… Teus traços, pouco a pouco, esvaem-se na sombra… Mas, não! já no horizonte o sol vai clareando! Somente, lá no azul, piscam de quando em quando alguns astros que vão sumindo lentamente… A madrugada surge, esplendorosa e bela, e as luzes da manhã, batendo na janela, a estrela do meu sonho ofuscam de repente!…

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Já residindo no Rio de Janeiro, onde completou o curso de direito, continuou Anderson a publicar seus poemas, alguns dos quais em revistas e jornais, vindo a receber prêmios como o Olavo Bilac, em 1964, da então Guanabara, merecendo no Parecer de Carlos Drummond de Andrade, que integrava o júri ao lado de Manuel Bandeira e outros, as seguintes palavras sobre Altiplano e Outros Poemas: “Quer no longo poema sobre a fundação de Brasília, que abre o livro, quer no conjunto do volume, registra-se uma intensidade de expressão que afirma a personalidade do poeta … É uma poesia enérgica, de poderosa carga emocional, e trabalhada com bastante apuro técnico.” Enquanto Joanyr de Oliveira, em março de 1965, escrevia no Correio Braziliense que “Anderson Braga Horta construiu, com ‘Altiplano’, o magno poema da Capital da Esperança”. Na Apresentação dessa primeira obra editada por Anderson, já em Brasília, em 1971, dizia o saudoso Almeida Fischer: “Altiplano e Outros Poemas assinala a estréia em livro de um dos melhores poetas jovens do Brasil, ganhador de vários prêmios literários de âmbito nacional e com trabalhos incluídos em várias antologias …. Seus versos, construídos com absoluta correção formal, trazem em si poderosa carga poética, que se transmite de imediato e por inteiro a quem os lê. E vale a pena lê-los, pois são dos mais belos da literatura brasileira de nossos dias.” E ainda no Jornal de Letras, no mesmo ano, reiterava Fischer: “É livro de estréia de poeta adulto e experiente, que conhece bem os segredos de seu ofício. Tão bem, que recria a vida, em suas manifestações mais simples e até pouco poéticas, transformando tudo, com seu poder artístico, em poesia da mais autêntica.” Continuando a percorrer a vasta fortuna crítica de nosso poeta, vejamos o que em Poetas Novos do Brasil, de Walmir Ayala, 1969, afirma Afonso Félix de Sousa: “… na poesia de Anderson Braga Horta deparamos com a necessidade de comunicar-se alguma coisa, o gosto pelas soluções formais e a ênfase emprestada ao lado inventivo da criação, sem que contudo nela predomine qualquer dessas tendências. Já pelos títulos da presente coletânea (Eu, o Homem) e do seu livro anunciado (Exercícios de Homem), bem como por boa parte dos poemas aqui inseridos, verificamos ter o poeta em mira a problemática humana, quer em seus aspectos puramente individuais, quer nas manifestações coletivas. Essa preocupação fundamental da sua poesia, Anderson Braga Horta procura transmiti-la sem inibições ou preconceitos às vezes esterilizantes. Se a sua meta é o humano, tem ele consciência de que não é possível atingi-la por meio de puras e simples viagens em torno de si mesmo, nem com a redução dos problemas e mistérios do ser a ocos exercícios retóricos, mas sim mediante a colocação do próprio eu como partícula e projeção de um todo em progresso: ‘Uno e múltiplo, / solidário e solitário, respiro / pó e treva. E esperança’.” Em seu importante Escritores Brasileiros ao Vivo, v. l, 1979, escreve Danilo Gomes:

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“Um dos melhores – e mais premiados – poetas de sua geração, Anderson Braga Horta teve seu primeiro contato profundo com a poesia quando, ali pela volta de suas casemireanas oito primaveras, defrontou-se com ‘O Pequenino Morto’, página antológica de Vicente de Carvalho. A leitura daquele drama (a que poucos escaparam no ginásio, inclusive eu) deixou-lhe penosa impressão, dessas que estigmatizam pelo resto da vida. Já aos quinze anos, sob o influxo do condoreiro Castro Alves, começou a escrever. Influenciaram-no todos os românticos. E alguns clássicos, o venerando Camões à frente, com seu olho vazado na guerra e suas ninfas do Tejo. Não escapou à magia verbal de Bilac, Alphonsus de Guimaraens (seu belo poema “Cantilena” é deliciosamente alphonsiano), Cruz e Sousa. Depois, o impacto de Drummond, Bandeira, João Cabral, Fernando Pessoa – esse primeiro time.” E quero acrescentar a esses depoimentos o do também poeta Antonio Miranda, que em “A Tese de Edgar Morin e a Poesia Exemplar de Anderson Braga Horta” afirma: “A poesia de Anderson Braga Horta fica no ponto de transição humanista-redentorista, que acredita na superação do homem, na salvação e em certo determinismo que nos leva sempre ao progresso (garantido pela evolução histórica) e, em sentido contrário, conforme a assertiva moriniana, levanta a questão da impossibilidade de qualquer progresso, numa aventura incerta, e também à certeza de que toda conquista é efêmera e requer reconstruções infinitas, avanços e recuos, riscos constantes.” Em 1976, publicava Anderson pelo Clube de Poesia de Brasília o livro Marvário, reunindo poemas escritos entre 1957 e 1963. Sobre esse trabalho, dizia o autor nas abas do livro que este “abriga desde poemas arrastados por um tradicionalismo que está na base da formação do autor – ‘Cantilena’ ou o soneto-de-efeito ‘A Prostituta do Cais’, por exemplo – até o ludismo contemporâneo de ‘(A)mar(o)’; desde a preocupação social do último fragmento de ‘Marvário’ até a gratuidade das ‘Canções’. Alguma coisa há, porém, ligando essas ilhas poemáticas, não escalonadas cronologicamente ou de modo a refletir um processo evolutivo; a vaga marinha (ou fluvial, ou pluvial, ou lacustre) que lhes banha as praias, e que as impregna. E não apenas do mar-oceano, ou do mar-lirismo, senão também das águas místico-metafísicas, onipresentes. Assim como o mar, vário é o poeta, entretanto uno.” Sobre este segundo livro de Anderson, assim se manifestou Waldemar Lopes: “Trata-se, com efeito, de um poeta integrado nas responsabilidades de seu ofício, atento à importância dos sortilégios verbais, e preocupado, como todo artista consciente, em aperfeiçoar o domínio de seus instrumentos de criação – no caso, a palavra. Daí resulta o traço fundamental da poética de Anderson Braga Horta, bem evidenciada nas três partes de que se compõe Marvário: a fusão bastante clara de elementos emocionais e intelectuais, com o predomínio ora de uns ora de outros, sem que o autor deixe de exercer constante vigilância sobre o produto final – em termos de expressão estética – do pensamento ou do sentimento.” No ano seguinte, 1977, sob co-patrocínio do Instituto Nacional do Livro do então MEC, era editada a terceira obra de nosso Poeta, com o sugestivo título Incomunicação. Na Apresentação do livro, assinalava o escritor Alan Viggiano que

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“… nem o mar … nem o lúdico e a exuberante natureza … deixam de estar presentes em Incomunicação, como elementos de equilíbrio poético e de atenuação da possível aspereza que o título sugere. Esta é uma face um tanto sombria, algo tristonha e angustiosa, porém jamais pessimista e sempre lírica.” Como exemplo desse lirismo, transcrevia Alan o belo poema “Olhos” (aliás, também de minha especial predileção):

De repente descubro a lavada beleza de teus olhos. Entre mim e o sono trazes um sol nos lábios e nos seios Vênus.) Teus olhos são como céus que choveram.

E em sua habitual lucidez, escreveria mais tarde Almeida Fischer (in: “Dois Poetas e seus Caminhos”, Correio do Povo, 9-9-78; Suplemento Literário do Minas Gerais, 9-9-78; Jornal de Piracicaba, 24-9-78; e O Áspero Ofício, 4.ª série, 1980): “Incomunicação reúne poemas quase sempre enfocando o homem só, ante si mesmo, remoendo seus problemas, suas angústias, seus desencontros, seus descaminhos e desencantos. No fundo, está o problema da solidão do ser humano …. Também reflexiva e de fundo por vezes místico, a poesia de Anderson Braga Horta se constrói com grande apuro técnico, em que se destaca boa inventiva imagística elaborada sobre valores verbais de muita expressividade conotativa. Apesar do título do livro, os poemas de Incomunicação comunicam quase sempre o sentimento e a mensagem do autor.” Na Apresentação de Exercícios de Homem, publicado em 1978 e ganhador do Prêmio Alphonsus de Guimaraens da Academia Mineira de Letras, dizia a grande poetisa e tradutora Henriqueta Lisboa: “… Itinerário bem planejado, bem articulado e bem construído, num todo harmônico e severo, de linhas e formas que se procuram e se sustentam estruturalmente, partindo de uma razão profunda para uma expressão poética paradoxal e conflitiva. Os problemas do indivíduo, em ampliação, alcançam a área da problemática social, com muita felicidade em certos poemas, como ‘A Engrenagem’, e agressividade em outros, como ‘Apartheid (Suláfrica)’ e ‘Os Espantalhos’. Os conceitos do Autor encontram forma adequada, indiretamente, numa linguagem analógica de sons, ritmos e metáforas de intensa vibração – testemunho de sua força imaginativa. Enquanto o texto se afirma como expressão do humano, prevalece a palavra como valor essencial do poético.” O que era ratificado por Fritz Teixeira de Salles, ao afirmar que “… importa assinalar neste trabalho a identificação entre a consciência social e a consciência estética. Isto é, Exercícios de Homem estrutura-se segundo um recorte esteticamente elevado a serviço dos grandes temas da nossa hora.” (Encontros com a Civilização Brasileira, abr.-79.)”

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Em 1981, na apresentação do poeta em Horas Vagas 2, organizado por Joanyr de Oliveira, tive ocasião de observar: “Livros como Altiplano e outros Poemas, Marvário, Incomunicação e Exercícios de Homem, entre os já publicados integralmente, e, ainda, vários outros inéditos, estão aí como testemunhos de um trabalho intelectual de rara homogeneidade, de uma feliz combinação de talento e inspiração, em que a procura da melhor solução lingüística ressalta a expressão do interesse pelo Homem como ser criado, mas também (re)criador do Mundo, que é, se assim podemos afirmar, o verdadeiro ‘leitmotiv’ da poética de ABH. Trazido ao leitor naquela linguagem eficiente, porque clara e precisa, da modelar lição de Pound.” Finalmente, em seu importante estudo À Sombra de Orfeu, de 1984, escreveu o poeta, crítico e tradutor Ivan Junqueira: “Nos Exercícios de Homem, Braga Horta revela uma pujança e uma criatividade dignas de todos os possíveis encômios. Todas as artimanhas da arte poética e segredos da poesia parecem estar sob o jugo de sua mão habílima e versátil. Trata-se de um livro de funda e pertinaz reflexão, de graves acentos bíblicos, crivado de fantasmagorias e augúrios, vazado numa linguagem de absoluta limpidez e plasticidade, de uma riquíssima e insólita imagérie, de inumeráveis inventos e engenhos e, enfim, de um ímpeto contestatório cuja frontal contundência política raramente se vê até mesmo em nossos mais contumazes poetas engagés.” Em 1983, foi publicado Cronoscópio, sob a égide do INL e da Fundação Nacional PróMemória. Sobre este livro, que recebera em 1969, em sua primeira versão, o Prêmio Fernando Chinaglia da UBE, escreveu José Hélder de Souza, em artigo no Correio Braziliense: “… neste Cronoscópio, como nos livros anteriores, perpassa uma funda preocupação com o destino do homem, uma preocupada lamentação das injustiças do nosso mundo. Neste como nos demais, encontramos sentidos poemas como ‘Cabeça e Corpo’ em que o poeta, numa linguagem exata e limpa de demagogia, condói-se com o sacrifício político de Kennedy, Luther King e Lincoln, pelas forças anti-homem da ‘negra noite americana’, a mesma noite a propagar-se pelo mundo, como se sente no ‘Rimance dos Inocentes’ ou no poema em que faz exercícios de poesia concreta, ‘Notícia’ – em que noticia os conflitos do mundo moderno e acaba por concluir que ‘o homem está sendo assassinado no útero’.” Por sua vez, José Roberto de Almeida Pinto, em sua Poesia de Brasília: Duas Tendências, dissertação de mestrado, UnB, 1983; ed. Thesaurus, 2002, afirmava que “Do ponto de vista da publicação em livro, Anderson Braga Horta é, dentre os autores da ‘poesia culta’, o mais ligado a Brasília e talvez o único ao qual se pode atribuir a qualificação de poeta essencialmente brasiliense.” Em 1984, veio à luz, com Estudo Introdutório de Antonio Roberval Miketen, O Cordeiro e a Nuvem, sobre o qual assim se manifestou o crítico Reynaldo Bairão, no Jornal de Letras, jan. 85: “Esta antologia poética – O Cordeiro e a Nuvem – Thesaurus, Brasília, 1984 –, agora oportunamente publicada, vem comprovar que seu autor já tem uma obra respeitável e

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das mais importantes de sua geração. Também em Anderson Braga Horta nós sentimos a influência de outros poetas, como por exemplo a presença de Carlos Drummond de Andrade – no bom sentido – nesse magnífico poema ‘Didática’, à página 51. … Aliás, há igualmente nos seis poemas de ‘Didática’ um fazer literário que lembra o melhor Fernando Pessoa / Ricardo Reis das Odes. No mesmo ano de 1984, em seu discurso de recepção ao nosso poeta na Academia Brasiliense de Letras, dizia o escritor H. Dobal: “Anderson é o cantor de Brasília, é o cantor do altiplano, e somente a sua profunda identificação com esses espaços abertos, com esta cidade que repousa leve na sua pesada geometria, poderia levá-lo à fixação poética de um momento inesquecível, uma sensação que eventualmente domina a todos nós aqui, talvez devido a esta amplidão e, em certas épocas do ano, à extrema secura destes ares; uma sensação de homem-asa, de liberdade no vôo, de ser aéreo mas ao mesmo tempo contingente e inútil. … um poeta, que nos faz escutar o apelo das auroras, que nos leva a tatear as paredes do tempo, conscientes da passagem de infinitos minutos, sabendo que a vida é uma labuta desigual mas jamais é indiferente, que mesmo no castigo dos verões nos resta a promessa do refrigério das chuvas, que há sempre a certeza de que não estamos sozinhos nesta cidade na expectativa dos acontecimentos, mas fortalecidos na solidariedade da esperança de um tempo mais alto, um tempo claro e simples, um tempo sem detritos.” Continuando a percorrer, com a progressão de seus livros, a trajetória da poesia publicada de Anderson Braga Horta, temos em 1990 o advento de O Pássaro no Aquário, em que encontramos, além de verdadeiras obras-primas como “Elegia de Varna” e “O Aleijadinho”, este belo instantâneo:

ARCO-ÍRIS A chuva o áureo espectro do Sol nos dedos quebra. Sobre o novo trabalho de Anderson, ressaltava Fernando Py, no Diário de Petrópolis: “Neste O Pássaro no Aquário, Horta apresenta um conjunto de poemas em geral versando sobre questões existenciais, e que indagam de si mesmo como poeta e como ser humano. Tais indagações se espalham pelo livro, assumindo às vezes conotações de angústia (não por acaso uma das partes do volume se chama precisamente ‘Da humana angústia’). A poesia de Anderson Braga Horta tem alcançado ultimamente uma expressão madura e o domínio técnico-verbal que o colocam como um dos melhores poetas brasileiros do momento.” Em 1999, o escritor pernambucano Edson Guedes de Morais, em sua Editora GuararapesEGM, homenageou o 65º aniversário de Anderson com a bela edição artesanal de Sonetos na Corda de Sol. Comentando o livro na Tribuna da Imprensa do Rio de Janeiro, escreveu o acadêmico Antonio Olinto:

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“É mister que se inclua o nome de Anderson Braga Horta na lista dos grandes poetas deste País. Seu verso tem ecos longínquos, mas brota de um período de transe, quando um milênio se desfaz e as coisas se modificam.” Cabendo-me a honra da Apresentação da obra, tive ocasião de me referir ao belíssimo “Soneto Antigo”, datado de 1961 e publicado cerca de dez vezes em jornal, antologia e revista, expressando que “nele, com sua mestria habitual, consegue Anderson Braga Horta deliciar-nos, seja pela riqueza das imagens, seja pelo absoluto domínio do fazer poético.” E por esse e outros motivos concluí afirmando que “a leitura destes ‘Sonetos na Corda de Sol’ nos permite considerar seu autor um digno continuador, em nosso tempo – infelizmente tão pobre em lirismo –, de poetas da estatura de um Camões.” E já que falei no “Soneto Antigo”, não resisto à tentação de recordá-lo aos caros amigos:

Tanto, tanto de amor me eu tenho dado, hei-me em tantas fogueiras consumido, que fora de esperar no peito ardido nada me houvera de ilusão sobrado. Porém quanto mais sonhos hei nutrido deste manancial inesgotado, mais o tenho, no peito, avolumado: que mais forte é amor, se dividido. E se o destino tenho marinheiro, volúvel me não chamem, ou perjuro: que do amor sou apenas passageiro, em porto inda o mais doce, não aturo, e no mesmo travor do derradeiro já prelibando estou o amor futuro. Em janeiro de 2000 – embora só tenha aparecido algum tempo depois –, foi publicado pela Barcarola de São Paulo, em nova coleção anunciada por Gilberto Mendonça Teles, um pequeno volume de poemas de Anderson, intitulado Pulso, – sobre o qual, curiosamente, o autor nos declarava, em particular, serem os poemas da aposentadoria – e que foi comentado por Fernando Py, na Tribuna de Petrópolis, com as seguintes palavras: “Poeta dos melhores em sua geração, Anderson mostra sobejamente neste Pulso todas as suas qualidades. Nos dois poemas iniciais (‘Indagações’, p. 9, e ‘Poética’, p. 11) questiona o nascimento da poesia e propõe um texto que seja produto direto do inconsciente (‘deixa que a mão escreva’, verso que se repete com insistência até o final do poema). Isto indica naturalmente uma forma de encarar a poesia e como realizar um texto poético. … E seu

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virtuosismo chega ao auge da recriação poética nas duas versões que faz da tradução do poema ‘A Ballade of Dreamland’, do poeta inglês Algernon Charles Swinburne (com o título de ‘Balada do país do sonho’, pp. 90 e 92).” No final de seu Estudo Introdutório, intitulado “O Verbo, o Belo e a Condição Humana”, ao belo e artesanal Quarteto Arcaico, em edição da Guararapes, ainda em 2000, afirmava o poeta João Carlos Taveira: “Com este livro, ponto de altíssimo nível de iluminação da obra de Anderson Braga Horta, por representar, dentro de sua criação artística, um mergulho dos mais felizes nas fontes da poesia brasileira, tenho motivos de sobra para vaticinar a consagração de uma vocação humanista, sempre voltada poeticamente para os reais valores do Homem, na construção de um mundo mais justo, mais generoso e mais fraterno.” Em setembro do mesmo ano de 2000, singularizado pela circunstância de ser o último do segundo milênio de nossa era (para alguns é o primeiro… mas se lembrarmos que não houve ano zero…), surgia aquele que pode ser considerado a súmula do fazer poético de nosso homenageado, não por acaso comemorando o cinqüentenário de sua dedicação às musas: o livro Fragmentos da Paixão, em que Anderson oferecia ao grande público seus versos reunidos, incluindo os inéditos “Poemas Escritos com Raiva” e o “Auto das Trevas”, este um poema dramático escrito em 1997 e premiado pela Fundação Catarinense de Cultura. Nas dobras do livro, comentando a extensa produção do autor, pontificava José Santiago Naud: “Na fértil poética brasileira, de norte a sul e de leste a oeste, são inumeráveis os nomes que já escreveram palavras definitivas. No entanto, ninguém terá um direito maior do que Anderson Braga Horta para honrar a derradeira afirmativa de Hölderlin: ‘Was bleibet aber, stiften die Dichter’. Mas o que permanece, fundam os poetas.” E em O Escritor – Jornal da UBE, SP, 2001, concordava Samuel Penido: “Fragmentos da Paixão traz-nos a obra de um poeta que nasceu maduro; a obra de um poeta que soube renovar-se através do tempo. Renovação que não se deu por acaso, mas à custa de muita ‘luta com a palavra’, de muito rigor técnico. Seu texto está recheado de alusões, de achados formais, que lembram os grandes mestres da poesia; apenas lembram, pois o que prepondera sempre é sua criatividade: uma idéia a gerar outra, ou a descoberta de uma nova solução expressional.” Confirmando o entendimento desses e de muitos outros críticos e ensaístas que se debruçaram sobre a obra de Anderson, deu Fragmentos da Paixão ao autor o Prêmio Jabuti de 2001, na categoria “Poesia”, conferido pela Câmara Brasileira do Livro, trazendo-lhe o merecido reconhecimento pela excepcional qualidade de sua já longa escalada poética. Já no ano de 2001, saía pela Thesaurus de Brasília a Antologia Pessoal de nosso homenageado, em cujo intróito, intitulado “O autor por ele mesmo”, Anderson nos oferece uma verdadeira profissão de fé na literatura, ao falar de sua vida e de suas influências, e do qual selecionei o seguinte e expressivo parágrafo:

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“Penso que o poeta não pode deixar de se assenhorear das técnicas do verso, embora a técnica, obviamente, não seja tudo. Que ao escritor compete extrair do potencial de sua língua toda a cintilação que possa, dignificando-a sempre. Que escrever é atividade intelectual, sim; mas não se esgota no âmbito do intelecto; que o poeta há de comoverse e comover, sim; mas não se há de entregar, ingenuamente, à emoção desassistida da inteligência, porque a emoção, por si só, não é ainda arte, não é ainda poesia. Que a esse amálgama de pensamento, emoção, sentimento que é o poema não se deve tolher o voltarse para a sorte do homem no espaço e no tempo, seja do ponto de vista filosófico, seja do social; pois à poesia, arte da palavra, interessa necessariamente tudo o que de humano se possa representar nela. E que, portanto, a arte do poeta há de ser mais complexa, mais completa, mais abrangente e mais profunda do que tendem a fazê-la os jogos – algumas vezes brilhantes – a que pretendem reduzi-la correntes revolucionárias.” Chegamos assim a 2003, quando, em seguimento à divulgação dos trabalhos poéticos de Anderson, saíram, pela Edições Galo Branco do Rio de Janeiro, os 50 Poemas Escolhidos pelo Autor, coroando, de certa forma, uma trajetória de mais de trinta anos de publicação de sua poesia, no expressivo total de treze livros-solo. E quero lembrar neste ponto a freqüente participação de Anderson, a convite de seus organizadores, em muitas antologias de poesia publicadas no Brasil e no exterior, entre as quais podem ser citadas A Novíssima Poesia Brasileira e Poetas Novos do Brasil, de Walmir Ayala, Rio de Janeiro, 1962 e 1969; Poetas de Brasília e Antologia dos Poetas de Brasília, de Joanyr de Oliveira, Brasília, 1962 e 1971; Em Canto Cerrado, de Salomão Sousa, Brasília, 1979; Brasília na Poesia Brasileira, também de Joanyr de Oliveira, RJ/Brasília, 1982; Alma Gentil: Novos Poemas de Amor, de Nilto Maciel, Brasília, 1994; Caliandra, de Alan Viggiano, Brasília, 1995; Sincretismo, de Pedro Lyra, RJ, 1995; Pedras de Toque da Poesia Brasileira, de José Lino Grünewald, RJ, 1996; Solo para Quinze Vozes, em tradução de Rumen Stoyanov, Sófia, 1996; A Poesia Mineira no Século XX, de Assis Brasil, RJ, 1998; Vozes na Paisagem, de Waldir Ribeiro do Val, RJ, 2005; Antologia Comentada da Literatura Brasileira: Poesia e Prosa, de diversos autores, Petrópolis, 2006, e Poesia Brasileira Contemporânea, tradução para o búlgaro de R. Stoyanov, Bulgária, 2006. É mister, a esta altura, abordar a importante contribuição de nosso autor na difícil mas recompensadora esfera da tradução poética, em que tem-se revelado, na opinião dos mais respeitados críticos, em que pese sua modéstia habitual, um verdadeiro mestre. Assim é que ainda naquele prolífico ano de 2000 veio à luz, sob a égide da Embaixada da Espanha no Brasil, e em edição bilíngüe, a coletânea Poetas do Século de Ouro Espanhol, de que tive a honra de participar, ao lado de Anderson Braga Horta e do saudoso poeta e querido amigo Fernando Mendes Vianna. Precedida de percuciente estudo de Manuel Morillo Caballero sobre aquele importante período da literatura ibérica, ressaltam nesse trabalho, que inclui nada menos de 45 poetas espanhóis e até portugueses como Camões, as competentes traduções de Anderson, como na difícil e extensíssima versão da “Fábula de Polifemo y Galatea” por Anderson e Fernando – com toda justiça, um verdadeiro tour de force. Em 2002, quando se comemorava o bicentenário do grande Victor Hugo, novamente se congregou aquele trio de tradutores para, de início, preparar um pequeno livro com o qual o dedicado editor Victor Alegria, da Thesaurus de Brasília, homenageou aquela efeméride: e

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assim surgiu Victor Hugo – Dois Séculos de Poesia, que, apesar de sua modéstia, mereceu ser honrosamente citado na recém-publicada Uma História da Poesia Brasileira, do poeta e crítico Alexei Bueno. Em seguida, agora sob o selo das Edições Galo Branco, do Rio de Janeiro, apresentamos a coletânea O Sátiro e Outros Poemas, precedida por um bem fundamentado estudo de Fernando Mendes Vianna sobre Victor Hugo. Ainda no campo da tradução de poesia, tive também o prazer de participar, no mesmo ano de 2002, ao lado de Anderson e outros companheiros poetas e tradutores, da elaboração da Antologia Poetas Portugueses y Brasileños – De los Simbolistas a los Modernistas, em edição bilíngüe em português e espanhol organizada e apresentada pelo pranteado poeta José Augusto Seabra, então embaixador de seu país na Argentina, e por nós lançada naquele ano na capital platina. Mais adiante, em 2003, nosso homenageado, Seabra e eu tivemos ensejo de verter para o português os poemas que compõem a Antologia Pessoal do poeta e tradutor argentino Rodolfo Alonso, também editada, como a anterior, pela Thesaurus de Brasília; a esta se seguiu, no mesmo ano, a tradução dos 25 Sonetos Descaradamente Eróticos, do conselheiro da Embaixada de Espanha José Antonio Pérez-Montoro, de que participei novamente com Anderson. Em 2006, sob os auspícios da Asociación de Agregados Culturales Iberoamericanos, apoio do Governo de Mato Grosso e organização de Pavel Égüez, saiu a Antologia Poética IberoAmericana, em que novamente colaborava com Braga Horta e Fernando, em trabalho realizado cerca de oito anos antes – e que infelizmente só veio à luz após o passamento do autor de Marinheiro em Terra –, na tradução de sessenta e seis poemas de vinte e dois poetas. Mas, além de exímio poeta e tradutor de poesia, Anderson Braga Horta, que com razão foi definido como um escritor multifacetado, já vinha de muito antes dando mostras de seu talento em outros campos literários, como o do conto, da crônica, do ensaio e da própria crítica literária. Disso dá mostras sua participação, entre outras, em diversas antologias, como Contistas de Brasília, de 1965, organizada por Almeida Fischer; O Horizonte e as Setas, de 1967, e Horas Vagas, de 1981; e ainda neste último, ao apresentar nosso autor como praticante do gênero, tive ocasião de acentuar que “… será o campo da estória curta o menos freqüentado pelo escritor ABH, também muitas vezes crítico e ensaísta”. E continuava acentuando que “ … razões várias poderiam ser apontadas para o fato, desde a maior afeição e constância na dedicação à forma poética, seja em versos clássicos ou modernos, brancos ou rimados, metrificados ou livres, até, quem sabe, remontando à juventude do poeta, a fidelidade aos primeiros impulsos, quando a inspiração de Anderson encontrava nos sonetos e poemas curtos a forma ideal”. Em 1980, contribuiu Anderson em O Conto Candango, organizado por Salomão Sousa; em 1988, está presente em Contos Correntes, de Napoleão Valadares, em conjunto com outros companheiros da Associação Nacional de Escritores, de Brasília; em 1997, temo-lo em O Prazer da Leitura, de Jacinto Guerra; e em 2004 e 2006 participa, respectivamente, da Antologia do Conto Brasiliense e de Todas as Gerações: o Conto Brasiliense Contemporâneo, ambos preparados por Ronaldo Cagiano.

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Também como ensaísta tem nosso poeta dado mostras de seu talento polimorfo, como o atestam seus trabalhos Erotismo e Poesia, Brasília, 1994, e A Aventura Espiritual de Álvares de Azevedo, Brasília, 2002, entre outros; enquanto no campo da crônica está presente, por exemplo, em Cronistas de Brasília, de Aglaia Souza, Brasília, 1995. Mas foi nas páginas de Sob o Signo da Poesia: Literatura em Brasília, 2003, que Anderson Braga Horta veio a recolher, como informa no Preâmbulo, trabalhos escritos ao longo de 37 anos, compreendendo prefácios e orelhas de livros, ensaios, discursos acadêmicos, artigos, resenhas e crônicas saídos em diversos periódicos (e algumas das últimas divulgadas pela Rádio MEC da capital), em que descortina um vasto panorama da literatura da nova capital, como descreve no texto “Notícia de Poesia em Brasília”, com que abre o livro de mais de 500 páginas. Ao comentar essa obra, escreveu Ronaldo Cagiano, em O Escritor, 2004: “Ao reunir em Sob o Signo da Poesia sua apreciação crítica sobre a produção poética no Distrito Federal, Anderson Braga Horta deixa a marca significativa de um consciencioso estudo literário, coligindo não só as observações de um poeta e de um crítico, deixando um referencial importantíssimo para leitores, escritores e interessados em pesquisar a literatura de boa qualidade produzida na capital do país.” A propósito deste livro, comenta Luiz Carlos Guimarães da Costa, em sua valiosa História da Literatura Brasiliense, de 2005: “… O mais profícuo, assíduo e presente escritor da literatura de Brasília, ao organizar e publicar esta obra, fê-lo na certeza da magnitude da importância que o testemunho de seu trabalho tem para a história da literatura do Distrito Federal, não apenas com relação à sua obra como escritor, mas neste caso específico para a afirmação, sedimentação, divulgação e disseminação da adolescente literatura brasiliense. Anderson Braga Horta, em seus 34 anos de convivência literária em Brasília, analisou (no mínimo as citadas no livro) obras de autores radicados na cidade, nela publicadas ou não, num total de cento e sessenta e dois livros, de cento e sete escritores, certamente um volume considerável de tudo o que foi produzido, com qualidade, na literatura da Nova Capital.” Em 2004, reuniu Anderson em Traduzir Poesia, além de ensaios, prefácios e palestras que deram origem ao livro, grande parte de suas traduções de diversas línguas para a nossa. Nele posso afirmar, sem exagero, que o poeta dá mostras cabais da maestria a que já me referi, como o comprovam as inúmeras notas e variantes apresentadas, além, como citado na apresentação, de mostrar aspectos, dificuldades e perplexidades daqueles trabalhos, constituindo-se portanto em verdadeiro roteiro do que pensa sobre a tradução de poesia. Sobre este trabalho, afirmou acertadamente Fernando Py, na Tribuna de Petrópolis: “No caso de Anderson Braga Horta, poeta de alta qualidade, o exercício da tradução tem sido uma espécie de complemento da sua obra poética, e os poemas deste livro são um exemplo não só de seu virtuosismo mas também da técnica apurada que alcançou em quase meio século de atividade de tradutor de poesia.” Continuando a publicação de seus trabalhos em prosa, editou nosso homenageado, em 2005, o livro Testemunho & Participação: Ensaio e Crítica Literária, dividido em duas partes: “Pensando Poesia” e “Registro de Leitura”, que representam, como expresso na

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Apresentação, as duas vertentes do trabalho: o pensar poesia, não em forma de exposição erudita, mas como testemunho vivido de uma experiência do fazer poético em mais de meio século; e comentários à obra de cento e muitos poetas (e alguns prosadores), no correr de quarenta e cinco anos de atividade crítica. A propósito de sua contribuição no campo da análise literária, reiterou Anderson no Preâmbulo o que já enunciara anteriormente: “Não me arvoro em crítico profissional, nem, muito menos, em historiador literário. Sou um escritor que se tem muitas vezes debruçado sobre a obra de companheiros de ofício, por admiração, solicitação, injunções eventuais, por isto ou aquilo, enfim, mas sempre com o respeito devido a quem vê na literatura um instrumento privilegiado de dizer o mundo e de dizer-se ao mundo. Conhecendo os limites de meu trabalho, sem os escamotear ofereço minha contribuição.” E finaliza com as palavras: “Se a este livro for reconhecida alguma valia para a memória literária de uma época, dar-me-ei por satisfeito.” E ao louvar, como de direito, a validade desse esforço, reconheceu o ilustre poeta cearense Francisco Carvalho: “Testemunho & Participação é desses livros que necessariamente elastecem os horizontes da tradição cultural de um povo. Presta-se a consultas de professores e estudantes de cursos de letras e até mesmo do ensino de nível médio. Não apenas pela riqueza das informações qualificadas, como também pela credibilidade das fontes a que teve acesso o autor, ele próprio um dos profissionais mais operosos da moderna literatura brasileira … Como todo mineiro que se preza, esse filho de Carangola, que fez de Brasília o quartel-general de suas estratégias e opções intelectuais, nos dá preciosas lições de um autêntico minerador de idéias e de palavras.” Finalmente, já agora quase no final do ano de 2007, ofereceu-nos Anderson mais um trabalho que, embora em prosa, é dedicado integralmente a sua paixão dominante, a grande poesia, e que por isso mesmo foi por ele denominado Criadores de Mantras: Ensaios e Conferências. E na quarta capa desse livro – no qual, segundo Wilson Martins, em comentário no caderno “Idéias” do Jornal do Brasil, o autor, tanto como poeta quanto leitor de poesia, pratica, a exemplo de Augusto Meyer, mais o ensaio crítico que a crítica da atualidade corrente –, tive o privilégio de trazer ao leitor interessado a mensagem que ora peço vênia para colocar no encerramento destas minhas despretensiosas palavras: “A exemplo do belo De Poetas e de Poesia, do grande Manuel Bandeira, é de bons versos e inspirados artistas que se compõe a matéria deste Criadores de Mantras, com que o poeta Anderson Braga Horta continua a dar mostras de sua outra face de comentarista perspicaz no vasto campo de sua predileção. E é com crescente prazer, para ele como para nós, que o autor nos leva a percorrer, ao longo de quase 400 páginas, um panorama crítico-amoroso de nossa poesia mais representativa, desde o Romantismo até os nossos dias, no qual estão presentes nomes como os de Álvares de Azevedo, Cruz e Sousa e Alphonsus, Augusto dos Anjos e Schmidt, Bandeira e Drummond, entre outros de mérito comparável. São poetas e poemas não só da afeição de Anderson como da nossa, que honram qualquer literatura e que devem ser sempre lembrados.”

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Poemas de Anderson Braga Horta


ALTIPLANO

ANTES do começo, era o sertão, só e ríspido. Vegetais cheios de ódio fitando os céus impossíveis e apontando a terra sáfara. Dedos torcidos de séculos. Bênçãos dissimuladas sob a raiva. Natureza virgem à espera da posse. SOB a carne desidratada destas planuras já se pressentem —hígidas— as covas futuras. E dessa carne e dessas covas —morte aparente— já se pressentem fluindo em ouro arquivindouras fartas torrentes. A vida na morte enraíza. DIALÉTICOS pequis de coração de ouro e farpas guardam-se verdes do grito áureo dos tucanos. Veados camuflados. Tatus embutidos. Arisca florifauna. Ásperos minerais irônicos, no fundo, sorriem e esperam. A EROSÃO comera o ventre da terra e chupara-lhe as lágrimas. De outras terras também calcinadas o húmus viria:

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mãos nodosas, magras mãos, mãos rudes, mãos férreas, —mãos— com o próprio sangue ralo de anemia regarão o alheio dia. VENTOS e chuvas corroeram arestas, dispersaram resíduos, e o terreno está pronto: esqueleto à espera da carne. E vieram os pioneiros e rasgaram os mapas (no papel, o embrião): corpo à espera de uma alma. E VIERAM os primeiros peões. E vieram e voltaram no périplo (sem portos) da fortuna. E vieram e voltaram e vieram no fluxo e refluxo da fome. E vieram e ficaram plantados, árvores migrantes —torcidas de séculos— enraizando, úberes, dedos, salgando impossíveis céus. TODAS as peças no tabuleiro. Reis, bispos, torres. E os cavalos.

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A batalha começou sem que ninguém desse por isso. E em lances bruscos a cavalhada, dos flancos, da retaguarda, salta e atropela peões em marcha. Silêncio de gritos coagulados. Sacrificam-se os peões, ficam-se os reis. É a lei do xadrez. Mas onde o exército inimigo? No imenso tabuleiro há um formigamento de cruzes anônimas. Subterrâneos, os mortos suportam o peso do porvir. ÁVIDA suga a terra as mil línguas da chuva. Intimidade. Poros abertos, solos refratários à lama. No entanto, há lama nos pés, nas máquinas, nas almas. Águas avolumam-se, pejando a represa. Grávidas terras falam ainda de uma pureza intratável. No ar seco, um vento áspero fala de lutas. NA CONFLUÊNCIA das virilhas o dique

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represa os córregos. Basta um abrir de comportas e um rio irrompe em cólera. Na confluência dos párias um dique. CRESCE uma pétala na rosa-dos-ventos. Desviam-se para Oeste os rios do orvalho, de que o asfalto, o aço, o concreto, o abstrato, tudo é resíduo. Cruz resumindo sacrifícios, avião demandando o futuro. Símbolos. Reais são os mortos, alicerces nossos; real é o presente, imenso, bruto canteiro de obras. NO PLANALTO, lenta, se abre: rosa superfaturada em vidro-plano e concreto. Contraditória rosa explosiva. De tuas impurezas, de tuas asperezas, rosa queremos-te exata. No altiplano de nossas esperanças, rosa-dos-homens construímos-te futura.

