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RELIGIÃO, PORQUÊ?
Manuel Souto Teixeira
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Manuel Souto Teixeira
Ficha Técnica © Manuel Souto Teixeira, 2011 © Editz, 2019/20 1.ª edição: Terramar, Fevereiro de 2011 2.ª edição: Editz, Janeiro de 2021 Revisão 1a edição: Filipe Rodrigues Revisão 2a edição: Manuel Souto Teixeira Capa: Terramar, Lda. e Antonio Oliva Teles (na 2a edição) Ilustrações: Manuel Souto Teixeira Diagramação: Antonio Oliva Teles Depósito legal: 322709/11 ISBN: 978-972-710-428-4 Todos os direitos desta edição reservados por Editz – Editorial Contato do autor em Portugal R. São Sebastião da Pedreira, 110 – A 1050-209 LISBOA – PORTUGAL Telemóvel: 213 156 874 • 213 160 897 Contato do autor no Brasil - São Paulo/SP Antonio Oliva Teles _ Editz editora e design e-mail: olivateles@gmail.com Telemóvel e whatsapp: [5511] 95966-3142
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RELIGIÃO, PORQUÊ? Introdução a Um Problema
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PREFÁCIO
Estamos perante uma obra desassombrada, revelando uma notável ousadia face aos fundamentalismos que ensombram o quotidiano do nosso planeta. Trata-se de um oportuno livro de História, inscrevendo-se num tempo em que o afã de a reescrever, escondendo aqui, falsificando ali, testemunha as grandes dificuldades com que se debate o sistema mundial de relações a que está submetida a Humanidade. Não são raros os trabalhos abordando momentos ou aspectos específicos da História das Religiões, com especial destaque para o cristianismo e o papel da Igreja Romana nos últimos dois milénios, mas não deixa de se me afigurar arriscada a viabilidade da publicação da empreitada a que o autor meteu ombros, dada a abrangência e a acutilância com que a desenvolve. É mais que sabido que nem tudo o que se intitula História o seja verdadeiramente. E as dúvidas que nos podem assaltar referem-se tanto ao sentido de tal ou tal facto ter mesmo acontecido como às urdiduras interpretativas que se tecem quanto à sua relevância. A História regista não raros casos de «não factos» que tiveram uma enorme importância no devir de comunidades ou povos. Uma palavra popularizada entre nós, a «inventona», tem tido neste domínio largas aplicações. A força das lendas e dos mitos continua a ter o seu peso. A tradição acaba por se transformar em verdade. É esta a matriz das fábulas que acabam por dar lugar às histórias apologéticas das religiões, onde se vai dissipando a linha divisória entre a fantasia e o real. A natureza das relações entre religião e poder político, tantas vezes fundidas e outras tantas falsa ou momentaneamente separadas, é escamoteada ou cuidadosamente disfarçada com a vocação para a protecção dos pobres, dos humildes. Não é por acaso que a origem das grandes figuras de qualquer religião diz respeito predominantemente à elite dos poderosos. Mesmo nos primórdios do cristianismo, eivado de ideias igualitaristas, bem revolucionárias para a época, quem senão os membros das classes dominantes foram os teólogos, os evangelizadores, os mártires consagrados, os santos? Quem, senão os homens cultos do mundo helenizado, pôs à disposição da nascente Igreja Cristã o
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seu saber, procedendo à transição do politeísmo em decadência para o monoteísmo triunfante, através da criação de um corpo doutrinário extremamente aliciante (o Novo Testamento) muito mais humanista e cosmopolita que o seu antecessor (o Antigo Testamento)? Esta marca de origem encontra no cardeal-infante, inquisidor-mor e depois rei, D. Henrique, um exemplo, entre muitos, da simbiose entre titulares do poder religioso e do poder político que atravessaram toda a História, e que o autor do livro tão bem ilustra. Não podia deixar de acentuar o pendor didáctico da obra, a sistematização dos temas e a preocupação cronológica que, aliados à clareza da exposição, tornam a leitura menos árdua. Trata-se, por outro lado, de um louvável exercício de racionalidade, em que os leitores são como que convidados a aprofundar o conhecimento dos factos, necessariamente aqui resumidos, dada a abrangência da obra. Arriscaria mesmo dizer que ela tem o cariz de um manual acerca dos três grandes troncos religiosos monoteístas, com particular enfoque no cristianismo. Recusou o autor as sugestões de «adocicar a prosa» sobre um tema em que a natural susceptibilidade dos crentes poderia levar à sua rejeição emocional. Fez bem o autor nessa recusa. Além de acentuar a sua independência, porque paira totalmente fora dos acontecimentos, soube salpicar o texto, aqui e além, de apartes de sabor picaresco, quando não mesmo de um saudável sentido de humor. Detecto nesta escrita o traço da sua outra faceta de artista, os desenhos humorísticos que fazem as delícias de uma multidão de amigos. Fevereiro de 2010 António Gamito
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NOTA DO AUTOR
As presentes reflexões e dados informativos, com as origens mais diversas, resultaram de acesas discussões travadas num pequeno grupos de amigos que se juntam para jantar às sextas-feiras. Lembravam-me os tempos do liceu, onde os mesmos temas eram discutidos. A grande diferença é que então os que contestavam as religiões eram só dois, eu e outro, enquanto que agora, cinquenta anos depois, se inverteram os números. A minha rebeldia religiosa não foi fruto do acaso. A minha família era republicana e ateia, quer do lado do pai quer do lado da mãe. Lembro-me de que os meus pais me queriam dispensar das aulas de Religião e Moral (mais tarde Moral e Religião, dadas as subtilezas da língua portuguesa), mas eu não quis. Eram funcionários públicos e, talvez por isso, não insistiam muito, pois dispensas de Moral eram estigma de contestação à ordem estabelecida, e o meu pai já fora preso duas vezes e expulso do ensino no Liceu de Camões por ter falado de mais acerca de Galileu. Pois eu achava as aulas de Moral divertidíssimas. O padre contava-nos a história de Adão e Eva, e eu contra-argumentava com o evolucionismo que nos era ensinado nas Ciências Naturais; o padre falava do perdão dos pecados, e eu avançava com a Inquisição. Cheguei a levar uma grande bofetada de um padre desesperado, além das constantes expulsões da aula, das quais o cauteloso pedagogo não marcava falta de castigo. Eu e o outro estragávamos por completo o dia ao sacerdote, perante a estupefacção dos outros meninos, cheios de anjos, de arcanjos e de pastorinhos, muito cientes do seu anjo-da-guarda, para quem oravam à noite, antes de irem para a cama. Ficaram-me na memória as cenas de colegas que levaram surras dos pais por trocarem a catequese aos domingos pelo berlinde ou o pião, e os que iam e tentavam convencer os outros com o argumento: «Vem, que lá dão bolos». Mas foram tempos passados, e nunca mais tive qualquer envolvimento em assuntos religiosos. Apenas dois ou três casamentos e o transporte de carro da minha sogra até à porta da igreja para a missa das sete. Foi, pois, com alguma surpresa que os velhos temas passaram a fazer parte dos tais jantares. Um dos comensais era um jovem teólogo, bem preparado, que por razões do acaso se via ali rodeado de ateus confessos. Gostava de puxar a conversa e indagar como era possível gente boa não acreditar em Deus.
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Decidi então elaborar um pequeno texto resumindo o que penso da religiosidade e esquematizar as ideias mais gerais acerca do fenómeno religioso. Depois fui-me entusiasmando, fui passando a escrito algumas ideias e acabou por sair este texto tão comprido e seguramente maçador. Trabalho de cinco anos. A sua publicação foi-me encorajada por diversos amigos, que leram parte ou a totalidade e que acharam a coisa interessante. Devo à Editora Terramar ter a mesma convicção na primeira edição. Exceptuando as minhas ideias pessoais, obviamente controversas, os factos relatados são de fácil comprovação, pois foram retirados de livros e de diversas enciclopédias. Este livro foi lido pelo Antonio Oliva Teles durante sua estadia em Lisboa, achou-o interessante e propôs-me publicá-lo na internet ou mesmo editá-lo em papel no Brasil. Achei a idéia genial e o próprio acabou por fazer uma revisão global do livro, o que muito lhe agradeço. Esta nova edição brasileira já conta com um índice remissivo.
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INTRODUÇÃO
A religiosidade é a crença de que algo existe para além do mundo físico que nos rodeia, algo intangível, mas que condiciona a nossa vida. É a crença no sobrenatural. Uma religião é um sistema organizado de crenças em determinados entes sobrenaturais e nos seus ditames reguladores da vida e do comportamento humano. Cada religião organizada e sistematizada nos livros sagrados, os cânones, constitui um sistema filosófico, uma vez que pretende dar resposta a todas as questões da filosofia – o princípio e o fim do universo, o entendimento do ser, o sentido da vida do homem, etc. É curioso verificar como as religiões se interinfluenciam e se dispersam em incontáveis ramificações. Cada nova religião resulta de uma cisão de uma religião anterior, por dissidência de um «iluminado» que encontrou novas interpretações nos livros sagrados ou protagonizou uma revelação, isto é, uma relação directa com a entidade divina, que lhe forneceu novas directivas. As novas religiões mantêm sempre algo da religião de que provêm mais as alterações reformadoras. A religiosidade pode ou não estar integrada numa dada religião. Pode ter cariz pessoal, mais ou menos distante dos cânones, ou crer em partes dos cânones e descrer noutras. É o caso dos não praticantes que acreditam numas coisas, como a existência de uma força superior, mas não acreditam noutras, crêem no primum movens mas não no juízo final. O misticismo é a convicção de que se tem relação directa com entidades divinas ou com outros entes sobrenaturais. Trata-se de um dom que apenas bafeja alguns, que julgam receber mensagens do Além, ou fingem que as recebem, e as transmitem aos demais humanos. Superstição é acreditar que determinados sinais ou actos podem influenciar factos futuros – facas cruzadas, passar debaixo de uma escada, o número 13, etc. O supersticioso pode não ser crente de nenhuma religião, mas continua dominado pela convicção de que há forças ocultas predestinadoras. É comum que aqueles que abandonaram a prática de uma religião não se libertem desta dependência psicológica. Fanatismo é a subjugação total à crença religiosa, que passa a dominar por completo o pensamento e a acção. O fanático é incapaz de qualquer diálogo, tal é a certeza que tem das suas convicções. O ascetismo, o puritanismo e os vários fundamentalismos são tipos de fanatismo.
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A mitologia ocupa-se do estudo dos seres sobrenaturais nas diversas religiões, suas origens, comportamento, hierarquia, relacionamento, parentesco, poder, carácter, atributos, figuração. É o estudo dos mitos, fruto da rica imaginação humana. A religiosidade tem dominado por completo a actividade mental da Humanidade e determinado, em grande medida, a sua conduta em todos os domínios da actividade humana – o saber, o criar, o empreender. Só na segunda metade do século XIX, em particular com Marx, se desenvolve e se expande por todo o planeta uma nova forma de pensar, baseada na concepção de que o ser tem uma só essência e de que o movimento lhe é intrinsecamente inerente, dando a Humanidade os primeiros passos na árdua libertação do fantasista mundo oculto, que durante milénios a subjugou. Não se pretende com estas breves considerações sobre o fenómeno religioso abordar os aspectos historiográficos e muito menos enveredar por inúteis especulações teológicas. Sabemos que a investigação histórica recente tem revelado novos dados acerca da origem das religiões e da vida dos seus maiores protagonistas. É o caso, por exemplo, da descoberta dos manuscritos do mar Morto, que põem em causa o que até aqui era aceite no que respeita às origens do cristianismo. Também não vamos abordar as novas interpretações dos cânones, que mais não pretendem do que dar uma imagem menos obsoleta das mitologias, mantendo no essencial a dependência intelectual do crente. Que importa que venham agora os doutores afirmar que, afinal, a história de Adão e Eva é apenas um aforismo, ou que o Diabo cornudo não passa da ideia do mal. O que é certo é que durante milénios, e ainda hoje, grande parte da humanidade acreditou e acredita convictamente nesses mitos. O que importa é aquilo em que as massas humanas de facto crêem e que modela o seu modo de pensar e de sentir e, logo, o seu comportamento. O objectivo destas linhas é despertar o interesse pelo modo como as religiões se foram manifestando, evoluindo e multiplicando, utilizando apenas a simples narração de factos. Pretende-se assim apelar ao sentido crítico que faça pensar por que razão a minha religião é a única verdadeira, entre centenas de outras. É importante que cada um tome consciência de que aquilo em que crê lhe foi incutido pelo meio familiar, social e cultural em que se desenvolveu, mas que, se tivesse nascido no outro lado da rua, numa família de outros credos, seriam esses que lhe teriam impingido. Pretende-se ainda chamar a atenção para os malefícios, para a Humanidade, de subsistirem ainda milhares de milhões de seres humanos comandados por confissões religiosas e, para o facto de como estas potenciam graves conflitos
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entre povos ou grupos de confissões diferentes e de como os crentes são acriticamente arrastados para posições políticas reaccionárias e contrárias aos seus verdadeiros interesses. Com a simples narração de factos históricos incontroversos abordaremos o modo como as variadíssimas correntes que se afirmavam como herdeiras do cristianismo se foram digladiando até à cristalização nos actuais cânones, cada qual se arrogando, presunçosamente para não dizer ridiculamente, a posse da verdade absoluta. E o tema assume particular actualidade num momento em que se defende a inclusão na Constituição da UE dos «valores de um passado cristão» em paralelo com as grandes conquistas civilizacionais que o pensamento europeu legou à Humanidade – a igualdade, a liberdade e a fraternidade, sempre tão aguerridamente combatidas pelos que se intitulavam seguidores de Cristo. O leitor crente disporá de material meramente informativo que o leve a interrogar-se: porque sou eu seguidor deste credo e não de outro? Para que preciso eu da religião? Temos a convicção de que a Humanidade do futuro, liberta desta doentia dependência, encontrará o pleno desenvolvimento intelectual, social e moral, tornando-se mais aberta aos caminhos da solidariedade, do entendimento e do racionalismo nas suas opções.
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CAPÍTULO I
EVOLUÇÃO E INVOLUÇÃO DAS RELIGIÕES O IDEALISMO E AS RELIGIÕES
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pensamento humano concebe duas variantes do ser (do existente ou do real). Na primeira variante, o ser manifesta-se em duas categorias ou duas essências que coabitam no mesmo espaço. É a variante dualista ou idealista, que considera a simultaneidade do material e do imaterial. Na segunda variante, o ser limita-se a uma única categoria, a material. É a variante monista ou materialista. Na história do pensamento humano predominou sempre a crença nas duas essências, geradora da religiosidade. Ao longo da História, e ainda hoje, a religiosidade dominou a consciência do homem e determinou os seus comportamentos, aspirações, sacrifícios, modos de entender a vida e a morte, o seu relacionamento com os outros. É verdade que houve pensadores que de certo modo fugiram a esta dualidade, mas as suas especulações filosóficas não tiveram qualquer reflexo no modo de pensar e de sentir das grandes massas humanas. Foi o caso do contributo filosófico dos materialistas da Grécia antiga e o dos «idealistas puros», para quem só as ideias tinham existência real, negando a matéria. Para os primeiros, tudo era matéria; para os segundos, a matéria era uma ilusão. É interessante verificar como nas várias concepções idealistas há traços comuns, que se repetem através dos tempos e nas diversas culturas
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e civilizações. Estes traços comuns, com as suas variantes, constituem no essencial o corpo de doutrina das diversas religiões. Esses traços comuns são: O Primado do Imaterial É a concepção de que a componente imaterial do universo representa uma categoria superior relativamente à componente material. Esta superioridade confere-lhe a capacidade de controlar ou comandar o material. A Deificação É a individualização de diversas entidades de essência imaterial, seres sobrenaturais ou transcendentes, como deuses e deusas, heróis, diabos, anjos, santos, espíritos, monstros, etc. Eles constituem como que um estrato superior do mundo imaterial, com poderes sobre todo o ser. Na maior parte das crenças há um ente supremo e outros subordinados ao primeiro; noutras, há dois de poder equivalente, um bom e um mau. O Perenidade ou Eternidade Outro traço comum é a perenidade do imaterial contrastando com a perecibilidade do material. Nos humanos, a alma é a essência imaterial que comanda a vida, o pensamento e o comportamento e que, com a morte, se liberta do corpo, persistindo eternamente. Mais interessante ainda é a concepção de que as divindades existiram sempre, antes de haver universo, e que, a dado momento, resolveram criá-lo do nada. A Sobrenaturalidade Estes entes transcendentais possuem não só as capacidades mentais dos humanos como outras capacidades que aos humanos estão vedadas. Muitos deuses são omnipotentes (tudo podem), omniscientes (tudo sabem do passado, do presente e do futuro), omnipresentes (estão em toda a parte), e assim conhecem os nossos mais íntimos pensamentos. Uns são infinitamente justos e bons; outros, terrivelmente malévolos. A Miraculosidade Decorre da omnipotência, que permite alterar as leis do universo, desencadeando cataclismos ou pragas, promovendo milagres, curas, aparições, ascensão aos Céus, levitação, etc. A Revelação Um outro traço comum radica na possibilidade de alguns eleitos humanos terem acesso a essas entidades de essência imaterial, com as quais comunicam. São os feiticeiros, os magos, os sacerdotes, os videntes, os médiuns, os profetas, etc. Aos restantes humanos, apenas resta o diálogo unidireccional, a prece. Muitas religiões devem o seu corpo doutrinário
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inicial à revelação da verdade feita por um deus a um destes iluminados, que depois a propagou aos restantes mortais. A Ritualização São práticas ditadas pelos cânones ou pela tradição, que se encontram em todas as religiões e a que os crentes devem obedecer, sob pena de castigos ou da exclusão da comunidade religiosa. A Sacralização É o convencimento de que certos objectos contêm propriedades sobrenaturais, miraculosas ou protectoras, sendo alvo de particular veneração e mesmo de oração. É o caso dos amuletos, tótemes, relíquias, ídolos, ícones, livros sagrados, cruzes, rosários, animais, e até de acidentes geográficos, como montanhas, vulcões, águas de fontes e de rios, etc. A impossibilidade de se ser simultaneamente omnipotente e omnisciente tem sido um argumento esgrimido pelos que negam a existência de uma divindade com tais atributos. Na verdade, ser omnisciente significa que tudo sabe, designadamente os acontecimentos futuros. Eles irão acontecer, e nada os poderá alterar. E lá se vai a omnipotência. Outra contradição óbvia é entre a omnisciência e o livre-arbítrio, isto é, a possibilidade de cada um escolher o seu caminho. Se o Deus sabe qual vai ser o nosso caminho, é porque ele está predestinado. Como podemos nós alterá-lo? A história das religiões mostra-nos três modalidades evolutivas, o animismo, o politeísmo e o monoteísmo. No entanto, não é fácil separar estas três modalidades, pois aspectos de cada uma delas encontram-se invariavelmente nas outras. Será portanto mais correcto falar-se em crença predominantemente animista, politeísta ou monoteísta. Também nem sempre se desenha uma sequência evolutiva daquelas modalidades. É frequente verificar-se que, com o decorrer do tempo, um dado corpo doutrinal vai incorporando elementos de religiões anteriores até à sua completa desfiguração, como se observou no zoroastrismo e no cristianismo.
ANIMISMO O animismo caracteriza a religiosidade dos povos primitivos. Ainda hoje em África, na Austrália, na Amazónia, na Nova Guiné terá os seus seguidores, tal como o eram os povos ameríndios. As práticas mágicas do vudu no Haiti e do cadomblé no Brasil são reminiscências da cultura animista africana. Pode afirmar-se que toda a humanidade teve a sua fase animista. Trata-se da crença de que todo o ser, animado ou inanimado, tem uma segunda essência, um espírito, que o comanda ou que lhe confere o movimento. Assim, os rios, o mares, as montanhas teriam o seu espírito, tal como as
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plantas, os animais e os humanos. Com o animismo surge o conceito de alma, a componente imaterial e perene que dá vida ao corpo e comanda o nosso pensamento e comportamento. Todos os traços anteriormente enumerados já se encontram no animismo. São óbvios o primado do imaterial e a perenidade. Com a morte, a essência imaterial que deu a vida liberta-se e vai para o reino dos mortos. Alguns crêem que essa essência vai fixar-se noutro ser vivo, humano, animal ou vegetal, mantendo assim a sua perenidade. É a reencarnação. As concepções de sobrenaturalidade e de miraculosidade também estão presentes. São exemplos disso a crença de que os fenómenos naturais, como a chuva, a trovoada, o vento, as marés, são desencadeados por caprichos dos respectivos espíritos, e os cataclismos, provocados por sentimentos de ira ou vingança. Também as vicissitudes humanas, como o sucesso, a doença, a guerra, o amor, a gravidez, estão dependentes da vontade dos espíritos. Daí a necessidade de comunicar com esses entes sobrenaturais quer para pedir mercês, como engravidar, curar doenças, dar ânimo e coragem aos guerreiros, chover, quer para aplacar as suas iras. Para esta comunicação são fundamentais dois elementos: a revelação e a ritualização. A primeira é realizada pelo feiticeiro, figura sempre presente em todos os povos animistas. Só ele tem a capacidade de estabelecer a ligação do mundo dos humanos com o mundo dos espíritos, através de rituais mágicos que só ele conhece. Só ele sabe como contrariar a acção perniciosa de espíritos malignos ou interceder para a obtenção de mercês. Só o feiticeiro com o seu acesso aos espíritos, que tudo sabem, tem o condão de conhecer o futuro. Quanto aos restantes humanos, compete-lhes demonstrar a sua submissão, temor e obediência, clamar indulgência ou tentar o apaziguamento da ira, recorrendo também a práticas rituais, que diferem de povo para povo, mas sempre com aquelas funções. São as danças, procissões, oferendas, peregrinações, preces colectivas, sacrifícios, autoflagelações, etc. E ao feiticeiro, que preside à ritualização, há que pagar os devidos honorários pelos serviços prestados, personalizados ou colectivos. A sacralização é outro elemento sempre presente. É através de objectos diversos – amuletos, conchas, pedrinhas, ossos – ou de animais que a magia permite a comunicação com os espíritos para a obtenção da cura, da adivinhação ou de qualquer outra mercê. A famosa bola de cristal das bruxas não é mais que uma reminiscência destas práticas mágicas. Em muitos povos, a comunicação com o mundo do Além pressupõe um estado de excitação delirante, por vezes até à exaustão, conseguido pelas danças ritmadas durante longas horas, colectivas ou só protagonizadas
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pelos feiticeiros. Este culto animista, onde estas manifestações adquirem particular importância ritual, designa-se por xamanismo. A deificação surge também no animismo, embora de forma pouco elaborada. De facto, muitos cultos animistas concebem uma força sobrenatural superior a todas as outras, uma força criadora que para alguns se confunde com a natureza, o panteísmo.
POLITEÍSMO Com a sedentarização e as primeiras civilizações de predomínio agrícola, o animismo evolui para o politeísmo, mais correntemente designado por paganismo. Surgem diversos deuses antropomórficos com atributos próprios e áreas de influência bem definidas. E, embora intangíveis, vivendo no seu mundo do Além, apresentam agora uma imagem humanóide, sensibilidade e comportamentos humanos. Amam-se e proliferam, digladiam-se, matam-se uns aos outros, têm sentimentos como o ódio, o ciúme e a vingança. E em todas as civilizações e em todos os tempos estes deuses são aparentados entre si, como se de uma numerosa família se tratasse. Vejamos alguns exemplos: Zeus, o principal deus grego, era filho de Crono e da sua irmã Reia. Crono, por sua vez, era filho de Urano (senhor do céu) e de Geia (senhora da Terra), e com a ajuda da mãe destronou o pai, apoderando-se do seu poder. Mas tinha o mau hábito de devorar os filhos, até que Reia escondeu Zeus, que sobreviveu. Mais tarde, Zeus obrigou o pai a vomitar os muitos filhos que tinha comido, e com estes destronou-o. Zeus casou com a sua irmã Hera, e com outras diversas divindades teve numerosa prole. Entre os gregos antigos foi o pai dos deuses e do homem. Júpiter foi o seu correspondente entre os romanos. Nas culturas nórdicas, Ódin e os seus irmãos, Vili e Ve, criaram o mundo e o primeiro par de humanos. Ódin desposou Frigg, iniciando uma dinastia de deuses e deusas. Também na mitologia egípcia Ísis era irmã e esposa de Osíris, os pais de Hórus. Estas relações familiares entre deuses mantêm-se ainda nos politeísmos actuais. No hinduísmo, Xiva é casado com Parvati; no xintoísmo (Japão), Izanagi é casado com Izanami, e Amaterasu, Susanoo e Tsuquiomi são seus filhos. É esta crença em deuses de perfis e atributos bem definidos que afasta o politeísmo do animismo. Os fenómenos naturais e as vicissitudes humanas passam a ser determinados pela vontade dos deuses respectivos. A tempestade surge por vontade do deus do mar e não pela vontade do espírito do mar. As colheitas agrícolas, o desfecho da guerra, o sucesso
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amoroso devem-se à vontade do deus respectivo e não a vagos espíritos, só do entendimento dos privilegiados magos. Também as cidades possuem o seu deus ou deusa protectores, como Atena em Atenas, Vesta em Roma. As actividades mais nobres têm igualmente os respectivos patronos – a sabedoria, as artes, a caça, a medicina. Compreende-se que a função dos feiticeiros animistas seja desvalorizada, já que não é tão necessária a sua magia para comunicar com os espíritos dos antepassados ou com o espírito da chuva. A sua influência na comunidade decresce. A comunicação com os seres do Além passa a ser directa, sem necessidade de intermediários, surgindo para isso locais de culto onde os diversos deuses estão representados. Os feiticeiros dão lugar aos sacerdotes, estes já sem atribuições de intermediários, como se verificou nas religiões do mundo clássico europeu. Os ídolos substituem, de certo modo, os magos. Se os deuses estão ali à mão de semear, porquê recorrer a interposta pessoa? Note-se que em alguns cultos actuais, como no católico, o sacerdote reassume o papel de intermediário, como acontece na confissão, tornada obrigatória aos fiéis no quarto Concílio de Latrão em 1216, sob pena de excomunhão. Os sacerdotes e sacerdotisas têm funções mais modestas, como guardar, velar e administrar templos e santuários. Em Roma, as seis vestais, jovens virgens, velavam pelo templo dedicado a Vesta, deusa do fogo e protectora do lar, mantendo o fogo sagrado, símbolo do poder de Roma. Na Grécia, Gália, Germânia, Egipto e em muitos outros povos havia também mulheres, as sacerdotisas dos templos. Algumas detinham certos poderes mágicos, como a capacidade de adivinhação ou de prever o futuro. No entanto, em outras religiões politeístas complexas como na antiga egípcia e no hinduísmo foi-se desenvolvendo um corpo sacerdotal hierarquizado que em certos períodos históricos chegou a ter grande preponderância social e política. No hinduísmo, a casta superior é a dos brâmanes, que desfrutam do privilégio exclusivo de comunicar com os deuses. É muito curioso verificar como nestas civilizações os conflitos religiosos se centravam neste antagonismo entre os sacerdotes sedentos de poder, procurando monopolizar o sagrado e, assim, controlar quer as populações quer as classes dominantes, e as populações fiéis aos seus ídolos, dispensando o parasitismo sacerdotal. Os monarcas ora eram submissos aos sacerdotes ora se aliavam ao povo para combater a hegemonia daqueles. Nos três milénios de civilização egípcia, as dinastias faraónicas resultaram, em grande medida, do desfecho destas lutas. No politeísmo, a própria alma perde terreno, se não é mesmo esquecida. Entre os gregos, só com Platão e seus seguidores a alma surge de
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novo como elemento essencial na religiosidade, a ponto de considerar a reencarnação como forma «racional» de a perpetuar. Os humanos ímpios iriam reencarnar-se em animais desprezíveis... Como acima referimos, nos vários cultos pagãos surgem dois elementos predominantes: o local de oração colectiva, o templo, e o local de milagres, o santuário. Sabemos que a arqueologia interpreta muitos achados megalíticos como locais de culto de povos antigos, pré-históricos, seguramente animistas, mas na verdade pouco se sabe da religiosidade desses povos e da real função desses achados. Todas as religiões politeístas têm os seus templos e santuários. Os templos fazem parte do equipamento urbano, recebendo os crentes para as suas orações e outros rituais. Os santuários mais antigos localizam-se fora das povoações e são lugares onde se operam milagres, atraindo multidões de peregrinos, convictos de que o sacrifício da deslocação, as prendas e os rituais diversos convencem a entidade divina a que foi erigido o santuário a resolver os seus problemas. O santuário de Delfos terá tido grande importância na cultura grega, enquanto a pedra negra na cidade de Meca foi um importante santuário dos povos árabes politeístas anteriores ao islamismo, sendo posteriormente recuperada por esta religião como o seu principal santuário. Na Ibéria teria havido um santuário com grande popularidade, algures no Alentejo, dedicado ao deus Endovélico. Outra característica do politeísmo é a representação humanóide, pictórica e escultural, não só dos deuses como de outros seres transcendentes, como heróis, anjos, santos, diabos, etc., passando estas representações a figurar nos templos e santuários. São os ícones e os ídolos, objectos de adoração dos crentes, que neles vêem e sentem a materialização das divindades e a quem dirigem as suas preces. De um modo geral, o politeísmo evoluiu para o dualismo, a concepção de que o mundo e a Humanidade estão subordinados a duas forças supremas e antagónicas, uma que representa o bem, a vida, a felicidade, e a outra, que representa o mal e a morte. No hinduísmo actual, os deuses principais são Vixnu, o bom, e Xiva, com os seus quatro braços, o mau. Este tem como aliada a deusa Parvati ou Cali, que representa a fertilidade e a morte, enquanto Vixnu conta na sua corte com Crisna, deus do amor. Na religião persa, Aúra-Masda era o bom, e Arimã, o mau. No antigo Egipto, o bom era Osíris; Seth, o mau. Nas religiões bíblicas permaneceu este dualismo, Deus e Diabo – o Céu para os que seguiram a lei de Deus, o Inferno para os seguidores do Demónio. Mas nem sempre estas duas forças são identificadas com deuses, como na religião chinesa, onde, a par com a veneração de inúmeras divindades,
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se desenvolveu a crença em dois princípios antagónicos e inerentes ao ser, o yang, que representa a luz, o calor, o celestial, e o yin, que representa a escuridão, o frio, o terreno. Os termos pagão e paganismo são de origem latina e foram utilizados pelos primeiros cristãos quando se referiam às populações rurais do Império Romano ainda não cristianizadas ou que resistiam à nova doutrina. Têm sido utilizados como sinónimos de politeísta e politeísmo, o que não é inteiramente correcto, pois na sua origem eram igualmente incluídos os animistas. MONOTEÍSMO É a crença num único deus, criador do universo e do homem, tese que foi pela primeira vez defendida e difundida por pensadores asiáticos, pelo menos desde que há registos. Alguns destes pensadores conseguiram transmitir a sua mensagem a um certo número de seguidores que, por sua vez, a propagaram entre as massas politeístas, criando diversos núcleos de crença num só deus. No entanto, com o passar do tempo, mesmo quando à volta desta ideia central se estruturou um corpo doutrinário mais ou menos elaborado, a pressão do politeísmo acabou por desvirtuar a concepção do deus único, verificando-se a incorporação de elementos diversos próprios do paganismo e mesmo do animismo. Pode, pois, afirmar-se que não chegou aos dias de hoje nenhuma grande religião monoteísta pura. Na verdade, nas múltiplas religiões actuais que se afirmam monoteístas, Deus preside ao que se convencionou chamar corte celestial, uma panóplia mais ou menos numerosa de seres sobrenaturais, como veremos adiante. Mas de facto o que distingue claramente o monoteísmo do politeísmo é a essência do próprio deus, o único ente supremo, omnisciente, omnipotente, o único criador e julgador. Aos restantes membros da corte estão destinados papéis secundários. Deixou portanto de ser um primus inter pares, pai e avô dos outros deuses, como o eram os deuses principais, entre os egípcios, os gregos e os romanos, Amon, Zeus e Júpiter e tantos outros nas diversas religiões antigas. Com o monoteísmo surgiram os grandes conflitos religiosos. Um mundo em que cada qual tinha os seus deuses e ninguém tinha nada com isso chegara ao fim. Na verdade, muitos deuses de uma religião tinham os seus equivalentes nas outras. Os nomes eram diferentes, porque as línguas, as culturas e as tradições também o eram, mas as representações mentais pouco divergiam – Dioniso e Baco, Afrodite e Vénus, Atena e Minerva... Mesmo em estados altamente centralizados e autoritários, e o exemplo mais relevante será o do Império Romano, coexistiram sempre pacificamente os vários cultos pagãos. Em Roma, além do culto oficial, havia judeus e segui-
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dores dos mais diversos cultos pagãos de origem asiática e africana. Na Ibéria, na Gália, no Oriente os povos submetidos nunca foram forçados a abandonar as suas divindades, nem os seus ídolos foram destruídos. Também no antigo Egipto, na Índia, na China, cada um podia adorar os deuses que entendesse, não havendo conhecimento histórico de perseguições religiosas. Mas a ideia do deus único trazia consigo as sementes da discórdia que havia de atravessar os dois últimos milénios. Nunca mais houve paz entre crentes de diferentes credos monoteístas, entre cristãos e judeus, entre cristãos e islamitas. A crença num só deus, aquele exactamente em que se acredita, levou à convicção de que quem não o venera faz parte de uma outra humanidade, não iluminada. São pagãos se adoram vários deuses ou infiéis se adoram um outro deus. Mesmo quando o deus é comum a várias religiões, e comum o revelador – Jesus, nas diversas religiões cristãs, ou Maomé nas diversas religiões maometanas –, a simples diferença interpretativa da palavra divina ou outra qualquer diferença formal ou ritual transforma os partidos em inimigos a abater. Os monoteísmos herdaram os mesmos locais de culto, templos e santuários, e a classe sacerdotal, que iria adquirir o máximo do seu esplendor e poder. Um dos primeiros defensores do deus único, de que há conhecimento histórico, foi o persa Zaratustra (Zoroastro em grego), que viveu nos séculos VII e VI a.C. Os seus escritos no Avesta mostram como, após uma revelação, inicia a pregação da divindade única, insurgindo-se contra a idolatria, os rituais, os sacrifícios e os sacerdotes. A doutrina de Zaratustra rapidamente se propagou, tornando-se a religião oficial dos Medas, após a conversão do rei. Com o decorrer do tempo foi assimilando as antigas crenças e rituais, evoluindo para um politeísmo de cariz dualista, onde, além dos já citados Aúra-Masda e Arimã, muitas outras divindades foram recuperadas, surgindo novas divindades e desenvolvendo-se complexas práticas rituais e sacrifícios. Entre os novos deuses, Mitra, deus do Sol e da Lua, adquire no mundo antigo uma grande popularidade, estendendo-se o seu culto e os seus rituais orgíacos, que incluíam o sacrifício de bois, a toda a Europa Mediterrânica. Deve-se ao zoroastrismo a crença no Juízo Final, que muita influência irá ter nas religiões posteriores, quer nas bíblicas quer nas hinduístas. É a crença de que só quem aceita a verdade revelada tem, após a morte, aberta a porta do Céu ou do Paraíso, e quem não teve oportunidade de conhecer aquela verdade ressuscitará no fim dos tempos, sendo então julgado por Deus, que decidirá qual o destino eterno da sua alma. O zoroastrismo foi varrido com a expansão islâmica, restando no Irão uns 150.000 seguidores e na Índia um pequeno grupo, os parses.
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Manes (215-275) foi um monge persa que viveu no século III d.C. e que procurou o regresso à pureza inicial do zoroastrismo. Viria, no entanto, a elaborar uma doutrina dualista pura, segundo a qual o universo é governado por duas forças antagónicas, uma benévola, e a outra, malévola, simbolizadas pela luz e pelas trevas. Também após a conversão do rei, o maniqueísmo foi consagrado religião oficial do Império Sassânida, difundindo-se rapidamente a Ocidente e a Oriente, tendo grande influência nas concepções dualistas – o Deus bom e o Diabo mau. Como veremos, em diversas épocas, houve adeptos e correntes religiosas maniqueístas. Hoje é consensual que as origens do judaísmo estão nas antigas crenças persas, em particular no zoroastrismo. O expansionismo persa para o Ocidente encontrou séria resistência nos povos mediterrânicos, que acabaram por ser submetidos e escravizados. Muitos destes escravos foram levados para a Babilónia, regressando mais tarde e trazendo a crença no deus único. E assim, na Palestina, no seio de populações politeístas, foram surgindo núcleos monoteístas. O livro sagrado, a Bíblia, teve um importante papel aglutinante. Relata como até certo momento apenas havia um Deus e como, a dada altura, este resolveu criar o universo e a espécie humana. Jeová, o deus bíblico, é uma figura mitológica cheia de contradições. Omnisciente, não previu o pecado original. Para se certificar da fidelidade de Abraão mandou-o imolar o filho. A sua infinita bondade e justiça é a cada passo contrariada pela prática genocídica. O primeiro genocídio foi com o dilúvio, em que só escaparam do afogamento oito pessoas (Noé, os seus três filhos, Cam, Sem e Jafeth, e as respectivas mulheres) e um casal de cada espécie animal. Temos a destruição das cidades de Sodoma e Gomorra, consumidas com fogo e enxofre, depois é o exército egípcio afogado quando sobre ele se fecha o mar Vermelho, as dez pragas do Egipto, inundações, fogo, seca, a morte dos primogénitos, etc., o que bem reflecte o caracter ruim deste deus unilateral e impiedoso. Mas esta divindade não era o ser sobrenatural único, pois tinha por companheiros os anjos. E foi um destes anjos, Lúcifer, que se revoltou contra a autoridade divina, sendo por ela castigado, expulso do Paraíso e transformado em diabo. Foi proibido de regressar, mas, pelo sim pelo não, a divindade colocou anjos guerreiros nas portas do Paraíso. E são diversos os episódios bíblicos em que os anjos são enviados à Terra para transmitirem mensagens aos humanos ou realizarem outras tarefas a mando do deus, como agarrar a mão de Abraão, não o deixando degolar o filho. A Bíblia, além de elemento aglutinante dos povos da Palestina, foi o elo igualmente aglutinante dos povos que a adoptaram.
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CAPÍTULO I
Cartago, a mais importante cidade-estado do Mediterrâneo durante séculos, dominava as rotas marítimas e o comércio através de numerosas colónias em toda costa africana, gaulesa, ibérica e ilhas mediterrânicas. Fundada pelos fenícios, oriundos dos actuais Líbano e Palestina, oito séculos antes da nossa era, é destruída pelos romanos em 146 a.C. Mais tarde reconstruída, já como colónia romana, manteve até à ocupação árabe no século VII a sua influência como grande centro comercial. Perdeu o domínio dos mares, mas nas suas colónias, agora romanizadas, permaneceram os sábios mercadores cartagineses. Sabemos que os cartagineses eram predominantemente politeístas, mas é provável que entre eles muitos possuíssem textos bíblicos. Quando se dá a destruição de Jerusalém pelos romanos no ano 70 d.C. e a dispersão dos seus habitantes, já há muito que textos do Antigo Testamento teriam alguma difusão no Ocidente, tal como no Oriente, desempenhando um papel crescente na união destes mercadores estrangeiros. A religião comum e exclusiva (o povo eleito) conferia códigos de conduta fundamentais para a confiança mútua necessária às relações comerciais, à usura e, mais tarde, à banca. Os judeus são em grande parte descendentes destes cartagineses, cuja língua semita era a mais falada em vastas áreas da Península Ibérica, chegando a haver um imperador romano, nascido na Península, que falava o cartaginês e só tarde aprendeu o latim. Sem dúvida que a dispersão destes semitas cultos e ricos desempenhou um papel decisivo na difusão dos antigos textos sagrados, adoptados mais tarde pelas religiões cristã e islâmica. Lembremos que os primeiros cristãos eram judeus convertidos. As religiões saídas do judaísmo mantiveram e ampliaram a crença nos companheiros de Deus, a corte celestial. O arcanjo Gabriel apareceu a Zacarias para lhe comunicar que a sua idosa esposa ia engravidar, tendo esta dado à luz João Baptista. Passados seis meses daquela aparição, o mesmo arcanjo surge a Maria com a mesma notícia, e pouco depois a José a quem deu a boa nova, não ficasse ele apreensivo com a gravidez virginal da esposa. E já contava o bebé quatro meses quando outro anjo foi enviado à pressa para avisar o casal da maldosa decisão do rei Herodes (que já tinha falecido há 4 anos) – mandar matar as criancinhas até aos dois anos. Também foi o mesmo arcanjo Gabriel quem revelou a Maomé a verdade divina, mais tarde transcrita em versículos no livro sagrado dos vários ramos do islamismo, o Alcorão. Quanto ao Diabo, o anjo rebelde, não faz propriamente parte da corte celestial, dispondo contudo da sua corte pessoal. É uma figura mitológica sempre presente nos monoteísmos. Jesus por três vezes foi tentado pelo
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Demónio, uma no deserto, outra, no Templo de Jerusalém, e a terceira, no cimo de um monte. Vive no Inferno, fazendo a vida negra às almas que lá vão parar e, tal como Deus, está em toda a parte, tentando influenciar os nossos comportamentos no sentido de praticarmos o mal. Pode mesmo infiltrar-se no corpo dos humanos, sobrepondo a sua vontade demoníaca à da alma. Milhares de vítimas desta possessão satânica, quase todas mulheres, as bruxas, foram queimadas nas fogueiras. Outras, mais felizes, são ainda hoje objecto de rituais exorcistas, através dos quais os sacerdotes expulsam o Demónio do corpo da vítima. O Diabo faz igualmente parte da mitologia islâmica. Na anual peregrinação a Meca o apedrejamento das três lápides erigidas na ponte de Jamarat, e que simbolizam Satanás, é um ritual obrigatório de rejeição da tentação e do mal. As três grandes famílias de religiões bíblicas, a judaica, a cristã e a islâmica, não mais se libertaram do dualismo1 – de Deus e de Diabo, do Céu e do Inferno – nem do politeísmo judaico – a corte celestial com anjos, arcanjos, querubins e serafins, além do Diabo. No entanto, nos cultos cristãos, e muito em particular no culto romano, esta corte é bem mais numerosa. Além do Pai, do Filho e do Espírito Santo, temos Maria, a mãe de Deus, e numerosíssimos santos e santas, a quem os crentes dirigem as suas preces. Tal como no politeísmo, muitos destes santos são associados a fenómenos climáticos extremos, situações de alto risco, ou são protectores de agrupamentos humanos (geográficos, profissionais, etc.). Assim, é evocada Sta. Bárbara quando há trovoada, se pede chuva a S. Pedro, sorte nos amores a St.º António, se viaja com a medalha de S. Cristóvão no tablier do automóvel, o citado Gabriel é padroeiro dos jornalistas, St.ª Engrácia, dos dentistas, St.ª Cecília, dos músicos, S. Vicente é o padroeiro de Lisboa, a Imaculada Conceição, de Portugal, etc. Como vimos, aos anjos estão reservadas funções acessórias a mando de Deus, não possuindo qualquer poder de decisão. Limitam-se a desempenhar serviços diversos. São músicos, guardiães e mensageiros. Já referimos como o Éden ou Paraíso era guardado por anjos empunhando espadas. Também os outros membros da corte celestial se limitam a um papel igualmente secundário, o de intermediários e de milagreiros. As preces que lhes são dirigidas já não procuram que a seja concedida pelo próprio ente sobrenatural, que para tal não tem competência, mas sim que este ente interceda junto de Deus, o único omnipotente. E quanto mais próximo estiver, mais possibilidades haverá de o pedido lhe chegar e ser satisfeito. Na religião católica, a Mãe de Deus assume uma posição muito particular, sendo a intermediária mais solicitada, e a quem se erigiram os mais ¹A palavra dualismo tem dois significados, o filosófico, relacionado com os dois mundos, o real e o espiritual, e o religioso, que tem a ver com o bem e o mal.
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CAPÍTULO I
importantes templos e santuários. É o culto mariano ou marianismo, já presente nos primórdios do cristianismo e de que o papa João Paulo II foi fervoroso continuador. As diversas visitas ao Santuário de Fátima são disso exemplo, assim como a tão ansiada revelação do famoso segredo de Fátima. Como se sabe, este segredo foi revelado aos pastorinhos e guardado no Vaticano. Tratava-se afinal da profecia de que haveria de vir um papa que seria baleado, mas, se nesse momento invocasse a Nossa Senhora de Fátima, seria salvo do atentado, como de resto aconteceu. Este recente acontecimento mostra bem até que ponto o marianismo está enraizado nos mais altos dignitários do catolicismo. Também a terceira pessoa da Trindade, o Espírito Santo, teve através dos tempos um papel primordial na religiosidade de diversos povos e ordens religiosas, como entre os cátaros e os templários e ainda hoje se verifica em muitas regiões, como os Açores. Quanto ao Diabo, tem tido e continua a ter os seus cultores, as seitas satânicas.
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CAPÍTULO II
O CHOQUE DAS RELIGIÕES
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conhecido o espírito de tolerância religiosa dos povos asiáticos e como foram assimilando e incorporando nas suas próprias convicções religiosas os ensinamentos e as filosofias emergentes. Na China como na Indochina, aos ancestrais cultos politeístas juntaram-se os ensinamentos de Lao Tsé e de Confúcio (século VI a.C.) e mais tarde de Buda. Não se conhecem conflitos decorrentes destes choques de ideias e de comportamentos. O mesmo se dirá de quando os mongóis, islamizados, se tornaram os senhores da China (século XIII). No Japão, o politeísmo assimilou uma corrente religiosa budista que aliava a meditação aos exercícios físicos. Os primeiros cristãos foram cordialmente recebidos, e a sua religião, estudada e respeitada. Só mais tarde os jesuítas foram hostilizados e expulsos, quando os japoneses se aperceberam das suas verdadeiras intenções: a intriga e o saque. Quem não conhece a história do navio negro? No Indostão, as antigas religiões politeístas, o vedismo e posteriormente o hinduísmo assimilaram o budismo. Não se conhecem conflitos interreligiosos nem com as comunidades cristãs que nos primeiros séculos do cristianismo surgiram no subcontinente indiano nem, mais tarde, com a difusão do islamismo. Nada que possa ser comparável com a barbárie que se abateu naquelas paragens com a chegada dos portugueses. São disto
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exemplo o tristemente célebre encontro da frota de Vasco da Gama com um navio de peregrinos muçulmanos vindo de Meca. O navio foi incendiado e afundado, vitimando 600 pessoas, apenas por serem infiéis. Para não falar na trágica história da Inquisição em Goa. Também entre os muçulmanos a regra foi um salutar convívio entre comunidades com credos religiosos diferentes. Os povos subjugados foram assimilando o islamismo, sem conversões coercivas e sem perseguições. Os não convertidos pagavam imposto mais elevado e não ocupavam cargos públicos importantes, mas podiam livremente professar as suas religiões. Durante o domínio árabe na Península, muitas comunidades mantiveram-se cristãs, os moçárabes. Quando Lisboa foi tomada, em 1147, o bispo cristão da cidade foi morto pelos cruzados quando apelava ao fim do saque e da bárbara matança dos habitantes da cidade que se seguiu. Em Constantinopla, o domínio turco sempre manteve o patriarca ortodoxo. E quando conquistaram as vastas possessões bizantinas foram tolerantes para com as populações cristãs, não lhes impondo o islão. Séculos depois, quando os países europeus se libertaram do domínio turco, a maior parte da população mantinha o culto ortodoxo, como na Grécia, na Bulgária, na Sérvia, na Arménia, no Sul da Ucrânia e na Rússia. No continente europeu só encontramos comunidades islâmicas nas áreas onde se fixaram comunidades turcas consideráveis, como na Albânia, na Bósnia, na Bulgária e na Arménia. Muçulmanos e judeus sempre coabitaram as mesmas cidades, e o conflito que hoje os opõe deve-se à criação artificial do estado de Israel. E o mesmo se dirá do conflito que opõe muçulmanos e hindus em Caxemira, cuja origem remonta à divisão artificial do Indostão, seguindo a velha máxima britânica de dividir para reinar. Claro que nem sempre o mundo islâmico foi tão pacífico. Em diversos períodos históricos, correntes extremistas apelaram à guerra santa, e foram cometidas as maiores barbaridades, não tanto contra os seguidores de outros credos em territórios ocupados mas através da destruição de fabulosos tesouros culturais, preservados e estudados até então. Foi, assim, que desapareceram a Biblioteca de Alexandria e, cinco séculos mais tarde, a de Córdova. Também os mongóis, islamizados não toleraram «infiéis» nos territórios asiáticos e europeus conquistados. Destruíram templos cristãos e perseguiram comunidades cristãs, mas isto numa época em que o conflito entre as duas religiões era já bem aceso, e eles temiam ter o «inimigo» no seu seio. Há contudo que reconhecer que de um modo geral, e excluindo momentos de maior fanatismo, os muçulmanos foram tolerantes em relação a outros cultos.
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CAPÍTULO II
Já o mesmo não se pode dizer da Europa cristã a partir do século III. A história do nosso continente é dramaticamente marcada por constantes e insanáveis conflitos entre seguidores de diferentes interpretações do próprio cristianismo, com implacáveis perseguições, prisões, torturas e execuções de inimaginável crueldade, conversões coercivas, assassínios, por vezes assassínios em massa com o extermínio de populações inteiras. Isto no continente europeu cristão, pois os genocídios praticados nos outros continentes a partir do século XVI com a expansão e domínio europeu, cristão, são igualmente bem conhecidos. Que o digam os sobreviventes dos cerca de 30 milhões de habitantes da América do Norte (cálculos recentes), os da América Central e América do Sul e os da Austrália. E os que viviam em ilhas e não tinham por onde fugir? Na Tasmânia e na Nova Zelândia poucos chegaram aos nossos dias. Em Cuba e nas Canárias foram extintos, mal os cristãos lá puseram o pé. A intolerância e o autoconvencimento de se ser o depositário da verdade única, verdade que a qualquer preço havia que impor aos outros, a prática política sistemática do terror, a luta sem tréguas contra a menor inovação que pusesse em causa a tal verdade absoluta, dominaram nos últimos dezoito séculos a vida dos povos submetidos ao poder cristão. Vamos deter-nos, nestas reflexões, na tumultuosa história do cristianismo e suas múltiplas ramificações, as actuais e as já desaparecidas, uma vez que foram e são ainda religiões dominantes no nosso espaço europeu. Vejamos então, sucintamente, a evolução das correntes religiosas na Europa desde o advento do cristianismo.
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CAPÍTULO III
O CRISTIANISMO PRIMITIVO
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ouco ou nada se sabe da vida de Jesus, o fundador do cristianismo primitivo. Não há documentação da época, nem o próprio deixou obra escrita. Só na década de 50 do século XX, e com a descoberta dos manuscritos do mar Morto, foi possível iniciar uma investigação credível desta matéria. Os quatro Evangelhos, o Novo Testamento, escritos 60 a 110 anos depois da morte de Jesus, não têm a mínima credibilidade histórica, pois narram uma infindável sucessão de milagres sem qualquer sentido, factos extraordinários como caminhar sobre a água, multiplicar pães, transformar água em vinho, conversar com o Diabo, ressuscitar, factos que não teriam passado despercebidos aos cronistas do tempo. Três destes Evangelhos, os de S. Mateus, de S. Marcos e de S. Lucas, são semelhantes e por isso designados por sinópticos. O de S. João é diferente e como que complementa os três primeiros. Tal como o de S. Marcos, inicia a narrativa da vida de Jesus com o seu baptismo por S. João Baptista, omitindo portanto a revelação a Maria, o nascimento, os reis magos e a fuga para o Egipto. Por outro lado, não termina com a ascensão de Jesus ao Céu, tal como o de S. Mateus, o que originaria um dos mais acesos pomos de discórdia nos primeiros séculos do cristianismo.
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Do que não haverá dúvidas é de que à volta da enigmática personagem de Jesus, pela primeira vez na história do pensamento humano, surge uma doutrina revolucionária que desenvolve duas ideias originais e que vai ter enorme aceitação e difusão. A primeira ideia é a da igualdade de todos os humanos perante Deus, rompendo assim com a crença judaica do povo eleito, isto é, que o Deus único era só dos judeus e de mais ninguém. Pela primeira vez a condição humana é valorizada de igual modo para todos, independentemente de sexo, raça, nacionalidade, classe social e riqueza. A segunda ideia, talvez menos original mas igualmente de grande importância, foi a da inutilidade dos bens materiais como factor valorativo perante a divindade. Para o reconhecimento do alcance destas duas ideias, lembremos que as comunidades humanas eram altamente estratificadas, não só em classes sociais e étnicas, como também de acordo com o local de nascimento. Os habitantes das cidades italianas, por exemplo, não detinham os mesmos direitos dos romanos. Os reis dos países ocupados pelos romanos eram vassalos do imperador. Quanto à mulher, é conhecida a sua subalternização em relação ao homem, como ainda hoje nas religiões bíblicas. Por outro lado, a acumulação de capital baseada na exploração do trabalho ou no comércio era a aspiração suprema, só por poucos alcançada. E com dinheiro tudo se podia comprar, desde os cobradores de impostos até escravos, mulheres e crianças. Pois, afrontando a ideologia reinante, Jesus prega não só o desprezo pelos bens materiais como exclui os ricos da graça divina. São disso paradigma as duas frases que lhe são atribuídas «A César o que é de César, a Deus o que é de Deus» e «É mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico ganhar o Reino dos Céus», ou seja, não há no Céu lugar para os ricos. É portanto natural que esta doutrina rapidamente se tenha difundido entre as vastas massas de desprotegidos da sorte, incluindo os escravos. Nada mais reconfortante do que acreditar que, depois desta vida de misérias e opressão, nos esperará uma outra vida de felicidade eterna no Céu. E nada mais natural do que o facto de os pregadores e os seus seguidores serem perseguidos, e de o subversivo Jesus ter sido preso e condenado pela insistência dos sacerdotes judeus e crucificado, pena capital que os romanos davam aos não romanos e aos escravos. Um século antes do início da pregação de Jesus foram crucificados só de uma assentada vários milhares de companheiros de Espártaco. Após a morte de Jesus, os seus seguidores, convictos de que ele era o esperado Messias (Cristo, em grego) da tradição judaica, propagaram a boa nova, prometendo a salvação e o Paraíso a quem a ela aderisse. Esta difusão fez-se em todas as direcções, norte, sul, este e oeste, surgindo
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CAPÍTULO III
núcleos cristãos na Anatólia (Turquia) Egipto e Etiópia, Mesopotâmia (Iraque) e Pérsia e Europa Ocidental, para além da Palestina. Jerusalém foi a primeira fonte de irradiação e onde se formaram as primeiras comunidades cristãs sob a condução de Pedro, o discípulo a quem Jesus segundo a tradição teria legado a liderança do movimento. No entanto, só duas décadas depois da morte do Mestre foi decidido que os convertidos teriam de abandonar as práticas e cultos judaicos, no que ficou conhecido como Concílio dos Apóstolos de Jerusalém. Entre os promotores da nova doutrina tiveram particular importância Paulo, Pedro e, provavelmente, Maria Madalena. O primeiro era um judeu rico e de nacionalidade romana, que não chegou a conhecer Jesus. Viveu em Antióquia, cidade do Sul da Anatólia e um dos mais importantes centros urbanos da época, de onde viajou para a Grécia, a Macedónia e o Médio Oriente. Pedro viveu em Jerusalém, vindo a fixar-se mais tarde em Roma. Maria Madalena, companheira de Jesus, emigrou para o Sul de França. Esta rápida expansão e dispersão do cristianismo e o facto de o seu fundador não ter deixado obra escrita deram origem ao desenvolvimento de diversos credos com corpos doutrinários próprios atribuídos a continuadores da obra do Mestre indiscutível, com interpretações diversas do que se sabia da sua vida e do seu pensamento. As viagens de Paulo não foram suficientes para a unificação. Sabemos, por exemplo, que se insurgiu com o culto cristão que veio a encontrar em Jerusalém. Pedro, depois de uma passagem por Antioquia, terá tido uma influência decisiva na grande urbe italiana, capital do vasto Império Romano, sendo contudo bastante obscura a sua actividade, seguramente pelo secretismo imposto pelas perseguições. Acabou por ser preso e condenado à morte no tempo de Nero (64), tal como Paulo (67). Estas perseguições deveram-se ao facto de os cristãos não aceitarem a identidade divina dos imperadores, o que para estes era inaceitável e subversivo. Os romanos sempre foram tolerantes em matéria religiosa, desde que a sua não fosse posta em causa, sendo a grande cidade palco de todos os cultos orientais. Como é natural, os cultos cristãos orientais foram influenciados pelo zoroastrismo (já referimos Manes, no século III), enquanto os cultos europeus foram absorvendo, misturando e adaptando a velha idolatria. Deuses locais foram identificados com santos, como foi o caso de Apolo, protector das colheitas, com Sto. Apolónio. Os festejos sazonais foram-se adaptando à nova crença, e as respectivas datas, respeitadas. Nos seus primeiros três séculos, apesar das várias correntes que se iam cristalizando, o cristianismo manteve, no essencial, a doutrina pregada por Paulo, as ideias originais de universalidade, igualdade e tolerância, a fé num
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só Deus piedoso e pai de todos, a redenção e o Juízo Final. Manteve parte do judaísmo como o Antigo Testamento, a Páscoa, agora ligada à ressurreição de Jesus, e o baptismo. Foi abolida a circuncisão, marca do povo eleito judaico. No entanto, iriam persistir através dos séculos divergências teológicas quanto à identidade de Jesus, Deus-Homem, profeta, ou anjo enviado por Deus, ou quanto à essência do Espírito Santo, entre outras. Do ponto de vista doutrinário, este cristianismo primitivo limitava-se a ideias muito simples. Deus fez o homem à sua imagem, bom, mas o Diabo, na forma de serpente, subverteu a mulher, e esta arrastou o homem para o pecado original. E foi este pecado original o culpado de todos os males das gerações futuras, a cupidez, a corrupção, a desarmonia. Abel foi a primeira vítima da maldade humana. E as coisas chegaram a ponto de Deus ter de recorrer a medidas drásticas, o Dilúvio, mas sem qualquer resultado, pois a Humanidade manteve-se incorrigível. Deus então mandou o seu Filho à Terra, cumprindo as profecias do judaísmo, com a missão de salvar a espécie humana pelo ensino dos caminhos do bem, levando à reconciliação com a divindade e à salvação da alma. Para tanto, e após a conversão e o baptismo, torna-se necessário o arrependimento, a confissão dos pecados, a punição e a absolvição, sequência designada por expiação. E o sacrifício de Jesus na cruz, a redenção, foi condição necessária para esta reconciliação e salvação. Por sua vez, Maria, a mãe de Jesus, é a rainha dos Céus, a principal confidente do Deus Pai. Não deixa de ser curiosa a analogia com os mitos do antigo Egipto. Também Osíris, o deus principal, envia o seu filho Hórus à Terra para salvar os humanos, sendo o primeiro faraó. E os faraós que se seguiram durante três mil anos eram considerados deuses, descendentes de Hórus. Ao contrário da mitologia cristã, é Osíris quem sofre a paixão, a morte e a ressuscitação. É morto pelo irmão Seth, o deus do mal, e mais tarde ressuscita, tornando-se o deus supremo do Além, o julgador das almas, o que decide quem terá lugar no Paraíso. Também Ísis, mãe de Hórus, reina no Céu ao lado do esposo Osíris. Desde as longínquas Pérsia e Egipto até à Península Ibérica foram surgindo, em muitos aglomerados humanos, núcleos de cristãos que se reuniam para em comum celebrarem rituais e rezarem ao Deus único, constituindo as igrejas locais (igreja, em grego, é assembleia). Eram verdadeiras sociedades mutualistas, pois repartiam os bens pelos mais necessitados, estando esta distribuição a cargo de administradores designados, diáconos. Estas comunidades eram presididas por um dos mais velhos e sabedores, o bispo (em grego, zelador), a quem competia difundir a nova doutrina, confessar e perdoar os pecados e baptizar os recém-vindos.
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CAPÍTULO III
Tal como no judaísmo, os cristãos eram também um povo eleito de Deus. A grande diferença consistia em que, para os judeus, para serem povo eleito, era necessário ter-se nascido filho de pai judeu e, depois, seguir ao longo da vida os rituais, enquanto para os cristãos qualquer um tinha acesso ao Corpo de Deus, desde que se convertesse, se baptizasse e aceitasse os dogmas. Esta diferença poderá também explicar a rápida difusão do cristianismo não só entre os judeus, crentes de que finalmente tinha vindo o esperado Messias, como em indivíduos das mais diversas origens e condições. S. Paulo ficou conhecido como o apóstolo dos gentios. Persistiu contudo a concepção do nós e dos outros, concepção exclusivista, que iria ter, futuramente, consequências dramáticas, não só entre cristãos como entre cristãos e não cristãos. É importante realçar que estes judeus, agora convertidos ao cristianismo, e constituindo sem dúvida o grupo social mais culto e letrado, assim como outros povos de ascendência palestina como os cartagineses, espalhados por todo o Império, eram os únicos que compreendiam os textos do Antigo Testamento, uma vez que estes se encontravam escritos em línguas semitas aparentadas – o hebraico, o aramaico e o siríaco. A primeira tradução da Bíblia do hebraico para o latim deve-se a S. Jerónimo (347-420) e imagine-se a lentidão da sua difusão, feita à mão no pergaminho, pois o papel apenas veio com os árabes, séculos depois. E só em 1448 Gutenberg (1394-1468) fez a primeira impressão tipográfica de um livro, a Bíblia. E, assim, o cristianismo foi conquistando cada vez mais adeptos, atingindo todas as latitudes do Império Romano e ultrapassando mesmo as suas fronteiras no Oriente, estendendo-se à Pérsia, à Arménia e talvez à Índia. As grandes urbes, como Roma, Cartago, Antióquia, Alexandria e, mais tarde, Constantinopla, foram os grandes centros difusores. Os estudiosos calculam que por volta do ano 300 em todo o Império Romano haveria entre 7 a 8 milhões de cristãos, a maioria dos quais na parte oriental do Império, para uma população global estimada em 50 milhões. Há notícia de já haver dioceses presididas por um bispo na segunda metade do século II, mas só mais tarde, após a viragem constantiniana e com Teodósio, se estabelece uma verdadeira hierarquia sacerdotal, tendo como figuras cimeiras os bispos, com jurisdição sobre vastos territórios, subdivididos por sua vez em paróquias dirigidas por um sacerdote, o pároco. As igrejas, inicialmente dispersas e autónomas, vão perdendo a sua tradição mutualista, e os seus ministros, os párocos, passam a ser nomeados pela hierarquia que se ia estabelecendo. Este primeiro período de expansão cristã deveu-se fundamentalmente à acção militante dos apologetas, que apenas dispunham da palavra e dos seus dotes de persuasão para difundirem a nova mensagem. Eram
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por assim dizer autodidactas movidos por profundos sentimentos religiosos e que transmitiam aquilo que tinham recebido e assimilado dos ensinamentos dos mais velhos. Compreende-se perfeitamente que, em tão vasta área geográfica e na ausência de um substrato material literário unificador, tenham surgido diversas e contraditórias interpretações e pontos de vista, em particular no que respeitava aos aspectos mais transcendentes da nova doutrina. Também não surpreendem as constantes querelas e conflitos entre comunidades cristãs seguidoras deste ou daquele mestre. E não podemos esquecer-nos de que este tão vasto movimento de ideias, de conteúdo inegavelmente revolucionário, e que ganhava cada vez mais adeptos, se desenvolvia no seio de massas populares pagãs e sob autoridades igualmente pagãs e hostis. Tratava-se afinal de uma profunda rotura com as ancestrais concepções religiosas politeístas. O cristianismo não era mais uma religião pagã com os seus deuses e a sua mitologia, mas, sim, algo completamente novo, a crença num só Deus Salvador, de quem todos eram filhos iguais, negando assim a natureza divina do próprio imperador. As perseguições e as condenações de que foram vítimas os cristãos nos primeiros três séculos são bem conhecidas. Mas é Eusébio, o primeiro historiador do cristianismo, quem, já no século II, considera que a principal ameaça ao cristianismo provinha não das perseguições, mas sim das heresias e cisões no seu próprio seio. Vejamos como se desenvolveram as primeiras correntes cristãs.
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CAPÍTULO IV
AS PRIMEIRAS INTERPRETAÇÕES DO LEGADO DE JESUS
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ão é de estranhar que as primeiras divergências e conflitos entre crentes da nova doutrina e não crentes surgissem na Palestina, logo após a morte do Mestre. Mas estas querelas não se verificaram só com os judeus tradicionais, para quem Jesus era um impostor, ocorreram entre os próprios judeus convertidos. Os judeus, e em particular o rei e os seus sacerdotes, temerosos de perderem a sua influência, moveram contra os cristãos toda a ordem de calúnias, perseguições e mesmo execuções, denunciando à autoridade romana aqueles que se distinguiam na difusão das novas ideias e práticas. E não deixa de ser curioso verificar que, como reza a História, eram os ocupantes a quem competia julgar os elementos subversivos, quem punha água na fervura, não vendo razões para prender e condenar quem quer que fosse por motivos religiosos. A própria condenação de Jesus só foi sentenciada por Pilatos, o governador romano, após grande pressão de Herodes, o rei fantoche, e dos sacerdotes, na iminência de tumultos. Estêvão, o primeiro mártir da Igreja, foi morto à pedrada ou lapidado pelos seus conterrâneos por volta do ano 33, sem conhecimento da autoridade romana. Menos conhecidas são as divergências entre aqueles que viam em Jesus o verdadeiro Messias. Já os Evangelhos fazem alusão a diferenças de
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opinião e disputas entre os discípulos, designadamente em relação aos ensinamentos e propósitos do Mestre, acabando sempre por ser acatada a posição final deste, o líder indiscutível do grupo. A morte de Jesus e a dispersão dos discípulos terão gerado alguma confusão, surgindo então a lenda da ressurreição e da aparição, a que se seguiu a subida ao céu, mais tarde descrita nos Evangelhos de S. Marcos, S. Mateus e S. Lucas. E se é certo que a convicção na veracidade destes factos extraordinários constituiu a génese das correntes cristãs que perduraram até aos nossos dias, também o é que nem todos aceitaram tão fantásticos acontecimentos. E isto porque muitos não viam em Jesus a encarnação humana do próprio Deus, não aceitavam a sua natureza divina, mas apenas o Messias do tradicional culto judaico, o rei que viria salvar o povo judeu do jugo romano. E o que poderia haver de especial no cruel fim do profeta? Mais um de entre tantos rebeldes presos, condenados e executados. Surgiram assim diversas correntes, sendo as mais conhecidas as dos ebionitas, dos osseanitas, dos elcesaítas e dos nazarenos. Os ebionitas (ebion = pobre) espalharam-se de Alexandria a Roma, mas não ultrapassaram o primeiro século. Observavam as mais antigas tradições judaicas, as leis e os preceitos morais atribuídos a Moisés, o moisaísmo, e viam em Jesus o último dos profetas. Osseano por volta do ano 50 repudiava o martírio consentido de Jesus, pois considerava tal desfecho um suicídio, um grave pecado segundo a lei judaica, pondo assim em causa toda a teoria da redenção. Teve muito adeptos na Palestina. Os elcesaítas, partidários do judeu Elcesai, foram continuadores do osseanismo, tendo também assimilado o ideário ebionita. Juntaram à sua crença práticas mágicas, a invocação dos demónios e adoravam o Espírito Santo como uma divindade feminina. Negavam a virgindade de Maria, uma vez que a virgindade contrariava as leis de Deus. Lembremos que nos primeiros séculos a virgindade de Maria, apenas referida nos Evangelhos de S. Mateus e S. Lucas, cedo foi incorporada na mitologia cristã. O elcesaísmo teve muitos partidários na Palestina, permanecendo nesta região como a mais importante facção cristã até ao século V. Por nazarenos ou nazareus são conhecidos diversos outros grupos que viam em Jesus da Nazaré o último dos profetas, negando igualmente a sua essência divina. Não admira que Paulo, na viagem à Palestina, tenha encontrado alguma animosidade entre comunidades cristãs locais e incompreensão sobre o que considerava ser a verdadeira Fé, baseada no martírio e na ressurreição de Jesus.
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CAPÍTULO IV
O SINCRETISMO GNÓSTICO Sincretismo é a amálgama ou a fusão de doutrinas aparentemente divergentes numa nova doutrina. Os gnósticos, como veremos de seguida, ao assimilarem e integrarem parte do cristianismo nas suas próprias teorizações filosóficas, deram lugar a múltiplas correntes de pensamento a que se dá a designação genérica de sincretismo gnóstico. O primeiro grande confronto ideológico que o cristianismo nascente enfrentou foi com estas correntes de pensamento metafísico que dominavam o mundo culto helenizado da época. Os ensinamentos de Aristóteles e em particular de Platão, as filosofias orientais, o zoroastrismo, o budismo, a religião egípcia, as escrituras judaicas, as mitologias, a astrologia eram matérias que ocupavam os eruditos helenizados que pululavam por todo o mundo antigo. Considerando que todas estas e outras manifestações da sabedoria humana continham algo de verdade, estes eruditos, de hábitos ascéticos, procuravam novas interpretações das Escrituras e dos legados dos filósofos que os conduzissem à descoberta da verdade absoluta (gnosis em grego = conhecimento), à resposta às grandes questões que sempre inquietaram a Humanidade: o que somos? De onde viemos? Para onde vamos? Como tudo começou? Como acabará um dia? Qual o desígnio dos homens no meio de tudo isto? Foram designados por gnósticos, pois acreditavam que a verdade estava ao seu alcance através do estudo, mas também da meditação. Consideravam-se iluminados, acima dos outros reles humanos, pois só eles tinham o dom transcendente de estar na posse de revelações secretas, vedadas ao comum dos mortais. Uns tinham visões, outros, a capacidade de comunicar com o Além, com o mundo dos mortos, com os seres sobrenaturais. Influenciados em particular por Platão, Zoroastro e Buda, distanciavam-se do politeísmo reinante, pois criam num ente supremo, o primeiro, a origem de tudo. Não é intenção do autor destas reflexões discorrer sobre as múltiplas correntes de pensamento gnóstico que durante séculos dominaram o mundo antigo erudito e originaram os mais diversos sistemas filosóficos, escolas, seitas e movimentos de cariz religioso. Tentemos contudo sintetizar as ideias fundamentais, para melhor compreender como se foram entrosando no cristianismo. Os gnósticos tinham de comum a crença num deus supremo, imaterial, invisível, mas luminoso, que se manifestava através de múltiplas emanações, os éones ou génios. Estes, à medida que se afastavam do seu criador, iam perdendo a luz inicial, caminhando para as trevas, tornando-se toscos e malévolos. Ora deveu-se a um destes génios, o demiurgo, identificado com o Jeová da religião judaica, a criação da matéria e do homem. E como já estava muito afastado do luminoso Deus, a sua obra não podia deixar de
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ser imperfeita e intrinsecamente má. Daqui todas as desgraças deste mundo, a maldade e a perdição humanas. Mas está ao alcance da Humanidade salvar-se do seu cruel destino e reencontrar a luz divina. Como? Recorrendo aos magos possuidores das secretas revelações, os mestres gnósticos, pois só eles conhecem as práticas mágicas e os rituais que levam à redenção, ou seja, à salvação dos pobres mortais, à sua reconciliação com Deus. E é nesta incessante busca da verdade que muitos gnósticos vêem em Jesus um ser transcendente, um éon emanado de DeusLuz, que assume a aparência humana para poder comunicar com os hom ens e lhes ensinar o caminho da redenção. Mas só eles, os iluminados, estariam em condições de receber e compreender a revelação de Jesus. Aos outros seguidores da doutrina cristã, estaria reservada uma redenção menor. Quanto aos pagãos, homens-matéria, estavam condenados às trevas eternas. Verifica-se portanto uma contradição fundamental entre a doutrina pregada pelos apóstolos e discípulos e as interpretações defendidas pelos gnósticos. Para os primeiros, Jesus é Deus e homem, para os segundos é uma emanação de Deus e homem aparente. Claro que muitas outras divergências se iam sobrepondo, tanto mais que cada pensador gnóstico tinha a sua teoria própria, não havendo, como já referimos, um pensamento unificado. Mas a divergência fundamental que opôs o sincretismo gnóstico à revelação herdada dos apóstolos radicava na essência de Jesus. E diga-se de passagem que a animosidade entre os dois partidos se deveu em grande parte ao facto de os eleitos guardiães da verdade desprezarem os seus contraditores – plebeus, ignorantes, sem estatuto social. E foi o seu elitismo iluminado e egocêntrico que mais contribuiu para ditar a sua derrota ideológica e o seu desaparecimento histórico, não sem deixarem marcas duradoiras, como veremos. As ideias simplistas do cristianismo eram efectivamente muito mais acessíveis à compreensão humana, em particular à dos pagãos convertidos, familiarizados com deuses humanóides e com fenómenos inexplicáveis, como a chuva e a trovoada, e para quem a salvação era agora tão fácil de obter. Alguns gnósticos no século II tiveram contudo muitos seguidores, e as suas ideias propagaram-se por vastas regiões e perduraram por várias gerações, combinando o platonismo, o zoroastrismo e o cristianismo, e de que citaremos apenas os nomes de alguns dos principais: Saturnino de Antióquia, Basílides, Carpócrates e Bardesanes de Alexandria, Cerdon da Síria e Valentim, originário de Alexandria, mas que na sua estada em Roma teve grande sucesso, o mesmo não acontecendo aos seus discípulos, que se cindiram em diversas seitas, acabando por se extinguir.
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CAPÍTULO V
AS PRIMEIRAS HERESIAS E CISMAS
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or cisma entende-se o afastamento de parte da cristandade da autoridade papal, por heresia a negação de dogmas. Ora o sincretismo gnóstico não cai em nenhuma destas categorias, uma vez que o gnosticismo precede historicamente o advento do cristianismo. Para os gnósticos, Jesus é o éon que faltava, a peça tão penosamente procurada, a chave que iria completar os respectivos e diversos sistemas filosóficos. Claro que aqueles que reconheciam em Jesus o Deus verdadeiro feito homem de carne e osso, e que por isso mesmo tanto sofreu fisicamente, combateram ferozmente esta tão vil apropriação e desvalorização. Mas não foram os gnósticos os mais sérios concorrentes do cristianismo nascente. É certo que muitos dos primeiros teorizadores cristãos obtiveram a sua formação intelectual e cultural em escolas gnósticas, mas, uma vez convertidos, apenas utilizaram no apostolado a sua capacidade de argumentação e de persuasão. Na verdade foi entre os teorizadores cristãos que, no decorrer dos séculos, surgiram constantes divergências doutrinárias que conduziram à pulverização da cristandade, a que ainda hoje se assiste. As principais divergências nesta época radicavam nas concepções sobre a essência de Jesus (cristologia) e da Santíssima Trindade.
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Em relação à essência de Jesus, as diversas teses conceberam-no como anjo, éon, emanação de Deus, Filho de Deus, ser transcendente mas visível, Deus/homem de carne e osso, mais um profeta, o desejado Messias, o próprio Deus que veio à Terra e se fantasiou de homem, e por aí fora. E de acordo com estas suposições se discorria se poderia ter sofrido e morrido, se teria subido ao Céu, se era filho de virgem, etc. Em relação à Santíssima Trindade, a discussão processava-se entre trinitários e não trinitários e arrastou-se durante séculos. Os trinitários entendiam a união de três pessoas distintas, Pai, Filho e Espírito Santo em um só Deus, auferindo portanto cada uma a mesma categoria divina, enquanto os seus opositores consideravam haver apenas um Deus Supremo, sendo o Filho e o Espírito Santo secundários. E cada uma destas correntes teve múltiplas variantes, a dos três deuses independentes, o triteísmo; a do Deus superior aos outros dois, o subordinacionismo, com as subvariantes de o Filho ser ou não superior ao Espírito Santo; e a de serem Filho e Espírito Santo meras emanações de Deus. O problema só ficou provisoriamente resolvido nos concílios dos séculos IV e V da maneira mais pragmática, a de terem as três pessoas igual essência divina. E dizemos provisoriamente, porque foi de facto à volta desta questão que voltaram à baila velhas divergências teológicas que culminaram no Grande Cisma do Oriente, mil anos mais tarde, e de que nos ocuparemos adiante. Vejamos as correntes mais conhecidas da primeira fase do cristianismo: MARCIÃO Marcião nasceu por volta de 85, filho do bispo da distante cidade de Sinope, no Norte da Anatólia nas margens do mar Negro. Terá concebido as suas teses e iniciado a sua divulgação na sua comunidade. Por volta dos 60 anos (139) vem para Roma, onde entra em conflito com os cristãos seguidores das teses de Paulo e Pedro, acabando por ser excluído e excomungado. Fundou então a sua própria igreja, que capta muitos adeptos e rapidamente se expande por todas as províncias romanas. Foi a primeira grande cisão do mundo cristão, o marcionismo. Marcião rejeitava o carácter messiânico de Jesus e a sua essência humana, tão cara aos judeus convertidos. Jeová teria sido um deus justo mas malévolo, enquanto o Deus Supremo, justo e bom, se teria revelado através de Jesus, só homem na aparência. Como tal, também a sua morte foi aparente e a ascensão um facto natural para um deus eterno. Esta interpretação denota a influência dualista oriental, o deus bom e o deus mau, o bem e o mal, a necessidade da redenção. Desvalorizava igualmente os livros sagrados dos judeus, o Antigo Testamento, único cânone de que dispunham os cristãos seus contempo-
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CAPÍTULO V
râneos, e, partindo do Evangelho de S. Lucas e de algumas epístolas de S. Paulo a que adicionou as suas concepções, criou o primeiro cânone cristão, baseado na vida de Jesus. TACIANO Sacerdote sírio (120-173), foi um entusiasta do cristianismo, mas, influenciado pelo marcionismo, entrou em rotura com os seguidores de Paulo e Pedro, defendendo um dualismo em que o mal era essencial à matéria, e o bem, um atributo do espírito. Foi o iniciador de um movimento religioso, os encratitas (abstinentes), que advogavam o mais rigoroso ascetismo, exigindo a todos os cristãos a renúncia da carne, do vinho e mesmo do casamento. Apesar do seu radicalismo, este movimento teve muitos adeptos que se espalharam por várias regiões do império, e as suas concepções vieram a ter grande influência no montanismo, de que nos ocuparemos a seguir. TEÓDOTO Para Teódoto, Jesus teria sido um vulgar humano que, após o baptismo por São João Baptista, foi divinizado por Deus para pregar a sua doutrina. Seria portanto um deus, mas um deus secundário, adoptado pelo Deus principal. Pregou esta sua concepção, o adopcionismo, por volta do ano 190 em Roma, acabando por ser excomungado pelo bispo de Roma, Vítor. MONTANO Contemporâneo de Taciano, Montano nasceu em Ardabau na Frígia, parte ocidental da actual Turquia, e terá sido sacerdote do culto de Cíbele, a principal deusa desta região. Convertido ao cristianismo, foi ordenado presbítero e possivelmente bispo. Por meados do século II inicia a pregação das suas teses reformistas. Considerava que a revelação de Jesus não teria sido a última, e que outras revelações se seguiriam por intermédio do Espírito Santo. Portanto, a direcção da cristandade não deveria pertencer à hierarquia sacerdotal, mas sim aos bafejados pelas sucessivas revelações. E, claro está, ele era um dos sortudos. Tinha efectivamente passado por êxtases místicos, nos quais recebera novas mensagens divinas, através do Espírito Santo, o que o equiparava a Jesus. Era acompanhado por duas mulheres, Priscila e Maximila, que também tinham visões inspiradas pelo Espírito Santo, e proferiam sentenças e profecias, tais como o regresso de Jesus para o Juízo Final, uma vez que estava prestes o fim do mundo. Chegou a reunir-se um numeroso conclave em Perpuza, na Frígia, para assistir ao acontecimento, já que as profecias tinham precisado dia e local onde reapareceria Jesus para julgar os mortos.
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O montanismo depois de se expandir na Frígia e na Anatólia chegou a Roma por volta do ano 200, estendendo-se por todo o império e em particular no Norte de África, de onde acabaria por desaparecer, dois séculos depois, sobrevivendo contudo na Ásia até ao século VI. O montanismo foi considerado herético em vários concílios. PRÁXEAS Também natural da Frígia e inicialmente adepto de Montano, acabou por ser seu acérrimo adversário, ao discordar da tese trinitária. Fundou uma corrente de pensamento cristão pelos finais do século II que negava a distinção entre as três pessoas da Trindade, Pai, Filho e Espírito Santo, que não passavam de formas distintas com que o Deus Único se manifestava. Este ponto de vista esteve presente durante séculos nas disputas teológicas, sendo os seus partidários designados por patripassianos. Quanto aos opositores, em particular Tertuliano e os montanistas, argumentavam que, se as três pessoas fossem a mesma, então Deus teria nascido da Virgem Maria e teria sido martirizado pelos homens, um verdadeiro absurdo. TERTULIANO Nascido em Cartago (150-225), é considerado o mais proeminente dos escritores cristãos, só suplantado por Stº Agostinho, dois séculos mais tarde. Possuidor de vasta cultura histórica, literária e jurídica, dominando o grego e o latim, foi o iniciador da literatura cristã nesta última língua, que passou a ser a língua oficial da Igreja Romana. Escreveu e traduziu inúmeras obras, de que se destaca o tratado contra os patripassianos. Quando advogado em Roma, defendeu cristãos perseguidos, tendo resultado do relacionamento com estes a sua conversão ao cristianismo, de que se tornou um defensor entusiasta. Regressando a Cartago em 197, foi presbítero naquela cidade, mas cedo entrou em conflito com o clero local, que o considerava mundanizado, acabando por romper com o rito romano e aderir ao montanismo. Já como chefe local desta facção, passou a atacar violentamente a corrente cristã que predominava em Roma e de que o clero cartaginês era partidário. HIPÓLITO Hipólito (170-235) era presbítero em Roma, sendo de sua autoria diversos escritos teológicos refutando as várias heresias em particular a de Sabélio e a dos patripassianos, o que lhe granjeou um certo renome, a ponto de se candidatar a bispo de Roma por morte do titular Zeferino em 217. Mas os sacerdotes escolheram Calisto I, e Hipólito não se conformou. Seguido por muitos adeptos, igualmente revoltados,
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auto-intitulou-se antipapa. Havia na época o costume de chamar papas aos bispos das grandes cidades. E foi tal a fricção entre os dois partidos que o próprio imperador, Maximino, para restabelecer a ordem, acabou por intervir, mandando prender papa e antipapa e deportando-os para a ilha da Sardenha, onde ambos morreram, poucos anos depois, não sem que antes Hipólito se tenha arrependido. Foi o primeiro cisma da cristandade. SABÉLIO A grande cidade egípcia, fundada por Alexandre, o Grande, manteve-se durante a Antiguidade e até à islamização o principal centro de cultura do mundo ocidental. A sua fabulosa biblioteca reunia todo o saber escrito até então. Não admira que tenha sido sede das primeiras reflexões e teorização da mensagem de Jesus. Sabélio, nascido em Ptolemais, actual Líbia, no século III, negava a Santíssima Trindade, considerando apenas um Deus Único, sendo o Filho e o Espírito Santo designações que correspondiam a formas como Deus se manifestava na sua acção salvadora dos homens. Não eram pessoas distintas, mas atributos de Deus. Foi condenado por heresia no Concílio de Alexandria (261). Esta concepção, que iria ser defendida por muitos teólogos ao longo dos séculos, tem a designação de modalismo. ÁRIO Ário, bispo de Alexandria (250-335), igualmente questionou a natureza divina de Jesus, considerando que este fora escolhido por Deus para propagar a sua palavra, tese que mais tarde seria retomada pelos cultos islâmicos, que consideram Jesus um profeta, tal como Maomé, a quem Deus confiou a tarefa de repor a verdadeira fé. Sendo Jesus humano, era assim negado um dos dogmas fundamentais da mitologia cristã, o da Santíssima Trindade. Ário foi excomungado pelo Sínodo de Alexandria (321). No entanto, foram necessários mais dois concílios ecuménicos, o de Niceia (325) e o de Constantinopla (381), para ficar solucionado o problema da identidade divina de Jesus. Ao contrário de Sabélio, Ário viu a sua doutrina ter enorme difusão quer no Oriente quer no Ocidente. Considerada herética, foram os seus seguidores perseguidos implacavelmente, até que Constantino, como veremos adiante, lhe deu novo alento. A sua influência no Oriente só desapareceu com a islamização, a partir do século VIII. No Ocidente era o culto dominante nos reinos bárbaros que se edificaram sobre os escombros do Império Romano. Eusébio de Nicomedia, actual Izmit perto de Iznik, foi um dos mais ardentes defensores do arianismo no Concílio de Niceia, como veremos.
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Depois de excomungado e expulso da cristandade, foi empossado patriarca de Constantinopla pelo imperador Constantino, tornando-se no mais influente e poderoso chefe da cristandade. Foi ele quem baptizou aquele imperador já no final da sua vida. Deve-se a Eusébio a consagração de bispo ariano ao godo Vúlfilas em 341, tendo-o incumbido da pregação deste culto cristão no seu povo. Este foi o ponto de partida da expansão do arianismo nas diversas tribos germânicas e mais tarde a religião oficial dos estados bárbaros. Teodorico, o Grande, rei dos ostrogodos de 489 a 526, pretendeu mesmo criar uma frente de todas as tribos germânicas de confissão ariana para se opor ao cristianismo de culto romano, e fundar um reino germânico e ariano com capital em Roma. Este plano só não foi bem-sucedido devido à recusa de Clóvis, poderoso rei dos francos. E se Clóvis tivesse adoptado o arianismo, como todas as outras tribos germânicas? Pela primeira vez esteve por um fio a tese da Divina Trindade, pedra basilar da teologia ortodoxa romana. Na Península Ibérica, o arianismo foi a religião oficial do Reino Visigodo de 456 a 587. As populações romanizadas onde predominava a ortodoxia foram duramente perseguidas, tal como os judeus, sendo este período da história peninsular caracterizado por constantes conflitos, levantamentos populares, dissidências, usurpações e regicídios, estando quase sempre presente o antagonismo entre as duas facções cristãs. Mas o rei visigodo Recaredo converteu-se ao cristianismo papal em 587, num momento em que por toda a Europa Ocidental o corpo doutrinário já designado por católico ia ganhando terreno. Os anos que se seguiram foram de perseguição aos arianos e aos judeus, tendo havido conversões em massa, designadamente do clero ariano. Sucederam-se, no entanto, contínuas revoltas de nobres e bispos arianos, mas sem qualquer sucesso. A paz social e religiosa só voltou à Península a partir de 711 quando berberes e árabes a invadiram, seguindo-se vários séculos de tolerância e de convívio religioso. Os ricos judeus e as próprias populações, cansadas de tanto sangue, terão tido um papel importante na tranquila passagem de poder dos senhores visigodos e dos seus bispos para os novos senhores muçulmanos. DONATO Diocleciano1, o imperador romano que precedeu Constantino, perseguiu os cristãos e ordenou a confiscação dos livros sagrados. Esta ordem ¹ Diocleciano dividiu o Império em quatro partes, cada uma governada por um imperador. Diocleciano ficou com o Egipto e a Ásia; Maximiliano, com a Grécia, a Ilíria (hoje parte da Itália do Norte), a Panónia (Áustria), a Dalmácia (Jugoslávia), a MacedóWnia e a Trácia (hoje a Bulgária e a Roménia Oriental); Galério, com a Itália e o Norte de Africa; e Constâncio Cloro, pai de Constantino, o Grande, com a Gália, a Britânia e a Ibéria. Quando Galério morreu, sucedeu-lhe Maxêncio.
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não chegou a ser plenamente concretizada, mas, no Norte de África, parte dos bispos resolveu obedecer. Donato, bispo de Cartago (falecido em 355), opôs-se à entrega, entrando em conflito aberto com os seus colegas. Poucos anos depois, o cristianismo passou a ser a religião oficial do Império, mas Donato e os seus seguidores não mais voltaram ao seio da Igreja Romana, negando a validade dos sacramentos ministrados pelos «traidores» e insurgindo-se contra a corrupção reinante entre os prelados de obediência romana. A cristandade no Norte de África ficou assim dividida entre as duas facções, tendo os seguidores de Donato sido condenados em vários concílios. Em 411 reuniu-se um concílio em Cartago que levou vários bispos donatistas à reconversão. Donato era também acusado de instigar os agricultores berberes contra os ricos colonos romanos. O donatismo só desapareceu definitivamente, tal como o cristianismo romano, com a islamização do Norte de África no século VIII.
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CAPÍTULO VI
A CRISTANDADE NO TEMPO DE CONSTANTINO
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século IV assinala uma importante viragem na História, quando, em 312, o imperador Constantino optou decididamente pelo cristianismo. Encontrava-se a cristandade dividida em incontáveis confissões, não devendo então ultrapassar um quarto da população do império, a maior parte concentrada nas províncias mais povoadas e desenvolvidas do Oriente. O Norte de África era dominado pelos donatistas, com excepção do Egipto, onde predominava o arianismo, além de outras correntes como o sabelismo. Os restantes cristãos de Alexandria estavam divididos, primeiro pelo cisma de Saturnino e, pouco depois, pelo de Melécio. O arianismo, que teve a sua origem naquela cidade, espalhara-se por todo o império, assim como o montanismo. Este último predominava no Próximo Oriente, actual Turquia, e estendia-se à Ásia, onde o maniqueísmo imperava. O maniqueísmo, de que já falámos, não se pode considerar uma corrente de pensamento cristão, muito embora considere Jesus um dos enviados de Deus depois de Buda, de Zaratustra e antes do próprio Manes. Mais tarde, o islamismo iria também integrar Jesus na sua mitologia. O maniqueísmo penetrou nas províncias europeias e africanas do império em finais do século III e foi durante o século IV um dos mais sérios concorrentes do cristianismo.
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E referimos apenas os cultos cristãos mais expressivos, isto é, aqueles que se tinham enraizado nas populações, já que muitos outros, de duração efémera, se limitavam a pequenas comunidades seguidoras de um iluminado, ou restritos a meios eruditos. E era nas cidades, em particular nas grandes metrópoles, que se concentravam as comunidades cristãs, tal como as judaicas, cada vez mais numerosas, permanecendo o mundo rural predominantemente pagão. CONSTANTINO, O GRANDE Constantino (285-337) era oriundo da mais alta nobreza imperial, e seguidor do culto monoteísta do Sol, em voga entre os romanos mais distintos. Quando tinha 21 anos herdou de seu pai, Constâncio, o comando dos exércitos da Gália, actual França. No ano seguinte, em 306, as tropas estacionadas na Bretanha, a Noroeste da Gália. proclamaram-no imperador, mas só quando morreu o imperador Galério, em 312, Constantino entendeu ter chegado a sua hora. Levou então o seu exército à conquista da capital, onde o esperava o exército bem mais numeroso de Maxêncio. A batalha travou-se na Ponte Mílvio, já em Roma, e na incerteza do desfecho, Constantino evocou o Deus dos cristãos, já que em sonhos lhe teria aparecido uma cruz luminosa cercada dos dizeres: «Com este sinal vencerás». Maxêncio morreu no combate e o seu exército foi desbaratado. Constantino acreditou que tão inesperado sucesso se deveu à intervenção daquela divindade, denotando a superioridade da religião cristã. A partir de então, os estandartes das suas tropas passaram a ostentar uma cruz, e o jovem imperador tomou decididamente o partido do cristianismo. Senhor de todas as províncias ocidentais, cedo levou a cabo uma série de medidas favorecendo abertamente aquele culto. Em 313, e de acordo com Licínio, seu cunhado, que governava as províncias do Oriente, promulgou o Édito de Milão, em que era reconhecida ao cristianismo a mesma legitimidade das restantes religiões e devolvidos aos cristãos os bens confiscados. No ano seguinte convocou um concílio em Arles, a noroeste de Marselha, onde pela primeira vez se reuniram bispos de todas as províncias ocidentais, tendo como objectivo solucionar o conflito com Donato. Como, porém, este não se submetesse, Constantino enviou uma força militar ao Norte de África, igualmente infrutífera. Outras medidas se seguiram como a isenção de impostos aos clérigos, plenos poderes judiciais aos bispos e a oferta ao bispo de Roma do Palácio de Latrão, que viria a ser a residência dos papas até 1304. Mandou edificar numerosos templos cristãos por todas as províncias, tais como a Basílica de Latrão e a Igreja de S. Pedro em Roma, a Basílica do Santo Sepulcro em Je-
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rusalém e a Igreja da Natividade em Belém. Por influência dos bispos seus amigos proibiu a cruxificação, a luta de gladiadores e consagrou o domingo feriado nacional em todo o império. E como Licínio não se mostrasse tão compreensivo para com os cristãos, empreendeu contra ele uma guerra de cariz religioso, derrotando-o (324) e mandando-o estrangular. Senhor absoluto dos «Dois Impérios», apercebeu-se de que o cristianismo poderia ser o elo unificador de todos os povos submetidos, e ele o divino protector da cristandade, auto-intitulando-se o bispo supremo. Nesta qualidade interveio na nomeação de cargos episcopais, convocou sínodos e concílios, cujos trabalhos dirigiu pessoalmente, e decretou leis favorecendo o cristianismo. Entretanto não hostilizava os cultos politeístas, mantendo a dignidade de Pontifex Maximus do culto pagão do Estado Romano, função inerente ao semideus imperador. Foram duas as resoluções de maior repercussão histórica tomadas por Constantino: a convocação do primeiro concílio ecuménico e a transferência da corte romana para Constantinopla, que se tornou a capital do Império. O primeiro concílio ecuménico (geral ou universal) realizou-se em 325 na cidade helenizada de Niceia, actual Iznik, próxima do mar da Mármara na actual Turquia. Pela primeira vez reuniram-se os bispos de toda a cristandade, à volta de 300, embora apenas 5 fossem provenientes do Ocidente. O próprio bispo de Roma não compareceu. O imperador presidiu à assembleia num trono de oiro, proferindo o discurso de abertura em que definiu os grandes objectivos. Eram estes a resolução das controvérsias teológicas que opunham os mais elevados hierarcas cristãos e dilaceravam a cristandade, a resolução do contencioso com Ário e a elaboração de um código de conduta para os sacerdotes. Em relação ao primeiro ponto havia que definir de uma vez por todas as questões trinitária e cristológica. Após o aceso debate em que o eloquente Ário quase convenceu a assembleia da bondade das suas ideias, acabou derrotado em toda a linha, considerado herege, excomungado e expulso do concílio com mais dezassete bispos seus partidários. O imperador mandou difundir por toda a cristandade uma circular informando que Ário e os seus sequazes eram os maiores inimigos da verdadeira Fé, e por isso haviam sido banidos da Igreja Cristã, ordenando que os seus escritos fossem queimados. Vingou portanto, no Concílio de Niceia, a tese de que as três pessoas da Trindade têm a mesma essência divina e consubstanciam o mesmo Deus, logo Jesus é simultaneamente Deus e homem. Mas a relação entre as três pessoas da Trindade não ficou completamente esclarecida e iria ser
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futuramente pomo de discórdia, como adiante veremos. Quanto ao código procurou-se moralizar a vida dos sacerdotes em 20 cânones (kanon significa regra em grego), definindo hierarquias, direitos e deveres. Um dos preceitos aprovados permitia o matrimónio dos sacerdotes, mas obrigava-os a abandonar a poligamia e o concubinato. E assim, ao fim de um mês de debates, terminou o concílio, sem dúvida o mais importante de todos os concílios ecuménicos da história do cristianismo, não sem que antes o imperador tenha oferecido aos participantes um lauto banquete. Os representantes de Deus mal queriam acreditar... A segunda grande realização de Constantino foi a edificação de uma nova cidade junto da velha e decrépita Bizâncio, e a que daria o nome de Constantinopla. Viria a ser a capital dos dois impérios mais duradoiros da História, o bizantino e o turco. Como se sabe, os turcos otomanos tomaram a cidade em 1453, deram-lhe o nome de Istambul e fizeram dela a sua capital. Diz-se que Constantino, desgostoso com o ambiente pagão de Roma, decidiu mudar-se com a corte imperial para Constantinopla, o que aconteceu em 330. Apoiado pela Igreja, o seu império tomou a forma de uma monarquia de direito divino. E foi, assim, que o cristianismo, num curtíssimo espaço de tempo, foi confrontado com uma situação qualitativamente nova. De perseguidos e interditos passaram os cristãos a ter o estatuto de privilegiados, de escolhidos. Era o emergir de uma nova era para o cristianismo. Mas outra alteração também de relevante importância irá ocorrer. A cidade de Pedro e Paulo deixava de ser a «capital do mundo» e, logo, o centro espiritual do cristianismo. E terminamos a narrativa necessariamente muito sumária da história desta personagem com o paradoxo dos paradoxos. Constantino, poucos anos depois do Concílio de Niceia, toma o partido de Ário na sua disputa com o patriarca de Alexandria, Anastácio, desterrando este para Tréveros, na Alemanha, junto à fronteira com o Luxemburgo. Adopta então o arianismo, faz-se baptizar pelo bispo ariano Eusébio de Nicomedia e passa usar, até à sua morte, os trajes brancos dos sacerdotes arianos. Muito se tem discutido sobre a opção cristã de Constantino, verdadeira conversão ou apenas habilidade política. A tese oficial católica pode resumir-se assim: Constantino terá sido iluminado por Deus para levar a cabo tão importantes reformas, mas nunca terá sido bafejado pela verdadeira Fé, reveladora do mistério da redenção, o fundamento do cristianismo. Por esta razão, nunca foi santificado pela Igreja Católica, ao contrário da Igreja Ortodoxa, que o canonizou e o considera um santo de primeira grandeza.
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Sem entrarmos nessa discussão, uma coisa podemos afirmar: cristão nunca foi, pois a História conta-nos que o homem foi sempre um déspota sádico e sem escrúpulos, de feroz e desnecessária crueldade sobre os inimigos vencidos, nunca hesitando em mandar assassinar todos os que imaginava poderem fazer-lhe frente.
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O CRISTIANISMO BIZANTINO
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onstantino deixou o seu vasto Império aos seus três filhos e a cinco sobrinhos. Mas, apesar da esmerada educação cristã que lhes havia sido ministrada, estas criaturas herdaram o lado menos bom do pai, e foram-se assassinando umas às outras até restar apenas Constâncio. O primogénito, Constantino II, ficara com a Gália, a Hispânia e a Grã-Bretanha, mas foi assassinado, poucos anos depois. A Constante, o mais novo dos irmãos, coube a Itália e o Norte de África, a que vieram juntar-se a Grécia e a Macedónia, após ter mandado assassinar os primos, a quem aqueles territórios tinham sido destinados, ficando igualmente com as províncias do seu falecido irmão mais velho. Mas de pouco lhe valeu esta ânsia de poder, já que o mano do meio, Constâncio, lhe ditou a mesma triste sorte. Este, que herdara as províncias do Oriente e o Egipto, e já anexara pequenas parcelas que o pai deixara a outros primos, todos eles assassinados, ficou assim senhor do império inteiro. Constâncio fixou a capital definitivamente em Constantinopla, que viria a suplantar Roma em luxo e esplendor, tornando-se o principal centro religioso cristão. Ao contrário do pai, sempre tolerante relativamente aos cultos pagãos, cedo se mostrou um implacável inimigo dos idólatras e um intransigente defensor da Fé. No seu reinado, até 361, as resoluções dos concílios eram transformadas em leis do Império, e
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ainda em vida do seu irmão Constante, em 346, ordenaram ambos o encerramento de todos os templos pagãos, desencadeando uma forte reacção dos cultores da antiga tradição. Mas o seu sucessor, Juliano, o Apóstata (renegado), fez voltar tudo para trás. Dediquemos algumas linhas a este personagem. Em 337, Constâncio mandara massacrar todos os parentes colaterais da casa imperial, poupando apenas dois primos de tenra idade, Juliano e Galo, como reserva dinástica, uma vez que não tinha descendentes directos. As duas crianças ficaram ao cuidado de bispos para receberem uma educação cristã. Mais tarde, em 354, são condenados à morte sob a acusação de conspirarem contra o imperador, mas a imperatriz Eugénia escondeu Juliano, facultando-lhe a fuga para Atenas. Juliano fingia-se cristão, chegando a ser ordenado leitor, tais os seus conhecimentos das Escrituras Sagradas, embora se sentisse muito mais atraído pelos clássicos gregos e pela mitologia politeísta que estudava secretamente. Além disso, odiava Constâncio, o assassino do irmão e de todos os seus familiares. Pouco depois da morte de Constante, Constâncio, ou por influência da esposa ou por acreditar na falsa beatice do primo, nomeou-o césar da Gália, Espanha e Bretanha. Dotado de grandes qualidades como administrador e chefe militar, Juliano reorganizou o exército e pacificou toda a região, acumulando um vasto poder. Desafiando claramente o imperador, devolveu a todos a liberdade de culto. Era agora não só poderoso como desfrutava de imensa popularidade quer no exército, constituído maioritariamente por bárbaros pagãos, quer nas populações. Constâncio não demorou em declarar-lhe guerra, mas os dois exércitos não chegaram a confrontar-se, pois o imperador morreu entretanto (361), e Juliano foi proclamado imperador pelos dois exércitos. No seu curto reinado, pois foi assassinado, dois anos depois, com 31 anos, são retirados os privilégios aos clérigos e são novamente autorizados os velhos cultos, e o paganismo voltou a florescer. Mas não por muito tempo, já que o seu sucessor, Joviano, assassinado um ano depois, levantou as proibições e restrições que pesavam sobre os cristãos, tendo os seus sucessores ido bem mais longe. Em 380, Graciano na parte ocidental do império e Teodósio na oriental decretaram que o cristianismo passaria a ser a religião exclusiva do império. Um édito imperial obrigava a conversão de todos os súbditos ao cristianismo professado pelos patriarcas Dâmaso de Roma, e Alexandre de Constantinopla. Como se sabe, havia muitos outros cultos cristãos. Em 381, o paganismo foi considerado crime e, em 382, o Senado Romano foi obrigado a renegar os deuses. Em 392 ainda houve um imperador pagão
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em Roma, Eugénio, apoiado pela aristocracia, mas que foi esmagado, dois anos depois, pelo cristão Teodósio. E assim, no limiar do século V o paganismo agonizava em todo o império. Agonizava também o Império do Ocidente, incapaz de fazer frente à cada vez mais aguerrida pressão dos bárbaros. E num mundo onde a incerteza dominava e os velhos deuses já nada ajudavam, a adesão ao cristianismo massificou-se. Convicção sincera? Medo? Oportunismo? Sem dúvida de tudo um pouco, já que agora não ser cristão era um crime. Já não se aderia ao cristianismo por livre opção, assumindo riscos e dissabores, pois agora a devoção ao novo culto representava uma mudança de estatuto, abrindo as portas à política, ao comércio, às boas graças de um poder totalitário em que se misturavam cada vez mais a Igreja e o Estado. Como seria já tão diferente este cristianismo opressivo do primitivo cristianismo humanista e tolerante. Mas se, no Ocidente, o Império Romano se ia desmoronando, no Oriente manter-se-ia por mais dez séculos, passando a designar-se Império Bizantino ou Bizâncio. Na verdade, há muito que se acentuava a tendência para a separação das duas partes, que a mudança da capital tanto veio a agravar. Houve imperadores, um de cada lado, guerras entre os dois, e também constantes divergências entre os patriarcas ou bispos de Roma e os de Constantinopla. Em 467 deixou definitivamente de haver imperador em Roma, tendo o patriarca da cidade vindo de certo modo a substituí-lo. Mas por muito que se ufanasse de ser o sucessor de Pedro, não podia rivalizar com o seu colega de Constantinopla, protegido de um imperador poderoso, cujos domínios iam da Grécia ao Egipto, as regiões mais populosas, ricas, seguras, cultas e cristianizadas da época, com o grego como língua unificadora. E porque emprego o termo de bispo ou patriarca de Roma e não o de papa? Cumpre fazer o seguinte esclarecimento, em abono da verdade histórica. A designação de papa (pai) surgiu no século III como testemunho de respeito e afeição dos cristãos pelos seus bispos, eleitos pelas respectivas comunidades. A dignidade de patriarca estava reservada aos bispos das principais metrópoles, como Roma, Cartago, Alexandria e mais tarde Constantinopla. Só no Concílio de Toledo em 400, onde estiveram presentes 19 bispos da Hispânia para condenar Prisciliano, surge pela primeira vez a designação de papa referindo-se expressamente ao bispo de Roma. No entanto só em finais do século VIII se tornou corrente a designação de papa ou sumo pontífice para o bispo de Roma, a grande metrópole do Ocidente. Os bispos de Roma eram eleitos como os outros, até que, com o aumento do número de cristãos, passou a eleição a ser efectuada pelos clérigos. Em 555, grande parte da Itália foi anexada ao Império Bizantino, vigorando
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a partir de então a homologação do bispo eleito pelo imperador bizantino, tal como acontecia já aos bispos do Oriente. Não é portanto correcta a lista de papas da historiografia católica começando por S. Pedro, em que os papas são apresentados como a suprema autoridade do mundo cristão. Na verdade, só em finais do século VIII o papa assume de forma clara esta liderança, depois de quatro séculos de relativa subalternidade relativamente aos poderosos patriarcas de Constantinopla. Este longo período da história do cristianismo é marcado por grande influência oriental, grega e bizantina, e reveste-se de particular importância, porque foi nele que se estabeleceram os fundamentos doutrinários que se mantiveram até à actualidade quer no culto romano ou católico quer no culto ortodoxo. Foi um período de acesas discussões sobre a natureza da divindade e da identidade de Jesus, do estabelecimento dos dogmas e dos sacramentos, que nem o Concílio de Niceia nem os outros todos que se seguiram resolveram cabalmente. E para se ter uma ideia da importância no primeiro milénio do cristianismo oriental, vasta mancha geográfica onde hoje só restam ténues vestígios, diremos que, dos 21 concílios ecuménicos de que reza a História, os oito primeiros reuniram-se nestas paragens, como veremos a seguir. Os concílios são assembleias de prelados e destinam-se a resolver questões de fé, moral e disciplina. Podem ser gerais ou ecuménicos, envolvendo estes toda a cristandade, ou nacionais e mesmo provinciais. Os sínodos são assembleias diocesanas, mas houve sínodos bem mais importantes do que concílios, pelas temáticas tratadas e decisões tomadas e suas consequências. Vejamos onde se localizaram estes primeiros oito concílios ecuménicos e quais os principais temas tratados. Niceia (325) – condenou o arianismo, elaborou o cânone de comportamento dos sacerdotes e definiu a natureza da Divina Trindade. Constantinopla (381) – foi de novo discutido o arianismo, que dividia a cristandade, sendo esta corrente uma vez mais considerada herética. Éfeso, na Anatólia (431) – condenou Nestório e Pelágio. Calcedónia, no Bósforo (451) – condenou Eutiquiano e os monofisitas. Constantinopla (563) – condenou a doutrina nestoriana. Constantinopla (681) – condenou o monoteletismo. Niceia (787) – condenou os iconoclastas, seita bizantina que considerava idólatras os adoradores de ídolos e imagens e que assaltava igrejas e os destruíam. Constantinopla (869-70) – depôs o usurpador Fócio, que havia substituído Inácio no patriarcado de Constantinopla.
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As temáticas destes concílios dão uma clara ideia das divisões reinantes no mundo cristão. No entanto, muitas dezenas de outros concílios não ecuménicos se realizaram, como o já citado de Toledo, quase todos para resolver problemas de dissidências, indisciplinas, maus costumes, heresias, condenar reis e príncipes, destituir prelados e por aí fora. Depois do último concílio oriental (870) seguiu-se um período de dois séculos e meio sem concílios, período que correspondeu a uma acalmia teológica. As diversas correntes que se opunham à doutrina dominante, sendo consideradas heréticas, tinham sido praticamente erradicadas do espaço europeu, persistindo apenas em regiões longínquas, como a Pérsia, a Índia e a Abissínia e que o domínio islâmico tinha tornado incontactáveis. A doutrina católica estava portanto implantada em quase toda a cristandade. O termo católico, que em grego significa universal ou geral, é utilizado pela primeira vez no século II, e vai ganhando um sentido mais vasto de único culto verdadeiro, em oposição a outras correntes teológicas, consideradas heréticas. E vale a pena recordar que, antes da expansão árabe e islâmica do século VIII, o cristianismo, nas suas diversas variantes, estendia-se da Península Ibérica à China, da Escandinávia à Abissínia, extensão planetária nunca antes abrangida por qualquer outro movimento religioso e nunca mais suplantada. Uma questão em aberto por ser omissa nos Evangelhos era a datação do nascimento de Jesus, tão minuciosamente descrita naqueles textos. Em tempos em que muitos santos já tinham dia de celebração, coube ao bispo de Roma, Júlio I (337-352), fixar em 25 de Dezembro o dia do nascimento do Menino, acabando de vez com a controvérsia alimentada pelas várias propostas de magos, videntes, profetas e astrólogos. Aos poucos, esta data foi sendo aceite pelas comunidades cristãs ocidentais, mantendo-se contudo até aos dias de hoje o 7 de Janeiro nas orientais, de acordo com tradições já existentes. Mas a data não foi escolhida ao acaso. O dia 25 de Dezembro na Roma pré-cristã era de grandes festejos, o Natale Solis. Era o primeiro dia em que a luz do Sol começava a ganhar terreno às trevas da noite, o início de um novo ano (com as correcções do calendário, o solstício de Inverno é em 21 de Dezembro). Portanto para o sagaz Júlio I a festa manteve-se naquele mesmo dia, mas agora para glorificar a vinda à Terra do Deus-Homem. Afinal, Jesus não era a luz, o Sol que nos ilumina? Quanto ao ano em que Jesus nasceu, e que dá início à era actual, é opinião geral dos estudiosos que terá ocorrido alguns anos antes. A única certeza que temos é que o terrível Herodes I, o Grande, o da matança dos inocentes, faleceu em Jerusalém quatro anos antes do ano primeiro.
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ST.º AGOSTINHO A figura mais notável desta época foi o númida Agostinho de Hipona. Agostinho (St.º Agostinho, 354-430) foi o fundador da teologia dogmática, que procurou irmanar o platonismo com o dogmatismo cristão e conciliar a fé com a inteligência. A imensa obra literária desta personagem extraordinária, a mais estudada da Antiguidade Cristã e da época medieval, teve influência determinante na edificação do corpo doutrinário da corrente teológica que acabará vencedora. Só viria a ter um teólogo equivalente em Tomás de Aquino (1226-1274). Nasceu na cidade de Tagaste, perto de Hipona, filho de pai pagão e mãe cristã (St.ª Mónica). Durante a juventude foi entusiasta seguidor das ideias de Manes. Depois dedicou-se ao estudo da filosofia grega, tendo leccionado Retórica em Cartago. Viveu em Roma e Milão, conhecendo nesta última cidade o bispo Ambrósio, que o fez abandonar o maniqueísmo e o baptizou (387), dedicando-se a partir de então à teorização teológica. As suas ideias eram aparentemente simples. Defendia o primado da razão e da lógica, dons humanos doados por Deus, mas, quando estes dons se mostravam insuficientes, surgia o dogma, verdade revelada, intangível para os humanos. E em complemento desta tese desenvolveu o conceito de “graça” ou de “estado de graça”, que tanta polémica iria provocar. A graça seria um dom que Deus oferecia aos humanos para os conduzir à salvação eterna. E aos humanos competia encontrar a graça através da fé, como a ele próprio acontecera, pois tinha tido uma vida impura antes de a alcançar. E o baptismo seria o sacramento indispensável para se atingir o estado de graça. Compreende-se o confronto entre os defensores desta concepção e os do livre-arbítrio. Agostinho enfrentou energicamente as outras correntes de pensamento cristão, o donatismo, o maniqueísmo, o nestorianismo e em particular o pelagianismo. Acabou por defender que a violência seria um serviço de Deus, se usada quando necessário para levar aos caminhos da verdade infiéis e hereges. Tal proposição passou a ter a seguinte forma jurídica: «Os hereges devem ser coagidos à sua própria salvação, mesmo contra a sua vontade», o que veio a servir de fundamento não só à Inquisição como também a Lutero, Calvino e seus seguidores, nas perseguições, julgamentos e condenações que empreenderam contra os seus hereges. Regressado à sua terra natal, foi nos últimos 34 anos da sua vida bispo da diocese de Hipona, colega do bispo donatista da mesma cidade. E não deixa de ser curioso verificar como, quinze séculos depois, cristãos dos diversos cultos consideravam os negros e os índios destituídos de alma, ignorando a cor da pele do principal obreiro do seu próprio culto.
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A Numídia estendia-se desde Cartago até à Mauritânia. Hipona era uma cidade importante no Mediterrâneo, hoje em ruínas, junto de Annaba, na actual fronteira entre a Argélia e a Tunísia. Éfeso foi um importante centro comercial e religioso na antiga Grécia. Ficava na Jónia, na costa do mar Egeu. O seu templo de Diana era uma das sete antigas maravilhas do mundo. Paulo fundou nesta cidade uma das primeiras grandes comunidades cristãs. Foi em Éfeso que o apóstolo João Evangelista escreveu o seu Evangelho. Hoje apenas restam ruínas.
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CAPÍTULO VIII
NOVAS HERESIAS
A
bordemos agora, sucintamente, os principais movimentos teológicos desta fase do cristianismo bizantino.
JOVINIANO Monge italiano que em finais do século IV e princípios do seguinte pregou em Roma e Milão. Foi dos espíritos mais abertos e esclarecidos do seu tempo. Insurgia-se contra as tendências místicas do clero e da vida monástica, opondo-se a jejuns, ao ascetismo, ao celibato e à virgindade. Negava a virgindade de Maria depois da concepção. Chegou a ter muitos seguidores, mas acabou excomungado pelo bispo de Roma, Sírico, e depois pelo bispo Ambrósio, de Milão, para onde se refugiara. O imperador Teodósio desterrou-o em 390. PRISCILIANO O egípcio Marcos, natural de Mênfis, veio para a Península Ibérica, onde introduziu o dualismo maniqueísta e o panteísmo. Teve um continuador em Prisciliano (?-385), hispânico rico e eloquente, que aderiu às suas concepções e que, sendo leigo, dedicou a vida à sua propagação, conquistando muitos adeptos, designadamente entre sacerdotes e bispos. Pôs
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seriamente em causa a ainda frágil autoridade do cristianismo oficial na Península. Foi excomungado, e os seus seguidores, considerados heréticos. O imperador romano Graciano ordenou a sua prisão e julgamento num concílio em Bordéus, mas recusou-se a ser julgado pelos bispos e não compareceu, acabando por ser preso e decapitado com mais seis companheiros na cidade de Tréveros. Os seus restos mortais foram triunfalmente levados até à Galiza, havendo quem defenda que os sepulcros da Catedral de Compostela lhes pertencem. Estes pormenores são aqui realçados porque nos dão uma ideia da popularidade e da influência quer nos meios eclesiásticos quer junto das autoridades deste que foi, sem dúvida, uma das figuras mais proeminentes do seu tempo. Imagine-se a epopeia que não terá sido a transladação de sete corpos mutilados de heréticos da Alemanha até à Galiza nos finais do século IV, o apoio logístico facultado e a permissividade com que o cortejo fúnebre atravessou tão vasta área onde vigorava um outro culto religioso obrigatório. Sabe-se que figuras cimeiras da cristandade, e mais tarde canonizadas, como S. Martinho, bispo de Tours, e St.º Ambrósio, bispo de Milão, intercederam no sentido de ser poupada a vida de Prisciliano. Considerado em toda a Espanha como um mártir, verificou-se depois da sua morte uma grande expansão das suas teorias e práticas, que prevaleceriam por mais três séculos. Do ponto de vista doutrinário, o priscilianismo negava a Divina Trindade, a criação do mundo e a ressurreição, e considerava a alma uma parcela de Deus. Os seus seguidores eram ascetas, vegetarianos, contrários ao casamento e admitiam o fatalismo astrológico e a prática de rituais mágicos. Esta doutrina difundiu-se nos povos germânicos, entre os quais os suevos. Estes penetraram na Península Ibérica antes dos visigodos, tendo fundado um reino na zona da actual Galiza e Minho que perdurou de 409 a 585, sendo então absorvido pelo Reino Visigótico. O culto cristão, segundo os ensinamentos de Prisciliano, predominou entre os suevos e os povos por eles submetidos. Vários concílios foram convocados para condenar o priscilianismo: Saragoça (380), Toledo (400) e Braga (561). Recorde-se que de 456 a 587 o arianismo era a religião de Estado dos Visigodos. Só após o Concílio de Braga, que reuniu grande parte dos bispos hispânicos, e que foi convocado para pôr termo a esta heresia, se tomaram medidas eficazes e concertadas, perseguições, execuções e conversões coercivas, mas só nos finais do século VI o priscilianismo foi erradicado do seu derradeiro reduto, a Galiza.
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PELÁGIO Pelágio (360-420), nascido na Grã-Bretanha, foi um monge austero de grande cultura e muito viajado. Esteve em Roma, Cartago e Jerusalém e relacionou-se com os mais conceituados príncipes da Igreja, como S. Jerónimo e St.º Agostinho. Impressionado com a libertinagem reinante nos meios eclesiásticos, desenvolveu a ideia de que tal estado de coisas provinha da fácil absolvição dos pecados pela confissão, defendendo que a salvação do homem dependia do seu comportamento e não da satisfação dos sacramentos. O desenvolvimento deste ponto de vista levou-o à elaboração de uma inovadora teoria teológica e moral que não podemos deixar de considerar revolucionária para o seu tempo. Deus fez o homem com capacidade para distinguir o bem do mal, independentemente de conhecer os mandamentos ou ter vivido antes ou depois da revelação de Jesus. Portanto, Deus dará a sua graça a quem pratique o bem, mesmo que não cumpra rituais, sacramentos ou credos. Negava assim três dos fundamentos do cristianismo oficial – que todos somos intrinsecamente maus devido ao pecado original, a necessidade do estado de graça conferido por Deus, e o Juízo Final. Os seus seguidores, entre os quais o seu mais próximo, Zózimo, foram perseguidos, banidos e os seus bens confiscados, não tendo o pelagianismo originado uma fracção no mundo cristão como as anteriores dissidências. No entanto, as suas proposições nunca mais deixaram de embaraçar os teorizadores quer do seu tempo, como St.º Agostinho, seu grande opositor e acusador, quer de tempos posteriores. A filosofia de Kant, de Hegel e de outros pensadores teístas retomam no essencial as ideias «racionalistas» de Pelágio. E não deixa de ser curioso verificar como os movimentos religiosos surgidos dez séculos depois, ao afastarem-se do culto católico, não evoluíram para concepções humanistas e universalistas, a exemplo de Pelágio, mas regrediram para a irracionalidade bíblica, com o seu dualismo primitivo, o pecado original e a redenção dos mortos. Pelágio, acusado de herético pelo Sínodo de Dióspolis (415), quando se encontrava em Jerusalém, viu as suas teorias serem consideradas heréticas pelo Sínodo de Cartago (417), que reuniu 200 bispos vindos de todo o mundo cristão, designadamente da Ibéria e de África, e, finalmente, pelo Concílio Ecuménico de Éfeso em 431. Conseguiu fugir para a Palestina, onde morreu, anos depois. NESTÓRIO Nestório nasceu na Síria (380-451), foi monge em Antioquia e patriarca de Constantinopla. Começou por combater violentamente os arianos, virando-se depois contra o culto dominante, opondo-se aos diversos acres-
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centos que iam sendo incorporados na doutrina – os sacramentos, a adoração de imagens, a divinização de Maria, o purgatório. Mas a principal divergência radicava na velha polémica acerca da essência de Jesus. Nestório defendia que Jesus era simultaneamente humano e divino, comportando duas naturezas e duas pessoas distintas. Maria seria apenas a mãe da pessoa humana de Jesus, não podendo portanto ser a mãe de Deus. Em 430, o bispo de Roma toma a iniciativa de convocar um sínodo em que Nestório foi excomungado, o que não teve qualquer efeito prático, denotando a pouca autoridade do bispo de Roma. Nestório, cada vez com mais adeptos e o apoio do imperador Teodósio II que o havia nomeado patriarca de Constantinopla, representava uma grave rotura com as concepções cristológicas e trinitárias ortodoxas. Foi então necessário convocar um concílio para pôr termo à polémica. Este realizou-se em Éfeso, na Grécia, em 431. Nestório não compareceu nos primeiros dias, e os 200 bispos presentes, perante a eloquente argumentação de Cirilo, patriarca de Alexandria, subscreveram a consagração da entidade divina de Jesus como uma das três pessoas da Santíssima Trindade e de sua mãe como Mãe de Deus. Seguiu-se a confirmação da excomunhão do recalcitrante, sendo decretados hereges os seus seguidores. Dias depois, o concílio foi invadido por 43 bispos vindos de Antioquia e adeptos de Nestório, gerando-se a maior confusão. O imperador viu-se obrigado a prender os dois chefes de fila, Cirilo e Nestório, pondo fim à contenda e aceitando a deposição de Nestório e o seu retiro para um mosteiro. Mas era tal a influência do herege que o imperador, instigado por Cirilo, acabou por o desterrar para a Líbia, onde reiniciou a sua pregação em terras de Ásia de e África. Muitos prelados e clérigos mantiveram-se fiéis às teses nestorianas, não obedecendo aos bispos de Roma, Constantinopla e Alexandria, e por mais de um século a cristandade dividiu-se entre os dois cultos. Em 563 foi convocado novo concílio ecuménico em Constantinopla, e o nestorianismo foi de novo considerado herético e, como os tempos já eram outros, não houve contemplações para com os desviados, que se extinguiram. Isto na Europa, pois na Ásia os conceitos de Nestório alastraram, ao ponto de os bispos da Pérsia se reunirem no concílio de Selêucia, nas margens do Tigre, perto de Bagdad, em 498, decidindo criar uma igreja independente, nomeando um patriarca. Com as conquistas árabes no século VIII, o patriarca instalou-se em Bagdad, capital do califado, obtendo as boas graças dos califas. Seguiu-se um período de grande expansão do nestorianismo, que chegou à China, à Índia e à Tartária. Foi erigida na China uma estátua ao patriarca Nestório, hoje no Metropolitan de Nova Iorque. Quando os portugueses ocuparam Goa, nos princípios do século XVI, encontraram cristãos desviados da verdadeira Fé, que os jesuítas se encarregaram de converter.
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CAPÍTULO VIII
E o cristianismo nestoriano conviveu pacificamente com o islamismo durante séculos, até que o califado, nos finais do século XII, foi subjugado pelos infiéis mongóis e chacinada a população de Bagdad. Mais tarde, o cã Tamerlão (1336-1405), já islamizado e senhor de um vasto império que ia do Mediterrâneo à Índia, receoso de ter cristãos nos seus domínios, perseguiu-os implacavelmente. A Igreja Nestoriana conta ainda hoje com cerca de 80 000 seguidores no Médio Oriente, Índia e América. EUTIQUIANO Contemporâneo de Nestório e seu grande opositor, Eutiquiano (378-454), superior de um convento em Constantinopla, defendia que Jesus apenas tinha natureza divina, ou seja, uma só pessoa, e que a sua aparência humana não passou de uma ilusão através da qual Deus comunicou com os humanos. Como se vê, é uma tese oposta à de Nestório, mas que também se afastava da tese da Santíssima Trindade. Este importante problema, afinal, não estava solucionado. Foi convocado novo concílio, desta vez em Calcedónia, em 451, que reuniu 600 bispos. A polémica foi acesa e tumultuosa, chegando Eutiquiano a excomungar o bispo de Roma ausente. Acabou por ser ele próprio excomungado, e as suas ideias consideradas heréticas. Mas, tal como aconteceu com o nestorianismo, a sua doutrina, também chamada monofisismo (uma só natureza), cativou muitos adeptos no Oriente, em particular na Síria e no delta do Nilo, de onde irradiou para o Alto Egipto e Abissínia. Tornou-se o culto cristão mais difundido nesta área africana, dando origem à Igreja Copta, com os seus bispos e o seu patriarca sediado em Alexandria. Já antes do referido Concílio de Calcedónia havia três evangelhos monofisitas escritos em três dialectos diferentes, o que nos dá uma ideia da implantação desta doutrina antes de ser considerada herética. Na Síria eram designados por jacobitas, pois eram seguidores do bispo Jacob de Edessa, hoje, Orfa no Norte do Iraque, que para lá fugiu. A partir da conquista árabe no século VIII e com a progressiva arabização e islamização do Egipto, o monofisismo cristão perdeu terreno, e a própria língua falada pelos coptas, um misto do grego com o antigo egípcio, foi definitivamente substituída pelo árabe há 250 anos. Os coptas persistem ainda no Egipto, Sudão e Abissínia, contando com cerca de 7 milhões de fiéis. Também os jacobitas foram varridos da Síria, permanecendo ainda hoje comunidades monofisitas no Sul da Índia. O MONOTELISMO Mas o Concílio de Calcedónia (451), ao condenar o monofisismo e proclamando que em Jesus havia duas naturezas, a divina e a humana, não
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definiu com clareza quais os atributos de cada uma delas, a que chamavam vontades. Estava instalada uma nova polémica a dividir, mais uma vez, os teorizadores cristãos. Uma corrente designada por monotelismo (uma só vontade), com muitos adeptos no Oriente, defendia que às duas naturezas correspondia uma só vontade, a divina, enquanto outros entendiam que cada natureza tinha a sua própria vontade, acusando os monotelistas de serem monofisitas encapotados. Novo concílio ecuménico teve de ser convocado, realizando-se em 680-81 em Constantinopla, onde depois de grande controvérsia o monotelismo foi considerado uma heresia. Permaneceram contudo muitos recalcitrantes, e só muito mais tarde esta heresia se extinguiu no Ocidente. Persiste ainda uma considerável comunidade cristã monotelista no Líbano, com o seu patriarca em Beirute, ritos orientais próprios, mas que mantém alguma ligação com a Igreja Católica. São os maronitas, os cristãos que se aliaram a Israel e que com as suas milícias participaram na Batalha de Beirute contra os palestinianos (1982). HIPÁCIA Hipácia (370-415) era filha de um famoso matemático, físico e filósofo da escola de Alexandria. Aprendeu com o pai e suplantou-o não só nestas áreas como também se distinguiu no estudo das religiões do seu tempo, em que o cristianismo ia ganhando terreno em detrimento dos cultos pagãos. Defendia a liberdade de cada um professar a religião que entendesse, mas que as convicções religiosas não deviam limitar ou deturpar o pensamento humano na busca da verdade. A ela se deve a invenção do astrolábio, do planisfério e de um hidrómetro. Aos 30 anos, a sua fama era imensa, sendo-lhe atribuída a mais elevada dignidade da Academia de Alexandria. Mas estava traçado o fim do esplendor desta cidade, desde há séculos o principal centro de cultura helénica. Cirilo fora nomeado bispo e mais tarde patriarca da cidade, com a missão de destruir todas as instituições e manifestações não cristãs no Egipto, o que concretizou com fanática obsessão. A Biblioteca de Alexandria foi incendiada, assim como numerosas sinagogas. Os monumentos gregos da cidade foram demolidos. Os bairros judeus foram atacados, e massacrados judeus, cristãos nestorianos e seguidores de cultos egípcios antigos. Hipácia, que nunca aderiu ao cristianismo, foi condenada por herética por ensinar que os movimentos dos astros eram regidos por leis matemáticas. Sobreviveu até 415, sendo então raptada, levada para uma igreja e cruelmente mutilada. O seu corpo foi depois queimado.
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CAPÍTULO IX
OS BÁRBAROS E A CRISTANDADE
A
inda em tempos de Constantino começaram os sérios problemas fronteiriços que levariam ao desmoronamento do Império Romano do Ocidente. Depois de constantes guerras tendentes a conter a pressão dos bárbaros, foram criados estados bárbaros súbditos dos romanos. Com Teodósio, o império manteve ainda a sua unidade, mas, após a morte deste imperador em 395, já não foi mais possível suster as tribos germânicas e eslavas para lá do Reno e do Danúbio, elas próprias pressionadas pelos hunos asiáticos. Naturalmente que não cabe nestas reflexões a descrição das sucessivas migrações que ocorreram e a caótica confusão reinante neste período histórico que preencheu os séculos V e VI. Diremos apenas que uma das primeiras parcelas subtraídas ao controlo romano foi a região das actuais Sérvia e Bósnia, do que resultou a definitiva cisão pelo meio do império. E esta descontinuidade geográfica pode explicar, até certo ponto, o desenvolvimento dos dois principais cultos cristãos na Europa, o católico e o ortodoxo, e mais tarde a expansão islâmica na parte oriental. Constantinopla chegou a ser cercada pelos búlgaros em 559, mas estes foram rechaçados, e Bizâncio sobreviveu durante quase mais mil anos. Já a parte ocidental foi fragmentada em diversos reinos bárbaros. Na viragem do século V para o VI (ano 500), o mapa da Europa Ocidental tinha a seguinte configuração:
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Na Península Ibérica, o reino dos suevos estendia-se da costa da Biscaia até ao Tejo, exceptuando a nossa Estremadura, confinando-se depois à actual Galiza e Norte do Douro; o reino dos visigodos ocupava todo o resto da Península e parte do Sul da França, vindo a anexar o reino dos suevos em 585; o reino dos francos, na França, com excepção do Sul, estendia-se muito para lá do Reno; o reino dos ostrogodos ocupava o Sul Ocidental da França, a Suíça, a ex-Jugoslávia, toda a Península Itálica e a Sicília, fazendo fronteira a oriente com o Império Bizantino, que mantinha a Grécia, a Bulgária e vastas regiões na Ásia, até à Pérsia, e no Norte de África. A Roménia e a Hungria estavam na posse dos lombardos; a Grã-Bretanha, na dos anglo-saxões. O reino ostrogodo acabaria por se desintegrar sob a pressão dos lombardos, tendo estes criado um reino em todo o Norte da Itália, com capital em Pavia, em 568, enquanto o restante território italiano era anexado ao Império Bizantino pelos generais do imperador Justiniano. Pouco depois, os lombardos expulsaram os bizantinos de quase toda a península. Ora todos estes conquistadores, como já referimos, cedo adoptaram o arianismo, com excepção dos lombardos, que mantiveram o paganismo até mais tarde, e dos francos depois da conversão em 496 do célebre rei Clóvis, que se aliou ao bispo de Roma. Pode adivinhar-se a situação dramática dos bispos italianos e das populações cristãs, agora súbditas de chefes locais arianos, boçais, analfabetos e falantes de estranhas línguas germânicas, eslavas e mongólicas. As linhas que se seguem dão-nos uma ideia das vicissitudes por que Roma passou nestes dois séculos tumultuosos. A cidade foi saqueada pelos visigodos comandados por Alarico logo em 410. Os hunos, em 452, semeiam o pavor na Itália, tendo o bispo de Roma, Leão, o Grande, ido ao encontro do seu chefe, Átila, em Mântua, convencendo-o a abandonar a península. Três anos depois, foi a vez do vândalo Guerico, vindo do Norte de África, tomar Roma, saqueá-la e incendiá-la. Desta vez, o bispo apenas conseguiu que a população não fosse massacrada. Em 472, o germano Ricimer toma a cidade de assalto. Em 476 é deposto o imperador romano, que por ironia do destino tinha o mesmo nome do fundador da cidade, Rómulo. Foi o último imperador e o fim definitivo do Império Romano do Ocidente, tendo-se convencionado que aquela data marcaria o início da Idade Média. Os germanos mantiveram-se na cidade, até que o rei ostrogodo Totila a conquistou e saqueou em 546 e em 549. Três anos depois, coube ao general bizantino Narses apoderar-se da cidade, não lhe dando melhor sorte. Mas não foi por muito tempo, pois os lombardos iriam apossar-se de quase toda a Itália, que dominaram de 568 a 774. Cercaram Roma sem sucesso em 592.
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CAPÍTULO IX
Foram dois séculos de miséria extrema, de fome e de epidemias, de guerras, de carnificinas, de deslocação de populações, de povoações saqueadas e incendiadas, de ausência de uma autoridade estável, de desorganização de toda a actividade produtiva quer nos campos quer nas cidades. Não admira que a débil organização da Igreja Cristã no Ocidente, também ela dilacerada por inúmeras cisões internas e forte concorrência das Igrejas Arianas (cada estado tinha a sua própria igreja) e Donatista, desempenhasse um papel subalterno perante o Império Bizantino, rico, populoso e com relativa estabilidade política. Os bispos de Roma eram, como vimos, nomeados pelo imperador bizantino, passando depois a sê-lo pelos chefes bárbaros, senhores de Roma. Tinham contudo grande influência espiritual sobre a população cristã, sendo por isso tolerados, chegando a ser-lhes conferido o estatuto de representantes da cidade, mas pouco mais. Esta situação começou a mudar com o bispo Gregório. GREGÓRIO I, O MAGNO Gregório I, o Magno, não ficou na História só por ter sido o presumível criador do canto gregoriano. Foi bispo de Roma de 590 a 604, sem dúvida o mais inteligente e empreendedor do primeiro milénio. Administrou habilmente o património e os escassos territórios sob sua jurisdição, reorganizou os ritos litúrgicos, reformou o clero, enviou emissários aos reinos cristãos, iniciou a evangelização bem-sucedida dos anglo-saxões e dos germanos e pôs termo a um antigo cisma que opunha a Igreja de Roma à de Milão. Perante a pressão constante de invasores jutos, anglos e saxões, os romanos tinham abandonado a Grã-Bretanha em 400, acabando os bárbaros por se instalar na ilha, afastando as populações latinizadas e criando diversos reinos. Levaram os seus cultos pagãos, e a cristianização sofreu um sério retrocesso. Gregório I enviou 40 monges chefiados por Agostinho, que obteve a conversão do rei Edelberto, que baptizou (597), assim como diversos outros chefes locais. A evangelização era efectuada por equipas de monges ou missionários, que tinham como primeiro objectivo converter reis, nobres ou chefes, facilitando assim o abandono pelas populações dos seus cultos idólatras ou heréticos, o que muitas vezes originava uma feroz oposição dos sacerdotes locais. Mais tarde, estas evangelizações eram precedidas de campanhas militares, destinadas a afastar chefes e sacerdotes mais recalcitrantes ou devotos de credos cristãos heréticos. Mas voltando a Gregório I, diremos que, apesar da sua hábil diplomacia e sentido de tolerância e compreensão para com os não católicos, a verdade
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é que uma série de acontecimentos históricos lhe foram particularmente favoráveis. E Gregório, com a sua excepcional envergadura moral, cultural e política, soube deles tirar o melhor partido. Depois do retorno do rebanho britânico à boa casa, a conversão dos lombardos ao culto católico romano foi sem dúvida o acontecimento de maior repercussão. Os lombardos, provenientes da Dinamarca, tal como os jutos, tinham-se fixado no Norte da Itália após o colapso do domínio ariano ostrogodo, enquanto o resto da península era então uma possessão bizantina, pois o imperador Justiniano também expulsara os ostrogodos. Ora os lombardos, que tardiamente haviam adoptado o arianismo, cercaram Roma em 592, e Gregório intercedeu, negociou, e Roma foi salva, sendo reconhecida ao patriarca autoridade religiosa mas também temporal sobre a cidade. A partir de então, o patriarcado ou bispado de Roma passou a desfrutar de funções políticas e administrativas. Poucos anos depois, e por influência da rainha Teodora, os lombardos abandonam o arianismo e adoptam o culto romano, tal como o haviam feito os visigodos na Península Ibérica, anos antes (586). E assim, num curtíssimo espaço de tempo histórico, o patriarca de Roma torna-se a autoridade religiosa máxima de um vasto território: Itália, França, Hispânia, Inglaterra, Irlanda, que escapara ao paganismo bárbaro, e parte da Germânia. Gregório rompe com a ancestral dependência de Bizâncio e do seu patriarca, que ostentava o pomposo título de Bispo Universal. Apesar de nenhum dos sucessores de Gregório I, o Magno, denotarem a sua estatura intelectual, herdaram um terreno bem mais propício ao desenvolvimento da Igreja, que no decurso dos séculos VII e VIII se vai impondo e caminhando para uma nova e empolgante era, com o seu apogeu nos séculos XII e XIII. Mas é nestes tempos de relativa acalmia que surge na longínqua Arábia um novo e terrífico perigo.
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CAPÍTULO X
O ISLAMISMO
M
aomé nasceu em Meca em 570, mas só aos 40 anos inicia a sua actividade como anunciador de uma nova religião monoteísta e como reformador da sociedade arábica, tribal e pagã. A sua doutrina baseia-se na crença de um único Deus, unitário, a cuja vontade os humanos se devem submeter (islão), vontade que deve regular a vida dos devotos (moslins ou muçulmanos) e da comunidade. Ao contrário do cristianismo primitivo, que desvalorizava o poder temporal, a César o que é de César, o islamismo integra a vida espiritual com a autoridade terrena e militar. Os chefes são simultaneamente administradores, juízes, caudilhos e zeladores da fé, a todos os níveis hierárquicos. O califa (chefe dos crentes) é a autoridade suprema. Não há portanto sacerdotes profissionais no grupo mais numeroso, o dos sunitas. Como sempre aconteceu, a nova religião foi buscar diversos elementos a outras religiões, em particular ao judaísmo. Assim, do Antigo Testamento adopta o Paraíso, para os bons, e o terrível Inferno, para os maus, o Diabo e o Juízo Final, como também a prática da circuncisão, do jejum, da poligamia e a abstinência de carne de porco e do álcool. Sob o ponto de vista teológico, o islamismo é, das grandes religiões asiáticas que chegaram aos nossos dias, o monoteísmo mais puro. A unicidade de Alá é absoluta, sendo desprovido portanto das três pessoas, cuja
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caracterização tanta massa cinzenta tem consumido aos teólogos cristãos. Maomé, por sua vez, é apenas um humano, a quem Deus concedeu a graça de ser o revelador da verdade, e nada mais. É venerado mas não adorado, tal como os homens santos, venerados mas não canonizados, uma vez que se rejeita a divinização de humanos. As orações são unicamente dirigidas a Deus e não a interpostos entes sobrenaturais. Não há Purgatório, nem sacramentos, nem imagens nos templos, nem música, nem Mãe de Deus, nem representantes infalíveis de Deus na Terra. Também não existe no islamismo a ambígua contradição entre predestinação e livre-arbítrio. Tudo está previsto pela vontade divina, previamente fixado, sendo inútil pretender contrariar o destino. A corte celestial é no entanto numerosa e diversificada, mas constituída apenas por satanases e anjos. Estes são belos, puros e assexuados, adoram e servem Alá. Destes, o anjo ou arcanjo Gabriel foi incumbido das revelações a Maomé, mas outros anjos são igualmente importantes, como Micael, protector da guerra santa, Izrafil, que toca a trombeta no dia do Juízo Final, e Azrait, que preside à morte. Depois há os anjos inferiores, os moakibat; abaixo destes, os génios ou djin, uns bons, outros, perversos, e ainda inferiores a estes os tacwin, femininos e sedutores. Como nas anteriores religiões bíblicas, e não só, o criador do mundo é misericordioso mas justo. Condena os pecadores ao Inferno depois da morte, onde os esperam os satanases para lhes infligirem sofrimentos sem fim e eternos, e destina aos bons o Paraíso. E este Paraíso é bem mais atraente que o Éden judaico-cristão, uma vez que o devoto será rodeado de dezenas de donzelas, as huris. Imagine-se que bela recompensa numa sociedade poligâmica, onde predominam os solteiros. E como terão sido destemidos os guerreiros em combate pela dilatação da fé, desprezando a morte... Maomé reteve na memória os ensinamentos que lhe foram revelados, e só mais tarde, depois da sua morte, foram coligidos no Alcorão, o livro sagrado. Contém 114 pequenos versículos ou suras com mensagens proféticas, princípios éticos, regras pormenorizadas que devem pautar o comportamento humano e a organização da vida social. São cinco os deveres religiosos de todos os muçulmanos: a ablução, que consiste em manter o corpo limpo, condição necessária à purificação da alma; a oração, cinco vezes por dia, em que deve ser pronunciada três vezes a frase «Alá é grande» e devendo o crente estar virado para Meca, prática de que as mulheres estão dispensadas; o jejum no mês do Ramadão; a peregrinação a Meca e ao túmulo do profeta em Medina uma vez na vida; e a esmola. Das regras sociais são valorizadas a fraternidade, a hospitalidade e a igualdade, pois todos os homens respondem perante Deus, independentemente da cor, origem ou posição social. A mulher tem um estatuto de subordinação
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ao homem, podendo este ter até quatro esposas e número indeterminado de concubinas e escravas. Estas são reclusas nos haréns e guardadas por escravos capados, os eunucos, onde um homem inteiro não pode entrar. As esposas podem ser judias ou cristãs, mas à mulher é vedada a poliandria e o casamento com um não muçulmano. Para o divórcio, basta uma declaração do marido, segundo os ritos. É permitida a vingança de sangue e a escravatura. A guerra santa, a jihad, faz igualmente parte do Alcorão, mas tem sido interpretada de forma moderada, com um sentido moral ligado à ideia da universalidade da salvação humana. No entanto, nos tempos das guerras de conquista, constituiu a justificação ideológica para levar aos outros povos a verdade divina. E ainda hoje é evocada nas guerras de libertação quando os seus territórios são ocupados. Na verdade, e salvo períodos de maior fanatismo já anteriormente lembrados, os muçulmanos foram ao longo da História bem mais pacíficos e tolerantes do que os cristãos, não esquecendo, contudo, que ao seu fanatismo se deveram dois dos maiores crimes contra a civilização humana, a destruição das Bibliotecas de Alexandria e de Córdova. Foi em Medina, para onde havia fugido, que Maomé teve os primeiros discípulos e converteu as primeiras tribos. Depois de conflitos sangrentos com os pagãos e com os judeus, muito numerosos em Medina, as tribos marcharam sobre Meca, que capitulou sem oposição. O santuário pagão, que inclui a pedra negra, a Caaba, é consagrado à nova religião. Em poucos anos, todas as tribos da Arábia estavam islamizadas. Após a morte do profeta em 632 surgem as primeiras divergências quanto à sucessão, entendendo uns que o cargo de califa deveria ser preenchido por consanguinidade, e portanto recair sobre Ali, esposo de Fátima, filha de Maomé e seu primo, enquanto para outros o escolhido deveria sê-lo pelos seus méritos, e elegeram o combativo Abu-Bekr, inseparável companheiro e colaborador do falecido. Para estes, os preceitos tradicionais e os ditames do profeta deveriam ser coligidos mais pormenorizadamente, constituindo um código administrativo e jurídico indispensável à política expansionista. Mais tarde foram efectivamente coligidos e passados a escrito, surgindo diversas sunas (códigos de leis), em complemento do Alcorão. Este partido ortodoxo foi designado por sunita (seguidor das sunas), enquanto os partidários de Ali, que não adoptaram as sunas, se designaram por xiitas (xiita = partidário de Ali). E nunca mais houve concórdia entre as duas facções. Segue-se um período de intensas e sanguinárias disputas entre os dois partidos, com assassínios de califas de ambos os lados, como o de Ali, do seu filho e sucessor Hassan, mas também de Otman, que veremos a seguir, além de vários outros, até que os sunitas, maioritários e mais aguerridos, iniciam a dinastia omíada do califado de Damasco.