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REDONDILHA QUASE CAMONIANA

Os olhos, tende-los verdes… Tende-los frios, Senhora, nestes, perdidos, que outrora lhes encontravam calor. Mas de assim frios os terdes por que me espanto eu agora? se é condição de olhos verdes dar vida e matar de amor! De assim magoado me verdes Não vos dói nenhua mágoa? e neve no coração. Que, não contente de terdes aos meus confundido em água, furtai-los de aos vossos, verdes, colher madura intensão. Senhora dos olhos verdes, do verde dos vossos olhos fundei meus mares: escolhos! sereias de me perder! Ai, o bem que me quiserdes, menina dos verdes olhos, faria os meus olhos verdes das cores do bem-querer! Pois tendes os olhos verdes, negra se faz minha história. Por que em sua trajetória meus olhos sempre estarão? Cuidado! se me perderdes, menor será vossa glória, Senhora dos olhos verdes e de verde coração!

Os olhos, tende-los verdes, tende-los frios, Senhora. Ai eu que os sonhava outrora plenos de sumo e calor! De frios assim os terdes por que me espanto eu agora? se é condição de olhos verdes dar vida e matar de amor!…

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ELEGIA DE VARNA

Sinto que algo ficou irrealizado em mim. Nota que vibraria o meu ser íntegro como um sino e que não se feriu. Adivinho-lhe a corda oxidando-me o peito. Tocá-la tornaria os veios de ferrugem nos rios mágicos do êxtase e então eu seria eu e não esta véspera encolhida, este quase a medo murmurado, este querer que se tolhe ante a areia dourada, este silêncio náufrago, esta solidão esmagada de estrelas. E então eu seria eu e tu, e sim, e além. Não seria este não que sequer se profere e que sobre o Mar Negro, hoje branco de fúria, fita, desesperado, a gaivota que ousa solitária o mergulho. Sinto que algo deixou de realizar-se em mim, e esta falta grita e queima e consome. Sigo nau incompleta, vento coxo, canto falhado e despedaço as asas poderosas no abjeto cais das ânsias. Sinto que algo ficou irrealizado em mim, e esta página branca invade o meu ser.

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RETRATO INDIMENSIONAL

Meus pais estão no retrato sorridentes. O sorriso é claro e meigo. Entretanto, bem sei que atrás dessa luz há tanta dor concentrada! Uma dor que não se fez em dois dias, em um mês. Ai! dor de toda uma vida! É dor. Mas dor familiar, feita de coisas miúdas mais que de grandes desastres: de pedaços de esperança, de uma atenção infinita, da rotina de cuidados de amor diários —rotina iluminada!—, de restos de emoções desencontradas, de vagos desgostos, vagos presságios, sonhares vagos, das precisas incisões que rasga no rosto a cega, lenta lâmina do tempo.

Vejo agora como a soma de tantas dores dispersas, como essa dor concentrada alimenta a luz sublime na sua face estampada. Vejo-o como nunca o vira no tempo deles. Agora, fora do tempo e do espaço, melhor que no espaçotempo, melhor do que nunca e sempre, as nossas luzes se encontram num doce carinho antigo. Alheios a tempo e espaço, meus pais descem do retrato e vêm conversar comigo.

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COMO NOS CHAMARÁ O HOMEM

Como nos chamará o Homem que há de vir, O Homem, que em nosso sêmen mal se antecipa? Pitencantropo? Piteco? Como nos chamará aos que vivemos no beco

Os ritmos marciais da escolta? um batuque surdo de revolta?

entre o Paredón e o Mito, o Muro e o Cogumelo, entre o Big Stick e a Foice-e-Martelo?

o dedo duro, a marcha sem requebro, ou os pandeiros ágeis da favela?

Quando sairemos da pré-história do Homem? (Sairemos?) E como – no expurgo, no esputinique,

a depressão no alto da favela? o garbo da farda verde, azul, amarela?

na barbicha do beatnik? Como? – nos altos escalões? nos galões? nos galeões?

Ou uma luz paisana, luz nua, cordial, que, por luz, não dimana do quartel.

Em outras palavras: Que restará de nós no Homem? Fósseis absurdos – que herança no sangue?

Mas, antes, que se fará do sonho do Homem, que se consome num chão de baionetas!

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O ALEIJADINHO A José Jeronymo Rivera

Entre andaimes, na sombra, sorrateira sombra ao punho disforme ata o instrumento. E faz tremer a treva: Anjo violento, fere a pedra-sabão, rasga a madeira. E que fúria o incendeia! Golpeia a massa inerte e se golpeia; e golpe a golpe essa matéria calma agita de sua alma! Com tal rigor trabalha e flama tal que bruta natureza já se não via ao termo da batalha, senão —livres– as formas da Beleza. Entre andaimes, na sombra, o negro vulto dupla obra fazia: uma – a estátua a emergir como dum sopro, e outra – que ninguém via. Que, enquanto o cego escopro lavra a dúctil matéria, outra mão, fria, outro cinzel, oculto, lavrava a carne ardente e a consumia.

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ANTELUZ NO CAOS

Descalça vai pera a fonte Lianor pela verdura; vai fermosa, e não segura. Desnudos, não pera a fonte, pera a foz das criaturas, por estes campos adustos vamos indo, e não seguros. Com nenhua fermosura. Sôbolos rios que deságuam no mar de fogo da Bomba, sôbolos rios de treva choram os rios do pranto. Night O Tiger Shadow Tiger aonde negras se te abrem as fauces, os olhos nossos i morrem, que vão, que voam a os, que semearam, abismos colher. E com que malícia, com que felinos sofismas te justificas, com que blandícies, ai! com que encantos nos estes prantos abrandas! Les sanglots longs des moutons! Tua foz de fogotreva! Mia senhor, moir’eu por vós, que nos matais… e vos amo?! Senhora, partem tã trystes os nossos olhos… por be?!

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Mas alto! que ou meus ouvidos me enganam, ou vem tenteando, cos trapos de luz que restam, ua nova, ua nova manhã? Será que é ela, puxada plos seus cavalos suarentos? Ela ou al, evém aí, evém vindo, evém chegando algo novo; evém tardonho (mas evém) que vem lutando contra estúpidas herdades de impropriedades, peneiras, telas, biombos, vanidades, conceitos e preconceitos, tigres, símios, hienas, lobos, cercas, balas, belonaves, fel, fomes, correntes: cousas, todas vãs? todas mudaves.


OS ESPANTALHOS

Geométricos, nosocômicos, friíssimos, defesos ao saque imponderável dos pássaros, murcham os bosques do excesso de assepsia. O veludo exato, impecável da relva – cerca — estes outros implumes pássaros amanhecentes. Privados do comércio do verde, amarelecem. E nem nos resta azul – virá o dia em que gigantescas tabuletas gritarão, interceptoras:

PROIBIDO OLHAR O CÉU!

E inventarão processos especiais para tolher o olfato, e cobrar-se-á pedágio nas praças, e pela brisa nos cabelos descontar-nos-ão imposto na fonte (adicional de 30% para os comedores de brisa!). Coíba-se o coito (há tanta gente…)! Risque-se o verbete amor dos dicionários! Em compensação, inscreva-se delatar! do frontispício ao cólofon. E assim murcharemos, submissos, e empalideceremos, até exaurir-se a noite, no amanhecer que a justifique. Quando os espantalhos arderão na treva pra iluminar a grande festa dos homens.

Poemas de Anderson Braga Horta 43


O TEMPO DO HOMEM

Quando chegar o tempo do Homem Te cantarei os seios róseos, Viajarei, lírico astronauta, Às constelações de teus olhos Quando chegar o tempo do Homem Nas minhas mãos vinte e um satélites Trarei, sorrindo, aos nossos filhos. No vaso a rosa, inofensiva Quando chegar o tempo do Homem Mortos os sóis exorbitantes, Alto, o Sonho achará sua órbita E então nos amaremos lúcidos Quando chegar o tempo do Homem Não de escasso amor conjugado Num futuro condicionado. Amor atual, lauta romã Quando chegar o tempo do Homem Amor sem susto, amor unânime, Amor sem resíduos de estrôncio, Amor sem filamentos de ódio

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Biblioteca Nacional de Brasília Tributo ao Poeta

Quando chegar o tempo do Homem Possamos tê-lo antegravado No branco olhar dos nossos filhos, Se forem cinza os nossos olhos Quando chegar o tempo do Homem Como anuncia-se o relâmpago Que cegos-surdos o pressentem, Assim —súbito– o saberemos Quando chegar o tempo do Homem Pois, quando for o tempo, rútila Rosa na mão do Povo aberta Nos dirá: Llegó! È venuto! Chegado é o tempo! Tempo de Homem.


CELACANTO

Nadando em costas d’África Fruía o Celacanto Emissário do outrora O seu quinhão de pranto No sal que imita a lágrima Das águas no acalanto.

Talvez último príncipe De extinta dinastia Em seus rudes sentidos A solidão doía Gritava o alto silêncio Da profundeza fria.

Do seu mundo apartado Por muitos milhões de anos Só – atual e pré-histórico Assombrando os oceanos Que mistérios guardava Nos seus pobres arcanos?

Na viuvez atônita Tu Celacanto corres De ti e contra ti Que de lembrar te morres E que em tua orfandade De ninguém te socorres.

Tosco irmão Celacanto Em solitário nado Brasão de sonho em fuga Em campo blau plantado É verde o teu enigma! E eu te decifro e calo.

Poemas de Anderson Braga Horta 45


O PÁSSARO NO AQUÁRIO

§ Era um ponto no aquário. Era uma escama aberta no verde dúbio da água. Era uma estrela mínima em céus de queda. Era um frêmito, um ritmo, um verso regressivo à origem, nada, um sopro extinto, inda outra vez soprado por sol de oblívio, escuro. O pássaro no aquário solfejava em silêncio um sol futuro. §§ E eram guelras na escuma, e os olhos, algo como um pranto na areia, entre algas, planctos, como um pranto chorado em meio a lágrimas retidas no olho inexistente. E em breve eram garras na terra, a dura guerra, o mar perdido e o espaço ausente, ausente.

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§§§ Garras, e a crua guerra. Berro de espanto e dor no descampado entre o sêmen do sonho e a fronde ao vento. Mas o dó, mas o espanto, a dor e seu invento: um sol menor no peito; domado, um lá na plúmea escama distendida em ala urgente. E era um pássaro na alva de escarlata, cantando no alto a ária de orvalho e prata!

Poemas de Anderson Braga Horta 47


A TARTARUGA Eu venho donde vem o infinito da Vida, do crespo e ardente oceano em toda parte ondeando, da explosão inefável do que chamais abismo, e é tudo, e é nada, no pulso intemporal de quanto existe e de quanto é oculto. Vivo porque o Mistério impõe que eu viva, e na vaga da Vida —sonho que vou sonhando e que me sonha— eu beijo a mão do Arcano e o lábio do Sigilo, e reflito no olhar, como um memento, o olhar do que é, não sendo. Os olhos tenho abertos para a impressão do nimbo e do relâmpago, da água turva e do ar claro, do céu-mar que se abre e se desdobra à avidez do meu nado, de meu nada. Mas não vêem o tempo além do agora, o segundo futuro, próximo como o que se foi há um átimo, e no entanto remoto como a encoberta eternidade. Vi o homem de gatinhas, na semente animal ainda indiferenciado. Ouvi seus balbucios. Fiz minha mão a mão que fez o arado, que faiscou na pedra um firmamento fugaz de estrelas árdegas. Tomei-lhe da mão trêmula a ensaiar-se divina no primeiro rabisco do primeiro alfabeto, na prisca partitura da vindoura vertigem de encontrar-se maior que a imensa origem.

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Das figuras rupestres das cavernas subi ao zigurate dos sumérios. Cunhei sonhos avoengos nos ladrilhos. Andei Índias e Chinas do Oriente e do Ocidente. Topei do Egito o sacro escaravelho. De tudo em toda parte uma imagem ficou-me gravada na retina que não vedes. Sei do amor e do ódio, sei do hino e do vômito, sei da paz e da guerra, sei do mar e da terra, sei do céu e do éter, sei da carne e do espírito. Muito eu tenho vivido, tanto amado e sofrido e pecado e ascendido. Respeitai-me, se não por vós, grumetes que o Mar aleita ainda, pela Vida que em mim se fez tempo e caminha para fazer-se eternidade. Que novas cores beberei? Que músicas fluirão no meu dorso? Que suaves, que pétreos tatos guardarei no olfato, no paladar, na pele, na retina? Eu continuo. Adiante! Para onde, afinal? Que universo, que abismo espera por meus pés na curva do infinito? Eu vou para onde ireis: para Além, para o Enigma. Eu vou para onde vai o infinito da Vida.

Poemas de Anderson Braga Horta 49


Organizador do Recital – Conferência

Marisa Lajolo nascida em São Paulo, é formada em Letras pela Universidade de São Paulo, onde também concluiu o curso de Mestrado e Doutorado. Fez pós doutorado na Brown University e atualmente é Professora Titular no Departamento de Teoria Literária da Unicamp. É também escritora e publicou as seguintes obras: Destino em Aberto (ficção) São Paulo: Editora Ática. 2002; O Preço da Leitura (co-autoria: Regina Zilberman) São Paulo. Ed. Ática. 2001; Literatura: leitores e leitura. São Paulo: Ed. Moderna. 2001 (Selo Altamente recomendável (categoria ensaio) outorgado pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil; Monteiro Lobato: um brasileiro sob medida. São Paulo. Editora Moderna . 2000 . 99 páginas 2ª. Reimpressão 2001 (Selo Altamente recomendável (categoria biografia) outorgado pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil; A Formação da Leitura no Brasil. (co-autoria: Regina Zilberman) São Paulo. Ed. Ática. Prêmio Açoreanos 1997, Categoria Literatura-Ensaios. Finalista do prêmio Jabuti (1998); Do Mundo da Leitura para a Leitura do Mundo. SP. Ed. Ática. Prêmio Jabuti, 1996, Categoria Literatura-Ensaios; Um Brasil para Crianças (Para conhecer a literatura infantil brasileira: história, autores e textos) [co-autoria com R.Zilberman] SP.Global. 1a.ed.1989 364 p. 3.ed. 1988; Literatura Infantil Brasileira: história e histórias (co-autoria com R. Zilberman). SP. Ed.Ática. l.ed.1984. 4a. ed.

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Perfil Humano e Poético de Carlos Vogt

Aragão Júnior

Marisa Lajolo

É sempre difícil falar de poesia. Poesia, acham alguns, que é para ler. Ler em silêncio, sonoridades, pausas e ritmos ecoando apenas na cabeça do leitor. Pensamento solto seguindo imagens, olhos de sonho, coração ao largo repercutindo emoções.

ELOQÜÊNCIA Pisca Alerta, 2008. Poesia reunida p.451 Ninguém responde ao silêncio porque ao silêncio se indaga e a resposta faz-se de silêncio Mas, claro, poesia também pode ser lida em voz alta, dando vida às sonoridades e aos silêncios, aos ritmos e às pausas que as palavras criam. Era assim que a poesia circulava, nos primórdios dos tempos, quando o som da lira – que acompanhava os poemas – inspirou a expressão poesia lírica.

Perfil Humano e Poético de Carlos Vogt 51


JOGOS FRUGAIS Paisagem doméstica, 1984, Poesia reunida p.137 O verso foice de falhas o poeta fuça na sala o poema malhas de máscara

a poesia face de folhas o poeta fosse de métricas o reverso folhas de alface

o poeta masca salada Com certeza, melhor ouvir ou ler poesia do que falar sobre poesia. E, falar de poetas, então, … pior ainda. Carlos Drummond de Andrade já alertou dos riscos:

O que dizer do poeta Numa prova escolar … ? Que ele é meio pateta E que não sabe rimar ? E hoje,aqui, nem há a desculpa de tratar-se de uma prova escolar. Nada disso, melhor seja talvez registrar a alegria grande que é ser amigo de um poeta, a ponto de chamá-lo de forma carinhosa de Carlos, Charles, Carlíssimo, Carlão. Poeta é para a gente amar em silêncio, amor de leitor encantado, para quem o poeta abriu caminhos desconhecidos ou clareou com luz nova trilhas familiares.

L é x i co Cantografia, 1982, Poesia reunida p.31 cantografar: empalhar sinais cantógrafo: navegador e sereia cantografia: o itinerário do carteiro cartógrafo

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Poeta – bem ao contrário do que propunha Platão, que os expulsou de sua República – é pra gente coroar de rosas e levar para o mais belo lugar da cidade, saudá-lo com o sussurro do vento, o marulho das ondas e o tocar de sinos em festa. A cultura universitária, no entanto, desenvolveu a curiosa idéia de que se estudam poetas, poemas e poesia e analisando, por exemplo, o bilaquiano Ora-direis-ouvir-estrelas. Mas, alto lá ! … ganho o pão rezando por esta bíblia, não devo me estender no assunto. Registro apenas que o desencontro entre – de um lado – o que dizem críticos e professores de literatura e – de outro – o que lê nos poemas quem ama literatura vem de longe. Já no primeiro século da era cristã, o filósofo e professor Sêneca, alertando seus contemporâneos para os riscos do estresse que encurtava a vida humana (sim, já naquele tempo alguns diziam viver estressados !) , incluía entre os fatores de risco os estudos literários. Para ele,

1. (…) inúteis estudos de literatura (…) procurando saber quantos remadores tinha Ulisses, se foi a Ilíada ou a Odisséia que foi escrita primeiro e, ainda, se eram do mesmo autor Acreditava Sêneca que

(…) saberes desta natureza (…) se os tens para ti, em nada te gratificam e, se os tornas públicos, não serás considerado mais sábio, senão mais enfadonho (…) Por vezes (p.;59 ; 63) Sem ser sábia e tentando não ser enfadonha, passo a palavra ao poeta:

O FIM DA POESIA O Fim da Poesia Pisca Alerta, 2007 p. 504-505 A poesia não tem fim nem tem começo não tem tranqüilidade nem atropelo A poesia orgulhosa não acaba nunca o verso do poema cheio de prosa O poema sério se diverte faz-se de versos de face oculta que esconde o explícito

no seu mistério A poesia no seu poema não tendo fim meio ou começo só tem tranqüilidade no arremesso Assim não se acaba nunca por incompleta nos seus poemas definitivos na finitude e controversos na expressão: por eles nasce e morre a poesia que neles vive onde não estão Perfil Humano e Poético de Carlos Vogt 53


Essa reflexão sobre poesia e poemas, “ poesia que neles vive onde não estão”, evoca Fernando Pessoa, que ao lado de Sêneca também adverte que ler é maçada, estudar é nada e que – de verdade verdadeira– grande é a poesia, a bondade e as danças. Alertada que estou pela piscadela dos olhos enxutos do poeta – cujo último livro chama-se exatamente Pisca-Alerta, e, barbas – que não tenho – de molho, vou apenas sinalizar alguns cruzamentos de minhas leituras dos poemas de Carlos Vogt com os próprios poemas.

X X Ilhas Brasil, 2002, Poesia reunida p. 430 A imagem substitui o texto mas não tem como contar-se sem contexto. Uma das mais antigas lembranças que tenho de Carlos Vogt é de uma assembléia estudantil na (então chamada) Faculdade de Filosofia Ciências e Letras da Usp, ao tempo em que ela se alojava na Rua Maria Antonia em São Paulo. Éramos calouros e o centrinho dos estudantes de Letras – Centro Acadêmico de Estudos Literários, o CAEL – havia organizado uma reunião de recepção aos calouros. Carlos e mais um punhado de estudantes lá estávamos, e palpitamos à vontade sobre o que achávamos – na época – que deveria ser um curso universitário. Me lembro que o Carlos era dos que mais achava coisas… Logo depois, professores do Cursinho do Grêmio, lá experimentamos os solavancos das facções da esquerda estudantil dos anos sessenta: entre POLOP, PC, PC do B, e AP, uma nova diretoria do Grêmio perpetrou uma intervenção no Cursinho para espanto indignado de quem acreditava que aulas sobre Camões ou sobre Machado de Assis tinham pouco a ver com os atos institucionais que ensombreciam o país. Juntando e jantando esperanças nas discussões e nas aulas daquele tempo sem ar, a figura de Carlos Vogt – de pé, andando de um lado para outro– recortava-se contra as cortinas esverdeadas das salas de aula e dizia que tínhamos, sim, de tomar posições políticas, pois que em política não tomar posição era exatamente tomar posição e, mais fraca de todas. Com certeza, ninguém – nem ele, talvez – sabia que ele estava, então, se ensaiando para lides futuras: a criação do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp, sua gestão como Reitor da mesma universidade, a criação do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo, a presidência da Fapesp e sua posição atual de secretário do Ensino Superior de São Paulo. Da intervenção e dos solavancos sofridos então pelo Cursinho do Grêmio, nasceu o Equipe Vestibulares onde, em apostilas que tinham na capa oito círculos coloridos – cada cor indicando uma disciplina, e a de literatura era roxa –, o nome de Calos Vogt, ao lado de outros nomes – marcava o material para o ensino de literatura. Mas, de professor de literatura a poeta o itinerário foi curto, e dividido com a Lingüística disciplina na qual nosso poeta desenvolveu sua vida universitária.

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HINO EM EGO ÀDÍVIDA ETERNADEUM E X-T E R N O C I D A D Ã O Hino em ego à dívida eterna de um ex-terno cidadão Geração, 1985 Poesia reunida p 180

Sentar sem ar na praça que passa pernas coloridas calor da vida coloração coroar a cor co-or coração urgente preciso correr senão quê se quê não consigo não pago a TV contemplo o riacho e rio do aço Tietê sem andrades noturno sem mários horizontes sem mar sinal de esperar atrás do espelho lá sim que era vida não tinha uma dívida nem dor no joelho urgente preciso correr senão paro se paro não chego não pago meu carro

resvalo no vale nos ramos da praça paris nas estátuas se eu fosse mais jovem viajava num boing vendia meu carro largava meu posto ganhava na loto sonhava algo mais esquecia das mágoas criava um slogan pagava meus juros jurava ter paz urgente preciso correr senão nada se nada não vôo não compro minha casa passeio no paço eu passo amanhã prefiro bem cru receio receio mas janto a esperança no seio no seio no seio do vale do Anhangabaú

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Bibliografia precoce Paisagem doméstica, 1984 . Poesia reunida p. 95

Fui aprender lingüística para entender as palavras ensinei semântica ao acreditar que tudo tem sentido escrevi livros sobre a linguagem buscando não perder as farpas das circunstâncias traduzi textos de hermética lógica e mitológicas depois de viajar por binarismos e termos médios sem deixar de girar por gerações de frases bobas volto ao ponto de que partia: vejo-me gramaticalmente indecifrável diante da técnica da poesia Gramaticalmente indecifrável, o professor que veio lá de longe, de Sales de Oliveira foi uma das vozes que orquestrou a resistência à intervenção na Universidade Estadual de Campinas (1981). Era tempo de política e não de poemas, pois para militância .

O poema é feito de folhas inúteis Poética também, Paisagem doméstica, 1984 Poesia reunida p. 105 Mas, de tantas travessias, de tantas passagens, creio que aos leitores de poesia o que mais interessa são passagens e travessias do reino da linguagem para o reino do poema. Pois não era Drummond que aconselhava: penetra surdamente no reino das palavras: lá estão os poemas a serem escritos. ? Era, e o Carlos de Sales de Oliveira é discípulo atento do Carlos de Itabira. Das drummondianas palavras em estado de dicionário para as palavras em estado de poema, a passagem não é simples nem fácil. O poeta, como já sabia Bilac, trabalha e teima e lima e sofre e sua . O resultado do trabalho é o poema, que, tocando o leitor, fazendo-o sorrir ou chorar, fá-lo descobrir e experimentar um jeito novo de estar no mundo, de olhar para os outros, de entender-se a si mesmo .

MEMÓRIA DO MODERNO Memória do moderno Geração,1985 Poesia reunida p. 161

A poesia precisou que o poema depusesse os paramentos das imagens para que o poeta tentasse a cada lance a grande aventura da linguagem.

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Este poder da poesia, que é ao mesmo tempo fruto da criação (do poeta) e material para a criação (do leitor) não tem receita prévia. Mas tem marcas de identidade que o leitor descobre, e cuja descoberta é muito prazerosa . Ao lutar com palavras , o poeta deixa suas marcas na matéria de que se vale (a linguagem) e no objeto que produz (sua obra). A linguagem em que é escrito o poema se enriquece, tem devassados mais um de seus recursos de dizer, tem explorada mais uma de suas (infinitas) capacidades de significação. E o produto (o poema) – ao inaugurar novos recantos da linguagem, ao selecionar novos modos de dizer, ao combinar antigos recursos da língua de forma inventiva – produz o encanto que dá à leitura da poesia uma qualidade próxima da contemplação do absoluto, oferecendo a seu leitor o que talvez se possa entender como experiência estética.

O S C A Ç A D O R E S D E VA G A L U M E S Geração, 1985 Poesia reunida p. 175

Eu nunca cacei cometas, nunca nenhum saci cavalgou na garupa dos cavalos em que nunca viajei, jamais dobrei a noite das esquinas de Sales Oliveira, sem que tivesse medo de topar com a ausência brusca da cabeça escura da mula-sem-cabeça. Eu fui, isso sim, um grande caçador de vagalumes, (…………………………………………..) Fugar como um vagalume, objeto de linguagem e que apenas na linguagem existe, um poema condensa – como o buraco negro, que os físicos dizem concentrar doses intoleráveis de energia – matéria de vida e de morte. Fisgado na rua ou desentranhado da memória, o poema lá está, e pergunta sem interesse pela resposta: trouxeste a chave ? A pergunta, crucial, é dirigida tanto ao leitor como ao poeta, que negaceia, mesmo quando parece explicar-se

(………………………………………….) Eu fui, isso sim, um grande caçador de vaga-lumes, com vidros cheios de lanternas vivas, iscas de tiques e estalos de pescoço, com tições em brasa riscando a escuridão do Triângulo, que abastecia de lenha as máquinas da Mogiana. Ali, onde meu pai, menino, jura ter visto aparições temíveis, vi apenas o meu e o medo de outros meninos com medo das aparições. Mas o cometa Halley, este sim, eu vi, quando era menino, cortar de silêncio e espetáculo o poente do céu da infância de meu velho pai; vi também muitas outras coisas com os olhos adultos e as mãos atentas de seleiro, que cortavam o couro e teciam arreios para os colonos e azendeiros dos cafezais, Perfil Humano e Poético de Carlos Vogt 57


com estes olhos e aquelas mãos que cortavam o couro e teciam enredos. Por Sales Oliveira, passaram muitos cometas, desses mais triviais que o tempo deixou sem uso e superstição, cometas-vendedores, de roupas, de jóias, de supérfluos, de bijuterias, que pousavam na pensão de Dona Itália; mais freqüentes que os do céu, mais transitórios na terra, fortes, contudo, na regularidade e cíclicos na invenção, cheios de histórias e fantasias, de mundos estrangeiros, de prosopopéias, feitos não só de silêncios luminosos, mas de lâminas sonoras de persuasão. Quando o cometa Halley aparecer de novo e meu pai tiver completos seus oitenta anos, já não serei eu mesmo, sem ter sido outro, não estarei em Sales, tampouco a selaria, a Mogiana, os colonos, os cafezais, não haverá cometas, desses sem uso de compra e venda, por desusados; juntos estaremos a olhar as terras que olham retas o risco branco que corta a noite, a mesma noite em que, meninos, seremos velhos, perto e distantes na solidão.

Desde seu primeiro livro – Cantografia – o itinerário de carteiro cartógrafo de 1982 – um dos traços mais constantes na poesia de Carlos Vogt é o humor rápido, malicioso, como o piscar de olho de quem sabe os sentidos segundos que se escondem por sob os sentidos primeiros. Aliás, melhor dizendo: de quem sabe que ninguém sabe – exceto o leitor que os constrói– quais são os sentidos segundos e os sentidos primeiros … Poesia aberta, que só se completa quando o leitor – apropriando-se do texto– refaz o percurso lapidar de engenho e de malícia do poeta, agora temperados pelo seu próprio engenho e sua própria malícia. Nos 20 anos da trajetória poética de Carlos Vogt mantém –se intocado o gesto lúdico de embaralhar linguagens, reverberando neste embaralhamento a vida contemporânea sobretudo no que este tempo nosso tem de ser um tempo midiático, cruzado de linguagens frases feitas, desfeitas e refeitas no poema:

C O N S Í G N I A Pisca Alerta, 2007 Poesia reunida p. 480 Lema: sempre pronta a solução para encontrar o problema

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Mas nesse encontro com linguagens, assim como o poema também se encontra com outros poemas, o poeta também se encontra com outros poetas. Os próximos e os distantes, os contemporâneos e os antepassados. Carlos Felipe e Cláudio Viller, Manuel Bandeira e Mário de Andrade. Cada poeta, como num revezamento– lê, re-lê e re-escreve seus pares (e seus ímpares…) tornando-se assim a poesia coro de muitas vozes que vão ecoando na memória do leitor:

presença de vinícius Metalurgia,1991 Poesia reunida p. 259 De tudo à tua ausência, por seres um e múltiplo serei atento antes, e com tal zelo, e sempre e tanto que, se te espedaças em vão contra o infinito, recolhem-se os fragmentos no teu canto que sempre se inicia e é sempre último. Por seres, pois, quem me foste um dia, sombra e luz, azul e branco, carnaval e cinzas, sugestão de amor, verbo, saciedade e fome, de repente se me afigura o verso, o samba, a namorada, o bar, em que sentado à mesa em boa companhia, conheci o poeta sem jamais ter visto o homem: o homem com seus sonhos de quem invejo os pares inveja dos seus deuses de quem desejo as ninfas. Na roda de cerveja, entre amigos e dilemas, como um Castro Alves na província ardente de seu coração, recitei retórico a sina do operário que erguendo a casa de sua liberdade construía alheia a própria escravidão; cantei o amor que tive e que não tive (e por isso dura) e porque era sábado ali me apaixonei pela mulher distante, leve e etérea como uma estrela longe, feita não só do mangue de carências longas e amarguras mas da pureza vaga e sensual do sangue dos poemas.

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Mas há momentos na poesia de Carlos Vogt nos quais humor e ironia estancam, substituídos pela emoção. Emoção contida, refreada, moderna. O leitor a sente viva e palpitante. Penso aqui nos poemas narrativos em primeira pessoa, de versos e de estrofes longas, como já são longos os versos e as estrofes dedicadas a Vinícius de Morais. É como se às vezes na anotação rápida e trocadilhesca, nos ritmos velozes e sincopados não coubessem o lirismo, a evocação da memória, a sombra da morte, a infância que se foi mas que sobrevive filtrada pela lembrança : não lembram na memória, senão na reminiscência

RIO GRANDE Rio Grande. Metalurgia, 1991 Poesia reunida p. 247 Aqui, aquém, agora deste rio caudaloso de insignificâncias, deposito a espada de criança. Aqui, onde se agitam emblemas fortalecidos e sujos do sangue dos combates duros, aqui deposito a hora, o cavalo de pau, a armadura de minhas lembranças. Aqui, neste rio que não lembra o Tejo e que não é maior que o rio que passa pela minha aldeia, neste rio feito de imagem, celulóide, projeção e luz, rio de batalhas memoráveis pelos feitos heróicos de generais [quiméricos, divisor conspícuo de províncias convictas, águas virgens de realidade rios de bêbados em barcos sérios. Aqui, como se conta, quase por nada naufrágios rasos obstruíram o curso de históricas descobertas, meninos proibidos de assistir ao filme impróprio tomaram de assalto na noite erma o alçapão do assoalho por trás da tela, na popa da aventura extrema, fi zeram correr, com a cena nua da atriz francesa d’A chicotada, rios infantes de esperma. Rio Grande, não destes de fronteiras territoriais, este de Minas e São Paulo, entre Igarapava e Minas Gerais, tampouco o que corria caudaloso no cine Santa Rita, aquele que não dividia Sales de Oliveira de Orlândia mas separava bandidos e mocinhos, a linha de cima e a linha de baixo pelos trilhos da Mogiana e, pelo mesmo leito seco de máquinas, passageiros,

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comboios e litorinas, heróis e mexicanos, os Estados Unidos e o México, o México da Hispano-América o Brasil da América Latina São Paulo das treze listas Sales de nunca mais. Rio Grande, contudo, feito das erosões da infância, dos cursos caudalosos das enchentes de março e dos outros meses anônimos em que houve cheias. Rio teimoso como o poema, às vezes, corre do mar para a terra e na terra se embrenha claro, poluído, claro contraste de vida e de morte, rio corrente, rio parado, rio de beleza feia. Rio onde nunca vi boi morto nem outro cão emplumado, rio que não corre da serra nem para ela se oferece, rio em cinemascope, branco e preto, rio em cores, águas prenhes do espanto da fruta que amadurece, rio que vi com meu pai na roda dos pescadores no bar do seu Armando. Rio sem águas, rio de temas, rio do não retorno, roteiro de minhas noites, eu menino, eu meu pai, meu pai menino córrego de interiores curso de cinemas rio de morros. Neste belo poema, que merecia um comentário mais longo do que o que cabe aqui, o Rio Grande é ao mesmo tempo o filme de John Ford (1950) que, recuperado na memória do poeta, se multiplica e se subdivide em vários: é filme, mas é também rio – acidente geográfico que marca tantos limites e é também o ramal da Mogiana pela qual viaja – com o poema de Calos Vogt, o rio da imaginação do leitor . É uma outra viagem, a que o poeta oferece a seu leitor em A cidade e os livros. No mesmo ritmo descansado e sem pressa, versos longos e desiguais se derramam por várias linhas.

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Estas se agrupam em estrofes irregulares. Na evocação, um inventário de lembranças. Pessoas, lugares, instituições, leituras e livros traçam o caprichoso itinerário de uma geração :

A cidade e os livros. P. 433-436

Mas que os leitores mais sensíveis enxuguem os olhos: garoa, sai os meus olhos, recomenda o poeta . Obedientes, chegamos ao ateliê do poeta, última estação desta viagem pela obra de Carlos Vogt: metalurgia Metalurgia, 1991, Poesia reunida p. 228 Ponho a palavra em estado de gramatical ofensa, no torno retalho suas redondezas, desgasto obsessivo com a broca da caneta o que há de angular e mole na sentença. Fora, uma forma enxuta, dentro, amor de sequidões, ovo sozinho sem nenhum conceito a circundar-lhe a norma de ser só ovo, sêmen contido, casca de memória. Fazer abrasivo: a lima, a lixa, a mão desgastam por extornos a rixa com o verso, a rima com o avesso; no chão, limalhas, matéria de contornos; na página, o poema: liso, úmido, duro como gelo. No ponto final do poema acima, uma última cintilação, sólida, mas também efêmera como o gelo: a proclamação de que a poesia está na linguagem, na descoberta da linguagem de cada um e da fusão desta linguagem na linguagem de todos. Razão maior para que – como já se disse– contrariando Platão, se leve ao poeta nossa humilde homenagem – que é exatamente o que se faz hoje, aqui com tanta propriedade e justiça–, ao poeta Carlos Vogt, meu amigo de fé, irmão camarada, amigo Carlos Charles, Carlíssimo e Carlão !

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Robson Corrêa de Araújo

Organizador do Recital – Conferência

Maria de Jesus Evangelista (Maju) nasceu em Santa Cruz dos Milagres (Piauí), morou em São Luís do Maranhão, em Goiânia e atualmente reside em Brasília. Doutora em Letras pela Universidade de Toulouse, na França e professora aposentada da Universidade de Brasília.

Perfil Humano e Poético de Cassiano Nunes 63


Viagem em Temas e Verso de Cassiano Nunes Maria de Jesus Evangelista

Das dicções desse momento de homenagens da Biblioteca Nacional de Brasília a Cassiano Nunes, com a leitura de 12 de seus poemas, numa perfeita interpretação das suas emoções, a mais importante é a voz do próprio poeta, no sincero expor-se em doridas confissões com prazer e alegria: “O meu poema é muito real” – afirma ele com grande respeito pela individualidade e soberania do sujeito lírico, revelando o vínculo estreito, indissolúvel com a vida em todos os seus aspectos, em todas as suas manifestações – e não só como poeta, mas também como ensaísta, crítico e cronista. Nesse sentido iguala-se sua obra sobre Monteiro obato, com o selo de real conhecedor com a factura de sua poesia, poesia de extrema sinceridade sobre a miséria humana de “santo e pecador”, numa mística da culpa e redenção. O sujeito lírico sabe-se carecido e busca luz e amplidões. Cito:

Clamo por espírito! Socorre-me, ó Musa? grito de um ser em busca de espiritualidade a um só tempo grito de um poeta visual e de acentuado erotismo. Com essa difícil mística, sua poesia expressa um misto de filosofia humanística e religião, um sanfranciscanismo de mansidão e revolta:

Ah! reconheço quanto sou carecido e como devia, intenso, dedicar-me às criaturas, em vez de simplesmente amar a sua breve metamorfose.

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Sincero também é o seu memorialismo na crônica PORQUE ME UFANO DE PORTUGAL – UM POVO “AO NATURAL”. Cito: Freqüentemente, os filhos de portugueses radicados no Brasil eram “jacobinos”, isto é, antilusitanos. Quanto a mim, fui exceção, pois sempre senti pela terá de meus pais verdadeiro fascínio. Filho de Portugueses, criado portanto numa casa portuguesa, e além do mais tendo vivido em minha infância num meio em que o elemento português predominava, absorvi o lusitanismo com abundância, o que não me impede também de ser exuberantemente brasileiro, tão brasileiro, que, no exterior, os meus patrícios se espantavam com a minha irredutível brasilidade. (1955:145)

SOU DE SANTOS

Nasci perto do mar como Ribeiro Couto. Como ele, cantei o cais de Paquetá, cheios de marinheiros, estrangeiros, aventureiros. Apitos roucos de navios me atraiam para outras terras, propostas sedutoras. Corri mundo. Vim parar no Planalto Central onde, solitário, entre livros, contemplo os últimos anos. Às vezes, à noite, me encaminho para o lado do Eixo e me detenho ante os terrenos baldios (amplidão!) da Asa Sul. Viagem em Temas e Verso de Cassiano Nunes 65


CAIS DO PAQUETÁ

Alegria do cais, substitutiva de límpida alegria que não existe mais. (Mas a alma ainda está viva!) Sim, a alma ainda está viva e com a aguda fome de estrelas e de mitos, que faz a glória do Homem! Ácidas blasfêmias não mudam erva tenra em saibro do deserto: pode a vida estar errada que o coração está certo!