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O terceiro califa sunita, Omar, é o fundador do Império Árabe. A partir de 634, dois anos após a morte do profeta, abandona a península e submete as tribos adjacentes. Nesse mesmo ano derrota o exército bizantino na Batalha de Yamuk; em 637 vence os persas sassânidas em Cadéssia e toma Jerusalém; em 640 conquista o Egipto e, poucos anos depois, todo o Norte de África. O estreito de Gibraltar é atravessado em 711, e em 732 já os árabes se encontram no centro de França, sendo então derrotados em Poitiers. Também, depois de vários cercos mal sucedidos à capital do Império Bizantino, os árabes sofrem aniquiladora derrota às portas da cidade, em 744. A sua invencibilidade é sustida nos dois extremos do mundo cristão. No tempo de Otman, sucessor de Omar, são passadas a escrito as suras do Alcorão e a primeira suna. A capital do império foi sediada em Damasco. No ano de 750, o Império Árabe estendia-se da Península Ibérica à fronteira da China, com a conversão de grande parte das populações submetidas e a adopção por muitos da língua e da escrita árabes. Nunca na história da Humanidade se assistira a uma tão rápida formação de um império, nem a um império com tal dimensão geográfica e com tão grande unidade política e religiosa. Mas a unidade política seria efémera. Em breve se assiste ao seu desmembramento e à sua absorção por outros impérios. E como sucedera na Europa, em que os conquistadores bárbaros depressa se converteram ao culto monoteísta dos povos submetidos, também os conquistadores pagãos dos territórios árabes, turcos e mongóis depressa se converteram ao islamismo. Mas o que importa realçar é o extraordinário contributo dos árabes para o progresso da Humanidade. Em poucos séculos, eles ultrapassam os outros povos em todos os domínios da cultura. Assiste-se ao florescimento da matemática, da astronomia, da física, da química, da medicina, da botânica, da filosofia, da literatura, da arquitectura. As cidades de Bagdad, Damasco, Cairo, Samarcanda, Granada e Córdova são, entre os séculos VIII e XV, os mais proeminentes centros de difusão de todo o saber humano. Hoje, os xiitas são largamente maioritários no Irão, no Iraque, no Azerbeijão e no Iémen e menos no Paquistão, além de terem comunidades em todo o mundo muçulmano. Têm duas cidades santas no Iraque, Najaf, onde morreu Ali, e Querbala, onde morreu o seu filho Hassan, e o que mais os diferencia dos sunitas é terem uma hierarquia sacerdotal com os aiatolas na cúpula. Na Pérsia, onde muitos xiitas encontraram refúgio nos primeiros tempos de conflito aberto com os sunitas, conseguiram no século XVI que o xá Ismael proclamasse o xiismo religião oficial, sendo os sunitas perseguidos e eliminados. A talhe de foice, diremos que este xá Ismael foi o grande aliado de Afonso de Albuquerque nas lutas contra o inimigo comum, os turcos sunitas, e a quem se deve a posse da estratégica cidade de Ormuz, tomada pelos portugueses em 1507.
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CAPÍTULO X
Das muitas cisões verificadas ao longo da História, apenas duas têm actualmente alguma relevância, a dos ismaelitas e dos vaabitas. Os pimeiros, um ramo xiita, dizem-se descendentes de Ismael, filho de Abraão e da escrava egípcia Agar. Como Abraão aos 89 anos não tivesse filhos da mulher, Sara, recorreu à dita escrava que pariu Ismael, mas pouco depois a legítima deu à luz Isaac, e Abraão expulsou a escrava e o filho. Deambulavam pelo deserto, quando surge um anjo que os conforta e lhes promete numerosa posteridade. Os ismaelitas julgam-se descendentes de Ismael e veneram o agá, seu chefe sagrado, descendente directo daquele. Espalhados por todo o mundo, mantêm grande unidade entre as dispersas comunidades, têm uma leitura mais aberta do Alcorão e abandonaram os preceitos mais reaccionários, designadamente em relação à condição da mulher. São ismaelitas os drusos, no Líbano, e os khoja, na Índia e Paquistão. Os vaabitas separaram-se dos sunitas no século XVIII e constituem uma poderosa e rica comunidade puritana que defende o regresso ao islão primitivo, sendo maioritários nos estratos sociais mais elevados da actual Arábia Saudita. O islamismo é a única grande religião que se encontra em expansão, o que se deve à explosão demográfica dos países islâmicos, onde não é praticado o controlo da natalidade, e à emigração para os espaços europeu e americano. Ao contrário do que se tem verificado com os povos cristãos nos últimos séculos, onde o domínio religioso teve de se confrontar com a racionalidade do pensamento científico moderno, os povos muçulmanos mantêm ainda grande dependência relativamente às suas crenças ancestrais. Pode dizer-se que nos últimos séculos não se lhes reconhece qualquer feito ou inovação que tenha contribuído para o progresso da humanidade, o que tão dramaticamente contrasta com o seu luminoso passado. Mas a inevitável difusão de ideias e a universalidade de certos valores, como a laicidade, a igualdade entre os sexos, a necessidade do controlo da natalidade, entre outros, irão ganhando um número crescente de consciências, sendo certo que as futuras gerações se libertarão daquela mentalidade medieval, como actualmente se verifica na Europa. Sem comentários, transcrevo duas quadras de Khayyam (ver nota): Se as religiões te prometem um Céu que em gozos consiste, busca-o, sim, mas neste mundo, porque nada mais existe.
Mosteiros e sinagogas e mesquitas colossais são refúgios dos que temem as fogueiras infernais.2
2 Do livro de quadras persas (dois versos com dois hemistíguios) Rubaiyat de Omar Khayyam, poeta e
sábio persa do século XI, que o califa nomeou director do Observatório Astronómico de Merv e encarregou da reforma do calendário muçulmano.
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CAPÍTULO XI
A CRISTANDADE NA ALTA IDADE MÉDIA
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ara se ter uma noção da lenta implantação do cristianismo na Europa tem-se recorrido às datas que a História aponta para as conversões de reis ou nobres nos diversos países que vão emergindo. São no entanto datas nacionais históricas que valem como referência, uma vez que não é a conversão de um rei que tudo muda, e até houve casos em que os sucessores do convertido voltaram ao anterior politeísmo. Noutros casos havia já uma implantação maioritária da fé cristã de obediência romana, e os governantes eram idólatras ou hereges. Parece-nos, pois, mais correcto apontar épocas e não datas oficiais. Vejamos os séculos em que os diversos cultos cristãos se tornam dominantes: na Irlanda, no século V; na Grã-Bretanha, no VII; na Sérvia, no IX; na Polónia, Ucrânia, Rússia e Germânia, no X; na Hungria e Suécia, no XI; na Finlândia, no XIII. Na Hispânia coabitavam o paganismo e o cristianismo, e só durante o reino dos visigodos se processa a lenta conversão ao arianismo. E lembremos que foi em finais do século VI, com a adopção do culto romano pelo rei Recaredo em 589, que este culto se generalizou na Península, tal como se verificara anos antes no reino dos suevos, quando o rei Teodomiro repudiou o arianismo. Claro que no início do século IV já havia comunidades cristãs, designadamente nas cidades, mas, sem dúvida, com pequena expressão demográfica.
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Na Itália e na Gália, pelo contrário, é muito provável que no tempo de Constantino já grande parte da população abraçasse o monoteísmo, e o culto romano fosse largamente maioritário. Mas não nos esqueçamos de que a cidade de Roma continuava a ser o grande centro religioso do culto oficial pagão. Na Grécia, no Próximo e no Médio Oriente, coexistiam pacificamente as mais diversas religiões com o cristianismo fragmentado num sem-número de facções. Na Pérsia, o maniqueísmo foi a religião oficial dos sassânidas até ao século VIII. OS CAROLÍNGIOS Já vimos como o rei franco Clóvis fez gorar o projecto do rei ostrogodo Teodorico de criar uma frente ariana destinada a varrer o cristianismo romano. Qual o futuro deste, se Clóvis se tivesse aliado a Teodorico? A descendência dinástica de Clóvis foi degenerando, a ponto de o rei não passar de um verbo de encher. O verdadeiro poder estava nas mãos do mordomo do palácio. Quando os muçulmanos atravessaram os pirenéus em 720 e ocuparam o Sul da França, quem lhes fez frente foi justamente o mordomo Carlos Martel, infligindo-lhes uma demolidora derrota na célebre Batalha de Poitiers e tornando-se o incontestado senhor dos francos. O seu filho, Pepino, destronou o derradeiro sucessor de Clóvis e fez-se coroar ele próprio rei da Frância. Em 753, Roma foi ameaçada pelos lombardos, e foi Pepino quem veio em socorro da cidade, a pedido do papa. Por esta época começou a generalizar-se a designação de papa. Um ano depois, Pepino firmava em Ponthion, a leste de Paris, uma aliança com o papa Estêvão II. Este apresentou ao monarca um documento forjado, a chamada Doação Constantina, pretensamente assinado por Constantino, o Grande, em que o imperador ao mudar-se para Constantinopla teria doado ao papa Silvestre I e seus sucessores a metade ocidental do império. Tanta generosidade seria a paga, por Silvestre (perdão, S. Silvestre!) o ter curado da lepra, receitando-lhe banhos em piscina cheia de sangue de crianças. Aliança que viria a ter uma importante repercussão nos destinos da Igreja Romana, em primeiro lugar porque o ingénuo Pepino prometeu a cedência ao papado não do império todo, mas sim dos futuros territórios conquistados aos lombardos, em segundo lugar porque o papa passou a ter o apoio do mais poderoso reino ocidental. Tão grosseira falsificação, hoje reconhecida pela própria Igreja, já havia sido denunciada por Otão III e mesmo por Dante que na Divina Comédia vê nela a origem do mundanismo papal. Mas só mais tarde, em 1440, o estu-
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dioso Lorenzo Valla, perante as incoerências históricas e linguísticas do documento, denunciou publicamente o que terá sido a maior fraude da História. Pepino dilatou os domínios do seu pai e deixou ao seu sucessor, Carlos Magno, em 768, um vasto império, aproximadamente as actuais França e Alemanha. Em 773, o novo monarca derrotou os lombardos e apoderou-se do seu reino, que se estendia do Norte da Itália até ao meio da península, incluindo Roma. É então que cumpre parcialmente a promessa do seu pai, entregando ao papado parte das suas conquistas no centro da Itália, o ducado de Roma, os exarcados (territórios que passaram a ser administrados por um civil ou eclesiástico súbdito do papa) de Ravena, Pentapólis e Sabeia, a Toscana do Sul e outros pequenos territórios. O papa, para além da administração de Roma, era agora senhor dum proveitoso território. Assim nasceu o Estado Pontifício. Mas voltemos a Carlos Magno. Depois de acrescentar ao seu império o reino dos lombardos, visitou o papa pela primeira vez e, juntos, no túmulo de S. Pedro, juraram fidelidade eterna. Assume então o cargo de defensor de Roma, Defensio Ecclesiae Romanae, e mais tarde intitula-se rei-sacerdote, Rex et Sacerdos. O império passa a Sacro Império. No dia de Natal do ano 800, na Igreja de S. Pedro em Roma, o papa coroa Carlos e dá-lhe o título de Cesar Augusto. Carlos não terá ficado muito satisfeito com a ousadia do papa e mais tarde dá instruções ao filho para não se deixar coroar, mas o que está feito está feito, e a sua legitimidade era agora divina, o seu poder, teocrático, e a sua ambição de ser o neo-imperador do Império Romano do Ocidente estava satisfeita. E a partir de então muitos dos grandes suseranos europeus se propuseram ser os protectores de Roma e da Santíssima Igreja Católica Apostólica Romana – Otões, Henriques, Fredericos, Reis Católicos, Carlos V, Filipes, Luíses, Napoleões, Mussolini... Mas não foi tarefa fácil para Carlos Magno manter e dilatar o império e a cristandade. As suas fronteiras eram continuamente ameaçadas pelos sarracenos, a ocidente e na Itália, e pelos pagãos a norte e a oriente: saxãos, ávaros, eslavos, dinamarqueses, boémios e húngaros. As suas expedições tinham agora um carácter não só militar mas também de verdadeira cruzada. À frente dos exércitos desfilavam alegremente bispos e abades. E as populações dos territórios que iam sendo anexados eram constrangidas à conversão. E não havia contemplações para com os renitentes. Só de uma assentada mandou degolar 4.500 saxãos cativos, que se revoltaram contra a conversão (785). Quando morreu, em 814, sucedeu-lhe seu filho Luís, o Bonacheirão, para uns, o Piedoso, para outros. Mas este não tinha as qualidades guerreiras nem a determinação do seu pai. Apenas lhe herdou o fervor religioso e a cruelda-
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de (mandou arrancar os olhos a um sobrinho, rei da Itália). Não levou em consideração a recomendação do pai e fez-se coroar pelo papa. Três anos depois, resolveu dividir o império pelos seus três filhos, que nada mais fizeram do que guerrear-se entre si e contra o pai, que foi aprisionado e deposto duas vezes. Morreu numa expedição contra um dos seus filhos (840). E o Império Carolíngio, corroído por dentro e acossado em todas as fronteiras, acabou por se desintegrar. Em 880 já nada dele restava. Mas se o império se desmoronava, o mesmo não se pode dizer da Igreja, que aproveitou ao máximo todas as oportunidades que os reis francos lhe facultaram para disseminar bispados e conventos por todo o mundo cristão. O bispo de Roma, agora a coroar reis e príncipes, tinha ganho um decisivo ascendente sobre aqueles que se submetiam à sua coroação. Agora, já não era só o pobretana bispo de Roma, mas sim o papa de toda a cristandade, pelo menos da cristandade ocidental, cada vez mais afastada da cristandade oriental. Era titular de vastas e ricas regiões, o que lhe facultava proventos consideráveis, podendo dispor de uma cúria (governo) numerosa e do seu próprio exército. Mas foi sol de pouca dura. O Estado Pontificio, nascido de uma trafulhice, só foi integrado na Itália no decurso da Guerra da Independência, em que o exército papal combateu activamente o movimento insurreccional de Garibaldi, aliando-se, primeiro, aos Austro-Húngaros e, depois, à França. Só em 1870 os independentistas tomaram Roma, e meses depois os romanos plebiscitaram o destino da cidade, tendo decidido por 133 681 votos contra 1507 a sua anexação ao reino de Itália. O «SAECULUM OBSCURUM» Com o desaparecimento do império protector, os papas sentiram-se uma vez mais órfãos e iriam ser incapazes de manter a sua autoridade espiritual e eclesial. A desagregação do império acarretou a desagregação e a decadência da Igreja Cristã Ocidental. Bispos e abades eram agora investidos pelos chefes locais – reis, príncipes, condes e duques –, que os papas coroavam e descoroavam ao sabor de interesses políticos e dinásticos, ou seja, de acordo com as possibilidades de roubar e saquear os vizinhos. As disputas entre irmãos eram frequentes e violentas, já que ainda era corrente o uso bárbaro de os nobres dividirem os seus territórios pelos filhos, originando invejas e cobiças que degeneravam em guerras fratricidas. O rei dos francos reinava apenas em Paris e arredores. Por outro lado, vastos territórios foram sendo ocupados pelos inimigos do império, sequiosos de vingança, e as suas populações, libertas da opressão cristã, voltaram aos ancestrais cultos pagãos. Os normandos pilhavam e chacinavam os povoados ribeirinhos, quando mesmo não se
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infiltravam no interior. Hamburgo é incendiada em 845; Paris, saqueada em 846. Clérigos e frades tinham de bater a asa rapidamente. No Sul de França, na Itália, nas grandes ilhas mediterrânicas e na Grécia eram os infiéis sarracenos quem provocava o caos. Roma foi saqueada inúmeras vezes. No tempo do papa Sérgio II, a cidade foi ocupada e pilhada (846), e o túmulo do S. Pedro, profanado, o mesmo acontecendo no tempo do seu sucessor, Leão IV, que mandou construir à pressa uma muralha para proteger a Basílica de S. Pedro e o antigo Palácio do Vaticano, segunda residência dos papas. O papa João VIII (872 a 882) viu-se obrigado a pagar um pesado tributo anual aos piratas mouros para se ver livre dos seus assaltos. Nos séculos IX e X houve um efectivo retrocesso na cristianização no mundo ocidental, para não falar na sua quase extinção para lá da Turquia e no Norte de África. Em Roma, o papado afundava-se no confuso turbilhão de lutas partidárias da nobreza romana, selvagem e sedenta de poder, e que acabaria por se apossar da administração da cidade e dos territórios pontifícios. Os papas passaram a meros joguetes dos interesses dos poderosos de ocasião. São nomeados, corridos, presos, torturados, assassinados, proscritos. Perderam a autoridade e, mesmo, o contacto com a restante hierarquia, pois eram tempos em que qualquer viagem constituía risco iminente. Com estradas e pontes destruídas, com a ausência de abrigos seguros, com os normandos e os sarracenos senhores dos mares, o serviço de correio herdado do Império Romano há muito que deixara de funcionar. Os historiadores católicos chamaram a este período histórico da Igreja Romana o século obscuro (saeculum obscurum), período que delimitam de 880 até à reforma gregoriana em 1046, e em que foram consagrados 48 papas (o que dá uma média de 3,5 anos por pontificado). É, como se vê, um século muito comprido, mas é-o ainda muito mais. Vejamos alguns dos mais conhecidos e quantas vezes tenebrosos episódios ocorridos neste período, que ilustram bem até que ponto chegou a degradação humana, para não dizer espiritual, dos representantes de Deus na Terra. Com o declínio do Império Carolíngio apareceram os primeiros sintomas da crise que se abateria sobre a Igreja. Fora eleito papa Nicolau I (858 a 867), um dos mais eminentes da Idade Média. O primeiro conflito grave foi com Lotário, rei da Lorena, que Nicolau excomungou por este ter repudiado a esposa e casado com uma amante. Depois foram os bispos francos, que não aceitaram a supremacia do arcebispo de Reims, contestando a sua designação. Choveram as excomunhões. Os arcebispos (arce = acima de) ou metropolitanos, nomeados pelo papa, passaram nesta época a ter atribuída uma província eclesiástica e autoridade sobre os bispos eleitos nas dioceses, podendo em caso de desobediência interditá-los e excomungá-los.
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Também no pontificado de Nicolau I se verificou o primeiro cisma «universal» sério, em que os bispos de Roma e de Constantinopla se excomungaram mutuamente, e de que nos ocuparemos adiante. A história da papisa Joana teria sido um episódio divertido e promissor se não viesse a ter um fim tão súbito e trágico. Num ambiente de completa anarquia, uma jovem chamada Joana, natural de Mogúncia, a oeste de Francoforte, disfarçada de homem, foi eleita papa em 885. Dois anos depois, durante uma procissão, deu à luz uma criança, morrendo ambas. A Igreja Católica não reconhece a veracidade deste episódio, que diz não passar de uma lenda, argumentando que não há descontinuidade na lista oficial de sucessão de papas, onde o nome de Joana não consta. Talvez. Mas sabemos que a sequência cronológica dos papas ofereceu grandes dificuldades, tendo a lista mais actualizada sido elaborada no princípio do século XX por Monsenhor Mercati, lista que inclui doze papas de 882 a 904 (Marino I, Adriano III, Estêvão VI, Formoso, Bonifácio VI, Estêvão VII, Romano, Teodoro II, João IX, Bento IV, Leão V e Cristóvão). O que é certo é que a partir deste episódio passou a fazer parte do cerimonial de consagração de novos papas passeá-los num palanquim com uma abertura inferior, por onde mãos perscrutadoras atestavam a macheza do eleito. Era a sella stercoraria, ainda hoje existente no Vaticano. Como terá sido vexante para o papa Alexandre Borgia sujeitar-se a este exame na presença da esposa e dos seus quatro filhos...! A história do papa Formoso já não é contestada. Em 893 pediu auxílio ao rei alemão contra os que queriam liquidá-lo, mas morreu pouco depois. O seu sucessor e antigo rival, Estêvão IV, mandou desenterrar o morto que a terra já comia há nove meses, vestiu-o com os trajes papais, e submeteu-o a um julgamento com toda a pompa. Foi condenado, pelos nefandos crimes cometidos durante o seu pontificado, a serem-lhe cortados três dedos da mão direita, voltando à sepultura. Mas o povo romano, indignado, revoltou-se, e Estêvão foi preso e estrangulado. Dez anos depois, o sumo pontífice Sérgio III, discordando da brandura da sentença, mandou exumar o putrefacto cadáver e sujeitou-o a novo julgamento e, desta vez, a sentença foi a decapitação e o lançamento às águas do Tibre. Em 998 digladiavam-se em Roma duas facções rivais, e cada uma elegeu o seu papa, João IX e Sérgio III. Enquanto este último fugia, o primeiro reabilitou Formoso e ficou conhecido, imagine-se, por ter tido a coragem de condenar o costume, em voga na época, de se saquearem as casas e os bens de papas e bispos depois de estes morrerem.
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Quando João IX faleceu, dois anos depois, a mesma facção fez eleger Bento IV, que morreu três anos depois. Seguiu-se Leão V, que só ocupou o cargo durante um mês, pois foi destituído pelo seu capelão em conluio com Cristóvão, que assumiu a dignidade papal. Leão V foi encerrado num cárcere, onde dias depois morreu de fome. Mas Cristóvão não ganhou com a encomenda, dado que, passados seis meses, foi preso por Sérgio, entretanto regressado a Roma sob protecção da família Tusculani, e recebeu a mesma sorte – cárcere e morte à fome. A partir de 904, a família Tusculani toma o poder em Roma, e é uma mulher, Teodora, quem assume a liderança absoluta da cidade e do papa. Seis futuros papas serão membros de tão nobre família. Estando vago o trono papal, Sérgio surge como o candidato da família no poder. Mas, como tinha dois concorrentes, opta pela solução mais fácil: rapta-os e manda-os estrangular. Nisto de eleições, nunca se sabe. É então eleito e ocupa o trono de 904 a 911, sendo a sua primeira determinação decretar como antipapas os seus quatro antecessores. Segue-se o já mencionado segundo julgamento do cadáver de Formoso. A intimidade de Sérgio III com a família Tusculani foi tal que se fez amante da filha mais velha de Teodora, Marózia, tendo um menino. Este herda a vocação paterna e será o futuro titular, com o nome de João XI. O período que se segue é de lutas brutais em que os papas são nomeados e demitidos, expulsos e presos, torturados e assassinados, por ordem de Teodora e, mais tarde, das filhas Marózia e Teodora. Anastácio III mantém-se dois anos; Lando, seis meses. Seguiram-se João X, que acabou por ser preso e assassinado a mando de Marózia (928), Leão VI, que durou meses, e depois Estêvão VIII, que aguentou três anos. Quando Estêvão VIII fecha os olhos é eleito o tal filho de Sérgio III e de Marózia, João XI, que tinha então 24 anos, mas a mãe cansada das constantes contrariedades com os papas, manteve-o encerrado num cárcere, de onde só saiu para poucas cerimónias litúrgicas, acabando por morrer, quatro anos depois (935). Seguiram-se mais quatro papas da família Tusculani, Leão VII, Estêvão IX, Marino II e Agapito II, batendo este um verdadeiro recorde de permanência, perfazendo nove anos de pontificado (946-955). O SACRO IMPÉRIO ROMANO-GERMÂNICO Entretanto, vivem-se na Europa tempos de mudança, que convém recordar. Em 919, Henrique, o Passarinheiro, é eleito rei da Alemanha por uma assembleia de príncipes e bispos. O seu filho, Otão I, é coroado (936) em Aachen (em francês, Aix-la-Chapelle, situada na Alemanha na fronteira com a Bélgica) e herda um pequeno território de fronteiras mal definidas, mas, ao contrário do seu pai, tenta impor a sua autoridade sobre os senhores feudais, cuja hostilidade não se faz esperar.
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Depois de mortíferas contendas, submete os duques da Lorena, Francónia, Suábia e Baviera, derrota eslavos, dinamarqueses e húngaros, cedendo as novas possessões a familiares. Otão compreende que os seus aliados naturais são os bispos e os abades, sempre em disputa com a insaciável nobreza e sujeitos às constantes investidas da pirataria. Concede aos bispos toda a ordem de privilégios – poder judicial, direitos alfandegários, direitos comerciais, cunhagem de moeda e muitas outras imunidades e regalias. Mas, em contrapartida, a hierarquia tem de submeter-se ao novo imperador, os clérigos têm de comportar-se como verdadeiros funcionários do império. É o imperador quem nomeia os bispos, e estes têm de jurar-lhe vassalagem. E desta confluência de interesses, deste toma-lá-dá-cá, emerge um novo tipo de Estado, cuja essência está na simbiose entre o poder teocrático do imperador e o poder eclesiástico delegado. É o Sacro Império Romano-Germânico, que, com altos e baixos, permanece ao longo dos séculos, até à época napoleónica (1803). Uma vez restabelecida a ordem interna e derrotados os húngaros, a ambição de Otão I é restaurar o antigo Império de Carlos Magno, fazer-se coroar pelo papa, ser o novo César Augusto. Entretanto, Marózia morre em Roma, e Agapito II tenta libertar o papado da influência dos Tusculani e daquilo a que a Igreja designou por pornocracia (o termo diz tudo). No entanto, a irmã de Marózia, Teodora, a Moça, recupera as rédeas do poder e convence o imperador Otão I a intervir na Itália e a destituir Agapito II, o que efectivamente acontece. Assume a dignidade papal o truculento Octaviano (955), neto de Marózia, com a bela idade de 17 anos. Resolveu mudar o nome para João XII, costume que seria seguido por todos os futuros papas. Até então, só os papas com nomes bárbaros mudavam de nome. Otão entrou em Itália com o seu poderoso exército e faz-se recoroar por João XII (962). Mas este devia ser fresco. Eram tantas as acusações que sobre ele pesavam, de tal modo devassa a sua conduta, que Otão convocou um concílio em Roma, e o jovem foi destituído, sendo eleito Leão VIII, homem da confiança do imperador. Mas, mal este vira costas, João convoca outro concílio, corre com Leão e instala-se de novo no palácio de Latrão. Seguem-se as mais cruéis represálias sobre os partidários de Leão, que foge, procurando a protecção das tropas alemãs. Entretanto, o jovem pontífice alia-se aos bizantinos e aos sarracenos para fazer frente a Otão. Mas este regressa com o seu exército, repõe Leão pela força das armas, e o ajuste de contas com os amigos de João não se faz esperar. João é apunhalado na cama pelo marido da amante. Os romanos são obrigados a jurar que mais nenhum papa seria eleito sem a aprovação imperial.
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Leão VIII pontifica durante dois anos e é seguido por Bento V. Mas este não cai nas boas graças de Otão, que o demite e faz eleger outro seu simpatizante, João XIII. Mas os romanos, por seu lado, também não gostam destes papas aliados dos alemães nem vêem com bons olhos a anexação da sua pátria ao Império Germânico, de modo que, quando João XIII morre, elegem o italiano Bento VI. Este comete o erro de excitar os romanos contra o ocupante, e Otão manda-o prender e estrangular. Otão I entretanto morre, e um clérigo da cúria, Bonifácio VII, apodera-se da tiara, esquecendo-se de que os Tusculani eram agora fiéis súbditos do império. Um mês depois é obrigado a fugir, refugiando-se em Constantinopla, e Otão II faz eleger papa o chanceler da sua corte, João XIV. Otão II chega a Roma em 981 com a família e a corte, com ideias de ficar. Intitula-se Imperador Romano Augusto e propõe-se acabar com o domínio dos sarracenos no Sul da Itália. Nos primeiros anos do seu reinado obtivera vitórias decisivas contra os polacos, os franceses e os bávaros, mas contra os sarracenos não foi tão feliz. O seu exército é aniquilado pelos infiéis perto de Cotrone em 982, morrendo o imperador, pouco depois, de malária. Sobreviventes, a viúva e o numeroso séquito, apavorados, abandonam Roma. O papa sentiu-se perdido, pois Bonifácio, a quem o povo chamava Malifácio, aproveitou a confusão, regressou a Roma (984), prendeu o pontífice e deu-lhe o habitual e cruel destino – cárcere e morte à fome. Mas sete meses depois, chegou a sua vez. É morto, e o seu cadáver arrastado pelas ruas de Roma até ser lançado ao rio. Anos depois, Otão III fez eleger papa um seu primo e neto de Otão I, que adoptou o nome de Gregório V (996). Mas quem mandava agora em Roma era o fidalgo Crescêncio, que expulsou o alemão e fez eleger um italiano, João XVI. Otão III, furioso, mandou prendê-lo, declarou-o antipapa e entregou-o à soldadesca, que o mutilou cruelmente, vindo a morrer na prisão. Crescêncio foi decapitado. Outra situação curiosa ocorre anos depois. Bento IX é feito papa pelo pai, João XIX, com a tenra idade de 10 anos (1032), e pontifica até aos 22, sendo então o santo trono usurpado por Silvestre III, um antipapa. Diz-se que Bento levou consigo a rica tiara e a vendeu por 1000 libras ao seu padrinho João, que tinha aspirações pontifícias. Meses depois, Silvestre é expulso, e Bento recupera pela segunda vez a representação de Deus na Terra, até ser afastado pelo padrinho João, que adopta o nome de Gregório VI. Havia então uma verdadeira inflação de papas, nada menos que quatro. Gregório VI pôs termo a esta situação, comprando por avultadas quantias a abdicação dos três antipapas: Silvestre III, Bento IX e João XX. Ano e meio depois é acusado de simonia (venda de bens espirituais, o que dava lugar a
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excomunhão) pelo imperador alemão Henrique III, sendo preso e levado para a Alemanha, onde morreu na prisão. Segue-se um papa designado pelo imperador, Clemente II, que excomungou Bento IX, mas não sobreviveu mais de um ano, e o excomungado voltou pela terceira vez ao cobiçado trono. Henrique III volta a destituí-lo e nomeia Dâmaso, que só se aguentou 23 dias. O papa seguinte foi Leão IX em cujo pontificado ocorreu o Grande Cisma do Oriente, de que nos ocuparemos a seguir. De 1055 a 1061 houve quatro papas, que o imperador designou para a formal eleição: Vítor II, Estêvão X, Bento X e Nicolau II. Depois foi eleito Alexandre II, mas a corte germânica não gostou e nomeou um seu apaniguado, Honório II, e até 1072 Roma dispôs de dois santos padres. Gregório VII é eleito em 1073. Chegara ao fim o século obscuro.
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OS CISMAS DO ORIENTE
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omo vimos, cisma é a separação de parte da cristandade da autoridade papal, na ausência de grandes divergências doutrinárias. Mas quando o cisma se prolonga, vão surgindo outras divergências ou aprofundam-se as existentes. Cada qual segue o seu caminho com incorporação de novos dogmas, de novos santos, com alterações de rituais e de práticas litúrgicas, tornando cada vez mais difícil a reunificação. São disto exemplo as conhecidas diferenças entre os actuais catolicismo, ortodoxismo e anglicanismo, no que respeita ao celibato dos sacerdotes, à infalibilidade do papa, ao culto mariano e muito mais. Ao contrário do cisma, a heresia põe em causa os dogmas. No primeiro milénio predominaram as heresias; no segundo, os grandes cismas. A história do cristianismo está cheia de pequenos cismas, de papas e antipapas. Já referimos o cisma de Hipólito, que dividiu o bispado de Roma, mas muitos mais se seguiram não só em Roma como em Alexandria, Cartago e mais tarde em Constantinopla. Citemos apenas os cismas de maior relevância, ocorridos no primeiro milénio, pelos nomes dos cismáticos vencidos, cismas anteriores portanto ao Grande Cisma do Oriente: Novaciano, (251), Donato (313), Ursácio (380), Acácio (484), Constantino (769), Fócio (820) e Leão VIII (963).
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Muito mais graves foram os cismas entre Roma e Constantinopla, pois quebraram a unidade de toda a cristandade. Recorde-se que no Império do Oriente a língua de cultura era o grego, enquanto no Ocidente o latim era a língua unificadora dentro da Igreja. O primeiro cisma relevante com Constantinopla foi o acaciano em 484. Acácio, bispo de Constantinopla e simpatizante do monofisismo, foi excomungado pelo bispo de Roma, Félix III. Este cisma, que dividiu a cristandade em oriental e ocidental, durou 35 anos. A segunda grande cisão foi protagonizada pelo patriarca de Constantinopla, Fócio (820-895) e o papa Nicolau I, originando um breve cisma de 10 anos, solucionado no Concílio de Constantinopla de 867. O imperador bizantino depôs o patriarca Inácio de Constantinopla, e Fócio ocupou o seu lugar, mas o bispo de Roma, Nicolau I, não o reconheceu e excomungou-o. Fócio, por sua vez, excomungou Nicolau. Pouco depois, o imperador, pressionado pelos adversários de Fócio, expulsou-o e convocou um concílio ecuménico em Constantinopla em 869, onde aquele foi expulso da Igreja e reposto Inácio. Mas quando Inácio morreu, em 877, Fócio foi de novo nomeado patriarca, dignidade que manteve até 886, sendo então deposto por Leão VI. Foi autor de inúmeras obras teológicas, sendo um santo venerado pela Igreja Ortodoxa. A pormenorização destes factos dá-nos uma ideia da confusão que se vivia e da pouca autoridade dos bispos de Roma. Mas todos estes cismas do primeiro milénio acabaram bem. Em 1054 agravou-se o velho antagonismo que opunha a Igreja de Roma à de Constantinopla, dando-se a rotura definitiva por alegadas divergências doutrinárias sobre a Santíssima Trindade. Os que acompanharam as teses de Constantinopla, os ortodoxos (que respeitam os cânones originais), foram com o tempo criando as suas comunidades autónomas, grega, sérvia, búlgara, arménia, siríaca e russa, mantendo o patriarca de Constantinopla um certo ascendente não mais que espiritual. Nesta passagem de milénio, com a expansão turca, a correlação de forças alterou-se consideravelmente em favor de Roma. Bizâncio estava agora reduzida às províncias europeias e a um pequeno território à volta de Constantinopla, correndo o sério risco de colapsar perante a pressão turca, como veio a verificar-se. Por outro lado, a Hispânia estava a ser reconquistada com êxito, e a Europa, mais estabilizada, contava agora com poderosos estados cristãos. Tinha chegado a hora de Roma não tolerar mais a hegemonia oriental. Mas voltemos ao cisma. O pomo da discórdia entre Roma e Constantinopla vinha já de longe, e as divergências acerca da Trindade não passaram de um pretexto para a primeira se libertar definitivamente da rival, cujo esperado fim se avizinhava.
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Há muito que os bispos de Roma se achavam os legítimos herdeiros de Pedro, que consideravam o primeiro papa, além de que Roma, a capital do antigo império, deveria também ser a sede da autoridade religiosa máxima. Os bizantinos argumentavam que a capital fora há muito transferida para Constantinopla, a quem chamavam a Nova Roma, residência do imperador, e que o Ocidente do Império se desmoronara. Por outro lado, a parte oriental era a maior, a mais rica e a mais culta, com maior número de crentes, onde se tinham realizado todos os concílios ecuménicos e onde floresceram as grandes escolas teológicas. Vejamos sucintamente as razões formais da rotura, a controvérsia à volta do filioque. No Primeiro Concílio de Niceia ficou definida a natureza da divindade consubstanciada em três pessoas distintas, o Pai, o Filho e o Espírito Santo, todas três com igual essência divina, mas em que o Espírito Santo procedia unicamente do Pai. Proceder significa que provém, que tem origem em, que está subordinado a. Com o tempo, e em particular depois do Concílio Não Ecuménico de Toledo (589) sem a presença de orientais, passou a considerar-se que o Espírito Santo também procedia do Filho, acabando esta descoberta por ser incorporada na doutrina romana. Assim, enquanto no Oriente o Espírito Santo procedia do Pai através do Filho, no Ocidente, o Espírito Santo procedia tanto do Pai como do Filho (filioque = e do Filho). Claro que outras divergências há muito ensombravam as relações entre as duas rivais, como a questão do celibato dos padres, o uso do pão ázimo na eucaristia romana, as representações pictóricas e esculturais de entidades divinas e de santos, etc., mas foi esta importante divergência teológica que conduziu à rotura. Os patriarcas de Constantinopla consideravam-se os verdadeiros defensores do espírito de Niceia, os ortodoxos, e acusavam os de Roma de heréticos, de falsificadores da Fé, de heterodoxos. O papa Leão VIII esforçou-se por reconciliar as duas posições, enviando emissários a Constantinopla em 1054, mas estes nada conseguiram e acabaram por depositar a bula de excomunhão do patriarca Miguel Cerulário no altar de Santa Sofia, consumando até hoje o cisma. E o que não se obteve pela persuasão dos emissários papais iria em breve ser tentado, igualmente sem êxito, pela força das armas.
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CAPÍTULO XIII
A QUESTÃO DAS INVESTIDURAS
GREGÓRIO VII
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regório VII (papa de 1073 a 1085) surge numa época em que a Igreja e o Estado constituem uma unidade política, a monarquia sagrada. Esta fusão tinha sido altamente benéfica para o papado, já que lhe permitira o alargamento de bispados e mosteiros, a posse de avultados legados e doações e a conversão coerciva de numerosas populações. Tinha no entanto um óbice. A hierarquia sacerdotal era na prática nomeada por reis e senhores, ficando portanto dependente daqueles que a consideravam como agente do Estado. Também a eleição e a consagração dos papas estavam sujeitas à aprovação do imperador do Sacro Império Romano-Germânico, quando não mesmo era este que impunha o seu favorito, não passando a eleição de um mero acto formal. Já inúmeras vozes se tinham manifestado contra esta intolerável subordinação, desaprovando em particular o processo de investidura dos bispos por reis, príncipes e nobres. Investidura significa dar posse de um cargo, nomear. O Mosteiro de Cluny, na Borgonha, e os seus 3000 mosteiros associados por toda a Europa Ocidental foram, nos séculos X, XI e XII, a principal
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força espiritual cristã de cariz reformador, sede de reflexão sobre a vida da Igreja, da sua missão evangélica, do papel do papa e da necessidade de reformas. Sem se opor claramente à ordem e aos hábitos instituídos, como a investidura laica, o casamento dos sacerdotes, o dever de cruzada e outras questões então polémicas, os monges de Cluny destoavam da pasmaceira reinante. É, pois, natural que tenham emergído do ambiente de Cluny as mentes mais iluminadas e os mais entusiastas adeptos das reformas. Foi o caso de Gregório VII, a quem coube a primeira tentativa séria de pôr cobro à investidura laica, tarefa particularmente difícil, já que o pensamento da época aceitava com toda a naturalidade a ideia de que, se o poder real provinha de Deus, o exercício deste poder devia estender-se às questões religiosas. Enfrentando corajosamente o poderoso monarca alemão, Gregório VII iniciou um processo conflituoso que iria marcar as relações de poder entre a Igreja e os estados europeus que, com altos e baixos, com matizes diversos, se arrastaria até à Revolução Francesa. Gregório, italiano de origem modesta, fez a sua formação no Mosteiro de Cluny, viajou por diferentes terras, conheceu diversas realidades, acabando por ser chamado a Roma pelas suas qualidades indiscutíveis. Ao serviço de vários papas, desempenhou tarefas diplomáticas e administrativas, auferindo de grande ascendente como líder do movimento reformador na cúria. Quando, sem rivais à sua altura, foi eleito com 53 anos (1073), levava em mente três objectivos fundamentais: acabar com a investidura laica, com o casamento dos sacerdotes e com a simonia. Considerava o rei um laico como outro qualquer e, como cristão, um súbdito da Igreja, devedor a esta, portanto, de obediência em matéria moral e religiosa. O papa, chefe supremo de toda a cristandade, sobrepunha-se a reis e a imperadores, competindo-lhe investir os primeiros da graça divina do poder, e destituí-los, se necessário, quando não estivessem à altura de cumprir os desígnios para que foram chamados pela divindade. Prudentemente, recusou ser consagrado sem a prévia sanção do poderoso e jovem monarca alemão Henrique IV, mas, de imediato, anunciou a proibição das investiduras laicas, ameaçando de excomunhão investidor e investido. Henrique IV, apanhado de surpresa, incitou os nobres e os bispos contra esta intromissão e convocou um sínodo em Worms, nas margens do Reno a sul de Francoforte, onde se decidiu pela destituição do papa. Logo depois, interveio na eleição e na investidura do bispo de Milão, afrontando a interdição papal. Gregório não se intimidou e excomungou Henrique, desobrigando os seus súbditos do juramento de vassalagem. E uma vez mais temos a cristandade dividida. Como pode um imperador banido da Igreja ser o chefe máximo de um império cujo fundamento é a própria Igreja?
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Henrique IV ficou desorientado, tanto mais que o seu poder não se exercia de igual modo em todos os seus domínios. Muitos reinos e ducados estavam na posse de príncipes e nobres, vassalos do imperador, mas sedentos de autonomia e senhores de exércitos próprios. Vendo uma maneira de se verem livres de Henrique, tomaram o partido do papa, reuniram-se em Tribúria, junto de Francoforte, (1076) e dirigiram ao monarca um claro ultimato: «Se, dentro de um ano, Henrique não for absolvido pelo papa, perderá o trono e será eleito outro imperador». Henrique vê-se seriamente ameaçado e resolve submeter-se à vontade do papa. O encontro ocorreu no Castelo de Canossa nos Apeninos. Gregório fez o imperador esperar três dias fora das muralhas, ao frio, descalço e com trajes de penitente (Janeiro de 1077), deixando-o finalmente entrar e absolvendo-o. Foi uma humilhação como não rezava a História. E os príncipes alemães, ou por não terem imaginado que o imperador se sujeitasse a tamanho ultraje ou por não aceitarem um imperador completamente desacreditado, convocaram nova assembleia, dois meses depois, e elegeram um novo imperador, Rodolfo da Suábia, a sudoeste da actual Baviera. E os anos que se seguem são de sangrenta guerra civil entre os exércitos rivais, tendo o príncipe Conrado, filho de Henrique, tomado o partido dos papistas, talvez esperançado num futuro radiante. Gregório hesita, vê como param as modas, e acaba por reconhecer Rodolfo, excomungando pela segunda vez Henrique IV. Mas jogou no cavalo errado. Rodolfo morreu pouco depois e os dois anti-reis que lhe sucedem, Hermano e Malgrafe, têm o mesmo triste destino, desventuras que são entendidas pelo povo como desígnios de Deus. O curso da guerra é agora favorável a Henrique, que acaba por derrotar os inúmeros adversários, ficando senhor do vasto império. Depois de ajustar contas com o seu primogénito, Conrado, só lhe faltava ajustá-las com Gregório. Não indo desta vez em conversas, invadiu a Itália, entrou em Roma, destituiu o papa e substituiu-o por um alemão de sua total confiança, Clemente III (1080-1100), que de imediato o absolve e coroa. Gregório foge, refugiando-se no reino Normando no Sul da península, morrendo anos depois em Salerno, a sudeste de Nápoles. E a grande confusão instala-se em Roma. Clemente é considerado antipapa, e a nobreza romana chefiada pela condessa Matilde faz eleger Vítor III (1086), que expulsou Clemente pela força das armas. Mas Vítor, mais vocacionado para as actividades marciais, abandonou o papado, quatro meses depois, para se dedicar à cruzada. É substituído por Urbano II. Clemente e os seus apoiantes, refugiados nas fortalezas de Roma, não desarmam, mesmo depois de excomungados por Urbano.
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Henrique volta a invadir a Itália, mas é derrotado pelo exército que Urbano conseguira reunir. Quando Urbano morre, em 1099, não sem antes ter excomungado o rei de França, Filipe I, por ter trocado a esposa por outra, é eleito Pascoal II, mau grado os esforços de Clemente. A cristandade mantêm-se dividida entre as duas facções, pois, quando Clemente deixa este mundo, em 1100, é sucedido por mais três antipapas, Teodorico, Alberto e Silvestre III, só terminando o cisma em 1111. PASCOAL II O longo pontificado de Pascoal II (1099 a 1118) foi marcado por violentos confrontos com os antipapas do partido alemão, com a nobreza italiana e com os soberanos rebeldes. Um dos seus primeiros actos foi excomungar Henrique IV, que assim se vê banido da cristandade pela terceira vez. Seu segundo filho, Henrique, ávido de poder, toma o partido do papa, aprisiona o pai e obriga-o a abdicar (1106). Henrique IV morreu um ano depois e, como estava excomungado, o seu cadáver ficou cinco anos insepulto. Pascoal pensou que iria ter um imperador submisso, mas enganou-se. Ordenou-lhe que renunciasse ao direito de investir bispos e em contrapartida retiraria aos bispos direitos feudais. Henrique V respondeu-lhe que não se podia despojar de direitos herdados dos seus antepassados. Invadiu a Itália (1110) e instalou-se em Roma, disposto a negociar na condição de ser coroado pelo papa. Este vê-se constrangido a coroá-lo, mas agora são os prelados romanos que se opõem e impedem a coroação. O monarca perdeu a paciência, raptou o papa e toda a sua cúria e só o libertou quando este se resignou a coroá-lo e a desistir da sua teimosia relativa às investiduras. Mas, mal o imperador atravessou os Alpes, Pascoal II denunciou o acordo assinado sob coacção e excomungou o imperador. Os príncipes ficam encantados, revoltam-se contra o excomungado e nova guerra devasta uma vez mais a Alemanha. Henrique V, depois de resolver os problemas internos, regressa a Roma (1116), destitui Pascoal e faz eleger Gregório VIII, tendo o partido romano eleito Gelásio, pois Pascoal morrera entretanto. Diga-se, de passagem, que Pascoal também já tinha excomungado o rei de Inglaterra, Henrique I, e confirmado a excomunhão de Filipe I. A seguir há outra vez dois papas, Gelásio, que reiterou a sentença de excomunhão a Henrique V, a que se seguiu Calisto II, um ano depois, e o cismático Gregório VIII, que se manteve até 1121. Calisto II (1119-1124), bem mais contemporizador que os seus antecessores, retirou a excomunhão ao imperador e optou pela via do diálogo. Foi, assim, que firmou com este o Acordo de Worms (1122), consagrando uma dupla investidura em territórios do império. À Igreja competia a investidura espiritual, simbolizada pelo anel e pelo báculo (bengala episcopal), enquanto ao monarca estava reservada a investidura terrena, bens e regalias civis, simbolizada pelo ceptro.
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ALEXANDRE III Este consenso não durou muito. O imperador do Sacro Império, Frederico I, o Barba Roxa, pretendeu recuperar a primazia imperial na questão das investiduras, levando o papa Alexandre III a excomungá-lo (1160). E de novo se instala a guerra entre os partidários do papa e os do imperador, que se arrastou por 20 anos. O Norte da Itália foi arrasado, de Milão não ficou pedra sobre pedra. Quando Barba Roxa entrou em Roma, já Alexandre dera à sola, e os quatro papas que se seguiram foram nomeados pelo imperador – Vítor IV, Pascoal III, Calisto III e Inocêncio III. Claro que a excomunhão é anulada. Mas este longo e sangrento conflito acabou por não ser favorável ao imperador. As cidades do Norte de Itália, ansiosas por se libertarem do jugo alemão, criaram a Liga Lombarda e infligiram uma severa derrota ao exército imperial na Batalha de Legnano (entre Milão e o lago Maggiore, 1176). Alexandre, que passara todos estes anos escondido, regressa, triunfante, mas agora são os nobres romanos que preferem Inocêncio III, e o infeliz papa volta a fugir pela segunda vez, morrendo pouco depois. Barba Roxa foi obrigado a fazer tréguas com os italianos, cedendo-lhes alguma autonomia, mas manteve a guerra contra os príncipes alemães. Quando finalmente vem a paz, sem saber o que fazer, abdica em seu filho Henrique VI, o Cruel, e passa a dedicar-se inteiramente a obras de Deus. Prepara meticulosamente um exército de 100.000 homens, o ramo germânico da Terceira Cruzada. Mas quis o destino que não chegasse a pisar a Terra Santa. Morreu afogado num rio na Cilícia, no Sul da Turquia (1190). INOCÊNCIO III Seguem-se cinco venerandos papas com pouca história, até que em 1198 é eleito Inocêncio III (1198-1216) com 37 anos (não confundir com o anteriormente citado Inocêncio III, antipapa e portanto não reconhecido). Enérgico e esclarecido, começou por restaurar a autoridade do papa em Roma e nos Estados Pontifícios. Depois virou-se decididamente para as questões europeias, intervindo directamente nas constantes quezílias entre soberanos e nobres, e combatendo sem tréguas as heresias, como veremos. Henrique VI morreu subitamente com 32 anos (1197), deixando um herdeiro com dois anos apenas. Sem entrarmos em grandes pormenores sobre os tumultuosos tempos que se seguiram à volta da sua sucessão, o que é certo é que o Sacro Império se desmoronou temporariamente, dando lugar a uma pulverização de estados senhoriais. Simultaneamente, verifica-se a ascensão da França e da Inglaterra e a estabilização de novos estados cristãos, como a Hungria, a Boémia, a
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Bulgária e a Arménia, com soberanos ansiosos por receberem a coroação papal, garantia do reconhecimento da sua autoridade. Com fronteiras movediças, com constantes conflitos, era sentida, mais do nunca, a necessidade de uma autoridade supra-estatal que reconhecesse o direito de soberania e pudesse intervir como medianeira. Os estados emergentes precisavam dessa autoridade suprema como do pão para a boca, e para tal estavam dispostos não só a pagar ao papa vultuosos tributos como em satisfazê-lo nas suas exigências. Que o diga o nosso bom rei Afonso I, cuja independência lhe custou os olhos da cara, pois já pagava tributo desde 1137, mas só foi reconhecido como rei pelo papa Alexandre III em 1179 mediante um astronómico aumento. As coisas também corriam bem no Oriente. Com a conquista de Constantinopla (1204) pelos Cruzados foi criado o Império Latino de Constantinopla e era enorme o entusiasmo com que se imaginava que se iria retomar Jerusalém, que caíra em poder dos muçulmanos em 1187. Por outro lado, quem melhor do que o papa poderia coordenar o esforço de guerra contra o islão, esforço que teria de ser comum a todos os reinos cristãos? Inocêncio soube astutamente aproveitar esta situação favorável para ir impondo a sua primazia nos assuntos religiosos e também na esfera política. A troco de apoios diplomáticos e políticos, os soberanos foram cedendo posições na questão das investiduras. Os bispos passaram a ser eleitos e não designados, e nos casos polémicos o papa reclamava o direito de nomeação. Passou também a castigar e a demitir bispos, sem a interferência dos reis. Finalmente, os arcebispos foram obrigados a vir a Roma receber directamente do papa o seu pálio (faixa de lã branca crivada de cruzes pretas). Mais tarde, deslocar-se-iam a Roma de 4 em 4 anos para renovar o seu juramento de fidelidade e obediência. Quando Inocêncio III, dilacerado por febres, entregou a alma ao Criador, o problema das investiduras estava momentaneamente sanado e criadas todas as condições que levariam à hegemonia papal em toda a cristandade latina.
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AS CRUZADAS E AS POSSESSÕES LATINAS NO ORIENTE
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té ao século XI o mundo cristão e o mundo muçulmano mantiveram no Oriente relações amigáveis. Os mercadores árabes levavam os produtos orientais até Constantinopla, Cairo, Tunes e outros portos, e os navios italianos, em particular os venezianos, compravam e distribuíam a mercadoria. Os peregrinos cristãos visitavam livremente os lugares santos da Palestina. Com as conquistas dos turcos seldjúquidas (Seldjuque o chefe turcomano que iniciou a dinastia), a situação piorou, a ponto de se temer que fossem cortadas aquelas importantes rotas comerciais. O papa Urbano II (1088-1099) concebeu então a ideia de uma maciça peregrinação à Terra Santa, não só para atender ao apelo dos cristãos do Oriente mas também para arrebatar aos infiéis a cidade santa de Jerusalém e o Santo Sepulcro, unindo nesta nobre tarefa toda a cristandade. A ideia foi aprovada no Concílio de Clermont, a oeste de Lion em 1095. Estava dado o primeiro passo para a mais trágica epopeia da Idade Média. Será que este papa visionava recuperar o que fora o antigo Império Romano e voltar a unir toda a cristandade? A verdade é que os séculos XII e XIII foram dominados pelo espírito das cruzadas, levando a guerra à Anatólia, à pacífica Palestina e ao Norte de África durante quase dois séculos (1096 a 1291).
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Realcemos alguns aspectos por vezes ofuscados pela tradicional descrição dos feitos de bravura dos Cruzados em nome da Fé. Em primeiro lugar, há que referir que o espírito de cruzada é muito anterior às Cruzadas do Oriente. Vem dos tempos de Carlos Magno, como já relatámos. Exemplo significativo foi a conquista da Inglaterra pelo normando Guilherme, o Conquistador (1056), cuja expedição, ostentando o estandarte papal, foi abençoada pelo papa Alexandre II. A História dá-nos conta das barbaridades cometidas pelos conquistadores sobre as populações anglo-saxónicas, já há muito cristianizadas, embora de pouca devoção papal. Em segundo lugar, deve ser dito que aos papas coube a principal responsabilidade pela instigação, planeamento e definição dos objectivos das expedições. Aos soberanos competia o financiamento e o recrutamento muitas vezes coercivo dos combatentes e, claro, a parte operacional, à qual hoje chamaríamos carne para canhão. Em terceiro lugar, a ocupação e a exploração de territórios ricos, o controlo do comércio com o Oriente e o saque vieram encher os cofres de muito boa gente, sobretudo do papado, mas também das ordens militares, como a dos templários, como veremos a seguir. O fervor religioso depressa foi substituído pela ganância desenfreada, o espírito evangélico, pelas mais tenebrosas orgias de sangue de que reza a História. Em quarto lugar, as acções militares não tinham apenas os turcos infiéis como inimigos, mas também os cristãos gregos e bizantinos, como igualmente veremos. Também os húngaros, há muito cristianizados, os judeus alemães e os cristãos do Oriente foram massacrados. Os bizantinos, que receberam a boa nova com optimismo, cedo verificaram que os intrusos eram bem mais indesejáveis do que os turcos, e que os seus propósitos de conquista, de indescritível crueldade, não olhavam a credos. E tanto levavam a guerra aos sarracenos como a faziam entre si, na ânsia de dilatarem os seus domínios. Nas constantes disputas firmaram-se efémeras alianças quer entre cristãos, quer entre cristãos e muçulmanos. Em quinto lugar, contanos a História que houve oito cruzadas, mas, na realidade, as expedições militares constituíram um movimento quase permanente. De que outro modo se poderá explicar que o intervalo que mediou entre a 1ª e a 2ª tenha sido de 51 anos e entre a 2ª e a 3ª de 42 anos? Por outro lado, a 4ª, a 7ª e a 8º não chegaram à Terra Santa, e a 6ª ficou em águas de bacalhau. Quanto à 5ª, partiu de Jerusalém com destino ao Egipto. Será por isto que para uns historiadores só houve seis cruzadas, enquanto para outros elas foram oito? Em sexto lugar, há que reter que os vários reinos, principados ou condados que foram sendo criados pelos invasores não eram colónias ou possessões dos reis europeus que tinham armado e enviado as expedições
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conquistadoras, mas sim estados autónomos de obediência romana, a quem pagavam tributo. Tem sido defendido que os papas, ao incentivarem as cruzadas, procuravam desviar a indomável energia bélica dos senhores germânicos, francos e normandos para a luta contra os verdadeiros inimigos da Fé, e já agora contra os cismáticos do Oriente, e assim libertar as terras cristãs ocidentais dos constantes e inúteis conflitos armados que só desgastavam a verdadeira cristandade. Também corre que às cruzadas se deve a contenção da expansão turca e a salvação da cristandade e da civilização europeia. Nada mais falso. Os turcos, seriamente ameaçados pelas conquistas mongóis, foram obrigados a defender a sua retaguarda, mas, uma vez aliviados daquela pressão, depararam com a parte europeia do Império Bizantino enfraquecida e desorganizada, exactamente devido às cruzadas. E quando reiniciaram a sua expansão para o Ocidente, há muito que não havia cruzadas, como se pode verificar pelas datações: em 1389, submetem a Sérvia na Batalha do Cossovo; em 1396, a Bulgária; em 1430, a Macedónia; em 1453, tomam Constantinopla e põem fim ao que restava do Império Romano do Oriente. Três anos depois invadem a Grécia. Em 1529, o imenso exército de Solimão, o Magnífico, depois de conquistar a Hungria, cercou Viena de Áustria, que escapou por pouco. Em 1571 foi a vez de Chipre, o último bastião cristão no Mediterrâneo Oriental. A verdade é que, quando em 1291 caiu o último reduto católico em terras da Palestina, a Fortaleza de São João de Acre na cidade de Ptolomeu, actualmente, Ácon ou Akko, os povos europeus encontravam-se mais depauperados que nunca pelas incorporações coercivas, pelos impostos exigidos para o esforço de guerra, pela escassez de mão-de-obra nos campos, pelos milhares de viúvas e órfãos. As comunidades cristãs do Oriente praticamente desapareceram na voragem da guerra, e as duas principais confissões cristãs, a católica e a ortodoxa, ficaram definitivamente irreconciliáveis. Afinal, tudo para nada. Mas quantos milhões de seres humanos foram vítimas destes papas belicistas? Vejamos sucintamente o desfecho das principais expedições, na versão das oito Cruzadas. 1ª CRUZADA (1096-1099) A chamada Primeira Cruzada contou com duas expedições distintas. A primeira, dirigida por Pedro, o Eremita, arrebanhou peregrinos, guerreiros, monges, salteadores, camponeses esfaimados, mulheres e crianças que, para subsistirem, tudo saqueavam à sua passagem. Quando atravessaram o Reno, depararam com comunidades judaicas, que chaci-
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naram e pilharam selvaticamente, seguindo-se a Hungria e os Balcãs, cujas populações cristãs sofreram igual sorte. Na Hungria, parte considerável dos expedicionários encontraria a morte frente à resistência local. Os sobreviventes atravessaram o Bósforo, mas a sua fama era tal que o imperador bizantino lhes fechou as portas de Constantinopla. Progrediram pela Anatólia, acabando tão louca aventura completamente dizimados pelos turcos. A segunda expedição, no ano seguinte, era já uma força militar considerável, à volta de 100.000 homens. Bem organizada, coube a Urbano II a direcção e o planeamento. Como o rei francês Filipe I e o imperador do Sacro Império estavam excomungados, o papa contou apenas com príncipes e nobres, a maior parte franceses. Os vários exércitos dirigiram-se por diferentes itinerários até Constantinopla, tendo sido recebidos pelo imperador, que lhes exigiu vassalagem. Depois de chegarem a acordo, acordo que nenhuma das partes cumpriu, os cruzados tomaram e saquearam a cidade de Niceia, na posse dos turcos desde 1076, e que ficou sede de um ducado católico. Atravessaram a Anatólia e cercaram durante oito meses Antioquia, que acabou por cair, ficando sede do primeiro principado cristão. Outros cruzados tomaram Edessa, Tarso e outras cidades. Dirigiram-se depois para a Palestina, onde travaram sangrentos combates e praticaram os mais abomináveis actos de pilhagem e canibalismo. Finalmente, uns 20 000 cruzados chegaram às muralhas de Jerusalém e, após cinco semanas de cerco, apoderaram-se da cidade (1099). Seguiu-se um banho de sangue, em que não foram poupados velhos, mulheres e crianças. «O sangue dos sarracenos chegava aos joelhos dos cavalos». As cidades e os territórios conquistados deram lugar a pequenos estados cristãos, tendo Godofredo de Bulhões assumido o título de Rei do Reino Cristão de Jerusalém. 2ª CRUZADA (1147-1149) Quando Edessa foi de novo tomada pelos infiéis, S. Bernardo pregou nova cruzada, que teve a bênção do papa Eugénio III e a adesão do rei de França, Luís VII, e do imperador alemão Conrado III, que unificaram os seus exércitos. Chegaram a sitiar Damasco, mas acabaram por ser dizimados pelos turcos. 3ª CRUZADA (1189-1192) Jerusalém voltou ao domínio turco em 1187, após o esmagamento dos exércitos cristãos em Tiberíade por Saladino, o célebre chefe curdo ao serviço dos turcos. Os cristãos da cidade foram poupados, e os peregrinos, au-
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torizados a visitar os lugares santos. Foi um duro revés para a cristandade, levando o papa Clemente III a apelar a uma nova cruzada, com o objectivo de a Cidade Santa ser recuperada. Todos os monarcas respondem de imediato, constituindo a mais poderosa força militar da cristandade até então. O rei inglês Ricardo, o Coração de Leão, e o francês Filipe II partiram por mar, cada um na sua esquadra. Frederico, o Barba Roxa, imperador excomungado, conduziu o seu numeroso exército, bem organizado e armado, através da Hungria e dos Balcãs, atingiu o Bósforo e fez pausa em Constantinopla antes de se embrenhar em terras infiéis. Em Icónio derrotou o exército turco, mas, pouco depois, e como já se referiu, morreu afogado (1190), e o seu exército, sem o indómito chefe, não teve fôlego para ir mais além. Entretanto, os reis de França e de Inglaterra depois de um longo cerco tomaram São João de Acre, que saquearam, fazendo 3000 prisioneiros entre a guarnição. Conta a história que os dois monarcas se apaixonaram e tiveram um caso, acabando por se zangar e voltando o francês para casa. Ricardo ficou e mandou executar os cativos, fazendo tábua rasa das leis da guerra que valorizavam os prisioneiros como bens de troca ou de resgate, indignando Saladino e as suas hostes. Há historiadores que justificam esta carnificina, afirmando que Ricardo não teve outro remédio senão desembaraçar-se dos infiéis, pois, se queria conquistar Jerusalém, não podia dar-se ao luxo de deixar ficar para trás os efectivos necessários à sua guarda. Marchou sobre Jafa, uma cidade costeira a 100 km a sul de Acre, já bem perto da Cidade Santa, que igualmente conquistou e saqueou. Empreendeu então duas ofensivas contra Jerusalém, mas nenhuma delas chegou sequer às muralhas da cidade, desistindo em ambas e voltando para trás, pois os cruzados, exaustos e desfalcados pelas doenças e pelos constantes combates, já não tinham ânimo para tão dura empresa. Na segunda retirada, rumou a Acre e não a Jafa, que ficou desguarnecida, sendo ocupada pelos muçulmanos. Ricardo reúne os seus homens, reconquista Jafa e massacra impiedosamente a população. Foi o último feito glorioso de Ricardo em terras da Palestina. Tenta ainda persuadir Saladino a ceder-lhe pacificamente a cidade, chegando a propor-lhe o casamento da sua irmã com o seu irmão, ficando ambos a governar idilicamente Jerusalém. Mas tudo foi em vão. O astuto Saladino não foi em conversas. Reconhecendo por fim a impossibilidade de Jerusalém voltar às mãos cristãs, Ricardo regressou ingloriamente à velha Álbion (nome que se dava à Inglaterra, devido às suas falésias brancas). Na passagem por Chipre, conquistou a ilha (1191) e logo a vendeu aos templários. Não podia voltar para casa de mãos a abanar. Chipre foi a par-
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cela oriental que mais tempo permaneceu sob o domínio cristão, tendo sido recuperada pelos turcos otomanos em 1571. 4ª CRUZADA (1202-1204) O papa Inocêncio III apelou a uma nova cruzada, que deveria reunir os maiores exércitos da cristandade, para mais uma tentativa de reconquistarem Jerusalém. Mas só o rei Balduíno IX da Flandres e alguns outros nobres responderam. Os cruzados dirigiram-se a Veneza para embarcar para a Terra Santa, mas os homens de negócios desta cidade convenceram-nos a desviar-se para a Dalmácia, actual Croácia, e conquistarem Zara. A cidade foi saqueada. Meses depois, foi a vez de Constantinopla, presa muito mais gratificante do que as incertas aventuras mais a sul. Depois de violentos combates, em que um exército de gregos cristãos de 70.000 homens foi completamente desbaratado, a cidade foi tomada e saqueada em 1203. Mas os cruzados resolveram abandonar a grande metrópole e fixaram-se em Pera e em Galata, e os Bizantinos aproveitaram o ensejo e retomaram a cidade. No ano seguinte, os cruzados voltaram à carga, e a cidade foi novamente tomada e, desta vez, destruída, incendiada, e a sua população, massacrada. Cruzados e venezianos dividiram o saque entre si. A Grécia e as suas possessões insulares foram divididas pelos venezianos, flamengos, franceses, alemães e lombardos, e Balduíno, conde da Flandres, foi eleito imperador. Assim nasceu o Império Latino de Constantinopla. Mas foi de pouca dura o domínio ocidental nestas paragens. Os bizantinos haviam recuperado Niceia e fizeram dela a sua capital durante a vigência do Império Latino. Foram seis décadas de guerras, de perseguições, de revoltas constantes e ferozes retaliações, até que Miguel IV, rei de Niceia, reconquistou Constantinopla em 1261, recuperando de seguida parte da Grécia e de outros territórios do antigo Império Bizantino. A CRUZADA INFANTIL (1212) Esta não faz parte das oito cruzadas, mas não deve ser esquecida. Os constantes insucessos dos valorosos guerreiros fizeram surgir a ideia de que, afinal, Deus deveria preferir o serviço de crianças e de virgens para resgatar a Terra Santa. O bom papa Inocêncio III achou a ideia genial e, logo, milhares de inocentes foram arrebanhados por todo o lado. As crianças francesas, comandadas pelo pastor Estêvão, e as alemãs, por Nicolau, com apenas 10 anos, deixaram as suas casas e de lá partiram, alegremente, com destino aos portos de Marselha e de Brindes, no Adriático, para se fazerem ao mar.
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CAPÍTULO XIV
Mas tudo acabou na maior tragédia. Desorientadas e famintas, entregues ao seu destino, deambulando por ambientes desconhecidos e hostis, muitas crianças foram capturadas por marinheiros que as venderam como escravas em Alexandria, acabando outras em bordéis portuários. Poucas terão regressado a casa. 5ª CRUZADA (1217-1221) Foi organizada por João de Brienne, que se intitulava Rei de Jerusalém, rei sem reino, e pelo rei da Hungria, André II, e o objectivo era a conquista do Egipto. Tomaram Dumiate, no delta do Nilo, levando a cabo um terrível genocídio. Foram depois derrotados e os sobreviventes feitos prisioneiros, tendo sido poupados pelo sultão. 6ª CRUZADA Será tratada na breve crónica de Frederico II. 7ª e 8ª CRUZADAS (1248-1254 e 1270) Foram organizadas pelo piedoso monarca francês Luís IX, o Santo, em pagamento de promessas. O seu objectivo megalómano era a conquista do Egipto, trampolim para a Terra Santa. Conquistou Dumiate, mas depois o seu exército foi desbaratado em Mansurá, perto do Cairo, ficando cativos os sobreviventes, incluindo o rei, que abandonou Dumiate em troca da sua libertação. A segunda expedição não foi mais feliz. O rei morreu em frente de Tunes quando o exército se dirigia para a Terra Santa, com ideias de a reconquistar, numa época em que todas as possessões cristãs naquelas paragens estavam a passar para mãos turcas, uma após outra, e o exército regressou a França. Como dissemos, a última cidade cristã na Palestina foi Ptolomeu (São João de Acre), que caiu, em 1291, marcando o fim inglório das Cruzadas à Terra Santa. Mas o espírito de Cruzada manteve-se até finais da Idade Média, e muitas foram dirigidas contra povos europeus. Referiremos adiante as cruzadas contra os cátaros, os valdenses, os hussitas da Boémia e os povos bálticos. E não podemos esquecer o contributo dos cruzados na reconquista na Península Ibérica. Lembremos que Lisboa foi tomada aos mouros em 1147 com a ajuda imprescindível dos cruzados vindos do Norte. Mas as Cruzadas não eram unicamente dirigidas contra infiéis, pagãos e heréticos. São inúmeras as expedições organizadas por papas e bispos contra populações de rito romano. A mais conhecida pelas suas proporções e barbarismo foi decretada por Gregório IX contra os camponeses do
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Norte da Alemanha, que se recusavam a pagar o dízimo e outros tributos ao bispo de Brema, razão por que foram considerados heréticos e excomungados. Um exército com cerca de 40.000 cruzados arrasou a região, tendo sucumbido 6000 rebeldes (1233), o que, na História, ficou conhecido como a Chacina dos Stedinger.
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CAPÍTULO XV
OS MONGES GUERREIROS
U
m dos fenómenos religiosos mais interessantes desta época de cruzada foi a criação na Palestina de corpos militares de frades, as ordens de cavalaria, que após a expulsão dos senhores cristãos do Oriente mantiveram a sua actividade guerreira na Europa durante séculos. Além dos três votos monásticos, pobreza, castidade e obediência, estes guerreiros profissionais obrigavam-se a proteger os peregrinos na Terra Santa e a defender o Santo Sepulcro dos infiéis. Cedo se dedicaram a práticas bem diferentes, como veremos. Foram três as principais ordens de cavalaria, a de S. João, posteriormente de Malta, a dos Cavaleiros Templários e a Ordem Teutónica, às quais faremos breves referências. Mas muitas mais foram posteriormente criadas nos estados europeus, como a de Santiago, a de Avis, a de Calatrava, a de Cristo, etc. ORDEM DE S. JOÃO OU DE MALTA Por volta de 1050, meio século antes da tomada de Jerusalém pelos cruzados, tinha sido criado nesta cidade um albergue e, pouco depois, um hospício e uma capela, esta dedicada a S. João Baptista, destinados aos peregrinos cristãos que afluíam em grande número para visitarem os lugares santos. A assistência era garantida por uma comunidade religiosa sustentada por doações de mercadores cristãos.