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HISTÓRIA

Nunca amei a Beleza por humildade. Não a mereço, pensava. Procurei, pois, o feio em bairros encardidos. Por sorte, a poesia surgiu e transfigurou tudo. Silhuetas baças toucaram-se de madrepérola. Até que um dia concluí: mereço como os outros. Não há privilégio. Mas era muito tarde e detive-me à janela, contemplando a agonia da noite. Só pensar na Beleza já me fatigava. Ó Dama Pálida! Como é terrível! a tua igualdade!

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CANTO DO PRISIONEIRO

Felizes são os marinheiros que partem sem dizer adeus, e em cada porto de escala renovam o mistério do amor! Felizes são também os saltimbancos que não se detêm em nenhum lugar, e toda noite em teatros decadentes fazem rir quando contam o seu drama… Só eu não parto… Prisioneiro do arco-íris como quem num presídio abafa e expressa a sua ânsia construindo um navio dentro de uma garrafa!

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Como observa Antonio Miketen, (1992:13) “seus versos realizam uma feliz identidade com nossa sensibilidade, com nossas emoções, sua poesia é dessas que atuam diretamente em nossos sentidos sem necessidade de compreensão”. Quase sempre em tom de confissão, “seus versos ecoam em nós como vindos de nosso próprio intimo”. Seu verso livre é ritmo; marcado por enjambemants; é harmonioso, e se irmana à música num sistema de estrofes de clara sintaxe poética. Como no poema “Sacrário”,

SACRÁRIO Poesia: aprendizado perene ou perito artesanato? Ofício é o que é: modesto, proletário. Parvos os que se proclamam ricos, vencedores. Não há vitória nesta parda rotina, não obstante o invisível esplendor. Conserva, pois, humilde, em eucarístico silêncio, encerrado no peito, o deus.

O ritmo é matéria prima de uma arte poética de lição e oração, de viridiana transparência na recriação do inefável. Como essência, sua poesia é espiritual e humana. Há muito conheço esse fazer poético em que se realiza também um ser ético e solidário, em oferta de singela beleza e arte sempre à disposição de quem deseja ascender às estrelas – símbolo constante de sua poesia – e mergulhar “nas águas purificadoras que amortecem sedes renovadoras”, como diz Miketen.

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Seus amigos, professores, alunos e acadêmicos sempre receberam, em festa de Natal ou aniversário, “dessa água” como os 12 poemas desse Tributo quando ainda inéditos e outros escritos publicados quase mensalmente pelo ensaísta e pesquisador de cultura, arte e literatura dos mais profíquos de nossa história literária. Aliás, Cassiano faz parte de um grupo e jovens intelectuais de Santos, chamados de “Os Pesquisistas”. O tema família, particularizando as relações com os pais, substancia a estética do “romeiro sentimental”, Cassiano Nunes Botica, quando de sua viagem a Portugal, em 1956, portanto antes de se revelar poeta, o que ocorre em 1962. O encontro de Tomar, não a cidade dos arqueólogos, mas sim

“A Tomar que procurava proustianamente era mais singela. De casas pobres sem estilo. De gente humilde sem “dom”. Eu estava no encalço da Tomar de minha gente – gente obscura, analfabeta ou de poucas letras: lavradores urbanizados nas últimas décadas, e transformados em pedreiros, carpinteiros e choferes. Quisera perguntar-lhes como pôde derivar a minha inquietação dêsse estuário de simplicidade. Que desígnio estranho formou o escritor, provindo de tantas gerações de lavradores, alheios aos livros? Que contradição inexplicável entre mim e a minha ascendência!”. São poemas longos, considerando-se aqueles de emoções intimistas. As relações do poeta com os pais são tensas: “Guardo magoas do meu pai, difíceis de apagar. / O raciocínio e a generosidade / insistem pelo perdão, / de que me defendo, / com a força de um instinto.” confira os “Os Bombons da Leonesa” e o poema “Fantasma”.

OS BOMBONS DA LEONESA Após o duro dia de trabalho na oficina mecânica, lavado e depois da janta, meu pai saía à noite. Ia conversar com os sócios, colegas e fregueses, no café A LEONESA do largo do Rosário, onde toda a gente se encontrava em Santos. A vida era mais social e humana naquele tempo. E da LEONESA, que era também confeitaria,

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Papai me trazia bombons de chocolate com licor, deliciosos. Mas o que mais me seduzia nos bombons era o seu invólucro de papel prateado. De diversas cores, sempre rebrilhantes, eles me deslumbravam. Provocavam a minha fantasia, a vocação para a Arte, que porventura havia em mim, em germe. De manhã, ao deparar com o presente imprevisto, sobre a cama, ficava cheio de contentamento. Hoje, velho, penso ainda na LEONESA e seus bombons. Guardo mágoas de meu pai, difíceis de apagar. O raciocínio e a generosidade insistem pelo perdão, de que me defendo, com a força de um instinto. Mas penso nele com ternura, ao evocar os bombons da LEONESA. Não pelo chocolate saboroso, nem pelo papel brilhante e colorido. Mas porque o costumeiro presente parecia revelar um pensamento amável, a terna lembrança de meu pai por mim, ser insignificante, no meio das distrações numerosas da cidade. Então, num túnel escuro, uma luz alvíssima cai sobre mim e me transfigura e redime.

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“Os Bombons da Leonesa” é um poema de grande dramaticidade sobre auto-censura, generosidade e ternura, com elevada espiritualidade do sujeito lírico. Intelectual na acepção de que todos os sentidos estão alertas para a compreensão e o perdão, termina com uma característica fundamental da poética cassianiana: um gran finale de ascensão e espiritualidade. Como em Dante Allighieri (PARADISO):

si como rota ch’igualmente è mossa, l’Amor che move il sole e l’altre stelle. Cassiano finaliza o poema de conciliação e mística cristã:

Então, num túnel escuro, uma luz alvíssima cai sobre mim e me transfigura e redime. Malgré lui, envolve-o acentuada ternura, ao recordar a amável lembrança do pai trazendolhe o costumeiro presente dos bombons da conceituada confeitaria da rua do Rosário. Não menos significativo, mas marcadamente simbólicos do amor materno, embora sem a mesma força dramática, são os versos sobre a figura da mãe: “Temerosa, minha mãe prevenia-me: / fugisse dos ciganos, roubavam meninos.” // ó casa materna, / útero alcatifado de minha mãe, do poema “Casa das Palmeiras”, à Drª Nise da Silveira, naturalmente.

CIGANOS Temerosa, minha mãe prevenia-me: fugisse dos ciganos, roubavam meninos. Amedrontado acautelava-me. Detinha-me à porta e via-os partir, colorida farândula, impetuosa como o instinto, no olhar um brilho de vinho. Obscura nostalgia então me possuía por aquelas terras para onde eles iam, por volúpias que deviam ser parte de suas vidas, e a mim era negadas, prisioneiro do incolor. A atração sem resposta doía ambiguamente.

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Hoje, realista, sei que esse país de desejo nunca existiu. Inventava-o apenas o grito da minha mais íntima fome. Na véspera de completar 86 anos, Cassiano Nunes concedeu aos jornalistas Pedro Paulo Rezende e Fernando Marques, importante entrevista, publicada no “Pensar” do Correio Braziliense, de sábado, dia 28 de abril, desse ano de 2007. O título da entrevista – “O poeta não deve ser solitário” – é do próprio Cassiano e toda ela tem extrema significação no que concerne à vida e obra do escritor. Hospitalizado desde sexta-feira última, 8 de junho, ele me recebeu com a reiterativa frase desses últimos dez anos: ”eu não estou bem, minha filha” expressão igualmente repetida como alerta aos dois jornalistas. Percebo nesse título e na expressiva presença de pausas e reflexões, um repensar do poeta sobre a vida que poderia ter sido, a remoer questões metafísicas e filosóficas que embasaram sua escrita e nortearam seu modus vivendi. No duplo sentido solitário/solidário da frase, parece-me revelar um questionamento sobre o poeta da “torre de marfim” e o escritor engajado na “marcha para o Oeste, ou a ombrear-se com os seus patrícios sem terra. Confira “Cuiabá” (1992:93), “Invasões (1998:45-48).

CUIABÁ Toco o útero da nossa América nos teus becos (Beco do Candeeiro, Beco do Cabo Agostinho), nas tuas casas centenárias, rústicas, baixas, despojadas (e apenas adornadas de beirais duplos e até triplos), que podiam ser de Itu ou do Crato, na sua fisionomia brasileira. Até a entrada de tua Delegacia de Polícia oferece uma paz de convento colonial (Quantas violências não terá conhecido tua cadeia retirada, em madrugadas trágicas!). Os bandeirantes não legaram o ouro, os diamantes:

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apenas uma semente que és tu mesma, Cuiabá! Cidade simples, elementar, mas fecunda, como o ventre de todas as caboclas – nossas irmãs e nossas vítimas – deste imenso Mato Grosso que é o nosso país. Recebeste no mais íntimo do teu seio contemplo amorosamente teu rosto sério cafuso) o sêmen do Sonho Nacional. Cidade central, que estás parindo o futuro Brasil!

Essas pausas nesse momento crucial vão, na minha interpretação, da família à literatura, como a questionar-se se não teria sido mais feliz trazer ambas na sua essência, numa existência mais completa, de felicidade, como costuma dizer. Nesse sentido, Mário de Andrade o alertara a propósito do seu entusiasmo de jovem no sonho da função da arte e literatura na formação cultural de um povo. Eram os difíceis anos de 1940. Cassiano discursava sobre poesia, distanciando-se da família. Mário certamente lhe puxaria as orelhas se lhe ouvisse a afirmação, como algumas vezes eu ouvi: “A literatura é a minha família. Casei-me com a poesia”. Quanto a isso, os temas são transparentes, motivando a frase pouco comum aos escritores: “O meu poema é muito real”, conforme se encontra no poema “Sobrevivente” (1997:80):

Ao fim, existo eu apenas, solitário e vertical, sobrevivente do dilúvio das ilusões. O verso cassianiano tem a espontaneidade das coisas simples. Tem o ritmo dos passos do poeta pelos caminhos do mundo e tudo é-lhe matéria de poesia. Tributário das liberdades dos modernistas dos anos de 1930, ele cria o seu ritmo, do verso livre a serviço da música das coisas. La musique avant toute chose, repete para sempre lembrar Verlaine seu mito e dor. À feição de Bandeira insere-se na poética de reflexão sobre o fazer poético – a metapoesia dos anos de 1980-90 – que se transforma em temática de Poesia, com igual força expressiva e originalidade do sensualismo e do erótico que estrutura quase toda a sua obra poética. Nunca é demais citar Edson Néry da Fonseca quanto à conceituação de sua poesia e arte:

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“Cassiano Nunes é um poeta existencialmente intimista. Ama os hotéis humildes, os ofícios menores, a arte chamada pobre, os animais sofredores. Ele descobre a poesia insuspeitadamente jazente em pessoas, coisas, animais, episódios, gestos de seu viver cotidiano. Não se trata, entretanto, de um poeta popular, mas de um homem extremamente requintado em suas preferências literárias, musicais e pictóricas”. Cassiano Nunes se descobre poeta relativamente tarde, por acaso sob juízo de Antonio Candido, na Faculdade de Assis. Publica seu primeiro livro com o título de Prisioneiro do Arcoíres, um tributo às cores, numa bela edição de forma artesanal com caligrafia de Humberto, impresso nas oficinas gráficas de Massao Ahno Editora, São Paulo, 1962. Dizendo-se inventor do arco-íres fica prisioneiro para sempre dos anseios de partir, pegar navio e ser feliz vaga-mundo de porto em porto e países. Em 1972, publica Jornada, pelo Clube de Poesia do Brasil, criação fundacional de cultura e arte do professor e poeta Domingos Carvalho da Silva, com sede na capital paulista, depois em Brasília. O nome jornada é metáfora e símbolo em toda a sua poesia, o qual se repete em duas outras edições, 1984 e 1992 com novos poemas a que se acresce o sub-título Antologia Poética. Ambas foram publicadas pela Editora Thesaurus, de responsabilidade de Victor Alegria, seu proprietário e presidente, primeiro homem de letras – pelas letras de Brasília: O pioneiro. Da amizade a Cassiano e por amor à poesia, Edson Néry, edita Madruga / Poemas, numa primorosa edição da Pool Editorial Ltda, Recife, 1975. Ambos nos presenteiam com um “Encarte do Confidencial Econômico Nordeste” – no 1/1977, – também editado pela Pool de Recife – com o inventivo título: Sabor de Brasil, (Arte como alimento do espírito) que considero original diálogo sobre modernos poetas da predileção dos dois escritores e grande influência na poética de Cassiano Nunes: Mário, Bandeira e Drummond. No meu exemplar, Cassiano acrescentou com sua firme e inconfundível letra: “script para um disco”. Essas obras esgotaram-se rapidamente Novas Antologias são publicadas no Rio de Janeiro pelas Edições Galo Branco, 1997, Poesia I, em 1998, Poesia II, atualmente esgotadas. Apesar de muitos dos seus poemas terem sido traduzidos, principalmente para a língua inglesa, somente em 1998 sai uma tradução em livro, realizada pelo diretor dos Cursos de Tradução e Intérprete da UnB, Mark Ridd, sob a chancela da Oficina Editorial / Instituto de Letras–UnB, com o ensaio “As sete faces de Cassiano Nunes”, de Danilo Lobo. À espera de poder publicá-los, guardo alguns inéditos do Cassiano. Como membro da Anpoll e da ABRALIC, apresentei comunicações em Congresso Nacional de Porto Alegre – RS e Belo Horizonte, em cujos anais foram publicados dois desses inéditos. Para concluir, uma referência à Música, (“arte que mais fala à nossa sensibilidade, é a grande linguagem universal”), muito presente na vida de Cassiano Nunes. O pai tocava Piston e o poeta também cantava sem desafinar e sempre com muita alegria, ao microfone de seu amigo Garoffalo. O pai tocava Piston e o poeta também cantava sem desafinar e sempre com muita alegria, ao microfone de seu amigo Garoffalo. Cassiano tem poemas musicados, alguns gravados, nos USA e Brasília. Sobre isso, assim se expressa Danilo Lôbo, poeta e crítico das sete artes: “Curiosamente, embora sem saber música, Cassiano compôs a letra e a melodia de dois sambas (A ingrata Madalena e Vem se queres), assim como a música de “Serenata”, poema

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de Martins Fontes. Esta última composição, segundo o próprio autor, teria sido executada por grande orquestra sinfônica durante as comemorações do Quarto Centenário da capital paulista, ocorrido em 1954”. Ainda inédito e do conhecimento de poucos são os poemas que vinham sendo musicados por ele, pelo maestro Cláudio Santoro e o professor Emílio Terraza. Com rara emoção descobri em 27 de abril, deste 2007, numa pasta com o nome Maju, uma cópia de uma dessas partituras. Ao termino dessa nossa “Viagem” en vol dês oisedux, à imitação do poeta, que finaliza a última de suas crônicas sobre Portugal, nos deixa “a máxima das máximas” – tão particularmente sua: “criai vossa felicidade”, nós nos oferecemos a nostalgia da Despedida, marcadamente presente nos poemas:

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POEMA DO AEROPORTO

Que ficou de mim nos quartos de hotel? No verde quintal da infância? Nas cidades estrangeiras, Testemunhas da solidão? Ah! A indiferença ofensiva das coisas! A desmemória natural nos homens! O ataque ininterrupto do Templo! Por que não sou como os marinheiros que bebem esquecimento? Antes pertenço à espécie dos pássaros, que se embriagam de amplidões, sem que lhes amorteça o instinto do ninho.

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CONTEMPLANDO O PORTO DE NOVA IORQUE

Amo o que há de ambíguo num porto do mar, que convida a partir e ensina a ficar… Talvez por ter sido um prisioneiro, cristalizei em mitos: navio e marinheiro! Agora, corro mundo… Não importa aonde vá! Levo comigo a música do cais do Paquetá!

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ENVELHECER

Envelheci como as árvores envelhecem. (Que saudades de ti, Olavo Bilac!) Envelheci como até a terra envelhece. Como, talvez, as rochas envelheçam. Embora isto leve séculos, milênios. Envelheci como as mulheres belas envelhecem. E vão depois, agônicas, tentar a recuperação da beleza – magia do Pitanguy… Envelhecemos todos e isto faz parte da Natureza como o sol, as estrelas, o mar… Os pássaros, decerto, também envelhecem. Vivemos o efêmero sonhando um presente eterno. Mas tapete movente, imperceptível, silenciosamente, vai nos levando… Para onde? Afinal, envelhecer é tão natural! Não há vergonha, fracasso, infortúnio, em envelhecer.

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As folhas caem. A queda da maçã proclama que a terra é fecunda. Que o memento da mudança, da despedida, seja doce e breve! Como o sol aparece – suavemente. Como um beijo apaixonado que desabrocha e logo se desfolha.

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INSTANTE

O regato caminha Cantarolando sua eterna infância. Ora pássaro, ora elefante, a nuvem plana no rinque aéreo – azul. As flores morrem como nascem: sorrindo. Oh! deixa-me cair Como cai uma folha ressequida, plena por ter vivido a sua própria vida.

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Organizador do Recital – Conferência

Anderson Braga Horta, nascido em Carangola, MG, em 17.11.1934, é poeta, contista e crítico literário. Publicou O Horizonte e as Setas (contos, em colaboração, pela Horizonte, em 1967) e os seguintes livros de poesia: Altiplano e Outros Poemas (Ebrasa, Brasília, 1971), Marvário (Clube de Poesia de Brasília, 1976), Incomunicação (Comunicação, Belo Horizonte, 1977), Exercícios de Homem (Comitê de Imprensa do Senado, 1978), Cronoscópio (Civilização Brasileira, Rio, 1983), O Cordeiro e a Nuvem (Thesaurus, 1984), O Pássaro no Aquário (André Quicé, Brasília, 1990), Dos Sonetos na Corda de Sol (Guararapes, 1999), Pulso (Barcarola, S. Paulo, 2000), Quarteto Arcaico (Guararapes, Jaboatão, 2000), Fragmentos da Paixão (Massao Ohno, S. Paulo, 2000), Antologia Pessoal (Thesaurus, 2001), 50 Poemas Escolhidos pelo Autor (Galo Branco, Rio, 2003). Publicou ainda, por esta Editora, com apoio do FAC, A Aventura Espiritual de Álvares de Azevedo: Estudo e Antologia (2002), Sob o Signo da Poesia: Literatura em Brasília (2003), Traduzir Poesia (2004), Testemunho & Participação: Ensaio e Crítica Literária (2005) e Criadores de Mantras: Ensaios e Conferências (2007).

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Perfil Humano e Poético de Fernando Mendes Vianna

Juvenildo Barbosa Moreira

Anderson Braga Horta

Diz Fernando Mendes Vianna, fechando um dos mais fortes poemas de A Chave e a Pedra, o “Políptico do Morto”, que “a morte é uma festa solitária”. Mas Fernando, vivo, era uma festa efusiva para os amigos, para quem o visse e ouvisse dizendo versos seus ou alheios. Seu carisma de orador e declamador cativava os ouvintes. Tinha a volúpia da palavra. Difícil era contê-lo em limitações de tempo: ele as desbordava quase sempre, sem que o auditório desse mostras de cansaço ou impaciência. Encantava as pessoas. Era um autêntico poeta, culto, refinado, que, outro Midas, transformava tudo o que tocava no ouro da poesia. Luiz Fernando de Sá Mendes Vianna, carioca, nascido em 1933, ao deixar o Rio de Janeiro pelo Planalto Central, em 1961, era já um considerável poeta. Em Brasília construiu a maior parte de sua existência. Nesta cidade faleceu em 10 de setembro de 2006. Teve morte que gostaríamos de merecer, como dádiva divina. Naquela manhã de domingo, levantou-se cedo, como sempre; fez o café e, como de hábito, sentou-se à mesa para escrever. Foi encontrado pela família, pouco depois, no chão, com a caneta, papéis e um poema esboçado. Estava livre, afinal, podendo, como jamais, dizer os versos emblemáticos da “Ode do Liberto”:

Às margens de um rio que não existe, invento as águas da existência e bebo. Era, de certo modo, um solitário, da solidão em que se embebem os grandes poetas. Mas não se isolava. Membro da Associação Nacional de Escritores, da Academia Brasiliense de Letras e da Academia de Letras do Brasil, ex-presidente do Sindicato dos Escritores do Distrito

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Federal, que ajudou a fundar, grande divulgador de poesia alheia, declamador singularmente bem-dotado, o autor de Proclamação do Barro assume integralmente a condição humana e engaja-se na luta superior pela emancipação e ascensão da espécie, em todos os planos. Em 1968, em plena ditadura, foi dos primeiros signatários de manifesto dos intelectuais do Distrito Federal em “repúdio aos atos de brutalidade praticados contra a mocidade estudantil”, motivado por violenta invasão do campus da Universidade de Brasília. Em 1970, liderou movimento de adesão ao protesto iniciado por Alceu Amoroso Lima contra o estabelecimento da censura prévia a livros e periódicos. Ao lado de Vladimir Diniz, atuou em processo de inspiração autoritária movido contra Nicolas Behr, emitindo parecer em que se fundamentou a sentença absolutória do jovem poeta brasiliense, proferida pelo juiz Petrúcio Ferreira da Silva. Em 1973, nucleou-se em torno dele a “quixotesca” FAC – Festa de Arte e Cultura, movimento “ecumênico, seguindo as linhas de uma democracia utópica”, adjetivo aquele e expressões estas do próprio Poeta, que rememorou seu nascimento e prematura morte em testemunhos a Danilo Gomes –Escritores Brasileiros ao Vivo– e a Maria de Souza Duarte – A Educação pela Arte (o Caso Brasília). O movimento, abortado embora (talvez por culpa de seu gigantismo), teve sobretudo o mérito de, ainda no período da repressão, reunir publicamente centenas de intelectuais e artistas, aglutinados em volta de coordenadorias autônomas, tantas quantos os setores culturais envolvidos – poesia, teatro, música, dança, artes plásticas, cinema… Para falar do relacionamento do Poeta com a cidade que adotou, passo a palavra a Joanyr de Oliveira, que lhe incluiu a “Crônica Elegíaca de Brasília” na antologia Brasília na Poesia Brasileira. Como ninguém –diz o autor de O Grito Submerso– soube Mendes Vianna “retratar a metamorfose por que passou a bugra adolescente, quase menina, que ele conheceu, a construir-se na aridez do cerrado …. fotografou, assim, não a cidade translúcida e definitiva, mas o seu delinear abrupto e incontido e em voz plangente eternizou em versos belíssimos a inocência e a humildade que jamais voltarão”.

Ordem na Indisciplina. A poesia de Mendes Vianna nasceu sob o signo da liberdade e sob esse mesmo signo floriu e frutificou. Explosão libertária que é, junge-se ao império do sangue; mas nem por isso deixa de ser uma poesia altamente intelectualizada, em sua expressão, e uma poesia de pensamento, em seu conteúdo. Essa mente e esse coração libertários agem pelos braços de uma rebeldia radical e de uma constante autoprocura, que implicam o paradoxo de uma disciplina dentro da indisciplina. Poesia de instrumentação forte e voz veementemente humana, transfunde-se no corpo verbal adequado a seu profundamente atual –porque eterno– pensar-e-sentir os problemas do homem, na condição de ser único e na de célula social, mas recusa-se a quaisquer semostrações pseudovanguardistas. A consciência, ou, melhor dizendo, a assunção dessa complexa máscara, que é ele mesmo, leva-o, desde o primeiro livro, a discernir no poeta um ser prometéico, luciferino: um demiurgo, sim, mas um rebelado, orgulhoso em sua titânica solidão. Em 1958, um dos nossos maiores descortinadores de vocações literárias, também ele notável escritor, o poeta Augusto Frederico Schmidt, na época associado ao editor Simões, apadrinhava o lançamento nas correntes da publicidade de uma poesia destinada a formar entre as cumeadas de sua geração. O livro era Marinheiro no Tempo e Construção no Caos. Domingos Carvalho da Silva saudaria o estreante como um esbanjador de “qualidades que faltam a muita gente veterana”, vaticinando “mais altos vôos” ao seu “espírito inquieto e insatisfeito”. Palavras igualmente encomiásticas profeririam críticos do porte de Antonio Olinto, Eduardo Portella, Oswaldino Marques, Sérgio Milliet e tantos outros que o colocariam,

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no início da década de setenta –lembra-o Tristão de Ataíde– “como representante máximo da geração dos novíssimos”. José Guilherme Merquior lhe dará por mais notável característica o “ser, dos realmente dotados, quem melhor preenchia a condição de poeta-pensador”, com uma poesia filosófica, cujo verso “sempre dizia do Ser”. Tristão de Ataíde o chamará de “mestre”, “típico do que a nossa poesia neomodernista tem de mais alto”. Naquele dúplice livrinho, exibe o Poeta um lirismo de acento metafísico na exploração de temas como o mar e o tempo (muitas vezes entrelaçados, ou confundidos, qual no título); a poesia, o poeta; o destino, a vida, a morte; o amor, a solidão. Aliado a isso, o verso livre, sem preocupações de contenção, sensivelmente mais voltado ao que-dizer do que ao comodizer, parece reforçar a sugestão de afinidade da dedicatória – a Augusto Frederico Schmidt, e a Murilo Mendes. Nota-se-lhe melhor domínio do verso sem medida. Não obstante, o poema ritmado –ainda que polimétrico– como tantos dos que contribuirão para a fortuna do livro seguinte tem já exemplos, de que é paradigma “O Rubro”, característico. Em Marinheiro no Tempo e Construção no Caos, vaga o poeta ainda meio perdido no vasto mar da própria poesia, poesia-mar que ele vai construindo no ou do próprio caos. Já um grande talento revelado, se bem à obra faltando ainda a maturação formal que apresentará o segundo livro. Perdido, sim, de certo modo, porém não desnorteado. A bússola, ele a empunha no poema “O Destino”, e o norte, ele mesmo o estipula:

fazer da vida um longo invento. A Chave do Talento. Se não se pode restringir o valor do livro de estréia a mera promessa, generosa embora; se estão nele presentes os germens de uma das mais fortes poesias de nossa época, a verdade é que só a partir de A Chave e a Pedra, surgido em 1960, vem a mostrar-se o Poeta no pleno domínio instrumental. Adquirem maior contenção e poder de contágio os poemas breves, as impressões. Apura-se o ritmo, sem que tal signifique submissão ao isometrismo. O conjunto ganha homogeneidade em mais alto nível de realização formal. Acentua-se a busca de si mesmo –o núcleo submarino de “O Poeta”– e do mais alto – o sol entressonhado de “Navio Cego”. A Chave e a Pedra foi saudado por Oswaldino Marques como um dos maiores acontecimentos da safra poética brasileira do lustro, ao lado de A Viagem Humana, de Manoel Caetano Bandeira de Mello, e de O Poder da Palavra, de Foed Castro Chamma. Fernando abre de par em par uma porta importante, para dentro, seja como personalidade poética, seja como pessoa, tão-só. Misticismo mais apurado, mais madura forma. O Poeta, como tal, dá acabamento ao seu projeto estético. Os poemas de menor extensão atingem o equilíbrio perfeito, havendo entre eles verdadeiras jóias coruscantes de beleza, a beleza leve e profunda, grave porém capaz de vôo, voante mas dolorosamente humana, emblematizada n’“O Hipogrifo”:

Este é o animal de minha sina, mais que Pégaso minha montaria: cascos de vento, garras de agonia, simbólico-mitológico ser que devora e recria o poeta em sua dupla constituição de bicho da terra e anjo-demônio de todas as esferas.

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É a fase metafísica do Poeta, ou sua culminação, quando ele “se coloca” –diz Tristão de Ataíde– “em face do mundo como pedra à procura de uma chave, isto é, de uma solução para o mistério”. É a fase dos poemas curtíssimos, incisivos, perfeitos, como este “Rio”: O Tempo, esse rumor de água corrente. Um instante em nós; depois, eternamente. Por outro lado, os poemas maiores, como “Políptico do Morto” e “Exílio do Touro”, antemostram a explosão que viria, com a passagem da brevidade emblemática da Chave à torrencialidade da Proclamação do Barro. Mendes Vianna transita, com esse livro de 1964, do pensamento metafísico para o social, consoante as palavras introdutórias de José Guilherme Merquior. “Sua linha mestra” –palavras do crítico– “é uma poética do corpo; um canto em louvor do nosso ser corporal, e em favor da libertação do corpo”, cujas implicações sociais lhe parecem solarmente claras: “Tanto em suas origens quanto em sua finalidade, a poética do corporal fere motivos sociais” e visa, em última análise, “à liberdade humana, em todos os campos e em todas as dimensões”. Nem se esquece o ensaísta de frisar que Fernando “não cai na facilidade de ‘trocar’ seus cuidados metafísicos pelo interesse estreitamente político: antes os transforma, antes os amplia, erguendo-os à altura de problemas plenamente antropológicos – problemas do homem total”. Para Tristão de Ataíde, a poesia de Mendes Vianna passa, com a Proclamação, a uma segunda etapa, em que “deixa de ser esotérica [com s] para ser exotérica [com x]”: “O poeta se abre e empunha a palavra, não como uma chave mas como uma cunha”… Entende ele que “a ‘proclamação do barro’, longe de ser uma apologia da natureza e da matéria-prima do universo, reveladora da unidade de sua criação, era a verificação patética do multiverso, do caos como essência da vida”. Livro importante, para a carreira do Poeta e para as nossas letras, Proclamação do Barro foi como uma irrupção de sangue num tecido que se esclerosava, comprometido por modismos tão preocupados com equívocas e rebarbativas inovações formais que se esqueciam de dizer o Homem a se lhes esconder por detrás. Ou o soletravam numa desaprendida língua.

Romântico e Barroco. À dicção romântica predominante na Proclamação sucede o barroquismo de O Silfo-Hipogrifo (1972), em cujas asas ascende o Poeta a um espiritualismo renovado, vivido, vivenciado, sofrido. Prosseguirá essa linha Embarcado em Seco. Em ambos esses livros, veria outro ilustre bardo, Moacyr Félix, ressaltar “o coração de um poeta aprisionado: prisioneiro que sabe agora só dentro de si os uivos da liberdade”. O Silfo-Hipogrifo culmina a terceira fase, cujo início Tristão de Ataíde coloca em 1969, com a publicação do “Salmo para Órgão e Orquestra”, poema em que, para ele, se manifesta em todo o esplendor “o formidável poder verbal do poeta”. Adquire então, diz o crítico ilustre, a poesia de Fernando Mendes Vianna “uma dimensão transcendental e mística, que a eleva ao nível de seus grandes predecessores” (Murilo Mendes e Jorge de Lima). Um misticismo –sublinhe-se– que não repele a realidade do corpo e suas exigências (a propósito da relação corpo-alma, leia-se e releia-se a belíssima “Canção do Coração”). Em contraponto à Proclamação, o Silfo compõe-se de poemas em geral metrificados, entre eles muitos sonetos. Fala Tristão de Ataíde em “formidável poder verbal”. Diria até que, detentor de tão

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extraordinário vigor, arrisca-se o Poeta, por vezes, a fazer dessa força a sua fraqueza. Mesmo, porém, quando se entrega ao excessivo, como que desejando comprimir num poema toda a extensão desse poder, salva-o da queda a asa de seu Pégaso. Em O Silfo-Hipogrifo esse poder ressurge armado de impressionante parafernália. O primeiro poema, “A Crise”, sozinho, quase esgota o arsenal de recursos: a aliteração, a rima interna, o jogo de cognatos, a criação vocabular, a pausa métrica, etc. É de 1979 Embarcado em Seco. Onipresente, o Mar. Mar que é o tempo e a eternidade, vida-morte, Pai-Mãe, o Cosmo, abismo, mistério, a integralidade do ser – em comunhão com o Universo visível e invisível. Tônicas: a autoprocura, o desentendimento com o mundo. Almeida Fischer, na grande obra crítica que é a série O Áspero Ofício, destacando os poemas longos de Embarcado em Seco, nomeadamente as “Odes Talassocráticas”, registralhes, além da “fluência extraordinária”, do “ritmo …. largo e correto”, a “linguagem bastante trabalhada …. viril, poderosa como o mar”, esse mar a que seria “um cântico nostálgico” o livro quase todo. No ano seguinte ao de Embarcado em Seco, Fernando Mendes Vianna publicaria, em Poesia Viva 2, sob o título O Órfão Explosivo, poemas dos livros anteriores de mistura com inéditos, dentre os quais nomeio “Oratório do Corpo”. A propósito desses poemas caberá, melhor talvez que de referência aos anteriores, dizer da coexistência de dois aspectos em certo modo opostos do Poeta: a direiteza romântico-realista, que pode bem ilustrar a leitura de “Pastoral” e de “Oratório do Corpo”, e a barroca luxúria, sinuosa e pletórica, patente em “Epitalâmio” – para ficarmos na temática amorosa. Parte importante de sua fábrica poética é o trabalho de tradutor, iniciado com o opúsculo Poemas do Antigo Egito, em 1965. Trinta e quatro anos depois, inauguraria nova fase na tradução de poesia, com os 110 Sonetos de Amor e de Morte de Francisco de Quevedo. Pouco mais tarde, lançaríamos, com José Jeronymo Rivera, em parceria de que me orgulho, as edições bilíngües de Poetas do Século de Ouro Espanhol (Embaixada da Espanha, 2000), Victor Hugo – Dois Séculos de Poesia (Thesaurus, 2002), O Sátiro e Outros Poemas (Galo Branco, Rio, 2002), e –saída pouco depois de sua morte– a Antologia Poética Ibero-Americana.

O Símbolo da Rosa. Fernando conhece tudo de seu mister. Sabe o que fazer com as idéias –que entram na circulação sangüínea do poema sem o transformar em panfleto–, segura nas mãos as rédeas da metáfora (e nele a metáfora mostra, não raro, um vigor quase selvagem), permite-se jogar, sem se perder nos desvãos do acaso, um jogo luxuriante e luxurioso com a palavra. Ele brinca amorosamente com as palavras. Não se trata de um brincar vão, ou infantil, senão de um lúdico tratar de ânsias e essências, de idílios e de dramas, de pensamento e sensualidade, e o resultado desse jogo é sempre um artefato poético de profunda e faiscante beleza. A rosa, símbolo poético e místico universal, é presença notória nesta poesia. A essa dupla função simbólica Fernando acrescenta, com grande sabedoria expressiva, as próprias circunstâncias. Retomando-o no livro derradeiro, desde o título, mas particularmente no soneto de abertura, “Arte Poética”, ele nos mostra a identidade fundamental entre a aortaninho de si mesmo e A Rosa Anfractuosa de sua arte, entre a pétrea rosa do espírito que luta por abrir-se ao sol do cimo e a chaga jucunda e amorosa do viver, dualismo pedra-flor, áriagarra, condor-canário, anjo-animal, que realiza a luminosa síntese no cristal do poema – se me é concedido jogar livremente com as metáforas poderosas do Poeta.

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Tal é, em síntese, o seu perfil humano e poético, registrados, e superficialmente comentados, os aspectos que desejei sublinhar na obra deste “grande e difícil poeta”, como o qualifica Tristão de Ataíde. Mero depoimento de quem habituado ao mergulho nesse mar, ao impacto sempre novo dessa importante, densa, humaníssima e bela poesia: bela no vôo, bela na tentativa de conquista do Alto e ainda –tragicamente– bela na frustração de pertencer à terra. Fernando Mendes Vianna é um dos mais legítimos temperamentos poéticos e uma das mais refinadas vozes de nossa geração. Forma, com destaque, entre os que, neste tempo chão, testemunham a altitude e a permanência da Poesia.

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Poemas de Fernando Mendes Vianna

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O RUBRO De Marinheiro no Tempo e Construção no Caos

Rubro, rubro vivia. Assim rubro, escrevia. Quando escrevia, sangrava. Sangue da alma se ouvia. Mesmo cantando alegria o sangue da alma gritava. Rubro, como escrevia, chorava, amava, ria. Quando escrevia, sangrava. O sangue na folha secava; mas a cor não se esvaía…

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O HIPOGRIFO De A Chave e a Pedra

Este é o animal da minha sina, mais que Pégaso minha montaria: cascos de vento, garras de agonia. Seu bico recurvo me examina. Em seu dorso nada me alivia. Do Alto sua gula me desvia. Seu galope na terra me alucina. Este animal é toda a minha sina. Ele me devora, ele me recria.

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POEMA De A Chave e a Pedra

Meu, o lenho de veludo e flama, ígnea flora de um impacto obscuro. Traço um lanho, rito de sangue, pacto em alarido, pasmo, céu aberto. Acre, arde um rio em minha cama. Verde, salta uma fronde nos espaços. Uma estrela cadente risca o espasmo. Um desorbitado grito rompe os muros. Estremecem do núcleo os fundamentos. Nasce o júbilo, enlouquece um pássaro. Desaba minha falsa arquitetura, no jorro total dos elementos. Carne, somos carne, urdidura de barro sem angústia de impureza. Rui agora meu destino de incerteza, alumbra-se num instante o meu futuro, E sinto que sou: animal sem alarme.

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POLÍPTICO DO MORTO De A Chave e a Pedra

A meus pais I A MORTE Assim desejaria a morte: alegria de não ser eterno. Morrer à noite. Ou em pleno dia. Ou numa tarde, chuvosa ou rubra. Ou – por que não? – de madrugada. Se acaso me ansiasse imortal, qualquer tempo seria terrível. § Não me fechem os olhos. Muitas vezes contemplei impassível um peixe assassinado e seu grande olho estupefato. II O ENTERRO Destruam meu carro mortuário, travesti da morte. Não quero os lutos do mundo. E não profanem as flores, encadeando-as numa coroa. As flores,

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neste reino mundano, permaneçam fiéis. Deixem aos donos do mundo as homenagens. Poupem (e perdoem) ao poeta morto mais disfarces. Ao menos uma vez. Não profanem sua nudez. § Urna funerária alguma. Muito menos a tumba e a lápide no peito, no cemitério cercado como um cárcere de mortos. Jogai minha cinza ao vento! Que eu retorne, embora tarde, ao meu elemento. § Um pouco de silêncio e pensamentos de paz. Não haja tristeza. Se alguém chorar, por mim não seja o pranto: estou tranqüilo – enfim livre de tudo. Nenhuma reza, Se acaso um canto, seja alegre. Ou melhor, mudo. Se um morto ouve, quero a simples música do ar. A voz de um grilo. A morte é uma festa solitária.

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POLINÉSIA De Proclamação do Barro

Que solução de vida para um poeta burguês? Suicídio, revolução ou Polinésia. O suicídio é o fim da esperança, e ainda possuo esperança. A revolução, neste país de anões politicando e de gaze nos olhos do povo: tanques na rua, gente em casa. Prefiro minha utópica revolta. A Polinésia me acena. Não é Pasárgada, amizade com o rei, mulher na cama que escolherei. Nem turismo exótico, máquina super de fotografar. Quero uma ilha virgem no Pacífico, para tribo de indivíduos. Ah, criar com amigos uma aldeia, criar uma tribo de indivíduos – homens sem abraços de cifrão e de cetro! Compartilhar a arca do pão e da amizade, o riso, o pranto, o amor, o ódio, o cio sem moedas. Lá eu cantaria para todos meus poemas, numa língua velha como a terra, descalço no chão que é a própria eternidade, na cadência das mãos e das vozes de todos. De que me serve servir meu verso a poucos, quase às escondidas, como canto esotérico, se sonho o auditório da tribo congregada? De que me vale servir meu verso a um mundo sobre o qual vomito? Quero partir para o lugar mais primitivo, onde o telhado da casa seja palha, mas a cópula e o aplauso sejam plasma. Rejeito a vitamina, o asfalto, o edifício,

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comidas falsas, caminhos falsos, casas falsas. Quero partir para o lugar onde a catástrofe ulule na ventania, mas o coração do homem se forme de um barro digno de habitação. Lá, cada momento será o copo ritual em que o homem oficia a Natureza. Lá o poema não será um triste álcool. Nem um amargo pássaro maniqueísta, um pássaro de asas cortadas, cada asa separada num prato de balança. E viverei da pesca num oceano verdadeiro, e estarei liberto de meu pélago murado. Quero partir para o lugar mais primitivo, onde o luxo não seja uma lata de lixo enfeitada de orquídeas. Mas uma rubra flor selvagem nos cabelos da amada. Então a noite será o sono generoso, a paga da tarefa realizada, e nenhum morcego da urbe sugará meu sangue insone. Antes que a barra da prisão se faça ruga, antes que a borra grude no meu corpo, preciso salvar meu resto de pureza. Quero salvar-me antes que a náusea me envenene, antes que a mão se gangrene. Preciso criar um filho sem remorsos.

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ODE DO LIBERTO De Proclamação do Barro

Às margens de um rio inteiramente de areia – um leito perenemente seco, estrada milenar – edifico o rio meu. Construo minhas águas diariamente, e na vida e seus reversos invento meu caminho – em busca da Vida. versos sobre a larga estrada velha, pontos sobre a trilha seca de um rio palmilhando, negado e aceitado pelas gerações, lanço, braços de água erguidos no espaço como vastos arcos. Ó meus altos aquedutos desafiam o abismo. Lá embaixo a enorme estrada estéril vos espreita, no riso morto das caveiras. E eu rio, as águas de meu rio riem das ossadas. Riem com dor, às vezes, com medo, às vezes, com esperança, sempre. Mas riem, riem as águas do meu rio do riso das caveiras do areal, dos mortos-vivos no grande leito seco. Eu rio contra esse rio estéril.

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Luto, nado no rio que invento e reivento para sobreviver à grande seca do desespero de viver. O desespero de viver é que somos tempo e não queremos ser. Eu quero. Mas não o tempo como um rio seco, não o Tempo como um alimento de morte – pão de areia. Eu quero ser meu próprio tempo, a minha morte e a minha vida, o meu caminho de águas. Estou farto da estéril estrada geral. Estou forte do meu destino de procura. Águas minhas águas! Águas de irrigação ou inundação que importa? minha única razão e minha única porta são as águas, as águas, águas do meu rio. Que importa se águas de aqueduto, aéreas, se eu, eu as construo como a única salvação e a poesia as transforma em nuvens e essas nuvens chovem no meu chão. aqueduto, nuvem, chuva, chão – eis meu rio,

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que lanço sobre o grande leito morto das gerações e gerações que se desesperam com a morte ser a foz da vida. Minha voz se ergue nos espaços mudos e cria o meu espaço e o meu canto. Adeus, adoradores da clepsidra, adeus, oradores da clepsidra! Às margens de um rio que não existe, invento as águas da existência e bebo.

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CANÇÃO DO CORAÇÃO De O Silfo-Hipogrifo

Coração, cavalo verde com espumas, vento e mar. Coração, cavalo verde teu galope é navegar. De esmeralda este cavalo me conduz até o graal. Meu destino é galopá-lo e desvendar o animal. Ó cavalo da esperança que ânsias na sua crina! Que importa se ele me cansa, galopá-lo é minha sina. Coração, cavalo verde com espumas, vento e mar. Coração, cavalo verde teu galope é navegar.

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O POETA De O Silfo-Hipogrifo

Porque as flores florem e o flume flui, e o vento varre a fúria vã das ruas, eu desenfurno tudo quanto fui e me corôo com meus sóis e luas. Porque o vôo das aves é meu vôo, e a nuvem é alcáçar que não rui, paro a mó do pensamento onde môo a vida, e abro no muro que me obstrui a áurea, ástrea senda, a porta augusta. Que importa se a clepsidra me corrói as praças das infâncias em ruínas? Poemas são meninos e meninas ao sol do Pai, que tudo reconstrói. Poeta é flor e flume em terra adusta.

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ÁRVORE DO CERRADO De O Silfo-Hipogrifo

Torta, tosca, bruta, mas altiva, a árvore vence o vasto vento. Muda, tenaz seiva, funda luta. Parece esta flora o pensamento. No chapadão, só erva nativa resiste à seca. Não é astuta porém é árdua: igual à saliva do canto, sobrevive ao tormento. O terrível vento não arrasa a árvore brava deste chão. Também do poeta a solidão a voz – quase feroz – não destrói. Chapadão, o canto é minha casa. Não importa se habitar-me dói.

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O ÉDEN De O Órfão Explosivo

Éden é tudo o que resiste à dor da vida não ser vida, à dor da vida servil e mal servida. Éden é tudo quanto insiste no homem em ser homem. Éden é o coração em riste. Apesar do alpiste na gaiola, do alpiste que nunca nos consola de tantas vezes a vida ser gaiola; apesar da falta de uma rubra mola de um gatilho contra o labirinto e suas trilhas; apesar de sermos máquinas nos trilhos, apesar de sermos tão escassos filhos, irmãos, pais, amigos e amantes, apesar de não sermos duros diamantes ou rios dadivosos e arfantes, mas temerosos viajantes, apesar de chamarmos montes ao mirantes, apesar de sermos ancorados navegantes, apesar de sermos torneiras de uma fonte, apesar de sermos podres, nunca insontes, O Éden existe, o Éden existe: é tudo quanto existe que resiste à dor da vida ser um grande bicho triste.

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CANÇÃO CURVA De A Rosa Anfractuosa

Nas curvas do escuro dentro de meu quarto, de rodar estou farto: toda curva é um muro. Por que tanto sestro e frenético estro, para que tanto parto, se à morte me apresto? Curvas do pensamento curvo de mentar, quando ireis parar vosso doido andamento ao golpe da batuta do Grande Maestro, que porá fim à luta com a partitura? Ó ignoto Maestro, só tu sabes tudo! Melhor não cantar. Melhor não gritar. Melhor ficar mudo. E surdo. E ouvir-Te Tocar.

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O AZUL FÍSICO De A Rosa Anfractuosa

Ah, seja o azul físico meu lema, e sua imagem meu brasão e ex-libris. Só deste céu eu sei. Um outro existe? Não me importa. Viver-me não consiste em insistir em lutar com teoremas nem em cavar o céu em busca de gemas. Viver é ter mãos vazias e livres. Deitado na terra de papo para o ar, basta-me olhar, olhar, olhar. Salve meu circo, meu teatro, meu cinema, tudo em azul de dossel infantil, aberto sobre o vale adulto e vil! Só peço ao deus do raio em riste: dá-me o visível! O invisível é ânsia triste.

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EXÉQUIAS Inédito em livro. Escrito em 9 de agosto de 2006.

Nas curvas do escuro dentro de meu quarto, de rodar estou farto: toda curva é um muro. Por que tanto sestro e frenético estro, para que tanto parto, se à morte me apresto? Curvas do pensamento curvo de mentar, quando ireis parar vosso doido andamento ao golpe da batuta do Grande Maestro, que porá fim à luta com a partitura? Ó ignoto Maestro, só tu sabes tudo! Melhor não cantar. Melhor não gritar. Melhor ficar mudo. E surdo. E ouvir-Te Tocar.

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Juvenildo Barbosa Moreira

Organizador do Recital – Conferência

Antonio Miranda, nascido em 5 de agosto de 1940, poeta, escritor, dramaturgo e escultor. Foi colaborador de revistas e suplementos literários como o Suplemento Dominical do Jornal do Brasil e também o La Nación (Buenos Aires, Argentina) e Imagen (Caracas, Venezuela). É professor da Universidade de Brasília. Doutor em Ciência da Comunicação (Universidade de São Paulo, 1987), fez mestrado em Biblioteconomia na Loughborough University of Technology, LUT, Inglaterra, 1975. Sua formação em Bibliotecologia é da Universidad Central de Venezuela, UCV, Venezuela, 1970. Tu País Está Feliz, peça de teatro estreada em 1971, foi representada em mais de 20 países com doze edições na Venezuela, Brasil e Porto Rico. Dentre os prêmios e títulos recebidos destacam-se: Profesor Honorable, título outorgado pela Universidad Ricardo Palma, Lima, Peru, em 2007. Prêmios: Festival Latino-Americano de Teatro, Universidad de Puerto Rico, 1972; Festival Internacional de Teatro, Medellín, Colômbia, Municipalidad de Medellín, Antioquia, 1971; Atualmente é membro da Comissão Especial do Conjunto Cultural da República, Encarregado da Direção da Biblioteca Nacional de Brasília e organizador geral da Iª Bienal Internacional de Poesia – I BIP – que será realizada em Brasília.

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Metapoesia de João Cabral de Melo Neto Antonio Miranda

A Poesia é um tema constante na obra de muitos poetas. Não é da exclusividade de críticos e estudiosos. A Poesia é um ofício de vertentes e visões confluentes ou contraditórias, com posições e propostas convergentes ou conflitantes. Ao longo da história da literatura, um conjunto de poemas dessa natureza pode ser elucidativo ou, na pior das hipóteses, desconcertante. Mas sempre instigante. Outra coisa seria conferir as propostas estéticas diretamente na obra dos autores… Ou seja, comparar o que pretendiam fazer com o que efetivamente criaram… É certo que muitos poetas lançaram manifestos, deram entrevistas, fizeram prefácios e textos sobre suas criações. Material de grande valia, sem dúvida, para a compreensão da obra dos autores. Mas optamos por trabalhar apenas com a Metapoesia, visando registrar tais propostas e visões da poesia, mesmo sabendo que não são suficientes para a compreensão de sua obra. (Críticas e estudos das obras podem e devem ser consultadas para ampliar o entendimento). JOÃO CABRAL DE MELO NETO talvez seja o autor brasileiro que mais se dedicou à metapoesia e com mais originalidade.(*). O grande poeta pernambucano JOÃO CABRAL DE MELO NETO é, para muitos, o maior poeta brasileiro do século passado. Com todo o respeito para com Bandeira, Drummond, etc. Não vamos entrar nessa polêmica. Mas é, fora de dúvida, um dos que mais escreveram poesias sobre a poesia. Principalmente nas obras inaugurais, na primeira e mais reveladora de suas fases, desde o primeiríssimo livro – PEDRA DO SONO (1940-1941). Por motivo de direitos autorais – questão ainda não bem definida em nossa legislação relativa à Internet-, vamos evitar incluir poemas completos, optando pelos versos em que a metapoética é explícita, salvo no caso em que todo o poema seja metapoético… Os versos sublinhados querem ressaltar idéias e visões da metapoesia e são de nossa responsabilidade, não estão assim nos originais cotejados.

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1 – Pedra do Sono (1940-1941) O primeiro da grande série de metapoemas é o POEMA DA DESINTOXICAÇÃO, em que o grande João Cabral revela:

Eu penso o poema da face sonhada, metade de flor metade apagada. O poema inquieta o papel e a sala. Ante a face sonhada o vazio se cala. A intimidade ou a convivência do poeta com sua poesia é sempre artesanal, de construção obsessiva com as palavras e as idéias, palavras de uma concretude absoluta. Parece pintar em vez de escrever.

Procuravam a esquecida chuva de inverno em sua boca de onde alguém soprara as palavras de fora do poema. [A PORTA] Note-se que João Cabral faz o poema dentro do poema. O tema-título – A PORTA – funciona como metáfora. Naquela fase, com um certo automatismo imagético e vocabular próprio do surrealismo, mas sempre com a preocupação estruturalista da composição. Uma certa contradição entre o verso livre e visceral e o extremo formalismo. Não discursa sobre o poema, o poema é que faz referência ao poeta e aos seus temas.

O POETA No telefone do poeta desceram vozes sem cabeça desceu um susto desceu o medo da morte de neve. O telefone com asas e o poeta pensando que fosse o avião que levaria de sua noite furiosa aquelas máquinas em fuga. Ora, na sala do poeta o relógio

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marcava horas que ninguém vivera. O telefone nem mulher nem sobrado, ao telefone o pássaro-trovão. Nuvens porém brancas de pássaros acenderam a noite do poeta e nos olhos, vistos de fora, do poeta vão nascer duas flores secas. O POEMA E A ÁGUA, como os anteriores, não fala de poesia mas da feitura mesmo do poema como condição de poesia. Embora referindo-se à água, o tema central é a poesia em relação com o tema… Artifício que o poeta usa magistralmente em muitas outras ocasiões. Diferentemente de outros poetas que tentam definir o que é e o que não é poesia, João Cabral faz o poema acontecer como exemplo (ou, no sentido oposto, despistamento) de sua técnica de criação poética.

As vozes líquidas do poema convidam ao crime ao revólver.

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2 – O Engenheiro (1942-1945) Em O ENGENHEIRO (1942-1945) o poeta explicita que poetar é, em certo sentido, engenheirar….No poema O FIM DO MUNDO, ele elabora versos com a precisão de engenheiro numa linguagem de metáforas supra-realistas…Ninguém se espante. As palavras nele fluem como entidades independentes de seus significados originais, construindo sentidos nada gramaticais nem narrativos, não raras vezes contrários aos sentidos convencionais…

O poema final ninguém escreverá Desse mundo particular de doze horas. Em vez do juízo final a mim me preocupa o sonho final. Outra vez, o poema é o centro de sua engenharia poética e não o Juizo Final, que é o pretexto (e nunca o texto…). N´O POEMA chega à máxima expressão da metapoesia, do poema no poema “mallarmáico”, de evocação do desafio permanente da “página em branco”:

A tinta e a lápis escrevem-se todos os versos do mundo. (…) Como o ser vivo que é um verso, um organismo com sangue e sopro pode brotar de germes mortos? (…) Mas é no papel, no branco asséptico, que o verso rebenta. Como um ser vivo pode brotar de um chão mineral? Desse branco que é gelo e febre.

O verso é uma entidade vívida, que brota no papel, no branco asséptico. Regressando ao livro O ENGENHEIRO (1942-1945), em A LIÇÃO DE POESIA, fica ainda mais claro o sentido órfico do mundo cabralino, de sua obsessão pela página em branco,

A noite inteira o poeta em sua mesa, tentando salvar da morte os monstros

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germinados em seu tinteiro. Monstros, bichos, fantasmas de palavras, circulando, urinando sobre o papel, sujando-o com seu carvão. pela composição ou engenharia do poema. O poeta é um prestidigitador que tira do tinteiro seus entes, salvando-os da morte, da inexistência. No poema dedicado a Carlos Drummond de Andrade retoma o tema, de forma conclusiva:

Não há guarda-chuva contra o poema subindo de regiões onde tudo é surpresa como uma flor mesmo num canteiro. Uma revelação órfica do mundo, sem defesa possível diante de sua criação, que se impõe ao poeta. João Cabral reverencia PAUL VALÉRY, outro poeta de sua predileção:

É o diabo no corpo ou o poema que me leva a cuspir sobre meu não higiênico? Um falso dilema, para expressar a dubiedade do ato criativo. O poema macula, “suja”, inscreve, é produto do estado de possessão do corpo por alguma forma (demoníaca,

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3 – Psicologia da Composição (1946-1947) ditirâmbica?). Na obra seguinte – PSICOLOGIA DA COMPOSIÇÃO, a “argumentação” metapoética do poema-título – um de seus poemas mais célebres e recorrentes –, João Cabral consolidase.

Saio de meu poema como quem lava as mãos. Algumas conchas tornaram-se, que o sol da atenção cristalizou; alguma palavra que desabrochei, como a um pássaro. Uma nova versão para o sentido órfico da criação: a palavra que desabrocha, ganha espaço próprio. J. C. retorna à idéia inicial de sua criação: página em branco.:

Esta folha branca me proscreve o sonho, me incita ao verso nítido e preciso. (…} O poema, com seus cavalos, quer explodir (…) Vivo com certas palavras, abelhas domésticas. A página em branco inquieta, suscita e incita a um versejar nítido e preciso, numa explosão verbal pela tessitura/textura do discurso – o texto. O poeta convive com as palavras como abelhas domesticadas, produtivas. No mesmo grandioso poema, digressa sobre a forma de sua poesia (mondrianesca,

Não a forma encontrada como uma concha, perdida nos frouxos areais como cabelos; não a forma obtida em lance santo ou raro, tiro nas lebres de vidro do invisível; mas a forma atingida como a ponta do novelo que a atenção, lenta, desenrola (…) Metapoesia de João Cabral de Melo Neto 113


como reconhecerá em poemas futuros). Sempre em busca da forma nítida e precisa… O sentido apriorístico dado ao signo não é programado, mas é cultivado numa relação permanente do autor com sua obra. Uma vocação anafórica do poeta em sublinhar e definir formas e sentidos no discurso, que vira estilo por sua reiteratividade. Não admite a forma improvisada, deve ser o produto da atenção extremada. Note-se o sentido do “lance de dados” do poema, outra vez, no sentido dado por Mallarmé em seu tão citado poema Um coup de dés n´abolira….

É mineral o papel onde escrever o verso; o verso que é possível não fazer. São minerais as flores e as plantas, as frutas e os bichos quando em estado de palavra. Mineral é uma metáfora que J. C. usará, por toda a vida, para referir-se à “materialidade” do poema, como são “minerais” as coisas do mundo que o poeta interpreta ou expõe no seu estado de palavra. Drummond prefere aludir à palavra em estado de dicionário. João Cabral inverte o sentido, recorrendo à idéia das coisas em estado de poesia. No fundo, pretendem dizer a mesma coisa: que as palavras só têm significados no corpo do poema, que as coisas do mundo rematerializam-se na poesia para serem significantes.

É mineral a linha do horizonte, nossos nomes, essas coisas feitas de palavras. É mineral, por fim, qualquer livro: que é mineral a palavra escrita, a fria natureza da palavra escrita. Justamente porque a poesia “coisifica” o mundo não verbal, tornando-o palavras no texto, naquele sentido de “conhecimento objetivo” de Karl Popper: torna mineral qualquer sentido

onde foi palavra (potros ou touros contidos) resta a severa forma do vazio.

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no poema, pelas palavras. Ao contrário, na ausência da palavra, não há nada. A leitura de J. C. não pode ser meramente pela semântica, no sentido etimológico rigoroso das palavras, porque ele violenta tanto a gramática quanto as significações ordinárias das palavras. Vai exigir, por parte do leitor, a já mencionada relação ou movimentação anafórica e metonímica na recepção, interpretação, decodificação, etc. Se temos as chaves do enigma, se estamos familiarizados com sua linguagem e formato, a leitura dá-se mais escorreita mas sempre com as ambigüidades originais. Sua linguagem é sempre desconcertante, desorienta e sugere mais que explicita, que ao nominar pode querer disfarçar ou distorcer ou até mesmo confundir… É no “clima” ou na “atmosfera” do antidiscurso que se pode apreender sua polissêmica mensagem.

O poema, com seus cavalos, quer explodir teu tempo claro: romper seu branco fio, seu cimento O poema quer explodir as convenções do leitor, sua leitura viciada, seu “cimento” – experiência para novas formas de leitura e compreensão da poesia. Sem concessões, J.C. quebra a tradição brasileira da poesia discursiva – arcádica, romântica e parnasiana e, ainda na vigência do modernismo (com seu discurso não raras vezes confessional e até descritivo, quando não descambava para o piadismo). Talvez só Oswald de Andrade tenha rompido com a sintaxe e com a semântica (causando reações de estranheza de seus colegas de 22, até mesmo de Mário de Andrade…) O grande mestre pernambucano João Cabral espanta com sua proposta agreste e, contraditória e paradoxolamente, surrealista e barroca a um tempo… Surrealista pela ousadia de suas metáforas desconcertantes e barroca pelo seu discurso circular, labiríntico, retorcido, até mesmo maneirista. Rompendo paradigmas formais poéticos em voga – espaço de confessionismos, sentimentalismos, testemunhos vãos, beletristas mesmo-, que J. C. repudia.

Poesia, te escrevia: flor! Conhecendo que és fezes. Fezes como qualquer, gerando cogumelos (raros, frágeis, cogu melos) no úmido calor de nossa boca. Delicado, escrevia: flor! (Cogumelos serão flor? Espécie estranha, espécie extinta de flor, flor não de todo flor,

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mas flor, bolha aberta no maduro). Delicado, evitava o estrume do poema, seu caule, seu ovário, suas intestinações. Esperava as puras, transparentes florações nascidas do ar, no ar como as brisas. Evita agora a dissimulação: em vez de flor, fezes… A poesia é fezes, estrume, intestinação, em lugar da “espécie extinta de flor”, que esperava nascesse do ar. Estes versos enigmáticos ou emblemáticos constituem uma espécie de declaração de princípios ou manifesto, do poema ANTIODE, e fazem parte do livro PSICOLOGIA DA COMPOSIÇÃO, que é quase todo exclusivamente metapoético. Em que o poeta pretendeu instaurar seu (anti)estilo. J.C. exercita a quase impossível arte de fazer de sua poesia uma metapoesia. Enquanto que em João Cabral a metapoesia é a poesia, em outros poetas, o que se percebe, é a intenção de criar metapoemas para explicar sua visão da poesia. Pode parecer uma diferença excessivamente sutil, mas não o é, pois é nessa diferença que se percebe a originalidade do poeta pernambucano, sua singularidade nas letras brasileiras. Nada de dizer como se faz ou não se deve fazer poesia. Em vez disso, fazer metapoesia como poesia mesmo.

Como não invocar o vício da poesia: o corpo que entorpece ao ar de versos? (…) Venha, mais fácil e portátil na memória, o poema, flor no colete da lembrança. E arremata, nesses fragmentos do longo e sugestivo poema ANTIODE:

Poesia, não será esse o sentido em que ainda te escrevo: flor! (Te escrevo: flor! Não uma flor, nem aquela 116

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flor – virtude – em disfarçados urinóis. Flor é a palavra flor, verso inscrito no verso, com as manhãs no tempo. Flor é apenas uma flor, diria Fernando Pessoa, palavra no verso, com seu novo sentido: como a manhã no tempo. Flor, agora, é apenas flor como pedra é apenas pedra… É palavra no poema com as significações que se lhe queira atribuir – o “verso inscrito no verso”, lembrando-nos que verso é uma composição poética. Como poeta, J. C. instaurase como um ser onipresente e onisciente em seus poemas, definindo e definindo-se metalingüisticamente. Retorna, nosso grande poeta, em sua circularidade ou reiteratividade barroca, à luta com as palavras, em busca de novas significações.

Poesia, te escrevo agora: fezes, as fezes vivas que és. Sei que outras Palavras és, palavras impossíveis, de poema. Te escrevo, por isso, fezes, palavra leve contando com sua breve. Te escrevo cuspe, cuspe, não mais; tão cuspe como a terceira (como usá-la num poema?) a terceira das virtudes teologais. Fica por conta do leitor lembrar-se da terceira virtude teologal, dos pecados capitais. Inútil querer fazer uma interpretação literal de seu discurso, de sua construção ou – como ele prefere – composição verbal. Um exercício de formas e significados intuitivos, automáticos, de “engenheiro” de uma matéria em construção. Daí sua afinidade com a arquitetura e as artes plásticas. Com os pintores surrealistas, cubistas, geometristas em geral, tachistas, com a intimidade de um diplomata que viveu entre eles nos áureos tempos das revoluções estéticas, das correntes artísticas do século passado. Principalmente na França e mais profundamente na sua Espanha tão querida, venerada e versificada.

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4 – Paisagens com figuras (1954-1955) A Espanha que em tantos aspectos, o fazia rever/reviver seu Nordeste, revigorar sua pernambucanidade, aquela luminosidade de cemitérios caiados que reencontrava na região mediterrânea ou no norte africano…Quando se nutre do convívio e da leitura dos poetas e dos artistas de sua época – principalmente o monumental Miró – como do grande Miguel Hernández, que reverencia no poema ENCONTRO COM UM POETA (no livro PAISAGENS COM FIGURAS – outra obra de inspiração pictográfica, de paisagens humanas e arquitetônicas..}

(…) vim surpreender a presença, mais do que pensei, severa, de certo Miguel Hernández, hortelão de Orihuda. A voz desse tal Miguel, entre palavras e terra indecisa, como em Fraga as casas o estão da terra, foi um dia arquitetura, foi voz métrica de pedra, tal como, cristalizada (…) E mais:

Mas a voz que percebi (…) Não era a voz expurgada de suas obras seletas: era uma edição do vento, que não vai às bibliotecas, era uma edição incômoda, a que se fecha a janela, incômoda porque o vento não censura mas libera. Percebe-se a contrafação das imagens, tão fortes, tão significativas e reveladoras da condição de constrangimento a que estava sujeito o grande poeta da reação ao franquismo vigente em seu país. Miguel Hernández, o grande poeta da resistência espanhola, da palavra libertária, no seu retiro à terra cáustica e sofrida:

Vi então que a terra batida do fim da vida do poeta,

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terra que de tão sofrida acabou virando pedra, se havia multiplicado naquelas facas de areia e que, se multiplicando, multiplicara as arestas. Faca, pedra, areia, aresta. “O vento não censura mas libera”, em que o poeta se vê livre dos patrulhamentos ideológicos conservadores, de “janelas fechadas”, fugindo da censura e do expurgo. Imagino a delicadeza dos despistamentos. Por sorte, à época, o Brasil vivia um período de liberdade de expressão. Seria mais difícil para o poeta tratar do assunto, como diplomata, nos tempos da ditadura brasileira. Sua poesia, no entanto, também sempre foi política, sem um engajamento partidário e militante, mas nitidamente progressista e de denúncia social, que o tornou um ídolo entre as esquerdas dos anos 70. Não cabe aqui ver a metamorfose política da obra cabralina, como seu verso agreste se torna mais ácido pela questão da terra, do latifúndio, da exploração humana que ele, no seu estilo contido e indireto mas certeiro, denuncia. Linguagem cifrada, de aproximações. O poeta e a terra sofrida, o poeta sofrido e a terra, “naquelas facas de areia” ou versos que multiplicavam-se na consciência de seus leitores solidários, principalmente naqueles desterrados e exilados pelo mundo. A terra sofrida bem podia ser a de origem do próprio João Cabral, em seu desterramento, escrevendo em sua própria língua – telúrica, presa à sua experiência –, evocando paisagens familiares de sua formação. Formação é a palavra certa. Forma de vida, formação/composição do poema.

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5 – Serial (1959-1961) Em ESCRITOS COM O CORPO, poema de SERIAL – 1959-1961) ele avança:

Ela tem tal composição e bem extremada sintaxe, que só se pode apreendê-la em conjunto: nunca em detalhe. Não se vê nenhum termo, nela, em que a atenção mais se retarde, e que, por mais insignificante, possua, exclusivo, sua chave. Nesses versos entrecortados, enviesados, intercalados, J.C. confirma que o poema se inscreve no mundo pelo corpo-do-poeta, como um sistema. É um todo, indivisível.

Nem é possível dividi-la, como a uma sentença, em partes; menos do que nela é sentido, se conseguir uma paráfrase. E assim como, apenas completa, ela é capaz de revelar-se, apenas um corpo completo tem, de apreendê-la, faculdade. Uma sintaxe enrevesada, arredondada, de circunferência, de circuito fechado. Apreender o poema com um corpo indivisível, por sua totalidade – podemos dizer? – ôntica, poética? Forma. Não apenas o poema concebe sistêmica e totalmente a realidade no poema como também a apreensão pelo leitor só poderá ser total, holística. Apenas um corpo completo tem a faculdade de apreendê-la.

Apenas um corpo completo e sem dividir-se em análise será capaz do corpo a corpo necessário a quem, sem desfalque, queira prender todos os temas que pode haver no corpo frase: que ela, ainda sem se decompor, revela então, em intensidade

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Antes da decomposição, da análise, da decifração, ainda em estado de comunhão com o poema. O poema que, ao ser lido, sai de sua condição externa (objetiva, no sentido popperiano) para um estado de possessão e convivência (o mundo mental, ou Mundo 2 da acepção de Karl Popper, no sentido ainda de apreensão, não ainda de interpretação, em estado de comunhão livre de qualquer análise). Existe como que uma relação de tensão entre autor e leitor, um equilíbrio crítico entre o impositivo e o receptivo na construção e leitura do poema. Sugere que a exegese do poema – no lugar de sua apreensão como um todo, como faz o leitor – fragmenta o poema que se quer inteiro, completo, intenso. Um corpo a corpo, completudes. Em certo sentido, o poeta condena qualquer digressão interpretativa do poema – como a que estamos a praticar –, temendo que a dissecação do poema transforme-o em cadáver, em corpo estranho. O poema é uma entidade inteira, incontaminada, que pode ser desconstruída pelo leitor, numa empatia supra-inteligível. Mais pela forma signficante do que pelo sentido sintagmático que pode levar à polissemia. Nada contra isso, que é também válido, mas já entraríamos em outras versões do poema… Chamamos a atenção para a gestalt do poeta, para sua concepção plástica do poema, como uma pintura com palavras e suas formas no espaço da página, e também de seu mondrianismo. É bom lembrar que Mondrian criava estruturas geométricas que extravasavam o espaço da tela, que superavam o espaço pictórico, que transcendiam o figurativismo enquadrado na pintura tradicional.

De longe como Mondrians em reproduções de revista ela só mostra a indiferente perfeição da geometria. Porém de perto, o original do que era antes correção fria, sem que a câmara da distância e suas lentes interfiram, porém de perto, ao olho perto, sem intermediárias retinas, de perto, quando o olho é tato, ao olho imediato de cima, se descobre que existe nela certa insuspeita energia que aparece nos Mondrians se vistos na pintura viva. Poesia viva, vivida, nunca tangenciada. Uma relação direta com o poema, pelo tato, integral, sem até mesmo a intermediação da retina, visto pelo “olho imediato de cima”, do intelecto. O poema é longo e, para seguir a lógica do poeta, deveria ser lido na íntegra {que evitamos aqui):

como o de coisa maciça que ao mesmo tempo fosse oca, Metapoesia de João Cabral de Melo Neto 121


que o corpo teve, onde já esteve, e onde o ter e o estar igual fora. Uma inter-relação com a poesia, uma participação corporal e anímica com o poema, é o que pretende J.C., a julgar pelo seu discurso poético.

Pois nessa memória é que ela, inesperada, se incorpora: na presença, coisa, volume, imediata ao corpo, sólida (…) Incorporar… Integração total, sem resistências. Mas não chegando ao radicalismo de esconjurar a possibilidade de algum distanciamento crítico, de uma certa contemplação do poema como algo externo e exposto à exegese. No longo poema O SIM CONTRA O SIM, deixa entrever a intervenção “cirúrgica” no texto:

Mariane Moore, em vez de lápis, emprega quando escreve instrumento cortante, bisturi, simples canivete. Ela aprendeu que o lado claro das coisas é o anverso e por isso as disseca: para ler textos mais corretos. João Cabral povoou seus magistrais livros – publicados ao longo de décadas – com poemas sobre poesia, sobre os poetas de seu universo – Drummond, Vinicius, Bandeira, Murilo Mendes –, alguns pernambucanos, mas também franceses, espanhóis… Inclusive o angustiado Augusto dos Anjos, paraibano (para os pernambucanos, a Paraíba faz parte da pan-geografia pernambucana desde os tempos coloniais…).

Augusto dos Anjos não tinha dessa tinta água clara.. (…) E quando usadas como tinta escreveu negro tudo: dão um mundo velado por véus de lama, véus de luto. Assim é, na visão cabralina, a poesia monumental do livro Eu, desse poeta ímpar em nossas letras, afeito a uma

geometria de enterro de sua poesia enfileirada. 122

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6 – A Educação Pela Pedra (1962-1965) João Cabral de Melo Neto dedicou muitos de seus livros e poemas aos amigos, especialmente aos poetas. A Educação Pela Pedra tem uma dedicatória de auto-definição: “A Manoel Bandeira esta anti-lira para seus oitent´anos”. Antipoesia… No poema-título, ele nos remete ao conceito da “carnatura” da poética, sua matériaprima ou conteúdo, no caso, “pedagógico”, de intimidade com os objetos de

Uma educação pela pedra: por lições; para aprender da pedra, freqüentá-la; captar sus voz inenfática, impessoal (pela de dicção ela começa as aulas). A lição de moral, sua resistência fria ao que flui e a fluir, a ser maleada; a da poética, sua carnadura concreta (…) Nada é óbvio no poeta dos canaviais, na relação de sua poesia com o seu universo particular (que é, sem surpresa, universal). Está sempre exercitando a metapoesia, na maioria dos poemas que escreve, como a demonstrar que o ofício de poeta é esse mesmo. Poematiza:

lá não se aprende a pedra: lá a pedra uma pedra de nascença, entranha a alma. Nesta linha de “poemizar” o poema, J.C. chega a produzir “DOIS P.S. A UM POEMA”.

Certo poema imaginou que a daria a ver (sua pessoa, fora da dança) com o fogo. Porém o fogo, prisioneiro da fogueira, tem de esgotar o incêndio, o fogo todo; e o dela, ela o apaga (se e quando quer ou a mete vivo no corpo: então, ao dobro. A vivência do poema, sua possessão…

E embora o poema estime que a imagem não conteria tudo dessa chama sozinha, que por si se ateia (se e quando quer) de quanto o mais-que-chama não estima; pois vale o duplo de qualquer chama: estas só dançam da cintura para cima.

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Poesia no poema, na convivência do poeta com suas imagens-palavras (e não o contrário, muitas vezes), do leitor com seu poema-digressão, metalinguística. Poeta cubista e barroco a um tempo, tenta aproximações sucessivas, fracionadas, do objeto, em seqüências circulares, reiterativas. As chamas que dançam apenas da cintura para cima, o poema que vale o duplo (expressão cabralina de sabor regional e arcaizante) do reverberar da chama. O poema que estima que a imagem não contém tudo que dela o poeta apreende… A poesia que ateia fogo mais-que-chama quando e quanto deseja… Uma sintaxe enviesada, de um barroquismo entranhado. Sem renunciar à ironia, ao sarcasmo (sempre muito depurado, pouco evidente) e até ao escatológico mas sem pretender ser esperpêntico:

RETRATO DE POETA O poeta de que contou Burguess, que só escrevia na latrina, quando sua obra lhe saía por debaixo como por cima, volta sempre à lembrança quando em frente à poesia meditabunda que se quer filosofia, mas que sem a coragem e o rigor de ser uma ou outra, joga e hesita, ou não hesita e apenas joga com o fácil, como vigarista. Pois tal meditabúndia certa há de ser escrita a partir de latrinas e diarréias propícias. A poesia medieval ibérica tinha muito dessa linguagem entre chula e erudita, dessa diarréia verbal para glosar as situações grotescas que estão na origem do esperpentismo, embora João Cabral não seja um cultor dessa linha em tempo completo. Vê-se uma combinação de opostos estilísticos, entre um quevedismo pelo grotesco e um gongorismo pelo tratamento enviesado das idéias. João Cabral vem de uma certa medievalidade literária que vai de Pernambuco à Espanha, num subconsciente cultural extensivo. Meditabunda… No seu Pernambuco de linguagem mais próxima às origens lusitanas, de feitio barroco, com vieses surrealistas e esperpênticos… Meditabúndia que certamente há de ser escrita numa verborréia (diarréia) oportuna. O barroco é mesmo esta conjunção de estilos e influências como, de resto, toda a cultura ibero-americana. João Cabral está mais próximo das raízes, mas sempre propenso a um tipo de vanguarda “radical”. Radical naquele sentido de retorno às raízes… Não é gratuito lembrar, no tocante ao poema “RETRATO DO POETA”, que “obrar” – “quando sua obra lhe saia/ por debaixo como por cima” é usada, ainda hoje, no Nordeste, no sentido original de defecar…

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7 – Museu de Tudo (1966-1974) A temática de J.C. – como assinalada acima – é recursiva, volta sempre aos seus recursos de estilo, aos seus temas obsessivos – o canavial, o cemitério, a carnatura. Um desses temas, sem dúvida, dentre os mais freqüentes, é a poesia.