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Com a conquista da cidade e o estado de guerra permanente trazido pelos cruzados, aquela instituição viu-se a braços com um súbito incremento do movimento assistencial, obrigando o rei Godofredo e outros nobres a financiá-la do seu próprio saque, já que não abundavam os tradicionais doadores. E como quem paga quer mandar, e porque a mão-de-obra talvez escasseasse, pois «sabe Deus» quantos dos abnegados religiosos foram para os Céus na voragem da matança, o bondoso monarca criou uma congregação a que deu o nome de S. João Baptista, confirmada poucos anos mais tarde pelo papa Pascoal II, que lhe mudou o nome para Ordem de S. João (manto negro com cruz branca). Os monges passaram a ser conhecidos por hospitalários e em breve edificaram numerosos hospitais na Terra Santa e, mais tarde, na Europa. Em 1121, a ordem passou a ter o encargo de defender a cidade dos ataques dos infiéis e de proteger os peregrinos, dispondo de um ramo militar que viria a revelar-se de excepcional bravura. Com a estrondosa derrota cristã na Batalha de Tiberíade (1187) e a tomada de Jerusalém por Saladino, o contínuo recuo dos francos (designação dos ocupantes europeus) obrigou a ordem a ir mudando de sede, primeiro para Acre (1187), depois para Chipre (1291), para Rodes (1310) e finalmente para Malta (1530), passando a chamar-se Ordem de Malta. Nesta ilha, pequena mas de alto valor estratégico, os cavaleiros edificaram uma inexpugnável fortaleza, repelindo os assaltos dos turcos e dos moiros, e fazendo dela uma importante testa de ponte para as expedições cristãs. Criaram a sua frota, tornando-se uma potência marítima no Mediterrâneo, participando na Batalha Naval de Lepanto (1571), que retirou aos turcos a hegemonia neste mar. Em 1798, a ilha de Malta foi tomada por Napoleão no seu regresso do Egipto, e a Ordem, já em decadência, foi deslocada para Roma, entrando em rápido declínio. Os primeiros reis portugueses doaram aos cavaleiros hospitalários domínios como recompensa pelo seu empenho na Reconquista, sendo a vila do Crato a sua sede. O nosso infeliz rei D. António foi cavaleiro da Ordem, ocupando o mais elevado cargo em Portugal, o de prior, mas quanto à castidade... (teve dez filhos)! A ORDEM MILITAR DO TEMPLO Poucos anos depois da tomada de Jerusalém e do cruel massacre da sua população, um grupo de oito cavaleiros franceses criaram esta ordem junto das ruínas do templo de Salomão (1118), pelo que ficaram conhecidos por templários (manto branco com cruz vermelha). O seu propósito era o de defender a cidade de eventuais incursões dos inimigos da Fé e proteger os peregrinos cristãos dos salteadores ex-cruzados.
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CAPÍTULO XV
Mas com o fim da epopeia cristã no Oriente, os templários viram-se forçados a regressar às suas terras, onde a Ordem foi prosperando, a ponto de se tornar o maior potentado financeiro europeu até então conhecido. Os principais proventos foram inicialmente o saque e o resgate de prisioneiros. Depois passou a ser o rendimento dos seus domínios e a usura. Passou a ser financiadora de reis, príncipes, prelados e aristocratas, que assim lhe caíam na dependência. Os nossos primeiros reis também recorreram a empréstimos para prosseguirem a guerra contra os muçulmanos. Do ponto de vista militar constituía uma força imensa de obediência papal, utilizada nas constantes querelas do santo padre com reis e senhores. Em meados do século XIII contava com cerca de 9000 casas, templos fortificados e castelos, espalhados por vários reinos europeus, usufruindo dos rendimentos dos territórios circundantes. D. Teresa doou-lhes terras em Penafiel e Soure por volta de 1126. Teriam um papel decisivo na Reconquista, sendo generosamente recompensados pelos seus feitos guerreiros, pelo massacre sistemático das populações e pelo saque dos seus bens. Em finais do século XII já lhes pertencia todo o território entre o Mondego e o Tejo, excluindo a região de Lisboa, além do que já possuíam no Norte do País. A Ordem tornou-se assim um estado dentro dos vários estados, desafiando reis, bispos e o próprio papa. Eram odiados tanto por aqueles que exploravam desenfreadamente como pelos senhores e sacerdotes, a quem exigiam pesados juros. Filipe, o Belo, rei de França, resolveu de modo prático saldar as dívidas aos templários. Com o pretexto de terem sido fiéis ao papa Bonifácio VIII, que o tinha excomungado, e de não terem colaborado no extermínio dos cátaros, extinguiu a Ordem (1307), apropriando-se dos seus bens. Para isso teve a colaboração do papa Clemente V, o primeiro de Avignon, também ele penhorado aos templários. Minuciosamente preparada pelos agentes do rei e do seu papa, a caça aos templários foi implacável em toda a cristandade. Só em França foram presos cerca de 2000, que, depois de impiedosamente torturados, foram assados vivos, como era habitual. Anos depois, o mesmo Clemente V, no Concílio de Vienne (perto de Lion), extinguiu oficialmente a Ordem dos Cavaleiros do Templo (1312). Dois anos mais tarde, o grão-mestre, Tiago de Molay, que se encontrava encarcerado, foi finalmente julgado, condenado como herege e lançado à fogueira. A arrogância perante reis, aristocratas e dignitários da Igreja a quem não obedeciam, a ostentação da riqueza numa sociedade de pobreza e miséria, a exploração dos camponeses, a sua vida ociosa e quiçá viciosa e herética, tudo isto junto criou o caldo para uma das maiores carnificinas da história do cristianismo.
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Em Portugal, o rei D. Dinis obedeceu ao papa de Avignon, extinguindo a Ordem dos Templários e apropriando-se das terras que ele próprio e os seus antecessores lhes haviam doado, assim como fortificações por eles edificadas ou reconstruídas. Mas não os molestou, conseguindo que o papa o autorizasse a criar uma outra ordem, a Ordem de Cristo, para a qual se transferiram muitos dos templários portugueses, a quem foram devolvidas praças fortes, como as de Tomar e Castro Marim. Ainda acossado pelas incursões mouriscas na fronteira leste, o prudente e esperto monarca português não podia dar-se ao luxo de prescindir destes destemidos monges guerreiros. E, pelo sim pelo não, os grão-mestres da nova Ordem passaram a ser nomeados pelo rei, gente da sua confiança, príncipes e bastardos, já sem votos de castidade. Sabemos da grande importância que a Ordem de Cristo iria ter no futuro, nos Descobrimentos, associada aos novos banqueiros, os judeus ricos. Mas mais interessante que a breve história dos templários é o saber como eles, como uma verdadeira seita, se foram afastando do culto romano, criando rituais, práticas e doutrina religiosa próprios. Os iniciados faziam voto de castidade, de pobreza, de obediência e de secretismo absoluto, sendo sujeitos a longos períodos de vigilância e severos castigos, sempre que prevaricassem ou mostrassem menor bravura no combate. A divisa era antes morrer em combate do que capitular ou fugir. Eram adoradores do Espírito Santo e não da Divina Trindade, seguidores do Evangelho de S. João e dualistas, tal como os Cátaros. A mulher era identificada com o espírito maligno ou demoníaco e desprezada. O pouco que se conhece dos rituais esotéricos consta nas acusações que levaram à sua condenação e extermínio. São incriminados de sacrilégio, heresia, profanação e infâmia de costumes como a sodomia. Os mais nefandos sacrilégios era cuspirem e pisarem o crucifíxo nos ritos de iniciação, o beijo umbilical e o beijo anal, provável prática de submissão hierárquica. Quanto à sodomia, parece ter sido prática consentida e habitual entre estes monges, sendo disto desculpabilizados pelos historiadores, que fazem deles grandes defensores da Fé, como prática adquirida no Oriente. Refira-se que na divisa da Ordem constam dois cavaleiros a montar o mesmo corcel. A Ordem dos Templários constituiu uma das muitas cisões do mundo cristão, ao aliar o poder económico ao militar e ao autonomizar-se. Sem nunca negar a obediência a Roma, razão por que não pode considerar-se uma religião à parte, acabou por se afastar do papismo não só do ponto de vista hierárquico como doutrinário. Com o extermínio dos cátaros e a conquista do Languedoc, que a seguir abordaremos, e agora, sete décadas depois, com a liquidação dos templá-
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rios, os reis franceses puderam finalmente exercer o seu poder em todo o território que hoje constitui a França. A ORDEM TEUTÓNICA Foi fundada por francos alemães em 1190 como confraria hospitalária e, tal como sucedera à Ordem de S. João, passou a ter actividade guerreira (manto branco com cruz negra). Com o declínio do domínio cristão no Médio Oriente e perdidas as esperanças de novas façanhas guerreiras contra os infiéis, os monges guerreiros teutões oram-se transferindo para a Prússia, onde passaram à tarefa obsessiva de converter os povos pagãos do litoral do Báltico e, já agora, submetendo-os à sua autoridade. As suas expedições, de crueldade sem limites, chegaram à actual Estónia. Em 1309 transferiram a sede de Veneza para Marienburg, na Bélgica. Com as conquistas criaram o Estado Teutónico, governado pelo grão -mestre, sendo as populações subjugadas forçadas à conversão. Em 1466, os polacos atacaram e derrotaram os teutões e subtraíram-lhes a Prússia Oriental. Mais tarde, o grão-mestre Alberto de Brandeburgo transformou o que lhe restava da antiga Prússia em principado e adoptou o protestantismo (1525).
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O APOGEU DE ROMA
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imos como na passagem do século XII para o século XIII Inocêncio III, papa de 1198 a 1216, resolvido temporariamente o problema das investiduras, se tornou o senhor absoluto e inquestionável da cristandade ocidental. Dois acontecimentos históricos contribuíram para este impetuoso ascendente: a relativa estabilização política decorrente da formação dos estados europeus e a imparável progressão turca no Oriente, conduzindo ao declínio de Bizâncio. Foram estas duas componentes que deram uma força inusitada a um novo espírito de cruzada, alimentado pela Igreja, e que iria colocar o papa no centro dos acontecimentos. Reis e nobres, adversários de ontem, caminhavam agora lado a lado para combater o inimigo comum em nome da Fé e em terras distantes. Chefe absoluto da cristandade, o papa adoptou os símbolos do poder, o fausto dos antigos imperadores e o título de Sumo Pontífice, a designação do principal sacerdote da religião dos romanos, Pontifex Maximus. Fazia-se agora transportar pelos seus semelhantes em liteira dourada, a sedia gestatoria, hábito só temporariamente interrompido pelo papa João Paulo I (1978). Os reis passaram a prestar-lhe vassalagem e obediência. Só era rei quem o papa decidia, e muitos foram coroados pelo papa ou por sua delegação. Por outro lado, o papado dispunha de numerosas e ricas possessões territoriais na Itália e recebia os tributos regulares dos reis quer da Europa
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quer das novas possessões orientais. Era senhor de um exército próprio e podia contar com a fidelidade das ordens militares, os monges cavaleiros, que constituíam uma força bélica considerável. Mas o poder do papa não se exercia só pela força das armas. Muito mais importante era o seu domínio sobre as mentes ignorantes dos monarcas e seus súbditos. Três eram os terríveis dons divinos que utilizavam como arma política de eficácia quase sempre certeira: a excomunhão, a interdição e a declaração de heresia, de que demos já exemplos de sobra. Com a primeira, também designada anátema, eram castigados os que lhe desobedeciam. Era-lhes retirada a graça de Deus, proibida a assistência a ofícios religiosos e aos sacramentos, o que significava que aos infelizes estava reservado o Inferno com o seu fogo eterno. Como vimos, o temível Henrique IV apodreceu insepulto cinco anos por estar excomungado. Também excomungados foram: Sancho I (1208), Afonso II (1220), Sancho II (1234) e Afonso III (1277). A segunda, a interdição, podia ser lançada sobre um sacerdote que ficava impedido de exercer a sua missão ou abranger o clero de um país inteiro, sendo limitado o exercício sacerdotal ao baptismo, crisma e confissão. Não podiam os sacerdotes do país interdito rezar missa, celebrar matrimónios, dar a extrema-unção, etc. Muitos foram os reis e príncipes excomungados, e a Escócia, a França, Inglaterra e viram-se interditados no século XII. Portugal, por duas vezes (1238 e 1275). Heréticos eram os que questionavam os dogmas, professando outros cultos, afastando-se da doutrina. Estava-lhes reservada a fogueira. Senhor de um poder espiritual, económico e militar apenas comparável aos antigos imperadores romanos, estes também considerados divinos, o papa podia agora sonhar com a recuperação das terras e das almas perdidas para os sarracenos. E se é verdade que a Igreja Romana nunca tivera grande influência sobre a cristandade oriental, agora, com a expansão islâmica, assistia ao seu contínuo declínio. Assim, os novos imperadores acalentavam a quimera de impor o catolicismo universal não só às populações islamizadas como também às cristãs desviadas da verdadeira Fé pelos cismáticos de Bizâncio. Mas para a reunificação da cristandade sob a sua batuta só havia um meio, a guerra, isto é, as Cruzadas. E um novo Império Romano, da Hispânia até à Pérsia, seria governado por um novo imperador, o papa. No combate ao islão, duas frentes se deparavam, a ibérica, no Ocidente, e as regiões subjugadas pelos turcos seldjúquidas, no Oriente. O Norte de África arabizado e islamizado ficaria para depois. E foi assim, que, como já vimos, durante dois séculos, as antigas províncias do
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CAPÍTULO XVI
Oriente estiveram a ferro e fogo. Mas, daquelas duas quimeras, só uma, muito mais tarde, se iria concretizar, a expulsão dos Mouros da Península Ibérica (1490). As teses da Igreja Romana ou Católica, designação já utilizada, mas que a partir desta época se generalizou, tinham vingado em toda a linha. Houve uma pausa de séculos nas grandes controvérsias teológicas no interior do cristianismo. Para isso contribuiu decisivamente o mais notável doutor da Igreja, Tomás de Aquino, cujo pensamento filosófico e teológico foi adoptado como doutrina oficial. Estava salva a concepção romana da Divina Trindade. Jesus era Filho de Deus e simultaneamente Deus, possuidor de duas naturezas, e o enigmático Espírito Santo fazia parte da trilogia divina, procedendo do Pai e do Filho, dogma insusceptível de compreensão humana e muito menos de qualquer discussão. Jesus foi o esperado Messias que veio à Terra para redimir os nossos pecados derivados do pecado original, foi martirizado e morreu na cruz para a redenção da Humanidade, ressuscitou e ascendeu ao Céu. Maria, mãe do Deus-Homem, concebera sem pecado, o que pressupõe que conceber de forma natural é pecado, mas não era considerada divina. Os sete sacramentos que foram «instituídos» por Jesus para conceder, confirmar ou aumentar a graça divina estavam consolidados: baptismo, confirmação (ou crisma), eucaristia (comunhão), penitência (confissão), extrema-unção, ordem e matrimónio. Apenas os sacerdotes sacramentados pela ordem, os bispos e os presbíteros, os podiam ministrar. A importante questão do destino das almas, outra temática nada pacífica e que chegou a ser pomo de discórdia teológica entre as escolas do Ocidente e do Oriente, estava também encerrada. Os destinos das almas são quatro: o Céu, o Purgatório, o Limbo e o Inferno. O Céu e o Inferno são definitivos e eternos. O Purgatório recebe as almas após a morte, onde expiam os seus pecados até se lhes abrirem as portas do Céu. No Limbo ficam as almas dos justos que não tiveram acesso à palavra do Senhor e as das crianças mortas sem terem recebido o baptismo, aguardando o regresso de Jesus no dia do Juízo Final. O Juízo Final, que tanta controvérsia tinha originado, ficou igualmente esclarecido. De acordo com as Escrituras Sagradas, no fim do mundo, Jesus voltará à Terra, e os mortos, cujas almas não estão definitivamente nem no Céu nem no Inferno, ressuscitam. Então Jesus julga-os de acordo com os pecados ou boas acções cometidos durante a efémera passagem por este vale de lágrimas e dá às suas almas o merecido e definitivo destino eterno, Céu ou Inferno. O corpo sacerdotal encontrava-se perfeitamente organizado e hierarquizado. O bispo de Roma era agora o papa, o único pai de toda a cristandade, a indiscutível e infalível autoridade máxima religiosa e política, a quem imperadores e reis deviam obediência.
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Foi adoptada a divisão administrativa do Império Romano no tempo de Constantino, passando as províncias a ter como mais alto responsável eclesiástico um arcebispo, também designado por metropolitano, a quem os bispos das dioceses sob sua jurisdição deviam obediência, sob pena de serem interditos ou mesmo excomungados. Seguiam-se os presbíteros (ancião em grego), responsáveis por uma paróquia e, finalmente, os diáconos (ajudante em latim), que não tinham competência para dizer missa, limitando-se a ajudar os celebrantes. E a encimar esta pirâmide hierárquica surgiu o corpo de cardeais que irá constituir o Sacro Colégio. Como apareceram os cardeais? A partir do século VI, os sacerdotes a quem o papa incumbia tarefas fixas, administrativas, jurídicas, diplomáticas ou militares, os incardinados (encarregados), viram crescer a sua influência e autoridade na cúria romana. Com o tempo, passaram a chamar-se cardeais, os mais altos dignitários da Igreja Romana, e a fazer parte do conselho que elegia os papas. O papa nomeava os cardeais entre bispos, presbíteros e mesmo diáconos, de acordo com as suas competências e fidelidade. Além das funções de maior responsabilidade na cúria passaram a ser designados para a administração eclesiástica de um país, com jurisdição sobre os respectivos arcebispos e bispos, e como representantes do papa nas cortes dos diversos reinos. Chegaram a ser primeiros-ministros com poder absoluto, como foi o caso de Richelieu e Mazarino, que governaram tiranicamente a França de 1624 a 1661. No Concílio de Latrão de 1179 foi decretado que só os cardeais, reunidos no Sacro Colégio, poderiam eleger o papa, prática que já era comum, mas que suscitava frequentes conflitos. Mas quando faleceu Clemente IV (1268), o santo trono ficou vago durante quase três anos, acabando os cardeais por ser enclausurados até elegerem o sucessor. Finalmente, o Espírito Santo lá resolveu iluminá-los e venceu Gregório X. Foi ele quem, no Concílio de Lion (1274), propôs as rígidas regras, que ainda perduram. O Sacro Colégio reúne-se em total clausura (conclave) 10 dias depois da morte do papa, e na cidade onde morreu. Para a eleição ser tão rápida quanto possível, é progressivamente restringida a alimentação, até chegar a pão e água. Depois de vistoriados pelos guardas, não vá passar algum bilhete, os cardeais recebem os alimentos pelo sistema da roda, que de seguida é selada. O papa só pode ser eleito por dois terços e, se o mais votado reclamar a tiara sem esta observância, será de imediato excomungado. Mais tarde, Sixto V (1585-1590) fixou em 70 o número de cardeais. Foi também no referido concílio que foi decretado que os cardeais passariam a ser tratados por eminências. Quanto à designação de patriarca, foi esta caindo em desuso, mantendo-se ainda por tradição em certos con-
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textos, como são os casos do patriarca de Veneza, de Goa e o nosso (Sua Eminência Reverendíssima o Cardeal Patriarca de Lisboa). Não houve concílios de 870 a 1123, mas neste período áureo foram retomados, tendo-se realizado os seguintes, todos eles em Roma ou em cidades próximas, como de resto todos os outros que se seguiram: Latrão (1123) – onde foram publicados vários cânones condenando a simonia (venda de objectos de culto), o concubinato dos sacerdotes, a falsificação de moeda, etc. Latrão (1139) – que consagrou a legitimidade de Inocêncio II sobre o cismático Anacleto, falecido um ano antes, e onde os partidários deste foram excomungados. Latrão (1179) – que reuniu mais de mil participantes e que, entre outras matérias, definiu que o papa teria de ser eleito por mais de dois terços do Sacro Colégio, sob pena de excomunhão. Os Cátaros foram condenados. Latrão (1215) – que criou a base da disciplina eclesiástica e os tribunais da Inquisição destinada a perseguir e condenar os cátaros. Repudiou as concepções de Flora sobre a Trindade. Fixou distintivos no vestuário de judeus e muçulmanos e decretou a realização de mais uma cruzada, a quinta. Lion (1245) – que destituiu o imperador germânico Frederico II em conflito com o papa Inocêncio IV. Lion (1274) – que deliberou sobre a necessidade de mais uma cruzada, que não chegou a realizar-se. Vienne (1311) – que confirmou a condenação dos templários.
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A ALTA ESCOLÁSTICA
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or escolástica entende-se o tipo de ensino que durante a Idade Média se ministrava nos poucos centros de cultura da Europa Ocidental, baseado na teologia, a ciência de Deus e suas revelações, e na tradição da lógica silogística e analógica de Aristóteles. A verdade revelada nas Escrituras, tantas vezes incompreensível, contraditória e confusa, tantas vezes conhecida apenas pela tradição oral, foi passível das mais diversas interpretações, dando lugar a outras tantas correntes de pensamento cristão. Uma destas correntes afastou-se definitivamente das que eram adoptadas nos grandes centros do poder político e religioso, como Roma, Constantinopla e Alexandria, sendo considerada herética, acabando no entanto, outras, geradoras de polémica mais ou menos acesa, por ser aceites ou desaparecer com o tempo. Mas, para cada interpretador ou para cada escola filosófica ou religiosa, as Escrituras constituíam a verdade absoluta, o ponto de partida de toda a especulação do pensamento humano. Assente nesta verdade, a metodologia aristotélica era o instrumento que permitia decifrar ou compreender tanto o conteúdo das Escrituras como a história, os fenómenos físicos e cosmológicos, e as regras do comportamento humano, a moral, a estética, a política, o direito. E durante mil anos a escolástica dominou o pensamento europeu. Carlos Magno mandou vir de Constantinopla a obra de Aristóteles Organum,
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desconhecida até então no Ocidente, a cartilha que ensinava como pensar. O que se sabia de Aristóteles e de Platão era transmitido oralmente ou referido em textos mais que duvidosos. Lembremos que já Agostinho de Hipona (354-430) se inspirara em Platão e Aristóteles, e que Jerónimo (347-420), que passou grande parte da sua vida no Oriente, onde aprendeu hebraico, traduzira a Bíblia desta língua para o latim. Mas os tempos eram outros, e o helenismo (cultura da Grécia antiga) ainda estava fresco. Foi no século XIII que, ao apogeu de Roma, se juntou também o apogeu da evolução teológica, com a chamada Alta Escolástica. Para tanto contribuiu decididamente o contacto com os grandes pensadores e estudiosos da mais florescente cultura da época, a árabe. Tem-se afirmado que foram as cruzadas que permitiram este encontro de civilizações e o inevitável intercâmbio de ideias. Sem contrariar esta suposição, diremos que de muito maior importância foram os contributos de homens fora da igreja, e contra a igreja, homens que ousaram trazer ao seu convívio sábios cristãos, mouros e judeus, ou que acreditavam que o homem podia pensar por ele próprio. E, entre estes, Frederico II e Rogério Bacon ocupam um lugar à parte, como veremos. A partir dos finais do século XII e durante o século seguinte foram sendo traduzidas do árabe para o latim as obras de Aristóteles, de Platão e de outros filósofos, sobre metafísica, física, política e moral. Ao mesmo tempo tem-se acesso aos progressos no conhecimento técnico e científico do mundo islâmico, abrangendo áreas tão diversificadas como a matemática, a astronomia, a navegação e a medicina. Podiam agora ser consultados nas universidades e nos mosteiros não só o velho Organum mas também textos traduzidos das obras filosóficas e metafísicas elaboradas três séculos antes da vinda de Jesus ao mundo, assim como de Avicena, Irão, 980-1037), de Averróis, Córdova (1126-1198), do judeu Maimónides, Córdova (1135-1204), para citar os mais conhecidos. É, assim, que, pela mão dos inimigos de sempre, árabes e judeus, a intelectualidade europeia redescobre o helenismo e dá os primeiros passos no imparável desenvolvimento científico. A escolástica atinge, assim, no século XIII, o seu ponto mais alto. Retirado do pensamento aristotélico o conteúdo pagão, a sua visão conceptual do mundo, ou, melhor dizendo, dos dois mundos, o material e o espiritual, adequava-se perfeitamente ao pensamento filosófico e teológico desse tempo. Mas o aristotelismo acabaria por se esgotar, e em meados do século XIV já poucos por ele se interessavam. Pelo contrário, a cultura árabe deu um contributo decisivo para o despertar da Europa, entrando a partir desta época num rápido declínio.
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CAPÍTULO XVII
Muitos foram os entusiastas reformadores da velha escolástica, de que citamos os mais relevantes: Boaventura (Viterbo, Itália, 1218-1274), teólogo marcadamente místico, seguidor de Agostinho e de Platão, para quem o conhecimento provinha de Deus pela fé e não pela razão; Alberto Magno (Suábia na Actual Baviera, 1200-1280), que foi o primeiro a aplicar sistematicamente o método aristotélico à teologia cristã; Tomás de Aquino, o mais eminente representante da alta escolástica (1226-1274); João Eckard (Hochheim, Alemanha, 1260-1327), cujas concepções panteístas foram mais tarde condenadas pelo papa João XXII (1329); Duns (Escócia, 1266-1308), adversário do aristotelismo e do tomismo e defensor do realismo, a última grande figura da alta escolástica. Foram incontáveis as correntes de pensamento e as suas variantes que conviveram com o culto dominante, algumas mais tarde heretizadas. Tentemos dar uma ideia das de maior relevância e que fizeram escola ao longo dos séculos – o biblicismo, o realismo, o nominalismo, o joaquimismo e o tomismo. Do biblicismo falaremos mais tarde. Antes, porém, não podemos deixar de fazer referência a um dos vultos mais eminentes deste tempo, o português Pedro Hispano. Também conhecido por Pedro Julião, foi o único papa português, dos 267 de que reza a História, o que não deixa de ser frustrante para um país tão católico. Mas a sua referência aqui nada tem de patrioteiro. Foi sem dúvida um homem notável. Nasceu em Lisboa em 1220 e dedicou-se à medicina, à psicologia, às ciências naturais, à matemática e à lógica, deixando uma vasta obra, parte da qual só recentemente descoberta. Na Universidade de Paris teve como mestre Alberto Magno e como condiscípulo Tomás de Aquino, cujas ideias não partilhava. Dois dos seus livros tiveram grande difusão na sua época e nos séculos que se seguiram, o Thesaurus Pauperum, em que são dados conselhos aos médicos, e as Summulae Logicales, um manual de divulgação da lógica aristotélica, adoptado em muitos centros de cultura. No Concílio Ecuménico de Lion (1274), Gregório X eleva-o a cardeal, ficando como seu médico pessoal e, por morte do sucessor deste, Adriano V, Pedro é eleito papa em 1276, adoptando o nome de João XXI. No entanto, o seu pontificado não vai além de seis meses, pois morre acidentalmente no desabamento de um aposento que ele mandara arranjar no Palácio de Viterbo. O REALISMO Nada tem a ver com o conceito actual que defende a existência das coisas, quer delas tenhamos ou não conhecimento. Pelo contrário, a corrente realista medieval de que nos ocupamos foi influenciada pela filosofia idealista de Platão, que afirmava que o conhecimento do mundo
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pelos nossos sentidos só nos faculta imagens aparentes, sombras do real. Apenas as ideias e o intelecto constituem a verdadeira realidade. Mas os realistas da Idade Média opunham-se ao realismo platoniano, indo mais longe. Defendiam que a única verdade está contida nos conceitos universais, que só existem em Deus, embora possam manifestar-se como cópias imperfeitas nas coisas. O iniciador desta concepção, que teria inúmeros adeptos, foi Escoto Eriúgena, teólogo do século IX, irlandês, para quem a perenidade dos universais, independentes do nosso pensamento, é indiferente à existência ou não das coisas particulares, sendo a criação a diferenciação lógica e progressiva dos universais. Duns Escoto foi na alta escolástica o mais proeminente defensor destas concepções, refutando o pensamento de Aquino e também o platonismo e o nominalismo. O NOMINALISMO Opondo-se frontalmente ao realismo, o nominalismo sustentava que só têm existência real as coisas individuais e que os universais não são mais do que nomes que damos aos conjuntos de coisas semelhantes mas efectivamente diferentes. Esta concepção tem a sua origem nos ensinamentos de Aristóteles, que entendia o real como um agregado de coisas individuais, sendo os universais elaborados pela mente humana. Esta tese acabou por ser dominante nos centros de cultura nos finais da Idade Média, tendo influenciado os reformadores da Igreja no Renascimento (século XVI). Guilherme de Occam (1285-1349), a quem dedicaremos algumas linhas, foi o mais consistente defensor do nominalismo. Avicena e outros filósofos árabes tentaram conciliar o nominalismo com o realismo, considerando os universais pertença eterna no espírito de Deus, mas existentes também nas coisas como sua essência e, depois, como conceitos no espírito dos humanos. Estes, através da observação e da meditação, ao aproximarem-se de Deus, vão aperfeiçoando os universais. Esta simbiose foi adoptada por Tomás de Aquino. JOAQUIM DE FLORA E O JOAQUIMISMO Joaquim nasceu em Celico na Calábria (Sul da Itália) em 1132, durante o domínio normando. Diz-se que, quando regressava de uma peregrinação à Terra Santa, teve uma visão divina que iria guiá-lo por toda a vida. Ingressou na Ordem Monástica de Cister passando a dedicar-se inteiramente ao estudo da Bíblia e das Sagradas Escrituras, que considerava ser a missão que Deus lhe havia confiado. Fundou uma abadia em Flora (Fiore), nas montanhas da Calábria, passando a ser conhecido por Joaquim de Flora.
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Os papas Urbano III e Clemente III incentivaram-no a prosseguir os seus estudos e a submetê-los à aprovação papal. Já no fim da vida, em 1200, apresentou finalmente os seus escritos ao papa Inocêncio III, mas veio a falecer dois anos depois sem saber o resultado. Flora foi considerado no seu tempo e nos séculos que se seguiram um iluminado por Deus, profeta e milagreiro, tendo o seu culto e as suas ideias tido rápida difusão por toda a cristandade. A interpretação dos textos sagrados levou-o a formular a tese de que a história da Humanidade percorre três estádios correspondentes às três pessoas da Trindade. O primeiro, de Adão até Jesus, coincide com o Antigo Testamento e corresponde ao governo de Deus Pai; o segundo iniciou-se com a revelação de Jesus e abrange a edificação da Igreja Cristã, sendo Deus Filho o seu protector; o terceiro, que há-de vir, será um tempo de amor universal, de igualdade entre os homens, sem opressores e oprimidos, em que a Igreja já não terá necessidade de disciplinar a Fé nem de possuir poder temporal. Será o Império do Divino Espírito Santo, a terceira pessoa da Trindade. O início desta época paradisíaca seria anunciado por uma grande calamidade, o Apocalipse, e a partir daí duraria até ao fim dos tempos, quando o redentor retornasse para o Juízo Final. Esta ingénua visão da História, o joaquimismo, teve de imediato grande aceitação, uma vez que dava resposta às mais profundas inquietações da época. Entre os seus seguidores, foram os frades franciscanos os mais entusiastas. Adoptaram o essencial das ideias de Flora, que desenvolveram a ponto de considerarem que os três livros por ele escritos transcendiam e substituíam os Evangelhos, que o anticristo Frederico II já por aí andava, que estava prestes a dar-se o cataclismo, chegando a marcar a data exacta, o ano de 1260, e que o clero e a velha Igreja tinham os dias contados perante o advento do Império do Espírito Santo. Em 1215, no Concílio de Latrão, as doutrinas de Flora acerca da Santíssima Trindade e do próximo fim do mundo foram condenadas, mas os seus seguidores não foram considerados hereges. Só mais tarde o papa Alexandre IV condenou toda a teorização joaquimista (1256). A repressão que se seguiu, a passagem sem sobressaltos do ano de 1260 e a morte de Frederico II conjugaram-se, e o joaquimismo perdeu adeptos e influência. Manteve-se contudo de modo mais ou menos dissimulado entre os franciscanos, notando-se a sua presença em diversos pensadores religiosos nos séculos seguintes, como foi o caso do padre António Vieira, com as suas referências ao Quinto Império. O culto do Divino Espírito Santo nos Açores é, na actualidade, um dos últimos redutos do joaquimismo, talvez veiculado pelos franciscanos que
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acompanharam os primeiros povoadores daquelas ilhas, dois séculos depois do apogeu desta doutrina. TOMÁS DE AQUINO E O TOMISMO Oriundo de uma família nobre, Tomás nasceu no Castelo de Roccasecca junto de Nápoles em 1225. Destinado pela família à vida monástica foi internado aos 5 anos no Mosteiro do Monte Cassino, de onde fugiu aos 19. Encontrado por um irmão, esteve preso três anos, obtendo a liberdade por influência directa do papa. Ingressou na Ordem dos Dominicanos e radicou-se em Paris, onde foi discípulo de Alberto Magno na universidade desta cidade, na qual mais tarde leccionou, tal como em Roma e Nápoles. Das suas numerosas obras têm particular destaque a Summa Theologica e a Summa Contra Gentiles, que constituem a mais completa e profunda sistematização do pensamento cristão, tendo como base a filosofia e a metodologia lógica e analógica de Aristóteles. O tema central é a procura da harmonia entre a fé e a razão. Opondo-se à concepção platónico-agostiniana, para quem o conhecimento depende do dom divino da fé, Tomás, baseando-se no empirismo aristotélico, defende a autonomia da razão humana e a sua capacidade para a compreensão do real através da mente e dos sentidos. Vimos como inteligentemente adoptou a posição de Avicena na secular polémica entre realistas e nominalistas. Não questionando a revelação divina contida nas Sagradas Escrituras e aceite através da fé, considera contudo que, dada a sua natureza transcendente tantas vezes transmitida de forma metafórica e simbólica, compete à razão humana encontrar os caminhos lógicos que permitam, tanto quanto possível, a compreensão da sua mensagem. Sem negar a razão, acaba afinal por a colocar a reboque da fé. O que escreveu sobre o Juízo Final dá uma clara imagem da sua sagacidade e estatura intelectual: «Não podemos saber com certeza como se fará esse juízo e de que maneira os homens são para ele convocados. É muito provável que a discussão das consciências e a sentença se realizarão de um modo puramente mental». E o mesmo se dirá da seguinte proposição: «Se um cristão vê um conflito entre um dogma e a sua consciência, deve seguir a sua consciência e não o dogma». Foi através do raciocínio lógico que procurou entender o conteúdo das Escrituras e das suas implicações, tendo sistematizado exaustivamente as suas interconexões. Por outro lado, desenvolveu a argumentação tendente a refutar a aceitação de verdades objectivas não reveladas, buscando o cerne de aparentes contradições. Porque fé e razão não se opõem, antes se complementam. Foi deste modo que Tomás de Aquino deduziu as cinco vias condu-
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centes à demonstração lógica da existência de Deus: o primeiro motor, a primeira causa, a necessidade, a perfeição e a inteligência ordenadora. Vejamos o que a seu respeito disse Bertrand Russell: «Antes de Tomás de Aquino começar a filosofar, já conhecia a verdade anunciada na fé católica. A busca de argumentos para uma conclusão preestabelecida não é filosofia, mas um sistema de argumentação preconcebido». Tomás de Aquino não se limitou a ser o mais eminente dos teólogos cristãos. A sua universalidade levou-o a interessar-se por áreas tão diversas com a alquimia, a ética, a gnosiologia (teoria do conhecimento), a antropologia e a política. Foi declarado Doutor da Igreja em 1568 pelo papa Pio V, sendo o primeiro dos 33 Doutores da Igreja Católica, o único que ostenta a distinção de Doctor Angelicus. A doutrina escolástica de Tomás de Aquino, o tomismo, foi adoptada pelo culto católico, recebendo um novo impulso com o papa Leão XIII, que a confirmou e desenvolveu na sua encíclica Aeteni Patris em 1879. Tem constituído até aos nossos dias os fundamentos filosóficos e teológicos cristãos desta confissão, o neotomismo, que não desvaloriza a pesquisa científica nem o mundo objectivo, obra do Criador. Tomás de Aquino faleceu em 1274 com 49 anos quando se deslocava para o Segundo Concílio de Lion, a convite do papa Gregório X.
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CAPÍTULO XVIII
AS HERESIAS DOS SÉCULOS XII E XIII
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as o poderoso papado não deixava de ter problemas. Já abordámos os sucessos e os insucessos das Cruzadas, que refrearam a agressividade dos senhores feudais no continente europeu. Mas não se pense que o século XIII foi por cá um mar de rosas. Um dos conflitos mais paradigmáticos opôs vários papas ao indomável Frederico II, a que dedicaremos algumas linhas, tal como a Bacon, outra figura igualmente merecedora de referência. Foram duas personagens históricas que ousaram desafiar o poderoso papado, dando um valioso contributo para o desentorpecimento mental de uma Europa há séculos dominada por crenças e práticas absurdas. Vimos já que a heresia é o afastamento voluntário de qualquer verdade da Igreja Católica. Sejamos mais precisos e recorramos ao que estabelece o Código do Direito Canónico ao distinguir heresia, apostasia e cisma: «Depois de recebido o baptismo, se alguém, conservando o nome de cristão, nega alguma das verdades que devem crer-se com fé divina e católica, ou delas duvida, é herege; se se afasta totalmente da fé cristã, é apóstata; se recusa submeter-se ao santo pontífice ou comunicar com os membros da igreja que lhe estão sujeitos, é cismático.» A heresia pressupõe a excomunhão, isto é, a exclusão da participação em ofícios divinos e da recepção dos sacramentos. Vimos já que a
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excomunhão é uma arma papal muito mais lata, pois pode dirigir-se ao mais obediente dos crentes. Ora os conflitos religiosos da era do apogeu papal já não se revestem de um cariz meramente teológico, pois resultam de críticas ao modo de vida dos eclesiásticos ou a confrontos com outros cultos que se afastaram e se autonomizaram no seio do mundo cristão, conjunto que os católicos designam por heresias dos séculos XII e XIII. Abordemos sucintamente os movimentos heréticos de maior repercussão que ocorreram nesta época. TANQUELMO Muitos criticaram a vida mundana e privilegiada dos sacerdotes, que, não poucas vezes, tiveram de enfrentar a ira das populações. Os cabecilhas acabavam por fugir ou ser presos e condenados por heresia. Foi o caso de Tanquelmo, nos Países Baixos, que encabeçou um movimento de grandes proporções contra o clero, acabando por ser assassinado (1115). No entanto, o movimento contestatário perdurou por muitos anos e explica, de algum modo, a rápida implantação das ideias reformistas de Lutero e Calvino naquelas paragens. ARNALDO De maiores proporções foi o movimento surgido em Roma por meados do século XII, liderado por Arnaldo de Bréscia, a leste de Milão, que pugnava pela renúncia, por parte da igreja, de todos os bens materiais, defendendo que o sustento do clero devia limitar-se às dádivas dos fiéis, e pela clara separação entre o poder eclesiástico e o secular. Arnaldo acabou por ser preso pelos soldados alemães e entregue ao papa Adriano IV, que o mandou estrangular e queimar, sendo as cinzas deitadas ao Tibre em 1155. Os seus adeptos mantiveram as duras críticas aos clérigos e aos papas, sendo perseguidos e punidos, tendo grande número aderido mais tarde aos valdenses e aos cátaros. VALDO Pedro Valdo foi um abastado mercador de Lion que, por volta de 1173, se sentiu iluminado por Deus, abandonando tudo para se dedicar à pregação da doutrina originária cristã e da Bíblia, exaltando a pobreza, a fraternidade e a penitência. Doou aos pobres os seus bens, meteu as filhas num convento e despediu-se da mulher, pois só quem de tudo se despoja pode pregar em nome de Cristo. Em breve teve muitos adeptos que encontravam no seu exemplo e na sua palavra algum conforto para as suas vidas miseráveis. Eram os «Pobres de Lion». Como é natural, cedo enfrentou a animosidade dos clérigos e dos príncipes da Igreja, pois Valdo não os poupava a duras críticas, quer
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ao seu autoritarismo iluminado quer à sua vida privilegiada. O bispo de Lion proibiu-o de se pronunciar sobre questões da Fé, pois como leigo não tinha competência para tal. Acabou por excomungá-lo. Valdo queixou-se ao papa e compareceu no Concílio Ecuménico de Latrão de 1179, onde Alexandre III se mostrou compreensivo, perdoando-o e autorizando-lhe a pregação da penitência desde que não se imiscuísse em assuntos da Fé. Entretanto o valdismo alastrava por toda a França, chegando à Flandres, à Alemanha, a Aragão e à Catalunha, tendo absorvido no Norte da Itália um movimento semelhante, cujos adeptos se intitulavam de «Humilhados». Inicialmente tolerados, já que não era fácil combater quem pregava a fé cristã sem retirar qualquer proveito, pois viviam de esmolas, a verdade é que se tornavam um incómodo concorrente do catolicismo institucionalizado, acabando o papa Lúcio III por perder a paciência. Convocou um concílio em Verona (1184), e Valdo e os seus seguidores foram considerados hereges e excomungados. Passaram a ser perseguidos e cruelmente supliciados. Mas o movimento continuava a expandir-se e, agora, expulsos da Igreja Católica, criaram a sua própria hierarquia sacerdotal e corpo doutrinário próprio. Traduziram a Bíblia do latim e as suas citações modelavam o seu modo de pensar e de agir. Rejeitavam o Purgatório e dos sete sacramentos só aceitavam a penitência, isto é, a confissão, arrependimento e castigo, o matrimónio e a eucaristia, podendo esta ser celebrada por qualquer um, desde que cumprisse o ritual. O enérgico papa Pedro II convocou novo concílio, que se realizou em Gerona, Catalunha, 1197, reiterou a excomunhão e advogou a necessidade de se recorrer à fogueira para acabar de vez com tão maligna heresia. Só num auto-de-fé foram assados oitenta valdenses, homens e mulheres. Os livros foram queimados; os bens, confiscados. Bispos mais tolerantes limitaram-se a expulsá-los das suas dioceses. Com a morte do líder (1217) e as perseguições, particularmente cruéis no tempo de Inocêncio III, o movimento fragmentou-se e foi perdendo implantação. Diversos núcleos clandestinos acabaram mais tarde por ser assimilados pelas diversas correntes protestantes, como aconteceu em Itália. No entanto, persistem ainda na Suíça, Norte da Itália, Sicília e Uruguai comunidades religiosas organizadas em paróquias que se reclamam do valdismo. Dispõem de uma cúpula, a «Mesa Valdense», e mantêm uma escola teológica em Florença. O CATARISMO O catarismo (katharos em grego = puro) não está associado a um profeta ou a um iluminado por Deus. Teve a sua origem em Constantinopla nos finais do século VIII e foram numerosos os cátaros que se aliaram aos
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árabes para tomarem a cidade e expulsarem a hierarquia imperial. Mas foram derrotados, e a imperatriz Teodora (812-856) expatriou-os, indo fixar-se em grande número nos Balcãs. Na primeira metade do século X, o sacerdote macedónico Bogomil, retomando as antigas concepções do sincretismo gnóstico e do dualismo maniqueísta, condensou o corpo doutrinário da nova religião, como se segue: São dois os princípios criadores universais. O primeiro, o Deus do mal, criou o mundo material e, logo, o homem, e o segundo, o Deus do bem, criou o mundo espiritual. A alma humana, aprisionada no corpo, só deste se liberta com a morte, recuperando a sua plenitude e a felicidade eterna no Céu. Mas, para tanto, os humanos deverão assimilar a verdade do Deus bom através do Espírito Santo, dom que lhes é facultado pelo baptismo. Jesus foi um anjo que o Deus bom enviou à Terra para ensinar aos baptizados as normas de conduta salvadoras da alma, a solidariedade e a interajuda, assim como o repúdio dos bens materiais, da gula e da luxúria. Os cátaros eram devotos do Espírito Santo, seguiam o Evangelho de S. João, e o único sacramento era o baptismo. Possuíam hierarquia sacerdotal própria e organizavam-se em bispados. Enquanto os valdenses valorizavam exageradamente os escritos bíblicos, os cátaros levavam ao extremo o dualismo oriental. Talvez por terem hábitos de vida semelhantes, não se conhecem conflitos entre comunidades das duas confissões que partilharam na mesma época os mesmos espaços geográficos. O catarismo difundiu-se lentamente desde o mar Negro até à Península Ibérica. Para norte, teve significativa implantação entre os povos eslavos, os bugres, que mais tarde se fixaram na Bulgária e, para ocidente, penetrou na Grécia, nos Balcãs, na Germânia, na Grã-Bretanha, em França e no Norte de Itália. Na Península Ibérica teve alguma expressão no reino de Aragão e na Catalunha. Atingiu o máximo da sua expansão na segunda metade do século XII, iniciando a partir de então um rápido declínio devido ao genocídio que se abateu sobre as populações devotas e depois à Inquisição, estando praticamente extinto nos finais do mesmo século. Foi em França que os cátaros tiveram maior implantação, mas com as perseguições conduzidas pelo poder eclesiástico e senhorial, aliado aos monarcas, em particular a Luís VII, foram praticamente suprimidos no Norte de França, refugiando-se em grande número no centro e no Sul do país. Em Aragão, o rei Pedro II ordenou que todos os cátaros deviam ser executados na fogueira (1197), acabando assim com a heresia. Em Inglaterra foi o rei Henrique II (1133-1189) quem instigou uma bárbara perseguição e o massacre de milhares de cátaros, e no Sacro Império Romano-Germânico coube esta missão ao famoso Barba Roxa, que celebrou um acordo com o
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papa Lúcio III (1183), considerando o catarismo um crime de lesa-majestade, banindo-o dos seus domínios. E foi assim que no início do século XIII o catarismo ficou praticamente confinado ao Norte de Itália, onde os devotos eram designados por patarinos, e ao Sul de França, onde eram conhecidos por albigenses, nome de um rio e de uma localidade, Albi, onde terão sido numerosos. Nesta quase metade da actual França falava-se um dialecto particular em que, em vez de o sim ser oil, mais tarde oui, era oc, dialecto que ficou conhecido por langue d’oc. Foi neste território, que ultrapassava em muito a actual Provença, que os cátaros se disseminaram, razão por que se confundem os albigenses com os falantes desta variante do francês arcaico. Toulouse, a mais populosa cidade francesa na época, era conhecida por Roma Cátara. Nesta cidade realizara-se em 1167 o grande concílio cátaro. A coroa francesa pouco ou nenhum poder exercia sobre este vasto território, dominado por senhores feudais, a maior parte também cátaros. Muito cedo foi o catarismo considerado uma heresia, mas as grandes perseguições e matanças só se verificam a partir de 1179, quando os arcebispos de Reims, Sens e Ruão dirigiram a Primeira Cruzada, perseguindo e chacinando as populações cátaras com violência. Uma segunda cruzada foi organizada pelo papa Inocêncio III em 1209. O exército papal comandado por Henrique d’Albano, em conluio com o rei de França, atacou os albigenses, praticando as maiores atrocidades. Seguiram-se outras campanhas dos exércitos papal e francês, onde ninguém era poupado, até que em 1229 todo o território da langue d’oc caiu em poder do rei de França, Luís VII. Foram 20 anos de guerra. As cidades ficaram desertas, os campos, despovoados, a rica cultura provençal, destroçada. Mas por muito tempo as fogueiras substituíram as armas, uma vez que tinha sido instituída a Inquisição no Concílio Ecuménico de Latrão (1215) e aperfeiçoada no de Toulouse (1229), exactamente para combater a heresia cátara. O papa Inocêncio IV concedera aos inquisidores o poder de recorrerem à confissão através da tortura. S. Domingos e os frades da ordem por ele criada, a dos dominicanos, foram os primeiros inquisidores, até ao aparecimento, na História, dos jesuítas. (Note-se que a inquisição só surgiu no nosso país em 1531, três séculos depois). Também no Norte de Itália os patarinos não tiveram melhor sorte. Foram perseguidos e exterminados pelos exércitos papais e pela Inquisição. FREDERICO II Nasceu em Ancona, cidade nas margens do Adriático italiano, em 1194, filho do imperador Henrique IV do Sacro Império Romano-Germânico e
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neto de Frederico I, o Barba Roxa, que comandou a expedição alemã da Terceira Cruzada. Sua mãe, Constança, era herdeira do reino da Sicília, tomado aos mouros pelo normando Rogério I, seu avô. Aos quatro anos e por morte da mãe, Frederico herdou o reino, mas o papa Inocêncio III tomou-o à sua guarda e foi seu tutor até aos doze anos, assumindo então a soberania não só da Sicília como do Sul de Itália, o Reino das Duas Sicílias. Em 1220, foi coroado em Roma imperador do Sacro Império Romano-Germânico pelo papa Honório III, comprometendo-se a empreender uma cruzada para retomar Jerusalém, outra contra os hereges alemães, e a ceder ao papado o Reino das Duas Sicílias. Não cumprindo nenhuma destas promessas, Frederico ficou senhor de todo o império, estabelecendo a sua corte em Palermo no clima ameno da Sicília. E desde então toda a sua existência se saldou por permanentes conflitos com os vários papas que se iam sucedendo. Em 1227 simulou uma cruzada, partiu, mas logo regressou com o pretexto de ter adoecido. O novo papa, Gregório IX, furioso, excomungou-o. No ano seguinte lá partiu com uma esquadra para o Egipto, mas, em vez de fazer guerra, entabulou pacíficas negociações com o sultão, regressando com uma boa «carteira de encomendas» e uma trégua de dez anos. O sultão cedeu-lhe o reino de Jerusalém, que já há quarenta anos se encontrava na posse dos muçulmanos e em cuja catedral se coroou a si próprio, uma vez que o clero cristão da cidade tinha instruções para não o reconhecer. Claro que ficou só com o título honorífico de rei de Jerusalém, pois, mal virou costas, tudo ficou como dantes. Foi a Sexta Cruzada. De regresso à Sicília, soube que as suas possessões italianas tinham sido invadidas pelo exército papal. É que o calculista Gregório, convencido de que, tal como nas anteriores cruzadas, também esta iria consumir-se na guerra sem quartel em terras da Palestina, aproveitou a deixa para se apoderar da Sicília italiana, Sul de Itália. Mas enganou-se, pois os indomáveis guerreiros regressaram desiludidos sem terem vertido uma só gota de sangue, tendo assim ensejo de fazer o gosto ao dedo não contra os infiéis, mas contra o exército de quem os havia instigado, o do santo padre. Apanhadas em contramão, as hostes papais foram por completo desbaratadas, e Gregório, humilhado e furibundo, foi obrigado a revogar a excomunhão. São documentos históricos notáveis as cartas que Frederico II escreveu aos papas, sem papas na língua. Estes são confrontados com frias denúncias da sua vida faustosa e devassa, do desprezo pelas coisas santas, das manobras de baixa política. E, precursor do «mailing», Frederico enviava cópias destas cartas aos seus colegas monarcas, mouros e cristãos, que ficavam naturalmente escandalizados, mas que os fazia pensar. Ficou com o cognome de Stupor Mundi (Espanto do Mundo).
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Propunha que os reis deviam confiscar todos os bens da igreja, já que todas as religiões eram imposturas, ferindo gravemente o prestígio e a autoridade dos papas. Não cabe aqui a descrição do que foi uma vida inteira de conflitos e de guerra praticamente constante contra os exércitos do papa e dos seus aliados. Apenas referiremos que o pobre monarca foi outra vez excomungado em 1239 e finalmente demitido de imperador no Concílio de Lion em 1245, excomunhão e demissão, de resto, sem qualquer efeito prático. Morreu em 1250. Mas o que mais importa realçar na biografia desta figura extraordinária não foram as querelas com os papas, mas sim o impulso inovador em todos os campos do saber, nesta Europa adormecida e amordaçada, impulso que iria repercutir-se decisivamente nas gerações futuras. Apreciador dos prazeres da vida, das artes e do conhecimento, espírito aberto, crítico e ávido de saber, recebeu na sua luxuosa corte, sem discriminações ou preconceitos, filósofos cristãos, judeus e muçulmanos, poetas, matemáticos, físicos e astrónomos de todas as proveniências. Aos matemáticos árabes se deve a introdução na Europa da álgebra moderna e dos algarismos decimais. Foi na sua corte que primeiro se escreveu poesia em italiano, a chamada escola siciliana, de que iriam emergir Dante (1265-1321), Petrarca (13041374) e o prosador Boccaccio (1313-1375), autor do Decameron. Até então, a língua literária era o latim, que o povo já não falava. A esta escola se deve em grande parte a estabilização do italiano moderno. Entre os seus companheiros contava-se Miguel Escoto que traduziu Aristóteles com anotações do grande filósofo árabe de Córdova, Averróis, com quem Frederico mantinha correspondência. Criou a Universidade de Nápoles, a Escola Médica de Salerno e o primeiro jardim zoológico. Tal como Bacon, Frederico II foi um homem fora do seu tempo. Sem sempre ter sido compreendido pelos seus contemporâneos, a verdade é que a sua vida, a sua obra, a sua irreverência, o seu desprezo pelo espírito de cruzada que obcecava os seus pares iriam deixar sementes que em breve dariam frutos. Enquanto tudo isto acontecia, reinavam em Portugal Sancho I, Afonso II e Sancho II... ROGÉRIO BACON Rogério Bacon (1214-1294, não confundir com Francis Bacon, 15611626) nasceu em Dorset, sul de Inglaterra, aderiu à Ordem dos franciscanos, criada em 1209 por Francisco de Assis (1181-1226). Depois de estudar em Oxford, fixou-se em Paris, em cuja universidade se doutorou. Cedo se rebelou contra as subtilezas e abstracções escolásticas, desprezando o aristotelismo e defendendo que só a observação e a experimentação podem conduzir a critérios de verdade. É considerado o pai da ciência
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experimental, sendo dele a seguinte frase: «Deixa de ser governado pelos dogmas e pela autoridade e olha para o mundo». Percorreu todos os campos do saber da sua época e entre os seus muitos inventos destaca-se o das lentes de aumentar, que iria permitir o fabrico de óculos. Foi o primeiro a perceber que o calendário juliano estava errado. O seu pensamento e a sua obra tiveram um impacto enorme, mas depressa caíram no esquecimento. Porém, a chama de uma nova maneira de entender o mundo não morreu, subsistiu em particular entre os franciscanos, os monges mendicantes que levavam uma vida de pobreza e de total entrega à prática caritativa. Muitos deles, tal como Bacon, sem abandonarem o ascetismo, foram eminentes doutores em várias universidades, criando uma corrente teológica, inspirada em Agostinho, rival dos dominicanos, aristotélica e hiperdogmática. Mas a vida de Bacon nem sempre foi fácil. Perseguido, teve de abandonar Paris, bem como a universidade, viu as suas obras proibidas, foi acusado de feitiçaria e, já velho, foi preso às ordens do papa Nicolau IV. Também não foi fácil a vida dos seus companheiros e continuadores, em particular dos franciscanos. Muitos foram cruelmente perseguidos, enclausurados e torturados, tendo quatro deles sido condenados e queimados vivos em Marselha (1318).
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O DECLÍNIO DO PODERIO PAPAL
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século XIV começou o pior possível para o mundo cristão. Iria ter início o período dos papas de Avignon e do Cisma do Ocidente, que trataremos mais pormenorizadamente nos capítulos seguintes. Verificou-se a perda definitiva das possessões católicas no Oriente e o malogro frustrante de unificar a cristandade. De senhores absolutos, os papas e toda a alta hierarquia iriam uma vez mais ser relegados para meros joguetes nas lutas de poder entre os monarcas europeus, sempre em guerra. Num período de tempo relativamente curto vemos toda a imperial autoridade papal cair positivamente na lama. O contraste entre os dois exemplos que se seguem ilustra esta transformação. Em 1073, o papa Gregório VII mandou vir à sua presença o imperador da Alemanha, Henrique IV, para que este lhe pedisse perdão, e fê-lo passar pela humilhação de esperar três dias, descalço e sobre a neve, antes de o receber e perdoar. Em 1303, o rei de França, Filipe, o Belo, depois de excomungado pelo papa Bonifácio VIII, por não lhe reconhecer autoridade acima da dos reis, mandou os seus soldados à residência papal em Agânia, perto de Pisa, e o papa foi preso e encarcerado, morrendo dias depois. Este último exemplo dá-nos uma ideia do ponto a que chegou o descrédito papal neste princípio do século XIV. Que razões conduziram a este descalabro? Muitos historiadores atribuem-no à perda da autoridade moral e espiritual dos papas, decorrente das suas vidas faustosas e libertinas, ao uso da
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excomunhão por dá cá aquela palha, à implacável perseguição a tudo o que cheirasse a inovação no campo das ideias, às constantes ingerências nos conflitos seculares, esquecendo os pobres e os miseráveis. Outros atribuem esta queda de influência ao modo como os papas eram eleitos, em escrutínios muito disputados, com vários candidatos, sem se saber claramente quem tinha direito a voto. Como vimos, só em 1179 ficou consagrado que apenas os cardeais do Sacro Colégio podiam votar. Mas estes tinham sido nomeados pelo falecido papa e, naturalmente, procuravam defender os privilégios de que desfrutavam e que o novo papa podia pôr em causa. Imagine-se portanto o desaguisado, sempre que morria um papa. E eles morriam depressa, de morte natural ou não, porque acabavam quase sempre por ser eleitos já com idade muito avançada. E, pior ainda, estas dificuldades levavam a longos períodos sem papa ou com mais do que um simultaneamente. Para se ter uma ideia do que afirmamos, citamos a obra Tu es Petrus, publicada em 1934, que nos dá conta que de 604 a 1305 houve 261 papas, uma média de 2,7 anos por papado, e no que aquela obra designa por «Apogeu do papado», de 1073 a 1305, houve 38 papas, com duração média de 6 anos por papado. Estas duas explicações têm o seu peso, mas uma terceira razão terá sido determinante: o renascer da Europa. De facto, no século XIII, o nosso continente começa a sair do marasmo medieval de oito séculos, rompe com a tradição latina e arranca definitivamente na senda do desenvolvimento em todas os campos, não demorando a suplantar todas as outras grandes civilizações. Frederico II, Rogério Bacon e muitos outros, como Marco Polo (12541324), foram determinantes na mudança que se avizinhava. Lembremos que nesta época foram introduzidos na Europa pelos árabes o fabrico do papel e da pólvora, que trouxeram da China, a agulha magnética, os algarismos, e foram inventados o relógio de pêndulo e os óculos de ver ao perto. Também assistimos à progressiva afirmação de estados centralizados fortes, governados por monarcas bem mais esclarecidos do que os seus avós, analfabetos e beatos. No campo da filosofia e da teologia tinha-se atingido no século XIII o auge do pensamento escolástico – a Alta-escolástica. Mas, como vimos, logo nas primeiras décadas do século XIV, as universidades começaram a relegá-la para um segundo plano, ressurgindo apenas no século XIX: a neo-escolástica tomista. O ensino, mais liberto do espartilho teológico e cada vez menos ligado ao aristotelismo, foi elegendo a metodologia empírica e experimental. Os grandes vultos deixaram de ser filósofos/ teólogos para passarem a matemáticos, astrónomos, físicos, médicos, botânicos, etc., leigos e não religiosos.
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E a tudo isto viria juntar-se a peste negra que, vinda da China, atingiu a Europa em 1347 e dizimou parte significativa da população, obrigando os sobreviventes a redobrados esforços no processo produtivo. Mas, agora, dispondo de ferramentas que os seus avós desconheciam, na agricultura, na navegação, na engenharia, na contabilidade. Com óculos, foi possível prolongar a vida útil de copistas, juristas, contabilistas, mecânicos, artífices de todas as profissões e letrados de todas as áreas. Mas além de óculos tinham agora ao seu dispor papel e tintas de boa qualidade. Os livros tornaram-se mais acessíveis, embora ainda escritos à mão. O relógio de pêndulo nas torres das igrejas melhorou a organização e o rendimento do trabalho colectivo. Claro que este despertar, esta ânsia de saber, de viajar, de experimentar, de trocar ideias e experiências, não poderia deixar de se confrontar com a mentalidade doentia e obsoleta dos guardiães da sabedoria dogmática, ciosos das suas verdades absurdas. O declínio da influência papal e da Igreja a ela ligada deve-se, fundamentalmente, ao facto de não ter sabido ou podido compreender e acompanhar os ventos novos que começavam a soprar. OS PAPAS DE AVINGNON E O CONCILIARISMO A Bonifácio VIII seguiu-se Bento XI, mas, quando dois anos depois este faleceu, Filipe, o Belo, resolveu escolher um papa francês, Clemente V, que se entronizou em Lion e se instalou em Avignon, no Sul de França, a 80 km a norte de Marselha, cidade que passou a ser a sede da cristandade de 1309 a 1378. Clemente V e os seus oito sucessores, os papas franceses de Avignon, passaram a meros joguetes dos interesses do poderoso monarca e seus sucessores. Vimos como Clemente V e Filipe se aliaram no extermínio dos templários, pondo termo ao seu ameaçador poder económico e militar. E com o desaparecimento dos fiéis templários e cercado por território francês, o papa perdeu grande parte da sua capacidade de manobra, situação que não se alterou quando, em 1348, o papa Clemente VI comprou a cidade de Avignon e arredores a Joana I, rainha da Sicília e condessa da Provença. Por outro lado, a mudança de sede agravou seriamente a situação financeira do papado, já que o todo-poderoso Filipe tinha fama de avaro, os financeiros templários arderam e o bispo que ficara em Roma não facilitava as transferências dos recursos do Estado Pontifício. Também os estados vassalos de Roma, que lhe pagavam avultados tributos, aproveitavam a confusão para se irem esquecendo das suas pias prestações. Os pobres papas foram obrigados a aumentar os impostos, as taxas sobre a concessão de privilégios e benefícios, as verbas exigidas aos bispos para lhes ser concedido o pálio, e a recorrer a dádivas compulsivas, etc.,
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sempre sob a ameaçazinha de excomungar recalcitrantes e incumpridores. Tudo isto abalou a imagem do papado, e a sua autoridade era cada vez mais exercida sob a protecção do rei. Entre os povos germânicos, a animosidade contra o papa foi aumentando no decurso dos decénios, criando as condições que iriam conduzir à revolta popular na época da reforma luterana. E as coisas pioraram quando o papa que se seguiu a Clemente V, João XXII, pressionado por Filipe, suspendeu o imperador Luís da Baviera (1323), dando início a hostilidades entre os dois principais estados europeus e dividindo uma vez mais a hierarquia católica. Luís respondeu, apelando a um concílio geral contra o papa, reunindo na sua corte todos os que não aceitavam a troca da Cidade Eterna por Avignon. Mas agora os representantes do clero, em particular os alemães, contestavam não só os papas franceses, marionetas do rei, mas a própria essência divina dos papas. Ganhava terreno a ideia de que a Igreja era pertença de toda a comunidade cristã, sem privilégios do clero sobre os leigos, e que a direcção universal deveria ser assegurada por um concílio representativo de toda a cristandade. O papa, eleito pelo concílio, seria um mero órgão executivo do mesmo, a quem teria de prestar contas, podendo ser destituído e substituído. E a guerra entre os dois partidos iria prolongar-se por longos anos, o partido do papa divino e acima de todos os mortais, os papistas, e o partido do papa «secretário-geral» do concílio e sem dons divinos, os conciliaristas. O GRANDE CISMA DO OCIDENTE Referimos já alguns dos cismas que marcaram a história do cristianismo. O grande cisma de que nos vamos ocupar foi o mais longo da cristandade ocidental e, sem dúvida, o que teve maiores repercussões no mundo cristão. A Igreja de Inglaterra também começou por um cisma, mas depois foi-se «protestantizando», afastando-se da Igreja Romana definitivamente. Duas santas da Igreja desempenharam um papel decisivo no desenlace do cisma, a dominicana Catarina de Siena e a princesa Brígida da Suécia. Eram videntes e proferiam severas ameaças proféticas sobre o fim do cristianismo, caso a sede da Igreja não regressasse a Roma. O papa Gregório XI, aterrado com tais profecias, deslocou-se a Roma em 1377, mas foi encontrar uma cidade decadente e depravada, as velhas instalações papais degradadas, a animosidade dos Italianos. Desiludido, resolveu voltar ao conforto seguro de Avignon, mas morreu antes de partir. Os Italianos aproveitaram a deixa e apressaram-se a eleger o novo papa em Roma, pois a lei eleitoral estipulava que o conclave teria de reunir-se, dez dias depois do falecimento e no local do óbito. Mas onze dos dezasseis
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cardeais presentes eram franceses, o que, numa eleição limpa, garantia a eleição de outro francês. Deu-se então um espantoso acontecimento. No dia da eleição o conclave foi invadido por homens armados que obrigaram os eleitores a votar num italiano, o arcebispo de Bari, que adoptou o nome de Urbano VI. E os cardeais franceses, mal refeitos do susto, puseram-se a salvo, fugindo, disfarçados, da cidade. Mas voltaram para assistir aos festejos da coroação do novo papa, a quem prestaram vassalagem, regressando depois a França. Meses depois declararam nula a eleição de Urbano por ter sido realizada sob coacção das armas e, em novo conclave em Fondi, a sul de Roma, os onze cardeais mais um espanhol elegeram um papa francês, Clemente VII (1378), que alegremente regressou aos paços de Avignon. Estava consumado o cisma que iria perdurar nos quarenta anos seguintes (1378 a 1417), período em que as duas partes contaram com quatro papas cada. Os senhores da Europa repartiram os seus favores por Roma ou por Avignon, de acordo com os seus interesses e alianças políticas. França, Escócia, Castela, Navarra e diversos principados alemães alinharam com o papa de Avignon, enquanto a Inglaterra, a Hungria, os estados italianos, os países nórdicos e outros principados alemães obedeciam ao papa romano. O imperador da Alemanha, de quem os principados e ducados eram súbditos, apoiou Urbano. No nosso país, o rei D. Fernando, em conflito com Castela, simpatizava mais com Roma, mas como eram problemas da Igreja convocou uma assembleia de prelados para Santarém que confirmou a obediência a Urbano. Mas Lisboa continuou com os dois bispos, D. João, de Aix, que apesar de francês era da facção romana, e D. Martinho, que encabeçava o partido de Avignon, mas que acabou os seus dias projectado para a rua de uma das torres da Sé. O seu cadáver foi barbaramente mutilado (1383). Foi o período mais confuso de toda a história da Igreja Católica, pois cada papa excomungava não só o colega como todos aqueles que o apoiavam ou lhe prestavam obediência. Deste modo, toda a cristandade ocidental estava excomungada. A oriental há muito que já o estava. Mas, mais grave ainda, como cada papa se assumia como o verdadeiro vigário de Cristo, nomeava os bispos mesmo nos países de orientação adversa, levando a cisão às dioceses e paróquias por toda a Europa. O clero e as populações eram constrangidos a tomar partido. Imagine-se, numa época em que bispados, paróquias e mosteiros detinham consideráveis bens patrimoniais, o sururu entre bispos, párocos e abades em duplicado. O bicefalismo da igreja colocava problemas insuperáveis, à luz do direito canónico. Desde Gregório VII que só o papa detinha o poder de convocar concílios ecuménicos, e ninguém o poderia julgar, apenas respondia
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perante Deus. Mais tarde foi acrescentada uma cláusula que abria a possibilidade de o papa ser destituído em caso de loucura ou se incorresse em heresia, decisão que só em concílio ecuménico poderia ser tomada. E nestas circunstâncias caberia ao colégio cardinalício a convocação. Ora a solução do presente imbróglio, de dois papas a reclamarem igual legitimidade, não estava prevista. Até então, os diversos cismas tinham sido resolvidos pelas armas, por indemnizações, por morte ou fuga de um dos rivais ou por rotura definitiva, como aconteceu com o Grande Cisma do Oriente. Mas desta feita a solução desejável seria a de um dos dois resignar a favor do outro, mas nenhuma das partes mostrava qualquer intenção de se dar por vencida. Pelo contrário, o bicefalismo ia-se cristalizando com o passar do tempo, afastando qualquer solução amigável. No fundo era uma situação semelhante à que originou o primeiro grande cisma da cristandade, para o qual também não foi encontrada solução. Não admira que as velhas ideias conciliaristas ganhassem novo fôlego. A primeira tentativa de depor os sumos pontífices num concílio ocorreu em Pisa em 1409. Desobedecendo aos respectivos papas, cardeais de ambas as facções conseguiram reunir uma assembleia com cerca de 500 participantes, bispos, seus delegados, abades, capítulos de catedrais e universitários, onde se consideraram os dois papas inimigos da unidade da igreja, incorrendo portanto em heresia, e os destituiu. Seguiu-se a eleição de um novo papa, Alexandre V, que viria a falecer um ano depois, tendo como sucessor o antigo pirata Baltazar Cossa, agora cardeal, que se designou por João XXIII e assentou arraiais em Pisa. (Atente-se que, na lista oficial dos papas, este João XXIII consta como antipapa, o que permitiu ao cardeal Roncalli adoptar o nome de João XXIII quando em 1959 foi eleito). Mas foi pior a emenda que o soneto. Os dois papas não reconheceram a legitimidade do Concilio de Pisa e muito menos das suas decisões, e a Igreja Católica de bicéfala passou a tricéfala. Temos as habituais excomunhões recíprocas e, diga-se de passagem, os esforçados conciliares estavam agora excomungados duas vezes, pelo seu papa e pelo outro. Pouco depois da sua entronização em Pisa, o cardeal pirata envolveu-se em guerra contra o rei de Nápoles, foi derrotado e refugiou-se em Florença, onde instalou a sua cúria. O CONCÍLIO DE CONSTANÇA Constança é actualmente uma pacata cidade alemã na margem do lago do mesmo nome, lago que banha a Suíça, a Alemanha e a Áustria. Nela ocorreu um dos acontecimentos mais notáveis destes tumultuosos tempos, o Concílio de Constança, o concílio da reconciliação.
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Deve-se à enérgica persistência do imperador alemão Segismundo a reunificação da cristandade ocidental. Era um fervoroso adepto do terceiro papa, João XXIII, talvez por detestar os franceses e os romanos, talvez por desconhecer o seu passado perverso e as suas luxúrias antinaturais. A verdade é que conseguiu convencê-lo a convocar um concílio ecuménico que fosse demolidor, capaz de pôr cobro de uma vez por todas à divisão da Igreja. O local do concílio foi criteriosamente escolhido, tendo os trabalhos tido início a 5 de Novembro de 1414. Para se ter uma ideia da dimensão deste acontecimento, citamos as presenças: 29 cardeais, 38 arcebispos, 150 bispos, 124 abades, 578 doutores em teologia, muitos outros eclesiásticos, representantes de 10 reis, além de Segismundo, mais de 100 condes e príncipes e 2400 cavaleiros. Toda esta gente era acompanhada de inúmeros servidores, cozinheiros, barbeiros, concubinas, músicos (só flautistas eram 1400) e por aí fora, além das respectivas escoltas militares. Os historiadores apontam para mais de 100.000 o número de pessoas que convergiram para Constança. Os papas de Roma e de Avignon não compareceram, e tudo fizeram para que o concílio não se realizasse. Os temas em debate eram três, a já citada unificação da igreja, as reformas de fundo que clarificassem quem manda em quem, e a discussão das questões pertinentes que João Huss tinha levantado e de que nos ocuparemos adiante. João XXIII ao convocar o concílio pensou que este iria confirmá-lo como papa único, mas tal não aconteceu. Ao longo dos trabalhos, os conciliares foram-se convencendo de que os antagonismos entre as três facções eram tão profundos que a melhor solução seria destituir os três e eleger um quarto, tanto mais que sobre João, o favorito do imperador, pendiam graves acusações. João, já sem esperanças de alcançar a tão almejada tiara e ciente de que corria o risco de acabar condenado, fugiu, convencido de que a sua ausência e a confusão reinante acabariam pela dissolução do concílio, ficando tudo na mesma. E quando já todos se preparavam para abandonar Constança, desiludidos, o enérgico Segismundo toma a palavra e convence os presentes de que o concílio teria de ir até ao fim, mesmo na ausência do papa João. Outros oradores defenderam que nas actuais circunstâncias o papa teria de submeter-se ao concílio, acabando por ser aprovado um decreto que afirmava ser o concílio obra do Espírito Santo, recebendo o seu poder directamente de Deus. Foi uma primeira vitória dos conciliaristas. E os trabalhos prosseguiram com a questão de Huss. Depois da condenação deste, foram abordadas as reformas. A eleição do novo papa ficaria para depois, dependendo do que fosse aprovado quanto à estrutura hierárquica da Igreja.
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Entretanto, João XXIII entregava-se às mais sórdidas intrigas destinadas a espalhar a confusão e a dissolução do concílio, mas, como já vimos, os monarcas germânicos acabam por perder a paciência com papas desavindos, e João é preso, julgado e demitido. Dias depois, o papa romano, Gregório XII, de noventa anos, resolveu abdicar. Já o papa de Avignon, Bento XIII, se mostrava mais relutante. Mas os seus adeptos abandonaram-no e compareceram no concílio. Receoso do intempestivo Segismundo e sem o apoio do rei francês, que se encontrava louco há muito tempo (Carlos VI), pôs-se a salvo em Espanha. A questão das reformas opôs tenazmente conciliaristas e papistas. Os primeiros, alemães e ingleses, pretendiam que o papa ficasse vinculado aos concílios e que estes, com plenos poderes, deveriam reunir-se regularmente de 10 em 10 anos e eleger o papa. Os papistas tradicionais defendiam o papa todo-poderoso, acima dos concílios, o único com competência para os convocar quando bem entendesse. Dois anos depois de acesa discussão, chegou-se finalmente a um compromisso: os concílios seriam de 10 em 10 anos, convocados pelo papa, que seria eleito ou reeleito no início do mesmo e dirigiria os trabalhos. E foi finalmente possível eleger o novo papa. O colégio eleitoral reuniu 26 cardeais e seis representantes das cinco nações, Alemanha, França, Inglaterra, Espanha e Itália, ao todo 56 eleitores. Ao fim de três dias era anunciada a eleição do cardeal romano Colonna, que adoptou o nome de Martinho V (1417-1431), terminando o concílio em 22 de abril de 1418, e o cisma. Claro que, uma vez instalado em Roma, Martinho nunca mais pensou nos compromissos, nem ele nem os seus sucessores, o que sem dúvida contribuiu para os novos cismas que se aproximavam. Como veremos adiante, os conciliaristas não desarmaram.
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MAIS HERESIAS
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eferimos os mais relevantes movimentos de contestação ao mundanismo da hierarquia sacerdotal, que ocorreram em pleno período de apogeu papal nos séculos XII e XIII, o arnaldismo e o valdismo, logo rotulados de heréticos. No século seguinte, as mesmas ideias e as mesmas críticas surgem com redobrada contundência. E com a mesma crueldade foram sufocadas. Mas desta vez o rastilho não se apagou. Dediquemos algumas linhas aos principais protagonistas: GULHERME DE OCCAM Nasceu em Occam, ou Ockham, nos arredores de Londres em 1285 e morreu em Munique em 1349. Cedo ingressou na Ordem dos Franciscanos e mais tarde frequentou a Universidade de Oxford, onde se dedicou ao estudo da Matemática, da Filosofia e da Teologia. Foi um dos mais proeminentes representantes do nominalismo, uma das diversas correntes escolásticas que se opunham ao realismo e ao tomismo. Para Occam, Deus é intangível para a razão humana e só pela revelação o homem pode conhecê-lo. A concepção de Deus não é portanto uma aquisição lógica, demonstrável pelo raciocínio. Só através da fé podemos encontrar nas Sagradas Escrituras reveladas os fundamentos do nosso conhecimento de Deus. E só a fé nos pode conduzir à salvação.
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A separação da razão e da fé contrariava frontalmente as teses dos dois grandes doutores da Igreja, Agostinho e Aquino, para quem razão e fé são conciliáveis, não podendo deixar de suscitar a mais viva reacção da Igreja Romana. Tratava-se de uma concepção perigosíssima, por diversas razões. Vejamos: por um lado, libertava a mente para a actividade especulativa e criativa dentro da racionalidade lógica, despegando o pensamento e a abordagem dos fenómenos naturais das peias teológicas, dos medos, dos castigos divinos e não divinos. Ficava-se desobrigado de ter de chegar a conclusões que não colidissem com o saber imutável. Por outro lado, a fé e a salvação, ao dependerem da observância das Escrituras, esvaziavam o papel tutelar da Igreja e da sua hierarquia. Lá se iam os sacramentos, as indulgências, a doentia dependência dos crentes perante os arautos da verdade absoluta. Mas Occam não foi apenas o teólogo que tão grande influência irá ter um século depois, como veremos. Marcou a passagem do pensamento da alta escolástica, dominado pelo tomismo, para o pensamento renascentista. Tal como Rogério Bacon, defendia que a realidade nos é proporcionada pelos órgãos dos sentidos, e só a experimentação nos pode conduzir ao conhecimento dos fenómenos. Foi precursor do empirismo inglês, do cartesianismo e do criticismo de Kant. Não deixa de ser curioso verificar como muitos cultos cristãos actuais não se afastam do essencial das concepções de Guilherme de Occam. Recordemos aqui a conhecida frase do católico Louis Pasteur (1822-1895) criador da microbiologia: «Quando estou no laboratório não penso no oratório, e quando estou no oratório não penso no laboratório». O papa João XXII condenou Occam por heresia, tendo este fugido de Oxford para não ser sentenciado. Deambulou por França e por Itália, até que encontrou protecção em Pisa então ocupada por Luís da Baviera. Acompanhou as tropas do imperador até Munique onde viveu tranquilo o resto dos seus dias. Nos seus últimos escritos atacou severamente o papa, a sua infalibilidade e o seu autoritarismo. JOÃO WYCLIF E O MOVIMENTO LOLLARD João Wyclif (1320-1384) foi um sacerdote inglês que por volta de 1374 entrou em conflito aberto com a hierarquia da Igreja, contestando a autoridade do papa de Avignon, a vida luxuosa que ostentava e os seus métodos de extorquir dinheiro através da venda de indulgências e de ameaças. Opunha-se também aos privilégios dos sacerdotes que recorriam aos mesmos métodos para acumularem riqueza à custa da miséria e da ingenuidade do povo. Depois as críticas passaram para o campo da fé, rejeitando a infalibilidade do papa e o culto dos santos, que considerava idólatra. Opondo-se
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frontalmente à situação reinante, pugnava pelo retorno ao cristianismo apostólico, pois se os sacerdotes se consideravam continuadores dos apóstolos deveriam, como estes, renunciar a toda a posse material e ter uma vida austera. Só seria digno de pregar a palavra do Senhor quem vivesse em estado de graça, sem pecados. Assim, um pecador mortal nunca poderia deter qualquer responsabilidade eclesiástica ou temporal, fosse ele papa, bispo ou rei. As suas ideias propagaram-se a toda a Inglaterra, sendo considerado um precursor do anglicanismo. Depois, passaram ao continente, não tardando a ser condenado como herege. Mas era tão grande a sua popularidade, tantos os seus adeptos nas classes mais elevadas, também elas inconformadas com os excessos do clero, que o próprio rei inglês, Eduardo III, admirador da sua lucidez e coragem, o protegeu, impedindo a consumação da sentença – a fogueira. Mais tarde, já no fim da vida, Wyclif dedicou-se à protecção dos partidários de Walter Tyler, o rebelde inglês que dirigiu o levantamento dos camponeses em 1381 e que acabou executado. Três décadas depois da sua morte, o Concílio de Constança decretou a exumação e a incineração dos seus restos mortais, mas só 13 anos depois foi concretizada tão macabra tarefa, por ordem expressa do papa Martinho V ao bispo Fleming. John Ball foi um famoso padre divulgador das ideias de Wyclif, indo mais longe ao considerar que na comunidade cristã todos deveriam ser socialmente iguais, e, para tanto, era necessário liquidar os lordes e os privilegiados. Em 1366, o arcebispo de Cantuária prendeu-o e excomungou-o, tendo ficado impedido de pregar, o que não acatou. A sua palavra eloquente e as multidões que o seguiam muito contribuíram para o já referido levantamento camponês de 1381, ano em que foi preso e enforcado. Também está associado a Wyclif o movimento político e religioso que assolou a Inglaterra nos finais do século XIV e século XV e que ficou na História com o nome de Movimento Lollard. Desconhecem-se os protagonistas que estiveram na sua génese, assim como a origem da sua designação. Talvez esta venha da palavra latina lolium que significa erva daninha ou do nome de Walter Lollard, um valdense queimado vivo em Colónia em 1322. A verdade é que este movimento retoma as teses de Wyclif, pugnando pela reforma da Igreja e defendendo que a autoridade religiosa provinha da devoção e não da hierarquia, podendo qualquer leigo devoto ministrar os sacramentos. Impiedosamente reprimido, o Movimento Lollard estava extinto nos finais do século XV, mas as raízes que deixou explicam a pacífica aceitação popular do cisma que mais tarde afastaria a cristandade britânica da autoridade papal, como veremos.
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JOÃO HUSS E A GUERRA DOS HUSSITAS DA BOÉMIA João Huss (1369-1415), homem de grande ilustração, de nacionalidade checa, foi pregador em Praga, tendo proferido na universidade desta cidade uma série de conferências sobre o pensamento de Wyclif, de que era entusiasta admirador. A grande repercussão destas palestras nos meios cultos da Boémia desencadeou a ira do conservador corpo sacerdotal. Huss e as suas ideias passaram a ser inimigo público. O Concílio de Constança tinha na agenda, como vimos, o tratamento do caso de Huss e a tomada de urgentes medidas face a esta nova ameaça contra a unidade da Igreja. Huss, apesar de excomungado, foi convidado a participar e a expor as suas teses, tendo-lhe sido dadas todas as garantias quanto à sua integridade, designadamente um salvo-conduto assinado pelo imperador Segismundo. A falta de comparência poderia significar a auto-exclusão da Igreja ou, pior ainda, o reconhecimento das suas convicções heréticas. Mas de nada lhe serviram as imunidades do poderoso Segismundo, o mais eminente dos concíliares. Quatro semanas depois da sua chegada a Constança, foi preso por ordem de João XXIII, encarcerado numa imunda cela e agrilhoado com uma corrente à parede. Mas quis o destino que poucas semanas depois lhe arranjassem um companheiro de cárcere. Sabem quem? O famigerado pirata Baltazar Cossa, o nosso papa João XXIII, que o mandara prender... Apesar da confusão causada pela fuga e posterior prisão de Baltazar, o julgamento de Huss prosseguiu. Em sua defesa utilizou a argumentação do seu mentor, Wyclif: «Se os sacerdotes se dizem herdeiros dos apóstolos devem comportar-se segundo os ensinamentos de Jesus, de outro modo não passam de impostores». E desafiava os julgadores a imputarem-lhe um único acto, uma única palavra que o afastasse da estrita observância das virtudes cristãs. Mas os inquisidores, com as confissões obtidas sob tortura de colaboradores de Huss, engendraram 42 graves acusações de heresia impenitente e condenaram-no à fogueira. O processo inquisitorial movido no concílio contra Huss, como toda a documentação oficial do concílio, encontra-se preservado, como também a descrição circunstanciada do auto-de-fé e da execução. Alguns pormenores dão uma ideia de como foi requintada a cerimónia. Na presença de todos os conciliares, incluindo o atento Segismundo, o condenado foi amarrado a um pelourinho com um chapéu de palhaço com diabos pintados e a inscrição «heresiarca». O bispo que orientava os trabalhos sentenciou: «Encomenda a tua alma ao Diabo» e logo foi ateada
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a fogueira para onde foram atirados livros e objectos pessoais. Depois, os restos carbonizados foram desfeitos, o crânio, esmagado, e quando encontraram o coração meio assado espetaram-no num pau e incineraram-no nos restos da fogueira. Depois, as cinzas foram deitadas ao Reno. Mas desta vez o pequeno reino da Boémia sublevou-se contra a autoridade papal. Foi a revolta dos hussitas que resistiram e derrotaram sistematicamente os exércitos papais e dos seus aliados. Cinco cruzadas instigadas pelo papa Martinho V abateram-se contra o povo checo, e todas fracassaram. Só em 1436 foi restabelecida a paz, quando no Concílio de Basileia as duas partes estabeleceram um acordo, como adiante veremos. Foi a primeira de uma interminável série de guerras entre cristãos, que iriam ensanguentar a Europa nos séculos seguintes. JERÓNIMO DE PRAGA Foi um dos muitos partidários de Wyclif, cujas ideias defendeu nas universidades da Alemanha, Polónia, França e Inglaterra (1380-1416). Era portanto um homem viajado, com amigos e coniventes em diversos meios, apreciado pelos seus dotes oratórios e conhecimentos teológicos. Em Praga conheceu Huss, aderindo de imediato ao seu movimento reformador. Quando soube da sua prisão e do perigo de morte que corria, Jerónimo dirigiu-se secretamente a Constança com o intuito de o libertar, convencido de que o conseguiria, dado o grande prestígio de que desfrutava nos meios eclesiásticos, que o temiam. Foi preso e ainda mais supliciado e humilhado que Huss. Agrilhoado de pés e mãos, apenas lhe davam pão e água. Foi submetido a um processo inquisitorial semelhante ao de Huss, condenado à fogueira e as suas cinzas deitadas ao Reno. O mesmo destino teve também João Chlumski, adepto de Huss, e que o acompanhara a Constança.
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A QUEDA DE CONSTANTINOPLA
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m maio de 1453 caiu em poder dos turcos o último bastião do cristianismo no Oriente, Constantinopla. Já em 1422, a cidade tinha resistido ao primeiro assalto turco, mas agora os 7000 defensores da cidade, apesar da sua tenaz resistência, nada puderam contra os 150.000 soldados do sultão Maomé II, equipados com canhões comprados aos genoveses. Quando a cidade foi tomada, os turcos dominavam já vastas áreas europeias, o Sul da actual Ucrânia, a Bulgária, parte da Grécia e outros territórios balcânicos. Com Constantinopla tornaram-se também senhores do Mediterrâneo. Não foi de resto a primeira vez que povos pagãos ou infiéis vindos do Oriente ameaçaram seriamente os estados europeus. Já o haviam feito os hunos no século V, os ávaros nos séculos VII e VIII, os árabes nos séculos VIII e IX, os húngaros no século IX, e os mongois no século XIII. Estes últimos dominaram os actuais territórios da Rússia, Ucrânia, Polónia, Hungria e Roménia, e só se retiraram quando morreu subitamente o seu chefe, Ogdaicão, o sucessor do Gengiscão. E foi exactamente a pressão mongol que foi empurrando para sul as tribos turcas que habitavam o Turquestão, território onde se situam hoje as repúblicas asiáticas da ex-URSS. Séculos antes, sob o comando de Seldjúquida, tribos com a mesma origem tinham-se expandido para sul, aca-
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bando por destronar os árabes, cuja religião e cultura foram assimilando. Eram os turcos seldjúquidas que dominavam o Próximo e o Médio Oriente no tempo das cruzadas. Chegava agora a vez dos turcos comandados por Otomão e seus descendentes, que, sem grande resistência, destronaram a decadente dinastia seldjúquida e se tornaram senhores destes vastos territórios, criando um poderoso império. Já em 1396 haviam infligido uma demolidora derrota aos exércitos aliados da França, Alemanha e Hungria, na Batalha de Nicópolis, na Bulgária. Com a conquista de Constantinopla e a instalação nesta cidade da sua capital, representavam um seriíssimo perigo para a cristandade. Antes da queda da cidade, os bizantinos, pressentindo o seu trágico fim, tudo fizeram para obter apoio do Ocidente. Estavam dispostos a abdicar das interpretações teológicas que os opunham a Roma e a desistirem, a favor desta, das suas pretensões hegemónicas, manifestando por diversas vezes o desejo de se integrarem na Igreja Romana, pondo termo ao cisma. Mas vejamos como reagiram os estados europeus e o papado à ameaça turca e àquele dramático pedido de ajuda. Em 1431, o papa Eugénio IV (1431-1447) tinha convocado um concílio ecuménico onde as grandes questões a tratar eram exactamente a necessidade de unir toda a cristandade, para fazer frente ao expansionismo turco e islâmico, e o auxílio a prestar aos cristãos do Oriente. Mas a incapacidade dos Ocidentais foi total. As vicissitudes por que passou o concílio revelam-no bem: a sua duração, as mudanças de local, as constantes querelas com formação de facções com antagonismos inultrapassáveis, e, mais do que tudo, a desunião entre os reinos cristãos e dentro da própria hierarquia católica. O concílio foi inicialmente convocado para Basileia (1431-1437), onde logo se digladiaram as duas velhas facções. Os conciliaristas levaram a melhor e elegeram um novo papa, o duque de Sabóia (ducado francês junto da Suíça), que adoptou o nome de Félix V. Livres de Eugénio, os conciliaristas permaneceram em Basileia e aceitaram as duras críticas à hierarquia católica romana formuladas pelos rebeldes hussitas, o que permitiu firmar um acordo que pôs termo à sublevação na Boémia. Mas Eugénio, demitido e expulso de Basileia, não acatou as decisões do concílio e, regressado a Roma onde contava com grande apoio do clero, resolveu prosseguir os trabalhos do concílio em Ferrara (1438) e finalmente em Florença (1439-1442). Decorrerem portanto 11 preciosos anos desde que o concílio foi convocado. E o cisma de Félix V dividia uma vez mais a Igreja Romana. Em 1438, o imperador bizantino João VIII, levando no seu séquito o patriarca de Constantinopla, o bispo de Niceia e mais de 700 acompanhantes, deslocou-se a Ferrara, onde os esperavam Eugénio e os delegados ocidentais, seus apoiantes. A condição por estes imposta para a ajuda
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CAPÍTULO XXI
militar foi a total obediência da Igreja Ortodoxa a Roma, o que foi aceite pelos ansiosos bizantinos, que regressaram, humilhados, à sua terra. Cessara enfim o Cisma do Oriente, com a promessa de uma invencível cruzada contra o infiel em que participariam todos os reinos cristãos. E se não fora o cisma de Félix V teríamos toda a cristandade unida sob a batuta de Roma. Mas não por muito tempo. É que a tal cruzada nunca chegou a realizar-se. Os anos iam passando, os turcos apertavam cada vez mais o cerco a Constantinopla, o concílio agora em Florença ocupava-se de importantes temáticas teológicas e eclesiásticas só terminando os seus trabalhos em 1442 e nada de iniciar a preparação da demolidora cruzada. E o inevitável aconteceu, três anos mais tarde. Os canhões genoveses arrasaram as muralhas da cidade; a guarnição, exausta e faminta, foi chacinada; o novo imperador, Constantino XI, morto em combate; a cidade, saqueada. E, com a quebra da promessa ocidental, a união das duas confissões rapidamente se desfez. Os orientais procuraram uma nova capital religiosa, longe quer de papistas quer de turcos, dignidade que foi assumida por Moscovo em 1454, a terceira Roma. As duas Igrejas recismaram-se formal e definitivamente em 1472. Diga-se de passagem que os turcos toleraram sempre o patriarca cristão de Constantinopla, que manteve até aos nossos dias um certo ascendente espiritual sobre os diversos ritos ortodoxos que, com o tempo, se foram autonomizando, o russo, o grego, o búlgaro, o sérvio e muitos outros de menor expressão. Por morte do papa Eugénio IV em 1447, foi eleito Nicolau V, mas só três anos depois os adeptos do antipapa vieram prestar-lhe vassalagem, abandonando Félix, que regressou, desiludido, ao seu ducado. Pouco depois autoproclamou-se bispo de Genebra, cidade que os Sabóias tanto ambicionavam. Reza a História que Nicolau V e os papas que se lhe seguiram tudo fizeram para unir os reinos cristãos contra os turcos, mas em vão. O papa perdera poder espiritual, credibilidade e influência sobre os senhores da Europa. Na verdade tornara-se um soberano como os outros, mais interessado nos assuntos terrenos, nas constantes intrigas palacianas, nas guerras de ocasião destinadas a aumentar o domínio territorial, na repartição de benesses por familiares, no faustoso e dispendioso embelezamento da sua cidade, relegando para plano secundário a sua missão de representante de Deus na Terra. Este papa defendeu o direito de escravisar os pagãos para salvação das suas almas. Vale a pena escrever algumas palavras que permitam melhor caracterizar este conturbado período da história da Igreja Católica que precedeu e acompanhou a Reforma protestante.
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CAPÍTULO XXII
O NEPOTISMO PAPAL
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epote significa sobrinho do papa. Nepotismo, a prática de serem concedidos aos sobrinhos e a outros familiares regalias e mesmo bens materiais. Sempre houve nepotismo na longa história dos papas, fenómeno que, com variantes diversas mais ou menos encapotadas, se manteve até um passado bem recente, concretamente até Pio XII (1939-1958), que não hesitou em distribuir benesses por parentes seus. Foi no entanto no período renascentista que o nepotismo se impôs como sistema de governação da Igreja e do Estado Pontifício e de sucessão papal. Com o tempo, os papas passaram a ser eleitos entre os cardeais do Colégio Cardinalício, estes, por sua vez, nomeados pelos papas anteriores. Ora a distinção cardinalícia pressupunha uma vida anterior eclesiástica, portanto solteira, não podendo os titulares exibir descendência legítima, o que contrariava a regra de ouro da sucessão senhorial. Claro que alguns papas tinham optado pelo sacerdócio depois de uma vida de casados e nem sempre de cristã fidelidade. O caso mais notório foi o de Alexandre VI, a cuja coroação assistiram o filho legítimo, o mais velho, e os três ilegítimos. À medida que o papado se vai confundindo com os outros domínios senhoriais, impérios, reinos, ducados, condados, e o papa se assume como príncipe da Igreja e do Estado Pontifício, não admira que não resista à tentação de garantir a sucessão do trono a descendentes seus.
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A regra foi introduzir sobrinhos no Colégio Cardinalício, atribuindo-lhes altos cargos, e ter o colégio tanto quanto possível sob o seu controlo através da nomeação de cardeais de confiança. Depois, recorrendo ao suborno e à chantagem, o poderoso sobrinho tinha as portas abertas à sucessão. Foi, assim, que as famílias Borgia e Medicis nos deram vários papas. Mas o nepotismo não se limitou à questão sucessória. Mais grave ainda foi acharem-se os papas no direito de oferecer a sobrinhos e a outros familiares ducados e condados pertencentes ao Estado Pontifício, desbaratando o património secular da Igreja. Evidentemente que a prática do nepotismo fez decair ainda mais a influência espiritual do vigário de Cristo. Bem podiam agora os papas excomungar reis. Estes ficavam-se a rir, como aconteceu com Henrique VIII e Isabel I. Detenhamo-nos num brevíssimo historial dos papas que se seguiram a Eugénio VII: Nicolau V ainda desempenhou tarefas supranacionais. Coroou o imperador alemão Frederico III (1452), o último imperador a ser coroado por um papa, e concedeu por bula ao nosso Infante D. Henrique o monopólio dos proventos das terras por ele exploradas. Foi um fervoroso amante das artes, fundador da Biblioteca do Vaticano. O seu pontificado foi ensombrado pela descoberta de uma vasta conspiração para o derrubar, a que se seguiu uma implacável vingança sobre os conspiradores. Depois veio o sexagenário Calisto III (1455-1458), da poderosa família espanhola Borgia, que se instalara no Norte da Itália. Investiu dois sobrinhos no Colégio Cardinalício, um dos quais, Rodrigo Borgia, viria mais tarde a ser o papa Alexandre VI. O papa seguinte foi Pio II (1458-1464), um proeminente conciliarista em Basileia, adepto de Félix. Depois reconciliou-se com Eugénio IV e ao assumir o trono decretou hereges todos aqueles que mantinham ideias conciliaristas, os seus anteriores companheiros. Nomeou cardeal um seu sobrinho que viria a ser o papa Pio III. O já citado Eugénio IV tinha feito cardeal um seu sobrinho com a idade de 23 anos. Pois chegou a vez de este suceder a Pio II, adoptando o nome de Paulo II (1464-1471). Seguiu-se Sisto IV (1471-1484), que também nomeou cardeais dois seus sobrinhos, um dos quais seria mais tarde Júlio II. A outro sobrinho cedeu o principado de Imola, envolvendo-se a favor dele em sangrentas guerras contra Florença, Nápoles e Veneza. Inocêncio VIII (1484-1492) foi eleito papa através do suborno do Colégio Cardinalício. Doou a um filho ilegítimo várias cidades que faziam parte do Estado Pontifício, depois de este ter casado com uma dama da poderosa
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CAPÍTULO XXII
família Medicis. Depois acolheu o neto no Colégio Cardinalício com apenas 12 anos, mais tarde o papa Leão X. O devasso Rodrigo Borgia sucedeu a Inocêncio, adoptando o nome de Alexandre VI (1492-1503). Não nos detemos na sua vida dissoluta por de mais conhecida. Apenas referimos que deu a dignidade de cardeal ao seu segundo filho, tendo este apenas 18 anos, o não menos conhecido César Borgia, que viria a assassinar o irmão mais velho, para se apossar dos seus territórios. Vale a pena assinalar aqui que foi aquele papa quem promulgou a bula que dividiu o mundo em dois, o célebre Tratado de Tordesilhas, que, como se sabe, nenhum reino cristão acatou. Pio III, sobrinho de Pio II, ocupou o trono papal apenas 23 dias. Seguiu-se Júlio II (1503-1513), sobrinho de Sisto IV, o menos papa de todos os papas. Tinha na guerra o prazer supremo. Ele próprio comandava os seus exércitos em intermináveis guerras que atravessaram os dez anos do seu pontificado. Lutero chamava-lhe o Sedento de Sangue. Teve o mérito de investir o produto do saque no embelezamento da Cidade Eterna e de outras do Estado Pontifício. A arte foi a sua outra paixão. Leão X (1513-1521), neto de Inocêncio VIII, considerava as teses de Lutero como querelas de monges e afirmava querer gozar o papado que Deus lhe dera. Tal como o antecessor foi grande protector das artes, incluindo a arte de fazer a guerra. Já Adriano VI (1522-1523) foi um papa diferente dos anteriores. Era holandês e detentor de toda a confiança do imperador Carlos V, de quem fora preceptor. Este monarca tinha-o nomeado regente da Espanha, onde acumulou funções com a de inquisidor-geral, movendo sangrentas perseguições a todos os simpatizantes de Lutero. A sua eleição imposta por Carlos V não foi fácil. Foi necessário ir diminuindo a ração alimentar ao Colégio Cardinalício reunido em conclave para que finalmente surgisse o fumo branco. Mas o ambiente na cúria foi sempre de cortar à faca, pois Adriano, de hábitos austeros, combateu como pôde os abusos, o nepotismo, a corrupção e a simonia. Desprezava os artistas, os poetas e os humanistas com o mesmo vigor com que combatia as ideias inovadoras. Era odiado pelos clérigos de todo o mundo cristão e em particular pelos cardeais, a quem reduziu drasticamente o vencimento e as benesses. As suas enérgicas reformas foram de pouca dura, pois entregou a alma ao Criador, 15 dias antes de o seu pontificado fazer um ano. A casa do seu médico foi rodeada de flores com os seguintes dizeres: «Ao libertador da pátria». Clemente VII (1523-1534), da família Medicis, aliou-se à França, Inglaterra e vários pequenos estados contra o imperador Carlos V, com o velho objectivo de anexar o Sul de Itália. Mas a coligação foi derrotada, e os sol-
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dados espanhóis e alemães marcharam sobre Roma, saquearam as dependências papais e a cidade, matando 8.000 dos seus habitantes e obrigando o papa a uma precipitada fuga (1527). Acabou por capitular, ficando prisioneiro de Carlos V durante seis meses. Mais tarde, por ter negado o divórcio a Henrique VIII de Inglaterra, deu origem ao cisma anglicano, como veremos. Paulo III (1534-1549) alcançou o cardinalato por ser irmão de Júlia, uma amante do papa Alexandre VI. Era pai de três filhos e de uma filha, que protegeu com inigualável nepotismo. Foi talvez o primeiro papa que levou a sério a ameaça protestante que varria já toda a cristandade da Polónia à Península Ibérica, da Escandinávia à Itália. Introduziu a Inquisição em Itália e em Portugal, criou o Index, a célebre lista de livros proibidos pelo Vaticano, que ainda subsiste, reexcomungou Henrique VIII e os anglicanos, aprovou a criação da Companhia de Jesus (1540), a terrível máquina de combate à heresia. Considerado pelos seus contemporâneos um verdadeiro príncipe, foi grande protector das artes. Doou ao seu filho Pierluigi Farnese o ducado de Parma e Piacenza. Reza a História que, decrépito e desdentado, com 72 anos, foi medicado com leite humano e sangue de raparigas. O leite era fornecido por amas que lhe davam de mamar, e o sangue, por meninas que eram diariamente degoladas e sangradas, não sem que antes o bom papa as abençoasse e lhes encomendasse a alma ao reino dos Céus. Já o papa Inocêncio VIII tinha sido submetido a análoga terapia, recuperadora da juventude. Seguiram-se Júlio III (1550-1555) e Marcelo II, tendo este último pontificado apenas 21 dias. Paulo IV (1555-1559) era inquisidor-geral quando foi eleito. A sua curta passagem pelo Vaticano cifrou-se no mais completo desastre. Tomou o partido do rei de França contra Carlos V e seu filho Filipe, mais tarde Filipe I de Portugal, a quem tinha oferecido o reino de Nápoles. A guerra foi devastadora: as diversas parcelas do Estado Pontifício foram invadidas e saqueadas; Roma viu-se cercada duas vezes pelos espanhóis. A sua reputação era tal que, depois de morto, o povo de Roma destruiu a sua estátua, saqueou o edifício da Inquisição e o convento dos dominicanos. Entretanto, tinha feito cardeal um sobrinho, a outro dera o ducado de Paliano e a um terceiro fizera-o marquês de Montebello. Pio IV (1559-1565) foi implacável para com os sobrinhos do antecessor. Prendeu-os e mandou-os executar. Protagonizou uma mudança estratégica na política de alianças da Santa Sé. Tentou aproximar-se de Filipe II de Espanha, e pôs termo às hostilidades com Fernando I, o imperador germânico irmão de Carlos V. Mas o seu ódio aos protestantes fê-lo aliar-se aos franceses, com quem o Sacro Império Romano-Germânico ainda estava em
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CAPÍTULO XXII
guerra. Em conluio com o rei de França, levou o seu exército a uma guerra de extermínio contra os huguenotes no sul daquele país. Celebrizou-se por ter interdito a leitura da Bíblia em língua que não fosse o latim, numa altura em que esta era já impressa e amplamente difundida em todas as línguas europeias. E ai de quem fosse apanhado com o livrinho traduzido na sua língua...! Pio V (1566-1572) era o grande inquisidor da Igreja Romana quando foi eleito papa, mas, ao contrário dos seus antecessores, não pertencia a uma família nobre nem tinha laços familiares com papas anteriores. Talvez por isso foi um declarado inimigo do nepotismo. Era de origem muito modesta, tendo iniciado a sua carreira sacerdotal na Ordem dos Beneditinos, cedo optando pela carreira inquisitorial, percorrendo todos os graus do Santo Ofício até à mais elevada posição. Austero, rigoroso e implacável, expulsou os judeus do Estado Pontifício e tudo fez para eliminar os huguenotes de França, incitando Filipe II de Espanha a fazer o mesmo aos protestantes holandeses. Excomungou e destronou Isabel I de Inglaterra. Foi por sua iniciativa que se firmou a Santa Aliança, que permitiu reunir uma poderosa frota que derrotou os turcos na célebre Batalha de Lepanto. Com Pio V, um dos santos da Igreja, terminou este período de século e meio de nepotismo papal. De Pio V nos ocuparemos adiante. Neste período realizaram-se os seguintes concílios ecuménicos: Constância (1414-17) – pôs fim ao Grande Cisma do Ocidente e condenou Huss. Basileia-Ferrara-Florença (1431-42) – pôs termo à Guerra dos hussitas e, temporariamente, ao Grande Cisma do Oriente. Latrão (1512-17) – condenou o joaquimismo e considerou os demónios anjos bons que, ao abusarem do livre-arbítrio, caíram no pecado. Trento (1545-63) – condenou o protestantismo e criou as bases da Contra-Reforma.
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CAPÍTULO XXIII
O CONTURBADO SÉCULO XVI
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uitos foram os factores que se entrecruzaram nestes tempos conturbados e que levaram à maior catástrofe da história da Igreja Católica. Um dos factores mais relevantes terá sido a invenção da imprensa tipográfica por Gutenberg (1399-1468), que permitiu a multiplicação em flecha do número de leitores e estimulou a aprendizagem da leitura. O saber deixou de ser monopólio dos latinistas, e o livro deixou de ser um bem raro, só acessível aos muito privilegiados. A Bíblia, de 641 folhas de 42 linhas com 32 letras, concluída em 1456, foi a primeira obra impressa que chegou aos nossos dias. Já nos primeiros decénios do século XVI havia Bíblias nas línguas nativas. No nosso país e na década de 30, um tal Mem Bugalho foi denunciado à Inquisição por ser possuidor de uma Bíblia impressa em... português. Como se verá, Bíblias nas línguas nacionais e muito mais acessíveis representavam um sério inconveniente para os mandantes da Fé. Alguma razão teve Paulo VI para as proibir. Vale a pena, para melhor compreender o desenrolar dos acontecimentos, dar uma panorâmica do movimento de ideias e dos principais factos históricos directamente relacionados com a conflitualidade religiosa no século XVI.
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OS BIBLICISTAS Desde os primórdios do cristianismo que sempre houve quem se debruçasse sobre as Sagradas Escrituras em particular nos centros de cultura orientais. Na Europa, retirando as comunidades judaicas que possuíam o Antigo Testamento em hebreu, não havia praticamente qualquer registo escrito. Foi S. Jerónimo, natural da Dalmácia, e que viveu grande parte da sua vida no Oriente onde aprendeu o caldeu, o hebraico e o grego, quem primeiro traduziu a Bíblia do hebreu para o latim, a Vulgata, no início do século V. Ora a Bíblia, escrita à mão e em latim, era pouco conhecida do clero e muito menos dos leigos, até ao advento da imprensa. Os poucos exemplares existentes apodreciam nas bibliotecas de mosteiros e abadias e só raros curiosos, conhecedores daquela língua morta, a consultavam. Não admira que grande parte da teorização teológica e doutrinária, assim como as práticas religiosas e litúrgicas, fosse sendo introduzida ao longo do tempo nos cultos cristãos, cada vez mais distanciados do cristianismo original. Com a divulgação da Bíblia Cristã, muitos devotos, designadamente sacerdotes e suas comunidades, ao modelarem a sua vida em consonância com os ensinamentos bíblicos, encontraram a satisfação das sua necessidades religiosas fora da Igreja. Muitos acabaram por ser considerados hereges. Entre os estudiosos que maior influência viriam a ter sobre os teorizadores do protestantismo destacamos os já referidos Joaquim de Flora, Guilherme de Occam e João Huss. A estes acrescentamos os holandeses Gerhard Groote (1340-1384) e o seu discípulo Tomás de Kempis, que chefiaram comunidades em que os sacramentos se extinguiram e a vida religiosa passou a basear-se na leitura das Sagradas Escrituras. A esta procura da verdade contida nos textos bíblicos, e de deles se retirarem os fundamentos da religiosidade e da conduta humana, deu-se o nome de biblicismo ou evangelismo. Mais do que um movimento, escola ou doutrina, representava apenas a natural curiosidade em conhecer o que até aí estava oculto ou era mistificado. Com o advento da imprensa, na viragem do século XV para o XVI, o biblicismo atingiu o seu máximo desenvolvimento. Mas o que não deixa de ser ironicamente dramático é a constatação de que foi exactamente o generalizado conhecimento do conteúdo da Bíblia que, ao gerar as mais diversas e apaixonadas interpretações, desencadeou os mais rancorosos conflitos entre crentes. À volta deste livrinho, a Europa iria conhecer dois séculos de guerras, de miséria, de fome, de perseguições religiosas, de execução de inocentes. Dediquemos algumas linhas ao mais famoso dos livros.
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CAPÍTULO XXIII
A BÍBLIA A Bíblia dos judeus compõe-se de três partes. A primeira, a Tora, relata como Deus criou do nada o mundo e o homem, seguindo-se a história do povo hebraico até à morte de Moisés. A segunda, Profetas, inclui textos de autores diversos que continuam a narrativa do povo eleito. O primeiro narrador é Josué, sucessor de Moisés, o último, Malaquias, que anuncia a vinda do Messias. A terceira parte da Bíblia, Hagiógrafos, reúne diversos tipos de textos, sendo alguns narrativas mais completas de episódios, já anteriormente descritos, sobre David, Salomão, o retorno do cativeiro na Babilónia, sendo outros textos constituídos por salmos, cânticos e fábulas diversas, como a longa história de Job, com que termina. Os primitivos cristãos, judeus que acreditavam ser Jesus o anunciado Messias, mantiveram a Bíblia como o seu livro sagrado. Era agora necessário completá-lo com os ensinamentos do Mestre e a descrição da sua vida repleta de milagres. Mas só uns 100 anos depois apareceram os primeiros escritos, provavelmente transmitidos pela tradição oral, os inúmeros Evangelhos (boa nova em grego). Só quatro Evangelhos são reconhecidos pela Igreja, o de Mateus, o de Marcos, o de Lucas e o de João, cujas narrativas em grande parte coincidem e se completam, mau grado as imprecisões de datas (Herodes, por exemplo, já tinha morrido quando Jesus nasceu), e de locais onde se desenrolaram vários factos (Lucas diz que Maria e José viviam na Nazaré antes de Jesus nascer, o que é omitido por Mateus, para quem o casal foi para Nazaré no regresso do Egipto por temer pela sua segurança). A estes textos foram adicionados os Actos dos Apóstolos, as Epístolas e o Apocalipse. Os Actos dos Apóstolos narram o baptismo dos apóstolos pelo Espírito Santo, a vida de Pedro e Paulo depois da morte de Jesus, a sua pregação, os milagres que fizeram, as primeiras conversões e como se fundaram as primitivas comunidades cristãs. As Epístolas são cartas ou mensagens com diversos destinatários, como é o caso das de S. Paulo e as duas últimas de S. João, ou exortações de carácter universal, como as restantes. São catorze de S. Paulo, três de S. João, duas de S. Pedro, uma de S. Tiago e uma de S. Judas. Ao Apocalipse (revelação em grego), atribuído ao apóstolo João Evangelista, pela importância que teve na religiosidade dos povos ocidentais nos dois últimos milénios, dedicaremos de seguida algumas linhas. As Sagradas Escrituras incluem portanto o Antigo Testamento, o Novo Testamento, os Actos dos Apóstolos as Epístolas e o Apocalipse, conjunto condensado num único livro, a Bíblia Cristã que, com alguns matizes, é
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adoptada por todos os credos que se reclamam de cristãos. Estes matizes têm, contudo, dado lugar a discórdias entre as várias confissões, havendo parcelas dos textos que umas aceitam, outras, não, partes que umas valorizam mais que outras, divergências que não merecem reparo de maior. Exceptua-se o Apocalipse, cujas interpretações têm originado divergências de muito maior monta, como veremos. Muitas outras narrativas sobre a vida de Jesus chegaram ao nosso tempo, mas não são reconhecidas pelas confissões cristãs. Só nos últimos decénios é que estão a ser estudadas pelos historiadores. Entre estas citamos os Evangelhos de Pedro, Tomé, Tiago, Nicodemo, Filipe, Bartolomeu, Maria Madalena e Judas. Podemos agora imaginar a perplexidade e a desilusão daqueles que, movidos pela mais sã curiosidade, ou com a mais sincera devoção mística, se debruçaram sobre estes textos revelados por Deus, os leram de ponta a ponta, e nada deles retiraram que minimamente reflectisse a cruel realidade da igreja. Onde é que nas Escrituras se fala num representante de Deus na Terra, infalível, rodeado das maiores honrarias e riquezas? Onde está a humildade dos apóstolos, o amor ao próximo, o perdão, a igualdade de todos perante Deus? Onde está a monogamia e o celibato dos sacerdotes? Como deve ter sido apaixonante a leitura do Sermão da Montanha, «Bem-aventurados vós, os pobres, porque vosso é o reino de Deus», «Ao que te ferir numa face, oferece-lhe a outra e ao que te houver tirado a capa, nem a túnica recuses», ou as belas parábolas do bom samaritano «todos passavam ao lado de um moribundo, até que um não judeu, um samaritano, lhe acudiu» ou do filho pródigo, «o teu irmão estava morto e reviveu, tinha-se perdido e achou-se», ou do mancebo rico «É mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no reino dos Céus» ou a questão do tributo «a César o que é de César, a Deus o que é de Deus». Como deve ter sido grande a vontade de expulsar do Templo os novos vendilhões... Não menos intrigante terá sido a modéstia com que as Escrituras aludem à mãe de Jesus. Em tempos em que o culto mariano atingiu o seu máximo expoente, onde os grandes templos, como a Notre Dame são dedicados a Maria (entre nós os Mosteiros de Santa Maria da Vitória, a Batalha e Santa Maria de Belém, os Jerónimos), por que razão as Sagradas Escrituras dão tão pouca relevo a esta mulher? Os Evangelhos de S. Mateus e de S. Lucas descrevem a anunciação, o nascimento e a infância de Jesus, onde Maria é naturalmente citada sem qualquer referência especial, excepto a anunciação e a sua condição de grávida virgem. Depois, também no Evangelho de S. Marcos, apenas encon-
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tramos mais uma alusão à mãe de Jesus e nestes termos: «E foram ter com ele sua mãe e seus irmãos, e não podiam aproximar-se dele, por causa da multidão. E foi-lhe dito: Estão lá fora a tua mãe e teus irmãos, que querem ver-te. Mas, respondendo, ele disse-lhes: Minha mãe e meus irmãos são aqueles que ouvem a palavra de Deus e a executam.» E nada mais se diz sobre Maria, que não é sequer citada no martírio final e na ressurreição. No Evangelho de S. João não é feita qualquer referência nem à infância de Jesus nem ao episódio anteriormente descrito, o repúdio de Jesus pela mãe. No entanto, e ao contrário dos outros três, na descrição da crucificação lê-se o seguinte: «E junto à cruz de Jesus estava sua mãe e a irmã de sua mãe, Maria Cléofis, e Maria Madalena. Ora Jesus, vendo ali a sua mãe, e que o discípulo a quem amava estava presente, disse à sua mãe: Mulher, eis aí o teu filho!» Nos Actos dos Apóstolos, nas Epístolas e no Apocalipse não há qualquer alusão a Maria. O APOCALIPSE DE S. JOÃO Este último componente da Biblia Cristã relata-nos como vai ser o fim do mundo. Trata-se portanto de um texto profético, de uma patética imaginação delirante, custando a crer como ainda nos dias de hoje continua a ter credibilidade. João Evangelista, pescador, foi dos primeiros que seguiram Jesus, que o escolheu como apóstolo, tornando-se com Pedro e Tiago dos mais íntimos. Assistiu à crucificação e foi o primeiro a reconhecer Jesus depois de este ter ressuscitado. Depois da morte de Jesus teve uma vida errante como pregador, acabando por se fixar em Éfeso. Já muito idoso, deslocou-se uma vez mais a Roma, tendo sido preso e exilado para a minúscula ilha de Patmos, no mar Egeu, onde redigiu em grego o Apocalipse por volta do ano 95. Mais tarde, regressou a Éfeso, onde, segundo a tradição cristã, terá escrito o seu Evangelho (hoje sabe-se que houve dois Joões, que há incongruências nas datas, etc., mas isso em nada retira a importância que tiveram e ainda têm estes dois escritos). Encontrava-se João na ilha de Patmos quando teve uma visão. Apareceu-lhe Jesus, de cabelos brancos, olhos como chamas de fogo, uma espada a sair-lhe da boca, sete estrelas na mão direita e rodeado de sete castiçais de ouro. Ordenou a João que escrevesse sete cartas por ele ditadas dirigidas às sete igrejas da Ásia. Depois, Jesus quis mostrar-lhe as «coisas que iriam acontecer» e convidou-o a entrar por uma porta aberta no Céu, deparando com um trono onde estava Deus rodeado de outros 24 tronos, cada um com um ancião de
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coroa de oiro na cabeça, e quatro animais. Um era semelhante a um leão, outro a um bezerro, outro tinha rosto humano, e o quarto parecia uma águia. Todos estavam crivados de olhos, tinham três pares de asas e vociferavam continuamente: «Santo é o Senhor Deus, Todo-Poderoso». Deus Pai tinha um livro na mão direita selado com sete selos, surgindo então um cordeiro com sete chifres e sete olhos que lhe arrebatou o livro e começou a abrir os selos, enquanto os anciãos e os animais se prostraram. Por cada selo aberto aconteceu uma desgraça. Os quatro primeiros deram lugar ao aparecimento dos quatro cavaleiros do Apocalipse. Aberto o quinto surgiram as almas dos bons mortos a exigirem vingança sobre os vivos, sendo-lhes aconselhado que repousassem um pouco mais até os vivos morrerem. Ao sexto selo houve um grande sismo, o Sol apagou-se e a Lua tornou-se como sangue, as estrelas caíram à Terra, montes e ilhas foram removidos dos seus lugares. Finalmente, a abertura do sétimo selo deu lugar à desgraça completa. Por entre trovoadas, saraivadas, terramotos e fogo misturado com sangue, apareceram sete anjos tocadores de trombetas e, sucessivamente, por cada anjo que tocava, a terça parte da Terra ficou queimada, a terça parte do mar transformou-se em sangue, a terça parte dos rios tornaram-se absinto, e a terça parte do Sol, da Lua e das estrelas escureceu. Ao toque de trombeta do quinto anjo abriu-se o poço do abismo, do qual saiu tanto fumo que ocultou o Sol. E com o fumo emergiram gafanhotos com rosto humano, cabelos de mulher, dentes de leão e agulhões de escorpião na cauda, destinados a atormentar os ímpios durante cinco meses com suas ferroadas. Ao som do sexto anjo trombetista foram libertos quatro anjos que estavam presos junto ao rio Eufrates e com eles duzentos milhões de cavaleiros que mataram a terça parte da Humanidade. Os cavalos tinham cabeça de leão, caudas como serpentes e das suas bocas saía fogo, fumo e enxofre. Finalmente, tocou a sétima trombeta, surgindo um gigantesco dragão vermelho com sete cabeças e dez chifres que se envolveu em luta com o arcanjo Miguel, acabando este por derrubá-lo. E a delirante narrativa prossegue com os mais fantásticos pormenores. Uma grávida prestes a parir tinha o dragão à espera para comer o recém-nascido, mas dão asas à mulher, que foge para o deserto, enquanto a criança é arrebatada por Deus. Entram em cena mais duas bestas chifrudas a blasfemar contra Deus, uma das quais tem o enigmático número 666. Depois, outros sete anjos derramaram sobre a Terra as seguintes sete pragas: chagas malignas, mar a tornar-se sangue, rios com a mesma metamorfose, Sol abrasador, destruição do reino da Besta, Eufrates a ficar seco e desmoronamento das cidades.
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Vem a seguir a história de uma prostituta sentada numa besta de sete cabeças e dez chifres, a queda da Babilónia, a vitória de Cristo sobre a Besta, Satanás amarrado por mil anos, o Juízo Final e o advento da nova Jerusalém, onde viverão «só os que estão inscritos no Livro do Cordeiro», pois «Ficarão de fora os cães, os feiticeiros, os que se prostituem, os homicidas e os mentirosos». E termina a narrativa com uma séria ameaça divina «a quem tirar qualquer palavra do livro desta profecia ou a alguém lhe acrescente alguma coisa». Nenhum outro texto marcou tão profundamente a religiosidade da humanidade cristã como esta terrífica antevisão do fim do mundo. A sua prosa confusa e simbólica inspirou não só artistas plásticos, poetas e escritores como originou e origina ainda as mais diversas interpretações e especulações. Apenas dois exemplos ilustram o que acabámos de afirmar. A besta com o número 666 foi identificada, além de muitos outros, com os seguintes anticristos: Nero, Calígula, Frederico II, Lutero, Calvino, Napoleão, Hitler, Bill Gates (o dono da Microsoft), além dos papas já em tempos de Reforma. Ainda hoje os papas são identificados com o número do Anticristo pelos Adventistas do 7º Dia, e as Testemunhas de Jeová até há pouco tempo erigiam a ordem política mundial e a ONU como o verdadeiro Anticristo, a besta 666 da patética profecia! O segundo exemplo é o de Newton (1642-1727), o genial descobridor das leis da atracção universal, que, obcecado pela profecia, dedicou 55 anos da sua vida a tentar compreendê-la à luz dos seus conhecimentos de matemática e de física, chegando à conclusão de que o Apocalipse ocorrerá no ano de 2066. Claro que a Igreja, ao incorporar esta profecia nas suas Sagradas Escrituras, é a grande responsável pela sua legitimidade e credibilidade e pela sua perpetuação através dos séculos. Quantos templos cristãos exibem representações do Juízo Final nas suas paredes? Não é só a Capela Sistina no Vaticano (Miguel Ângelo), nem o magnífico baixo-relevo no túmulo de Inês de Castro em Alcobaça. E refira-se de passagem que nos nossos tempos a profecia e a iminência do fim do mundo estiveram na base de vários suicídios colectivos, como aconteceu na Suíça (Ordem do Templo, com 53 mortos) e nos EUA (David Korach em Waco no Texas, com 73 mortos) e no ataque de gás venenoso no metropolitano de Tóquio. OS HUMANISTAS O humanismo renascentista afasta-se do biblicismo, porque a curiosidade não se esgota nas Sagradas Escrituras, antes se alarga a todo o conhecimento produzido na Antiguidade Clássica, a literatura, a arte e a filosofia.
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Os humanistas redescobrem, assim, a enorme riqueza das culturas antigas, que são comparadas à medíocre e doentia herança da cultura medieval, escolástico-eclesiástica. A cultura clássica surge como uma verdadeira revelação, mas desta vez predominantemente burguesa, laica e civil. E, neste reencontro com tudo o que de melhor foi produzido pela inteligência humana do mundo ocidental, é possível agora contar com ferramentas desconhecidas nas civilizações antigas: em primeiro lugar, a imprensa, mas também os óculos, o relógio, a bússola, o papel. Há igualmente acesso aos avanços técnicos e científicos de árabes e bizantinos, muitos destes a viver na Europa Ocidental após a queda de Constantinopla, e conhecimento das mais longínquas paragens do planeta, que os navegadores ibéricos vão desvendando. Surge uma nova visão do mundo, pois os humanistas, além da cultura clássica, interessam-se por todas as áreas do saber, que são desbravadas por muitos outros não humanistas, que não sabem nem grego nem latim, nem se preocupam muito com as velhas Escrituras. Mas que investigam, aprendem, inventam, viajam, contactam com outros povos e outras realidades. Beneficiam também de o espaço geográfico europeu se ir alargando a uma maior tolerância, onde a acção castradora da Igreja vai perdendo força. Vimos como no século XIII surgiram os primeiros sinais de contestação e inovação, e como Frederico II e Rogério Bacon terão sido os seus mais notáveis impulsionadores. Mas as sementes que lançaram germinaram muito lentamente nos tempos que se seguiram, ou foram até mesmo esquecidas ou amordaçadas, e só três séculos depois, a Europa acorda, mas desta vez a sério. É o Renascimento de que os humanistas cristãos e livres-pensadores foram os principais autores. Aprofundaram o conhecimento do grego e do latim, cujas gramáticas e semânticas desenvolveram, tornando-se falantes eloquentes destas línguas, com a consequência prática de poderem comunicar entre si, numa época em que as diversidades linguísticas eram muito maiores do que actualmente. Têm, assim, acesso ao multifacetado pensamento filosófico grego até então limitado a Aristóteles e Platão. Estudam os pitagóricos, os atomistas, os sofistas, os socráticos, os retóricos latinos, como Cícero e Séneca, e os poetas Virgílio e Horácio. Fascinam-se com a mitologia clássica desses povos que os inspiram nas suas obras literárias e plásticas, de que apenas damos como exemplo Os Lusíadas de Camões e o Nascimento de Vénus de Botticelli. Não pondo em causa a criação divina do universo e do homem nem a veracidade das Sagradas Escrituras, os humanistas exaltam os valores inerentes ao ser humano, a liberdade de pensar e de tudo poder ser questionado e criticado, sem submissão à religião, aos detentores do poder ou aos costumes tradicionais.
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Os biblicistas e os humanistas, com particular destaque respectivamente para Occam e Erasmo, foram os mais eminentes precursores do movimento reformador da Igreja que assolou a Europa no século XVI, e que acabou por conduzir à fragmentação do cristianismo ocidental. Duas palavras sobre Erasmo. ERASMO DE ROTERDÃO Erasmo era filho de um padre e nasceu por volta de 1467 em Roterdão. Os pais procuraram dar-lhe a melhor educação, mas foram vítimas da peste-negra (1483), e o jovem foi acolhido em vários mosteiros, onde cedo revelou as suas invulgares aptidões. Aos 25 anos foi ordenado padre, mas nunca chegou a exercer o sacerdócio. Estudou em Paris e em Londres, onde conheceu os mais ilustres pensadores cristãos do seu tempo, designadamente Tomás More, que o encorajaram a aprofundar os seus estudos das Sagradas Escrituras. Publicou uma série de obras em que critica sarcasticamente a vida do seu tempo, e em particular a do clero, e vários livros com exercícios de gramática latina, que cedo o tornaram famoso. Aprendeu grego e hebraico e editou em 1515 o Novo Testamento Anotado, em grego, com uma exaustiva introdução inspirada no Sermão da Montanha, onde é abordada a reforma da Igreja e da teologia, obra que foi traduzida para as diversas línguas nativas com tiragens nunca até então vistas. Nos anos que se seguiram irrompe o movimento de Martinho Lutero. Erasmo acolhe com simpatia os primeiros escritos do reformador, onde são feitas contundentes críticas à hierarquia da Igreja, às obsoletas práticas litúrgicas e sacramentais, ao nepotismo e à prepotência do papa. Mas o que mais o entusiasma em Lutero é a valorização da liberdade, como modo de chegar a Deus pela consciência individual responsável e não pela coacção ou por indulgências. Lutero tudo fez para arregimentar o humanista à sua causa, mas Erasmo manteve sempre uma posição de distanciamento, pois considerava que a verdadeira religião cristã não estava ameaçada pelo saber nem pela devoção autêntica, mas sim pela ignorância, pelo fanatismo e pelo comportamento da hierarquia, ávida de bens materiais e muito esquecida dos verdadeiros princípios cristãos. O catolicismo não precisava de alternativa, mas sim de reforma interna. Acreditava, portanto, na renovação da Igreja e não na sua substituição por outra, tendo feito inúmeros apelos ao papa e aos eclesiásticos, chamando-lhes a atenção para a urgência na purificação da doutrina e na moralização do corpo sacerdotal, apelos que não tiveram qualquer eco. Opôs-se sempre ao radicalismo no movimento reformador e às perseguições de que eram alvo os seus adeptos, dedicando grande parte da sua
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actividade política, literária e de simples cidadão à tentativa de conciliar as duas partes pelo diálogo, pela apreciação imparcial dos conflitos e pela procura da mais sensata resolução. Com as suas propostas de reforma, com a sua posição equidistante e conciliadora, com a sua imensa popularidade e influência sobre vários soberanos, que o ouviam e lhe pediam conselho, Erasmo desempenhou um importante papel na manutenção da paz entre as duas facções religiosas. Só a partir dos anos 60, estas se engolfinharam em intermináveis e sangrentas contendas. Com a sua personalidade independente e por vezes esquiva, Erasmo e os seus muitos seguidores e admiradores acabaram por beneficiar mais a causa protestante. É dos seus delatores a seguinte frase: «Erasmo pôs o ovo e Lutero chocou-o». Já no fim da vida fundou a chamada teologia da meditação, que teve muitos adeptos entre católicos e protestantes, mas que, na verdade, o aproximava mais do campo reformador do que do tradicional. E o mesmo se pode afirmar quando aponta a pregação como o serviço mais importante dos padres, em detrimento da consagração dos sacramentos. Em 1536 morreu na Suíça, em Basileia, o mais ilustre dos humanistas cristãos renascentistas, rodeado de académicos protestantes, amigos de longa data. Entre estes encontrava-se um dos seus discípulos dilectos, Damião de Góis (1502-1574), que viria mais tarde a ser perseguido e morto pela Inquisição. Deixou uma vastíssima obra literária traduzida em todas as línguas e reeditada vezes sem conta até à actualidade. O Elogio da Loucura, que dedicou a Tomás More, é a mais conhecida. Após a sua morte, toda a sua obra literária foi incluída no índex dos livros proibidos, instituído pelo papa Paulo III. O ESFORÇADO CARLOS V O grande senhor da Europa era o catolicíssimo Carlos V, que herdara o Sacro Império Romano-Germânico, que incluía a Áustria, a Espanha com as suas possessões americanas, os Países Baixos e os reinos da Itália do Norte, de Nápoles e das Duas Sicílias. Mas os seus parceiros eram igualmente poderosos, os não menos catolicíssimos Francisco I, rei da França, Henrique VIII, da Inglaterra, e o muçulmano Solimão II, o Magnífico, sultão dos turcos otomanos. Henrique tinha sido rei em 1509 com 18 anos e reinou até 1547; Francisco subiu ao trono em 1515, com 21, e reinou até 1557; Carlos foi rei de Espanha em 1516 com 16 anos e imperador do Sacro Império três anos depois, tendo abdicado em 1556; Solimão herdou o sultanato em 1520, com 24 anos, e sultanou até 1566. Eram quatro jovens truculentos e ávidos de poder, em constantes e sangrentas contendas, procurando aumentar ou defender os seus domínios. E
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se a estes acrescentarmos os papas guerreiros, uma multidão de outros reis menores, príncipes, duques e piratas, podemos imaginar o que terá sido a Europa nesta primeira metade do século XVI – guerras constantes com curtas e precárias tréguas. Mas as décadas que se seguiram à morte quase simultânea dos quatro principais protagonistas não foram menos conflituosas, porque os descendentes não eram menos belicosos que os pais, Filipe II, Henrique II (França), Selim II (Império Otomano), Maria I e Isabel I (Inglaterra), a que viria juntar-se Ivã, o Terrivel, nascido em 1530 e czar aos 7 anos. E foi no meio desta confusão, numa Europa enxangue e faminta, que se desenrolou a Reforma protestante. Vejamos, resumidamente, o historial de Carlos V, sem dúvida o mais proeminente suserano no seu tempo e também o mais acérrimo e coerente defensor dos valores tradicionais da Igreja Católica. Foi coroado imperador em Aix-la-Chapelle em 1520, apesar da tenaz oposição do papa Leão X e do arqui-inimigo Francisco I, também pretendente, como aliás também o era Henrique VIII, entre muitos outros. Recordemos que o imperador do Sacro Império era eleito pelos príncipes eleitores. Teve o apoio dos príncipes alemães e de Lutero. Quanto à política do papado, era a de sempre – anexar ao Estado Pontifício o que lhe faltava da Península Itálica – e um imperador tão poderoso punha em causa tão velha aspiração. Já Lutero saudara o jovem imperador com palavras calorosas: «Deus deu-nos um chefe de sangue jovem e nobre, despertando corações para grandes e boas esperanças». Mas enganou-se completamente. Carlos estava disposto a erradicar do Império a heresia protestante e a exilar Lutero. Três semanas depois da coroação, Carlos assistia em Lovaina e em Colónia à queima dos escritos de Lutero, que entretanto fora excomungado e exilado. Mas de Lutero trataremos mais adiante. Carlos V cedo reconheceu que no estado em que se encontrava a Igreja não seria possível conter a avassaladora onda reformadora, considerando urgente a sua reforma interna, de modo a restituir-lhe prestígio e autoridade. Para tanto, era indispensável convocar um concílio ecuménico, mas os seus esforços junto de vários papas só muito tarde resultaram. Carlos V tinha como aspiração reunificar a cristandade e ser ele o grande protector dos valores eternos. Nas guerras, Carlos V e Francisco I estiveram sempre em lados opostos. A primeira terminou com a derrota francesa na Batalha de Pavia (1525) e a paz de Madrid. Francisco foi ferido e aprisionado. Da segunda, já tratámos. Clemente VII aliou-se ao rei de França, Roma foi saqueada e massacrada, e o papa, preso (1527), episódio que debilitou
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ainda mais o já tão deteriorado prestígio papal. Foi o Sacco di Roma e serviu às mil maravilhas à propaganda dos reformadores, que não hesitaram em proclamar o desastre como um desígnio divino, o merecido castigo dos devassos anticristos papistas. Só dois anos depois, Carlos se reconciliou com Clemente e nas condições de este o recoroar, o que veio a acontecer em 1530, e de convocar o concílio, o que não aconteceu. É que Clemente receava que, no concílio, os representantes alemães, nórdicos, boémios, ingleses e por aí fora, contaminados pelo luteranismo, o dominassem e impusessem as velhas teorias conciliaristas, podendo mesmo o papa ser deposto. Por morte de Clemente, Carlos V impôs a eleição do já citado Adriano, o seu homem forte das reformas, mas que em tão curto pontificado nada pôde fazer. Paulo III, pressionado por Carlos, convocou um concílio para Mântua, mas desta vez foi o rei francês quem não concordou, não fosse o concílio reforçar o poder de Carlos. Francisco I aliou-se aos príncipes alemães protestantes e aos turcos de Solimão, que já se tinham apoderado da Hungria, dos Balcãs e da Polónia. Solimão, com um exército de 120.000 homens e 800 navios no Danúbio, invadiu a Áustria e cercou Viena (1529), que por um triz não sucumbiu. Repelidos os turcos, a guerra entre cristãos reacendeu-se. Em 1535, o exército de Carlos V devastou o Sul de França, acabando por ser dizimado pela fome, mas as hostilidades continuaram até ao Tratado de Nice, três anos depois. Os dois monarcas concluíram uma trégua de 10 anos, comprometendo-se a unir esforços numa cruzada destinada a expulsar os infiéis da Europa. Mas os príncipes alemães haviam formado a Liga de Smalkalde contra Carlos V, que se viu obrigado a desistir da cruzada. E toda a Alemanha foi palco de sangrentas lutas entre católicos e protestantes, que iriam prolongar-se por décadas. Assim, Paulo III teve de convocar novo concílio, agora para Trento, a norte de Verona, (1542), mas ainda não foi desta. O impetuoso rei francês declarou uma vez mais guerra a Carlos V, sendo novamente derrotado. Pela Paz de Crépy, a nordeste de Paris, (1544), os dois monarcas fizeram concessões mútuas, mas Francisco foi obrigado a ceder em toda a linha no que respeita ao concílio, que viria finalmente a ter início em finais de 1545. Foi o Concílio Ecuménico de Trento, que se prolongou até 1563 e onde se esboçou a Contra-Reforma. Seguiu-se um dos períodos mais tenebrosos da Santa Madre Igreja. Mas nos dezoito anos que durou o concílio a cristandade não deixou de pelejar, pois, quando Francisco morreu, em 1547, e Carlos respirou de alí-
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vio, logo o herdeiro francês, Henrique II, renovou a aliança com os protestantes alemães e depois com os anglicanos ingleses, e a guerra prosseguiu até 1552, só terminando pela Paz de Vausselle. Entretanto, a guerra na Alemanha já atingia enormes proporções. O exército alemão de Carlos V infligiu uma demolidora derrota ao exército protestante na Batalha de Mühlberg, a oeste de Berlim, (1547), mas que não foi suficiente para estes deporem as armas. A paz só foi possível pelo Tratado de Passau, na actual fronteira entre a Alemanha e a Áustria, nas margens do Danúbio, (1552), em que Carlos cedeu às pretensões dos príncipes alemães, seus súbditos, ao autorizar o culto luterano nos principados de maioria protestante. Depois, o inverosímil acontece. Em pleno concílio, Sua Santidade Paulo IV (Paulo III, Júlio III e Marcelo II já estavam a prestar contas ao Criador) declarou guerra ao grande protector da cristandade, Carlos V, e a seu filho Filipe, rei de Nápoles, tragédia a que também já aludimos (1556). Carlos, já velhote e desiludido, resolveu abandonar a vida política activa e recolheu-se ao Mosteiro de Yuste na Extremadura espanhola, não sem que antes tivesse exigido ao papa uma bula de dispensa do jejum nos dias em que recebia os sacramentos.
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A REFORMA
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genericamente chamado por protestantismo, hoje repartido por dezenas de cultos ou igrejas autónomas, constituiu a mais recente e duradoira grande cisão da cristandade. Uma vez mais, a velha Europa foi palco de lutas fratricidas entre adoradores do mesmo Deus, fenómeno que como referimos é característico dos monoteísmos. Depois dos cátaros, dos templários, dos conciliaristas e de todos aqueles que de uma maneira ou doutra levantavam a menor dúvida sobre as verdades dogmáticas, chegou a vez dos reformadores, os protestantes que, perante a degradante imagem papal e dos seus súbditos, negavam que Cristo tivesse instituído uma autoridade suprema e infalível, e muito menos que tal autoridade fosse confiada a tais personagens. Há muito que era sentida dentro da própria Igreja a necessidade de profundas reformas. Vimos como os cistercienses, os conciliaristas e tantos outros que acabaram condenados e queimados tinham feito este apelo veemente. Agora não eram só o sensato Erasmo e o ansioso Carlos V a fazê-lo, os apelos provinham dos mais diversos quadrantes. Seria enfadonho relatar aqui a multidão de propostas sinceras, talvez algumas ingénuas, que foram apresentadas aos papas com intuitos reformistas e moralizadores, em particular depois dos conturbados concílios de Constança e Basileia e como, em plena explosão reformadora, foram ignorados.
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Quantos daqueles homens bem-intencionados tiveram o destino de Huss? O movimento da Reforma protestante surge, assim, como expressão dessa necessidade de mudança, uma vez que a Igreja não encontrou nem podia encontrar capacidades internas para a concretizar. Sem entrarmos nas inúteis querelas de natureza teológica, tentemos sintetizar as principais proposições que foram comuns às várias famílias reformistas ou protestantes. Em primeiro lugar, negam a autoridade do papa e da hierarquia da Igreja, advogam a relação directa dos fiéis com Deus e a livre interpretação das Sagradas Escrituras, de acordo com os ditames da consciência. Concebem o crente como um homem liberto de toda a sujeição e apenas responsável perante Deus. Nesta perspectiva, os reformadores são continuadores do pensamento humanista e dos biblicistas mais independentes. Em segundo lugar, os reformadores criticam as riquezas da Igreja e opõem-se à sua intervenção nos negócios e interesses alheios aos seus fins. Reprovam a intromissão do papado nas questões de política internacional e, mais ainda, no recurso à guerra. Recordemos que a Igreja possuía poder temporal, o Estado Pontifício, extensas propriedades e arrecadava avultados tributos dos soberanos, dos doadores e dos fiéis pagadores de indulgências e de dízimos. Em terceiro lugar, defendem o poder do Estado, que consideram de origem divina, embora advoguem a separação entre o Estado e a religião. Na prática, diversos países adoptaram cultos protestantes como Igreja do Estado, mas a liberdade de outros cultos foi sempre consentida. Mas, ao defenderem a ampla liberdade de consciência, as múltiplas confissões cristãs reformadas acabaram por se dogmatizar nas suas novas crenças, tornando-se intolerantes e por vezes implacáveis para com as outras, que consideravam heréticas. OS PRESSUPOSTOS DA REFORMA São os próprios historiadores católicos que apontam as causas que levaram ao generalizado movimento contestatário contra o papado e a hierarquia sacerdotal, mas também contra princípios básicos da teologia romana, movimento antigo, como se viu, mas que, no início do século XVI, já não foi mais possível conter nem com excomunhões nem com fogueiras. Vale a pena lembrar estas causas tal como aqueles historiadores as apresentam – os abusos na vida religiosa a que denominam pressupostos. São as práticas idólatras com adoração de santos e relíquias; a doentia obsessão pelos milagres, com proliferação de charlatães milagreiros por todo o lado; a desenfreada caça às bruxas; o domínio das populações através do terror com a constante ameaça do Inferno como forma de obter os
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mais diversos favores e pesados impostos; a simonia e o nepotismo, de que já falámos, que não eram exclusivos de Roma mas também de bispos e do restante clero; o fausto e a opulência dos príncipes da Igreja, contrastando com a miséria generalizada, e, finalmente, a vida libertina de muitos eclesiásticos, monges e freiras. Este último pressuposto, por particularmente chocante, merece algumas palavras. É que, para além do amancebismo generalizado, uma outra realidade é bem mais comprometedora. Muitos conventos foram-se transformando em lupanares frequentados por sacerdotes, fidalgos, reis e clientes endinheirados. Têm sido descobertos nos conventos cemitérios com restos mortais de fetos e de recém-nascidos. Pois esta actividade comercial atingiu o seu apogeu no período histórico de que nos ocupamos, embora se tenha mantido nos séculos seguintes. A título de exemplo, lembremos o bem conhecido caso do nosso rei D. João V com a madre Paula do Convento dos Olivais, lupanar de cinco estrelas, muito frequentado pelo fogoso monarca. Depois de ter comido tudo o que era irmã da caridade, João apaixonou-se por Paula, 30 anos mais nova. Mas estando esta dada ao conde de Vimioso, foi com a seguinte frase que Sua Majestade a arrebatou ao fidalgo: «Deixa a Paula, que eu te darei duas freiras à tua escolha». Paula, logo promovida a madre, teve grande influência nas decisões reais. Não havia nomeação ou favor real que não carecesse de cunha à Pompidour lusitana. Entre os incontáveis filhos naturais do rei, os meninos de Palhavã, destacou-se D. José, filho da freira, tendo esta exigido que a criança tivesse o mesmo nome do herdeiro, o futuro D. José; e que veio a ser o inquisidor-geral do Reino por nomeação de D. Maria I. Este exemplo dá-nos uma boa imagem do estado de dissolução de costumes que envolvia a Santa Madre Igreja, com pressupostos até dizer chega. LUTERO Martinho Lutero foi a principal figura da reforma protestante. Nasceu em Eisleben, perto de Berlim, em 1483. Aos 17 anos frequentou a Universidade de Erfurt, a sudoeste de Leipzig, e a Escola de Direito da mesma cidade. Um dia, no meio da tempestade, um raio caiu perto dele e, aterrado, terá dito: «Valha-me Santa Ana e eu irei para monge». E assim fez. Ingressou na Ordem dos Agostinianos e no Mosteiro de Erfurt, onde se dedicou intensamente aos estudos bíblicos. Ocupava o tempo que lhe restava em meditações, autoflagelação, peregrinações, orações intermináveis e obsessiva confissão dos pecados. Quanto mais perto de Deus, mais pecador se julgava. Em 1507 foi ordenado sacerdote e em 1512 obteve o título de doutor em teologia, após estudo aturado das Escrituras e do cristianismo primitivo,
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para o que aprendera o grego e o hebraico. Começou então a verificar que a igreja se afastava da verdade contida nas escrituras antigas, em primeiro lugar no que tocava à justificação. Justificação significa ser considerado justo por Deus, e ter assim acesso à salvação, um lugar no Céu para a alma depois da morte. São duas as condições indispensáveis ao justo ou justificado, a graça e a fé. A graça é o dom com que o Criador bafeja o pecador, e a fé, a crença inabalável deste no primeiro. É na interpretação destes dois conceitos que Lutero vai congeminando uma doutrina teológica que se afasta da teologia católica ou tomista. Para Lutero, a graça depende unicamente da vontade de Deus, o que o terá levado, necessariamente, aos embaraçosos caminhos do determinismo. Se cada humano nasce já com a graça que Deus lhe deu, bom ou mau, onde fica o livre-arbítrio? Posteriormente, rectificou esta concepção, pois sendo Deus todo-misericordioso, através da paixão do seu Filho amado, julga o pobre pecador com compreensão, quando este sinceramente se arrepende. Quanto à fé, Lutero limita-a unicamente à aceitação das Sagradas Escrituras, tornando inúteis os sacramentos e dispensáveis os seus ministrantes, os sacerdotes. Mais tarde admitiu que o baptismo e a eucaristia poderiam manter-se, assim como a penitência a pedido do crente. Ora, para a doutrina tomista, a justificação não depende apenas da graça divina mas também das boas obras. O crente pode escolher entre o bem e o mal de acordo com a sua consciência. E os sacramentos, sinais introduzidos por Jesus, são essenciais à transmissão da graça. Por outro lado, o crente pode e deve apelar à clemência divina, recorrendo ao pagamento de indulgências, quer para a sua purificação quer para a de familiares que aguardam no purgatório a sentença final. Pode ainda solicitar a intervenção de um ente chegado a Deus, como Maria, ao que hoje se chamaria meter uma cunha (ave Maria rogai por nós, pecadores, agora e na hora da nossa morte, ámen). Quanto à fé, indispensável para o recebimento da graça, provém das Sagradas Escrituras, muito bem, mas a interpretação destas é exclusivamente pertença do santo papa. Estas questões doutrinárias nunca foram pacíficas ao longo dos tempos, mesmo entre os doutores da igreja, só ficando definitivamente clarificadas no Concílio de Trento (1545-1563) com a seguinte redacção: «A graça divina e a cooperação livre e meritória da vontade humana operam em conjunto a justificação do homem» e «A revelação divina transmitiu-se pela Sagrada Escritura, interpretada pelo magistério da igreja e pela tradição apostólica». A indefinição e alguma confusão acerca destas matérias contribuíram para a rápida aceitação da nova teologia de Lutero, a teologia da Graça, adoptada no essencial por todas as confissões cristãs que emergiram da Reforma.