DÍPTICO A verdade é que na poesia de seu depois dos cinqüenta, nessa meditação areal em que ele se desfez, quem tenta encontrará ainda cristais, formas vivas, na fala frouxa, que devolvem seu tom antigo de fazer poesias com coisas: O poeta, depois dos cinqüenta anos, meditando na forma areal em que se desfez buscando seus poemas… Cristais aparece em muitas poesias dele no sentido de poemas, diamantes, algo mineral, de cata e alquimia, de lapidação. Poesia com o tom antigo de fazer poesias… O estilo de João Cabral é único em nossa literatura, bem à margem do modernismo em voga, dos geometrismos dos experimentalismos – mas sem pretendermos, com essa nossa comparação, dizer quem é melhor ou pior, apenas distinguir as diferenças. João Cabral seguia em rota própria, incomum. No longo e fluído poema NO CENTENÁRIO DE MONDRIAN, de ágeis versos – quase sempre heptassílabos – J.C. define de maneira mais clara a matéria de sua poesia, que é a mesma da pintura:

“para chegar ao pouco em que umas poucas coisas revelam-se, compactas, recortadas e todas, e chegar entre as poucas à coisa coisa e ao miolo dessa coisa, onde fica seu esqueleto ou caroço, que então tem de arear ao mais limpo, ao perfil asséptico e preciso do extremo de polir, ou senão despolir até o teto da estopa ou até o grão grosseiro de matéria de escolha” Metapoesia de João Cabral de Melo Neto 125


Arear é outro “arcaísmo vivo” na linguagem nordestina. Arear com areia e com ar… polir o texto e a matéria do poema, do quadro. Mondrian é um pintor da depuração da imagem, reduzida a seus elementos mínimos, de pura forma e pura cor. Ele chega a poucas coisas, ao miolo da coisa, à coisa-coisa, compacta, revelada, plasmada na tela, no poema… Um figurativo geométrico, como J. C., que materializa a linguagem. O poeta a arear as imagens do poema, como Mondrian ao minimizar os elementos de sua pintura ao essencial…

“então só essa pintura de que foste capaz, de que excluíste até o nada, por demais, e onde só conservaste o léxico conciso de teus perfis quadrados” A geometria de Mondrian, como a poesia de João Cabral, conservava o “léxico conciso” dos perfis quadrados… Seria abusivo e absurdo falar de uma “poesia figurativa” e meramente descritiva no caso de J.C., no sentido de perseguir uma certa materialidade de linguagem/imagem?!! Ao referir-se a Mondrian, em certa medida, estaria explicando a própria poesia… João Cabral de Melo Neto também cultua Berceo e, se quisermos comparar algumas de suas composições com a dos clássicos, podem até aproximar-se de certos circunlóquios gongóricos…Uma capacidade de materializar – a partir do sim – que é massa e não fermento…

AS CARTAS DE DYLAN THOMAS A capacidade do sim que é incapaz de assentimento; a incapacidade de ser, ao fazer, massa e não fermento: o incapaz de tocar a massa sem lhe mudar o fazimento. A capacidade do sim que é incapaz do assentimento, da anuência. Incapacidade de ser, ao fazer. Massa e não fermento. Raras vezes J.C. trabalha com uma sonoridade tão marcante, pelos “esses” seguidos dando um ritmo suave e escorreito. E com rimas! É capaz de tocar a massa sem aplicar a sua tecnologia, sua engenharia, sua capacidade de fazimento… Fazimento é outro arcaismo precioso, bem encaixado. Onde, então, a incapacidade de ser? De que cartas de Dylan Thomas nos reporta J.C., de que tratam, que sugestões nas missivas o levam a tais reflexões poéticas? NO CATECISMO DE BERCEO (referente a Gonzalo de Berceo, ?1195-1264?-, o fundador da poesia castelhana – nada menos!-, de formação culta, na contra-mão da poesia juglaresca, ou seja, não própria para o recitativo), J. C. pretende:

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1 Fazer com que a palavra leve pese como a coisa que diga, para o que isolá-la de entre o folhudo em que se perdia. 2 Fazer com que a palavra frouxa ao corpo de sua coisa adira: fundí-la em coisa, espessa, sólida, capaz de chocar com a contígua. Versos magistrais! Tem tanto de Berceo quanto, e mais, de J.C.. “Leve” e “pese”, seqüências verbais tão emblemáticas de sua poesofia. Isolar a palavra que se diz do “folhudo” em que se perdia. Algo como a palavra em estado de dicionário do Drummond de Andrade, resgatada e tornada coisa espessa, capaz de chocar com as demais… Deixar de ser palavra frouxa, insignificante.

3 Não deixar que saliente fale: sim, obrigá-la à disciplina de proferir a fala anônima, comum a todas de uma linha. 4 Nem deixar que a palavra flua como rio que cresce sempre: canalizar a água sem fim noutras paralelas, latente. Não há como evitar adjetivos diante de uma poesia assim tão perfeita (eu quase disse perfeccionista!): J. C. é genial. Fala-nos da poesia que se amplia como um rio, que cresce e desperta e se relaciona com outros sentidos adormecidos, latentes, paralelos na sua missão hermenêutica. A estas alturas, evocando o exemplo de Berceo – que não recitava seus poemas – caberia perguntar se a poesia de João Cabral de Melo Neto é ou não própria para um jogral. Questão polêmica. Aparentemente, não. Seu rigor formal e sua temática labiríntica parece fugir da linha trovadoresca e jogralesca. Mas, na tradição pernambucana de que se nutre, sua poesia ganha contornos teatrais. Tem um ritmo e uma sonoridade agreste, telúrica. Não obstante o aparente hermetismo. O célebre poema dramático Morte e Vida Severina, teatralizado com tanto êxito, apoiado nas músicas de Chico Buarque de Holanda, cujas melodias acentuam sua métrica oclusa e desviante. Até o título é sonoro! Seu tom “popular” é, no entanto, erudito, mas alicerçado numa tradição reconhecidamente regionalista, de empatia segura com o público. Até mesmo no nível mais popular – do qual têm origem muitos versos: o discurso do poeta é de difícil digestão. Ainda assim, é

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apreensível pela melodia e pela intenção comunicadora. Lembremo-nos das recitações do poema O Rio… Por seu cunho clássico, por sua reconhecibilidade ou sentido identitário. Seus textos não se esgotam na leitura nem na audição, evocam mais do que declaram, despertam sentidos telúricos, encarnados na audiência. Não é um poeta “filosófico” – como pretende ser a maioria de nossos poetas nacionais, pelo discurso lógico e persuasivo. É um poeta de formas de linguagem, de imagens reconhecidas por sua permanência em nosso imaginário. Na origem da poesia castelhana – que o nosso bardo pernambucano conhecia muito bem, por ter vivido tanto tempo na Espanha – está a contraposição da poesia “popular” (juglaresca) com a “culta” (ou culterana). Berceo foi um dos culteranos. Don Luis de Góngora y Argote (15611627), o mais maneirista de todos, o do barroco mais preciosista. Berceo, no entanto, acabou sendo incluído no repertório dos trovadores mambembes de seu tempo, enquanto Gôngora deve ter ficado confinado às rodas palacianas. João Cabral conseguiu sair das torres de marfim de uma poesia escultórica para povoar os palcos e as ondas hertzianas de nossos tempos.

RESPOSTA A VINICIUS DE MORAES Camarada diamante! Não sou um diamante nato nem consegui cristalizá-lo: se ele te surge no que faço será um diamante opaco de quem por incapaz do vago quer de toda forma evitá-lo, senão com o melhor, o claro, do diamante, com o impacto: que incapaz de ser cristal raro vale pelo que tem de cacto. Falsa modéstia… Chamado de diamante, J.C se define como cacto… Cacto e diamante, na sua cosmogonia, são estados de uma mesma condição de mineral… J.C se define claro e ao mesmo tempo opaco”.. Não conseguiu “cristalizar” o poema quem é incapaz de ser vago, que é de impacto. Incapaz do cristal raro mas que vale pelo que tem de cacto, de conciso, com o melhor do diamante… Outro poeta que J.C. estuda é Don Francisco de Quevedo (1580-1645), que viveu nos anos em que as coroas castelhana e portuguesa estiveram unificadas por matrimônio), um dos fundadores do esperpentismo.

A QUEVEDO Hoje que o engenho não tem praça, que a poesia se quer mais que arte e se denega a parte do engenho em sua traça

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nos mostra teu travejamento que é possível abolir o lance, o que é acaso, chance, mais: que o fazer é engenho. Estamos diante do mais metapoético dos poemas… “HOJE”, em que a poesia se quer mais que arte, se refere a que, a quem? Aos modernistas, aos concretistas? Queixa-se ainda de que a poesia que se pratica em seu tempo (“hoje”, então) denega a parte de engenho de sua feitura… “Traça” parece referir-se ao traço da modelagem do cimento, do engenho de fazer coisas e poesias já que o poetar é um engenho. É possível abolir o lance, o acaso, que é, de fato, uma chance. Linguagem de iniciados na poesia, tão plástica e sugestiva que pode levar a outros significados. Ou seja: a arte da poesia é mesmo um engenho (daí, engenheiro…), que não depende apenas do “lance” mallarmáico. J. C. parece queixar-se da poesia que não obedece a um rigor de criação, sem abolir o lance e a chance de qualquer inspiração… Andaria enfadado com a atividade prosáica dos vates de sua periferia. Como se pressente, é um leitor de poesia.: Rilke nos NOVOS POEMAS é uma dessas leituras. O grande poeta alemão consegue “condensar o vago em preciso:/ nesse livro se inconfessou;/ ainda se disse, mas sem vício.” Poeta do gozo e da realização, sem onamismo, sem interrupção de prazer da criação plena. Segue-se o ANTI-CHAR:

Poesia intransitiva, sem mira e pontaria: sua luta com a língua acaba dizendo que a língua diz nada. É uma luta fantasma, vazía, contra nada; não diz a coisa, diz vazío; nem diz coisas, é balbucio. Ou seja, um exercício improdutivo, “vazio”, uma luta vã com as palavras…Continua sua análise no poema seguinte – A WILLY LEWIN MORTO – sobre a questão de escrever sob julgamento, o escrever prejulgando uma leitura alheia de agrado ou desagrado.

Se escrevemos pensando como nos está julgando alguém (…) e é o primeiro que assiste ao enrededado e incerto que é como no papel se vai nascendo o verso, Lewin era como um fantasma que pré-lia o que o poeta fazia, de quem tanto buscava “o sim e o desagrado”. Com o amigo Rubem Braga, o mais notável de nossos cronistas, andou

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lendo os originais de “Dois Parlamentos” e registrou a experiência no poema LENDO PROVAS DE UM POEMA… Cria uma atmosfera fantástica em que o real e o imaginário se cruzam, ao pressentir “todo elenco de urubus” em volta do apartamento em Ipanema… “como se farejassem a morte/ no texto que estávamos lendo”… Cronista da própria experiência. Até que ponto se pode separar o poema do poeta, mesmo quando se refere a terceiros ou a objetos inanimados? Meu saudoso amigo Manuel Mujica Láinez – o grande romancista argentino, autor do monumental Bomarzo – afirmava que a forma melhor de conhecer o autor não é por suas entrevistas e declarações, mas por sua própria obra, em seus personagens. Queria dizer que toda obra de arte é, em essência, autobiográfica. João Cabral está sempre “metapoesiando”, observando e escrevendo sobre o ofício da poesia.

PARÁFRASE DE REVERDY Le poète écrit avec des pierres; Le prosateur coule le ciment dans les formes. “O prosador tenta evitar a quem o percorre esses trancos da dicção da frase de pedras: escreve-as em trilhos, alisando-a, até o deslizante decassílabo discursivo dos chãos do asfalto que se viaja em quase-sono, sem a lucidez dos sobressaltos. “Escreve-a em trilhos”: parece querer dizer que o discurso linear da prosa afasta-o da realidade, pela fragmentação (“trancos da dicção”), sem a unidade ou totalidade da poesia, que renuncia à lucidez em nome da invenção, do sobressalto. O exercício da poesia, em transição, perde muito de sua origem “caligráfica”. Segue o poema O AUTÓGRAFO” :

“Calma ao copiar estes versos antigos: a mão já não treme nem se inquieta; não é mais a asa no vôo interrogante do poema. Percebe-se, no enjambement “estes versos / antigos”, a intenção de criar uma ambigüidade “destes versos” com “antigos”, quaisquer versos. Continua:

“A mão já não devora tanto papel; nem se refreia na letra miúda e desenhada com que canaliza sua explosão.

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A escritura do poeta, que canaliza sua explosão, não é a mesma do copista, “que já não treme”, nem faz mais o “vôo interrogante”.

“O tempo do poema não há mais; há seu espaço, esta pedra indestrutível, imóvel, mesma: e ao alcance da memória até o desespero, o tédio.” (1946) Agora é o texto imóvel do poeta, produto dado à leitura, coisa “indestrutível”, isto é, grafado e publicado. Sujeito, no entanto, a decifrações. O exercício do poeta e do escritor com as palavras é diuturno, acompanha-o o tempo todo nas relações com o mundo. Ele poetiza o mundo pela nomeação dos objetos e das impressões e sensações de seu relacionamento, numa mentação construtiva/reconstrutiva que é uma obsessão de vida. Torna-se um antologista nessa contextualização ao recompor as palavras no con(texto) – um “contar de si no escolher”.

PARA SELDEN RODMAN, ANTOLOGISTA “Há um contar de si no escolher, no buscar-se entre o que dos outros, entre o que outros disseram mas o que diz que todos (como em loja de luvas, catar no estoque todo, a luva sósia, essa luva única que calça só, melhor que os outros).” Esta claro que o Poeta Pernambucano está se referindo ao delicado trabalho do antologista, daquele que exerce o arriscado arbítrio na seleção de textos alheios. Por analogia, o poeta também elege as palavras, constrói as idéias antologicamente no poema, como “em loja de luvas”, requerendo que o faço “melhor que os outros”, com originalidade, com a surpresa que os inovadores produzem. A pernambucanidade explícita de J. C. é constante (não podia ser de outra maneira), traço comum de sua geração. Quer saber do amigo Joaquim Cardozo, por que o Brasil não reconhece a contribuição pernambucana às nossas letras, à nossa cultura.

PERGUNTA A JOAQUIM CARDOZO É que todo o dar ao Brasil de Pernambuco há de ser nihil? Será que o dar de Pernambuco é suspeitoso porque em tudo sintam a distância, o pé atrás, insubserviente de quem foi mais? Metapoesia de João Cabral de Melo Neto 131


“De quem foi mais”… Há pouco assistimos ao grande Antonio Nóbrega, em documentário de TVE, reclamando da desatenção com que a mídia trata a arte pernambucana, enquanto a baiana se propaga pelo mundo. Pernambuco é o berço do Brasil! Lá estiveram – no Cabo de Santo Agostinho – os espanhóis, no “achamento” antes do “descobrimento” do Brasil pelos portugueses. Foi na casa-grande e no canavial pernambucano que teria surgido a verdadeira semente do Brasil e não no extrativismo do pau-brasil… Nóbrega apelou para o pioneirismo pernambucano nas lutas pela Independência e, segundo seu raciocínio, se a Independência tivesse sido conquistada com a Confederação do Equador, Recife seria a capital do Brasil e o frevo a música nacional. Esse sentimento nativista e regionalista, mas pangeográfico do pernambucano, nada tem de chauvinista ou separatista. J.C. é expressiva e visceralmente brasileiro em sua pernambucanidade. ‘MUSEU DE TUDO” é uma obra quase toda metapoética como foi, em seu turno, também o livro “A PSICOLOGIA DA COMPOSIÇÃO”. Glosando, outra vez, o grande poeta Rafael Alberti, volta ao tema:

“foi da palavra à coisa, seja dolorosa a coisa, seja áspera, lenta, difícil a coisa.” E conclui:

“Fez o caminho inverso: não foi da coisa ao sonho, ao nome, à sombra; foi do vapor de água à gota em que condensa; foi da palavra à coisa: seja áspera ou arisca, em sua coisa, a coisa; seja doída, pesada, seja enfim coisa a coisa”. (1963) No METADICIONÁRIO, brinca:

“Nem mesmo Deus tem a faculdade de se chamar em qualquer língua: só a aspirina existe acima da geografia e seus sotaques.”

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8 – A Escola de Facas (1975-1980) No primeiríssimo poema de A Escola das Facas – um título tão emblemático!!!– J.C. insere o poema “pedagógico” O QUE SE DIZ AO EDITOR A PROPÓSITO DE POEMAS, dedicado aos seus editores José Olympio e Daniel. [É interessante notar como, ao longo de sua vasta obra, João Cabral vai textualizando seus poemas sobre seus relacionamentos com escritores, poetas, pintores, seja no discurso poético, seja em epígrafes e dedicatórias]. O poema em questão “funciona” como uma apresentação da obra, a pretexto de ser uma comunicação com o editor.

“Eis mais um livro (fio que o último) de um incurável pernambucano; se programam ainda publicá-lo, digam-me, que com pouco o embalsamo.” Que outro gentilício serviria melhor ao grande poeta que o seu “pernambucano”?! Ela fia que seja o último, insinceramente, como-que desculpando-se por mais uma obra…E, se vão publicá-lo, basta para tanto uns últimos retoques no seu “embalsamamento”… Um poema é sempre como um câncer:

que química, cobalto, indivíduo parou os desse potro solto? Só o mumificá-lo, pô-lo em livro. Domar o processo criativo, em sua química de alucinação e forja, de materialização do poema… Há uma precisa ironia no “embalsamamento” do poema em forma de “livro”, posta a “livre” (de que etimologicamente a palavra deriva), independente… Um câncer que se extirpa.. Louva, depois, no mesmo livro, o mestiço Natividade Saldanha no poema UM POETA PERNAMBUCANO:

“quem primeiro mostrou que um poema se podia sobre o ponche de caju, sobre o galo-de-campina.” O poeta fora um

Pernambucano apressado, léguas à frente então”… João Cabral, outro criador à frente de seu tempo, não apenas no sentido de seu vanguardismo formal – quando os colegas de geração eram bem mais prolixos e discursivos… – mas pela visão de Pernambuco e do Brasil, de mundo. Uma poesia de profundas raízes iberoamericanas, quem vai fazer a autocrítica (no poema seguinte) e faz também autobiografia:

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AUTOCRÍTICA Só duas coisas conseguiram (des)feri-lo até a poesia: o Pernambuco de onde veio e onde foi, a Andaluzia. Um, o vacinou do falar rico e deu-lhe a outra, fêmea e viva, desafio demente: em verso dar a ver Sertão e Sevilha. Sertão e Sevilha são geografias desgeometrizadas, contíguas, assemelhadas em seu despatriamento de Pernambuco, em associações e combinações possíveis na experiência formal do poeta. Pernambuco e Andaluzia, sertões…

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9 – Agrestes (1981-1985) É óbvia a admiração das vanguardas brasileiras da metade do século passado por J. C. – dos irmãos Augusto e Haroldo de Campos e Décio Pignatari, líderes do Concretismo, a Ferreira Gullar e os neoconcretos em geral. Mas o grande João Cabral jamais se engajou no formalismo geometrizante daquelas vanguardas e a nenhuma outra, salvo em sua essência minimalista e em sua vertente “concretizante” do verso, na busca de concretudes verbais. As mais permanentes de suas assimilações vanguardistas – que nunca assumiu plenamente mas que jamais abandonou… – foi a dos surrealistas e cubistas europeus, que absorveu mais na essência do que no formalismo, mais pela admiração das artes plásticas do que propriamente pela literatura. J. C é um cubista no sentido da construção facetada do discurso, nas abordagens laterais sucessivas de seus temas, numa engenharia que é mais pictórica quanto mais verbal se faz (se concretiza). A propósito de seus relacionamentos com o concretismo, valhamo-nos de seu poema A AUGUSTO DE CAMPOS para entender a sua visão e posição diante da vanguarda em voga:

“Ao tentar passar a limpo, refazer, dar mais decoro ao gago em que falo em verso e nem que tanto me rechovo, pensei que de toda a gente que a nosso ofício ou esforço, tão pra nada, dá-se tanto que chega quase ao vicioso, você, cuja vida sempre foi fazer (catar o novo talvez veja no defunto coisas não mortas de todo”. Ironicamente se julga um “gago” (entendamos: cubista, reiterativo em sua temática, suas angulações verbais) e “defunto” (por estar anterior às vanguardas em voga, dos concretistas e por persistir em seu estilo…) Mas não morto de todo, produtivo.

Você aqui reencontrará as mesmas coisas e loisas que me fazem escrever tanto e de poucas coisas: o não-verso de oito sílabas (em linha vizinha à prosa) que raro tem oito sílabas, pois metrifica à sua volta;

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a perdida rima toante que apaga o verso e não soa, que o faz andar pé no chão pelos aceiros da prosa. J. C. arredonda seus conceitos e se auto-define de forma magistral! Faz octassílabos sem medir as sílabas… Versos que se sucedem – por isso são versos…– para construir seus uni(versos) que ele pretende sejam livres do formalismo – e ninguém foi tão formal quanto o poeta pernambucano! – mas num formalismo que não é precedente ao verso (como nos sonetistas, por exemplo) mas derivado das necessidades formais de seu discurso (“pelos aceiros da prosa”). Evita as rimas e os ritmos fáceis da poesia tradicional (que tarefa difícil para quem vem de uma tradição barda de cordel!!!) que ele reinventou em Morte e Vida Severina). Evita as rimas como quem anda num espaço árido de pedras, de caatinga… Mas, não raras vezes, a rima e o ritmo se lhe impõem mas, como sempre, à posteriori, no processo criativo… Ele não pratica formas como esqueletos. J. C. confessa que também persegue o novo, foge do usual, quer fazer a sua própria vanguarda no sentido da descoberta e da renovação.

Nada disso que você construiu durante a vida; muito aquém do ponto extremo ou seja, J. C. não foi ao radicalismo das rupturas de concretistas e neoconcretistas, que experimentaram os “extremos”…

é a poesia oferecida a quem pode, como a sua, lavar-se da que existia, levá-la à pureza extrema em que é perdida de vista; Depurar, superar, transcender, “lavar-se da que existia”, renovar, inventar.

ela que hoje da janela vê que na rua desfila banda de que não faz parte, rindo de ser sem discípula. A poesia de J. C. não se instaura – como pretendeu a de Augusto de Campos – como uma “escola” (com discípulos), não vem precedida de manifestos. Basta a si mesma. No entanto, J. C. se manifesta metapoeticamente o tempo todo e seu modo de produzir influenciou uma geração inteira de poetas!!!

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Por que é então que este livro tão longamente é enviado a quem faz uma poesia de distinta liga de aço? J. C. estaria estranhando a recepção do livro do poeta paulista concretista, cujo trabalho era forjado em “distinta liga de aço”.

Envio-o ao leitor contra, envio-o ao leitor malgrado e intolerante, o que Pound diz de todos o mais grato Ezra Pound era o paradigma dos vanguardistas. J.C. remete os versos do colega ao público….

àquele que me sabendo não poder ser de seu lado, soube ler com acuidade poetas revolucionados. J. C. não vai se engajar com os concretistas – pressentindo um convite, na remessa do livro pelo colega paulista… –, mesmo depois da exegese da obra, “com muita acuidade”… E ironiza: “poetas revolucionados” seriam os concretistas! E não revolucionários como pretendiam… Reconhecendo J.C. como um verdadeiro diplomata (não só de profissão) não estaria ele inferiorizando os participantes de concretismo mas colocando-os na categoria de criadores engajados num movimento revolucionário, de “escola literária”. Voltando ao “enreverso” (desculpem o neologismo) ou entrevero, J. C. expressa seu barroquismo ancestral, a cada instante, como no poema

O POETA THOMAS HARDY FALA É porque quero que escrevo o verso que o vosso ouvido soa de ferro, que é como tábua cheia de nós que não podem desbastar enxós”. i.e, que os enxós não conseguem desbastar, versos que exigem um esforço de interpretação… Linguagem arcaizante, bem ao gosto do poeta.

que é tão duro que vosso dente que pensais mastigar outros dentes

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Thomas Hardy “mastiga” outros poemas de uma forma muito própria, sem considerar a diferença… Apesar da idade: J.C nasceu em 1920. Agrestes foi escrito entre 1981-1985, logo estaria com no mínimo 61 e no máximo 65 anos quando compôs o poema com o qual dirigese – “peristalticamente” – ao poeta Thomas Hardy,.Não é demais lembrar que “peristáltico” (usado por J. C.) tanto vem de “perístase” que significa “assunto completo de um discurso, com todos os seus pormenores” (Aurélio) mas também – e não seria de todo sem propósito.. – de “peristalse”, isto é, do “movimento vermiforme, progressivo, da musculatura dos órgão ocos, e que impulsiona para diante o conteúdo desses órgãos, em certos casos (fezes, urina), eliminando-o para o exterior”. Aliás, este é o sentido mais corriqueiro de peristáltico e tem a ver com idéia progressiva da criação artística, de expelir, de fazer brotar a obra… “Obra” que, no linguajar nordestina, é também sinônimo de fezes… João Cabral mantém essas “dúvidas apócrifas” no poema sobre Marianne Moore:

Não heverá nesse pudor de falar-me uma confissão, uma indireta confissão, pelo avesso, e sempre impudor? A coisa de que se falar até onde está pura ou impura? Ou sempre se impõe, mesmo impuramente, a quem dela quer falar? Raro caso de quebra de palavras, num transbordamento sintático do verso por seu fracionamento: impura /mente. De um advérbio chega-se a um adjetivo e a um substantivo, com relacionamentos de sentidos (originais, quase perdidos no advérbio). “Falar” do mundo é também falar de si.

Sempre evitei falar de mim, Falar-me. Quis falar de coisas. Mas na seleção dessas coisas Não haverá um falar de mim? Certamente que todo verso, mesmo que dirigido para o exterior, é uma expressão do ser e olhar do poeta. Falar e não falar são opções que expressam a natureza do artista.

Como saber, se há tanta coisa de que falar ou não falar? E se o evitá-la, o não falar, é forma de falar da coisa. Caso atípico na poética cabralina é também a

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A POESIA DE WILLIAM EPSON Na poesia dele não se habita. Lava-se de ti, com água fria. Não é uma estrada que se percorre. Não é a luz na mata, que socorre. Ela te evita, é de pé atrás. Mas te dá a insônia de que é capaz. A apelação aos versos rimados, em pares, (percorre / socorre; atrás / capaz) não é – repetimos – comum na poética cabralina. Que poesia é esta que nos evita (não deve ser fácil…) e que leva à insônia, te instiga, te desperta e te prende a atenção? Não sendo “uma estrada que se percorre”, de fácil entendimento, deve exigir uma hermenêutica apurada, uma exegese (no sentido da “análise literária”, como exige Massud Moisés). O seguinte poema – A W. H. AUDEN – comenta a transmutação da poesia, ao converter prosa em verso –, indagando sobre a capacidade de “devolver” o “mundo de que se falou” (no poema). A poesia é mais sintética que a prosa, trabalha mais holisticamente seu discurso.

A W. H. AUDEN Já não descontarei o cheque que certo dia me mandaste: “A João Cabral de Melo Neto, com dez mil amizades, Auden”. Como a morte encerrou tuas contas de libras, dólares, amizade, hoje só resta a conta aberta de teus livros de onde sacar-se. E de onde há muito que sacar: como botar prosa no verso, como transmudá-la em poesia, como devolver-lhe o universo de que falou: como livrá-la de falar em poesia, língua que se estreitou na cantilena e é estreita de coisas e rimas. Um discurso certinho, racional ao extremo, não é da lavra comum de J. C. que critica o

“Escrever como em prateleiras, paralelas, claras, perfeitas; Em que cada coisa se veja

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posta em rigorosa fileira. Nitidamente e recortadas, com suas faces bem desenhadas; Onde não haja o mal-entendido” (…) No entendimento do poeta pernambucano, há que deixar

“…cada coisa livre na prateleira em que ela existe, em que está em si mesma, viva, e ao mesmo tempo escrita, inscrita. Glosa a boa-aventurança da boa leitura, da oportunidade criada pelos bons autores – e cita alguns de sua preferência – n´

A LITERATURA COMO TURISMO Certos autores são capazes de criar o espaço onde se pode habitar muitas horas boas: um espaço-tempo, como o bosque. Onde se ir nos fins de semana, de férias, até de aposentar-se: de tudo há nas casas de campo de Camilo, Zé Lins, Proust, Hardy. Refere-se à prosa de Camilo Castelo Branco, do José Lins do Rego, de Marcel Proust e Thomas Hardy, que fazem viajar e deleitar o leitor. A prosa tem a capacidade de criar o “espaço-tempo” da leitura…

A linha entre ler conviver se dissolve como em milagre; não nos dão seus municípios mas outra nacionalidade, até o ponto em que ler ser lido é já impossível de mapear-se: se lê ou se habita Alberti? Se habita ou soletra Cádis?

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Sem dúvida, habita-se, convive-se. O poeta indaga sempre sobre o mistério da versão do pensamento no verso, ato de alucinação, de loucura. Vejamos o poema

DEBRUÇADO SOBRE OS CADERNOS DE PAUL VALÉRY Quem que poderia a coragem de viver em frente da imagem do que faz, enquanto se faz, antes da forma, que a refaz? Uma linguagem um tanto barroca, sem dúvida, mas desusada em versos emparelhados de rimas.

Assistir nosso pensamento a nossos olhos se fazendo, Como um prestidigitador, o poeta encena ou cria as imagens a partir dos pensamentos que se vão fazendo.

assistir ao sujo e ao difuso com que se faz, e é reto e é curvo. Só sei de alguém que tenha tido a coragem de ser ter visto nesse momento em que só poucos são capazes de ver-se, loucos de tudo o que pode a linguagem: Valéry – que em sua obra, à margem, revela os tortuosos caminhos que partindo do mais mesquinho, vão dar ao perfeito cristal que ele executou sem rival. Sem nenhum medo, deu-se ao luxo de mostrar que o fazer é sujo. Surpreendentes estes versos cabralinos, pelas rimas esparsas e pelo final. Perfeitos na sua análise… Volta ao tema da perfeição (do cristal da poesia). Versos mais discursivos, menos fracionados. A surpresa corre por conta do verso “que ele executou sem rival”, que é um elogio (bastante convencional) ao poeta Valéry. Mas ele volta à sua temática trivial em que “o fazer é sujo”. João Cabral é mais reconhecível no seguinte poema:

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O ÚLTIMO POEMA Não sei quem me manda a poesia nem se Quem disso chamaria. Mas quem quer que seja, quem for esse Quem (eu mesmo, meu suor?) seja mulher, paisagem ou o não de que há preencher os vãos, fazer, por exemplo, muleta que faz andar minha alma esquerda, ao Quem que se dá a inglória pena peço: que meu último poema mande-o ainda em poema perverso, de anti-lira, feito em antiverso. Afortunadamente, não era o último poema nem o derradeiro metapoema do autor, nem mesmo seu último livro… No poema SOBRE ELISABETH BISHOP, que viveu um produtivo período de sua vida entre nós, continua:

Quem falar como ela falou levará a lente especial: não agranda e nem diminui, essa lente filtra o essencial”… Em seguida, reacende a disputa com os baianos pela liderança regional. Salvador tornouse capital do nosso Reino Unido com Portugal quando Pernambuco era o celeiro do Brasil; a Bahia foi desmembrada da região Nordeste numa época recente mas voltou à geografia nordestina…

que é o Nordeste, onde começamos a ser Brasil (talvez por erro). Estes versos são do poema CONVERSA EM LONDRES (1952) que não entram na categoria de metapoema e foram incluídos apenas fragmentos para atestar a problemática da nordestinidade/pernambucanidade, tema que mereceria outro ensaio… No poema UM PIOLHO DE RUI BARBOSA, J. C. reclama:

Certo piolho de Rui Barbosa confiou a um memorialista que se nascer pernambucano

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é nascer ninguém, é sem chispa. E explicou: a paisagem pouca de Pernambuco não podia parir vulcões de Ruibarbosas, Castroalves (modesto, ele se excluía). Nesse libelo cabralino, ironiza sobre “o único discurso nacional:/ ler como discurso um soneto;/ não poder escrever sem fala;”, concluindo com sarcasmo:

Ora, Rui falava apagado, nas horizontais que podia: são os piolhos que em seu piano põem vulcões na melodia. Os pernambucanos, além de seu ímpeto regionalista e revolucionário (de insurreições e proclamações nacionalistas e independentistas ao longo de nossa história), são famosos também por seu ímpeto polemizador. Ainda no livro Agrestes aparece o notável poema QUESTÃO DE PONTUAÇÃO, que entrelaça a idéia das fases da vida com os símbolos gramaticais, até ao “inevitável ponto final” de nossa existência.

Todo mundo aceita que ao homem cabe pontuar a própria vida: que viva em ponto de exclamação (dizem: tem alma dionisíaca); Viva em ponto de interrogação (foi filosofia, ora é poesia); viva equilibrando-se entre vírgulas e sem pontuação (na política); o homem só não aceita do homem que use a só pontuação fatal: que use, na frase que ele vive o ineludível ponto final. Um poema maneirista, curioso e incomum. Viver em ponto de interrogação, em suspenso, coberto de dúvidas, filosofando. Viver é uma breve frase, eludindo o ponto final.

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10 – Crime na Calle Relator (1985-1987) O poemário Crime na Calle Relator é um dos menos conhecidos de sua vasta obra mas registra trabalhos importantes. Característica de sua poética da maturidade, com forte orientação para o memorialismo, para os lugares e pessoas de seu convívio. O mais longo e significativo desses textos é CENAS DA VIDA DE JOAQUIM CARDOSO, em que nos fala que “o vento e o mar se apostrofavam” naquele mar do Nordeste, “de marés inteiras”, “com vozes ao berros, de raiva, com tal nervo,/ que dispensava ler o texto”. Literatura e vida são uma mesma realidade. A natureza escreve pela mão do poeta. Quando “o murmurar dos coqueiros/ fazia o coro lastimeiro”.

O teatro desses personagens que entoavam vozes sem face pensava algum dia escrever dando ao som um texto que ler. Convergindo o mundo à escritura, única realidade possível, no ato de sacralização:

(Não soube se escreveu tais peças. Talvez, pensando melhor nelas, achasse ocioso por palavras em formas vazias tão claras). Entre parênteses, como uma reflexão à margem do texto, intertextualmente. A chave de todo esse processo de relacionamento mundo-poesia estaria no subtítulo que J. C. faz questão de ressaltar em itálico:

Um poema sempre se fazendo. Isso mesmo! “Na memória, é fácil compor/ todo o dia, seja como for:/ sentado, escritor, numa mesa,/ ou andando, entre a angústia e a pressa”. Seu amigo Joaquim

Cardozo levava seu poema: a poesia, não leva a pena de fazê-la, a pena é abstrata, é o fazer, re-fazer, guardá-la. Pena de escrever. Pena como sentimento e como objeto de escrever. João Cabral sempre gostou desses artifícios e ambigüidades verbais em sua poesia sugestiva e polissêmica.

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E nele vai sem romantismos: nem o de vir de paroxismos nem o mais de moda e moderno, de escalar fingidos infernos. O poeta Joaquim Cardozo (como o próprio João Cabral) não se deixava seduzir pelos modismos e pelos modernismos em voga.

Ele vivia com seu poema como outros vivem com sua crença: a dele é o poema do momento, que leva sem mudar de gênio. Cardozo escrevia todo o tempo, “em todas as horas”, é “o poeta que faz o Recife” na sua relação com a sua terra e os seus amigos.

Assim, não deu trabalho aos prelos: se sequer cuida de escrevê-los! Só se alguém lhe pede um poema Escreve algum que ainda lembra! Em seguida, disserta sobre o “exílio” (de Pernambuco!) pelas Alagoas e pela capital federal – à época, o Rio de Janeiro.

De calça e paletó de amianto, ei-lo entre os cantados encantos, sem sentir que esse mar que o cerne é o Atlântico do Nordeste. “Cantados encantos”, terras que os poetas e compositores louvam… Pernambucano extranhado de sua “cria de engenho”, “enquanto diz das sutilezas/ da poesia e escrita chinesas”. O longo poema cabralino é o memorial do amigo Joaquim Cardoso, de suas viagens, sua obra. Sobre a viagem dele à Europa (“bebeu-a até a última hora”), compara o que ele teria visto e ouvido de cultura por lá, com a da terra:

Por cá, a poesia é sempre o dengue do falso índio, homossexualmente. Que pretendeu dizer o Poeta Pernambucano com este “sempre o dengue/ do falso índio”? Nosso fingimento, nossa falta de identidade, nosso indigenismo literário, postiço, efeminado? Por que “homossexualmente” e não diretamente “efeminado”?

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Pouco importa a resposta. João Cabral faz verso erudito com motivações populares.

No Nordeste, Freyre e a reação para trazer a bola ao chão. Quem estava resgatando a nossa verdadeira identidade era o grande pernambucano Gilberto Freyre, “no Nordeste”, onde o Brasil era mais visível, mais pé-no-chão (bola no chão). Gilberto Freyre sofrera a discriminação de sulistas facciosistas, que o viam como um aristocrata sem as visões “marxistas” que dominaram a sociologia e a antropologia brasileiras até recentemente.

Mas é coisa de romancista, não de política, polícia. Não, Joaquim Cardozo não era um escritor produtivo como fora João Cabral, mas tampouco era um bissexto (assim considerado por Manuel Bandeira, que o inclui na antologia dos bissextos…). Em verdade, escrevia-os de memória, ruminava-os, para registrá-los como e quando necessário.

Compõe alguns poemas, ainda, mas quase todos viram cinza, porque, completados, ninguém colhe da memória onde os tem. Cardozo sofre perseguições políticas, é preso num espaço de cautelas, com disfarces de resistência.

Sabe o gesto sábio e ambíguo: é sempre com o mesmo sorriso que devolve o mau poema-sim e o fascista-sim porque sim. Sim porque sim, sem contestação, nos tempos de exceção democrática: o fascismo intolerante, impositivo. No final da extensa biografia em versos, Joaquim Cardozo colabora com Oscar Niemeyer, para “botar Brasília em pé”. Na opinião do amigo, Cardozo foi um Frei Caneca

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11 – Sevilha andando (1987-1993) – Andando Sevilha (1987Os dois últimos livros de João Cabral de Melo Neto foram dedicados à cidade de Sevilha, mediterrânea e alcalina, certamente “pernambucana” e ensolarada. Estudando a natureza gitana do cante jondo, e nos fala que a sevilhana “já vem nos poemas de Sevilha”, que é por onde ele a apreende. Lembra-nos, ao abordar o tema do “álcool” (palavra de ressonâncias mozárabes):

Esse álcool não de vender: ninguém engarrafou um ser. É álcool sem quandos, sem ondes, de perto, ou pelo telefone. Álcoois que estão também na poesia:

viajou por outros tão diversos (os de Apollinaire, o dos versos). De Sevilha é impossível dizer-se tudo…

Sevilha é um estado de ser menos que a prosa pedir o verso. (SEGREDO DE SEVILHA) No poema O AIRE DE SEVILHA, explica e justifica:

Mal cantei teu ser e teu canto enquanto te estive, dez anos. Cantaste em mim ainda tanto, cantas em mim teus dois mil anos. Podemos afirmar, sem susto, que toda a poesia de João Cabral de Melo Neto é metapoética, que ele constrói poemas dentro do poema, inventando-os, prafraseando-os, expondo-os, cinzelando-os. Traduz seu mundo interior/exterior em formas poéticas como um pintor com palavras, um filósofo com imagens, um poeta com a mão que escreve e obedece seu impulso escrivinhador.

Cantas em mim agora quando ausente, de vez, de teus quantos, tenho comigo um ser e entendo que é toda Sevilha caminhando. (A PRESENÇA DE SEVILHA)

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Seu último “biografado” é Jorge Guillén (no poema DOIS CASTELLANOS EM SEVILHA), que lecionava no Convento dos Jesuítas:

Imagino-o soprando as aulas, como soprou sempre a poesia que fez, com régua e com esquadro. Dura mais a voz menos viva? Entre sevilhanas e toureiros, señoritos e ciganos, parafraseia Carmen Amaya sobre a dança (ou seria poesia?):

Dançar não é coisa aprendida, mas o aprender-se cada dia. Assim é que entendo a lição: sabê-la, mas segui-la, não Fugir do que ela faz de gesso, dançá-la, mas sempre do avesso. No quase último poema INFUNDIOS DO SEVILHANO, sobre a imaginação exacerbada e o imaginário fantasioso, é que J. C. se confessa, derradeiramente:

É o uso da imaginação que borda sobre um fato chão o que lhe parece mais real, pois a verdade há-de ter sal e ele a traduz no que gostaria que fosse, porque até mais chispa. Assim, não é categórico e infundio e o diz gozando-se do mundo. Infundio, um neologismo ao que tudo indica, tanto pode vir de infusão como de inspirado… “Gozando-se” no duplo sentido de burlando-se e aproveitando o mundo – mundo que ele traduz no que gostaria que fosse–, pelo uso da imaginação, como estava sempre a praticar o nosso poeta pernambucano-sevilhano João Cabral de Melo Neto.

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Concluindo Não creio que algum outro poeta tenha jamais escrito tanto sobre a poesia quanto o nosso grande João Cabral. Outros poetas escreveram sobre poesia, João Cabral escreveu sobre sua própria poesia mesmo quando dissertava sobre a poesia alheia. A consciência de estar escrevendo poemas e dissertando sobre a experiência poética parece única na poesia contemporânea. Fui apresentado a João Cabral de Melo Neto pelo nosso colega Reynaldo Jardim, no velho edifício do Jornal do Brasil, na cidade do Rio Janeiro, ainda sediado à Avenida Rio Branco, no início da década de 60. Subimos juntos, no elevador pantográfico, para a redação do SDJB – o Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, que era o território das vanguardas literárias e pictóricas das décadas de 50 e 60 e que revolucionava também as artes gráficas e publicitárias da época, por sua diagramação tão ousada e moderna. Figura agreste – e não podia ser de outra forma –, de um aristocratismo telúrico, de uma feiura sertaneja mas com certo requinte, seco mas doce, levitando eternamente na atmosfera da melhor poesia. J. C. era um poeta em tempo integral. Conversamos muito pouco. Observava-o com a admiração de um noviço. Foi um encontro emocionado e revelador: ele tinha, efetivamente, o aspecto de sua poesia. Seco e iluminado. Brasília, 2004.

(*) Sobre a metapoesia de Carlos Drummond de Andrade, caberia ler a dissertação de mestrado de Maria Alexandrina de Souza Rodrigues – Drummond diante do Javali e da Musas –, orientada por Danilo Lobo, defendida no Instituto de Letras da Universidade de Brasília em 2004, de cuja banca examinadora eu tive o privilégio de fazer parte.

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Robson Corrêa de Araújo

Organizadora do Recital – Conferência

Sylvia Cyntrão é graduada em Letras pela UFRJ/Brasil;.Mestre e Doutora em Literatura brasileira pela Universidade de Brasília/Brasil com tese sobre a poética da canção de Chico Buarque e Renato Russo entre outros autores. Professora do Departamento de Teoria Literária e Literaturas na Universidade de Brasília-UnB. Editora da Revista Cerrados de Literatura (de 2004 a 2007) do Programa de Pós-graduação em literatura da UnB. Membro do Conselho Consultivo da Revista Humanidades da mesma instituição. Dentre suas publicações destacam-se: a)Livros publicados com uma visão teórica da poesia contemporânea e das letras de canções: Da paulicéia à centopéia desvairada: a MPB e as vanguardas. Com Xico Chaves, pela Elo Editora, RJ, 1999. A forma da festa: Tropicalismo,a explosão e seus estilhaços (org.) pela Editora da UNB, 2000. Como ler o texto poético: caminhos contemporâneos. Pela Editora Plano, Brasília, 2004. Livros de poesia: Sopros e Mordidas. Elo Editora, RJ, 1999. Coração em III Atos. Elo editora, RJ, 2001. O quarto e o ato. Editora Esquina da palavra, 2007, com apoio do FAC (Fundo de Arte e cultura do GDF).

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Perfil de Joaquim Cardozo Sylvia H. Cyntrão Doutora em Literatura brasileira. Professora da Universidade de Brasília. Autora de Como ler o texto poético :caminhos contemporâneos. Brasília: Editora Plano, 2004, entre outros.

O poeta Carlos Pena Filho nascido no Recife, em 1929, escreveu que os cantores da cidade do Recife poderiam ser resumidos assim: “Manuel, João e Joaquim’’. Referia-se, é claro, aos poetas pernambucanos Manuel Bandeira, João Cabral de Melo Neto e Joaquim Cardozo. O Nordeste brasileiro realmente foi o berço de três dos poetas mais importantes e geniais desse país… Especificamente Pernambuco, que mais recentemente nos anos de 1990, nos trouxe também – com o movimento Mangue beat dos rappers Fred Zero 4 e Chico Science– a imagem da arte como “antena parabólica fincada na lama” . A lama do mangue de Recife simboliza, assim, a matéria por excelência da proliferação e da renovação de tantos artistas da palavra. Do longo poema intitulado “Guia Prático da Cidade do Recife”, de Carlos Pena Filho, destaco, a parte da homenagem a Manuel Bandeira, João Cabral de Melo Neto e Joaquim Cardozo.

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MANUEL, JOÃO E JOAQUIM Desse tempo, é o que resta para um discreto dizer, pois quem cantou esse tempo já não é de meu saber. Hoje a cidade possui os seus cantores que podem ser resumidos assim: Manuel, João e Joaquim. No Jardim Treze de Maio Manuel vai ficar plantado, para sempre e mais um dia, sereno, bustificado, pois quem da terra se ausenta deve assim ser castigado. (…) Mas tudo o que for do rio, água, lama, caranguejos, os peixes e as baronesas e qualquer embarcação, está sempre e a todo instante lembrando o poeta João, que leva o rio consigo como um cego leva um cão. Mas vieram de longe as águas que aqui no Recife estão. Já começaram areia e pedra lá bem perto do sertão e é por isso, talvez, que escuras e tristes são. Porém não foi só tristeza sua peregrinação. Em seu trajeto tiveram a farta satisfação de dar de beber a secos homens, cavalos e bois 152

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e em seu incerto caminho ainda viram depois os sítios cheios de sombra, onde dorme o sono espesso do poeta Joaquim que foi fazer estação de águas nos olhos de seu amor e trouxe, nos seus acesos, os cajueiros em flor. O perfil do poeta que aqui se apresenta mostrará um pouco desse Joaquim que falou de sua terra natal de uma forma delicada e precisa como poucos. Um Tributo nessa cidade de Brasília que ele ajudou a calcular com Niemeyer, nos momentos em que deixava as palavras pelos números, ou melhor, no momento em que as incorporava poeticamente em seus cálculos… Para de imediato observarmos a notável plasticidade – característica essencial da literatura de Cardozo– destaco justamente um de seus poemas que remete ao cajueiro, árvore típica citada por Carlos Pena Filho ao se referir ao “Joaquim” no poema que lemos.

CAJUEIROS DE SETEMBRO Cajueiros de setembro, Cobertos de folhas cor-de-vinho, Anunciadores simples dos estios Que as dúvidas e as mágoas aliviam Àqueles que como eu vivem sozinhos. As praias e as nuvens e as velas de barcaças Que vão seguindo além rumos marinhos Fazem com que por tudo se vislumbrem Luminosos domingos em setembro, Cajueiros de folhas cor-de-vinho. Presságio, amor de noites perfumadas Cheias de lua, de promessas e carinhos, Vivas canções serenas e distantes, Cajueiros de sombras inocentes

Segundo a crítica de Ruy de Vasconcelos, publicada na Revista Cultura, em 2003, (cito) “o modernismo de Cardozo é a verdade. Uma instância conseqüente por oposição a rótulos de ocasião ou modas descartáveis. A verdade em vez da vanguarda”.

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Segundo Ruy, “Sua poesia soa mesmo bastante tradicional e até pré-moderna. Simples não quer dizer fácil. Quase nunca quer. E convoca os olhos do leitor a fazer o mesmo: assumir esse olhar solar – mas também elegíaco, que parece abraçar a paisagem da Zona da Mata, onde Cardozo viveu quando jovem e se deslocou, como engenheiro de campo.” Sem dúvida a imagística visual é um dos pontos fortes da poética de Joaquim Cardozo, que retrata suas impressões fortes do nordeste de suas raízes: “ Um Nordeste inventariado para a alma”. Diz o crítico ainda: uma “terra crescida, plantada de muita recordação”. “Chuvas e ventos, estios e luzes, sombras e árvores, praias e rios, Recife e pequenas vilas pesqueiras, Mosteiros de Olinda e mocambos, gamboas e várzeas, corais e correntezas – um clima sempre de veraneio e ar livre –, como vimos nos “Cajueiros de setembro”. O poeta Carlos Drummond de Andrade referiu-se a essa exuberância visual dos poemas cardozianos como “Visões de alto poder plástico”, que de fato é a melhor definição dada para a imagística construída por Cardozo. Vejamos, então, como o poeta se insere nesse diversificado contexto geográfico em “SONETO SOMENTE”.

Nasci na várzea do Capibaribe De terra escura, de macio turvo, De luz dourada no horizonte curvo E onde, a água doce, o massapé proíbe Sua presença para mim se exibe No seu ar sereno que inda hoje absorvo, E nas noites com negridão de corvo, Antes que ao porto do céu arribe A lua assim só tenho essa planície… Pois tudo quanto fiz foi superfície De inúteis coisas vãs, humanamente. De glórias e de alturas e de universos Não tenho o que dizer nestes meus versos: – Nessa várzea nasci, nasci somente.

Nesse poema, os elementos da natureza se entrelaçam e compõem um quadro tocante do que informou a existência do eu lírico. Estamos diante de um lirismo contido, mas adensado pela confissão indisfarçada de uma intimidade longínqua, definitiva e auto-crítica. Nascido no Recife em 26 de agosto de 1897, Joaquim Cardozo foi poeta, dramaturgo e também engenheiro calculista consagrado no Brasil e fora do País. Grande estudioso e conhecedor

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da Matemática, em cujo domínio penetrou com profunda sensibilidade poética, inovou os métodos tradicionais do cálculo estrutural contribuindo para a evolução da Engenharia Civil. Transferindo-se para o Rio de Janeiro em 1940, se associou a Oscar Niemeyer.Calculou, para o arquiteto, as obras do Conjunto da Pampulha, em Minas Gerais; no Rio de Janeiro: o Monumento aos Mortos da Segunda Guerra Mundial; o Estádio Gilberto Cardoso (o famoso Maracanãzinho) e a Residência de Oscar Niemeyer. Em Brasília: o Palácio da Alvorada, a Catedral, a cúpula do Congresso Nacional, o Itamaraty. Nesta fase, Joaquim Cardozo conviveu com escritores pernambucanos residentes no Rio de Janeiro, particularmente com Manuel Bandeira e João Cabral de Melo Neto, tendo integrado a Direção e o Conselho de redação da Revista Módulo, juntamente com Oscar Niemeyer, Rodrigo Melo Franco, Marcos Jaimovich, Rubem Braga, Vinícius de Moraes, entre outros. Seu primeiro livro, intitulado Poemas só foi publicado, no entanto, aos 50 anos, em 1947, justamente por influência de seus amigos, com um célebre prefácio de Drummond que o chama de (abro aspas) ‘’modernista mais ausente que participante’’, e assegura que ‘’um aparelho severo de pudor, timidez e autocrítica salvou-o das demasias próprias de todo período de renovação literária’’. São 43 poemas em 25 anos. Depois veio a Pequena antologia pernambucana (1948); Signo Estrelado (1960); Coronel de Macambira (1963); De uma noite de festa (1971); Poesias Completas (1971); Os anjos e os demônios de Deus (1973); O capataz de Salema, Antonio Conselheiro, Marechal, boi de carro (1975) e O interior da matéria (1976). Um livro aceso e nove canções sombrias, de 1981 e Poemas Selecionados de 1997são livros póstumos. Na primeira fase de sua poética, Joaquim Cardozo apresenta uma temática cara ao Modernismo nacionalista, cantando e valorizando no livro Poemas aspectos típicos da capital pernambucana. Numa segunda fase, a de Signo Estrelado, é evidenciado um lirismo consciente da tessitura verbal que produz, apresentando uma escritura racionalista, densa e abstrata. Em O Coronel de Macambira o poeta volta a fazer um aproveitamento do rico filão folclórico do Nordeste, para satirizar a exploração do homem do campo pelos “coronéis” e proprietários rurais. Em que pese em sua poética – como vimos até aqui– a marca da origem nordestina, Joaquim Cardozo dá o salto ontológico quando, mesmo falando na primeira pessoa, estende em vários de seus poemas esse “eu” explícito ao conjunto de “eus” que sofrem a mesma dor da consciência da condição humana, sujeita a sofrimentos, incertezas e injustiças, mesmo em solo pátrio. O depoimento de Jorge Amado sobre o poeta avaliza nossa percepção. Diz ele sobre Cardozo : Esse homem universal em sua cultura e em sua concepção de vida, interessado em todos os fenômenos da vida, apaixonando-se pelos mais diversos aspectos da existência e da cultura, espírito aberto a todas as experiências (…) Tão universal e tão nordestino ao mesmo tempo. Ou talvez porque tão nordestino, tão de seu campo de cana plantada, tão de seu sertão de seca e fome, de seu rio Capibaribe, de seu Recife de pontes e mocambos, talvez porque tão brasileiro, seja ele de humanismo tão universal (…) Como exemplo dessa atitude marcante, no poema “Canto do Homem Marcado”, o eulírico fala, a partir de sua própria vivência, pelos outros que com ele a compartilham . A

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metáfora da água – utilizada continuamente pelo poeta em vários poemas– aparece aqui como símbolo de vida e esperança. Água é a substância que traz a claridade e a harmonia, contra o mundo das sombras.

Sou um homem marcado … Em país ocupado Pelo estrangeiro. Sou marinheiro Desembarcado; Marcho na bruma das madrugadas; Mas– Trago das águas A substância Da claridade. DA CLARIDADE! Sou o indefinido, O inesperado Viajante da tarde nua, Que uma dor augusta comoveu … Tudo a renuncia, Tudo O que eu conservo De altivo e puro, Sob o meu manto adormeceu. Em outros tempos e antigos Plantei alfaces, vendi craveiros, Fui hortelão, fui jardineiro; E a escura terra … Terra Dos meus canteiros, Sempre arqueava o dorso Ao gesto amigo De minha mão. Hoje provo, na boca, um desgosto, Hoje tenho, no sangue, um sinal

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Que não foi e não é das algemas Da prisão da Vida, Nem do jugo da Terra, Nem do pecado original. Muito bem sei, senhores, Que sou um sonho cravado na morte, Que sou um homem ferido no olhar … E que trago, bem viva, entre as nódoas do mundo, A mancha do meu país natal. Sou um homem manchado de sombra No sonho, no sangue, no olhar, Sou um homem marcado … Em país ocupado Pelo estrangeiro. Mas esta marca temerária Entre a cinza das estrelas Há de um dia se apagar! Por isso é que me amparo às mãos dispersas da noite … E pelos pés difusos do vento é que marcho Na bruma das madrugadas … Trazendo das águas a substância Da claridade E um cheiro manso De manhã fria … Oh! Soledade! Oh! Harmonia! Segundo a fortuna crítica do poeta, em qualquer das fases de sua obra está a afirmação de um artista do verso, que impressiona sobretudo pelas metáforas e pelas surpreendentes associações sensoriais como esse “cheiro manso/ de manhã fria” que acabamos de sentir… pois seus versos são construídos em uma sintaxe e ritmo cheios de sutileza e sugestividade. Ao refletir sobre o aspecto telúrico na poesia modernista, José Guilherme Merquior deteve-se em outro poema, “Imagens do Nordeste”. Cardozo é posto pelo crítico ao lado de Jorge de Lima e Ascenso Ferreira. Na consideração de Merquior (cito) “Basta reler algumas estâncias de uma peça como “Imagens do Nordeste“, de Cardozo, para ver o quanto essa poesia regional se banhou de emoção genuinamente válida para o Brasil e o mundo, sendo

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o amor da terra elevado ao universalismo dos mais altos sentimentos, num jogo entre a particularidade do solo e a excelência da arte, entre o cingir-se ao ambiente e o valor para qualquer local, regionalismo portanto de integração de culturas.”

IMAGENS DO NORDESTE Sobre o capim orvalhado Por baixo das mangabeiras Há rastros de luz macia: Por aqui passaram luas, Pousaram aves bravias. Idílio de amor perdido, Encanto de moça nua Na água triste da camboa; Em junhos do meu Nordeste Fantasma que me povoa. Asa e flor do azul profundo, Primazia do mar alto, Vela branca predileta; Na transparência do dia És a flâmula discreta. És a lâmina ligeira Cortando a lã dos cordeiros, Ferindo os ramos dourados; – Chama intrépida e minguante nos ares maravilhados. E enquanto o sol vai descendo O vento recolhe as nuvens E o vento desfaz a lã; Vela branca desvairada, Mariposa da manhã. Velho calor de Dezembro, Chuva das águas primeiras Feliz batendo nas telhas;

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Verão de frutas maduras, Verão de mangas vermelhas. A minha casa amarela Tinha seis janelas verdes Do lado do sol nascente; Janelas sobre a esperança Paisagem, profundamente. Abri as leves comportas E as águas duras fundiram; Num sopro de maresia Viveiros se derramaram Em noites de pescaria Camarupim, Mamanguape, Persinunga, Pirapama, Serinhaém, Jaboatão; Cruzando barras de rios Me perdi na solidão. Me afastei sobre a planície Das várzeas crepusculares; Vi nuvens em torvelinho, Estrelas de encruzilhadas Nos rumos do meu caminho. …………………………………………………… Salinas de Santo Amaro, Ondas de terra salgada, Revoltas, na escuridão, De silêncio e de naufrágio Cobrindo a tantos no chão. Terra crescida, plantada De muita recordação.

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Joaquim Cardozo morreu em Olinda, Pernambuco, recolhido, no dia 4 de novembro novembro de 1978 . Falar de sua morte é também falar de sua vida, pois o poeta passou por um episódio trágico que, segundo seus amigos crêem, apressou seu fim. Em 1971 o Pavilhão de Exposições da Gameleira, em Belo Horizonte, que havia recebido cálculos estruturais seus, desaba, no entrecho de sua construção, matando 68 operários. Condenado e, depois, absolvido pela Justiça, em processo complexo – o certo é que Cardozo jamais se refez totalmente. Apesar de ter morrido sem o reconhecimento do grande público, os críticos sempre classificaram Joaquim Cardozo como um dos maiores poetas da língua portuguesa no século XX; e hoje – ainda que não os ombreie– publicamente alio meu nome ao deles. Vejamos por oportuno alguns Depoimentos preciosos além dos já citados: De João Cabral de Melo Neto: Joaquim Cardozo foi um dos maiores poetas que conheci. Sua obra é extraordinária, embora não tenha sido suficientemente estudada. Cardozo encontrou o verdadeiro estilo moderno no Brasil sem ser modernista.” De Carlos Drummond de Andrade: Se me perguntassem: o que distingue o grande poeta? Eu responderia: ser capaz de fazer um poema inesquecível. O poema que adere à nossa vida de sentimento e de reflexão, tornando-se coisa nossa pelo uso. De César Leal, que organizou sua obra póstuma: Muita gente fica admirada quando eu digo que Joaquim Cardozo é o maior poeta brasileiro do século XX. Não creio que seja apenas o mais completo poeta da língua, pois, ao publicar o livro Trivium, em 1970, ele atinge a transcendência, deixando de ser um representante da poesia da língua portuguesa, para situarse num plano universal: o plano da língua poética pura, uma língua geradora de símbolos e imagens e que não tem um interesse meramente comunicativo. Trago também a palavra do próprio poeta, aos 76 anos, na entrevista a Geneton Moraes Neto, publicada no Caderno de Confissões Brasileiras, de autoria do jornalista, em Recife, 1983, e que foi considerada uma das mais belas entrevistas da literatura brasileira. Sobre se a poesia deve ser mais de palavras ou de idéias, diz Cardozo: A poesia deve ser de palavras e de idéias, pois as idéias se exprimem por palavras e estas, segundo Maurice Blondot, possuem quatro significantes, entre os quais o halo; daí se conclui que as palavras usadas na poesia não pertencem, em geral, a uma linguagem e, sim, a uma metalinguagem; nunca a forma rígida, gramatical… Sobre se a poesia pode sobreviver sem o discurso poético: Pode, evidentemente, apesar de sua sobrevivência ser mais real na poesia dramática – que está muito ligada à recitação; a sobrevivência da poesia de Racine, Shakespeare etc. deve-se em grande parte a este fenômeno. Para se

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mostrar a importância da recitação na sobrevivência da poesia, basta lembrar que todos os livros chineses foram queimados por um imperador da dinastia Tsin, duzentos anos antes de Cristo; no entanto, a maior parte da literatura chinesa dessa época sobreviveu na memória e na voz cantada do povo. Cardozo é perguntado sobre qual poema, entre os que escreveu, que apresentou um maior grau de realização. Diz ele: Das minhas obras poéticas, a que concentrou maior grau de realização foi Trivium – Três Caminhos. A primeira parte deste poema – ”Prelúdio e Elegia de uma Despedida”– figurou na coleção “Hipocampo”, dirigida por Thiago de Melo e Geir Campos (…) A parte que mais me empregou na sua execução foi, porém, “Visão do Último Trem Subindo ao Céu” – que é o caminho para um céu sonhado. Levei mais de três anos para terminá-la; procurei usar recursos poéticos associados a um conhecimento universal – que vai desde o espaço de Minkoreski até o de Finsler; da teoria da relatividade restrita até a possibilidade de usar o espaço de Finsler na investigação das equações do campo unitário. Pensei que somente viajando nesses espaços se poderia chegar ao céu do Acontecimento Branco, isto é, de qualquer acontecimento.(…) Este poema prolonga-se por quase trinta páginas, mas destacamos aqui algumas parteschave para demonstrar a profunda integração do amplo conhecimento de Cardozo sobre o mundo da física à expressão metafísica, composta de referenciais prosaicos alegóricos que se sucedem a partir da grande metáfora do trem em movimento, representando as trajetórias inextrincáveis do pensamento humano.

VISÃO DO ÚLTIMO TREM SUBINDO AO CÉU Visão do último trem subindo ao céu Tocando um sino de despedidas – Saindo vai da última estação – Através da noite vai. . . da noite iluminada Pela luz do casario; vai, do povoado, Passando ao longo dos quintais. Pelas janelas do trem os passageiros Espiam os afazeres das pessoas Que moram nas casas Que ficam à margem da linha; E vêem, com o sentido da vista-vida Com o sentido de ver-viver, Toda a família reunida no quarto dos santos Recinto animado de sombras pela luz da lamparina, Perfil de Joaquim Cardozo 161


Diante do oratório: sombras das imagens De São Roque, São João Batista e São Jerônimo. – Todos estão reunidos para rezar – Por aqueles que se encontram no exílio do mundo. E também a família sentada em torno da mesa Da sala de jantar. Em redor de um candeeiro com abajur de porcelana, Diante do relógio da parede – Todos estão sentados para cear – Para distribuir o pão, o último daquele dia. Todos, todos, todos de todos, todos de muitos Se preparam para a travessia, Para a viagem através do sono da noite O que está depois da luz, o que está no Apagado – Simples casulo em que se fecha a luz materna e branca – Não é o nada, pois o que está depois reflui sobre o depois, Em si mesmo se efetua e realiza. Não existe fim no universo – espaço ilimitado de depois /s – O fim é o mesmo fim que se volta em sobre-fim. O Nada para o universo é uma seqüência de nadas Até o anulamento último e primeiro O trem ultrapassa a velocidade da luz Deixa de ser um objeto do universo. O trem e os seus passageiros Romperam os vínculos da inércia Rasgaram as cortinas da gravitação Suas formas ponderáveis recuaram para os seus contornos Para as nébulas mais leves das origens. (Que se chore de amor sobre o corpo da impulsão-energia) No entanto ainda um relâmpago Último e longínquo; muito, mais muito, muito mais, Muito de além-passado – Um relâmpago-meteoro que rompesse todo o universo e viesse Da terra multidistante, onde a luz era branca; E o branco muito branco era azul,

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O preto muito preto era vermelho, E o verde, sem querer, se fez o mar. (…) Pois tudo que é vivido é apenas sabido E tudo que é sabido é apenas sonhado Saber do saber físico Sonho do sonhar eterno – Termo da vida-matéria; região dos sonhos. Sonho Sonho do sonho Sonho do sonho do sonho . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . (Tudo é sonhado) (…)

Como vemos, a herança simbolista se evidencia na expressão de um mundo de correspondências metafísicas mediado pelo sonho e pelas modernas referências, tanto às descobertas dos meandros da mente por Freud e seus discípulos, quanto às descobertas do físico Heisenberg que nos traz a teoria da indeterminação. Heisenberg, como Einstein, diz ser qualquer realidade dependente do ponto de vista e do lugar ocupado pelo observador. Vejamos, então, ainda em “Visão do Último Trem Subindo ao Céu”, uma seqüência de versos iniciados pela partícula condicional “se”, em que o poeta expõe esteticamente esta visão da realidade.

(…) Viver é saber, sentir, sonhar. Sonho: Gás da Razão fictícia. Razão, simples registro da memória dos homens Que não se perderá no Universo Pois nunca foi conhecida, E dela nada se sabe entre as estrelas. Se o trem partisse mais cedo; Se fosse outra a locomotiva escolhida e revelada; Se passasse ao longo de outros quintais; Se outros passageiros conduzisse. Se o trem partisse de madrugada, Se passasse, ao amanhecer, pelos mesmos subúrbios Assistindo o acordar do povoado; Perfil de Joaquim Cardozo 163


Ou com o sol e o azul do meio-dia; Sentisse a monotonia do entre-tarde e manhã. Para qualquer dessas condições Outros seriam os pontos-acontecimentos De sua viagem. Seriam outros o sonho e o sonho do sonho. Outra a visão do, ao céu chegando, último Trem. lua lenda sobre perene turvo sonho canto macio ouro luto aberta nuvem fecunda longe ríspido cantar motivo fonético rara terra sofre indefinida coro rio azul lâmpada bigorna figos cloro seres densidade” (…) Vimos até aqui que a poética de Joaquim Cardozo é densa, metafórica, e se estende local ao universal, por uma profunda consciência da condição cósmica do ser. Poética social, existencialista, hermética muitas vezes…e consciente sempre. Mas a temática do amor não foi menor para esse homem que muito amou e que muito foi amado. Fez versos eróticos e outros profundamente contritos. Do que temos certeza é que a ciência dos números não o fez menos emotivo. Intensidade e profunda devoção é o que ouviremos agora em

CANÇÃO ELEGÍACA Signo Estrelado, 1960 Quando os teus olhos fecharem Para o esplendor deste mundo, Num chão de cinza e fadigas Hei de ficar de joelhos; Quando os teus olhos fecharem Hão de murchar as espigas, Hão de cegar os espelhos. Quando os teus olhos fecharem E as tuas mãos repousarem No peito frio e deserto, Hão de morrer as cantigas;

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Irá ficar desde e sempre, Entre ilusões inimigas, Meu coração descoberto. Ondas do mar – traiçoeiras ­ A mim virão, de tão mansas, Lamber os dedos da mão; Serenas e comovidas As águas regressarão Ao seio das cordilheiras; Quando os teus olhos fecharem Hão de sofrer ternamente Todas as coisas vencidas, Profundas e prisioneiras; Hão de cansar as distâncias, Hão de fugir as bandeiras. Sopro da vida sem margens, Fase de impulsos extremos, O teu hálito irá indo, Longe e além reproduzindo, Como um vento que passasse Em paisagens que não vemos; Nas paisagens dos pintores Comovendo os girassóis Perturbando os crisantemos. O teu ventre será terra Erma, dormente e tranqüila De savana e de paul; A tua nudez será fonte, Cingida de aurora verde, A cantar saudade pura De abril, de sonho, de azul Fechados no anoitecer. Para finalizar nossa homenagem, elegemos um poema que – mais do que nossas palavras disseram, ou poderiam ainda dizer– melhor descreve a importância do território da poesia na vida desse poeta.

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TERRITÓRIO ENTRE O GESTO E A PALAVRA Entre o gesto e a palavra: território escondido dentro de mim Marcas de mortas visões; tentativas, indecisões, regozijos, Entre o gesto e a palavra. Território: Um silêncio, um gemido, um esforço imaturo Possibilidade de um grito, modulação de uma dor. – Ritmos mais doces que os das águas, – Ternuras mais íntimas que as do amor Entre o gesto e a palavra. Território Onde as idéias se ocultam e os pensamentos se perdem Os conceitos se escondem, os problemas se dissolvem Entre o gesto e a palavra. Território. – Os problemas da escolha, os princípios; Transcendências: transparências, mediante Uma luz que não se acende, existem No território contido entre o gesto e a palavra. – Um axioma, um lema, um versículo, um fonema, Uma ameaça, uma tolice, o som velar, o eco, Talvez a estátua de uma atitude. Estão no campo depois do gesto E antes da palavra. Também estás para mim, amiga, entre esses dois expressivos Entre alguma cousa de mímico ou de sonoro Alguma cousa que é aceno ou que é voz: Entre o de mim e o de ti: Tu estou Tu v i v o Tu falo Tu choro Estás, mesmo que entre nós dois não exista uma sentença verdadeira Um aparato gramático ou uma síntese poética Ilusória expressão com que se conformam os ingênuos – Mesmo que a palavra se reduza a simples gesto verbal Entre o gesto e este gesto há um infinito real. (Do livro Mundos paralelos)

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Não há conclusão possível para uma leitura crítica e reflexiva de Joaquim Cardozo, a não ser voltando aos seus versos. Terminamos então lembrando que …. “Entre o gesto e este gesto há um infinito real” Pois… “Entre o de mim e o de ti: Tu estou Tu v i v o.”

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Robson Corrêa de Araújo

Organizador do Recital – Conferência

Salomão Sousa nasceu em Silvânia (GO). Na década de 70, participou parcialmente do movimento Poesia Marginal. Organizou as antologias Em canto cerrado (de poesia) e Conto candango, com escritores de Brasília. É um dos 47 poetas incluídos no número que a revista portuguesa Anto dedicou em 1998 à literatura brasileira em comemoração aos 500 anos da descoberta do Brasil. Está inserido na Antologia da nova poesia brasileira (1992), de Olga Savary; e na A poesia goiana do século XX, de Assis Brasil. Publicou A moenda dos dias, l979, Ed. Coordenada, Brasília, DF; A moenda dos dias/O susto de viver, 1980, Ed. Civilização Brasileira, em Co-edição com o INL; Falo, 1986, Ed. Thesaurus, Brasília, DF; Criação de lodo, 1993, edição do autor, Brasília, DF; e Caderno de desapontamentos, 1994, edição do autor, Brasília, DF; Estoque de relâmpagos, 2002, Prêmio Bolsa Brasília de Produção Literária da Secretaria de Cultura do Governo do Distrito Federal. Para esse ano, está organizando a antologia Safra Quebrada, em comemoração dos 25 anos de edição de A Moenda dos Dias (1979), que reunirá uma seleção dos poemas dos livros publicados e um livro inédito (Gleba dos Excluídos). Organizou a antologia Deste Planalto Central – Poetas de Brasília (2008) como item da I Bienal Internacional de Poesia de Brasília.