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Mas passando ao lado destas inúteis controvérsias, que pouco interessam aos crentes e nada aos não crentes, relatemos sucintamente a vida do incansável monge. As posições teológicas de Lutero não foram de início levadas muito a sério, tendo o primeiro grande confronto com a hierarquia católica surgido em 1517 a propósito das indulgências. Era prática corrente, como ainda hoje o é, a venda de indulgências, sendo particularmente próspero o comércio de relíquias que enchia os cofres de arcebispos, bispos, padres e frades. O ingénuo pecador redimia assim os seus pecados pela absolvição e recuperava a graça de Deus. Mas, para tanto, tinha e tem de se sujeitar a um castigo ou a um sacrifício sentenciados pelo sacerdote. No ramo relíquias, o sacrifício era obviamente monetário. Deve-se a Lutero a seguinte frase: «O dinheiro a tinir e uma alma a subir» (em alemão também rima). E para se ter uma ideia de até que ponto chegou a degradação moral da igreja, há que referir que o próprio papa, Leão X (1513-1521), elaborou um completo preçário de indulgências, talvez para evitar excessos ou concorrência desleal. Deu-lhe o nome de «Taxa Camarae». Incluía 35 pecados passíveis de absolvição. Assim, um assassino obtinha o perdão por 15 libras, acrescidas de mais duas, se de irmão, pai, mãe ou esposa se tratasse. Mas, se o assassinado fosse bispo, a taxa elevava-se a 131 libras. A mesma quantia comprava o perdão de crimes de rapina, roubo ou fogo posto. Para os eclesiásticos, as penas eram mais severas. Para pecados carnais com freiras ou afilhadas, a taxa era de 67 libras, para pecados contra a natureza, 219. Com crianças, burras, ovelhas ou galinhas baixava para 131 libras. Já pelo desfloramento de uma virgem, a absolvição custava apenas 2 libras e oito soldos. Pois Lutero entendia que com a compra de indulgências o pecador, possuidor do necessário cabedal, ficava aliviado dos seus pecados, o que prejudicava a confissão e o arrependimento sinceros. Note-se que, nesta fase, Lutero era ainda um católico convicto. Proferiu então três sermões contra as indulgências e pouco depois escreveu as suas famosas 95 teses em que são condenados os abusos, o materialismo e o paganismo da Igreja, e onde surgem, pela primeira vez, os seus conceitos teológicos. O arcebispo Albrecht, um dos principais fornecedores de indulgências, e que tinha um compromisso bancário de 52.000 ducados que tencionava regularizar com receitas das mesmas, denunciou Lutero ao papa Leão X. O papa até achou piada, sendo-lhe atribuído o seguinte pensamento: «Lutero é um bêbado que quando ficar sóbrio repudiará os seus escritos». Mas enganou-se. As 95 teses, traduzidas para o alemão, foram amplamente copiadas, impressas e divulgadas por toda a cristandade. Foram lidas e discutidas por sacerdotes, príncipes, eruditos e populares, origi-
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nando um imparável movimento de revolta não só contra a prática das indulgências como contra a Igreja Católica e a sua hierarquia. O papa começou então a levar mais a sério o rebelde e a inconveniente teimosia das suas constantes e cada vez mais aplaudidas pregações, optando pela habitual cassete. Move contra ele um processo de heresia e chama-o a Roma. Lutero não compareceu e acabou por ser interrogado em Augsburgo, a oeste de Munique, em outubro de 1518, onde recusou retractar-se. Depois fugiu, mantendo-se sob a protecção do príncipe eleitor Frederico da Saxónia, o Sábio, continuando sempre a produzir os mais diversos textos, não só sobre as indulgências mas também sobre o poder do papa, sobre a infalibilidade dos concílios, a legitimidade dos sacramentos e por aí fora. Ao mesmo tempo apelava para a convocação de um concílio ecuménico onde pudesse apresentar as suas críticas às práticas dos eclesiásticos e defender as suas teses teológicas. Vimos como o perspicaz Carlos V cedo se apercebeu do perigo, e como, com intentos diversos, comungava com Lutero na necessidade urgente de se convocar o concílio. Lembremos que o jovem imperador tinha assistido em 12 de novembro de 1520 à queima dos textos de Lutero em Lovaina e em Colónia. Pois em 10 de dezembro do mesmo ano, em Vitemberga, a sudoeste de Berlim, Lutero queimou publicamente a bula papal da excomunhão, assim como todos os livros de direito canónico, afrontando não só o poder papal como o poder imperial. Estava mais que consumada a rotura, e a partir de então as hostilidades tornam-se frontais e irredutíveis. À medida que a popularidade de Lutero aumentava, a sua arrogância também, a ponto de negar abertamente a autoridade do papa, que classificou de Anticristo, que não fazia parte da Igreja Original, que a salvação também se obtinha na excomungada Igreja Ortodoxa, que os conventos de freiras deviam ser suprimidos. Defendia o livre casamento dos clérigos e, entre muitas outras coisas, a abolição das rendas à igreja, reclamação esta que agradou de que maneira aos príncipes alemães, fartos de se verem despojados. Admitia abertamente ser um continuador dos heresiarcas Guilherme de Occam e João Huss. Entretanto, Carlos V decidiu acabar com a aventura luterana nos seus domínios. Ignorando as calorosas saudações que o monge lhe dirigira, convocou a Dieta (assembleia de nobres e prelados) para Worms, nas margens do Reno, a sul de Francoforte, em Janeiro de 1521, a que presidiu pessoalmente, tendo concedido a Lutero um salvo-conduto e exigido a sua presença. O objectivo do monarca era a retractação do reformador, mas tal não aconteceu. Lutero chegou triunfalmente a Worms, rodeado de imensa e esfuziante multidão, e reiterou todas as suas opiniões. Carlos mandou prendê-lo, mas Lutero tinha muitos protectores na Alemanha e fugiu mais
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uma vez. No caminho foi raptado por cavaleiros embuçados que lhe deram sumiço... refugiando-o no Castelo de Vitemberga do príncipe Frederico, o Sábio, que de facto sabia fazê-las. O imperador decretou o célebre Édito de Worms, em que Lutero e os seus adeptos eram banidos do império e proibidas as suas obras. Mas as guerras com o colega francês e a aproximação dos turcos ocupavam-lhe muito tempo, obrigando-o a regressar a Espanha. Só voltou à Alemanha, nove anos depois. Claro que o Édito nunca foi concretizado e, pelo contrário, nesses nove anos o movimento da Reforma estendeu-se a toda a Alemanha e ultrapassou as suas fronteiras. Depois de um ano «escondido» no castelo, onde traduziu a Bíblia para a língua alemã, obra que iria ter uma enorme difusão, Lutero continuou a sua actividade de pregador acutilante, fazendo alastrar por toda a Alemanha uma incontrolável agitação social. Mas já não era só ele, pois inúmeros pregadores anticatólicos, alguns bem mais radicais, se multiplicavam por todo o lado. Em 1524 eclode a guerra camponesa. A história da Baixa Idade Média está cheia de revoltas camponesas contra a tirania dos senhores e dos aliados eclesiásticos: Flandres (1321), França (1358), Inglaterra (1381), Boémia (1415), mas nenhuma teve a dimensão desta. Lutero por diversas vezes defendera os camponeses e alertara os latifundiários para as condições de vida desumana que lhes eram impostas. Influenciados pelas suas ideias e de outros pregadores, os camponeses pegaram em armas, e a revolta, iniciada na Floresta Negra, Sul da Alemanha, rapidamente alastrou por toda a Alemanha e Áustria. Os propósitos iniciais dos dirigentes da revolta, condensados em doze reclamações, sendo uma a liberdade de culto, poderão ter sido pacíficos, mas depressa foram ultrapassados. Bandos de camponeses cometeram as maiores barbaridades com saques a aldeias, cidades, conventos, morticínios e incêndios. Eram incitados por pregadores evangélicos, comunistas utópicos, mas grandes dirigentes populares como Tomás Münzer, para quem os ímpios, isto é, os hierarcas católicos, deviam ser aniquilados, ou o monge Henrique Pfeiffer, que proclamava a abolição da autoridade senhorial. A maioria dos revoltosos via em Lutero o seu mentor, esperando deste compreensão e apoio. O monge manteve uma atitude de expectativa, insistindo que era necessária a paz e a deposição das armas, apelando aos príncipes clemência e moderação na exploração dos trabalhadores da terra. No fundo temia-os como aos piores inimigos. Quando soube das pilhagens e dos assassínios, tomou o partido dos latifundiários, chegando a incitar os mercenários dos príncipes com as seguintes palavras: «Golpeia, bate, dobra quem puderes; se morreres, a tua
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morte será santa, pois morres na obediência da ordem divina». A guerra terminou, dois anos depois, com a aniquilação de muitos milhares de camponeses e do próprio Münzer. Lutero perdeu muita da sua popularidade entre a gente mais simples, que se sentiu traída, mas, em compensação, os príncipes e os poderosos viram nele um aliado precioso, um defensor convicto da ordem estabelecida. Deu-se uma viragem no movimento da Reforma. Príncipes houve que decretaram o luteranismo a religião oficial nos seus domínios, outros que permitiram a sua livre propagação. Um dos primeiros convertidos foi o grão-mestre da Ordem Teutónica, Alberto de Brandeburgo, que em 1525 transformou as possessões da ordem em ducado hereditário e, como é óbvio, ficou ele o duque. Anos depois, Lutero casou com uma ex-freira. Foram de resto em grande número as freiras e os frades que abandonaram a vida monástica, e muitos os conventos que fecharam portas por falta de residentes. Na Dieta de Speyer, a sul de Worms, (em 1529), temendo o regresso do imperador, os príncipes e os duques decidiram dar execução ao Édito de Worms, mas levantaram-se tantos protestos, que tudo ficou na mesma. Foi a partir daqui que os reformadores passaram a chamar-se protestantes. Carlos apareceu no ano seguinte, furioso, a pedir contas aos seus súbditos, mas o ambiente que encontrou obrigou-o a ser mais sensato. Afinal ainda não estava esgotada a via pacífica, era necessário promover o diálogo entre as partes, a reforma dentro da igreja estava por fazer, era cada vez mais urgente o concílio. E os anos seguintes foram de constantes tentativas de reconciliação, tendo como principais impulsionadores Carlos V e Erasmo, e a participação activa e interessada de inúmeros religiosos e teólogos de ambas as partes, com particular destaque para o incansável reformador moderado Melanchton (1497-1560), amigo de Lutero, presente em todas as conversações. Mas as propostas e bases de entendimento esbarraram sempre com visões diferentes das mais diversas questões teológicas, doutrinárias, litúrgicas e de disciplina eclesiástica, como a transubstanciação na missa, a veneração dos santos, o celibato dos padres, a devolução dos bens da Igreja aos príncipes, e muito mais. Assim se chegou ao Tratado de Passau, em 1552, que pôs cobro, temporariamente, à disputa entre católicos e protestantes, com o reconhecimento da igualdade de direitos das duas confissões em toda a Alemanha. E até à sua morte, em 1546, a vida de Lutero está recheada de acontecimentos, avultando a sua intransigência relativa a qualquer reconciliação com a Igreja papal. Foi, assim, que este monge alemão, num curto espaço de tempo, de 1516 a 1522, através de inúmeros sermões, escritos panfletários e obras
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diversas, perseguido, exilado e excomungado, entrou em confronto directo com a poderosa hierarquia católica e elaborou uma nova doutrina religiosa que se propagou prodigiosamente por todo o continente europeu, das monarquias escandinavas à Itália, da Espanha até à Polónia. Por meados do século XVI, cerca de dois terços da Alemanha era protestante, e os países escandinavos aderiram ao luteranismo, que passou a ser a religião do Estado na Suécia (1529), Dinamarca (1536) e Noruega (1537). Na Inglaterra, o rei tornou-se o chefe máximo da Igreja em 1534. Na Escócia, o calvinismo foi proclamado religião de Estado em 1560. Nos Países Baixos, Polónia, Hungria, Boémia, Áustria, Navarra e Catalunha, parte considerável da população e muitos nobres aderiram ao protestantismo. CALVINO João Calvino foi o fundador de uma variante do protestantismo, hoje difundida por todo o mundo, com numerosos seguidores em particular na Escócia, Suíça, Holanda, África do Sul, Reino Unido e Estados Unidos da América. Foi, depois de Lutero, o principal reformador. Nasceu em 1509 em Noyon na Picardia, Norte da França. Tinha apenas oito anos quando Lutero escreveu as suas 95 teses. Em Paris licenciou-se em Artes Livres com 19 anos, no mesmo ano em que o pai, cobrador de impostos do bispo de Noyon, foi excomungado por divergências com o patrão. Por insistência do pai, espírito lúcido e crítico, que não ambicionava para o filho um futuro eclesiástico, foi estudar Direito para Orleães, onde se doutorou, quatro anos depois. Mas as suas grandes paixões eram os estudos humanísticos e teológicos, de que foi autodidacta. A sua primeira publicação foi De Clementia, sobre Séneca, em que dissertou acerca do estoicismo e da ideia de predestinação, obra que logo o integrou no convívio das elites humanísticas. É por esta altura, com 23 ou 24 anos, que adere ao luteranismo, talvez revoltado com o funeral sem sacramentos do seu pai, mas, seguramente, influenciado pelo ambiente de contestação que se vivia um pouco por toda a parte. Nesse preciso ano de 1534 começam por toda a França as perseguições aos reformadores, tendo como pretexto destruições de imagens nas igrejas e a questão dos cartazes, e Calvino resolve abandonar o país. Em diversos locais de Paris surgiram pequenos cartazes impressos onde a missa tradicional era criticada, pois se Jesus se sacrificou por nós, por que razão a repetição simbólica da sua morte no altar? O movimento reformador, já enraizado na Alemanha, tinha ainda pouca expressão em França, sendo por isso tolerado. Mas em 1533 dá-se uma mudança radical. O papa Clemente VII pressiona Francisco I para a «aniquilação da heresia luterana e de outras seitas que ganham influência nesse reino».
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Ora a questão dos cartazes foi a fagulha que a Igreja Católica e o Estado francês esperavam para desencadear a caça aos inovadores. Foram brutais as perseguições, prisões, assassínios e fogueiras. Ficou tristemente célebre a procissão macabra. Os condenados foram arrastados pelas ruas de Paris, com seis paragens. Em cada paragem estava um palanquim em que Sua Majestade se ia instalando, acompanhado da corte e de numerosa padralhada, para assistir à morte dos hereges pela fogueira. Estamos a falar do mesmo rei que nas suas constantes guerras contra o católico Carlos V se aliava sempre aos príncipes alemães protestantes e às vezes aos turcos muçulmanos... Calvino passa por Estrasburgo, onde se relaciona com vários reformadores, seguindo depois para Basileia, a cidade onde Erasmo, o mais ilustre dos humanistas, já velho e doente, acabaria por morrer. Calvino não chegou a conhecê-lo. Foi em Estrasburgo que Calvino escreveu a sua principal obra, Institutio religionis christianae, que dirige ao rei francês em defesa dos protestantes perseguidos e em que tenta convencê-lo da bondade da Reforma. Critica severamente a Igreja Católica, mundana, opulenta, hierarquizada e influente, o comportamento dos sacerdotes e a vida nos conventos, que compara a lupanares. A verdadeira Igreja é a dos pobres e dos perseguidos, e é a pregação que leva aos crentes a palavra divina contida nas Escrituras. Esta obra, que logo o tornou famoso, é depois revista e aumentada diversas vezes até à sua versão final em 1560, constituindo até hoje o corpo doutrinário das confissões que se reclamam de calvinistas. Nas várias revisões, Calvino vai desenvolvendo os fundamentos do seu pensamento teológico, que pouco diferem dos de Lutero. Mas em relação à Igreja Romana torna-se mais radical. Além de a considerar falsa e obra do Demónio, entende que por isso mesmo deve ser aniquilada. Em 1536, Calvino, com 26 anos, passa por Genebra, onde é acolhido com entusiasmo e convidado a ficar na cidade. O bispo católico da cidade era quase sempre um familiar dos duques de Sabóia, desde que o papa Félix V se havia autoproclamado bispo da cidade. Mas dispunha de grande autonomia, pois na prática era governada pelo município eleito, como uma cidade-estado. Dois partidos se opunham, o católico, ligado à casa de Sabóia, e o dos confederados, que pretendia confederar Genebra a Berna e a Friburgo, dominados pelos luteranos. O município já tinha decidido a confederação em 1524, mas o duque de Sabóia ocupara militarmente a cidade. É neste contexto que Calvino chega a Genebra, governada pelos confederalistas, abertos às ideias inovadoras, que lhe oferecem o cargo de pregador e pároco da cidade, o que aceita sem nunca ter sido ordenado
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sacerdote. Dedica-se ao estudo dos textos de Lutero, que nunca viria a conhecer pessoalmente, e com as suas pregações vê crescer rapidamente a sua popularidade e influência. Começou então a revelar um carácter frio e fanático. Por proposta sua, o município decretou, entre outras medidas persecutórias, que todos os cidadãos teriam de proferir um juramento de adesão à nova religião, sob pena de serem banidos da cidade. São criadas patrulhas que vão de casa em casa averiguar da confissão dos moradores, seguindo-se perseguições e punições aos inconformados idólatras, adoradores de santos e imagens, classificados de hereges. Claro que a reacção da população não se fez esperar. Que direito tem um francês de decidir sobre a excomunhão e a expulsão da sua cidade de um pacífico cidadão genebrino? E nas eleições seguintes (1538) ganhou o partido católico. Calvino foi demitido e expulso, voltando para junto dos seus amigos de Estrasburgo, cidade que acolhia grande número de franceses fugitivos. Mas as sementes da Reforma iam ganhando raízes, e a vontade de muitos genebrinos de se verem livres do bispo, tão apegado aos Sabóias, ajudou os confederalistas a voltar ao município (1541). O seu mentor Calvino é de novo chamado, fixando-se definitivamente na cidade, até à sua morte (1564). A influência crescente de Calvino faz dele o líder espiritual e também político máximo da cidade. Cria de imediato uma estrutura sacerdotal, com pastores encarregados da pregação, doutores que se ocupam da meditação e do ensino, presbíteros, os mais velhos, que aconselham, julgam e têm acesso às casas, punindo os infractores da ordem civil e religiosa, e diáconos, que se ocupam dos doentes e dos pobres, já que a mendicidade é expressamente proibida. Depois institui um conselho com laicos e religiosos, com poderes de tribunal, onde são julgados e condenados como heréticos, os acusados de superstição, de feitiçaria ou de manterem o culto antigo. E a livre Genebra torna-se, assim, num estado teocrático, violento e sectário, onde dezenas dos seus concidadãos são condenados à morte ou excomungados e banidos. Por outro lado, a cidade cresce demograficamente à custa dos milhares de famílias francesas protestantes perseguidas no seu país, o que vai reforçar a posição de Calvino. Teve particular relevância a condenação à fogueira de Miguel Servet (1553). Era um médico e eminente humanista que durante anos trocou correspondência com Calvino sobre as temáticas candentes da Reforma. Mantiveram algumas divergências, designadamente a respeito da Divina Trindade, que Servet considerava um equívoco do Concílio de Niceia. Em 1553 foi apanhado pela Inquisição em Pa-
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ris, mas conseguiu fugir, procurando refúgio em Genebra. Mas, mal chegou à cidade, foi preso, condenado por heresia e queimado vivo. Em 1559 foi fundada a Academia de Genebra ou Universidade de Teologia, que rapidamente se tornou o mais importante centro de formação calvinista e por onde passaram centenas de futuros pregadores, em particular franceses. Ao contrário de Lutero, que sempre advogou a obediência ao poder instituído, Calvino apelava ao direito divino de lhe resistir, designando-o por poder ímpio, indo ao ponto de defender, se necessário, o tiranicídio, para o substituir pela autoridade divina. O fanatismo de Calvino e dos seus seguidores agudizou a tensão entre confissões diferentes, o que viria a mergulhar a França e a Europa nas guerras fratricidas a partir dos anos 60. ZWINGLI E OS ANABAPTISTAS Não se pense que a agitação religiosa que percorreu todo o século XVI se limitou à acção dos reformadores anteriormente citados. Eles foram sem dúvida os principais protagonistas, e as suas teses doutrinárias iriam dar origem aos cultos protestantes de maior êxito, mas muitos mais participaram nesta alucinante procura da verdade divina. Não caberia nestas linhas a descrição, mesmo que sumária, de todas as especulações produzidas por estas mentes tão imaginativas. O advento do protestantismo está cheio de personagens e correntes de pensamento teológico que se demarcavam por diferentes entendimentos das Escrituras, mas que acabaram por não ter futuro e, por isso, foram esquecidas. Abordemos apenas as principais, a Reforma em Zurique e os movimentos anabaptistas. Ulrique Zwingli (1484-1531), grande admirador de Erasmo, era capelão das tropas suíças ao serviço do papa. A partir de 1519 começou a interessar-se pelas questões religiosas levantadas por Lutero. Afastou-se então do catolicismo romano, passando a intransigente defensor da Reforma. Elaborou então as suas próprias convicções teológicas, tendo como ponto de partida, tal como Lutero e mais tarde Calvino, a verdade revelada nas Sagradas Escrituras. Mais radical que aqueles dois, advogava a eliminação das cerimónias religiosas, das imagens nas igrejas, da missa, dos mosteiros, das benesses eclesiásticas, e a substituição do latim pelo alemão. Defendia a união da Igreja com o Estado, e que ao Conselho Municipal de Zurique competiria toda a jurisdição civil e religiosa. Foram constantes e por vezes violentos os conflitos quer com os membros do conselho quer com os seus próprios adeptos, ainda mais radicais. Conseguiu finalmente o controlo do Conselho Municipal de Zurique, e em Abril de 1525 a missa foi abolida pelas autoridades. Em 1528, Berna, Basileia, Constança, Estrasburgo e outras cidades aderiram à reforma de
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Zwingli e criaram a Liga do Direito Cívico Cristão, ambicionando levar a Reforma a todos os cantões. Mas os cantões de predomínio católico mobilizam-se e preparam-se para a guerra. Esta eclodiu em 1531, sendo o exército protestante dizimado na Batalha de Kappel, onde Zwingli foi morto. Muitos adeptos de Zwingli acabaram por aderir ao calvinismo. Outros já se tinham afastado, por entenderem que ele não observava as Escrituras quanto ao baptismo das crianças. Eram os aguerridos anabaptistas, que se julgavam os únicos que interpretavam correctamente as Escrituras e que foram espalhando as suas crenças por toda a Suíça, Sul da Alemanha e Tirol. Se no cristianismo primitivo só era admitido na comunidade cristã quem se sentisse possuído pela Fé e aceitasse voluntariamente o baptismo, por que razão baptizar recém-nascidos? Mesmo os adultos, crentes convictos, deveriam ser rebaptizados, pois o baptismo infantil não lhes tinha conferido o estado de graça. Também nada descortinaram na Bíblia que impedisse a poligamia. O mais elevado dignitário anabaptista suíço, Félix Manz, acabou por ser condenado à morte por afogamento no rio Limmat pelo Conselho de Zurique, com a complacência de Zwingli (1527). Também na Saxónia pela mesma altura os profetas Zwickau e Münzer pregavam o baptismo dos adultos, já que em crianças tinham sido baptizados pelo culto antigo. Anunciavam um novo reino dos Céus, só aberto aos rebaptizados, deixando os ímpios de fora. Esta doutrina difundiu-se rapidamente entre os camponeses do Sul da Alemanha, desiludidos com a reforma de Lutero que na guerra os havia traído. Outro insigne pregador, Melchior Hoffman, percorreu a Alemanha e os Países Baixos, levando a boa nova e rebaptizando milhares de ingénuos. Estrasburgo onde encontrou grande número de apoiantes seria a nova Jerusalém do Apocalipse, mas acabou por ser preso (1533) e morreu no cárcere. O capelão Rothmann, aproveitando os confrontos entre católicos e protestantes na cidade de Münster, na Alemanha, junto da fronteira com a Holanda, começou a pregar a doutrina anabaptista (1533), obtendo um êxito inesperado, pois afinal a Jerusalém celestial não seria Estrasburgo, mas sim Münster. Começaram a convergir para a cidade milhares de crentes de toda a Alemanha e dos Países Baixos para se rebaptizarem pelo profeta, chegando a 1400 baptismos por semana. No ano seguinte, um anabaptista tornou-se burgomestre da cidade, e todos os ímpios que recusaram o rebaptismo foram banidos da cidade, entre eles o bispo católico. Um tal Bockelson fez-se proclamar o Novo Rei de Israel e viveram-se na cidade dias de efusivo regabofe: festas, bens confiscados e distribuídos, poligamia e execução de ímpios. Entretanto, o bispo expulso reuniu um pequeno exército, cercou a cidade e à festa seguiu-se a
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fome. Quando, depois de sangrentos combates, os sitiantes tomaram a cidade, os cabecilhas foram torturados até à morte e os seus cadáveres expostos em gaiolas na torre da catedral. O Rei de Israel tinha morrido em combate. O movimento passou a ter um novo chefe, o ex-padre holandês Menno Simons, mais moderado, que afastou do seu ideário a tomada do poder, pois o Reino de Deus era meramente espiritual. O movimento anabaptista teve grande adesão entre os camponeses, mas, perseguido e condenado por protestantes e católicos, acabou por se extinguir na Europa. No entanto, muitos perseguidos encontraram refúgio seguro no continente norte-americano, onde as ideias baptistas e anabaptistas encontraram terreno fértil à sua propagação, como mais tarde veremos. O ANGLICANISMO Já vimos como Wyclif, Ball e tantos outros e o Movimento Lollard abalaram no século XV o prestígio da Igreja Católica e do papa na Inglaterra. Na verdade, há muito que quer a população quer parte do clero e da nobreza não aceitavam plenamente o domínio papal, o que se acentuara com o Cisma do Ocidente. O terreno estava mais que preparado para acolher as ideias renovadoras e separatistas de Lutero e Calvino, e o corte com Roma era obviamente inevitável. Surgiu, assim, em meados de século XVI na Inglaterra uma nova confissão, o anglicanismo, um misto de catolicismo e protestantismo, que é ainda hoje a religião oficial do Estado, tendo o rei como figura cimeira. Mas não foi linear a criação deste novo credo. Ele resultou de um complexo processo cheio de peripécias palacianas, de jogos de poder, de ambições pessoais e, claro, de violentos confrontos entre as mais diversas interpretações doutrinárias, teológicas e litúrgicas. E os papas deram também o seu contributo para a rotura. Incapazes de compreender as especificidades britânicas e os tempos que se viviam, teimavam em excomungar a torto e a direito, convencidos de que esta arma mantinha o seu condão dissuasivo. Na verdade rolaram muitas cabeças até se estabilizar a doutrina definitiva. Vejamos sucintamente o que a História nos conta. Henrique VIII era um piedoso súbdito de Sua Santidade. Em 1521 escrevera um opúsculo contra as ideias de Lutero intitulado Defesa dos Sete Sacramentos, tendo-lhe o papa Leão X concedido a dignidade de Defensor da Fé. Poucos dias depois de ter sido coroado rei (1509), aos 18 anos, casou com Catarina de Aragão, viúva do rei Artur, o irmão mais velho de Henrique. Catarina era filha dos Reis Católicos de Espanha, Fernando e Isabel, e tia do poderoso Carlos V. O seu primeiro casamento com Artur tinha durado quatro meses, tendo este morrido talvez de cólera aos 14 anos.
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Henrique e Catarina viveram felizes 18 anos, tendo a rainha, seis anos mais velha que o marido, dado à luz sete principezinhos, mas todos faleceram em tenra idade com excepção de Maria Tudor, futura rainha. Depois dá-se o drama. Henrique, que tinha como amante oficiosa uma aia da esposa, apaixonou-se desesperadamente pela irmã mais nova desta, Ana Bolena, também ela aia de Sua Majestade, mas que lhe negava favores fora do matrimónio. Henrique pediu o divórcio ao papa, alegando a proibição divina de casamentos entre cunhados, do que estaria arrependido, mas Catarina contra-argumentava que o casamento com Artur não se consumara, razão por que havia sido anulado pelo papa Júlio II após a morte daquele, e que lhe havia permitido casar-se com Henrique. O papa Clemente VII, pressionado por Carlos V, que tomou o partido da tia, proibiu o Parlamento e todas as instâncias religiosas de anularem o casamento do rei, sob ameaça de excomunhão. Henrique perde a paciência, substitui o arcebispo de Cantuária, a máxima dignidade da Igreja em Inglaterra, coloca em seu lugar um homem de confiança, Thomas Cranmer, e casa com Ana em 1533, declarando nulo o anterior casamento. Cranmer e os noivos são excomungados por Clemente VII. No ano seguinte, o Parlamento declarou o rei o chefe secular da Igreja Inglesa, com a prerrogativa de nomear bispos e arcebispos – o Acto de Supremacia. Estava consumado o Cisma Anglicano. Os anos que se seguiram foram de arrumação da casa, tendo rolado cerca de 200 cabeças de arcebispos, bispos, clérigos e monges mais recalcitrantes, entre os quais o humanista católico Tomás More, amigo de Erasmo, que não aceitou que o rei fosse a figura cimeira da Igreja. Os mosteiros foram dissolvidos, muitos bens da Igreja, confiscados, lugares de culto de santos, eliminados. Henrique VIII e Ana Bolena tiveram dois filhos, um rapaz, que morreu, e uma menina, Isabel, outra futura rainha. Três anos depois, Ana é acusada de bruxaria, traição e adultério e é decapitada. Entretanto, Henrique não se havia afastado do catolicismo, chegando a promulgar os chamados Seis Artigos de Fé (1538), onde decreta a condenação à morte a quem contestar a missa, a comunhão, a confissão, o celibato dos padres, etc. Tinha sido excomungado não por herege mas, sim, por cismático. Casou pela terceira vez com Joana Seymour, que morreu do parto, tendo a criança sobrevivido, o futuro rei Eduardo VI. Depois de mais três casamentos inférteis, Henrique entregou a alma ao Criador em 1547, subindo ao trono o único herdeiro masculino, órfão e débil, com apenas 10 anos (inspirou Mark Twain em O Príncipe e o Pobre).
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A regência do reino foi assumida pelo duque de Somerset, simpatizante da Reforma. Cranmer, que adquirira grande poder e influência, redigiu e tornou oficial o Livro Comum de Orações (1549), que substituiu a Defesa dos Sete Sacramentos e, mais tarde, Os 42 Artigos de Fé (1553), que constituem, ainda hoje, os fundamentos doutrinários do anglicanismo, já manifestamente protestante. É, assim, que, no reinado de Eduardo VI, toma forma a nova confissão religiosa. Com 16 anos, Eduardo morreu tuberculoso e instalou-se a confusão dinástica, tanto mais que a primeira pretendente era Maria, filha de Catarina de Aragão, católica intransigente como a mãe, mas ilegítima, uma vez que o casamento dos pais fora anulado, e a segunda, Isabel, filha da bruxa. O trono é dado a uma protestante bisneta de Henrique VII, Joana Gray, mas nove dias depois é deposta pelos apoiantes de Maria, e esta é coroada. Maria, já rainha, casou com Filipe, o herdeiro do trono de Espanha, 11 anos mais novo e filho de Carlos V e de Isabel de Portugal, o futuro Filipe II de Espanha em 1556 e Filipe I de Portugal em 1581, o que desencadeou uma enorme onda de protestos. Maria nomeou cardeal Reginald Pole, e ambos tentaram restabelecer o catolicismo como religião oficial, tendo o Parlamento aprovado o regresso à obediência papal. Seguiu-se um período de perseguições e execuções sem precedentes, tendo sido executados no seu curto reinado uns 300 «hereges», entre os quais Cranmer, o que valeu à impopular rainha o cognome de a Sanguinária. Por sua morte sucede-lhe Isabel I (1558), que restabelece o anglicanismo. Logo em 1559, com o apoio do Parlamento, voltaram a vigorar o Acto de Supremacia, que lhe possibilitou nomear os dois arcebispos e os 42 bispos do reino, e o Livro de Orações de Cranmer, que tinham sido anulados pela antecessora. Em 1563, o Parlamento aprovou a Confissão dos Trinta e Nove Artigos, que estabelece a posição doutrinária da Igreja Anglicana. Chamou-se Acordo Isabelino a este compromisso entre o catolicismo e o protestantismo calvinista. São mantidos apenas dois sacramentos, o baptismo e a eucaristia, sendo os outros facultativos. São igualmente mantidos o fausto das cerimónias religiosas, mas com o emprego da língua inglesa e a hierarquia eclesiástica com dois arcebispos, bispos, diáconos e presbíteros. Como não podia deixar de ser, Isabel I foi excomungada pelo papa Pio V em 1570. No seu longo reinado (1558-1603) viveu-se um clima de razoável acalmia do ponto de vista religioso, para o que contribuiu a forte personalidade da rainha aliada a uma notável capacidade de apaziguar disputas e procurar consensos. Apenas um triste episódio ensombrou tão ditoso reinado. Maria Stuart, católica, foi rainha da Escócia desde que nasceu, em 1542, até 1567. Mas a nobreza e a população escocesas tinham aderido ma-
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ciçamente ao protestantismo, e era grande a animosidade contra a rainha. Quando esta resolveu casar com o assassino do seu segundo marido, houve um levantamento geral, obrigando-a abdicar em seu filho Jaime, protestante, e que viria a ser o sucessor de Isabel I, rei da Escócia e da Inglaterra. Maria, receosa da sua segurança, procurou refúgio na corte de Isabel, sua parente, mas esta ficou sempre de olho nela, uma vez que por razões de linhagem era uma possível pretendente ao trono inglês, solução de reserva da facção católica. Vinte anos depois é descoberta uma conjura para assassinar Isabel, e esta aproveitou a deixa e, com ou sem razão, implicou a parente, que acabou por ser condenada e decapitada em 1587. No ano seguinte ocorre o segundo grande conflito naval entre armadas de credos diferentes (a Batalha de Lepanto fora em 1571), e a tentativa de Filipe II de trazer de volta ao catolicismo este reino insolente. A história da Armada Invencível será tratada a seguir. Dois anos depois da morte de Isabel I, Robert Catesby lidera uma vasta conspiração com o objectivo do retorno ao catolicismo. O plano consistia em decapitar o núcleo central do anglicanismo, fazendo ir pelos ares o Parlamento e, com ele, o rei Jaime I e os parlamentares, a que se seguiria um levantamento popular. Para tanto, foram colocados trinta e seis barris de pólvora nos subterrâneos do Parlamento que seriam deflagrados por um soldado especialista em explosivos, Guy Fawkes. Mas, entre os católicos que foram avisados para não estarem no local, alguém terá dado com a língua nos dentes, e a conspiração foi descoberta. Guy foi apanhado com a boca na botija e sob tortura denunciou os conspiradores, sendo todos enforcados e queimados. E ainda hoje o dia da execução (5 de Novembro) é festivamente assinalado nas escolas inglesas com a queima de um boneco de palha pendurado pelo pescoço. A ARMADA INVENCÍVEL O casamento de conveniência com Maria Tudor fazia parte do plano de Filipe II de anexar o reino da Inglaterra aos seus já vastos domínios, e depois não seria difícil fazê-lo voltar à verdadeira Fé. Mas Maria morreu em 1558, dois anos depois do enlace, e sucedeu-lhe a astuta Isabel I, um rude golpe nas aspirações do monarca. Quando a outra Maria, a católica Stuart, vem viver para Londres em 1567, renasce a esperança de uma viragem, mas a machadada no pescoço pôs ponto final a viragens fáceis. Só restava a força das armas. Para mais, as coisas não corriam bem na Holanda, onde os rebeldes protestantes não desarmavam e eram agora apoiados pelos navios ingleses, que dominavam o canal da Mancha. Por outro lado, os ricos carregamentos vindos das Américas eram constantemente atacados pelos corsários ingleses, súbditos da rainha.
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Filipe decidiu pôr fim, de uma vez por todas, à crescente arrogância deste estado semibárbaro, começando a preparar uma poderosa esquadra que lhe garantisse o domínio dos mares, quer nas rotas atlânticas quer no canal, e lhe permitisse a invasão da grande ilha. Mas os ingleses, liderados por Isabel I, não estavam a dormir. Em 1587, a esquadra inglesa comandada pelo lendário corsário Francisco Drake surpreendeu a espanhola em Cádis, quando esta se encontrava ainda em preparativos e infligiu-lhe pesada derrota. Mas no ano seguinte nova esquadra espanhola é preparada para a contenda. Filipe II baptiza-a de «Armada Invencível». É constituída por 75 galeões, 39 corvetas e 25 grandes navios mercantes, com 10.000 marinheiros e 20.000 soldados. Outros tantos soldados aguardavam na Flandres a sua vez de atravessar o canal para a grande invasão. A 28 de Julho de 1588, a Armada Invencível aportava em Calais, senhora do canal da Mancha. Mas, depois, tudo começa a correr mal. Quando zarpam de Calais são atacados pelos galeões ingleses, mais leves e rápidos, com menos canhões, mas mais certeiros. O vento também não ajudou. Apesar de bonançoso, soprava no canal de oeste para leste, obrigando os navios espanhóis a afastar-se cada vez mais das costas, quer da britânica, onde estava previsto o desembarque, quer da continental. Quanto aos ingleses, tinham na costa da ilha portos seguros para se reabastecerem e municiarem em segurança. E a Armada Invencível é arrastada para o mar do Norte, a Leste do seu destino, e enfrenta agora um tempo menos ameno. Qualquer desembarque seria um desastre, longe da segunda vaga de invasores, e voltar para trás era impossível. Só restava uma solução, contornar pelo Norte a grande ilha e voltar para casa. E assim fez. Mas esta viagem de regresso foi desastrosa, os danos foram imensos. Acossados pelos galeões ingleses, que escolhiam para alvo os navios tresmalhados, e esgotadas as munições e a pólvora, o que permitia a aproximação do inimigo, muitos navios foram presa fácil e afundados. Outros, comandados por desconhecedores destes mares nórdicos, naufragaram na costa continental. Mas o maior drama foi ao largo da costa da Irlanda. O tempo piorou e dezenas de embarcações danificadas pelo fogo inglês começaram a meter água, desconjuntaram-se e foram ao fundo, arrastando tripulantes e soldados. Cerca de quinze naufragaram nas inóspitas costas irlandesas. A fome, o frio, os ferimentos e as doenças dizimavam as tripulações. Em finais de Setembro e Outubro, três meses depois do início da aventura, os sobreviventes pisavam finalmente terras de Espanha e de Portugal. Calcula-se que um terço dos navios se perdeu, e outro terço chegou com
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tantos danos que não voltou a navegar. Quanto às perdas humanas estima-se que dos 30.000 apenas regressaram com vida uns 10.000. Se a Batalha de Lepanto, a última grande batalha naval com velhas galeras a remos, pôs termo à expansão islâmica no Mediterrâneo, a derrota da Armada Invencível, o primeiro grande conflito naval de veleiros, pôs definitivamente fim às pretensões de retorno dos ingleses à obediência papal. Terminava assim sem glória o domínio marítimo dos espanhóis e emergia um novo senhor dos mares.
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s ideias de Calvino chegaram muito cedo à Inglaterra, Irlanda e Escócia, onde encontraram um terreno já propício à sua rápida difusão e implantação. Data de 1548 a primeira correspondência conhecida entre o reformador e os seus amigos ingleses, que se inclinavam mais para as teses de Calvino do que para as de Lutero. Na Escócia, foi João Knox (1505-1572) o principal reformador calvinista, sendo o presbiterianismo decretado religião de Estado em 1560. Como vimos, pouco depois de Maria Tudor subir ao trono inglês, em 1553, começaram as sangrentas perseguições aos calvinistas, tendo muitos abandonado a ilha, procurando refúgio em Francoforte, Genebra e outras localidades continentais. Com o Acordo Isabelino voltou a vigorar o anglicanismo, mas, quando em 1563 o Parlamento aprovou a Confissão dos Trinta e Nove Artigos, houve grande discordância por parte dos calvinistas mais inflexíveis, para quem o novo cânone não passava de uma meia reforma. Discordavam fundamentalmente da manutenção da missa dominical, da devoção de santos, das práticas litúrgicas, das cerimónias religiosas pomposas e da hierarquia eclesiástica a culminar no rei, o chefe da Igreja Anglicana como soberano. Para eles, a missa só deveria ser celebrada quatro
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vezes por ano, e a entidade religiosa máxima deveria ser a Assembleia de Presbíteros. Agravou-se assim a disputa entre as duas facções, os anglicanos, moderados, satisfeitos com o corte com o papado e apoiados pela rainha, e os calvinistas, incitados por Calvino, mais radicais, defensores de um cristianismo mais simplificado, mais puro, de governo presbiteriano. Passaram estes a ser pejorativamente apelidados de puritanos. Perseguidos e desiludidos, iniciaram o movimento migratório para as colónias americanas, movimento que por levas sucessivas continuou durante o século seguinte, sempre que se agravaram as perseguições. Em 1572 fundaram a primeira igreja presbiteriana em Wandsworth. Quando Jaime I (Jaime IV da Escócia) sucedeu a Isabel I, os puritanos julgaram ter um aliado, mas tal não aconteceu. Jaime, coroado rei da Escócia com um ano e educado por reformadores, ficou deslumbrado por ser agora, aos 37 anos, rei da Inglaterra, da Irlanda e da Escócia, sem verter uma gota de sangue e, ainda por cima, assumir por inerência a chefia máxima da Igreja de Inglaterra. Cedo se mostrou hostil para com os puritanos/presbiterianos, sendo-lhe atribuída a frase: «Os puritanos são para a monarquia, como Deus é para o Diabo». Perseguições e exílio não se fizeram esperar. O seu sucessor, Carlos I (1625), propôs-se eliminar os dissidentes, o que originou nova grande leva de puritanos para a América, tendo-se fixado em grande número na baía de Massachusetts, onde fundaram o Colégio de Harvard (1636). Quis também acabar com o calvinismo no seu reino da Escócia, mas como não o conseguiu por meios pacíficos, diplomacia e coacção, optou pela guerra. Os senhores escoceses criaram então a Solene Liga e Aliança, reuniram todos os homens de armas e opuseram-se ao exército real. Não chegou a haver confronto, porque as tropas de Sua Majestade debandaram à vista do exército inimigo (1638). Em 1640, o Parlamento inglês retirou os poderes ao déspota Carlos I, passando o parlamentar e puritano Oliver Cromwell a impor-se como líder na nova situação e a assumir a governação dos três reinos (Inglaterra, Escócia e Irlanda). Cessaram as perseguições aos puritanos, que foram autorizados a realizar uma assembleia na Abadia de Westminster, o principal templo anglicano londrino (1643), e o próprio Parlamento encarregou-se da convocação. O objectivo desta assembleia foi purificar a Igreja Anglicana, expurgando-a dos resquícios papistas e das inovações teocráticas. Os documentos aprovados eram levados ao Parlamento, e todos foram rectificados. Entre as deliberações avulta a substituição da hierarquia eclesiástica anglicana pelo governo presbiteriano, o que mais tarde também foi aprovado pelo Parlamento (1648). E foi, assim, que pela primeira vez na história das religiões os cânones foram elaborados por uma assembleia de crentes.
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Na Escócia, a Assembleia presbiteriana aprovou os textos que tinham sido elaborados em Westminster e que constituem até hoje a base doutrinária adoptada pelos cultos presbiterianos espalhados por todo o mundo. Os anos que se seguiram foram de guerra civil entre os realistas anglicanos e os republicanos calvinistas comandados por Cromwell. Estes, com o auxílio da Escócia, triunfaram, implantaram a República presbiteriana, e o seu chefe absoluto auto-intitulou-se Protector da Inglaterra. Carlos foi decapitado (1649), e os cânones aprovados na Assembleia de Westminster passaram a vigorar. Mas Cromwell tornou-se um déspota, tal como Carlos, e por duas vezes dissolveu o Parlamento. No entanto, e ao contrário do rei decapitado, foi um dirigente «iluminado». Na Irlanda, os católicos tinham aproveitado a guerra civil para se sublevarem, apoiados pelas tropas reais fiéis a Carlos, e muitos protestantes foram massacrados. Cromwell sufocou a rebelião, prendendo e executando os padres católicos que caíam nas suas mãos. Confiscou as terras de católicos e entregou-as a senhores ingleses e escoceses. Quando os últimos redutos irlandeses foram tomados – as cidades de Drogheda e de Wexford –, foram executados cerca de 3500 militares e civis católicos, em cada uma delas, e 12.000 irlandeses foram vendidos como escravos para as plantações das Bermudas e Barbados. A conflitualidade política e religiosa que ainda hoje se vive na Irlanda do Norte tem a sua origem profunda nestes dramáticos acontecimentos. No ano seguinte, uma rebelião na Escócia, que se transformara na prática numa província inglesa, foi igualmente sufocada pelo exército de Cromwell, mas sem as sangrentas barbaridades que foram cometidas na Irlanda, talvez porque nestas paragens quase não houvesse católicos. Em Inglaterra, com Cromwell, voltou a reinar a tolerância religiosa. Os judeus, que tinham sido expulsos do país por Eduardo I (1290), puderam regressar. Quando o tirano morreu (1658) sucedeu-lhe o filho, Ricardo. Mas este não tinha as qualidades de comando do pai, resolvendo abdicar ao fim de um ano e, sem Parlamento nem «Protector», a velha Álbion mergulhou numa quase-anarquia. Entretanto, o filho de Carlos I tinha sido proclamado rei da Escócia em 1650. Acabou por ser chamado a Londres e proclamado rei da Inglaterra em 1660 – Carlos II. De imediato restaurou a velha ordem isabelina, dando origem à mais drástica onda de repressão contra os puritanos e a mais uma emigração em massa destes para as colónias americanas. OS HUGUENOTES Passemos agora aos calvinistas franceses, os huguenotes. Já referimos que duas facções se confrontavam em Genebra quando Calvino lá chegou, os apoiantes dos Sabóias e os confederalistas. Em ale-
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mão, confederalista ou confederado diz-se eidgenosse, e em francês suíço, eidguenot, possível origem da palavra francesa huguenot, designação dada aos pregadores vindos da Suíça e, pouco depois, aos seus seguidores. Não é difícil compreender que o movimento de reforma luterano, dada a proximidade com a Alemanha e os Países Baixos, se tenha difundido em França através do Norte e do Leste. Calvino, como vimos, teve os primeiros contactos com os reformadores em Paris. E, já antes de Lutero, o teólogo e humanista católico Jaques Lefèvre (1450-1537) tinha apresentado estudos diversos sobre as Sagradas Escrituras, sendo considerado o primeiro reformador francês. Mas no Sul de França havia bem mais razões para que a religião papal não gozasse de simpatia. As vicissitudes dos albigenses, três séculos antes, eram ainda lembradas nas canções provençais. Foram as populações do Sul as mais castigadas com o sustento da luxuosa corte dos papas de Avignon durante mais de 100 anos (1309-1417), e agora eram os catolicíssimos Carlos V e Francisco I, com os exércitos do papa ora de um lado ora do outro, que faziam da região o principal palco de constantes guerras. É, pois, natural que a exemplo dos avanços da Reforma na Alemanha, o Sul de França fosse terreno fertil à propagação das ideias do francófono Calvino. E assim aconteceu. Vimos como os reformadores foram perseguidos no Norte de França na década de 30 do século XVI e como o jovem Calvino se refugiou em Genebra em 1535. Pois foi por volta de 1540 que o calvinismo começou a disseminar-se, primeiro entre os camponeses e classes intermédias, e logo pelos senhores desejosos de seguirem o exemplo dos seus congéneres alemães e se libertarem dos bispos e mesmo do rei. As primeiras igrejas calvinistas surgem em 1555 em Paris, Meaux, Angers, Poitiers e Loudun e depois por toda a França, em particular no Sul. Cidades como Orleans, Rouen, La Rochelle, Toulouse, Rennes e Lion tornam-se importantes centros calvinistas. Em 1559 realizou-se em Paris um sínodo com a participação de representantes de 30 paróquias locais. Para esta rápida progressão muito contribuiu a acção dos pregadores formados na Universidade Teológica de Genebra, que o calculista reformador meticulosamente ia enviando para terras de França e Países Baixos. Vejamos a situação confusa que se vivia na corte francesa: O sucessor de Francisco I, Henrique II, rei de 1547 até 1559, foi ainda mais intolerante para com os calvinistas do que pai, o que também não o impediu de se aliar aos príncipes protestantes alemães na guerra contra Carlos V e seus filhos. Morreu num torneio, e o seu primogénito, Francisco II, de 15 anos, morreu um ano depois. Subiu ao trono o seu segundo filho, com 10 anos, Carlos IX, tendo a rainha-mãe, Catarina de Médicis, assumido a regência. Carlos morreu em 1574, envenenado acidental-
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mente pela mãe, sucedendo-lhe o terceiro irmão, Henrique III, então rei da Polónia, que foi rei de França de 1574 a 1589. Catarina de Médicis procurou pôr termo aos violentos conflitos entre católicos e huguenotes, que debilitavam a França e o poder central. Mas foram infrutíferas as intenções da rainha, e o confronto entre as duas confissões degenerou em estado de quase permanente guerra civil, que durante décadas assolou o país. Foram oito as guerras religiosas em França nesta segunda metade do século XVI, que a Espanha, a Inglaterra e outros estados vizinhos incitavam, sustentando financeira e militarmente cada uma das facções, com o claro objectivo de enfraquecerem o país e de recuperarem domínios que haviam perdido. Muitos foram os factores que intervieram nestas lutas fratricidas – políticos, sociais, lutas de poder –, mas a verdade é que nos campos de batalha estavam católicos de um lado e calvinistas do outro. Para melhor se compreender este sangrento período, lembremos que Calvino incitava os seus seguidores a desrespeitarem e a eliminarem os representantes do poder antigo, isto é, os católicos, ao contrário de Lutero, que apelara ao acatamento do poder instituído. Por outro lado, o papado, que tinha pago bem caro o menosprezo pelo «monge bêbado» e perdido todo o Norte da Europa, não podia agora dar-se ao luxo de perder a França. A primeira guerra religiosa teve início em 1562, e a sua causa próxima foi o massacre de 37 protestantes em Wassy, a Sudeste de Reims, pelo duque de Guise. Os calvinistas pegaram em armas e sob a liderança do príncipe Luís de Condé passaram à ofensiva. Tomaram as principais cidades, como Lion, Orleans e Rouen, mas foram rechaçados em Toulouse e em Bordeaux. Saquearam e destruíram sistematicamente as igrejas e as catedrais católicas. As perdas humanas foram imensas de ambos os lados. Depois, o exército católico recuperou aquelas cidades, e a desforra não se fez esperar. Morreram em combate o duque de Guise e o rei de Navarra, pai do futuro Henrique IV, que tinha intervindo ao lado dos calvinistas, e Condé foi aprisionado. A rainha regente acabou por pôr termo ao conflito com o Édito de Amboise, a Oeste de Tours, nas margens do Loire, que reconheceu aos nobres protestantes liberdade de culto. Não vamos deter-nos nos complexos pormenores da segunda (15671568) e terceira guerras (1568-1570), tão mortíferas como a anterior, com vitórias e derrotas de parte a parte. Apenas registamos que os protestantes foram ganhando terreno em todos os campos. Aumentaram as conversões entre a nobreza, a intelectualidade e a burguesia, e a influência na corte repartia-se agora entre os dois partidos. O jovem Carlos IX tinha como principal confidente Luís de Condé, o chefe militar dos calvinistas. Este foi assassinado a mando do duque D’Anjou, de-
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pois da Batalha de Jarnac, a Norte de Bordeaux, em 1569, sucedendo-lhe o experiente almirante Coligny, que foi aceite no Conselho Real. O governador de Paris era o huguenote duque de Montmorency. É criada no Sul de França a União dos Protestantes do Meio-Dia, com um governo eleito, que cobrava impostos e dispunha de um exército próprio. Dá-nos uma ideia da situação na corte a recomendação dirigida ao nosso desditoso D. Sebastião pelo papa Pio V, dissuadindo-o de desposar a filha de Catarina de Medicis, Margarida de Valois: «Quão enfermo aquele reino estava nas coisas de religião cristã, sendo de recear a educação que a princesa Margarida tivesse recebido». A situação internacional era igualmente favorável aos reformadores. Uma violenta onda iconoclasta percorria toda a Flandres, com saques às igrejas e destruição de imagens. Nos Países Baixos, Holanda, agravam-se os conflitos entre os católicos, fiéis a Espanha, a potência ocupante, e os calvinistas independentistas, que acabam por levar a melhor com a constituição em 1579 das Províncias Unidas. A Boémia, a Hungria, o Sul da Alemanha, a Áustria e a Catalunha são palco de constantes conflitos. Vimos como o protestantismo estava consolidado como religião oficial nos reinos nórdicos, na Inglaterra, e em muitos principados alemães. Navarra era governada por um rei protestante, uma vez que Henrique III abraçara de novo o calvinismo, como a seguir veremos. A ameaça turca mantinha-se a Leste. Os huguenotes julgavam estar perto o dia em que o calvinismo viria a ser a religião do Estado Francês. Mas foi neste contexto que ocorre um acontecimento histórico que iria mudar o curso dos acontecimentos, o massacre do dia de S. Bartolomeu. Deu início à quarta guerra religiosa em França e marcou o declínio das aspirações dos reformistas. O casamento de Henrique III de Navarra, calvinista, com a princesa Margarida de Valois, filha de Catarina de Medicis e irmã dos três anteriores reis, a tal com quem D. Sebastião quisera casar, foi supostamente uma cedência dos círculos católicos em que se movia a rainha-mãe, com o objectivo de acalmar as hostilidades que dilaceravam o país. Os sectores católicos mais radicais e o papa opuseram-se ao casamento da princesa com um calvinista, mas a ardilosa rainha convenceu o cardeal de Bourbon a unir os noivos, desobedecendo ao papa. Foi convidada toda a aristocracia francesa, dividida entre os dois cultos, e o casamento realizou-se a 18 de Agosto de 1572, devendo os festejos da boda prolongar-se por dez dias. Mas tudo não passou de uma cilada urdida pela rainha Catarina de Medicis, o rei Carlos IX de 22 anos e seus apaniguados da facção católica. A 22 de Agosto, o chefe calvinista Coligny foi vítima de um atentado,
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embora tenha sobrevivido. Na madrugada de 24, dia de S. Bartolomeu, os desprevenidos convidados protestantes, apanhados de surpresa, foram assassinados, seguindo-se a razia à paulada e à espadeirada dos hereges huguenotes parisienses. Coligny, ferido no atentado, foi retirado da cama e deitado da janela abaixo. A chacina, também planeada para outras cidades, só terminou, meses depois, calculando-se que tenham perdido a vida de 70.000 a 100.000 huguenotes. A semelhança com a extinção dos templários é óbvia. O rei de Navarra, o noivo, foi poupado à matança, permanecendo no paço real sob a protecção de Carlos IX, de quem se tornara confidente, mas, pelo sim pelo não, perjurou publicamente o protestantismo e converteu-se ao catolicismo. Mal refeito do susto, regressou ao seu reino e… à fé calvinista. O recém-eleito papa Gregório XIII, quando soube do acontecimento, mandou cantar um Te Deum e cunhar uma medalha comemorativa com a sua efígie de um lado e um pormenor da carnificina do outro. Filipe II de Espanha não escondeu o seu contentamento: «Foi o dia mais feliz da minha vida». Entretanto a guerra alastrava uma vez mais por toda a França. Os huguenotes tomam várias cidades e perdem outras, terminando as hostilidades, um ano depois quando as duas partes se encontram exaustas. Mas a paz durou pouco. Seguiram-se a quinta (1574-1576), a sexta (15761577), a sétima (1579-1580) e finalmente a oitava guerra (1585-1598), esta última com a duração de 13 anos, a mais morosa e determinante. É que, por morte de Carlos IX (1574), o seu irmão Henrique, rei da Polónia, regressou apressadamente de tão desinteressantes paragens para tomar o desejado trono deixado vago. E há agora dois Henriques III, o de França, católico, e o cunhado, de Navarra, que retornara ao protestantismo. Mantêm-se amigos, apesar das diferenças religiosas, o que suscita desconfianças quer da população de Paris quer dos senhores feudais católicos, liderados uma vez mais pela família Guise. Na verdade, Henrique III de França sempre manifestara uma certa simpatia pelos reformadores e pela causa protestante, o que acabou por provocar uma onda de revolta. É fundada a Santa Liga Católica, com o propósito de dominar o poder e liquidar o protestantismo, e Henrique III, inseguro, para manter o trono, resolveu declarar guerra ao outro Henrique III, o seu cunhado e amigo, rei de Navarra. Foi o início desta oitava guerra. A Santa Liga Católica ocupou várias cidades de administração huguenote e foi impondo cada vez mais exigências ao rei, que acabou por se sentir traído, compreendendo que a Liga era afinal o seu principal inimigo. A sua única saída foi pedir ajuda aos príncipes protestantes alemães e à rainha
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Isabel de Inglaterra, mas a sorte das armas foi-lhe duplamente desfavorável. O seu exército é desbaratado pelo exército de Henrique III de Navarra na Batalha de Coutras, a leste de Bordeaux, enquanto o duque de Guise derrota as tropas alemãs em Auneau, a sudoeste de Paris, e entra triunfalmente em Paris, tomando o poder (1588). Henrique III foge e não lhe resta outra solução senão aliarse aos huguenotes e ao cunhado, Henrique III de Navarra, com quem de imediato se reconcilia. Os huguenotes detinham ainda importantes posições em diversas cidades, predominantemente na costa ocidental e no sul. Henrique III, que ainda era rei de França manda assassinar os dois chefes máximos do partido católico, o duque de Guise, que também era Henrique, e o seu irmão o cardeal Lorraine, mas pouco depois é assassinado por um monge, e o outro Henrique, o III de Navarra, assume-se como rei de França, Henrique IV, o primeiro e último monarca protestante deste país (1588 – meses antes tinha sido destroçada a Armada Invencível). Esta fase da guerra ficou conhecida como a Guerra dos Três Henriques. Henrique IV cerca Paris, e inúmeras batalhas se travam contra a Liga e contra os exércitos invasores de Filipe II e do duque da Sabóia, que apoiam a facção católica, mas as tropas do novo rei ganham sempre. Só Paris, cercada e faminta, não dava sinais de rendição. Mas sem a capital como é que o rei podia ter credibilidade? Só havia uma solução, e Henrique IV tomou-a. Lá pensou que isto de religiões é para tolos e o que é preciso é ser-se prático, e mudou pela terceira vez de credo. Terá proferido a seguinte frase: «Paris vale bem uma missa» e reconverteu-se ao catolicismo (1593). Pouco depois entrou em Paris, que o recebeu com grande entusiasmo. Era agora rei tolerado por ambas as partes e temido pela sua invencibilidade, mas além de Paris em pouco mais reinava. A situação da França era anárquica, com conflitos intermináveis, batalhas, cercos, saques, destruição de igrejas, matanças. O período seguinte é designado pelos historiadores por Conquista de França (1594-1598). As tropas reais desbarataram o que restava da Liga, expulsaram espanhóis e alemães, e por onde o rei passava, todos lhe juravam fidelidade, nobres, bispos e cardeais, e os huguenotes, embora desconfiados, acabam por aceitar a lealdade à coroa. E a guerra terminou com o Tratado de Paz de Vervins, a norte de Reims, junto da fronteira belga, com a Espanha, e com o Édito de Nantes, o édito de tolerância que reconhecia aos protestantes a liberdade de culto e direitos políticos, que lhes permitiam ser a autoridade local onde fossem maioritários. E, pacificada, a França conheceu nas décadas que se seguiram um enorme desenvolvimento em todas as áreas, tornando-se a primeira potência europeia.
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Mas, numa época em que rareiam as mortes por causas naturais, Henrique IV não podia fugir à regra. É apunhalado por um católico fanático (1610), julga-se que a mando da nova organização que emerge do Concílio de Trento, a Companhia de Jesus. Sucede-lhe o primogénito, Luís XIII, com nove anos apenas. Dez anos depois temos nova guerra contra os protestantes (1620). O rei não podia permitir um estado dentro do estado, era tempo de acabar com a autonomia dos últimos redutos calvinistas. O cardeal Richelieu, agora o senhor absoluto de França, aproveitou a guerra entre os principados alemães, a primeira fase da Guerra dos Trinta Anos e que mais adiante abordaremos, e caiu com inusitada violência sobre as praças huguenotes que ainda persistiam. Uma a uma, foram caindo. Foi particularmente dramático o cerco e a conquista de La Rochelle (1627), a capital dos huguenotes. A guerra terminou em 1629 com a Paz de Alais, a nordeste de Marselha, que permitia a liberdade de culto aos calvinistas, mas que lhes retirava os direitos políticos. O sucessor, Luís XIV, subiu ao trono com cinco anos em 1643. Sua mãe, Ana da Áustria, tornou-se regente e escolheu o cardeal Mazarino para governar. Mais tarde, o Rei-Sol decidiu acabar definitivamente com os calvinistas em França, cujo número e influência tinham decrescido significativamente. Revogou o Édito de Nantes e decretou o de Fontainebleau, a sul de Paris, (1685), impondo aos protestantes ou a conversão ao catolicismo ou o exílio. Muitos emigram para a Alemanha, Holanda, Inglaterra e Suíça. Da Holanda partem mais tarde para a África do Sul (Bóeres) e para a América. E a França é a grande potência europeia de então, não só militar mas com influência determinante nos planos cultural, artístico, filosófico e científico. Sendo o francês a língua falada em todas as cortes, a França acabou por se tornar o principal guardião europeu da Igreja Católica Apostólica Romana. Não será atrevimento especular sobre qual teria sido o futuro deste culto se na noite de S. Bartolomeu os grandes de França não tivessem sido exterminados com mais umas dezenas de milhares, sem dúvida os espíritos mais lúcidos da época. Provavelmente, o rei protestante, Henrique IV, não teria abjurado. Provavelmente, a França teria seguido o rumo dos outros países europeus mais desenvolvidos desligando-se da dependência papal. Mas isto não passa de uma especulação.
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CAPÍTULO XXVI
A CONTRA-REFORMA
É
, assim, que nos finais do século XVI a Igreja de Roma atinge a sua menor expressão de sempre em termos territoriais. Vimos como a França a salvou de um descalabro maior. A França que ao longo da História tantas dores de cabeça lhe dera e que muitas mais lhe iria dar, como veremos. Além deste grande país e de parte da Itália e da Alemanha, ainda pejadas de hereges, reformadores e judeus, Roma contava agora apenas com a fidelidade de países periféricos e mais atrasados, Portugal, Espanha, Irlanda, Polónia e Hungria. A partir desta época, a expansão do catolicismo deveu-se à colonização latina das Américas, à emigração maciça de irlandeses e italianos para os actuais EUA e à colonização da África por portugueses, franceses e belgas. Na Ásia, com excepção das Filipinas, antiga colónia espanhola, o catolicismo poucas raízes criou. O CONCÍLIO DE TRENTO O concílio ecuménico, tantas vezes reclamado por Carlos V, veio finalmente a realizar-se em Trento, a noroeste de Veneza, iniciando-se os trabalhos a 13 de Dezembro de 1545. Mas só compareceram 31 padres, além dos três emissários do papa. Ninguém podia imaginar que viria a ser um acontecimento tão marcante nos destinos da Igreja Católica.
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Logo de início, duas sensibilidades se opuseram, a dos partidários de Carlos V, para quem o concílio deveria ir ao encontro das posições dos protestantes, procurando consensos e tendo como objectivo final a reunificação da cristandade, e a dos partidários do papa, que sustentavam que o que era prioritário eram as questões dogmáticas que os reformadores punham em causa. Venceu a posição papista. Havia portanto que confirmar os princípios tradicionais da Igreja e repudiar as novas concepções relativas à graça, à fé, à justificação, à interpretação das Escrituras e à desvalorização dos . A desejada união só seria possível pela renúncia dos reformadores às suas inovações heréticas. Estes nem sequer tinham sido convocados para o concílio, o que muito contrariara o imperador. Mas aos pouco iam chegando ao concílio os mais famosos teólogos católicos, quase todos italianos, sempre em maioria, e alguns espanhóis, passando a contar com mais de uma centena de participantes, dois anos depois da abertura, entre os quais 64 bispos e sete superiores de ordens monásticas. E assim foi confirmada a orientação tradicional da Igreja relativa às Escrituras, à graça, à fé, ao pecado original, aos sacramentos e à justificação. Mas os trabalhos tiveram a sua primeira grande interrupção em princípios de 47. O teatro de guerra entre as hostes dos príncipes alemães e as do imperador estava ali bem perto, e a ameaça de a cidade ser envolvida aconselhou a transferência do concílio para Bolonha, mais ao sul, o que ainda mais irritou Carlos V. E os trabalhos prosseguiram. Entretanto, o papa Paulo III concedera ao seu filho Pierluigi os ducados de Parma e de Piacenza que pertenciam ao Estado Pontifício. Na verdade era Pierluigi quem governava o papado e foi por seu intermédio que foram retiradas a Carlos V as tropas papais e o apoio financeiro, necessários ao esforço de guerra contra os protestantes. E a ingratidão foi ainda mais longe. O papado aliou-se ao recém-coroado Henrique II de França, que, de imediato, abriu hostilidades contra o perplexo imperador, que perdeu definitivamente as estribeiras. Colocou na sua agenda um novo Sacco di Roma, mal terminasse o ajuste de contas com os príncipes rebeldes e, para adiantar serviço, mandou assassinar o filho do papa (Setembro de 47), que por sua vez ficou possesso. A guerra era inevitável, e em tempo de contar espingardas não há cá concílios para ninguém. E este foi suspenso pela segunda vez. Mas tudo acabou em bem. Paulo III, velho e doente, e de nada lhe tendo servido o sangue fresco de virgem e a mama, não resistiu a tão fortes emoções e entregou a alma ao Criador (10-11-49). Três meses depois, foi eleito Júlio III, que ficou a ver como paravam as modas, isto é, qual a sorte das armas lá mais para o Norte.
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CAPÍTULO XXVI
Carlos V venceu em toda a linha franceses e alemães e não era homem para falsas ameaças. Que outro remédio senão satisfazer todas as exigências do invencível imperador? E o concílio recomeçou em Trento a 1 de Maio de 1551, sendo convocados conciliares de todo o mundo cristão do Ocidente e... os protestantes. O número de presentes foi no início reduzidíssimo, mas, depois, a conta-gotas, outros conciliares foram chegando, designadamente germânicos. Em Janeiro do ano seguinte apresentou-se uma numerosa delegação de luteranos oriundos de várias cidades alemãs. Como vimos, tinham sido já aprovadas diversas matérias. Ora os reformadores exigiram que todas as decisões relativas à Fé fossem anuladas e rediscutidas apenas à luz das Sagradas Escrituras. Por outro lado, o concílio deveria sobrepor-se ao papa e para tanto os bispos católicos tinham de renunciar ao seu juramento de fidelidade, não podendo os trabalhos ser dirigidos nem pelo papa nem pelos seus emissários. Claro que os papistas não aceitaram as imposições, transformando-se o concílio numa batalha verbal a que o papa pôs termo. Foi a terceira e mais longa interrupção. Em Março de 1555, Júlio III morreu e meses depois o mesmo aconteceu ao seu sucessor Marcelo II. Carlos V desiste, concede aos concidadãos alemães a liberdade de culto pelo Acordo de Augsburgo, a oeste de Munique, (1555) e, pesaroso e desiludido, retira-se da vida política activa. Era então papa Pio IV quando em 1562 o concílio reiniciou os seus trabalhos. Havia ainda diversas matérias por discutir, como a ordenação dos sacerdotes, o Purgatório, as indulgências, a veneração de santos, relíquias e imagens e o matrimónio, temas que pela sua delicadeza tinham ficado para o fim. Em Dezembro de 1563, o concílio deu por terminados os trabalhos com a presença de 199 bispos, sete abades e sete gerais de ordens religiosas. No campo doutrinário, tudo ficou praticamente na mesma. Algumas questões que suscitavam dúvidas foram aclaradas, como as relativas à justificação e à interpretação das Escrituras, já citadas. A única inovação foi em relação ao matrimónio, que, de futuro, passou a ser considerado nulo e ilegítimo se não fosse celebrado por um pároco e na presença de duas testemunhas. Em Janeiro do ano seguinte, todos os decretos no concílio foram homologados pelo papa Pio IV. PIO V A secular Igreja Católica Apostólica Romana tinha batido no fundo e alastrava nas suas hostes um desolador espírito de desalento e resignação. A dissolução de costumes, as negociatas, a arrogância, a prepotência e as ameaças dos eclesiásticos, o escandaloso nepotismo a todos os níveis tinham sido abertamente postos a nu pelos austeros pregadores protestantes,
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e as populações, naturalmente, pendiam para o seu lado, pois não exigiam nem dízimo, nem confissões, nem missa todos os domingos. Muita gente assim pensava: eles não deixam de ter uma certa razão; o que está a acontecer é desígnio do Senhor; ao menos são casados, não se metem com as nossas mulheres; tanto me faz este ou aquele credo, quero é que me deixem em paz (só na região do Palatinado, a oeste de Francoforte, a religião oficial tinha mudado seis vezes). Dentro da Igreja, os espíritos mais lúcidos iam tomando consciência de que só com fogueiras e excomunhões não se chegava a lado nenhum. Eram necessárias medidas drásticas e urgentes ou lá se acabava a freguesia. Em 1566 foi eleito papa Pio V, o homem certo no lugar certo. Tinha sido guardador de rebanhos no Norte da Itália até aos 14 anos, ingressando então nos dominicanos. Depois teve uma carreira eclesiástica brilhante – comissário-geral da Inquisição Romana, inquisidor-geral e por fim o mais elevado cargo da instituição, grande inquisidor da Igreja Romana. Apesar de nada de novo ter saído do concílio, a verdade é que nos anos que se seguiram se assiste, com Pio V, a um novo fôlego na Igreja de Roma. É a partir do seu pontificado de seis anos que pela primeira vez se definem objectivos e se criam mecanismos para os concretizar. Os papas que se seguiram foram obstinados continuadores do seu pensamento e acção. Não havia que olhar a meios, era indispensável mobilizar todos os recursos para salvar o que restava do moribundo catolicismo. O primeiro objectivo foi transformar a hierarquia sacerdotal numa máquina bem oleada, coesa, disciplinada, obediente, não opinativa e com um comando único, forte e determinado. A primeira medida prática foi arrumar a própria casa, começando pelo Colégio Cardinalício. Destituiu os cardeais nepóticos e nomeou homens da sua confiança, com prestígio e competência. Seguiram-se bispos e arcebispos. Em Milão era arcebispo Carlos Borromeu, sobrinho do papa Pio IV, que lhe oferecera aquele arcebispado aos 22 anos. Mas Borromeu já se havia mostrado um ardente zelador da Contra-Reforma católica, e Pio V manteve-o no lugar. São ambos santos da Igreja. Depois remodelou a cúria e fundou diversas congregações de cardeais, uma para a divulgação da Fé, outra para aconselhar e vigiar os bispos. Promoveu a realização de inspecções em todas as dioceses, com rigorosa severidade, e combateu energicamente a simonia, o nepotismo e o concubinato. Claro que lhe mereceu particular atenção a Congregação do Santo Ofício da Inquisição, reorganizada e já activada pelos seus antecessores e de que ele, como supremo magistrado, tinha sido incansável dinamizador. Para dotar o corpo sacerdotal de material incontroverso elaborou novo catecismo, novo breviário e novo missal, que permitiram uniformizar a informação doutrinária e os procedimentos de leigos e eclesiásticos.