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José Godoy Garcia é Nome Amado Salomão Souza

Quando eu e José Godoy Garcia nos tornamos amigos, eu já era amigo de sua poesia. É dessa poesia que eu vou falar, falar bem, e dizer às estradas que lhe dêem passagem, pois ela é amada aonde chega. Em 2008, será comemorado o 60º aniversário de publicação de Rio do Sono, livro de estréia do poeta José Godoy Garcia. No entanto, todo tributo que se deva prestar à presença marcante desse criador de belezas no quadro da literatura brasileira não pode se centrar apenas na data vitalícia e alvissareira de um de seus livros ou em qualquer outra particularidade datada de sua obra ou de sua legendária biografia. Qualquer tributo a ser prestado a José Godoy Garcia tem de mirar sempre a justa fidelidade de sua obra ao humano, com o entendimento de que ele criava com o ritmo da dinâmica da vida. Há que se admitir: trata-se de obra que está acima das avaliações históricas até agora realizadas sobre a literatura brasileira, pelo menos quanto àquelas ligadas aos desdobramentos do Modernismo. Não é mais possível admitir a existência deste “lapso injusto da historiografia” – essa defesa que ele faz da obra de Hugo de Carvalho Ramos também vale para a dele. Para ele que tudo era dialético – o processo econômico, a aurora, as sinfonias de Beethoven – é premente a necessidade da instauração de trabalho consciente, objetivo, quase dialético, para que seja desencadeado o processo de avaliação crítica que venha ascender a sua obra no ranking do cânone da poesia brasileira. Não é mais admissível tocar na poesia de Godoy Garcia tendo em mente só o pitoresco de uma região, numa visão vestida do ressaibo desconfiado e preconceituoso contra a província, pois a modernidade trouxe o princípio

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unificador e conciliador da nacionalidade, tanto político-econômica quanto cultural. Na nota introdutória de Entre hinos e bandeiras (Thesaurus, 1985), há indicação de que autores como Sérgio Buarque de Holanda, Dalcídio Jurandir, Manuel Bandeira e Vinicius de Moraes, entre tantos outros, mostraram-se entusiásticos com seus primeiros livros. Mas esse entusiasmo foi tímido, às vezes por correspondência, e não tem sido acompanhado pela nova crítica. Ninguém pode mais imitar o Oswaldino Marques da apresentação do livro Os morcegos, pois Godoy é um Mestre (realmente com “M” maiúsculo), mas jamais “galhofeiro”, e muito menos “desdenhoso”. Um “douto” sem adjetivação, isto sim, pois maduro de sabedoria ao compreender a dinâmica dialética da vida. Godoy avocava o direito de escrever as orelhas e as pequenas apresentações de seus livros, certamente por saber da tinta maledicente que sempre alimentou a crítica feita aos autores do Centro-Oeste – mesmo quando a tinta vem de mãos amigas ou de conterrâneos. São dele as palavras finais da orelha do livro Entre hinos e bandeiras: “José Godoy Garcia não derrama nenhum pranto. O verdadeiro poeta sabe que tudo caminha para frente, tudo indica que o sol vai nascer”. Chegará o dia em que será um sentimento de todos o que contém as palavras que ele deixou sobre si mesmo nas orelhas de Os morcegos: “José Godoy Garcia – É nome conhecido. É nome amado lá aonde chegou a sua voz poética.”. Em sua poesia não há nada que possa promover o desdém ao autor ou à sua região, e vai aos poucos atravessando fronteiras, como é o caso dos poemas que saíram em antologia alemã, organizada e traduzida por Kurt Meyer-Klason – e certamente é amado sempre aonde chega. José Godoy Garcia defendia que uma obra deve ser examinada na totalidade de seus elementos, pois era partidário do método crítico de Carlos Nelson Coutinho, seu amigo, que cita em artigo: “Muitos de nossos vícios de apreciação advêm do fato de isolarmos artificialmente a poesia do conjunto dos fatores que a condicionam”. Assim, há que respeitálo e assim a obra dele deve ser focalizada – debruçar-se verticalmente nela de posse dos dados históricos e sociais do momento em que foi construída; com a consciência da fragilidade cultural em que o autor tinha por ambiência no momento de sua formação; e com a coragem lúcida de analisar os fatores que condicionam a poeticidade de sua obra, mas sem ênfase na particularidade crítica do autor ou de sua participação política. Não é o que buscamos fazer aqui, e nem estamos imbuídos de autoridade para enfrentamento de tal empreitada. Apenas abrimos uma estreita picada, pois, necessariamente, leituras mais venturosas e acertadas passarão pelas trilhas desta poesia tão rica. Deve-se ainda apreciar a sua poesia num viés em fique em destaque a sociedade de seu tempo, pois ele encerra a citação de Carlos Nelson Coutinho, no artigo “Visões da sagrada madre crítica”, lembrando que “toda poesia é sempre social”. No entanto, mesmo os partidários do engajamento político de Godoy hão de admitir que a sua poesia não se realiza como máxima de guerrilha, mas como reflexo artístico da humanidade, em que cada gesto, cada mínima dor, seja inventada ou colhida da experiência pessoal, está sempre prenhe de dignidade. Mesmo quando dialoga com Ésquilo para denunciar “Os pobres, os patifes, os degenerados filhos/das ratazanas noturnas: são os pobres ianques”, pois, para o dialético, deve existir a denúncia e a resistência para prevalência do belo. É necessário mexer “nos paquidermos pretos” para reconstrução da ordem no mundo, pois, do contrário, se não há resistência, fica muito fácil as suas investidas. De saída, há que se admitir: como a poesia de José Godoy Garcia consolidou a modernidade no Centro-Oeste e se destaca com amadurecimento construtivo, emotivo, humano – poeta que vale por dois ou por muitos pelo pioneirismo da compreensão do

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homem e da natureza de uma região inóspita de formação cultural —, ele e Cora Coralina formam o tripé da poesia goiana. No final da década de 30, ainda eram quase inexistentes as escolas primárias e secundárias no Centro-Oeste. Se era parco o ensino e parca a oferta de livros, jornais e de outros objetos culturais, era farta a experiência social para jovens visionários como Bernardo Élis, J. J. Veiga e José Godoy Garcia, que estudaram no Liceu de Goiás, na cidade de Goiás Velho. Só na travessia entre suas cidades – Corumbá, no caso dos dois primeiros, e Jataí, no caso de José Godoy Garcia – já se construía, no corpo-a-corpo, o processo de interpretação do homem do planalto central nestes autores. Enquanto os prógonos da renovação cultural do País tinham por palco a metrópole paulista com todo aparelhamento de cultura e de industrialização, por aqui, os epígonos modernistas de Goiás ainda enfrentavam os caminhos da formação em lombos de alimária e em chedas de carros de boi. Não é fácil ser moderno num ambiente em que perdura por mais de quatro séculos o traço rançoso do colonizador – traço rude que raia ao medieval. Na hora de avaliá-los, estes elementos históricos de rusticidade social devem merecer preponderância, sobretudo em Godoy Garcia, que soube aproveitá-los e soube vencer com uma obra invejável essas adversidades. Numa longa entrevista ao Jornal Opção, José Godoy Garcia lembra que o meio cultural de Goiás Velho, no período em que estudou lá (1935/37), era vivo. Naqueles primórdios de sua formação, teve acesso a obras modernistas, que iriam consolidar a forma de seus versos, sem metrificação, rimas ou efeitos de sonorização. Só mais tarde, talvez no período em que esteve no Rio de Janeiro (1938/39) ou de conclusão de seus estudos em Goiânia, chegariam a suas mãos as demais influências definidoras do ritmo de sua poesia – que foi amadurecendo até chegar às rapsódias de O Flautista e o Mundo Sol Verde e Vermelho (Thesaurus, 1994) e de A Última Nova Estrela (Poesia, Thesaurus, 1999). Na mesma entrevista ele confessa que estava fugindo da dramatização romântica, e que instigava os demais companheiros de geração: “se eles tinham um objetivo, precisavam entrar no conflito, ser contra alguém, ter consciência”. Adianta ainda, em outra parte da entrevista: “Particularmente, preferi cuidar do humano.”. Portanto, a poesia de José Godoy Garcia é uma busca consciente, desde o início, pelos destinos da vida na terra. Auxiliou-o nessa definição o encontro com a obra de Charlie Chaplin – inegavelmente o famoso discurso final de “O grande ditador”: “A máquina, que produz abundância, tem-nos deixado em penúria. Nossos conhecimentos fizeram-nos céticos; nossa inteligência, empedernidos e cruéis. Pensamos em demasia e sentimos bem pouco. Mais do que de máquinas, precisamos de humanidade. Mais do que de inteligência, precisamos de afeição e doçura. Sem essas virtudes, a vida será de violência e tudo será perdido.” E ainda uns três poemas (ou menos) de Langston Hughes, possivelmente nas traduções de Abgar Renault (de 1940); e mais uma meia dúzia de Walt Whitman (na orelha do livro Araguaia Mansidão, sem assinatura, e talvez também de autoria dele, chega-se a definir a poesia do livro como uma “percepção whitmaneana da vasta dimensão poética do país”). Já que Godoy trouxe de memória e o apresentou em diversos eventos de que participou, é oportuno registrar aqui o poema “Acontecimento”, de Langston Hughes, na tradução de Abgar Renault:

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Acontecimento Andando em Baltimore repleto de alegria eis que um menino vi com insistência a olhar-me. Eu tinha oito anos, era pequeno, ele também. Sorri; mostrou, zombando, a língua, e disse: “Negro”. Vi toda Baltimore de maio até dezembro, de tudo que aconteceu eis tudo o que ainda lembro. Mas não é só com influências que se constrói um poeta, elas servem apenas para ferver o sangue das palavras de sua experiência, as quais entrarão para o corpus de seu processo criativo – corpus este que, inevitavelmente, tem de se definir pelo cunho pessoal da formação histórica. José Godoy sempre proclamava a importância do ritmo, não do verso escandido, mas daqueles obtidos pela expressividade das palavras, dos cortes, intervalos da oralidade, que dão expressividade e vitalidade – quase teatralidade – ao andamento do poema. Ele dava sempre como exemplo o poema “Espécie de balada da moça de Goiatuba”, que é um poema canônico sempre deixado de fora, injustamente, das antologias. Só que, nos livros que viria a publicar no futuro, desapareceriam as ressonâncias óbvias das repetições, dos refrões, para entrada dos cortes, dos enjambements corajosos, dos elementos surpresas, e da tensão e do colorido das figuras. Em Entre Hinos e Bandeiras (1985), ele usaria sonoridade forte na segunda parte do poema “Estive pensando hoje de manhã” – a qual não seria incluída na edição de seus poemas reunidos em 1999. “O que rima com América Latina/ O que rima com General?” Godoy tinha a sabedoria para abordar certos temas na hora devida e a sabedoria de eliminá-los na hora certa da poesia. Os poemas do livro Rio do Sono (1948), que não faz referência a nenhum rio físico – talvez ao caudal da indolência, da miséria cultural e econômica – estão povoados de “crianças infelizes” e, se elas são infelizes, “as árvores mais íntimas já não dão fruto”. Há velhice. “Charco de sonhos/que se perderam onde?” A poesia – em Godoy Garcia —, desde o livro inaugural, já transita fora do leito do lirismo do “eu” do poeta, para ser o lírico do homem enquanto ser social. No poema “O elegante” – o único que publicaria na histórica revista Oeste —, há um “eu” lírico, mas um “eu” consciente, que se preocupa em si construir com a “melhor roupa”, com “a camisa limpa, cabelos limpos, o par de sapatos que me deram por amizade”, para sair de encontro ao eu lírico social, que “tem sede de amizade: bom dia!” No Rio do sono, há becos mortos. Há “Mortos afogados” (talvez poema feito durante sua permanência no Rio de Janeiro, pois, como em Minas Gerais, em Goiás também “mar não há mais”):

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O mar é belo de tardezinha. Ele ganharia qualquer prêmio de viagem num concurso de paisagens. Com o mesmo propósito de Whitman, que escoimou todos os poemas de conteúdo negativo para a edição definitiva de Folhas de relva para que sua poesia perpetuasse só com a tonalidade da esperança, José Godoy Garcia adotou o princípio de só empregar a palavra aurora, evitando vocábulos como crepúsculos e tardes, que estão carregadas de algo que se esgota; e a vida, para Godoy Garcia, é transformadora. Pois a aurora é constante, levando sempre o amanhecer a todas as regiões da Terra. A poesia, para ele, era este constante amanhecer no mundo. A poesia, para ele, é a constante aurora. No entanto, no Rio do sono ainda desencravava beleza da “tardezinha”, dos “mortos” e das “crianças infelizes”. Depois da estréia marcante, ele passaria 24 anos sem publicar outro volume de poemas. Só em 1972, depois de estar morando no Distrito Federal há dezesseis anos (transferiu-se para a região de Brasília em 1956), publicaria Araguaia Mansidão (Oriente, Goiânia, 1972). Nesse segundo livro aparece algum desejo de Godoy Garcia (ou de seu apresentador – não fica claro quem elaborou o texto da orelha) de aproximação da obra de Garcia Lorca. O aparecimento da expressão “poeta gitano” para qualificar José Godoy Garcia, talvez não passe de uma forma de irmanar-se à militância política do poeta espanhol; no entanto, a forma de aproximar-se da natureza e de abordar a energia e a dinâmica do homem, nos dois poetas, não aparece numa identidade assim tão irmã, principalmente na forma diversa da forma da construção dos poemas. Lorca, com as formas clássicas da lírica espanhola; Godoy, com as formas livres, intensas de realidade, veias abertas pelo Modernismo. (Um intervalo confessional: datilografei cada verso desse livro no momento da organização do livro Poesia (Thesaurus, 1999), que enfeixa a poesia completa de José Godoy Garcia. Mas não tão completa assim, pois ele deixou uns vinte por cento dos poemas de todos seus livros sem inclusão, em atendimento ao princípio de escoimar os textos de referência política mais explícita. Julgo, no entanto, que no caso de Godoy Garcia, por mais que esse tenha sido o seu desejo e de muitos de seus amigos, os poemas de conteúdo engajado estão impregnados na identidade do poeta, são elemento do seu DNA criativo e de participação histórica da nacionalidade, e – por que não admitir? – são documentos de resistência contra as mazelas políticas mundiais, que nunca se extinguem, pois apenas mudam de nome, e quase sempre com a mesma roupagem e no mesmo endereço). De Araguaia Mansidão, não são poucos os poemas antológicos carentes de melhor fixação na memória nacional, que nunca saíram nos florilégios, a começar pelo poema inicial “Tudo é belo”. O segundo, “Uva, pedra, cavalo, sol e pensamento”, é um dos poucos poemas – antes de O Flautista e o Mundo Sol Verde e Vermelho e de A Última Nova Estrela – de raro rigor construtivo, onde o entrelaçamento de versos de conteúdos díspares, quase alexandrinos, e dos entes da natureza que se animam, antecipa em trinta anos uma forma nova de elaboração dos versos pelos poetas da pós-vanguarda. Ele mesmo encheu seus dois últimos livros (de 1994 e 1999) com poemas de eterna complexidade já premeditada nessa construção de versos entrelaçados, cesuras, versos às vezes cortados para nascimento de outro com a mesma imagem. Engana-se aquele que se aproxima da poesia de José Godoy Garcia pensando que é só a chuva. Atrás dela, há o que o pássaro pensa da chuva. Maldito aquele que queira impedir a leitura de “Ramiro da Serra”! poema antológico deste Araguaia Mansidão.

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Na trajetória da edição de seus livros, o ano de 1980 foi assaz importante para a sua poesia, pois ela conquistou lugar numa grande editora. A Civilização Brasileira, que já publicara o romance Caminho de Trombas (1966), em associação com a editora Oriente, enfeixa seus dois primeiros livros de poesia e um inédito (A Casa do Viramundo) sob o título geral de Aqui é a Terra. No entanto, só em 1986, com a edição e Entre Hinos e Bandeiras (1985), a poesia de José Godoy Garcia ganha maior rigor construtivo e novas vertentes temáticas – entram o homem urbano e a resistência dos “morcegos” do novo colonialismo. Essas temáticas entram com maior força no livro que se chama justamente Os morcegos (Thesaurus, 1986). A partir de Os Dinossauros dos Sete Mares (1988) – aquele que ele considerava seu melhor livro —, passando pelos dois últimos, O Flautista e o Mundo Sol Verde e Vermelho (1994) e A Última Nova Estrela (1999), todos pela editora Thesaurus, ele agregaria a sua concepção de poesia enquanto rapsódia. Temas que se desdobram, se deslocam ou reaparecem de um para outro poema, e mesmo personagens indefinidos que são citados em meio ao lirismo impessoal (ou social), em salvaguarda da humanidade. Terto Mucurim, que sonha em ser pássaro e que de repente pode estar morto. Nesses últimos livros ele acentua a capacidade de criar heróis ou de citar heróis de outros autores, como é o caso do Salvador, de Hemingway, que é outro dos autores de suas constantes referências. Se fosse um rio, ele daria um peixe grande para Salvador. Dos raros estudos sobre a poesia de José Godoy Garcia, cabe destacar que, em 1992, no mestrado em Letras e Lingüística da Universidade Federal de Goiás, sob a orientação de José Fernandes, Nilza Diniz Silva defendeu a dissertação “Hinos e Bandeiras do Telurismo” (192 folhas). Godoy conheceu o trabalho e por ele tinha apreço, chegando a usar um trecho dele como epígrafe da edição de sua poesia reunida. Na dissertação, Nilza Diniz Silva reconhece que Godoy tem seu nome na literatura goiana, apesar de pouco conhecido fora do Estado. Para ela, trata-se de uma poesia que se identifica com a “humanidade, a qual dirige mensagem de esperança e de expectativa por um caminhar consciente de sua função como ser humano na Terra”. Para justificar a necessidade de popularização – que para o Godoy seria melhor que canonização —, de uma obra construída com as cores da solidariedade, pois Godoy foi um cidadão integrado ao processo crítico da sociedade, chegando a sofrer reveses pessoais pela militância, há que se admitir – ainda mais que vivemos tempos de total egocentrismo – que se trata de uma poesia necessária. Qualquer um que dela se aproxime e a compreenda, vai se sentir um ser mais amplo, mais integrado ao mundo. Assustador quando jovens vivem sem heróis, construindo violência interior e que muitas vezes chega a externá-la por falta de integração com a realidade política e cultural. São obras como de Charlie Chaplin, de Hemingway, de Godoy Garcia que colocam o homem em confronto com o ato de construir pelo trabalho. São obras assim que banem o egocentrismo. São obras como as de Chaplin, de Godoy Garcia que fazem os homens seguirem mais confiantes, pois, com eles, há a certeza de que o predomínio será da aurora. São homens assim que são amados aonde que quer cheguem com o seu trabalho. São homens assim que nos enchem de beleza e de orgulho. Assim, a obra de José Godoy Garcia é necessária, pois afirma, com voz muito própria, o humanismo. É obra que anda na companhia da aurora, e sempre é amada aonde chega.

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Poemas de José Godoy Garcia

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TUDO É BELO

Tudo é belo Mulher e por exemplo uma água quando a gente bebe ou uma água que a gente joga na cara e fica deixando a frieza vir penetrando na pele; a água que escorre da bica e cai no monjolo e o monjolo toca; a água de um poço na mata. A água quando a gente bebe é por exemplo como um beijo. Mulher e por exemplo café, ou estrada quando o trem-de-ferro atravessa um rio; um rio que banha terras verdes, longe. Tudo é belo. Árvore de cedro e por exemplo um homem que está preso injustamente, um homem que tem esperança e que é mais forte que os risos e sevícias, quando tentam matar nele a esperança… Tudo é belo. A cabeça fatigada de um homem. As pernas solitárias. As mãos solidárias. O peito largo como um tronco de árvore secular. Tudo é belo. Mulher e por exemplo, as canções. O caminho do nascimento à morte de um homem.

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A NAMORADA MORTA (1942)

Hoje, Rosa, depois de seu enterro, choveu. Fiquei alegre, saí pela rua sob a chuva, muitos ficaram me olhando, eu não estava triste, rosa, estava alegre. Sempre ouvi dizer em criança que quando alguém morre, se na cidadezinha chover, esse alguém vai pro céu. Rosa! choveu…

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COMO SE FAZ UMA CANOA

Canoa se faz com tédio e alegria João Canoeiro, dizia: canoa se faz com tamboril e verdade; o Alípio Canoa acrescenta o valor da paciência. Vai no mato. Dorso sereno de rio rolando. Uma rija paciência na boa escolha do vosso madeiro que vai guardar nas luas de travessia seu amigo corpo no rio. No mais vagar da escolha um bom tirador de madeira leva dois dias: sempre na quadra de lua cheia – que nova não aconselha. Os enxovais de trabalho na mão, o facão e enxó a madeira burilam, pois como vai amar as águas sem levantar sua gula uma barca que deve bailar pois como vai amar as águas se leva seu corpo magoado afigurando peitos, calejões, licenças, sem finura de linha? Pois se deve bailar aprende logo com as aves e peixes que canoa é um peixe, igual mulher que é de amar. E, pronta, põe o corpo em cima, que é manso o regaço de quente rio que rola, e busca alegria o receio despreza; nela pode levar peixes, saco de milho, farinha, pode levar sua dona e se tiver precisão aproveita logo o balanço do leve e valente barco nas doces águas do rio.

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UM PEIXE GRANDE PARA O VELHO SANTIAGO

Eu queria ser um rio. Se eu fosse um rio, ah, te daria um peixe grande. Eh, Euzébio Malaquias, se eu fosse um rio te daria muitos diamantes, teu embornal se encheria de diamantes. Quando Normélia veio dos caminhos do Alto Araguaia se eu fosse um rio tinha guarnecido os peitos daquela moça e então os sonhos não se teriam partido e ela haveria de cantar – se eu fosse um rio. Euzébio Malaquias além de tudo tinha uma irmã viúva que entrou por Poxoréu indo sabe Deus onde? Se eu fosse um rio, ah! eu te daria um peixe, velho Santiago. Eu te daria um peixe grande. Seria um peixe do tamanho de uma nuvem. Conheci Honório Cruzeiro que pesava peixes maiores que um caminhão.

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DO QUE OS PÁSSAROS MAIS GOSTAM

A segunda coisa que os pássaros mais gostam é voar; a terceira é do céu e da terra onde moram e mais precisamente das árvores que são suas casas; a quarta é a presença um do outro nos dias e nas noites, assim os machos com as fêmeas e assim as fêmeas com seus machos. A quinta coisa, o alimento. A sétima, a lua. A oitava, a procura do pouso para dormir. A nona, dormir. A décima, acordar de manhã. E a primeira? Ah, não se pode esquecer do que mais gostam, que é de serem pássaros.

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ELEGIA 1970

Agora estou criando uma poesia que está dentro de mim e veio da terra e do silêncio e da vida do homem e do silêncio que encheu sua vida e agora enche sua morte. Uma poesia que me pedem as árvores que estão cheias de morte e as casas que estão cheias de medo e as estradas que estão paralisadas e os sonhos que estão secando.

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OS SOBREVIVENTES

Quando todos imaginavam a vida sem sentido chegaram de manhã os sobreviventes, e levantaram suas moradas, estiveram no rio, procuravam o rebanho disperso, preparavam o alimento, cantavam, derramavam o suor nos campos, faziam fogo à noite rememoravam o corpo de suas mulheres, despachavam os barcos, pela manhã. As chuvas eram sempre bem-vindas, as chuvas levantavam o pó da terra e enchiam de confiança a face da vida. As mulheres viam nascer dentro de si um novo rebento, os seus ventres cresciam. Nenhum sinal de confiança quando as mulheres apareciam de ventre crescido. Os dias eram os mesmos, a esperança e a desesperança eram as mesmas.

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A POESIA

Ah se não houvesse a poesia, se não houvesse a poesia, não haveria água, nem madeira, nem caminho, nem céu, nem corpo atraindo outro corpo. Ah, se não houvesse a poesia eu simplesmente não seria um zé garcia atravessado na garganta de deus e do diabo, eu não seria um zé, um Zé Garcia Chuva de Manga, não um camarada atravessado de nuvens e de tantas mulheres felizes, eu não seria, engraçada, uma tempestade muda.

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EU POSSO TRANSFORMAR O MUNDO

Tudo que está fora de mim é mais, muito mais do que eu. Eu vi tudo, sem poder, eu vi sem alcançar seu vigor simples, sua despojada beleza terrena. Passaram por mim o dia, a luz, o tédio, a dignidade. Eu estive sempre aquém de toda a beleza que cerca a vida. Mas eu sou um homem, algo feito pelo que está aí fora e por minha idéia e minhas mãos. E posso transformar o mundo.

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IRMÃO

Eu não fiz uma revolução. Mas me fiz irmão de todas as revoluções. Eu fiquei irmão de muitas coisas no mundo. Irmão de uma certa camisa. Uma certa camisa que era de um gesto de céu e com certo carinho me vestia, como se me vestisse de árvore e de nuvens. Eu fiquei irmão de uma vaca, como se ela também sonhasse. Fiquei irmão de um vira-lata com o brio com que ele também me abraçava. Fiquei irmão de um riacho, que é nome de rio pequeno, um pequeno que cabe todo dentro de mim, me falando, me beijando, me lambendo, me lembrando. Brincava e me envolvia, certos dias eu girava em torno do redemoinho do cachorro e do riacho e da vaca, sem às vezes saber se estava beijando o riacho, o cachorro ou a vaca, com um grande céu me entornando, com um grande céu com a vaca no lombo e com o cão, com o riacho rindo de nós todos. Eu fiquei irmão de livros, de gentes. Eu fiquei irmão de uma certa montanha. Irmão de muitos rios. E fiquei irmão de uma certa idéia, e tive sorte, não me assassinaram como a milhares de meus irmãos, e provei a mim mesmo a minha fidelidade. Fiquei irmão de muito cidadão de nome certo. Fiquei irmão de uma certa bebida, uma certa bebida que se chama ceva orvalhada. Um ritual de estima: amigos, futebol, poesia, minha doce donzela de vestido amarelo e mais as outras tantas donzelas de vermelho, grená, cinza, branquelo, José Godoy da Silva é Nome Amado 185


os vestidos mais belos e os mais singelos! Eu gosto de mim, de meu porte nem sei, de minha doce e embalante imaginação, de minha frágil e destemida poesia. Brasília me abraça. Eu passo pela w3, venho de minha afável quadra 706, busco minha brejeira ceva no Bar do Afonso, a infinita maravilha de um manso cotidiano. Quem sou eu, que esta cidade tanto me ama? Ela se abre como uma fêmea, e me consola. Ela delira seu cio de uma fértil alegria. Ela se abre em sua bê-a-baca de horizontes. Ela desveste sua fala e eu falo em sua entranha. Nós somos da pátria filhos-da, ela pura nos dá. Antigamente aqui havia um humano e ancho cerrado. Antigamente aqui havia restos apodrecidos de índios. Antigamente aqui havia um homem seco que vivia num casarão de sete janelas, numa gleba em ruína, cujos moradores pouco falavam. Morava o homem com cinco mulheres. Brasília é uma cidade que ama a vida e tem na sua mão e no seu jovem coração não só a alegria, mas o puro prazer de ser. Aqui é a terra, a água, o céu. Aqui a morada primitiva dos pássaros. Brasília é um pássaro, um beija-flor, um sabiá que está sempre chamando chuva Morena, cheia de favos de mel, minhas flores de pequizeiro: um dia o tratorista dormiu na máquina infernal de um sono velho recolhido e foi de-baixo de um pequizeiro soltando flores; oito horas depois acordou com ruídos, manhã ácida de beleza agreste: um bando de bichos, lontras e veados vieram se alimentar das flores, maneirosas lontras e filhotes de campeiros infinitos indiferentes ao bruxo dinossauru Katerpillar. Onde há mistério da natureza, os tolos vêem: solidão! Aqui na sua mão, Brasília tem sexo e beleza! Tudo que a velhice não tem: sexo e beleza!

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às madrugadas, a onças vêm das serras e vêm dos vales, Vale do Rio Preto, Vale do Paranã, Vão dos Angicos! No Lago Norte, onças maneirosas circulam às madrugadas farejando os cios das madamas e as lebres e lontras e capivaras são vistas no Lago Sul. No Seminário Dom Bosco o milagre das garças brancas anunciam o mundo da Paz. Nas distâncias, lobos guarás pelas serras de Brazlândia, onde a mãe índia morreu faz meio século e suas filhas minam tristezas nas ruínas de propriedades de onde os quero-queros emigram para o Parque Eu ando no Parque da Cidade e o pássaropreto me beija. Em agosto, o amarelo dos ipês. Em setembro, a flor dos pequizeiros. As morenas mulheres, os semi-velhos felizes, vivem a cidade que fizeram, Os filhos que fazem, os sonhos que sonham! Brasília é um sonho que está na mão! E será sonho! será fraternidade! Na face da terra, não há mais guerra. Brasília abre seus braços! Cidade da natureza e dos povos. O sol me disse que era meu irmão. A rã queria ser irmã. Uma mania, mania do povo de ser irmão, mas também há muita tapeação, Labão vendeu Lia em lugar de Raquel; muita sorte má e na palavra pedra nenhuma poesia. A poesia está solta no mundo, sim, mas o que é de uma bondade sem fim (sempre um redemoinho, um Florismundo, e há sempre um adormecido ninho) é a poesia que se adere e guarda no coração humano. É a poesia boa, a que se ferve, resguarda e voa no férvido e doce coração do mundo

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Victor Tagore

Organizador do Recital – Conferência

João Carlos Taveira, nascido em Caratinga-MG, em 17.9.1947, é poeta e crítico literário. Reside em Brasília desde 1969. Tem publicados os seguintes livros de poesia: O Prisioneiro, 1984, Na Concha das Palavras Azuis, 1987, Canto Só, 1989, Aceitação do Branco, 1991, A Flauta em Construção, 1993, e Arquitetura do Homem, 2005. Tem-se destacado, no campo literário e cultural, como declamador, editor de suplementos e revistas, conselheiro e coordenador editorial. É membro do Conselho de Cultura do FAC na Secretaria de Estado de Cultura (GDF). Com Nilto Maciel, manteve, por quase dez anos, a circulação da revista Literatura. Atualmente coordena a revista do Instituto Histórico e Geográfico do DF. Figura em diversas coletâneas poéticas no Brasil e no Exterior. Entre elas, destacam-se: Antologia da Nova Poesia Brasileira, de Olga Savary, 1992; A Poesia Mineira no Século XX, de Assis Brasil, 1998; Poesia de Brasília, de Joanyr de Oliveira, 1998; Antología de la Poesía Brasileña, de Xosé Lois García, Espanha, 2001; Poetas Mineiros em Brasília, de Ronaldo Cagiano, 2002; Trilhos na Cabeça, de Albert von Brunn, Itália, 2003; Poemas para Brasília, de Joanyr de Oliveira, 2004; História da Literatura Brasiliense, de Luiz Carlos Guimarães da Costa, 2005; Geografia Poética do Distrito Federal, de Ronaldo Mousinho, 2007; Cadernos de Poesia – Vol. 1, de J. R. Martins, 2008; Deste Planalto Central – Poetas de Brasília, de Salomão Sousa, 2008. Pertence à Academia Brasiliense de Letras, à Academia de Letras do Brasil, à Associação Nacional de Escritores e ao Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal. Em 1994 recebeu a Medalha do Mérito Cultural de Brasília.

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Perfil Humano e Artístico do Escritor José Santiago Naud

Juvenildo Barbosa Moreira

João Carlos Taveira

O Homem. José Santiago Naud nasceu aos 24 de julho de 1930, na cidade de Santiago, Rio Grande do Sul. É poeta e ensaísta, dono de vastíssima obra publicada. Formouse em Letras Clássicas, em Porto Alegre, onde foi diretor do Instituto do Livro. Em Brasília, foi professor pioneiro do ensino público em nível médio; sua mais profícua atuação foi junto a CASEB (Comissão Administrativa dos Serviços Educacionais de Brasília, cujo diretor foi Armando Hildebrand, alto funcionário do MEC e encarregado da futura organização da Fundação Educacional do Distrito Federal), antes de ingressar como docente na UnB. Vindo da região das missões gaúchas, Santiago Naud chega a Brasília em abril de 1960, com um grupo de 58 professores que veio implantar o ensino médio na cidadesíntese: a grande invenção de Juscelino Kubitschek para a unificação cultural e espiritual do povo brasileiro. Dois anos depois, ou seja, em 1962, participa da inauguração da UnB, ao lado de Cyro dos Anjos e Agostinho da Silva, sob as bênçãos do imenso e saudoso Darcy Ribeiro. Com a crise política que se instaurou no País, deixa a Universidade de Brasília, em 1966, e vai para os Estados Unidos, como professor convidado da Universidade de Yale, em Connecticut, lá permanecendo até o ano de 1968. Seu retorno ao Brasil e a Brasília se deu nesse mesmo ano, com a crise universitária internacional ocasionada pela rebelião dos alunos da Sorbonne, em Paris. Foi um deus-nosacuda nos meios universitários de todo o mundo, com revoltas sociais e políticas inclusive aqui, numa época marcada por Atos Institucionais, Medidas Provisórias e outras aberrações legislatórias de triste legado que continuam a perturbar nossas vidas. Em 1969, Santiago Naud ingressa no CEUB (hoje UNICEUB), como professor de Literatura portuguesa e brasileira. Mas, em 1970, vai novamente para o Exterior, com bolsas

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da Fundação Gulbenkian, para realizar investigação em literatura e filosofia portuguesas, em Lisboa, e participar, como escritor convidado, do Programa Internacional de Escritores (International Writers Program), na Universidade de Iowa, sob os auspícios da Comissão Fullbright do Departamento de Estado norte-americano. Em 1972, regressa ao Brasil e é contratado pelo Itamaraty para dirigir o CEB (Centro de Estudos Brasileiros). Nesse posto, cumpriu missões na Bolívia, Argentina, Pananá e México. Vale lembrar que o mesmo posto viria a ser ocupado, anos mais tarde, pelo também estimado escritor Ronaldo Costa Fernandes, na Venezuela. Em 1984, Santiago Naud regressa definitivamente ao Brasil, reintegrando-se ao quadro de docentes da Universidade de Brasília, onde se aposenta em 1992. Atualmente é membro ativo do COMBRAS (Compromisso com Brasília), órgão do Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal criado pelo insone guardião da memória do Presidente Juscelino, Affonso Heliodoro dos Santos, e presidido por outro gigante na defesa do Plano Urbanístico de Lucio Costa, Dr. Ernesto Silva. Santiago Naud é mestre também na arte de fazer amigos. Sendo um amante do cinema, gosta de freqüentar salas comerciais e cineclubes à cata de alguma preciosidade. Nossa admiração comum pela sétima arte, em especial pela obra de John Ford, entre outros gênios, já nos proporcionou, em tempos não muito remotos, noitadas inesquecíveis diante de uma tela na fruição de filmes selecionados. Na sala contígua, a mesa sempre posta para o café com leite mineiro, acompanhado de bolos, broas e outros quitutes bem ao gosto desse gaúcho missioneiro. Às vezes tomávamos um cálice da cachaça Rosa Mineira, da lendária cidade de Inhapim, terra de Alan Viggiano e outrora parte integrante do município da minha velha e amada Caratinga. Sinto saudades daqueles tempos, quando o piano de Claudio Arrau, tocando ora Chopin, ora Liszt, embalava nossas conversas sem tempo para acabar. E aqui me lembro de outro professor, o ensaísta e poeta Flávio Kothe, exímio artista do teclado e melômano consumado. Mozart, Schubert e Mendelssohn são seus preferidos. Minhas relações de amizade contam, felizmente, com a presença de gaúchos desse quilate! Há passagens indeléveis em nossas vidas que nem o tempo consegue apagar. Como os momentos em que Antônio Roberval Miketen, grande poeta, ficcionista e crítico, nos presenteava com recepções agradabilíssimas, animadas com uísque, vinho, caldo verde e outras delícias culinárias, em seu apartamento da 709 Norte. Ali se reuniam escritores, professores e amigos dos livros, da esbórnia e de Miketen — para tardes festivas que muita vez seguiam noite adentro. Ah, quantas histórias guardo daqueles tempos! Naquele tempo, ainda não medrava em Brasília essa variedade de entidades literárias que se assemelham a “seitas”. As coisas aconteciam mais no âmbito da convivência fraterna, nas nossas próprias casas. Havia discriminação e intolerância também, mas em níveis menos evidentes. Nada parecido com o que existe hoje, que beira as raias do surrealismo. Não havia então tais “seitas”, onde pessoas são discriminadas por esse ou aquele motivo irrelevante, mas nunca por serem medíocres. Essa praga, que foge completamente à lógica cartesiana, é garantida pelo compadrio dentro das “seitas”, que cultivam “a própria impotência como potência”, conforme ironizou Roland Barthes em sua descrição da glorificação do desejo pelo Romantismo alemão. O nobre poeta Santiago Naud vive e sonha neste imenso parque-jardim chamado Brasília, que a sanha de alguns empresários, movidos pela especulação imobiliária e destituídos de remorso, teima em continuar dilapidando. As agressões continuadas desfiguram e comprometem a concepção original e sagrada da mais bela cidade do Hemisfério Sul. Essa ação nefasta contra o tombamento se constitui num crime bárbaro contra nosso valioso

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Patrimônio Cultural da Humanidade. Mas é reconfortante saber que foi nesta cidade, onde florescem idéias e belezas, e é “difícil manter os insetos longe das flores”, que Santiago Naud fez sua morada definitiva. Este gaúcho amoroso que cultiva amigos e, ritualísticamente, dialoga com seus gatos, ao lado de sua dedicada esposa Lêda, de seu filho Cristovão e de suas netas Ludmilla e Elisa.

O Artista. Trago até vocês a visão límpida do poeta e crítico Floriano Martins, de Fortaleza: “A poesia brasileira encontra em vertente prodigiosa três notáveis exemplos: Gregório de Matos, Jorge de Lima e José Santiago Naud. Neles se instala, com um sentido latente de ruptura e revelação, a potência secreta do ludus, a voragem de suas dobras subterrâneas, sagrada tábua de origens em que o homem, para alcançar aquilo a que aspira, deve deixar-se tomar pelo labirinto mortal em que se ocultam todas as linguagens possíveis. “Rabisco estas anotações movido pelo fato de que o terceiro dos poetas que acabo de mencionar, apesar da importância capital que representa no centro intranqüilo da poesia brasileira, não encontrou-se ainda com a merecida difusão de sua obra. Com alguns de seus livros editados em países como Portugal, Argentina, Panamá e México, a poesia de José Santiago Naud, elegíaca e visionária, prolifera com uma voluptuosidade pouco afeita à tradição poética no Brasil. Desde 1952, quando então publicou Poemas sem domingo, multiplica-se esta poesia encarnando uma torrente inesgotável de volumes. Contando já com quinze títulos publicados, em sua residência encontramos duas vezes mais em textos inéditos, entre eles o impressionante Cara de cão, em suas 500 laudas por onde transcorre uma vertiginosa experiência existencial, pontuada por imagens dilacerantes, em que se mesclam o erótico, o religioso, o irônico, as representações cósmicas, a íntima relação com as doutrinas herméticas e ocultas, enfim, em que se configura o sagrado templo da poesia. Escrito entre 1973 e 1983, um fragmento erótico, parcela mínima, deste Cara de cão foi publicado em 1987, sob o título Vez de eros. “Creio que tal fagulhar de inquietudes tornou possível o encontro de José Santiago Naud com a imagem da Virgem de Guadalupe. O poema é pura ressurreição, “o país perdido / que levamos sempre, / ilha / no oceano / ou dentro de nós”. Desta forma, há uma gama insondável de encontros oculta nas dobras das páginas em que foi escrito o poema-livro Piedra Azteca (México, 1985), indo desde o encontro do primeiro homem de Aztlan com Huitzilopochtli até o encontro do autor dessas linhas com seu casual leitor. O livro de José Santiago Naud é o cenário estonteante de um drama cósmico: o inatingível clamor da presença do mito diante do homem. O que o poema situa como “movimento perpétuo / da cara do real inscrita em mito” são as máscaras de um diálogo que o homem não consegue manter com suas sombras. Pura ressurreição, mas também dura nostalgia. O mito da fundação asteca é fundido a uma inebriante torrente de dualidades, os cerimoniais do bem e do mal, a celebração dos frutos que dão ao homem uma dimensão religiosa e cósmica. Tal bigorna haverá de comportar ainda a experiência literária de Santiago Naud, enriquecida pelas leituras de José Gorostiza, Jorge de Lima, Almada Negreiros – poetas que também compartilharam seu apego aos aromas ritualísticos das doutrinas herméticas. O livro, como a totalidade da obra de José Santiago Naud, é também um louvor ao milagre da escritura poética no âmbito das

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identificações. O próprio autor salienta: “Vivência ou razão animada, o ato poético é um incorporar incessante”. Louvor à força vital que move sutilmente o centro de todas as culturas, energia central que dá um sentido histórico ao gesto intemporal e simples de leitura de um livro como Piedra Azteca.” Do nosso premiado poeta Anderson Braga Horta, a propósito do lançamento do livro Noção do Dia, em 1977: “Já nos Poemas sem Domingo, de 1952, Drummond encontrava indícios de ouro. De então para cá, através de outros dez volumes (Cartas a Juanila, Noite Elementar, Hinos Quotidianos, A Geometria das Águas, O Centauro e a Lua, Ofício Humano, Verbo Intranqüilo, Conhecimento a Oeste, Dos Nomes e o que é objeto deste comentário), Santiago Naud vem ampliando as galerias de sua exploração e enriquecendo o nosso acervo poético. “Neste seu novo livro, não há muito a notar quanto ao aspecto formal. Poesia pouco apoiada em artifícios – o verso é sempre livre, a rima é quase sempre acidental. (…) “A poesia de Santiago Naud, especialmente em Noção do Dia, é por inteiro voltada para o conhecimento essencial. Se é verdade que a poesia é por si mesma esotérica —fonte de que o não-iniciado apenas vislumbra o brilho superficial; ou fonte que se não comunica sem perda, qual o ilustra o Poeta em seu esplêndido “Peixe Dormindo”—, então a de (Santiago) Naud o é em dobro. Não nos pergunta pela chave, mas pelas chaves. O seu despojamento lingüístico e técnico não lhe desnuda os mistérios de território encoberto. “Nesse território penetrará mais ou menos profundamente cada leitor, conforme as próprias chaves. Mas todos, com certeza, se iluminarão intensamente dos raios que alguma vez lhe escapam ao denso véu. Um desses raios é o poema “A Flor”, de que transcrevemos a iluminação final:

Puro escândalo de seiva, a flor podia abrir as linhas do desejo, corpo do mundo ou túmido esto de sexo para quem atento andasse na vida olhando com vagar as coisas todas.” Sobre a ANTOLOGIA PESSOAL, editada por Victor Alegria em 2001, trago até vocês um texto muito significativo do nosso inesquecível Antonio Roberval Miketen, aposto na quartacapa da edição. Aliás, tanto Miketen quanto Santiago tiveram grande parte de sua obra publicada pela Thesaurus, uma editora especializada em pequenas edições, que goza hoje de grande prestígio nos meios acadêmicos e editoriais do País. Mas vamos à apresentação do autor de A Saliva do Verde: “Sem favor, J S N merece, desde há muito, ser incluído entre os grandes poetas americanos deste século. Brasília o tem há trinta e três anos: ele estará nos trunfos do seu futuro. Quem poderia ignorar os versos de Hinos quotidianos, O centauro e a lua, A geometria das águas,

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ou Verbo intranqüilo? O primeiro consagraria qualquer poeta europeu: um dos melhores livros da moderna poesia brasileira. O segundo, entre outros, mantém o tom herdado de Bernardim Ribeiro. Repuxa e nutre a essência da poesia, iniciada na língua portuguesa com D. Dinis. Não se pense em achar, com facilidade, poetas filiados a essa tradição. Tal comboio lírico somente encontra suas estações num Camões, num Camilo Pessanha, no Fernando Pessoa ortônimo, e em Eugénio de Andrade. No Brasil, entre poucos, refulge a luz de Alphonsus de Guimaraens. Falo da verdadeira poesia, no seu lídimo sentido, vinda à flor da pele, na palavra em sensibilidade quase musical. Ainda, não podemos nos esquecer de Pedra Azteca, publicada no México. Com sua magistral simbologia, primordialmente asteca, comprova-se em canção heróica ou lendária: monumental saga da poesia americana.”

A Obra. José Santiago Naud publicou vinte e um livros, inclusive antologias pessoais: Poemas sem Domingo (P. Alegre, 1952); Cartas a Juanila (P. Alegre, 1953); Noite Elementar (Porto Alegre, 1958); Hinos Cotidianos (Rio de Janeiro, 1960); A Geometria das Águas (Porto Alegre, 1963); O Centauro e a Lua (Rio de Janeiro, 1965); Ofício Humano (Rio de Janeiro, 1966); Verbo Intranqüilo (Rio de Janeiro, 1967); Conhecimento a Oeste (Lisboa, 1974); Dos Nomes (Rosário, Sta. Fé, 1977); Noção do Dia (Brasília, 1977); Promontorio Milenario (Panamá, 1983); Pedra Azteca (México, 1985); Vez de Eros (Brasília, 1987); As Colunas do Templo (Brasília, 1989); O Olho Reverso (1993), Memórias de Signos (Porto Alegre, 1993); Os Avessos do Espelho (1996); Antologia Pessoal (Brasília: Thesaurus, 2001); e 20 Poemas Escolhidos e um Falso Haicai (2005). Prêmio de Poesia (1958), Festival Internacional da Revista “Quixote”, Porto Alegre, e Prêmio Nacional de Poesia.

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Poemas de Santiago Naud


NA RUA SOLITÁRIA

Na rua solitária com o sol a pino uma reta de ouro se alastra ofuscando tudo e tingindo as coisas. Réstea de espanto o grito do louco risca o céu azul em linha oposta à sombra da árvore. No aconchego materno de umbu partem-se paz e sossego, a doçura e o ponto justo são de repente um raio na desmesura do grito do louco com a sua alma em frangalhos num leito de chamas a espatifar os olhos do menino presos no silêncio da praça. Ficou da sensação o pavor dominado, aquele preciso instante da visão de um reboco vermelho no muro descascado, os tijolos s à mostra e a calçada dura, asperezas, fascínio, destemor, e o grito do louco riscando de sangue o céu azul. Assim também (oculta) a cadeia da herança espiralava o explícito das formas, pura aparência com o espírito dentro desde os espaços abertos, um ato feito em nós: Deus Poemas de José Santiago Naud 195


escrevendo a peça que dizemos com a memória das células, mandado e medo de cumprir a hora prescrita, o tempo certo de sair – clara mandala. Como o salmão remonta as nascentes para deixar à aventura do rio os seus ovos e ali fluindo começar a morrer, assim o louco grita ou nós, apoderados da razão, desandamos. Só um cão é companhia Que volte os nossos olhos para a luz Ou na treva compasse os nossos passos. Dentro da gruta espessa os nossos nervos pulsam impacientes e passa de pai a filho o relâmpago das mães. De repente as ruínas circulares dos desabamentos fatais estão ali e são como o grito do louco em reta de ouro o quadrado da praça – um raio de saudade agora aqui total lembrança, fiel presença para sempre fatal em sombra iluminada.

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ENQUANTO O VENTO RODA

Enquanto o vento roda lá fora e uma folha amarela bate na vidraça a candeia ali dentro flui essa flor de luz em torno da mesa e o chantre conversa com a esposa enquanto compõe sua música. Tranqüilidade de fazer o pão para todos sem estar de candeia às avessas nem acendê-la para deixá-la embaixo da cama. Mais fraterno ainda, o cão se lhe enrola no meio das pernas e ele o deixa ficar assim um cachorro astuto prisioneiro do sono e do tempo como um novelo. Doce paz e instante dourado que duram enquanto lá fora desatam-se os ventos e ruge a destruição – estremeção do mundo sem cão nem gato, rato roendo a perfeição enquanto a música harmoniza as puras dissonâncias e entre marido e mulher a candeia incendeia o aqui mas habita sem tempo o centro da harmonia.

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EM QUE LUGAR FICOU

Em que lugar ficou o cruzeiro no meio do caminho com a ermida mais adiante onde a estrada bifurca? Já não sei. Sei que ficou passando a geografia para a mente e no fundo de mim o fim da tarde emoldurando um roble e a montanha posta do lado, mais longe a densa natureza da pedra e o ar fino prende ainda ali o inverno frio nuns fiapos de outono e é a retidão de álamo a paisagem vazia imóvel dentro de mim. Não sei nem quero saber: essa estrada essa curva e esse quadro parado no fundo de mim caminho de partir ficando enquanto o auto arfa e pára lentamente arqueja e tosse a última pulsação antes que eu baixe e te tome nos braços meu amor no ar fino da tarde. Beijo fundamente a tua boca com um beijo radical esse quadro que ficou ali ignoto no ar fino da tarde e o guardamos para sempre apócrifo no pó dos nossos nomes.

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CANTARES DE NOSSA SENHORA

1. Quero te falar de Maria. Maria foi tão simples. É muito anterior a Eva e está noturnamente sozinha na sua roca de Piedade. 2. Era preciso que Deus baixasse e nos desvãos da carne celebrasse a aliança com o eterno. Mas devia vir nu, Deus, sem uma pedra que lhe amparasse a cabeça, nem placentas, submisso e ancorado na vária geração. Como nas vastas peregrinações em que o homem equilibra e partilha e o anseio, se te exigia o máximo, de virgem e de mãe. Era preciso reunir como o andarilho, no olhar, todos os povos. E tu ouviste o anjo. Tu foste a casa e a flor, o jardim e a lareira, ajudando para sempre o espírito no tempo. 3. Em segredo, um campo azul pendia das paragens celestes, vasto

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de muitas flores. E vinhas por ele com as vestes vaporosas, ao lado o touro – de finas ilhargas e a frente poderosa. Oh, Pastora da besta, as alvas mãos aberta sob os seios explícitos! Caminhas, pastoreando enquanto a língua bruta, áspera e sedenta, forte e obscura vai passando entre os beiços (rorejados de orvalho) a grama, tenra. Odores de terra sobem como chuva a baba cintilante. Simples, entre as mais simples vejo a tua mão descer sob o dorso selvagem enquanto os flancos fremem. Então, de rampa adusta a pomba desce, e adeja no teu ventre a aspereza portentosa do touro: todas as flores que ele pasta passam às tuas vestes e ficam vivo esplendor.

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ORIGENS

Quando ainda não éramos, víamos em toda a direção, não obstante o Céu por sobre nós conviesse a cabeça terrena. Mas, ai, o terrível instante em que já não mais o olho que vira se mantinha. Tudo então se pensou. E as nuvens, a cor das águas azuis que se entregavam em flores sexuais se entregavam em flores sexuais se bipartiram abrindo em volta de nós os espaços da dor. E eis nosso dia.

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CAVALO MORTO

Morto. A cabeça tão bela, outrora insofrenável, agora ropousando nos vermes. O corpo terso, enorme, inominável já, colando-se na terra. E a grama vencendo a repugnância ensaia terna uma cor mais nova. Antes, uso. Agora, memória mal exposta. Signo do tempo. Meditação confusa. Velocidade podre. Das patas ágeis – persistência patética – restam os cascos, apenas restos de cabelos escuros. Sobre, o arcanjo da destruição passa sombrio, e enfeixa aquela descomposta figura nos silêncios da espada.

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TOCADORA DE FLAUTA

Pelos campos de Osuna ela havia de andar ao mesmo vento que ondulava o trigal. E o mesmo sol que tirava a capa ao companheiro havia de brilhar sobre os dois, hoje imóveis. Ah, virtudes de pedra capaz de reter quanto, só na alma, o espírito endurece – este permanecer, brilho fugidio preso no homem (para logo voar) quando o sexo se alça ou a fome abre quinas de morte. Auletriz chamada, agora auletriz a vejo. E digo mais vivamente: tocadora de flauta. Vem, com teu canto de pedra, costas voltadas ao companheiro gasto, cunha da evocação. Vem, com teu passo imóvel. Fixa nos meus olhos, deixa que os ventos de Osuna soprem de novo o remoto, e os campos dobrem na tua cinta cingida, e o sol doure o cacho dos cabelos cintados pela trança de palha do chapéu. Que o trilo da flauta suba a serpente dos montes, Poemas de José Santiago Naud 203


enquanto a capa ondeie rígida os frêmitos passados e volte o companheiro a convergir os passos para ti. Num instante as noites primitivas estão aqui. Juntos, cosemos rugas do tempo, recompomos o mundo. E o dia (íntegro) se faz.

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A DAMA DE ELCHE

Seus olhos pararam no limiar. Mas a morte participa também do mistério da vida, e essas amêndoas que mantém explícitas ao nada, anunciam outra árvore em nós. Toda a feição já se concentra no que os olhos não dizem. Antes fossem fechados, como os lábios na dureza do mento, e a ciência ou a razão que nos perturba não deixariam no berloque aguerrido essa espantosa serenidade gélida de amor. Mulher-senhora. Mãe? Nos adornos da espera, (nossa a dúvida) fica a vida que freme, e os abismos que a beleza flanqueiam. Até que os pés alados despertem a princesa. Então, Deus a recolhe, e roça nossas parcas medidas. A morte desancora. Pela rigidez da inacessível máscara, escorre como as chuvas o seu íntimo trabalho de existir.

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DA MORTE

A morte joga no descampado o seu jogo de dados mas é no íntimo de nós no âmago que os pontos contam. Ela funda no fundo de nós sua raiz fecunda – no ventre como bicho faminto no coração como casa sem gente na mente como causa de causas sem motivo. É a nossa companheira longinquamente desde o berço e muito antes ainda pois quando nos embalava ao doce enlevo da mãe já modulava o canto antiqüíssimo marcando o mais certo encontro conosco para a miséria ou para a glória.

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POEMAS DO MALAMOR

Amor imarcescível que renasce na morte que gerou e se projeta noutra morte em que a vida se acalanta. Amor – pássaro atroz que se endereça ao fogo do subir e bica o tempo no tempo em que a memória se confunde. Amor beijo perdido em boca esquiva renúncia de não ser certeza ativa sede de eterno, e força de afeição que a altura prende um pouco e se detém pois como a água torna à terra e escorre e sobe ainda. IV Perdi o amor em vós, minha senhora, procuro o vosso olhar mas não encontro o ser que, num minuto ou numa hora, suspendia-me ardente no confronto de um tempo intemporal e que, confiante em vós, olhos mais alma derramava como asas em céu azul, ondeante, mais altura de amor enquanto amava.

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Quase sou triste pelo que acontece no momento em que toco vosso corpo e que meu corpo como flor fenece, enquanto o grande amor se refugia fora de mim e nós, tecendo um porto na circular veloz da nostalgia. V No perfume da noite a tua sombra levou-me pela mão. Aos poucos, indo pelos caminhos onde outrora a alfombra do amor nos reclinou, fui resistindo a dor de retornar. Do fogo à palha te construí de novo minha parte e o teu sexo ou gesto, na pantalha do tempo, me feriu de ti. A arte de regressar aprendo, no instante que perco a sebe, a lua, o frio cimento que nos viu. Mas te vejo, o bem distante que nos fez, maçã ou rosa, em dor subir as verduras do amor, que este momento vai-me cessando aos poucos de existir.

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Aragão Junior

Organizador do Recital – Conferência

Lauro Moreira, ademais de suas atividades profissionais de diplomata de carreira, foi sempre um militante da causa cultural e artística, dedicando-se às artes cênicas (ator, diretor e autor), ao cinema (documentarista) e à fotografia (premiado em concursos nacionais). Serviu em postos diplomáticos em Buenos Aires, Genebra, Washington, Barcelona e Marrocos, além de chefiar a Divisão de Difusão Cultural e mais tarde, o Departamento Cultural do Itamaraty. Hoje é o Embaixador do Brasil junto à Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), em Lisboa. Em todos esses postos, dedicou-se sempre à promoção das artes e da cultura brasileiras, sobretudo da música e da poesia em língua portuguesa, proferindo palestras, escrevendo textos e organizando recitais. Em 1998 lançou o CD duplo Mãos Dadas, onde interpreta poetas de todos os países de língua portuguesa e, em 2005, gravou o álbum Manuel Bandeira: o Poeta em Botafogo, contendo 50 poemas interpretados por ele e pelo próprio poeta, enriquecidos pela música de Camargo Guarnieri. Criou também o grupo Solo Brasil para apresentar o que há de mais representativo na música brasileira do século XX. O grupo já obteve sucesso em 15 países e diversas cidades brasileiras, inclusive Brasília.

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Marly de Oliveira: Poeta de Todos Nós

Thesaurus Editora

Lauro Moreira

Introdução. Marly de Oliveira, poeta, professora e ensaísta, era capixaba de Cachoeiro do Itapemirim, embora tenha vivido a infância e adolescência na cidade fluminense de Campos, onde muito cedo se iniciou na literatura, publicando poemas em jornais e revistas. Mudou-se depois para o Rio de Janeiro, onde se diplomou em Letras Neo-Latinas pela Pontifícia Universidade Católica. Recebeu bolsa de estudos para cursar História da Língua Italiana e Filologia Românica na Universidade de Roma. Ali conheceu o grande poeta Giuseppe Ungaretti, que havia lecionado por algum tempo na Universidade de São Paulo e que, ao ler uma breve coletânea de poemas escritos em italiano pela jovem estudante brasileira, decidiu entusiasmado apresentá-la pessoalmente em um programa literário da rádio-televisão local, referindo-se textualmente ao milagre de criação daqueles versos escritos por uma estrangeira em um italiano luminoso. De volta ao Brasil, Marly de Oliveira passa a lecionar Literatura Hispano-Americana na Universidade Católica do Rio e de Petrópolis, e Língua e Literatura Italiana na Faculdade de Filosofia de Nova Friburgo. Casa-se com diplomata brasileiro e vive alguns anos em Buenos Aires, Genebra e Brasília. Na década de oitenta casa-se, pela segunda vez, com João Cabral de Melo Neto, com quem reside em Portugal e depois no Rio, até a morte deste, em outubro de 99. Em 1º de junho de 2007, Marly de Oliveira falece em um hospital do Rio de Janeiro, após quase quatro meses de internação.

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Algumas Opiniões sobre a obra de Marly de Oliveira: “Vou apresentá-la com grande alegria: trata-se de um dos maiores expoentes de nossa atual geração de poetas, que é rica em poesia. (…) Além de poeta, faz críticas da maior erudição, agudeza e sensibilidade.” [ Clarice Lispector ] “Com sua origem erudita, sua dicção clássica, sua substância filosófica, a poesia de Marly de Oliveira é uma construção solitária na literatura brasileira. Comentando outros livros seus, já pude ressaltar tudo isso – o que, para mim, faz dela o maior nome feminino da poesia em língua portuguesa.” [ Pedro Lyra ] “Ler esta sucessão de esplêndidos livros de rara, inspirada e erudita lírica no Brasil é descortinar, a cada volume, paisagens entrelaçadas por um leitmotiv, pagão, estóico, agnóstico, corajosamente assumido.” [ Leo Gilson Ribeiro ] “A aventura poética, aqui, atinge um estado único no Brasil e quiçá na língua portuguesa: um fluir sonoro de completo mas imanifesto domínio dos apoios fonéticos; um artesanato de formas fixas que se embebe no mais acurado conhecimento do passado; uma temática que leva, ao mesmo passo, ao quinhentismo e antes, e aos amanhãs e depois, pertemporizandose”. [ Antonio Houaiss ] “Marly de Oliveira é uma jovem poeta brasileira. Quem conhece os seus versos em português, aqueles de seu livro Cerco da Primavera, publicado em 1957, e aqueles que compõem a sua nova coletânea Explicação de Narciso sabe que neles ela dá prova de raros dotes de profundidade e de graça. Mais como terá feito esta jovem para apoderar-se de nossa língua, de sua secreta musicalidade ao ponto de poder oferecer o dom da poesia que agora ouvireis? É um milagre: a ingenuidade e a profundidade aqui se mesclam com uma novidade talvez superior aquela que surpreende quando se exprime na sua língua materna. É um milagre: simplesmente poesia em um italiano iluminoso.” [ G. Ungaretti (alla RAI – 1960) ]

Obra Poética [ Cerco da Primavera ]. Desde seu livro de estréia – Cerco da Primavera – publicado em 1957, quando era ainda uma jovem universitária, Marly de Oliveira surpreendeu a leitores e críticos com uma obra que nasceu pronta, definitiva, “como Atenas, da cabeça de Júpiter”, na expressão de Alceu de Amoroso Lima, e que mereceu o Prêmio Alphonsus de Guimarães, do Instituto Nacional do Livro. Ali já estão presentes os temas essenciais do poeta, reiterados nos 16 livros publicados desde então, e resumidos numa permanente indagação filosófica sobre os mistérios e a fragilidade da vida. O primeiro verso, do primeiro poema, do primeiro livro já traduz a atitude reflexiva de alguém voltado para o conhecimento de si e do mundo que o cerca: Eu. E diante da vida (…) Trata-se da obra de uma jovem poeta perplexa ante os mistérios do mundo, acreditando de certo modo no poder da poesia como chave para abrir esses mistérios. O poeta percebe, em seguida, a insuficiência da arte para apreender e compreender o mundo, a vida. O máximo a que a poesia pode aspirar é refletir, em termos estéticos, esta busca permanente e essa consequente perplexidade diante do mistério insondável.

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Mas, essa incapacidade para entender o mundo não detém porém o tempo, em seu fluir incessante. Um breve levantamento vocabular do Cerco da Primavera testemunha essa fugacidade das coisas e da vida:

um esbatido de pássaro; no redondo das horas; pássaros calmados; rosa, flor, aceno; fogo de lírios; silêncios desvelados; um rio de claridades, tempo, luzes, auroras, noites, crepúsculos, água, vento, manhãs puras, horizonte, vagos espelhos, trêmulo instante, sonho, nuvens, distantes mares, alto vôo, sombra, cristal da vida, cirandas de ventos e anjos, etc. E esse fluir incessante vai desembocar naturalmente no não-ser, na morte. Ou seja, o amor e a morte são os temas básicos do Cerco da Primavera. E é a própria autora que confessa: “Ainda adolescente, o grande terror era o da morte, só compensado pela idéia do amor. Amor e morte são os temas fundamentais desse livro, que pretende por medo da dissolução, uma afirmação da minha identidade, a sensação penosa de uma solução que ainda é desafio e orgulho.”

EPIGRAMA Bom é ser árvore, vento: sua grandeza inconsciente. E não pensar, não temer. Ser, apenas. Altamente. Permanecer uno e sempre só e alheio à própria sorte. Com o mesmo rosto tranquilo diante da vida ou da morte. RETRATO Deixei em vagos espelhos a face múltipla e vária, mas a que ninguém conhece essa é a face necessária. Escuto quando me falam, de alma longe e rosto liso, e os lábios vão sustentando indiferente sorriso.

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A força heróica do sonho me empurra a distantes mares, e estou sempre navegando por caminhos singulares. Inquiri o mundo, as nuvens O que existe e não existe, Mas, por detrás das mudanças, Permaneço a mesma, e triste.

ELEGIA Teu rosto é o íntimo da hora mais solitária e perdida, que surge como o afastar-se de ramos, brando, na noite. Não choro tua partida. Não choro tua viagem imprevista e sem aviso. Mas o ter chegado tarde para o fechar-se da flor noturna do teu sorriso. O não saber que paisagens enchem teus olhos de agora, e este intervalo na vida, esta tua larga, triste, definitiva demora. Explicação de Narciso – (1960). Em seu segundo livro, Explicação de Narciso, o poeta se vale do mito grego – como de resto o fará em vários outros momentos de sua obra, sobretudo em Invocação de Orpheu, onde se dá a “iminência do encontro frustrado” – para refletir sobre o tema da beleza pura, completa em si mesma, ao longo de 19 poemas encadeados. Mas Narciso é também o ser que caminha inelutavelmente para a solidão e para a morte. O enfoque dado por Marly de Oliveira ao mito do Narciso difere, entretanto, dos enfoques de poetas anteriores, como Ovidio, Valléry e Mallarmé, mais presos à versão tradicional da Marly de Oliveira: Poeta de Todos Nós 213


mitologia, em que Narciso, um dia se vendo refletido no espelho das águas, apaixona-se por si mesmo e afoga-se na fonte, à beira da qual nasce a flor com seu nome. Para Marly, Narciso ao se mirar no espelho das águas se vê para além da sua imagem: seria o Eterno, a Beleza? E a isso, diz o poeta, ninguém subsiste. Transpondo para o plano da crença religiosa, Deus é o Transcendente, o Para lá desta ordem de coisas. E segundo a frase bíblica, não se pode ver a Deus sem morrer. O terceiro poema do livro poderia figurar como epígrafe de toda a obra do poeta:

3. Diante de mim, nestas águas, quem sou, que não me preciso? Ai, que sonho tão temível assim me turva o sorriso? Que amor, que presságio cingem a cabeça de Narciso? A que secretos poderes se confia minha sorte, se o que frágil vejo na água, em mim se torna mais forte, e onde sei que está a vida encontram todos a morte? Entre mistérios tão vastos que breve instante que somos! De repente descobrimos que estamos. Mas onde? e como? Por mais que nós nos dobremos sobre nós e o que já fomos, à inútil pergunta nossa somente o eco responde. E diante outra vez de nós estamos. Há quem nos sonde? E de que espaço ou que tempo nosso eco responde? de onde? A Suave Pantera – (Prêmio Olavo Bilac, Da Academia Brasileira De Letras – 1963) E o Sangue na Veia (1967). Nos dois livros seguintes – A Suave Pantera (Prêmio Olavo Bilac, da Academia Brasileira de Letras) e O Sangue na Veia, que buscam uma certa objetivação do poema – sai de cena o travo de melancolia e sofrimento, derivado da sensação de impotência diante da fugacidade do tempo. A pantera, estuante de vida, está toda presente em si mesma, sem passado e sem futuro, e portanto sem angústia. Nela coexistem a fome, a cólera, a liberdade, o amor e o sono – mas não a consciência da morte.

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2. É suave, suave, a pantera, mas se a quiserem tocar sem a devida cautela, logo a verão transformada na fera que há dentro dela. O dente de mais marfim na negrura toda aberta, e ser de princípio a fim a pantera sem reservas, o fervor, a força lúdica da unha longa e descoberta, o êxtase de sua fúria sob o melindre que a fera, em repouso, se a não tocam, como que tem na singela forma que não se alvoroça por si só, antes parece, na mansa, mansa e lustrosa pelúcia com que se adorna, uma viva, intensa jóia. O Sangue na Veia, por sua vez, reúne 46 sonetos decassílabos, encadeados por uma longa reflexão sobre o tema do Amor, visto como algo vital, porém consciente e lúcido, (seria antes o conhecer e abrasar-se de Vieira, e não a imagem de Cupido com os olhos vendados); algo que segue uma rota própria, um caminho preciso e limitado, como o sangue na veia. Aqui tão pouco sobra espaço para tons crepusculares, e Eros é celebrado como convém:

I. A carne é boa, é preciso louvá-la. A carne é boa, não é triste ou fraca. O que a atinge é a fraqueza que há num homem, a tristeza, maior que um homem, mata-a. A carne nada tem, salvo o seu sono, barro tranquilo de harmoniosa forma, corpo que distraídos animamos, fonte real de toda a nossa glória. A carne é o instrumento do princípio, é por ela que eu vivo, que vivemos, e se revela o amor como é preciso; Marly de Oliveira: Poeta de Todos Nós 215


o que está fora se une ao que está dentro, alma e corpo no corpo confundidos, e a sensação completa de estar vendo. XXIX. Tu só, pões-me no peito essa cobiça, e mais que essa cobiça, essa doçura agônica escorrendo pelo corpo, como um óleo sem paz essa doçura, esse medo, essa forma de querer obsessiva, essa forma quase injusta. De repente eu não caibo mais em mim, de repente eu me torno plena e obscura, como um rio de cheias muito altas, que fosse para além do seu limite, e não soubesse o que fazer das águas. Assim o amor excede o que se vive, e no meu pensamento ele se espraia com aquela perfeição que há no impossível. Vida Natural – (1967). O livro seguinte, A Vida Natural foi publicado também em 1967, juntamente com O Sangue na Veia. Ambos evidenciam aquilo que Antonio Houaiss tão bem chamou de “sentidos sentidos”. Diz ele: “E tudo em contato de coisas velhas e revelhas, a terra, o campo, as ervas, as águas, águas claras, cristalinas, vôos e sangue e sol e fogo e frio e fome, fome de vida, fome de amor, fome de vida”. As reflexões de A Vida Natural nascem a partir de uma viagem de Marly a Brasília, mais especificamente a Goiás, e a algumas pequenas cidades e fazendas da região. O contato quase inaugural com a natureza em seu estado bruto, para ela que passara os seus jovens anos até então entre livros, Rio e Roma, teve o impacto de uma revelação. Foi uma constatação fascinada com árvores crescendo, bichos nascendo, rios correndo e “crepúsculos lentos e arroxeados”… Mas a dúvida, o questionamento sobre a perenidade das coisas e sobre nosso estar no mundo, juntos e diversos desta mesma natureza, estão igualmente presentes nesses poemas, cujo bucolismo amoroso nos faz pensar em um Bernadim Ribeiro, e cuja estrutura formal nos remete a Dante e suas sextinas, às canções provençais, a Petrarca, a Guido Cavalcanti.

XII. O meu amor, que livre anda de engano, ambiente natural encontra nestes campos, onde a relva, levemente movida pela brisa, ao contato é macia,

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e o boi rumina, sem espanto, a sua doçura de vagar, olhos postos nas coisas, distraído; um cavalo anda longe, e a crina se desfralda como um leque, aberto por um vento muito brando. Meu amor se acomoda entre estas pedras como a seu leito o rio, a asa do inseto ao corpo delicado, ao morno ventre o bicho não nascido. Como fronde se inclina aos meus suspiros, que deitando vou aos transparentes ares, quando o arvoredo a fina brisa agita. Ah deleitosa vida, pelo arado do sonho sou levada, e o que fazes de mim é o que me fica. Sem qualquer pensamento ou sentimento que de leve me afaste, mergulho na secura do que vejo. Cada coisa está viva em seu lugar, cada coisa está certa; o Inverno seca apenas o exterior, deixa a umidade interna. Que sei de olmos e faias e olorosas ervas? De mim que sei? o ritmo do que vive é tão perfeito como o do ar que entra e sai pelas narinas. Contato – (1975). Este livro, segunda sua autora, representaria “la rencontre manquée” de que fala Lacan. “É o meu fracasso diante da opacidade do outro ou da minha vontade de transparência”. Ou seja: a constatação final da absoluta impossibilidade de se estabelecer uma real comunicação com o outro. Invocação de Orpheu/Aliança (1980). Em 1980 é publicado Invocação de Orpheu, sobre o qual já nos referimos, e logo em seguida, Aliança. Esta última é uma obra repleta de homenagens a figuras admiradas pela autora. Segundo Antonio Houaiss, “alguns dos mais belos tributos críticos, lúcidos, válidos, perdurantes, afetivos a poetas seus cognatos de alma, como a Drummond, a Jorge Luís Borges, a Murilo Mendes, a Cecília, a Manuel Bandeira, a Clarice, a São Francisco”. E, acrescento eu, a suas filhas amadas, Mônica e Patrícia. Marly de Oliveira: Poeta de Todos Nós 217


A Carlos Drummond de Andrade IX. Poeta do finito e do infinito, tempo presente e ausente e do futuro, de tudo um pouco te ficou na austera concepção de vida, ó demiurgo da memória, do sonho, do sarcasmo, da violência contida e sem triunfo, da doçura do hóspede secreto de si mesmo rebentando-se em dor, amor, soluço; que te dizer no dia abençoado, eu que nem sei de mim, eu que me sei agora remetida à tua lição de dançarino aflito sobre os fios finos, tênues e tensos da canção? O pórtico arruinou-se de meu sonho, a tristeza infantil revigorou-se: meu canto não celebra o que interpreta na inspeção, de que falas, dolorosa do deserto. Já não saúdo ao jeito natural de quem sabia adormecer crianças. O sino toca e não percebo: falta a malícia das coisas, a aliança secreta com o que existe. Ó meu jovem poeta, não te consome o tempo irreverente: és a mina de tudo o que ainda anima a aceitação difícil do mistério, a solércia dos mitos que o amor vai criando de forma insidiosa. Atento te debruças sobre a vida, assistes impassível ao desmonte e ao recriar-se, franco, cada dia, de um céu mofino, um tempo de pesares. Mas de tal modo, poeta, extraordinária é a tua percepção do que se vive, 218

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que nem te rapta o sonho, nem te perde a obscura realidade. Pairas, tranquilo, sobre as coisas, herdeiro penseroso do milagre.

REFLEXÕES: O MUNDO E SUA PAISAGEM (2ªParte de Aliança) XXV. O ovo é uma coisa demonstrável, a casa é uma coisa demonstrável, o quadro é uma coisa demonstrável, o poema, o teorema, o filme são coisas demonstráveis; a teoria dos quanta, a infância irreversível; a explosão da nebulosa inicial em que nem sei se creio; a pobreza de alguns, a riqueza dos outros; a erosão, a repartição pública, a escoriação, o computador, a estase; a lei que rege este universo, o ritmo das marés que acompanha o da lua; o cogito cartesiano; a guerra, a paixão, a criação, o crime, o adubo que faz crescer a planta. Mas a calúnia é indemonstrável, segue o caminho da injúria que uma vez plantada prolifera: é astuta, ambígua, vingativa, escusa; é a escória que lixo algum recebe, erva daninha cuja função talvez suprema é acabar injuriando aquele que injuria.

A Força da Paixão/A Incerteza das Coisas (1982). Uma visita a Jorge Luis Borges em sua casa em Buenos Aires, numa certa tarde do final da década de sessenta, vai render anos mais tarde um poema muito significativo de A FORÇA DA PAIXÃO: A humildade de Borges. Quando o vi/pela primeira vez e lhe mostrei/o coração repleto de admiração,/ me respondeu: “Si algun dia te dás cuenta/de que no soy lo que tú te imaginas,/no digas que no te avisé.”/Esta frase impregnou minha vida. Marly de Oliveira: Poeta de Todos Nós 219


Retrato (1986). Em RETRATO, publicado em 1986, a autora como que reescreve alguns poemas de seus primeiros livros, num exercício crítico, lúdico, original e bem-humorado de metapoesia, em um surpreendente diálogo intertextual. São referências diretas e explícitas a poemas do Cerco da Primavera, de Explicação de Narciso, de A Suave Pantera, de O Sangue na Veia, etc., reescritos décadas mais tarde, em um exercício de reconstrução não apenas formal como de conteúdo. Exemplo: o poema A Cidade, da série Três Poemas a Campos, do primeiro livro, é lembrado como se segue: 1. Houve um tempo em que escrevi: Sobre o rio, sobre as casas, cúpulas, ponte, avenidas, com acertos de acrobata, pássaros, metade luz, metade sombra, levantam o meio-dia de prata. Mas o dia era azul e não de prata, e nascia de si, não de pássaros (que também não eram acrobatas). A realidade parecia insuficiente: o céu tinha de ser de prata, os canaviais, espadas flexíveis, logo os canaviais que emitiam sons de harpa. Mas também escrevi depois que cada coisa está certa em seu lugar cumprindo o seu destino. (Só não me lembro onde). Viagem a Portugal– (1986). Este livro, publicado após uma vivência mais prolongada em Portugal, é um prelúdio de alegrias e esperanças em que o poeta percorre a geografia, a história e a atmosfera lusitana: Em Portugal, à sombra de mim mesma,/pela primeira vez fui livre/e sem cuidado,/amando o meu estar ali/de forma tão intensa/que mal me reconheci. Ultimas Obras. Com uma produção sempre fértil e cavando cada vez mais o poço da introspecção, na busca incessante de uma resposta para suas permanentes indagações existenciais, Marly de Oliveira publica a partir de 1988 quatro novos livros, que acrescentam

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e enriquecem ainda mais a sua extensa obra. São eles: O BANQUETE (1988), O DESERTO JARDIM (1990),– O MAR DE PERMEIO (1997) e UMA VEZ, SEMPRE (2000), sua última obra publicada em vida, na qual, através de 51 poemas – constituindo na verdade apenas um longo poema sobre um tema determinado, como acontece quase sempre na obra de Marly – trata de mais um mito, desta vez o de Hérodiade, a partir de um poema de Mallarmé, que tem o título do personagem, em um novo exercício de metapoesia. Aguarda-se para breve a publicação do inédito UM FEIXE DE RÚCULAS, muito recentemente concluído. O MAR DE PERMEIO está dedicado às suas duas filhas, Mônica e Patrícia, naquele momento vivendo no estrageiro, e tão bem lembradas na obra de Marly por Ruth Maria Chaves, em seu excelente estudo introdutório à obra: Mónica (violenta aurora do meu sangue/aprendiz do que sonha o meu amor – Aliança, poema XII), perdida-ausente em Lisboa, é recolhida agora em ternura, em qualquer parte, mesmo aqui/no objeto de uso mais cotidiano / chávena chave clave cama / carta papéis antigos mapas / que orientam no escuro este vazio /cavado no meu peito /um poço um fosso /sem fundo (poema 1). Patrícia (salve, ó cheia de graça/ó nascida de mim como da vida/sem apelo, sem dor e sem necessidade – Aliança, poema XII), perdida-ausente em Amsterdam, é revisitada em sua nova morada:

Numa rua em Amsterdam 3. Em Amsterdam na Diezestraat 6 alguém me espera alguém me quer alguém dá vida e brilho à minha vida tão dividida que mal se define entre aquilo e o que. Alguém me espera entre tulipas alguém me espera entre folhas tombadas sob o sol sob a chuva sob o frio alguém me espera espera espera. Alguém constrói a sua casa como artesã-abelha delicada; sobre o sofá um quadro, uma explosão, que cada dia mais entendo, cada ano mais, e outros móveis, cortina, cozinha, um banheiro todo branco. E para mim um quarto, uma cama, um edredom azul, uma escova, Marly de Oliveira: Poeta de Todos Nós 221


papéis e muitos outros objetos, telas tintas um pedaço de ferro, outro de ouro, outro de aço. Alguém de longe me acena com uma lareira acesa. Conclusão. Em comovido artigo publicado no Jornal de Letras de Lisboa, Mário Quartin Graça, homem da cultura e da diplomacia de Portugal lembra: “Tal como a poesia de Marly, a lembrança do seu “rosto tranquilo”, da sua beleza clássica, da sua inteligência culta, da sua amizade pura permanecerão muito para além da sua morte na recordação e na gratidão dos seus amigos”. Concluindo, vale reiterar que, para Marly de Oliveira, a função do poema é conhecer, investigar o real, refletir sobre o ser e o estar no mundo; e que sob o aspecto formal, sua obra é de grande rigor estético, deixando transparecer um vasto conhecimento dos clássicos e um perfeito domínio técnico das formas fixas, do soneto às sextinas de Dante, das canções medievais ao verso curto e livre de suas obras mais recentes. E novamente me socorro do Mestre notável, a quem a cultura brasileira tanto deve, que é Antonio Houaiss, e que nutria a mais profunda e confessada admiração por essa obra, tão conhecida sua. Encerrando seu longo estudo introdutório ao volume “Marly de Oliveira: Obra Poética Reunida”, de 1989, diz ele: “O estigma e a glória destes poemas é esta nossa portuguesa linguagem – eu ia dizer “esta nossa português casta linguagem”. Língua de cultura que, como todas as poucas grandes línguas de cultura, exige, para seu domínio (como fruidor, falante, ouvinte, escrevente ou legente), anos e anos de estudo, de horas e horas por dia, é ela de senhorio total de Marly de Oliveira, que é tão sua profunda conhecedora em suas regras e em seu léxico que, ao encampar heterodoxias sintáticas ou vocabulares (em dois lugares, não mais, se bem a li – e bem a li e reli), as consagra e lhes dá curso de lei nova.” Glória porque o uso desta nossa língua tem aqui sabores – sempre frescos – de tempos vários em autores vários de problemas vários com notabilíssima harmonia, que faz de suas gramáticas uma poderosa arma de dizer até o inefável, criando para seus versos cadências, ritmos, rimas, timbres, estrofes de todas as sonoridades, fazendo-a decisora e criadora de orquestrações e melodias e melopéias, com contrastes e constâncias embaladores. Estigma, porque – da forma por que se faz a transmissão de nossa língua de cultura, com um sistema de estudo e ensino dos mais torpes que se possa imaginar, poucos são aqueles que saberão situar-se nestes seus escritos: destinados, por vocação, a todos os que têm sede de poesia (e são legiões), só poucos podem a ela aqui aceder, com a consonância espiritual que ela pede (e que de outra forma não se exprimiria e, assim, não existiria), consonância que pede conhecimento e estudo de nossa língua. Mas tempos virão em que isso se alcançará. “E Marly de Oliveira – poeta por ora de poetas – será poeta de todos nós, que a leremos emocionados e gratos pela coragem e beleza que esparziu no nosso mundo.” Lauro Moreira

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Tributo ao Poeta foi composto em tipologia Interface Dama e impresso em papel Croma Silk 90g. Acabou-se de imprimir em agosto de 2008 nas oficinas da thesaurus editora de brasĂ­lia. *** lavs deo


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