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CAPÍTULO XXVI
O segundo objectivo foi recuperar o terreno perdido, reganhando a influência e o esplendor de tempos passados. Para tanto, era necessário actuar em três frentes. A leste, suster o avanço islâmico; nos reinos onde o poder estivesse em mãos católicas, erradicar as ameaçadoras heresias judaica e protestante; e, nos estados protestantes, recorrer se necessário à guerra para os recuperar para o catolicismo. O terceiro objectivo era aproveitar o domínio colonial dos ibéricos para evangelizar as populações submetidas ou converter soberanos pagãos dos grandes estados asiáticos. Mas, para levar a cabo tão ambiciosos projectos, o papado não podia contar com os dois exércitos da casa, o propriamente dito e o corpo sacerdotal. O primeiro, composto por mercenários estrangeiros, revelara-se um peso morto, caro e inoperante. Os mercenários serviam quem melhor lhes pagasse e estavam sempre mais disponíveis para saques e violações do que para enfrentar exércitos a sério, e os oficiais, a maior parte suíços, poucas garantias ofereciam de fidelidade. Mas rei sem soldados não é nada, e Pio V bem o sabia. Dedicou a maior atenção à reorganização e modernização do exército pontifício, que viria a desempenhar um papel crucial nas guerras que se avizinhavam. A sua primeira intervenção foi contra os huguenotes no Sul da França. Quanto ao exército sacerdotal, por muito disciplinado e coeso, não estava à altura do momento. Acomodado, pouco inventivo, impregnado de uma cultura passadista, por vezes derrotista, e ainda por cima assoberbado de tarefas paroquiais, era indispensável para manter as ovelhas no redil, mas não para outros voos. Quanto aos monges, cada vez mais metidos nos conventos e mosteiros em infindáveis meditações e orações, também não se podia contar com eles. Já lá ia o tempo dos monges guerreiros. Era urgente contar com um corpo sacerdotal de fidelidade absoluta, aguerrido, culto, com argúcia diplomática, treinado para as novas tarefas, não subordinado à cadeia de comando episcopal, mas com hierarquia própria, flexível, dependente directamente de Roma. A recém-criada Companhia de Jesus foi o instrumento encontrado para tal desígnio, decisiva no ambicioso projecto que ficou na História como a Contra-Reforma ou, para os eruditos católicos, como o movimento de renovação da Igreja. E, levando à prática o seu radicalismo, Pio V expulsou os judeus do Estado Pontifício, sendo secundado pelo arcebispo Borromeu em Milão. Exortou os suseranos seus seguidores a fazerem o mesmo e a entregarem-lhe as altas personalidades dos seus reinos de comportamento religioso duvidoso para serem julgadas pelo Tribunal do Santo Ofício, o que aconteceu a muitos. Vimos como «destronou» e excomungou Isabel I de Inglaterra, talvez o único erro estratégico do seu curto pontificado, pois só agravou a situação dos católicos ingleses.
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Mas o maior feito de Pio V foi ter conseguido aglutinar forças navais que derrotaram os turcos em Lepanto, acontecimento que pela sua repercussão merece algumas linhas.
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CAPÍTULO XXVII
O RECUO DO ISLÃO A ORIENTE
A BATALHA DE LEPANTO
S
abemos que as pequenas e as grandes batalhas, os pequenos e os grandes conflitos em pouco ou nada influenciaram o curso da História. Esta segue o seu rumo independentemente de quem ganhou ou perdeu tal ou tal batalha. O tempo encarrega-se de corrigir os passageiros e acidentais desvios de que se ocupa a História. Houve no entanto acontecimentos históricos, muitas vezes ditados pelo acaso, que nos permitem especular se o desfecho não poderia ter sido outro. Se, por exemplo, Filipe II com a sua Armada Invencível tivesse conquistado a Inglaterra, parece-nos aceitável afirmar que por lá não ficaria muito tempo. Cedo ou tarde, os ingleses haveriam de se desembaraçar do ocupante. Mas talvez o mesmo não possa dizer-se se outro tivesse sido o desfecho da Batalha de Lepanto. Chipre era o último bastião cristão no Mediterrâneo Oriental quando, em 1571, foi tomado pelos turcos e a sua guarnição veneziana chacinada. Pouco depois, as hostes de Selim ocuparam a Hungria e a Áustria e cercaram Viena. Nada as detinha. Com a queda de Chipre acabavam-se os portos seguros no Mediterrâneo Oriental e pareciam estar definitivamente cortadas as vias comerciais com
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o Oriente. Só Famagusta, porto na costa oriental da ilha e a capital de então, cercada e com o destino marcado, resistia ainda. Mas o domínio turco no Mediterrâneo não se devia unicamente à sua poderosa e invencível esquadra. Este mar estava infestado de piratas barbarescos, tributários do sultão, que este encorajava e protegia. Dispunham de portos de abrigo desde o Adriático até à costa de Marrocos, e a pirataria não só dificultava a navegação comercial e a pesca, mas também fazia devastadoras incursões nas povoações ribeirinhas, saqueando e escravizando as populações. É, pois, compreensível que tivesse sido enorme o entusiasmo com que foi recebida a notícia de mais uma cruzada contra o turco e como, num curtíssimo espaço de tempo, começou a tomar forma o apelo do doge de Veneza a Pio V, de imediato secundado por Filipe II. Por todo o lado se construíam e reparavam galeras de guerra e se aceleravam os preparativos de tão audaciosa empresa, não faltando generosos financiadores. Sob os auspícios do papa foi criada a Santa Liga, que permitiu reunir mais de 200 galeras, assim distribuídas: de Barcelona 14, do Papado 12, de Veneza 108 e 6 galeaças (galera de grandes dimensões e grande poder de fogo), de Génova 24, de Nápoles 41, do ducado da Sabóia 3, e de Malta 3, além de numerosas embarcações de apoio. Os homens de armas seriam uns 30.000; marinheiros, uns 13.000, e remadores, à volta de 45.000. Nos primeiros dias de Outubro do mesmo ano, 1571, esta poderosa esquadra sob o comando de João da Áustria, filho ilegítimo de Carlos V, zarpou de Messina na Sicília ao encontro da armada turca. Pelo caminho soube-se da queda de Famagusta e que o seu governador, Marco Bragadino, fora esfolado vivo, e a sua pele empalhada percorrera triunfalmente as ruas da cidade, episódio que foi explorado para exaltar a ira contra o infiel. Os otomanos esperaram a frota cristã em ordem de batalha no estreito de Lepanto, entre a península do Peloponeso e a Grécia continental, contando com a vantagem de terem um número muito superior de navios de guerra, perto de 300. Mas a sorte da batalha foi-lhes desfavorável. Depois de alguns êxitos nas alas cristãs, a formação central turca não resistiu ao ímpeto das gigantescas galeaças venezianas, tendo o comandante Ali Paxá sido morto no meio de indescritível carnificina. O seu cadáver foi arrastado até D. João, que o mandou decapitar, para que a cabeça, na ponta de uma lança, por todos fosse avistada. A alegria foi esfuziante entre os cristãos, enquanto o desalento e a desorientação se apoderaram das hostes muçulmanas, tendo contribuído para uma derrota demolidora ao fim de quatro horas de sangrento combate. Foram incendiadas e afundadas 50 galeras turcas, e 120 apresadas, conseguindo as restantes fugir. Do lado cristão apenas se perderam 12 galeras, e dos navios turcos apresados foram libertos 15.000 remadores escravos cristãos.
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CAPÍTULO XXVII
Os cronistas da época apontam para 8000 cristãos mortos e de 25.000 a 40.000 turcos. Mas estes números só dizem respeito aos combatentes e aos marinheiros, omitem os remadores. Miguel Cervantes, o autor de D. Quixote, e que participou na batalha como soldado, sobreviveu, apesar de atingido por duas vezes no peito e numa mão. Para ilustrar a crueldade destes tempos, detenhamo-nos nos seguintes apartes: as galeras eram impulsionadas a remo e à vela. Em batalha, as velas eram alvo fácil da artilharia inimiga, sendo arriadas, e a manobra dependia da resistência e destreza dos remadores. Estes eram ou cativos ou escravos, marcados a ferro e acorrentados à embarcação, não podendo libertar-se em caso de afundamento ou incêndio. Eram portanto os mais interessados no bom êxito da peleja, êxito que acarretava o infortúnio dos seus, uma vez que a maior parte dos escravos dos cristãos era muçulmana, e a maior parte dos escravos dos turcos era cristã. Ora só a galera maltesa Santa Maria da Vitória, que nem era das maiores mas cujos pormenores de construção se conhecem minuciosamente, contava com 360 remadores, o que permite estimar que pereceram queimados e afogados perto de 20.000 cativos. João da Áustria prometeu a liberdade aos remadores em caso de vitória e, fez mais, ordenou que lhes fossem retiradas as grilhetas se a galera estivesse ameaçada de abordagem. Não lhes eram fornecidas nem armas brancas nem de fogo, apenas cacetes e chuços, mas, numa luta corpo a corpo, imagine-se o imenso poder de reserva que estes infelizes constituíram, presos aos bancos sabe-se lá há quantos anos. A Batalha de Lepanto, o mais mortífero confronto entre gentes de diferentes credos, pôs termo ao mito da invencibilidade dos turcos no mar. Aos poucos, os estados cristãos foram-se assenhoreando do Mediterrâneo. Mas Chipre só foi recuperada por cristãos em 1878, mas anglicanos e ortodoxos. Foi também a última grande batalha naval entre navios de guerra a remos. O CERCO DE VIENA Já em 1529 os exércitos turcos se tinham aproximado perigosamente de Viena de Áustria, sendo repelidos pelas hostes de Carlos V. Em 1683, um século depois da Batalha de Lepanto, invadiram a Hungria e cercaram aquela cidade com um exército de 80.000 homens e outros tantos auxiliares, comandados pelo grão-vizir Kara Mustafá. Os Habsburgos, completamente falidos, não puderam reunir mais de 5000 defensores, apenas lhes restando pedir um angustiante auxílio aos reis cristãos e ao papa.
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Viena era defendida por um profundo fosso que a circundava, murado na vertente interior, e os turcos que conheciam bem o plano defensivo da cidade não tinham pressa. Foram cavando trincheiras e galerias, acabando ao fim de nove semanas, e depois de sangrentos combates, por alcançar uma larga extensão da vala. Faltava-lhes apenas minar a muralha interior. Os apavorados austríacos não tinham qualquer possibilidade de resistir, tanto mais que já haviam perdido metade dos defensores. A população da cidade abria valas e levantava barricadas nas ruas. Mas nesse momento crítico chegaram numerosos reforços de vários países cristãos, entre os quais o rei da Polónia, João Sobieski, que já tinha vencido o exército turco. Estes, surpreendidos no seu acampamento, não tiveram tempo de se reorganizar e sofreram pesadas baixas. O próprio Mustafá não se encontrava no campo de batalha e de nada lhe valeu o aviso do que estava a acontecer. Centenas de sapadores foram chacinados, à medida que saíam das galerias. No dia seguinte, o ímpeto dos cristãos pôs em debandada o que restava das hostes turcas, que procuraram refúgio na fronteira húngara. Foram perseguidos e, pouco depois, grande parte da Hungria voltou à posse da Casa de Áustria. E pela segunda vez foi a enérgica diplomacia de um papa, Inocêncio XI (1676-1689), que permitiu unir esforços contra o perigo muçulmano na Europa, afastando definitivamente as aspirações otomanas de submeter o que ainda lhe faltava neste continente.
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CAPÍTULO XXIII
A INQUISIÇÃO
N
ão vamos gastar muita tinta sobre este dramático tema que tanto ensombrou a história do cristianismo, pois é por de mais conhecido, não faltando literatura acerca da matéria. Julgamos contudo pertinentes as seguintes considerações: A primeira é sem dúvida em torno da origem da Inquisição, que há séculos divide estudiosos e historiadores. Sem entrarmos nesta contenda, o que nos parece essencial é apontar a intolerância religiosa como característica intrínseca do monoteísmo. O surgimento de práticas inquisitoriais coincide com o advento do monoteísmo. Encontramos já esta intolerância nos hebreus, que se consideravam o povo eleito, e de que tantos exemplos da mais cruel intolerância a Bíblia nos oferece. Depois, assume as proporções que conhecemos quando outras religiões monoteístas se expandiram e se fundiram com o poder temporal, os cristianismos primitivos e mediaval, os islamismos, o catolicismo e os protestantismos. Depois de Jesus, a primeira vítima terá sido Estêvão, condenado pelo Sinédrio, o Tribunal Judaico, à lapidação por ter abandonado o culto judaico (35). Mas, dois anos depois de o cristianismo ter sido decretado a religião oficial e exclusiva do Império Romano, Prisciliano e os seus companheiros são julgados e decapitados por razões semelhantes (385).
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Lembremos que Agostinho de Hipona (St.º Agostinho, 354-430) já advogava o uso de meios físicos coercivos como último recurso para trazer os ímpios à verdadeira luz, e Tomás de Aquino (1225-1274) defendeu a legitimidade da pena de morte para assegurar a manutenção da ordem pública, designadamente contra heréticos Dir-se-á que também os cristãos foram perseguidos e condenados pelos romanos, fazendo crer que também os pagãos perseguiam e condenavam por motivos religiosos. Nada mais falso. Os romanos, tal como outros povos antigos, aceitavam com toda a naturalidade as diferenças religiosas dos outros, mesmo dos povos submetidos, desde que estes também respeitassem a sua religião. Quando anexaram a Gália, o Egipto, a Palestina, a Ibéria e tantos outros territórios, os romanos não impuseram a sua religião e os seus deuses aos subjugados. Na Ibéria, o culto do deus local Endovélico permaneceu durante todo o domínio romano. Na Palestina, as autoridades romanas tinham as melhores relações com a hierarquia sacerdotal judaica. Foi por pressão desta que Jesus foi levado ao tribunal romano, que o absolveu, pois não encontrou qualquer motivo de condenação, que só veio a ocorrer para pôr termo aos motins que os sacerdotes fomentavam (lavar as mãos como Pilatos). As perseguições aos cristãos não tiveram cariz religioso, mas sim político. Na verdade, os cristãos não aceitavam a essência divina do imperador, legitimadora do seu poder, e as suas concepções de igualdade punham em causa a ordem social. Foram perseguidos por serem agitadores e subversivos e não por serem seguidores de uma determinada religião entre tantas outras, como a judaica, que pululavam na grande urbe. A verdade é que a liberdade religiosa, tão penosamente recuperada, hoje uma das pedras basilares da Carta dos Direitos Humanos, era aceite com toda a naturalidade até há 2000 anos. A história conta-nos que foi Inocêncio III quem criou o primeiro corpo especial de inquisidores (1213); que Gregório IX e o imperador Barba Roxa decretaram uma lei que obrigava as autoridades a executar os hereges entregues pelos bispos, incorrendo o tribunal na suspeita de heresia se se recusasse a condená-los (1224); que o Tribunal da Inquisição se deve a Gregório IX (1245), e que os métodos e os regulamentos foram aperfeiçoados pelos seus sucessores e aprovados em concílios. Mas nada mais se fez do que institucionalizar e legalizar uma prática velha de 1000 anos. Passou a ter enquadramento jurídico espiar, prender, obter denúncias ou confissões através da tortura, acusar, julgar e condenar aqueles que perfilhavam orientações religiosas diferentes. O termo Inquisição há muito que é associado a esta cruel intolerância religiosa do tronco comum cristão e muito em particular do ramo romano após a Reforma.
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CAPÍTULO XXVIII
Em segundo lugar, nunca é de mais desmistificar as tentativas de branqueamento da Inquisição, em particular no que respeita à responsabilização da Igreja e à dimensão do drama, tão comum na literatura católica. Pretende-se passar a mensagem de que a Igreja reconhece que houve excessos, mas que estes se explicam pelos tempos conturbados que se viviam, que a tortura era prática normal da justiça civil e que houve momentos em que estava em causa a vida ou a morte da própria Igreja. Reconhece igualmente que também houve maus papas, fanáticos, desviados dos ensinamentos de Jesus, mas que foi coisa passageira e não a regra. Os bons cristãos são aconselhados a repudiar os aviltantes exageros dos inimigos da Fé. Fica por explicar como é que esses infalíveis maus papas se sentaram no trono de S. Pedro, talvez por distracção do Espírito Santo, e o porquê da santificação do grande inquisidor Pio V, de Domingos de Gusmão (S. Domingos) e de tantos outros torturadores. Vejamos algumas ideias que se pretendem passar: «A Inquisição foi fruto da acção perversa de papas fanáticos como Paulo III (1542), que até cardeais perseguiu. O próprio Inácio de Loyola tremeu perante Paulo IV (1555)»; «os inquisidores apenas alertavam o poder régio, e era o seu braço secular que prendia, julgava e condenava»; «a Inquisição espanhola não se pode confundir com a papal, pois era uma instituição do Estado»; «as condenações e as execuções tanto se verificaram entre católicos como entre protestantes»; «os dados numéricos acerca do número de vítimas raiam o fantástico»; «se Maria Tudor foi sanguinária, Isabel I não lhe ficou atrás»; «católicos e protestantes não se distinguem em nada na perseguição e queima de bruxas». Pretender igualar o que foi a Inquisição Católica, quando dominou o poder através dos beatos suseranos que manipulava, com os não menos deploráveis actos de cruel intolerância perpetrados por seguidores de outros cultos cristãos não faz qualquer sentido. É incomparável, em termos de dimensão, o número de católicos e anabaptistas condenados à fogueira na segunda metade do século XVI, com as dezenas de milhares de perseguidos e sentenciados pela Inquisição naquele século e nos que se seguiram. Guy Fawkes, o fervoroso católico, também foi executado. Pois foi. Mas porque planeava lançar pelos ares o rei e todo o Parlamento. Mas foi enforcado e assado depois. Quanto à prática medieval de queimar bruxas, é certo que ela se manteve e mesmo se exacerbou nos diversos cultos protestantes até finais do século XVIII, calculando-se em cerca de 50.000 o número de mulheres queimadas, 25.000 só na Alemanha católica e protestante, enquanto nos países católicos onde funcionava a Inquisição este número não terá excedido as 100. Mas não façamos confusão. Estas bárbaras condenações radicavam no terror que as pobres mulheres, possuídas pelo demónio, incutiam nas ignoran-
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tes populações, e na crença de que só o fogo lhes libertaria a alma. Não porque professassem uma religião diferente. O mesmo destino tiveram homossexuais, bígamos e adúlteros, para não falar nas populações nativas dizimadas por conquistadores protestantes, cujo comportamento histórico não pretendemos de modo algum branquear. A última condenação à morte por bruxaria na Europa foi a de Anna Goldin, queimada em Glarus, na Suíça, em 1782. Bem mais conhecida ficou a execução de vinte endemoninhados em Salém, no Massachusetts (1692). A realidade histórica mostra-nos que, nos países que adoptaram o protestantismo, houve sempre um assinalável convívio entre comunidades de religiões diferentes. O catolicismo permaneceu na Inglaterra, na Alemanha, na Holanda, nos países nórdicos, mas os cultos protestantes foram temporariamente extintos em França, na Itália e na Espanha, e o judaísmo, em Portugal e na Espanha. Igualmente ridícula é a tão propalada tese de que os clérigos se limitavam a alertar as autoridades civis para a existência de hereges, subversivos que punham em causa a ordem social de natureza divina, e que era o poder régio que os prendia, julgava e executava. E os denunciantes nada mais tinham a ver com o assunto, limitando-se a confortar os condenados com os últimos sacramentos. É verdade que esta prática foi usual durante grande parte da Idade Média, quando poder temporal e eclesiástico se confundiam, mas, em tempos bem mais recentes, e à medida que aqueles dois poderes se separavam, a Inquisição desfrutou, em várias épocas e em várias paragens, de grande ou mesmo total autonomia, com tribunais, cárceres e carrascos próprios. Que o digam João Huss, condenado e executado por um concílio, ou o dominicano Giordano Bruno, condenado à fogueira pela Inquisição italiana (1548-1600), ou Galileu (1633). Uma última questão que deve ser colocada é o porquê do ressurgimento da Inquisição, com força inusitada, naquela segunda metade do século XVI. Nos Países Baixos, os primeiros autos-de-fé foram em 1523; em França há muito que não se assistia à queima de hereges até à já citada procissão macabra (1533); na Alemanha, em 1534, em Colónia ocorreram as primeiras execuções de anabaptistas. De facto, a Inquisição foi institucionalizada para combater os cátaros, mas, extintos estes no início do século XIII, foi perdendo influência, sendo substituída pelos anteriores tribunais eclesiásticos, os mesmos que condenaram à fogueira Joana d’Arc (1431). Na sua reformulação no século XVI está bem explícito que deveria actuar onde não houvesse a possibilidade de reunir tais tribunais. Foi Paulo III quem, em 1542, reorganizou e pôs em funcionamento a «Congregação do Santo Ofício da Inquisição» (o Tribunal do Santo Ofício, na literatura católica), uma estrutura hierárquica não dependente do controlo
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episcopal, cujo cargo máximo, o de grande inquisidor da Igreja Romana, iria ser ocupado pelo futuro papa Pio V. O objectivo foi o de combater as heresias protestantes nos reinos ou nos territórios dominados por católicos. Atingiu plenamente o seu objectivo na Espanha e na Itália, menos em França, e, com a excepção da cidade de Colónia, pouca presença teve na Alemanha e noutros estados. Em Itália foi particularmente sangrenta contra os valdenses da Calábria, chacinados em 1561. Em Espanha, os núcleos calvinistas foram igualmente perseguidos a partir de 1559 e exterminados às centenas em autos-de-fé. Em Portugal, onde o movimento da Reforma não chegou, apenas se conhecem o caso de Damião de Góis e poucos mais, sentenciados por simpatias com as ideias reformadoras. Mas em Espanha e em Portugal, a Inquisição já havia sido institucionalizada como estrutura independente da eclesial, com órgãos próprios e poderes ilimitados, antes da reorganização de Paulo III. Em Espanha, por bula papal em 1481, a pedido de Isabel, a Católica, para combater judeus e mouros, datando desse mesmo ano o primeiro auto-de-fé. Ainda não tinha surgido o movimento reformador. O dominicano Torquemada, confessor de Isabel, foi nomeado grande inquisidor de Espanha em 1483, calculando-se que sob a sua batuta foram queimados 10.000. Em Portugal, a Inquisição só foi criada por bula papal em 1536, a pedido de D. João III, o Piedoso, e os primeiros autos-de-fé ocorreram em Lisboa em 1540. Foi nomeado inquisidor-geral o cardeal D. Henrique, irmão de D. João III, e futuro rei. Os cristãos-novos foram praticamente os únicos visados. É portanto pertinente colocar a seguinte questão: por que razão em Portugal, onde não havia nem protestantes nem judeus nem maometanos, a Inquisição actuou durante três séculos com tanta ferocidade sobre os convertidos, os cristãos-novos, marranos e mouriscos? Recordemos que judeus e mouros que não aceitaram a conversão ao catolicismo foram expulsos de Espanha em 1492 e de Portugal em 1496. Lembremos também a grande matança de cristãos-novos em Lisboa na Semana Santa de 1507. A populaça, instigada por dominicanos que prometiam a salvação eterna a quem acabasse com a raça dos assassinos de Cristo, perseguiu, massacrou e queimou no Rossio homens, mulheres e crianças. Calcula-se por volta de 2000 o número de vítimas. Eram tempos em que só o parecer-se judeu era coisa de loucos... Porquê então esta obsessiva insistência do monarca junto da Santa Sé para a introdução no país do Tribunal do Santo Ofício? Claro que a explicação da Igreja é óbvia. Os cristãos-novos eram suspeitos, traidores, falsos conversos, perturbadores da ordem pública que mantinham secretamente a antiga fé... No entanto, a documentação disponível permitiu aos historiadores desvendar o mistério. Nos arquivos do Vaticano estão patentes as avulta-
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díssimas doações dos cristãos-novos portugueses ao papa para o demover de aceder ao insistente pedido do Piedoso, o que de resto só protelou por três anos a tão desejada autorização. A verdadeira razão era portanto de natureza bem material. A Coroa estava à beira da falência, e o confisco dos bens dos cristãos-novos foi a solução mais fácil. De facto, o enorme esforço financeiro destinado à inútil manutenção das praças fortes, em particular no Norte de África, estava a secar a Fazenda, e os cristãos-novos constituíam a camada mais endinheirada do País, uma vez que a expulsão atingiu mais quem não pôde pagar para ficar. Muitos eram comerciantes, armadores, banqueiros, médicos, gente bem colocada na vida, uns conversos sinceros, outros, simuladores. Foi sobre uns e outros que se abateu a fúria confiscadora do monarca e do seu irmão Henrique. Os bens eram divididos entre os cofres da Inquisição e a Fazenda. Depois de espoliados os marranos ricos, a Inquisição foi-se virando para outras paragens, primeiro para os raros simpatizantes dos reformadores, depois para os simpatizantes dos iluministas e por fim para os simpatizantes do liberalismo. Por isso se lê com tanta frequência que a Inquisição foi um fenómeno complexo, onde se entrecruzaram o religioso, o político e o económico. Vejamos o destino que tiveram alguns dos mais ilustres portugueses desses tempos: Garcia de Orta (1500-1568), de ascendência judaica, era médico de D. João III, mas em 1534 embarcou com a família para a Índia para se pôr a salvo da Inquisição. Poucos anos depois, esta instalou-se em Goa, e os convertidos, falsos ou sinceros, foram severamente perseguidos. A irmã foi apanhada e queimada viva, mas Garcia conseguiu fugir, morrendo pouco depois. Em 1580, os inquisidores descobriram os seus restos mortais, queimaram-nos publicamente e lançaram as cinzas no rio Mandovi. Damião de Góis (1502-1574): o mais notável dos nossos humanistas, foi condenado a prisão perpétua e confisco dos bens (1572). Zacuto Lusitano (1575-1642): foi médico em Lisboa durante 30 anos, acabando por emigrar para Amesterdão por volta de 1625. É considerado um dos mais eminentes homens de ciência do seu tempo. Padre António Vieira (1608-1697): foi encarcerado diversas vezes pela Inquisição. António José da Silva (1705-1739): o judeu, autor de Guerras do Alecrim e da Manjerona, foi queimado com a mãe e a mulher.
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Filinto Elísio (1737-1819): poeta, humanista e precursor do romantismo, foi denunciado por proferir palavras heréticas, escapando por uma janela e, disfarçado, entrou a bordo de um navio sueco e conseguiu fugir (1778), fixando-se em Paris. Avelar Brotero (1744-1828): botânico, professor da Universidade de Coimbra e autor de Flora Portuguesa. Perseguido pela Inquisição, quis o acaso que se metesse no mesmo barco onde estava Filinto, conhecendo-se então. Em Paris foi amigo de Lamarck e de Cuvier. Bocage (1765-1805): conheceu os cárceres da Inquisição até ao fim da vida. Sem entrarmos em pormenores acerca dos métodos e das torturas, nem da responsabilidade da Inquisição no atraso social e cultural dos países ibéricos, por sobejamente conhecidos, relembramos apenas que em Portugal mais de 1000 pessoas foram mortas na fogueira, incluindo 4 feiticeiras, cerca de 10 por cento dos perseguidos; e em Espanha, o número de sentenciados foi 20 vezes superior, com 59 bruxas queimadas. A Inquisição foi abolida pelos liberais em Portugal em 1821 e em Espanha em 1834, sendo a última execução em 1826. Em Itália, um dos últimos crimes da Inquisição ocorreu em Bolonha em 1858. Os inquisidores raptaram uma criança judia de 6 anos e baptizaram-na, tendo os apelos dos pais para a devolução do filho tido grande repercussão internacional, aproveitada pelos movimentos anticlericais. Mas a «Congregação do Santo Ofício da Inquisição» chegou ao século XX. Em 1908, o papa Pio X mudou-lhe o nome para «Sagrada Congregação do Santo Ofício» (o termo Inquisição tinha uma conotação muito negativa) e em 1965 ficou também sem o «Santo Ofício», sendo rebaptizada por Paulo VI em «Congregação para a Doutrina da Fé». O seu mais alto dignitário a partir de 1981 foi o cardeal Ratzinger até ter sido eleito papa.
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m 1534, o basco Inácio de Loyola (1491-1556) e mais seis companheiros da Universidade de Paris proferiram votos de pobreza, castidade e obediência a que acrescentaram mais um, ser missionário na Terra Santa ou onde o papa entendesse. Fundaram a Societas Iesu, mas só em 1540 obtiveram a aprovação pelo papa Paulo III dos respectivos estatutos como ordem religiosa de clérigos, limitada a não mais de 60 membros. Inácio foi eleito geral da Ordem, que adoptou o nome de Companhia de Jesus, e fixou arraiais em Roma, o centro do poder católico. O objectivo inicial era servir a Deus na Terra Santa, mas tal não se concretizou, pois os tempos que se viviam não aconselhavam evangelizações por aquelas paragens. Os turcos, em guerra com Veneza e cada vez mais agressivos, dominavam a Europa Oriental e o Médio Oriente e por cá havia muito que fazer... Inácio tinha sido educado na corte e, ainda muito jovem, serviu no exército, até que um grave ferimento na defesa de Pamplona o impossibilitou de prosseguir a carreira das armas. Acabou por encontrar a sua verdadeira vocação: dedicar a vida a Deus e à defesa dos valores do catolicismo. Visitou a Terra Santa em 1522-23, estudou em Barcelona e Salamanca, onde por diversas vezes conheceu os rigores da Inquisição, que desconfiava da sua irreverência, e obteve em Paris o diploma de mestre em Filosofia e
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Teologia. Foi ordenado padre com os seus companheiros em 1537, em Veneza. Tinha 51 anos quando foi eleito o primeiro geral vitalício da Companhia de Jesus. Estas breves notas biográficas dão uma ideia da experiência ímpar que foi acumulando nas mais diversas vivências, e que, aliada a uma inteligência rara e a uma sagaz capacidade de entender a natureza humana, o elevaram ao que muitos consideram ser o grande estratego da Contra-Reforma. Foi dos primeiros a compreender que os conflitos do seu tempo não se resolviam só com violência ou medo do Inferno, e que a ancilosada Igreja Romana não estava à altura de enfrentar o devastador desafio do movimento reformador. Outros métodos, bem mais subtis, poderiam conduzir a uma maior eficácia nesta luta sem quartel. Era necessário criar uma organização autónoma e disciplinada, perseverante, imaginativa, ardilosa, e dar tempo ao tempo, uma organização que pudesse influenciar os decisores ao mais alto nível, utilizando para tanto o poder espiritual da Igreja. Por outras palavras, ser conselheiro ou, melhor ainda, confessor de reis e de gente influente. Os novos membros da Companhia eram criteriosamente escolhidos entre os mais activos e inteligentes, sem olhar nem à condição social nem à nacionalidade, submetidos a duras provas de iniciação e a uma cuidada e diversificada formação religiosa e humanista. Eram treinados para se introduzir nas cortes, nas universidades e nos meios influentes, procurando a confiança dos poderosos e a sua submissão aos desígnios da Igreja. Muitos foram preceptores de príncipes, como do nosso D. Sebastião, confessores de reis e rainhas, de nobres e diplomatas, de elementos decisivos na política dos estados. O secretismo e a obediência cega à hierarquia eram as regras de ouro, e severamente punidos os prevaricadores com castigos corporais e psicológicos. A frase de Loyola é bem elucidativa: «O branco que vejo é negro, se assim o entenderem os meus superiores». Morreu no ano em que Pio V foi eleito papa (1556). Já referimos como este inteligente papa viu na Companhia de Jesus o instrumento que lhe faltava para o seu ambicioso projecto, já que a encontrou completamente diferente da que fora criada pelos sete estudantes. Os números oficiais da Igreja falam por si. Abolida a regra dos 60, contava então a Companhia com cerca de 1000 membros. Duas décadas depois eram já 4000, no final do século XVI, 8000, e no final do século XVII, 20.000. Por morte de Inácio, o número de colégios de jesuítas não chegava aos 50, mas quando a Ordem foi extinta (1773), este número elevava-se a quase 700. Muitas universidades tinham sido entregues à Companhia, como a de Évora (1559).
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Tal como Inácio de Loyola, também Pio V compreendeu o sentido das mudanças que varriam a Europa e como as controlar. Tinha agora ao seu dispor dois instrumentos providenciais que se completavam e entreajudavam, a Inquisição renovada e a Companhia de Jesus. Já na terceira fase do Concílio de Trento (1562-63), os conciliares jesuítas se tinham destacado na intransigente defesa dos valores eternos da Igreja Católica, fazendo valer o repúdio total por qualquer compromisso doutrinário com os reformadores. Apenas foram vencidos na questão latente da infalibilidade do papa, mas voltaram à carga, três séculos depois, com total êxito, sendo este dom divino instituído no 1º Concílio do Vaticano em 1870. A tão falada renovação da Igreja, de que os jesuítas foram os principais obreiros, traduziu-se afinal no reforço da autoridade do papa e na submissão das consciências aos novos donos do saber absoluto. Voltaram as procissões faustosas, a festividade da missa e das cerimónias litúrgicas, a veneração dos santos, as peregrinações, as indulgências, aumentaram as vocações monásticas, a importância dos sacramentos e, entre estes, a mágica arma secreta – a obrigatória confissão. Simultaneamente, nos países dominados pelo catolicismo, assiste-se à mais fanática perseguição religiosa de que há memória na História. Mas, além da insinuação nas esferas do poder, três outras áreas foram desde logo privilegiadas pelos Jesuítas – a acção missionária, a obtenção de fundos próprios e o ensino. Num curtíssimo espaço de tempo, a Companhia de Jesus marcou presença nas quatro partidas do mundo. Os primeiros jesuítas missionários chegaram a Goa em 1542, a Malaca em 1545, ao Congo em 1547, a Marrocos, às Molucas e ao Ceilão em 1548, ao Brasil e ao Japão em 1549, à China em 1552, à Etiópia em 1555, ao Tibete em 1561. E por todo o lado criaram empresas para a exploração dos recursos locais. O famoso basco Francisco Xavier foi o primeiro a chegar a Goa, percorrendo depois a Indonésia, Malaca, o Japão e a China, onde morreu (a título de curiosidade, lembremos que a dois grandes e recentes hospitais na área de Lisboa foram dados os nomes de Garcia da Orta e do seu perseguidor, Francisco Xavier). A história do Brasil é marcada pela presença dos jesuítas desde a sua chegada até à expulsão da Companhia pelo Marquês de Pombal. Foi assinalável a sua acção missionária junto das populações nativas em particular no Sul do Brasil. As missões eram aldeamentos de índios que constituíam unidades de produção sob administração e jurisdição jesuítica. Eram constantes as querelas entre os jesuítas e os colonos, que necessitavam de escravizar os índios para o trabalho nas plantações, conflitos que se agudizaram quando começou a escassear a mão-de-obra africana.
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Aos jesuítas Manuel da Nóbrega e José de Anchieta se deve em parte a fundação das primeiras cidades brasileiras, Salvador, São Paulo e Rio de Janeiro. No Paraguai criaram o estado jesuítico do Paraguai, que governaram de 1609 a 1767. A sua acção foi determinante no retorno ao catolicismo de diversas comunidades na Alemanha, França, Áustria, Boémia, Suíça etc. Em França foi por pressão dos jesuítas que Luís XIV revogou o Édito de Nantes (1685), a que se seguiu a interdição de qualquer culto que não fosse o católico. Mas não cabe nestas linhas fazer a história da Companhia. Chamamos apenas a atenção para o poder destas sociedades semi-secretas religiosas que, tal como ainda hoje, exercem a sua influência subterrânea em áreas sensíveis da sociedade, como é o caso da Opus Dei e dos Evangélicos Revivalistas. Cedo a Companhia de Jesus se tornou um estado dentro de outro estado, a Igreja, como também um estado dentro dos estados nacionais. A Igreja Romana passou uma vez mais a ter duas cabeças e duas linhas hierárquicas, a do papa branco e a do papa negro dos jesuítas. Apesar dos constantes protestos de obediência da Companhia ao papa, não deixava esta de ter os seus interesses, os seus métodos, a sua própria orientação e, não menos importante, os seus recheados cofres. Foram vários os papas que, enleados nas teias da Companhia, não passaram de joguetes dos jesuítas, até porque eram estes quem financiava o Vaticano. Na primeira metade do século XVIII, e à medida que se ia impondo o despotismo iluminado como forma de governação, surgiram os primeiros conflitos entre o poder temporal e o poder jesuítico. Os iluminados estadistas, soberanos ou ministros, sentiam-se bloqueados e condicionados na condução da causa pública, sempre que as suas decisões não fossem do agrado da Companhia. Era frequente reis ou rainhas oporem-se aos seus ministros por influência dos confessores. Na política externa, esta conflitualidade era permanente. Portugal, por exemplo, por razões comerciais e estratégicas, estava muito mais interessado na velha aliança com a Inglaterra anglicana do que com a Espanha católica. A França, com a Suécia, com a Rússia e, mesmo, com o Império Turco. Os interesses nacionais nada tinham a ver com os credos predominantes neste ou naquele estado. A trágica Guerra dos 30 Anos, a última das guerras religiosas na Europa e que adiante abordaremos, terá servido de lição aos governantes. É que para a Companhia de Jesus os interesses da Igreja sobrepunham-se aos dos estados. Eram mais importantes alianças entre estados católicos sob a batuta do papa, alianças baseadas na verdadeira Fé, blocos político-militares capazes de se oporem à barbárie protestante. Nada de acordos, mesmo que apenas comerciais, com os heréticos.
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Simultaneamente, a Companhia de Jesus ia-se tornando um potentado económico. Parte considerável das suas receitas provinha de doações; outra parte, das empresas espalhadas por todo o mundo e da participação em operações bancárias e especulativas. E os privilégios de que gozavam dentro da Igreja não deixavam de suscitar a inveja das outras ordens religiosas, que não aceitavam a sua situação subalterna, tanto mais que começavam a minguar os confiscos aos cristãos-novos. E a Companhia de Jesus acabou por ser extinta. Portugal foi o primeiro país a libertar-se dos jesuítas. O Marquês de Pombal decretou a sua expulsão do Reino e colónias em 1759. Acusados de ímpios e sediciosos, foram proscritos e confiscados os seus bens. Muitos foram deportados; outros, presos e condenados. Em França, o Parlamento dissolveu a Companhia no reinado do catolicíssimo Luís XV (1764). Por toda a França multiplicavam-se os tumultos populares contra os jesuítas e depois as manifestações de júbilo. Era Carlos III rei de Espanha quando em Madrid ocorreu um grave motim popular instigado pelos jesuítas contra o ministro iluminista Esquilache, o que fez oscilar a segurança da monarquia. E tal era a força dos jesuítas em Espanha que foi necessário criar um conselho secreto para preparar com toda a minúcia um golpe rápido e fatal. Teve êxito, e os Jesuítas foram presos e expatriados em 1767. Foram igualmente banidos de Parma e de Nápoles. O papa Clemente XIV aproveitou a desagregação da Companhia e resolveu ver-se livre dela. Dissolveu-a em 1773 e apoderou-se do que pôde dos seus bens e dos vultuosos rendimentos das muitas empresas que possuía no Brasil, Antilhas, México, Índia, etc. Por ironia, na Rússia czarista, os jesuítas não foram incomodados, porque o czar ortodoxo se vangloriava de não receber ordens do papa. Tendo em conta que a Rússia era um país teocrático, onde a religião oficial era o cristianismo ortodoxo excomungado por Roma, apesar da pouca relevância histórica deste acontecimento, vale a pena retirar duas ilações. A primeira é a surpreendente presença de jesuítas naquelas paragens; a segunda, a tolerância que tal presença representava. Imagine-se se seria plausível que sacerdotes ortodoxos se saracoteassem na corte portuguesa do século XVIII... Mais tarde, Pio VII, pressionado pelos sectores mais reaccionários dentro e fora da Igreja, restaurou a Companhia de Jesus (1814). É que se viviam, uma vez mais, tempos difíceis. Ultrapassado o truculento período da Revolução Francesa e do Império Napoleónico, que tantos danos tinha causado, a restauração da velha ordem monárquica não estava isenta de perigos. Os ideais revolucionários tinham deixado sementes, e os novos inimigos da Fé eram agora
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os aguerridos e organizados liberais, determinados em aniquilar a velha ordem e em criar uma nova sociedade. Não eram reformadores crentes, mas sim revolucionários ateus e maçãos. Que saudades dos tempos em que estas rebeldias se resolviam nos campos de batalha, com fogueiras ou jogos de bastidores! O combate situava-se agora num plano bem mais adverso, o confronto de ideias, e a Igreja, carente de talentos, não estava preparada para tanto. Quem melhor que os jesuítas para liderar esta luta sem quartel? A Companhia de Jesus, uma vez restaurada, foi generosamente financiada pelos círculos ligados às classes mais elevadas e à nobreza, que, sendo ameaçadas nos seus privilégios, se reorganizaram rapidamente. Tarde de mais. Um após outro, os estados europeus e americanos iam passando para as mãos dos liberais. Proclamavam-se constituições à imagem da norte-americana e da francesa, e os novos senhores do poder, ainda por cima eleitos pelo povo, dispensavam conselheiros espirituais e confessores, desvalorizavam a dimensão espiritual da Igreja e o seu papel na sociedade. Claro que a conflitualidade entre liberais maçónicos e tradicionalistas, que perdurou nos países católicos por todo o século XIX, pouco se fez sentir nos estados protestantes. Nestes, o espírito liberal não punha em causa nem a religiosidade nem os valores tradicionais das monarquias. O liberalismo tinha-se adaptado a um e a outro. Mas nos países de predomínio católico que interesse havia agora em ser confessor de duques e marqueses apeados do poleiro? E como burro velho não aprende e é de pequenino que se torce o pepino, a prioridade das prioridades foi evitar que as novas ideias contaminassem a juventude. Era indispensável moldar as mentes dos futuros dirigentes da sociedade e, uma vez mais, dar tempo ao tempo. E a Companhia de Jesus passou a dedicar-se quase exclusivamente ao ensino a todos os níveis, dirigindo especial atenção para os jovens das classes dominantes e obtendo uma vez mais a hegemonia nesta área. Foi-se apossando dos antigos colégios, e muitos mais foram criados. Muitos mestres universitários ingressaram na Companhia de Jesus. Mas permaneceu o velho regulamento Ratio Studiorum obrigatório em todos os colégios de jesuítas e que tinha sido elaborado pelo geral Aquaviva (1593-1615), e onde se pode ler: «Os professores que forem inclinados a novidades, ou de inteligência demasiado livre, devem ser indubitavelmente excluídos do ensino». Mas o que é certo é que muitos dos dirigentes mais conservadores nos dois últimos séculos provieram de colégios de jesuítas. Esta vocação, num período histórico de tão intenso desenvolvimento em todos os campos do saber, não podia deixar de se reflectir sobre quem detinha a
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parte de leão do ensino. Muitos jesuítas foram mestres ilustres em áreas tão diversificadas como a Matemática, a Física, a Astronomia, a Botânica, a Zoologia, a Arquitectura, o Direito, a Literatura e a Música. Na verdade, parte substancial dos avanços da Humanidade ficou a dever-se, também, aos jesuítas. Mas não foi fácil a vida da Companhia no século XIX. Ao sabor das alternâncias entre períodos mais liberais e períodos mais conservadores, conheceu nos diversos estados o sabor da ingratidão, mas também do reconhecimento. Citemos apenas as datas em que voltou a ser restaurada e mais tarde banida em alguns países: Portugal – 1834 e 1910; Espanha – 1829 e 1835, 1868 e 1931; França – 1880 e 1901; na Suíça foi banida em 1847, e na Rússia em 1820; na Alemanha só foi autorizada em 1917. A ACOMODAÇÃO Os jesuítas enviados para terras do Oriente como missionários, na peugada dos conquistadores e mercadores europeus, cedo perceberam que os métodos de evangelização utilizados por portugueses e espanhóis eram totalmente ineficazes em povos com culturas superiores e religiões sofisticadas, como na Índia, na China, na Indochina e no Japão. A estúpida arrogância de dominicanos e franciscanos, com a constante ameaça da fogueira em vida e Inferno depois da morte, assim como a colagem destes incompetentes missionários à odienta força bruta dos bélicos exploradores e opressores, só acarretava a repulsa e a indiferença perante os estranhos dogmas dos recém-vindos. Os jesuítas, uma vez mais, revelaram o seu brilhantismo. A sua metodologia evangelizadora ficou na História da Igreja com o nome de acomodação. Consistia na adopção do modo de vida e de pensar das populações, respeitando os seus credos e os seus sacerdotes, sem nada lhes impor de chofre, e, aos poucos, ir cativando a confiança das populações e dos seus líderes políticos e religiosos. Por outro lado, davam preferência a populações ou reinos onde os conquistadores ainda não tivessem posto a pata. O primeiro jesuíta a acomodar-se foi Roberto Nobili (1577-1656), que em 1605 se fixou no Sul da Índia, onde levou vida ascética. Aos poucos, a sua conduta irrepreensível, aliada à sua capacidade de insinuação, permitiu ser aceite na casta dos brâmanes, a mais elevada, e reservada exclusivamente aos sacerdotes hinduístas. Aprendeu o sânscrito, língua somente conhecida destes, e, sem nunca hostilizar os seus credos e costumes litúrgicos, acabou por convencê-los de que o Evangelho era o livro sagrado que ainda lhes faltava, o quinto veda. Outros missionários jesuítas vieram para esta região da Índia seguindo o exemplo de Nobili, e foram cativando um número crescente de comuni-
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dades. Muitos brâmanes foram baptizados e passaram a pregadores desta religião híbrida, que em meados do século XVII contava já em Madurai, Extremo Sul da Índia, cerca de 40.000 fiéis. Mas o Vaticano não gostava de modernismos, e o austero papa Bento XIV proibiu os «ritos malabares» em 1742, e o cristianismo não voltaria a criar raízes por estas paragens. No Japão, os jesuítas foram bem recebidos e chegaram a ter influência junto dos senhores feudais, sempre em guerra. Passaram a controlar o comércio marítimo, e estar nas boas graças dos mandantes locais era meio caminho aberto para lhes vender as novidades vindas do Ocidente, entre as quais as preciosas armas de fogo. Em 1580 foi cedido aos jesuítas o enclave de Nagasáqui, que administraram até 1587. Mas, depois, tudo começou a correr mal. Os senhores feudais começaram a desconfiar destes estrangeiros arrogantes e a não tolerar a sua constante ingerência nas questões internas. O samurai Hideyoshi, além de lhes retirar Nagasáqui, expulsou-os, mas sem grande resultado, tal era a influência dos jesuítas entre as dezenas de milhares de convertidos, designadamente nas classes mais elevadas. Mais tarde, em 1597, chegou a Quioto uma missão de 26 franciscanos, ansiosos por retirarem aos jesuítas o próspero monopólio do Japão, e o mesmo samurai mandou-os crucificar. Os anos que se seguiram foram ainda mais difíceis, até que em 1638 foram completamente banidos no Império do Sol Nascente. Seguiram-se sangrentas perseguições aos cristãos japoneses, que acabaram finalmente por se extinguir. Na China foi o jesuíta Mateus Ricci (1552-1610) quem introduziu a acomodação. Foi astrónomo e matemático e chegou a conselheiro do imperador em Pequim, sobre quem manteve notável ascendente. Tal como no Sul da Índia, também aqui o catolicismo não foi imposto como a religião verdadeira que deveria substituir a complexa religiosidade chinesa, mas sim como uma visão diferente, uma variante da multifacetada e sincrética religião deste povo culto e religioso. No fundo, os chineses sempre acreditaram num ente criador que afinal era o Deus dos cristãos. O culto de Buda, Confúcio e Lao Tsé, assim como a veneração dos antepassados, nunca foi posto em causa, mas sim assimilado pelo cristianismo chinês. Beneficiando da grande tolerância dos chineses, à medida que as populações iam acolhendo as ideias destes sacerdotes estrangeiros, iam aprendendo o catecismo, recebendo os sacramentos, participando nos actos litúrgicos, até se tornarem católicos convictos. Os continuadores de Ricci construíram uma igreja em Pequim (1650) e obtiveram a liberdade religiosa em todo o Império em 1657, confirmada mais tarde pelo Édito de Tolerância do imperador Kang Hsi em 1692. O número de católicos chegou a 270.000.
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Mas também a acomodação na China causava engulhos ao Vaticano, sendo reprovada e mesmo interditada por vários papas, até que, em 1704, Clemente XI resolveu enviar um núncio papal para pôr a casa em ordem. A doutrina era só uma e não podia haver nem variantes, nem excepções, nem culto cristão mestiçado. Quem nomeia os bispos é o papa, e os crentes têm de respeitar os sacramentos. Perante tanta arrogância e, diríamos nós, insensatez, o estupefacto imperador mandou prender o núncio, que morreu, anos depois, no cárcere, e deu ordens para que só fosse autorizado o culto católico adaptado pelos jesuítas. Mas estes, obedientes à Santa Sé e nada podendo fazer, foram-se retirando em ordem, e o cristianismo, que chegara à China pela segunda vez, foi desaparecendo com o tempo até à sua quase total extinção. No Vietname, os jesuítas chegaram a construir numerosos mosteiros de onde irradiavam para a sua acção missionária. Ao fim de várias gerações falavam fluentemente a língua local, que passaram a utilizar e a escrever com letras latinas. Um imperador de Hué converteu-se ao catolicismo e decretou a ortografia latina oficial para todo o império. E foi, assim, que o Vietname passou a ser o único país asiático cuja escrita se faz em caracteres latinos. Mas, quanto à evangelização cristã, nada ficou. Deste modo, a acção missionária no Oriente, depois de dois séculos de tão laboriosa penetração, revelou-se totalmente infrutífera. Mais tarde, com a colonização prolongada por estados latinos, o catolicismo retornou, em particular nas Filipinas, que foi colónia espanhola até 1898, sendo actualmente a religião predominante. Outras bolsas católicas subsistem, como Goa, Timor, Indonésia e Vietname.
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CAPÍTULO XXX
A GUERRA DOS TRINTA ANOS
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Guerra dos Trinta Anos (1618-1648) foi o último grande conflito entre estados europeus em que o factor religioso foi predominante. Claro que outros factores, políticos e económicos, tiveram a sua importância e, em primeiro lugar, a ameaça do crescente poderio dos Habsburgos, cujas Casas Reais da Áustria, do Sacro Império e da Espanha se encontravam ligadas por laços familiares. Por outro lado, aliviado da pressão islâmica a leste e no Mediterrâneo, o Vaticano aspirava agora a ganhar terreno no mundo cristão desviado. Tinha agora do seu lado os mais poderosos estados continentais, a França governada por um cardeal, as fidelíssimas Espanha e Áustria, além de outros estados de menor peso, como Portugal, a Irlanda e a Polónia. Dispunha também dos sagazes jesuítas infiltrados em todos os centros de poder, peritos em jogos de bastidores e na intriga. E era necessário, acima de tudo, que os países católicos não se engolfinhassem em inúteis guerras fratricidas. Vimos como o Acordo de Augsburgo (1555) permitiu refrear a conflitualidade religiosa na Alemanha. Cada príncipe podia escolher a sua religião oficial, a católica ou a luterana, e impô-la nos seus domínios, e a grande manta de retalhos, a Alemanha, conheceu seis décadas de relativa acalmia religiosa. Mas o calvinismo ganhava terreno, e alguns príncipes adoptaram-no, o que não estava previsto no acordo que só incluía católicos e luteranos. Por
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outro lado, muitos príncipes católicos tinham jesuítas como seus preceptores e confessores, incutindo-lhes a ideia de que tinham a missão histórica de fazer retornar as ovelhas tresmalhadas à verdadeira Fé. Nos primeiros anos do século XVII surgiram os primeiros ataques a comunidades luteranas, com a destruição de templos, e os principados protestantes fundaram uma aliança defensiva, a União Evangélica. Os católicos responderam com a Liga Católica. Estavam criadas todas as condições para o drama que se avizinhava, a maior carnificina na Europa até às guerras do século XX. O primeiro episódio ocorreu na Boémia, maioritariamente protestante. Fernando II, um Habsburgo educado pelos jesuítas, rompeu com a tradição da eleição do rei e, com a ajuda de tropas espanholas, alemãs e papistas derrotou os opositores ao trono (1618). Decretou o catolicismo como o único credo permitido na Boémia e na Morávia, a actual República Checa. Após inúteis protestos, quando os católicos começaram a demolir igrejas protestantes, a população sublevou-se. O palácio real em Praga foi invadido, e três ministros do príncipe foram projectados janela abaixo. Estava ateado o rastilho. A União Evangélica invadiu a Boémia, destronou Fernando II e pôs no seu lugar Frederico V, eleitor do Palatinado, pequeno principado junto da fronteira francesa. A guerra alastrou por toda a Boémia e Áustria, e Viena, grande bastião dos Habsburgos, por um triz não foi tomada. Mas Frederico V era calvinista, e muitos dos aliados da União, luteranos, foram-no abandonando. A Liga Católica aproveitou esta dissensão e fez eleger o já citado Fernando II imperador do Sacro Império Romano Germânico, que logo passou a liderar a Liga Católica. E, no contra-ataque à Boémia, o exército protestante foi derrotado na Batalha da Montanha Branca, junto de Praga (1620). Os rebeldes foram condenados à morte, a Boémia foi anexada pela Áustria, o protestantismo foi proibido, e a língua checa igualmente proibida e substituída pela alemã. Depois chegou a vez de ajustar contas com Frederico V, que já tinha regressado ao seu principado. A guerra estendeu-se a outros principados alemães aliados, até que dois anos depois acabaram por ser derrotados pelo exército da Liga Católica, e o Palatinado passou para o lado católico. Receosos do crescente poderio católico na Alemanha, aliada à não menos poderosa Casa de Áustria, os príncipes protestantes, agora com luteranos e calvinistas reconciliados, pediram ajuda à Dinamarca e... por aí fora, a guerra parecia não ter fim, e o pior estava para vir. Não vamos nestas notas fazer a descrição, mesmo que muito sumária, deste conflito. Diremos apenas que contou com quarenta grandes batalhas e envolveu os seguintes estados: Áustria, Baviera, Boémia, Dinamarca-Noruega, Escócia, Espanha, França. Holanda, Inglaterra, Rússia, Sacro Império, Saxónia e Suécia.
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CAPÍTULO XXX
A verdade é que em todos os campos de batalha se enfrentavam, uma vez mais, católicos de um lado e protestantes do outro, e o ódio entre os dois credos levou aos mais selváticos massacres praticados pelos fanáticos de um campo contra o outro, não poupando as populações. À medida que a guerra se ia arrastando e consumindo os recursos dos estados beligerantes, os exércitos de mercenários pilhavam as populações para obter o seu sustento, e como também deixara de haver soldo era-lhes permitido o saque depois das vitórias. Nos primeiros anos da década de 30, a Casa de Áustria e os seus aliados estavam a levar a melhor e a consolidar o seu poder nos povos de língua germânica. Tinham afastado do solo alemão os dinamarqueses e mais tarde os suecos e impunham agora a todos os principados o Édito da Restituição, que obrigava a devolução à Igreja de todos os bens que lhe haviam sido confiscados. Mas a França, liderada pelo astuto cardeal Richelieu (de 1624 a 1642), não via com bons olhos o expansionismo da Casa de Áustria. Tinha-se limitado a instigar e a apoiar secretamente os inimigos dos Habsburgos, isto é, os principados protestantes e os estados protestantes como a Dinamarca, a Suécia e as Províncias Unidas nos Países Baixos, que se encontravam há décadas em estado de guerra contra o ocupante espanhol. Richelieu entendeu que era o momento de inverter a situação a favor da França. Aliou-se à Suécia e às Províncias Unidas e declarou guerra à Áustria e à Espanha em 1635. Era afinal uma estratégia já seguida pelos antecessores. Alianças com excomungados estrangeiros e perseguições aos excomungados da casa, os huguenotes. O papa Urbano III (1623-1644) é que não gostou de ver os grandes estados católicos a pelejar, mas o cardeal francês, que como veremos era um galicanista confesso, ignorou apelos e ameaças. Para ele, os interesses estratégicos da França estavam acima das ambições pontifícias. E agora, com católicos contra católicos, a guerra iria prolongar-se por mais treze anos com redobrada violência, perdendo o seu cunho inicial predominantemente religioso. Refira-se que a França ao declarar guerra à Espanha fomentou e auxiliou o levantamento na Catalunha e o golpe que levou à independência de Portugal (1640). Em 1648 terminaram finalmente as hostilidades com vários acordos firmados em Münster, a cidade que já tinha sido capital de Israel, e pouco mais ao norte em Osnabrück, ambas na província alemã da Vestefália, conjunto de acordos que ficou na História com o nome de Tratado de Vestefália. A Alemanha, o principal teatro da guerra, foi, uma vez mais, quem mais caro pagou. Ficou completamente destroçada e fragmentada em 350 estados que elegiam um imperador do Sacro Império cada vez mais sim-
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bólico. A sua população decrescera em 20 por cento, inúmeras povoações ficaram despovoadas, campos de cultura, abandonados, vias de comunicações e pontes, destruídas. A Espanha e a Áustria foram igualmente perdedoras. A primeira cedeu à França o Russilhão nos Pirenéus Orientais, perdeu o seu domínio sobre as rotas do Novo Mundo e foi obrigada a reconhecer a independência da Holanda, depois de oitenta anos de guerras. A segunda deixou de ser a potência hegemónica no centro da Europa, com a pressão turca sempre presente na sua fronteira oriental. Reconheceu a independência dos cantões suíços. A França de Richelieu, o cardeal estratego que tanto se aliava a protestantes como a católicos, foi a grande ganhadora, reforçando o estatuto de potência dominante na Europa. Mas o cardeal não comemorou a vitória. Entregara a alma ao Criador, seis anos antes. O Tratado de Augsburgo foi ratificado com duas alterações. Os calvinistas foram incluídos e as mudanças de credo dos soberanos deixaram de implicar a conversão dos seus súbditos. E a geografia religiosa na Europa em pouco ou nada se alterou.
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CAPÍTULO XXXI
A FRANÇA E AS DORES DE CABEÇA DA SANTA SÉ
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eferimos já as dores de cabeça que em diversos períodos históricos a França deu aos vigários de Cristo. Foram os cátaros, os papas de Avignon, os templários, os calvinistas, relembrando apenas as mais relevantes. Mas foi também a França quem lhes deu a mão salvadora em momentos de maior perigo, como com Clóvis e com a vitória católica nas guerras religiosas. A Guerra dos Trinta Anos acabara num empate religioso. No entanto, muita coisa tinha mudado, e os novos equilíbrios eram favoráveis ao Vaticano. A França mais católica que nunca tornara-se a potência dominante, relegando para segundo plano a Espanha, o Império Germânico e a Áustria, apesar de tudo, ainda nas mãos fidelíssimas da família Habsburg. Espanha e Portugal dominavam meio mundo, do México às distantes Molucas, e havia multidões para evangelizar. Aos germânicos não faltava com quem se entreterem a leste – ortodoxos mais a norte, otomanos mais a sul, e a França ficava de certo modo livre para guerrear os anglicanos, o seu inimigo predilecto a partir de então e com quem disputava já as ricas planícies do continente norte-americano. Uma vez mais, foi esta poderosa aliada, a França, quem a partir da segunda metade do século XVII mais problemas voltou a dar à Santa Sé. Vejamos:
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O JANSENISMO Cornelius Jansen (ou Jansénio) nasceu em Acquoy no sul da Holanda em 1585. Estudou nas Universidades de Utreque (Holanda) e de Lovaina (Bélgica), dois sólidos bastiões católicos, e mais tarde em Paris. Seguiu a vida eclesiástica, e cedo se interessou pelos textos atribuídos a Agostinho de Hipona e em particular à polémica deste com os pelagianos. Depois de ocupar diversos cargos docentes, foi nomeado bispo de Ypres em Flandres, na actual Bélgica, tendo falecido dois anos depois (1638). A sua obra Augustinus só veio a ser publicada depois da sua morte pelos seus correlegionários e à revelia do Santo Ofício, pois Urbano VIII tinha decretado que nada podia ser publicado sem a aprovação prévia daquele tribunal. Influenciado pela teologia dogmática de Santo Agostinho, Jansen considerava o pecado original a causa da intrínseca maldade da natureza humana e que o Todo-Poderoso concedia a graça a seu bel-prazer a uns e não a outros. Era-se pecador por não se ter graça e praticavam-se boas obras, graças à graça. Para quê então sacramentos, se tudo estava predestinado? Mas não se pense em graça vitalícia. Os eleitos, para a manter, tinham de levar uma vida austera e piedosa. Quanto aos pobres pecadores, nem jejuns, nem comunhões, nem confissões, nem sinceros arrependimentos lhes poderiam valer. A sua natureza ruim ditava-lhes o cruel destino de pecadores reincidentes. Desvalorizando o livre-arbítrio, as boas obras e os sacramentos, os seguidores desta doutrina, os agostinianos, aproximavam-se perigosamente do calvinismo, mas, ao contrário deste, que cedo se demarcou do culto romano, ganhavam terreno no seio da própria Igreja. Muitos clérigos e bispos católicos aderiram de maneira mais ou menos explícita a estas concepções, e os calvinistas acreditaram que chegara enfim a reforma teológica da Igreja Romana por que tanto pugnara o seu mentor, Calvino. O mais importante centro difusor do jansenismo foi o Mosteiro Cistercience de Port-Royal, perto de Versalhes, onde se reuniam e reflectiam teólogos, pregadores e grandes vultos da época, como Pascal, que ai terminou os seus dias. Destes pensadores místicos surgiram as mais severas críticas aos novos donos da Igreja, os jesuítas, pelo seu laxismo ao absolverem pela confissão todo o malandro que aparecesse, mas também pela qualidade de vida que ostentavam. O papado cedo se apercebeu do perigo que representava este calvinismo encapotado, mas agora dispunha dos aguerridos e sábios jesuítas para o combater, quer no plano teológico quer no plano prático. Os primeiros confrontos não se fizeram esperar, vindo o jansenismo a ser condenado por sucessivos papas, Urbano VIII (1642), Inocêncio X (1653) e Clemente XI (1705), acabando este último por excomungá-lo (1713).
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Também a influência dos jesuítas na corte de Luís XIV levou o monarca a banir os agostinianos de França em 1710, como já o fizera aos huguenotes. Muitos exilaram-se na Holanda, onde fundaram uma Igreja própria (1723), que ainda subsiste. O jansenismo teve o seu máximo desenvolvimento na viragem do século XVII para o século XVIII, espalhando-se por diversos países europeus. Apesar de perseguidos, contaram com aliados, como veremos seguidamente, mantendo a sua presença e influência no pensamento religioso durante todo o século XVIII. O poeta luso-brasileiro Basílio da Gama (1740-1795) foi condenado pela Inquisição ao degredo em Angola, o que demonstra que também entre nós o jansenismo terá tido simpatias. O GALICANISMO São conhecidas com esta designação as manifestações de contestação à autoridade suprema do papa em assuntos religiosos em França durante os séculos XVII, XVIII e XIX. Já em 1633 o Parlamento francês exortava os teólogos a aceitarem a supremacia do concílio ecuménico em relação ao papa, negando a sua infalibilidade e fazendo ressurgir as velhas concepções conciliaristas. Mas foi Pithon, com a sua obra As Liberdades da Igreja Galicana (1638), quem mais influenciou o pensamento político nesta matéria e que dominou em França até ao liberalismo. Contestando o primado papal em questões religiosas internas, defendia a autonomia da Igreja francesa, competindo ao rei, autoridade divina, a nomeação dos bispos, a convocação de concílios nacionais e a aprovação dos decretos papais. Os cardeais Richelieu e Mazarino, que governaram a França de 1624 a 1661, foram defensores desta doutrina e, por diversas vezes, a França esteve à beira de um cisma. Mas foi com Luís XIV (rei de 1643 a 1715), o rei absoluto numa França hegemónica na Europa, que se desvaneceu por completo o ascendente espiritual de Roma e dos papas, perante o poder do Rei-Sol. Os eclesiásticos passaram a servidores da coroa, com o estatuto de funcionários, e o Vaticano limitava-se a apresentar os seus tímidos e inúteis protestos. Não foi só por fanatismo que os protestantes foram perseguidos e extintos, nem porque pudessem constituir qualquer perigo. Apenas Sua Majestade não tolerava súbditos que professassem um culto diferente do seu. Bossuet, em 1682, condensou na Declaração do Clero Galicano os quatro pontos essenciais: a independência dos reis face à Santa Sé nas questões temporais, o respeito do papa pelos costumes e tradições em França, o concílio ecuménico como órgão supremo da Igreja e, finalmente, ser o concílio a única instância onde em matéria de Fé podem ser tomadas por consenso decisões.
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Vimos como a Companhia de Jesus foi abolida em França pelo Parlamento em 1764, e como o papa Clemente XIV a dissolveu, pressionado pelos reis franceses, com ameaças de cisma e mesmo de ocupação militar do Estado Pontifício. Só no Concílio Vaticano I em 1869-70, quando era assunto mais que ultrapassado, o galicanismo foi formalmente condenado. O EPISCOPALISMO Perfilhando a teoria política galicanista, muitos bispos franceses passaram a opor-se ao centralismo romano e a pugnar por maior autonomia no seu cargo, movimento conhecido por episcopalismo. Em sintonia com o poder absoluto, chegaram a defender a nomeação dos bispos pelo rei e não pelo papa. Vimos como bispos e outros eclesiásticos aderiram ao jansenismo. Os dois movimentos convergiam em muitos aspectos, a ponto de, quando surgiram as grandes perseguições aos agostinianos, estes terem sido protegidos e escondidos por bispos e padres. O episcopalismo viria a ter mais tarde a sua máxima expressão na Alemanha e na Áustria. Liderados pelo bispo de Tréveros, outros bispos se associaram à ideia de criar uma Igreja Católica Germânica, tal como acontecia com as Igrejas nacionais dos países protestantes. O concílio ecuménico seria o órgão eclesiástico supremo, devendo reunir representantes das várias Igrejas nacionais e estatais, relegando o papa para simples funções de coordenador. Estas aspirações autonómicas por pouco que não redundaram num cisma de grande dimensão. Na Áustria foi José II (imperador de 1780 a 1790) quem instituiu o poder do Estado sobre a Igreja, restringindo os direitos eclesiásticos e dissolvendo a maior parte dos conventos e outras instituições confessionais. O ILUMINISMO Os primórdios do período histórico a que corresponde o Iluminismo perdem-se nos finais do século XVII, sendo consensual associar o seu termo às guerras napoleónicas (1804-14), percorrendo portanto todo o século XVIII, o século das Luzes. Não se trata de uma doutrina religiosa, filosófica ou científica, mas sim de uma nova atitude mental perante a natureza e o homem, atitude partilhada pelos mais diversificados expoentes do pensamento setecentista. Vejamos como Immanuel Kant (1724-1804) concebeu o Iluminismo: «A superação das tutelas que os humanos criaram para si mesmos e os incapacitam de fazer uso da própria razão fora da dependência de outrem». Esta magnífica definição mostra-nos, portanto, que o denominador comum
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dos iluministas era a valorização da razão humana como fonte do conhecimento, a rejeição de verdades absolutas impostas e não discutíveis, o estudo dos fenómenos naturais em si mesmos sem preconceitos, no fundo, a libertação de tutelas preestabelecidas e de convicções imutáveis. E claro que esta nova ideologia iria contundir com a ideologia dominante, a dos detentores das verdades definitivas, por um lado, as monarquias absolutas com a sua aristocracia hereditária e, por outro, as confissões religiosas. Pela sua ousadia, muitos iluministas conheceram prisões, condenações e exílio. Uns dedicaram-se apenas a áreas da sua preferência, a matemática, a mecânica, a botânica, a medicina, actividades artísticas e literárias, mas outros, além da sua área específica, enveredaram pela política, pelo direito, pela filosofia e pela teologia. Foi este eclectismo uma característica comum aos mais famosos vultos do século XVIII. Nos países predominantemente protestantes, como a Inglaterra, a Escócia, a Holanda e a Alemanha, foi maior a tolerância para com os inovadores, que assim puderam trabalhar e produzir sem grandes incómodos. Eram sociedades mais desenvolvidas e instruídas onde se estimulava o progresso científico/técnico e social, e onde era relativamente pacífico o convívio com confissões minoritárias – a católica, a judaica e outras variantes do protestantismo. Muitos dos governantes destes países estimulavam a investigação científica e partilhavam, dentro de certos limites, das novas ideias. Frederico II, o Grande, da Prússia convidou Voltaire para a sua corte. Entre nós, conhecemos o caso do Marquês de Pombal, que os conservadores apelidavam de estrangeirado por ter estado como diplomata oito anos em Inglaterra, de onde trouxe as modernices. Foi em França, país católico, que o confronto entre racionalistas e papistas assumiu uma tensão crescente, que, em paralelo com a contestação das estruturas políticas conservadoras e com o crescimento de uma economia mercantil, iria conduzir à grande rotura revolucionária nos finais do século. Antes de abordarmos os traços essenciais das posições religiosas dos mais destacados iluministas franceses, dediquemos algumas linhas aos seus precursores, que tanto os influenciaram. Foram teólogos rebeldes que se opuseram aos cultos cristãos e às verdades reveladas e que elaboraram novas doutrinas à margem dos inúteis e sangrentos conflitos religiosos do seu tempo. PRECURSORES DAS LUZES O francês Bodin (1530-1596) introduziu a ideia da religião natural. Deus, ao criar a natureza e o homem, dotou-o de religiosidade. Assim, a religiosidade e a crença em Deus fazem parte da essência humana, sendo des-
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necessária a revelação. A religião deve portanto limitar-se à veneração de Deus, e a nossa passagem pela Terra ser pautada pela prática do bem, pois seremos sujeitos à justiça divina. Deste modo, são supérfluas as religiões organizadas e hierarquizadas com os seus santos, rituais e sacramentos. O empirista inglês John Locke (1632-1704), ao contrário de Bodin, rejeitava as ideias inatas. Todo o conhecimento é fruto da experiência e da razão. A consciência do homem é moldada pela aprendizagem e pela reflexão e, portanto, cada um crê na religião que lhe foi ensinada, mas é livre de escolher outra. Contudo, é pela razão que se chega inevitavelmente a Deus, não por revelações, escrituras ou catecismos. Locke aproxima-se da religião natural, ao considerar que o essencial é a crença em Deus, criador e julgador, que nos recompensará ou não na vida eterna, de acordo com a nossa conduta. Muitos outros pensadores, como Tindal (1655-1733), Cherbury (1583-1648), e Shaftesbury (1671-1713), desenvolveram as suas próprias concepções à volta da religião natural, refutando as doutrinas oficiais vinculadas à revelação, aos sacramentos, à redenção e ao Juízo Final. Espinosa (1632-1677), holandês de descendência luso-judaica, foi com Descartes (1596-1659) e Leibniz (1646-1716) um dos grandes filósofos racionalistas do século XVII. A sua influência iria igualar a de Locke no pensamento religioso do século das Luzes. Estudioso dos textos sagrados, via neles a maneira de encontrar Deus através de metáforas e alegorias, sendo considerado o fundador do criticismo bíblico moderno. Desenvolveu uma doutrina panteísta em que Deus e a natureza são o mesmo, confundem-se, têm a mesma substância, são aspectos diferentes da mesma realidade. Deus não é mais do que o movimento inerente à matéria. Contrariando o pensamento exclusivo no seu tempo, o dualismo, esta concepção de só uma essência, o monismo, iria mais tarde ser desenvolvida na moderna filosofia materialista, o marxismo. As suas posições frontalmente opostas à ortodoxia judaica valeram-lhe a excomunhão pela sinagoga portuguesa de Amesterdão em 1656. Prudentemente, quase nada publicou, sendo póstuma a maior parte da sua obra. Vejamos agora quais os principais protagonistas do século das Luzes: VOLTAIRE Voltaire (1694-1778) foi educado até aos 15 anos num colégio jesuíta e conheceu depois os meandros da corte. Aos poucos, foi adquirindo a sua forte personalidade literária e cívica. Tornou-se um crítico acutilante de todos os abusos praticados pelos poderes temporal e eclesiástico, o que por duas vezes o levou à prisão da Bastilha e ao exílio.
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CAPÍTULO XXXI
Acreditava num Deus que facultara ao homem a capacidade de raciocinar, o que o obrigava a utilizar essa ferramenta para o progresso material e intelectual da Humanidade. Inimigo mortal da hierarquia católica, afirmava que a sua luta não era contra os crentes, mas contra aqueles que exploravam as suas crendices. Foi um incansável combatente pela liberdade individual, como a seguinte frase evidencia: «Posso não concordar com o que dizes, mas defenderia até à morte o direito de o dizeres». Poeta e dramaturgo talentoso e mordaz, foi dos espíritos mais lúcidos e influentes do seu tempo. Quando morreu foi sepultado à pressa numa abadia, pois o bispo de Troyes, a sudeste de Paris, interditara-lhe um funeral cristão. Depois da Revolução, os seus restos mortais foram depositados no Panteão. JEAN-JACQUES ROUSSEAU Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) nasceu em Genebra, filho de um calvinista e neto de um huguenote refugiado. Com 18 anos fixou-se em Paris, conhecendo contudo vários períodos de exílio na Suíça, Alemanha e Inglaterra. Cedo aderiu ao movimento de ideias iluministas, de que foi uma das figuras mais marcantes. A sua inf luência política foi enorme. Defendia que o homem nasce livre, mas por todos os lados está acorrentado. Nasce bom, mas é a injusta sociedade que o corrompe. Deve portanto recuperar a liberdade e a igualdade de direitos, e aqueles que governam devem ser representantes da soberania popular. Indo mais longe, acusa a propriedade privada como a causa da miséria da maioria. O Estado deve ser tolerante e equidistante para com todas as religiões, mas deve banir as que se mostrem prejudiciais à sociedade. Isto porque o Estado terá de se reger pelo princípio da supremacia da vontade geral sobre a vontade da maioria, o que significa que há valores adquiridos pela racionalidade que devem sobrepor-se aos valores tradicionais. Por exemplo, se a maioria de uma comunidade quiser linchar um criminoso, o Estado deve protegê-lo e levá-lo a tribunal. Se os seguidores de uma religião ou de uma tradição, maioritários na sociedade, defenderem a inferioridade da mulher, ou que a sua raça é superior a outra e portanto merecedora de benesses, o Estado deve impedi-lo. A actualidade destas concepções polémicas é evidente, mesmo nos dias de hoje; concepções que, só com a aceitação universal da Carta dos Direitos Humanos, foram ultrapassadas. Rousseau rejeitava qualquer confissão dogmática e foi seguidor de uma religião natural em que o homem tem o «Ser Supremo» no seu coração, uma religião sem Cristo, sem revelação e sem redenção.
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DENIS DIDEROT Diderot (1713-1784) foi talvez o mais radical e anticlerical dos iluministas. A seguinte frase é bem elucidativa: «O mundo só será salvo quando o último rei for estrangulado com as tripas do último padre». A obsessão da sua vida foi reunir numa obra o fundamental de todo o conhecimento do seu tempo, a célebre Enciclopédia, para o que contou com a colaboração de especialistas em todas as áreas do saber. Depois de dificuldades imensas e da intransigente oposição da Igreja, os 28 volumes começaram a ser publicados em 1751 e acabaram em 1772, constituindo um assinalável êxito editorial. Diderot ficou rico e famoso. Ao contrário de muitos dos correligionários, amigos e inimigos, o seu pensamento evoluiu para o cepticismo, o materialismo e o ateísmo. Neste período fundamental na evolução do espírito humano no sentido do progresso, muitos outros poderiam ser citados. Lembremos apenas Montesquieu (1689-1755), Buffon (1707-1788), Hume (1711-1776) e D’Alembert (1717-1783), que tanto contribuíram para o clima anticlerical e antipapal que inundou todos os sectores da sociedade francesa nas últimas décadas do século XVIII, e que a Igreja Católica considera a mais perigosa crise da história do cristianismo. Lembremos, ainda, que muitos destes pensadores racionalistas não se afastaram da crença num Deus criador e julgador. Diderot não foi uma excepção. Hoje domina nos velhos países católicos da Europa o que se convencionou chamar catolicismo não praticante. Em que difere esta religiosidade do essencial das religiões naturais? Acredita-se num ser superior criador do Universo e numa vaga segunda vida depois da morte e praticamente em mais nada. Bem pode o papa proibir a pílula, o preservativo, o aborto, o divórcio, a homossexualidade. Bem pode pugnar pelos sacramentos, o matrimónio, a confissão, pelo sacrifício da missa ou pelo criacionismo, de que adiante trataremos. Muitos dos rituais religiosos que ainda persistem vão tendo cada vez mais um significado cultural, tradicional ou simbólico, quando não mesmo motivações exibicionistas, calculistas ou de ostentação. É o caso de casamentos e baptizados pomposos. A própria Igreja Católica foi abandonando ou esquecendo práticas e conceitos cuja não observância, há umas décadas atrás, era um grave sacrilégio, como a benzedura ao passar por uma igreja, a cabeça das mulheres coberta dentro da Igreja, o pedido da bênção, o beijo no anel ou o jejum de carne à sexta-feira. O Purgatório, onde as almas ficavam a penar, foi esquecido; a confissão deixou de ser obrigatória, os casamentos mistos são o pão nosso de cada dia…
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CAPÍTULO XXXII
A REVOLUÇÃO FRANCESA E A IGREJA
E
como se não bastassem os problemas vindos de França, eis que eclode neste país a mais radical de quantas revoluções a Humanidade já vira. A Igreja Romana perdeu as aliadas tradicionais, a monarquia de direito divino e a classe aristocrática, caindo o poder, pela primeira vez, nas mãos dos seus mais acérrimos adversários, os continuadores do pensamento iluminista. De início (1789), as forças revolucionárias não eram anticlericais. O inimigo a abater não era a Igreja, mas sim a velha ordem feudal e absolutista. Mas, com o desenrolar dos acontecimentos, a atmosfera foi-se tornando cada vez mais desfavorável para a Igreja. Recordemos os acontecimentos que maior repercussão terão tido na religiosidade do povo francês e as vicissitudes por que passaram a Santa Sé e os seus ministros nestes tempos conturbados. Perante a grave crise política e social, e com os cofres do Estado à beira do colapso, o rei Luís XVI foi forçado a convocar os Estados Gerais, que se reuniram em Versalhes a 5 de Maio de 1789, o que não acontecia desde 1614. Recorde-se que o primeiro estado era o clero, o segundo, a nobreza, e o terceiro, o resto da população, 98 por cento, e que os dois primeiros estavam intimamente ligados, uma vez que todas as dioceses e abadias estavam nas mãos de segundos filhos das famílias nobres. Cada estado tinha direito a um voto.
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Claro que nos Estados Gerais não houve qualquer entendimento nem quanto àquela gritante disparidade em termos de representatividade nem quanto aos problemas do Tesouro, cuja solução passava por «sacrifícios» dos que estavam isentos de impostos – o primeiro e o segundo estados, detentores de grande parte da riqueza. Os burgueses e os esfaimados camponeses, em pé de guerra, nem queriam ouvir falar em mais agravamentos tributários. Mas os nobres ameaçaram o rei com um golpe de Estado se os seus seculares privilégios fossem tocados, e o núncio papal chefiava a contestação da hierarquia sacerdotal a tais «sacrifícios», verdadeira blasfémia. E foi, assim, que o terceiro estado bateu com a porta e instituiu-se em Assembleia Nacional. Marcou a primeira reunião para 20 de Junho, vindo esta a realizar-se na Sala do Jogo da Péla nos jardins de Versalhes, porque as portas do palácio estavam encerradas. Cerca de 150 elementos do primeiro estado, padres e bispos, compareceram e integraram-se na Assembleia. Os deputados ameaçaram com o boicote total aos impostos, se algum deles fosse molestado. A 9 de Julho, a Assembleia decidiu converter-se em constituinte e nomeou uma comissão para redigir o projecto de Constituição, numa altura em que o povo de Paris se sublevava. A tomada da Bastilha deu-se a 14 de Julho de 1789, e a cidade passou a ser administrada por uma comissão de deputados parisienses que contava agora com uma milícia armada de mais de 10.000 civis. A insurreição alastrou por toda a França e não se fizeram esperar os saques a palácios, igrejas e conventos. A 4 de Agosto, a Assembleia proclamou a igualdade de direitos de todos os cidadãos, e a aristocracia foi exortada a abdicar voluntariamente dos seus privilégios medievais. A sessão terminou com os constituintes a cantarem um Te Deum. A 27 do mesmo mês foi aprovada a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, consagrando como leis estatais a Liberdade, a Igualdade e a Fraternidade. O artigo 10º deste importante documento garantia a liberdade de todos os cultos religiosos. Mas a iminência da bancarrota exigia medidas drásticas e nem os eclesiásticos nem os nobres abriam mão. Foi então que o deputado bispo de Autun3, a norte de Lion, propôs e foi aprovado o confisco de todos os bens da Igreja. Em sinal de protesto, a maior parte dos clérigos abandonou a Assembleia. Estavam abertas as hostilidades. Foram encerrados mosteiros, e os bens da Igreja, expropriados. Em contrapartida, os padres passaram a receber o seu salário do Estado. ³ Este bispo, de seu nome Charles-Maurice de Talleyrand (1754-1838), foi uma figura central durante todo este período. Condenado pelo papa, abandonou o sacerdócio. Foi eleito para o Directório, preparou a tomada de poder por Napoleão, de quem foi ministro dos Negócios Estrangeiros. Em 1814 constituiu o governo provisório que entregou o poder a Luís XVIII, de quem também foi ministro dos Negócios Estrangeiros.
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CAPÍTULO XXXII
A Constituição, proclamada em 30 de Setembro de 1791, consagrava uma monarquia constitucional e a separação da Igreja francesa da de Roma. Os clérigos foram compelidos a jurá-la, mas muitos recusaram-se, e não tardaram as perseguições. Cerca de 40.000 sacerdotes foram presos, julgados, deportados e, muitos, executados. A Assembleia Legislativa prevista na Constituição começou os trabalhos a 1 de Outubro, mas tudo começou a complicar-se. O monarca não promulgava as leis, os nobres e a rainha Maria Antonieta conspiravam, e o irmão da rainha, Leopoldo II da Áustria, ameaçava as fronteiras. Em Paris e noutras cidades, os sans-culottes pintavam a manta, assustando fidalgos, burgueses e eclesiásticos; nos campos, as autoridades locais eram substituídas por comissões de cidadãos; os palácios, assaltados e pilhados, e os senhores fugiam em massa para as fronteiras, onde muitos se juntaram às tropas dos países vizinhos. Dois factos precipitaram os acontecimentos: a prisão dos reis pelos parisienses amotinados e a declaração de guerra à Áustria (20/4/1792). E a Assembleia, incapaz de prosseguir o seu mandato de dois anos, cedeu o lugar a um número restrito de patriotas representantes das várias tendências, a Convenção Nacional, com a finalidade de elaborar uma nova Constituição, já sem rei. Esta foi promulgada em 24 de Junho de 1793. Mas a guerra, a escassez de alimentos, as resistências e as conspirações tornaram imperiosa a adopção de medidas enérgicas, incompatíveis com legalismos constitucionais. Nos anos que se seguiram, a França foi governada com mão de ferro por governos de salvação pública, efémeras coligações entre representantes da burguesia urbana e rural e da plebe, onde se destacaram Danton e Robespierre, enquanto a Convenção legislava. Foram implacáveis com conjurados e traidores, mesmo que apenas suspeitos, e a guilhotina não enferrujou4. Muitos bispos, frades e párocos foram na onda, Luís XVI, em Janeiro de 1793, e, em Outubro, a sua bela esposa, que secretamente fornecia ao inimigo informações militares que levaram aos primeiros desaires na campanha contra os holandeses. Após a decapitação de Luís XVI uniram-se, contra a França, a Áustria, a Prússia, os estados do Sacro Império, estados italianos, a Inglaterra, a Holanda, a Espanha e Portugal. O contingente português de 6000 homens apoderou-se, com os espanhóis, do Rossilhão. A França foi invadida por todas as fronteiras. Entretanto, pontificava em Roma o sucessor de Clemente XIV, Pio VI, eleito em 1775 e continuador da restauração da Igreja sem jesuítas. Com o confisco dos bens da Igreja e a integração no território francês do enclave de Avignon, até então na posse da Santa Sé, as relações com esta deterioraram-se drasticamente. ⁴ Já utilizada na Itália, esta máquina de cortar pescoços foi proposta pelo médico e deputado Guillotin, pois tirava a vida sem sofrimento físico. Entrou em funcionamento em França a 25 de Abril de 1792.
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O núncio foi expulso, e a multidão queimou em Paris uma efígie do papa. Pouco depois, o encarregado de negócios em Roma, Hugo de Bassville, foi assassinado numa rua daquela cidade (Janeiro de 1793), e a Convenção acusou o Vaticano de cumplicidade. O papa retaliou, tomando a fatal decisão de juntar o seu exército à liga antifrancesa. Entretanto, a Convenção, que já tinha instituído o divórcio (20 de Novembro de 1792), aboliu o cristianismo (Novembro de 1793), que foi substituído pela religião da razão, o culto do ser supremo e da imortalidade da alma, como se as crenças religiosas mudassem por decreto. Os feriados santos foram suprimidos, assim como o calendário gregoriano (Gregório VIII, 1582), que deu lugar ao calendário da Revolução (24/11/93). O ano começava no equinócio de Outono (22 de Setembro), os meses passaram todos a ter 30 dias com 3 semanas de 10 dias, e os 5 ou 6 dias a mais seriam consagrados a feriados republicanos. Deixou de haver o domingo sagrado, destinado à missa e à oração. Com a queda e execução de Robespierre, o Incorruptível (9 de Termidor, ano II = 27/7/1794), o poder foi tomado pelos representantes da burguesia. A 17 de Agosto de 1795, a Convenção aprovou a terceira Constituição, que confiava o poder executivo a um Directório com cinco membros eleitos pelo corpo legislativo. Este último era constituído pelo Conselho dos Quinhentos e pelo Conselho dos Anciãos, por sua vez eleitos em sufrágio restrito, acessível apenas a quem auferisse um determinado rendimento proveniente da propriedade. Com cidadãos de primeira e cidadãos de segunda, lá se foi a Igualdade. Quanto à Igreja, ficou definitivamente separada do Estado. Tinham levado a melhor os partidários da burguesia urbana, e os girondinos, que representavam os novos senhores da terra, eram agora aliados do recém-formado Partido Monárquico. Não se fez esperar a caça aos republicanos, jacobinos e montanheses. Estes, que tinham sido os principais obreiros da revolução, e em quem se reviam as camadas mais desfavorecidas, operários, artesãos e camponeses sem terra, eram agora enviados para o cadafalso5. Entretanto, a guerra prosseguia e era agora tempo de ajustar contas com a Itália. É então que Napoleão Bonaparte (1769-1821) entra em cena. O jovem militar tinha-se distinguido como capitão artilheiro no cerco de Toulon (1793), sendo promovido a general de brigada, mas só ficou famoso no esmagamento de uma insurreição monárquica em Paris (1795). O seu irmão Luciano era, nada mais, nada menos, que o presidente do Conselho dos Quinhentos. O Directório confiou a Napoleão a tarefa de conquistar o Norte da Itália. ⁵ Jacobinos, porque realizavam as suas reuniões no Convento de Saint-Jacques em Paris. Nas assembleias sentavam-se do lado esquerdo. Girondinos, grupo dissidente dos jacobinos, cujos mais eloquentes oradores eram originários do departamento da Gironda. Ocupavam o lado direito. Montanheses, porque ficavam nos lugares mais altos das bancadas.
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CAPÍTULO XXXII
Esta era uma manta de retalhos com territórios ocupados ou na dependência da Áustria ou do reino da Sardenha. Em 1796, o exército francês de 42.000 homens esfarrapados, mal equipados, com soldos em atraso e comandado por um general magrizela de 26 anos, foi enganando a coligação inimiga, que acabou por ser derrotada em sete grandes batalhas. O Norte da Itália ficou sob domínio francês, e o papa, com o seu exército destroçado, não teve outro remédio senão o de assinar o desastroso Tratado de Tolentino, a sul de Ancona, 19/2/1797, reconhecendo o direito da França sobre Avignon. Em Dezembro do ano seguinte temos novo assassínio nas ruas de Roma. Desta vez, a vítima foi o general Duphot, adido da embaixada, tendo o incidente servido de pretexto para a tomada da cidade, a que se seguiu a implantação da República. O papa foi preso e levado para França, onde veio a morrer ingloriamente em Valence, a sul de Lion, dois anos depois. Após o triunfal regresso a França, o Directório, receoso da popularidade de Bonaparte, mandou-o para longe, para o Egipto. A ideia era a de cortar a passagem para o mar Vermelho, dificultando o comércio dos ingleses com a Índia. Com o Directório houve maior tolerância religiosa, mas as perseguições a padres só terminaram com o golpe de Estado que levou Napoleão ao poder (18 de Brumário, ano VII = 9/11/1799). Planeado pelo arguto Talleyrand e seus colegas do Directório, Sieyès e Fuché, e com o conluio de Luciano, ainda presidente do Conselho dos Quinhentos, foi aprovada, à revelia do texto constitucional, a entrega do poder a um consulado de três membros, um dos quais o general Bonaparte. Três anos depois, Napoleão é nomeado cônsul vitalício, passando a ditar os destinos de uma França radicalmente diferente da França do ancien régime. Desaparecera a monarquia de direito divino, assim como os privilégios aristocráticos; estava consolidada a igualdade de direitos, embora com as limitações eleitorais acima referidas, e a igualdade jurídica; a Igreja estava reduzida à sua função espiritual, com os padres a dependerem do Estado; terminara a servidão no mundo rural; a administração interna tornara-se muito mais eficiente; foi instituído o ensino primário obrigatório e criaram-se os liceus e novas universidades, sendo as antigas reorganizadas; fundaram-se inúmeras instituições científicas e foi adoptado o actual sistema de pesos e medidas. Do ponto de vista económico, o salto fora de gigante. Aumentara substancialmente a produção agrícola e foi enorme o surto de desenvolvimento do comércio, da indústria, dos transportes, da marinha. Só assim se entende ter sido possível alimentar e municiar um exército que iria ultrapassar 1.200.000 homens em 15 anos de guerra ininterrupta, guerra que acabou por ser levada para bem longe, Itália, Egipto, Holanda, Alemanha, Catalunha.
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E quando sobreveio a paz com o Tratado de Lunéville, a leste de Nancy, 1801, e outros, a França expandira-se territorialmente, acentuando a sua posição de maior potência continental. Napoleão Bonaparte podia agora sonhar com a conquista do mundo, tanto mais que contava com admiradores e mesmo fervorosos adeptos por todo o lado, como por exemplo Beethoven, que lhe dedicou a Sinfonia Heróica (rasgou depois a dedicatória, quando aquele se autocoroou imperador). Por onde passava, o exército francês deixava um rasto de destruição, sem dúvida, mas também sementes de liberdade, de progresso e de esperança. O espírito revolucionário tinha germinado muito para lá das fronteiras francesas. E nestes tempos conturbados a Igreja Católica foi quem mais sofreu. Na Alemanha, como já acontecera na Áustria com José II, o golpe foi particularmente duro. Foram extintos os 22 estados eclesiásticos autónomos ainda existentes, arcebispados e episcopados, e integrados nos estados seculares, a maior parte de maioria protestante, sendo confiscados os bens da Igreja. Foram encerrados mais de 200 mosteiros, 80 abadias e 18 universidades católicas.
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CAPÍTULO XXXIII
NAPOLEÃO E OS PAPAS
R
elatámos já as vicissitudes por que passou o papa Pio VI, obrigado a assinar o Tratado de Tolentino, que devolveu Avignon aos franceses, e que mais tarde foi preso, acabando por morrer em Valence, no cativeiro. No regresso do Egipto, Bonaparte tomou a ilha de Malta (1798) e expulsou os cavaleiros da Ordem de Malta, os senhores da ilha, odiados pelos habitantes. Cinco anos depois, a ilha passou definitivamente para as mãos dos ingleses, que se esforçaram por ter os cavaleiros de volta. Mas agora são os naturais que não os querem e ameaçam os ingleses de se voltarem para os franceses. E foi assim que Napoleão retirou à Santa Sé aquele inexpugnável bastião no Mediterrâneo Central. Em 1800 foi eleito em Veneza o sucessor de Pio VI, um seu primo que adoptou o nome de Pio VII. A eleição foi em Veneza, porque Roma era uma república civil. Bonaparte desprezava a religião, vendo nela apenas um factor político. Compreendeu que para atingir os seus objectivos não seria mau pacificar os ânimos em França. Decidiu então celebrar com Pio VII uma concordata que reconhecia na Igreja Católica Apostólica Romana a confissão da maioria dos franceses, devendo por isso ser restaurada (1801). A Santa Sé renunciou aos bens expropriados e manteve-se a remuneração dos padres pelo Estado. 36 bispos que se encontravam exilados foram autorizados a regressar.
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Mas o primeiro-cônsul não estava disposto a cumprir as cláusulas da concordata e continuava a investir bispos e a decretar divórcios, apesar dos mal-humorados protestos do santo padre. Mas quando o convidou para a coroação, o papa não se fez rogado. Nada melhor do que uma boa coroação, à moda antiga. E Pio lá foi todo lampeiro para Paris, com numeroso séquito, mas Bonaparte não foi em conversas e coroou-se a si próprio (2/12/1804). O papa limitou-se a ungi-lo, ou seja, a besuntá-lo com óleo sagrado. Em paga, o agora imperador Napoleão I deixou Pio voltar ao Vaticano. No ano seguinte coroou-se, em Milão, rei da Itália (26/5/1805), dispensando besuntices. Quando Napoleão em guerra contra a Inglaterra decretou o Bloqueio Continental (1806), Sua Santidade negou-se a dar-lhe cumprimento, evocando, espante-se, a neutralidade da Igreja. Roma foi uma vez mais ocupada pelas tropas de Napoleão, e o Estado Pontifício foi anexado ao Império (1808). Pio excomungou os invasores, o que lhe valeu ser aprisionado e levado para Savona, perto de Génova, onde ficou preso até à queda de Napoleão (1814). Foi o mais rude golpe da Igreja Romana em todo este período. Privada de papa e dos rendimentos que auferia dos seus domínios, a situação financeira da cúria tornou-se desesperada. Ainda por cima os ventos da revolução chegaram também aos territórios dominados pela cúria e que constituíam o Estado Pontifício, e os famintos servos feudais, ingratos, abençoaram a chegada da República. Mas foi por pouco tempo. Em pleno cativeiro, Pio VII assistiu ao blasfemo divórcio do imperador de sua esposa Josefina, logo seguido do casamento por procuração com a mui católica filha do imperador Francisco I do Sacro Império (1810), Maria Luísa, arquiduquesa de Áustria. Quando terminou a aventura napoleónica e as tropas aliadas entraram em Paris, a 31 de Março de 1814, Pio VII recuperou a liberdade e foi para Roma. Teve ainda um pequeno percalço durante os chamados cem dias em que a cidade voltou a ser ocupada pelos bonapartistas. A prudência aconselhou-o a um breve eclipse, não fossem deitar-lhe a mão outra vez. Regressou depois, triunfal e definitivamente. No Congresso de Viena (1815), os vencedores, Áustria, Inglaterra, Prússia e Rússia, distribuíram entre si os despojos dos vencidos e pretenderam fazer a História andar demasiadamente para trás, restaurando as monarquias absolutas de direito divino. Mas os tempos eram outros. O Estado Pontifício foi restituído ao Vaticano, e o papa viveu o resto dos seus dias tranquilamente (faleceu em 1823), não sem que antes tenha ressuscitado a Companhia de Jesus (1816). Condenou toda e qualquer represália política, intercedeu junto das cortes a favor de Napoleão, preso e doente na ilha de Santa Helena, recebeu carinhosamente em Roma a família Bonaparte. A ele se deve a abolição das pesadas penas do Santo Ofício.
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CAPÍTULO XXXIV
MIL CAMINHO PARA DEUS
E
nquanto nos países europeus se verificou nos últimos dois séculos uma assinalável estabilidade religiosa, não surgindo desdobramentos de cultos antigos em novos cultos, já o mesmo não podemos dizer do que se passou no continente americano, em particular nos EUA e no Brasil, onde desabrocharam incontáveis novas confissões. Como quase sempre aconteceu, foi um iluminado que recebeu a palavra do Senhor, a verdadeira palavra, claro está, e a missão altruística de a levar aos pobres crentes, até então enganados por falsas doutrinas. A maior parte destes profetas acabou por não ter êxito, sendo expulsos das comunidades ou mesmo presos como impostores. É conhecido o caso de Joseph Smith, que, apesar de preso, não escapou à ira da multidão, que o matou a tiro. Mas neste caso a sua doutrina teve continuadores, como veremos. Na maior parte dos casos, não. Profetas e pregadores de sucesso, também bastantes, viram as suas doutrinas difundir-se, organizar-se e mesmo ultrapassar as fronteiras daqueles dois grandes estados e mundializar-se. E tantas são as confissões que se reclamam de cristãs que nos parece pertinente abordar alguns conceitos gerais, sem a pretensão de definições exactas ou sistematização minimamente coerente. Muito menos nos deteremos nos pormenores das suas divergências: mais Espírito
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Santo, menos Espírito Santo, mais Virgem menos Virgem, mais próximo ou mais distante o regresso do Redentor. Comecemos então pelo princípio, retornando ao longínquo ano de 1529, quando os príncipes eleitores alemães decidiram, na Dieta de Speyer, dar cumprimento às ordens do imperador Carlos V e executar o Édito de Worms para pôr cobro à dissidência luterana. Vimos como vários príncipes presentes protestaram, os da Saxónia, Brandeburgo, Luneburgo, Hessen e Anhalt, além de representantes de 14 cidades, e como, por esse facto, foram apelidados de protestantes. Foi, assim, que o termo protestantismo entrou na história das religiões, generalizando-se ao conjunto de confissões cristãs que se identificaram com o movimento da Reforma do século XVI se separaram quer do ponto de vista teológico quer do orgânico da Igreja Católica Apostólica Romana. Têm em comum o primado dos três solas da Reforma, a Sola Scriptura (somente a Bíblia) a Sola Gratia et Fide (somente a graça pela fé) e a Sola Christus (somente Cristo). Igreja Evangélica é sinónimo de Igreja Protestante, mas o termo evangélico tem sido mais utilizado nas Igrejas de tradição luterana. Reformadas são as que seguiram a teologia e o modelo de organização calvinista. Algumas destas Igrejas mantêm o estatuto constitucional de estatais, como a Igreja Inglesa, as reformadas escocesa e da maior parte dos cantões da Suíça, e as luteranas dos países nórdicos – Dinamarca, Suécia e Noruega. As despesas religiosas são pagas pelo Estado, ou seja, provêm dos impostos dos contribuintes, o que tem levantado alguma contestação, até porque grande parte da população já não professa o culto oficial. Noutros países, como a Holanda, a Bélgica e a Hungria, as Igrejas Reformadas já não são oficiais. Na Alemanha e na Suíça, até há poucos anos os cidadãos tinham de comunicar às autoridades locais qual a religião que professavam para lhes ser cobrado o respectivo imposto religioso. Nos países de predomínio católico, a laicidade constitucional é mais formal que real, uma vez que a Igreja Católica continua a beneficiar de diversas benesses em detrimento de outros credos. Hoje, o número de crentes protestantes rondará os 600 milhões divididos nos três ramos principais: luteranos, calvinistas e anglicanos. E chamamos ramos principais, pois outros há de polémica inclusão naquelas categorias, embora as suas origens sejam as mesmas, como é o casos das Igrejas Baptista, Anabaptista, Mórmon, das Testemunhas de Jeová e Pentecostal, para citar as mais conhecidas. Todo este vasto conjunto, mais as antigas Igrejas cristãs orientais e as ortodoxas tem uma cúpula universal, o Conselho Mundial das Igrejas, a que a Católica e a Adventista do Sétimo Dia não pertencem. São três os principais modelos organizativos destas comunidades religiosas:
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O CONGREGACIONISMO Em que cada Igreja local tem total autonomia, sendo a assembleia de fiéis a única autoridade decisória. Realizam concílios ou sínodos apenas para reflexão comum e entreajuda. Teve a sua origem no movimento puritano inglês, de forte influência calvinista, mas muitas outras comunidades de imigrantes luteranas, alemãs, nórdicas, holandesas, suíças, etc., adoptaram o congregacionismo, a que não será estranha a grande dispersão da população em tão vasto território, o que também poderá explicar a tendência para a desagregação e para o surgimento de novas ramificações. As Igrejas Anabaptista e Baptista optaram por esta forma de governo. O PRESBITERANISMO No presbiteranismo sucedem-se sucessivos conselhos. O primeiro é composto pelos presbíteros e pastores de uma comunidade centrada numa igreja. É o Conselho Presbiteriano que elege os seus representantes ao Presbitério, que por sua vez elege os seus representantes ao Sínodo que finalmente elege os seus representantes ao Supremo Concílio, órgão máximo com funções de representação externa e poderes jurídicos sobre as decisões tomadas pelos conselhos inferiores. Muitas comunidades religiosas nos Estados Unidos e no Canadá procuraram imitar a Igreja Presbiteriana e estatal da Escócia, criando a sua própria Igreja nos diversos estados que iriam constituir a União. O EPISCOPALISMO Mantém a linha hierárquica das Igrejas Católica, Ortodoxa e Anglicana com o território subdividido em províncias, dioceses e paróquias, governadas por arcebispos, bispos e pastores. Com a independência dos EUA, os ingleses anglicanos separaram-se da Igreja de Inglaterra em 1789, onde a autoridade máxima era o rei, e foram criando a sua própria Igreja. Várias Igrejas da recente família pentecostal estão organizadas com modelo idêntico. Vejamos as principais confissões que encontraram nas Américas terreno propício à sua rápida difusão e multiplicação: IGREJA EPISCOPAL Depois da separação da Igreja de Inglaterra, o culto anglicano foi acompanhando a colonização inglesa em todo o território norte-americano. Dispõe hoje de nove províncias e 110 dioceses, não só nos EUA mas também noutros estados, como a Colômbia, a República Dominicana, o Equador, o Haiti, as Honduras, Porto Rico, Venezuela e África do Sul. A cúpula desta organização, a Convenção Geral, sediada em Nova Iorque, reúne-se de três em três anos e é constituída por dois
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corpos, a Casa dos Deputados, quatro clérigos e quatro leigos eleitos por cada diocese, e a Casa dos Bispos, da qual fazem parte todos os bispos em funções. IGREJAS EVANGÉLICAS As Igrejas Evangélicas americanas foram paulatinamente ganhando terreno não só nos EUA, onde constituem cerca de dois terços da população protestante, com mais de 70 milhões de fiéis, como por todo o mundo. Só no Brasil não estarão longe dos 30 milhões. Merece particular referência a Igreja Evangélica conhecida por «Revivalista» ou «Cristã Sionista», pela influência que tem exercido nas mais altas esferas da Administração norte-americana. Surgida nos finais do século XIX, advoga que o direito de Israel se constituir em estado decorre da profecia do Apocalipse de João Evangelista. Dada a grande confluência e posições entre sionistas cristãos e judeus, tem sido através desta Igreja que grande parte do apoio financeiro, político e militar tem chegado a Israel. Por outro lado, com o incentivo e com a colaboração dos centros de poder norte-americanos, os evangélicos desenvolvem uma verdadeira cruzada em todo o mundo islâmico, em particular no Médio Oriente, Península Arábica e Norte de África. Milhares de missionários, disfarçados de diplomatas, professores, médicos e outros profissionais humanitários, promovem junto das populações locais campanhas destinadas a desprestigiar o islamismo, ligando esta religião ao terrorismo e ao eixo do mal. Exaltam o choque de civilizações de que resultará a vitória da civilização ocidental e do cristianismo sobre o islão. Entretanto, tentam converter islamitas e trazer para a causa evangélica os poucos cristãos de cultos orientais que ainda subsistem nestas paragens. Para isso, com a complacência e a compreensão das embaixadas, oferecem generosa ajuda financeira, bolsas de estudo e passaportes para visitas aos EUA. QUAKERS (QUACRES) Também conhecidos por Sociedade Religiosa dos Amigos, foi fundada por George Fox (1624-91). Dispensa sacerdotes e não celebra sacramentos, apenas a prática do bem. Os seus membros não bebem álcool e são antibelicistas. EXÉRCITO DE SALVAÇÃO Foi fundado em Londres em 1865 por William Booth com o objectivo de levar os ensinamentos da Bíblia até aos bairros mais pobres da cidade, onde se vivia um grande desinteresse pelos assuntos religiosos. As perigosas ruas eram percorridas por grupos de salvadores militantes cantando e exibindo
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cartazes. A sua organização hierárquica tem um marcado carácter militar, com cornetas, bombos, fardas e bandeiras. Conta com mais de um milhão de membros em todo o mundo e 15.000 igrejas (cinco em Portugal), dedicando-se hoje a obras de apoio social e humanitário. IGREJA METODISTA Movimento evangélico nascido em Oxford e cujos iniciadores foram João Wesley (1703-1791), o seu irmão Carlos e Jorge Whitefield (1714-70). Wesley era um sacerdote anglicano e nunca teve a intenção de fundar uma nova Igreja, mas sim de reformar, aperfeiçoar e tornar o anglicanismo mais atraente para as miseráveis massas de camponeses que acorriam às cidades. Mas os continuadores foram-se afastando do determinismo e dos solas calvinistas, desenvolvendo a teoria do quadrilátero de Wesley que simboliza a base teológica do metodismo. Este quadrilátero tem no centro as Escrituras, a palavra de Deus, e em cada vértice um dos quatro atributos necessários à sua interpretação e compreensão, a fé, a razão, a tradição e a relação pessoal com a Divindade. Em 1860 surgiram entre os escravos, nas plantações da Virgínia e Maryland, as primeiras comunidades metodistas, que rapidamente se multiplicaram, graças à acção de missionários vindos de Inglaterra. Depois, o metodismo foi-se difundindo e fragmentando em inúmeras Igrejas, actualmente espalhadas por todo o mundo, sendo a Igreja Metodista Unida dos EUA a segunda confissão protestante em número de crentes neste país. IGREJAS ANABAPTISTA E BAPTISTA Referimos anteriormente as vicissitudes anabaptistas nos tempos da Reforma. Acabaram por ter pouca expressão na Europa, em grande parte devido às perseguições na Alemanha, na Holanda e na Inlaterra, emigrando em grande número para o continente norte-americano. Outro grupo menos radical, os baptistas, também emigraram e foram criando congregações não só nas Américas como nos continentes africano e asiático. Hoje, só nos EUA e no Canadá, são mais de 45 milhões, e no Brasil, 2 milhões. As duas confissões têm muito de comum, como a forma de organização, a separação da Igreja do Estado e a valorização do baptismo, que só deve consagrar os crentes convictos, opondo-se portanto ao baptismo infantil. Ao contrário dos baptistas, os anabaptistas são pacifistas militantes, rejeitando a vida militar, mas também qualquer cargo na administração pública ou funções políticas. Privilegiam a vida comunal e crêem que, após a morte, a alma fica numa espécie de dormência, aguardando o Juízo Final.
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IGREJAS ADVENTISTAS Fundada por William Miller (1788-1849) nos EUA a primeira Igreja Adventista centrava a sua religiosidade no Apocalipse de S. João, sendo a segunda vinda de Cristo à Terra para sobre ela reinar durante 1000 anos o advento para que a Humanidade se deve preparar. Miller profetizou este advento para o ano de 1843, mas os seus ansiosos seguidores assistiram ao pacífico decorrer daquele ano, sem que nada de anormal acontecesse. Nem rio virou sangue, nem dragão de sete cabeças, nem besta 666, nada. E à desilusão seguiu-se a descredibilização do profeta e a desagregação do movimento. Entre os vários grupos que se formaram destacou-se o designado Adventismo do Sétimo Dia, assim chamado pelo absoluto respeito do descanso ao sábado. Quanto ao segundo advento, já não tem data marcada. MORMONISMO Também conhecida por Igreja de Jesus Cristo dos Santos do Último Dia, foi fundada por Joseph Smith, natural de Vermont nos EUA. Em 1820 e 1823, este profeta teve revelações divinas escritas em placas de ouro, e anos mais tarde escreveu o Livro do Mórmon, em que anuncia para breve o fim do mundo e o início do milénio governado por Jesus Cristo. Entretanto, vieram anjos do Céu que o ordenaram sacerdote. Em 1844, e como já referimos, Smith acabou por ser preso, tendo a multidão invadido a cadeia, matando-o a tiro. Alguns dos seus adeptos conseguiram fugir, fixando-se no Utah, no vale do lago Salgado, onde foi prosperando uma pacífica e austera comunidade poligâmica (a poligamia foi entretanto abandonada), aguardando a concretização da profecia de João Evangelista. Um gigantesco templo domina a Cidade do Lago Salgado. Do ponto de vista doutrinário defendem que Pai, Filho e Espírito Santo são seres distintos entre si. É hoje, com o pentecostalismo, uma da duas confissões em maior expansão, estimando-se em 13 milhões o número dos seus seguidores, metade dos quais fora dos EUA. TESTEMUNHAS DE JEOVÁ Foram fundadas em 1879 por Charles Taza Russel na Pensilvânia nos EUA. Crêem praticar o cristianismo primitivo, reconhecendo apenas a autoridade de Jeová, o Deus bíblico, e de seu Filho divino, Jesus, rejeitando totalmente a Trindade e os demais dogmas. Todas as outras religiões são obra de Satanás.
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IGREJAS PENTECOSTAIS O pentecostismo é um movimento religioso recente. Teve início em Los Angeles, na Rua Azusa, no início do século XX, onde se desenvolveu a crença de que o baptismo pelo Espírito Santo confere dons sobrenaturais, autenticados pela capacidade de se falar em linguagens desconhecidas, o chamado carisma das línguas. Mas para bem compreender esta crença, que hoje arrasta multidões por todo o mundo, debrucemos-nos um pouco sobre a sua origem. Os Actos dos Apóstolos são o texto do Novo Testamento que se segue aos quatro Evangelhos. Começa com a advertência dirigida aos apóstolos por Jesus antes de este se «elevar às alturas»: «Na verdade, João baptizou com água, mas vós sereis baptizados com o Espírito Santo», e o capítulo seguinte especifica: «E cumprindo-se o dia de Pentecostes estavam todos reunidos no mesmo lugar; de repente veio do céu um som como de um vento veemente e impetuoso, e encheu toda a casa em que estavam assentados. E foram vistas por eles línguas repartidas, como de fogo, as quais pousaram sobre cada um deles. E todos foram cheios de Espírito Santo e começaram a falar noutras línguas [...]». Foi, assim, que os apóstolos, agora poliglotas, puderam levar a boa nova aos sete cantos do mundo. (Pentecostes era a festa dos hebreus dedicada às colheitas, celebrada 50 dias depois da Páscoa, e que os seguidores do Novo Testamento fixaram em 50 dias depois da Páscoa cristã, passando a representar a descida do Espírito Santo sobre os apóstolos). Pois foi sobre um pacato morador na referida Rua Azusa, o pregador baptista negro William Seymour, que no dia de Pentecostes do ano de 1906 o Espírito Santo voltou a pousar. Começou a falar línguas estranhas, a proferir profecias e a produzir curas milagrosas, atraindo cada vez mais povo ansioso por receber o baptismo pelo Espírito Santo e auferir das delícias do avivamento espiritual. Os crescentes ajuntamentos obrigaram William a mudar-se para uma casa maior na mesma rua, no número 312. E não tardou que por todo o lado surgissem novos fenómenos pentecostais, primeiro nos estados sulistas e depois por toda a América Latina e outros continentes. Há que referir que no movimento protestante abundam os relatos de crentes que reclamaram terem recebido dons do Espírito Santo, a começar por Lutero, mas, como grande movimento religioso, o início do pentecostalismo está ligado à Rua Azusa. Hoje, por todo o planeta, são incontáveis as Igrejas Pentecostais, que apesar da sua pulverização adoptam, de um modo geral, a organização episcopal. E o que é curioso é que outras Igrejas, protestantes, ortodoxas
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e a Católica Romana, tiveram no seu seio movimentos pentecostais que levaram a cisões e ao surgimento de novas Igrejas. Citemos algumas: Igreja Presbiteriana Renovada, Convenção Baptista Nacional, Igreja Adventista da Promessa, Renovação Carismática Católica. Do ponto de vista teológico, o pentecostalismo não tem identidade homogénea. Umas Igrejas crêem na Divina Trindade, as trinitárias, outras, no Deus único, as unicistas. É mais um movimento religioso do que uma nova religião, tendo de comum apenas a crença de que pela oração o Espírito Santo acaba por interceder por nós e resolver os nossos problemas. E é exactamente este aspecto, a possibilidade de resolver as mais diversas dificuldades da vida através do miraculoso, que explica o êxito explosivo deste movimento. Mas não só. A isto há que acrescentar a introdução de técnicas empresariais quer na estrutura orgânica interna, quer na projecção externa, isto é, na utilização do marketing e da publicidade. O marketing estuda o mercado e cria necessidades artificiais a satisfazer. A publicidade utiliza maciçamente os meios de comunicação social, a rádio, a televisão, a imprensa, a internet, a divulgação de prospectos com a oferta de uma vasta gama de serviços. Os serviços constam na resolução das mais diversas dificuldades da vida nas áreas sentimental, matrimonial, familiar, da saúde, profissional, financeira, dos milagres, etc., e as entrevistas aos bem-sucedidos, amplamente difundidas, constituem a melhor propaganda. E para que a empresa funcione o investimento está mais que garantido – o dízimo e outras doações –, pois quanto mais deres a Deus, mais Deus te dará. Uma das mais prósperas Igrejas deste grupo é a Igreja Universal do Reino de Deus, fundada no Brasil em 1977 pelo bispo Edir Macedo, e presente em 172 países. E terminamos estas notas referindo a portuguesa Igreja Maná (Maná era a comida que Deus enviou do céu a famintos hebreus), fundada em Lisboa em 1984 por Jorge Tadeu e que conta já com 2000 templos em 80 países. Num dos seus prospectos pode ler-se: «Se não vê solução para problemas na Justiça, dificuldade na obtenção de documentos, dinheiros retidos, discriminação – Pensa que tudo está perdido? Não desista! Deus é o Deus dos impossíveis! Venha a uma Igreja Maná!». CIENTICISMO Também designada por ciência cristã, foi fundada por Mary Baker Eddy em 1879 em Boston no Massachusetts, contando hoje com mais de 3000 núcleos em diversos países. Para o cienticismo, o homem e o universo são espirituais... Sem entrarmos no mundo das religiões dos povos asiáticos não islamizados, professadas por metade da população do planeta, vamos referir
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apenas os mais importantes cultos de origem judaico-cristã que subsistem ainda em comunidades relativamente pequenas e localizadas. Das cristãs, temos as antigas orientais, de que já nos ocupámos – a assíria, a copta, a jacobita, a maronita, a nestoriana, a uniata de rito romano nos países do Oriente europeu; a jansenista, a valdista e as mais recentes protestantes norteamericanas, como a dos cristadelfos (Irmãos de Cristo), fundada em Brooklyn pelo profeta John Thomas em 1833, e a irvingista, surgida na mesma altura, como resultado da pregação do pastor presbiteriano Edward Irving (1792-1834). De origem islâmica são igualmente incontáveis as ramificações que emergiram ao longo da História. Além de sunitas e xiitas, têm hoje alguma presença os já citados ismaelitas, mas também os drusos do Líbano, os jesidas, adoradores do Demónio, no Norte do Iraque, e os voabitas da Arábia Saudita, que pregam o regresso ao primitivo Alcorão. O hassidismo é uma forte corrente dentro do judaísmo, com origem no século XVIII na Europa Oriental, pacifista e ortodoxa. E das religiões que não se enquadram em qualquer destas famílias não podemos deixar de referir duas, o babismo e o espiritismo, pela sua difusão universal. A primeira foi fundada no século XIX na Pérsia pelo profeta Babe, que previu a próxima revelação. Um seu discípulo, Bahaullah, teve a tal revelação, tendo-lhe Deus comunicado que todas as religiões contêm a verdade universal e que as periódicas revelações divinas conduzirão à união de toda a Humanidade, com uma só língua, uma só religião e um só sistema monetário universal. Espalhados pelo planeta, os babistas têm a sua sede mundial perto de Haifa, em Israel. O espiritismo, tal como todas as religiões, crê na sobrevivência do espírito depois da morte, mas que é possível aos vivos comunicarem com o espírito dos mortos através de pessoas particularmente dotadas para estabelecer esta comunicação, os médiuns. Foi o pedagogo francês Allan Kardec (1804-1869) quem sistematizou no seu Livro dos Espíritos os fundamentos do espiritismo, sendo secundado por diversos seguidores e teorizadores. Teve alguma aceitação em particular na França e mais tarde no Brasil.
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CAPÍTULO XXXV
OS CONFLITOS RELIGIOSOS NO NOSSO TEMPO
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s detentores do poder económico e político nunca olharam a meios para manterem os seus privilégios, recorrendo à mentira, ao terror, ao assassínio dos líderes populares e, quando necessário, à força das armas. Mas, na época que atravessamos, estas práticas tradicionais defrontam dificuldades crescentes, perante os progressos irreversíveis da consciência democrática. Vão criando raízes os processos de eleição de dirigentes políticos, e a economia exige maior instrução dos eleitores. Os mandantes são assim obrigados a diversificar e a sofisticar os meios de manipulação das consciências, para que a escolha recaia em «verdadeiros democratas», isto é, em políticos amigos que não belisquem muito os interesses instalados. Torna-se portanto necessária, na medida do possível, a perpetuação da irracionalidade, para que os eleitores permaneçam alvos passivos, amorfos, acríticos, distraídos e, portanto, receptivos para as mais disparatadas, irracionais e supérf luas mensagens com que sãosistematicamente bombardeados. São duas as principais armas que se complementam para se atingir esta finalidade: a posse e controlo dos grandes meios de comunicação social e a religião. A primeira difunde exaustivamente a ideologia dominante, ao mesmo tempo que afasta os cidadãos dos seus reais
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problemas com o futebol, a moda, as revistas cor-de-rosa... A segunda conta com o ecléctico corpo de profissionais salvadores de almas que operam no que de mais primitivo há na consciência colectiva, a religiosidade. O altar voltou em força à política. Também no campo das ciências se verifica um retorno ao irracional, tema que será abordado no capítulo seguinte. Mas a religiosidade oferece ainda uma vantagem adicional. Seguindo a velha máxima de dividir para reinar, tudo tem servido para virar uns contra os outros, desde as diversidades culturais, tradicionais e linguísticas até, naturalmente, às religiosas. Mesmo em comunidades onde diferentes credos coabitavam pacificamente há séculos, tem-se assistido ao acirrar de ódios e a sangrentos confrontos, que só as largas manchas de ignorância e superstição que ainda persistem podem explicar. Não sendo determinante, o factor religioso tem funcionado às mil maravilhas como alimento conflitual, bem aproveitado por quem o fomenta. E o que é mais preocupante é que muitos sub-racionais, convictos da veracidade das suas ridículas certezas, dispõem de armas de destruição maciça, e as suas verdades absolutas não são as mesmas que as dos outros. O exemplo de maior gravidade é-nos dado pelo confronto de duas potências nucleares, o Paquistão e a União Indiana, fruto da perversa divisão da «Jóia da Coroa» inglesa em 1947. Pelo meio ficou a região de Caxemira, maioritariamente muçulmana, mas que ficou integrada na União Indiana. Reivindicada por ambas as partes, já deu lugar a três guerras convencionais, islâmicos de um lado e hinduístas do outro. Vale a pena relembrar que as duas comunidades viveram durante séculos na maior harmonia. Quando em 1857 eclodiu a revolta dos sipaios, que terminou com as mais bárbaras chacinas por todo o território indiano, hindus e muçulmanos uniram-se contra o exército ocupante inglês. No continente europeu merecem referência três conflitos com marcada carga religiosa, o da Irlanda do Norte, o de Chipre e o, mais recente, da ex-Jugoslávia. A população celta da Irlanda foi uma das primeiras do Norte da Europa a cristianizar-se. No rescaldo das guerras religiosas dos século XVI e XVII, a maioria da população permaneceu fiel a Roma, mas, nos quatro condados que constituem a Irlanda do Norte ou Ulster tinham-se fixado muitos militares ingleses, anglicanos e, ainda mais, escoceses, calvinistas, que se apossaram das melhores terras e mantiveram sempre as rédeas do poder. Quando, em 1921, a Irlanda conquistou a independência, aquela parcela do território permaneceu no Reino Unido, e as hostilidades entre comunidades católica e protestante acentuaram-se. Nas décadas de 70 e 80, paramilitares de ambos os lados cometeram diversos atentados e assassínios em massa, vivendo-se um clima de guerra civil, que só não teve mais graves
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consequências pela intervenção do exército britânico. Centenas de milhares de civis abandonaram as suas casas, fugindo à carnificina – os católicos para oeste do território, e os protestantes para leste. Nas cidades e até nas pequenas povoações, as duas comunidades vivem ainda em bairros separados. No censo de 2001, 40 por cento, da população afirmou-se católica; 36 por cento, protestante; 10 por cento, com outras religiões, e 15 por cento, sem nenhuma, mas no anterior censo de 1961 os que declararam não ter religião eram apenas 2 por cento. Pensamos que a reconciliação dos Irlandeses passará pelo abandono pelas novas gerações do espírito clubista religioso herdado dos antepassados. Cipriotas de origem grega, ortodoxos (80 por cento), e de origem turca, islâmicos (20 por cento), tinham combatido lado a lado contra os Alemães durante a guerra e depois contra os ocupantes ingleses. Com a independência, em 1960, todos reconheceram a autoridade do arcebispo Makários, o primeiro presidente, que proclamou a neutralidade da estratégica ilha. Três anos depois eclode a guerra civil entre gregos e turcos, do que iria resultar a artificial divisão do país em dois, divisão que ainda persiste. Quem conheceu a Jugoslávia há umas décadas atrás não podia imaginar o drama que se avizinhava. Na verdade, os seguidores dos três credos predominantes, ortodoxo, católico e muçulmano, viviam aparentemente na maior das harmonias. Os casamentos mistos eram frequentes, não havia qualquer discriminação religiosa, os templos das três confissões eram por todos respeitados, e o número de não crentes era já considerável. Também não havia diferenças étnicas (todos são eslavos) nem linguísticas (o servocroata é falado pela grande maioria da população), mas houve quem apostasse no desmembramento da Federação Jugoslava e, de repente, todos se engolfinharam. Uma vez mais, o factor religioso assumiu uma importância que ultrapassou de longe as considerações de natureza social ou política. Ninguém saiu incólume do conflito. Todos praticaram as mesmas atrocidades, os mesmos crimes de guerra, as mesmas «limpezas étnicas» em que comunidades inteiras foram deslocadas por habitarem zonas onde predominava outra religião. Nos outros continentes têm-se multiplicado confrontos de natureza diversa entre seguidores de diferentes credos. Um dos mais antigos e conhecidos é o chamado conflito israelo-árabe, cuja origem remonta à criação artificial do estado de Israel na Palestina. Muçulmanos e judeus sempre tinham convivido pacificamente naquelas paragens, nada que possa comparar-se ao que a História nos conta do que foi a odisseia dos judeus em países cristãos, com a sua máxima expressão na Alemanha nazi.
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Nas primeiras décadas do século XX, a percentagem de judeus na Palestina era semelhante à que se verificava noutros espaços de predomínio muçulmano, 2 a 4 por cento. Mas a partir dos anos 20, o movimento sionista incentivou a migração de judeus para a Palestina, alterando aqueles valores, ao mesmo tempo que o ocupante inglês adiava a independência. Quando terminou a Guerra de 39-45 gerou-se uma justificada onda de simpatia e de solidariedade para com os judeus, ganhando terreno a tese de que deveriam ter uma pátria que acolhesse refugiados e perseguidos, mas onde? A Argentina e Angola estiveram na lista de candidatas a ceder território, mas, estimulado pelos Ingleses, intensificou-se o movimento migratório para a Palestina, que acabou por ser escolhida. Depois, foi o que se sabe, o infindável estado de guerra, as carníficinas, a deslocação de populações nativas com ocupação de territórios alheios, os campos de refugiados. Outro conflito de grandes proporções vive-se actualmente no Darfur, território a este do Sudão, entre as populações maioritariamente animistas e cristianizadas e os muçulmanos arabizados. De 2001 até hoje, o número de mortos já ultrapassou os 200.000, calculando-se em dois milhões o de refugiados. Alguns destes conflitos asiáticos e africanos têm tido uma ampla cobertura, não justificando qualquer referência em especial – Iraque, Afeganistão, Líbano, Chechénia, Tibete, mas outros não têm recebido igual relevo. Apenas dedicaremos algumas linhas ao tão mediatizado caso do Tibete, por nos parecer que o fundamental tem sido ocultado. Desde finais do século XIV que o Tibete tem como suprema autoridade os dalai lamas. Foi anexado ao Império Chinês no século XVIII, mas as frágeis estruturas administrativas chinesas nunca contestaram a relativa autonomia desta inóspita e remota região. Vejamos a originalidade com que se processa a sucessão dos dalai lamas. Por sua morte, o espírito vai reencarnar numa criança que será o dalai lama seguinte, criando um problema complexo, o de saber qual é a dita criança. Para isso, os bonzos da mais elevada hierarquia lançam mãos a tão árdua tarefa. Consultam um oráculo, a conjugação dos astros, procuram interpretar sinais provindos do lago sagrado do Tibete, o lago Lhamo La-tso, meditam, têm visões e sonhos, até que finalmente descobrem a reencarnada, processo que pode demorar anos. Vai então ser o senhor absoluto de um estado teocrático, em que a classe sacerdotal domina por completo o povo, que a venera e... alimenta. O actual dalai lama, o XIV, Prémio Nobel da Paz em 1991 e a quem se deu o nome a um largo de Lisboa, nasceu em 1935 e foi identificado quando tinha dois anos. Retirado aos pais e encerrado num mosteiro em Lhassa,
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foi-lhe ministrada a mais esmerada educação budista da escola gelug (há mais três escolas no Tibete, a nyingma, a ragyu e a sakya) para o preparar para a futura liderança, tendo assumido aos 15 anos a dignidade de santidade e os destinos religiosos e políticos dos tibetanos. Após a conquista do poder na China pelos comunistas em 1949 e perante a teimosia do dalai lama em não querer submeter-se ao poder central, o exército chinês interveio, e Sua Santidade fugiu para a Índia, onde actualmente preside ao Governo do Tibete no exílio. Vejamos agora as guerras religiosas mais esquecidas: Na Nigéria, desde 1990, perderam a vida mais de 20.000 pessoas em nome da religião, situação que se agravou quando em Kano, o centro do islamismo no Norte do país, foi introduzida a xária (lei corânica) em 2001. Quatro credos se digladiam, o católico, o evangélico, o sunita e o xiita. O maior número de vítimas tem resultado das querelas entre islâmicos. No Sri Lanka (antigo Ceilão) estimam-se em 79.000 as mortes desde 1983 quando os tâmiles hinduístas pegaram em armas contra os cingaleses budistas. Nas Filipinas, a sua maior ilha, Mindanau, inclui uma região autónoma de maioria muçulmana, onde foi instituída a xária. Têm-se multiplicado os ataques a cidades de maioria cristã, obrigando o Governo central a intervir militarmente. No Sulavesi, antiga ilha das Celebes, também é o exército indonésio quem tem posto cobro às constantes querelas entre cristãos e muçulmanos. Em muitos outros estados, a diversidade religiosa tem sido utilizada para justificar pretensões autonómicas, como na Etiópia, Somália, China (Xinjiang, além do Tibete), União Indiana e Tailândia. Também no continente americano assistimos a conflitos de cariz religioso na província de Chiapas, no México, e na Guatemala entre católicos e protestantes. A tudo isto vêm juntar-se as actividades terroristas de fundamentalistas islâmicos, que escolhem para os seus alvos populações indefesas, tantas vezes compatriotas de outros credos, como na Arábia Saudita, Argélia, Egipto, Indonésia, Iraque, Marrocos, Paquistão, Turquia, etc.
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O PRINCÍPIO DO FIM DOS MITOS
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a segunda metade do século XIX assiste-se ao princípio do fim dos mitos religiosos. Duas machadadas demolidoras foram vibradas sobre as velhas concepções do Deus criador e do dualismo6, com os seus dois mundos, o natural e o sobrenatural. Desta vez as machadadas não vieram de França, mas, sim, uma da Inglaterra e, outra, da Alemanha, e foram dois Carlos os seus principais protagonistas, Charles Darwin (1809-1882) e Karl Marx (1818-1883). O CRIACIONISMO Qual é a criança que não sabe o que são dinossauros? Estes estranhos animais, que desapareceram há 70 milhões de anos, fazem parte do nosso quotidiano. Quem é que hoje nega que tenham de facto existido? E qual o adolescente minimamente instruído que duvida de que a espécie humana não tenha sido o resultado da evolução de outras espécies de primatas? O que hoje são banalidades nem sempre o foram. Há 150 anos, as banalidades eram outras. Mesmo nos meios mais cultos, homens de ciência e ⁶ A palavra dualismo emprega-se com dois sentidos. No primeiro refere-se a crença nos dois mundos,
o material e o imaterial, este e o outro. No segundo, a crença religiosa de que duas forças antagónicas nos governam, o deus do bem e o deus do mal, o bem e o mal.
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pensadores progressistas acreditavam piamente que o universo fora obra de Deus e que todas as espécies foram então por ele criadas. Nas sociedades de tradição bíblica – judaicas, cristãs e islâmicas –, o que era banal não eram os dinossauros, eram Adão, Eva, o Paraíso e por aí adiante. Lembremos que os mais eminentes racionalistas do século XVII e boa parte dos iluministas do século XVIII nunca puseram em causa que tudo teve um princípio e haverá de ter um fim e que foi um ente superior, esse, sim, sem princípio e sem fim, que a dado momento resolveu criar o universo. A esta convicção, que dominou o pensamento humano pelo menos desde que há História, dá-se o nome de criacionismo. E os sábios bíblicos até sabiam que isto começara há 4000 anos, bastava somar as idades dos patriarcas desde Adão. É verdade que sempre houve quem desconfiasse destas certezas, como Espinosa, que via na Bíblia um livro metafórico a não ser interpretado à letra, mas, como vimos, prudentemente, nunca levantou o problema. O rápido desenvolvimento das ciências naturais e cosmológicas no século XIX foi tornando claro que o universo e a nossa Terra são afinal bem mais velhinhos, e já ninguém hoje, na plenitude das suas faculdades mentais, crê no contrário. Mas logo surgiu quem não visse qualquer contradição com os dogmas sagrados. Os seis dias da criação (o sétimo foi para Deus descansar) foram uma forma alegórica de Deus revelar a genesis a uma Humanidade ignorante. Os seis dias significavam afinal eras geológicas, que só agora podemos compreender. Claro que a omnipotente divindade podia ter feito logo um homem erudito, mas preferiu assim, dar-lhe raciocínio e esperar que ele por si desvendasse as suas metáforas. E o criacionismo com todas as adaptações que o bom senso foi exigindo transformou-se em neocriacionismo e recuperou um novo alento já em pleno século XX, com eminentes homens de ciência, físicos e cosmólogos, a descobrirem evidências científicas tidas como irrefutáveis. Uma destas é que o universo está em contínua expansão e, portanto, teve de ter início num ponto. Sabendo a velocidade a que se dá tal expansão, depois de muitas contas, chegaram à conclusão de que tudo começara não há 4000, mas há mais tempo, há 13 biliões e 700 mil milhões de anos. Estava definitivamente descoberto o como e o quando. Do nada ou de um átomo, não há total acordo, Deus fez uma grande explosão, o Big Bang, e continuamos ainda a expandir-nos. Esta teoria da expansão do universo, aceite por muitos e ridicularizada por outros, foi proposta em 1927 pelo padre belga George Lemaître (1894-1966), mais tarde director da Academia de Ciências do Vaticano. Claro que também para os criacionistas as formas de vida na Terra foram obra divina, como a Bíblia tão bem descreve – vegetais no 4º dia, peixes e baleias no 5º,
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répteis, feras, gado, macho e fêmea humanos no 6º, espécies que foram sempre invariáveis, concepção associada ao criativismo, e que se designa por fixismo. Mas como explicar os restos de seres vivos já não existentes que por todo o lado se encontram e que já em meados do século XIX faziam as delícias dos coleccionadores de fósseis, conchas parecidas com as actuais encontradas no alto de montanhas, ossos de bichos parecidos com os actuais em estratos geológicos sedimentares que levaram milhões de anos a constituir-se? Foi aqui que o criacionismo e o fixismo começaram a desmoronar-se. Generalizou-se a desconfiança na criação simultânea das formas vivas e na sua perpétua imutabilidade. Mas logo surgiu a óbvia explicação. Deus fez todas as espécies ao mesmo tempo, mas algumas houve que não aguentaram, acabando por se extinguir. DARWIN E O EVOLUCIONISMO Foi neste ambiente de grande curiosidade pelas ciências naturais, mas também de agressiva repulsa por tudo o que pusesse em causa os equilíbrios celestiais, que surgiu a tese revolucionária de que as espécies vivas evoluíram através dos tempos. Já vários naturalistas tinham sugerido tal evolução, como o francês Lamarck (1744-1829), mas é a Darwin que se deve a elaboração de uma teoria consequente da evolução e da diferenciação das espécies, o evolucionismo. Charles Darwin nasceu em Shrewsbury no condado de Kent, a leste de Londres, em 1809, filho de um médico abastado. Estudou Medicina e Teologia, mas a sua grande paixão foram sempre as ciências naturais. Aos 22 anos embarcou, como naturalista, a bordo do veleiro Beagle (cão de caça), que ia fazer a exploração da costa americana do Pacífico, o que durou quase cinco anos. Aproveitou a viagem para pôr as leituras em dia e, em todas as paragens, anotava pormenorizadamente as suas observações das formações geológicas, dos fósseis e dos organismos vivos, muitos dos quais desconhecidos do mundo científico, anotações que serviram de base a trabalhos posteriores. Observou na Argentina fósseis de gigantescas espécies extintas, o megatério e o gliptodonte, semelhantes a animais que habitam naquele país, a preguiça e o tatu. No arquipélago dos Galápagos (no oceano Pacífico a 500 milhas do Equador) notou que cada ilha tinha a sua espécie particular de cotovias e mais tarde soube que o mesmo ali acontecia com tentilhões e tartarugas terrestres. Começou por pensar que as espécies poderiam ter tido uma origem comum e que a separação física, provocada por exemplo pelo afastamento de ilhas umas das outras, levaria a que cada comunidade evoluísse independentemente, adquirindo características diferentes, ditadas pela necessidade de se ir adaptando ao meio, este também a sofrer contínuas altera-
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ções. Isto explicaria por que razão em cada ilha dos Galápagos cotovias, tentilhões e tartarugas eram muito parecidos, mas de espécies diferentes. E quando a capacidade de adaptação não acompanhasse as modificações do meio, as espécies não subsistiam, extinguindo-se. Quando regressou, era já um célebre naturalista. Começou então a teorizar sobre a diferenciação das espécies, o modo como essas diferenças lhes permitiam uma melhor adaptação ao meio e a semelhança morfológica entre espécies desaparecidas e actuais. Trabalhou com criadores de animais, chamando a atenção para a intervenção do homem, que, ao longo dos séculos, foi seleccionando para reprodutores os melhores em determinado aspecto – os suínos com mais peso, os pombos campeões no voo, por exemplo. E, assim, as espécies domesticadas se foram modificando de acordo com os objectivos dos domesticadores, a ponto de, se libertados no meio selvagem, nenhuma possibilidade terem de sobreviver, como as galinhas e os «lulus», já tão diferentes dos seus ancestrais. E às vacas, que, se não são mugidas todos os dias, lhes rebentam as tetas. A base do seu raciocínio pode sintetizar-se assim: quando num novo ser surge uma pequena alteração em relação aos progenitores, essa alteração ou é desfavorável e diminuem as probabilidades de sobrevivência dos seus descendentes ou é, por qualquer razão, favorável. Neste caso, os seus descendentes que herdarem essa alteração terão mais probabilidades de prosperar. Surgem assim as variedades, as raças e, por fim, espécies novas. A esta lenta transformação de uma espécie noutra deu o nome de transmutação. Mas as suas observações e conclusões só as partilhava com colaboradores de confiança. Nos trabalhos que publicava, aquelas considerações estavam implícitas, mas nada de empregar termos como «evolução» ou «transmutação». Nada que sugerisse o aparecimento de espécies novas sem a intervenção divina. Em 1858, Alfred Wallace (1823-1913), um naturalista que Darwin mal conhecia, enviou-lhe um trabalho onde este reconheceu o essencial das suas convicções acerca da origem e da selecção das espécies. Wallace, 14 anos mais novo, tão perspicaz como Darwin na observação e interpretação da vida natural, tinha chegado às mesmas conclusões. Foi, então, que decidiu, instado por amigos e discípulos, publicar o que ficou na História como a mais famosa obra científica de sempre: A Origem das Espécies. Apenas no final surge, pela primeira vez, o verbo evoluir: «as mais belas e maravilhosas espécies evoluíram e continuam a evoluir» e «o homem também deve evoluir, como os outros organismos». Severas críticas não se fizeram esperar, acusações de blasfémia, sátiras, anedotas, caricaturas nas revistas científicas em que Darwin aparecia com corpo de macaco. Darwin remeteu-se a um certo silêncio, mas tinha agora
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um número crescente de admiradores e, ao fim de uns anos, a conservadora comunidade científica inglesa rendeu-se à evidência. A nova geração de naturalistas de todo o mundo aderia com entusiasmo às novas teses evolucionistas, o darwinismo. Wallace, que conhecia os trabalhos de Darwin, que de resto o haviam influenciado, sempre reconheceu no mestre a sua paternidade, atitude de seriedade científica que importa salientar. Com o posterior desenvolvimento da genética, há muito que se sabe que as pequenas alterações que podem surgir, as mutações, se devem a erros fortuitos na replicação cromossómica. Claro que os criacionistas não desarmaram e, enquanto engoliam o sapo, iam inventando as mais diversas teorias à volta da ideia de que Deus criou os primeiros seres vivos, que depois foram evoluindo dando origem a outros, enquanto muitos se extinguiam. Quando Darwin morreu, em 1882, já reabilitado, teve funeral de Estado e foi sepultado na Abadia de Westminster ao lado de Newton. Darwin só tardiamente se afastou da religião. Quando embarcou no Beagle era um crente convicto. Mas à medida que ia formulando a sua concepção da Origem das Espécies, cada vez lhe parecia menos determinante a intervenção divina. A evolução era afinal uma luta constante pela sobrevivência quer dos seres vivos individuais quer das espécies. Nada tinha de ordem predeterminada. Mas só quando a sua filha Anna morreu, depois de grande sofrimento, deixou de acreditar num Deus misericordioso. A sua mulher lamentava-se de que assim não iriam encontrar-se, outra vez, no Céu. MARX E O MATERIALISMO DIALÉCTICO No início destas reflexões abordámos o problema fundamental da filosofia, a essência do ser, questão que desde sempre cindiu os filósofos em dois campos, o dos idealistas, ou do primado do imaterial sobre o material, e o dos materialistas, para quem o primado está no material. Estes sustentam que o homem e a sua faculdade de pensar são uma consequência do desenvolvimento da matéria, não concebendo a actividade psíquica sem um substrato material. A segunda grande questão da filosofia, e que decorre da primeira, é a gnosiologia, o saber se o homem, através das suas faculdades mentais, pode e de que maneira entender a natureza que o rodeia. Alguns idealistas foram ao ponto de considerar que tudo o que nos é exterior é aparente, reside apenas nas nossas ideias, sendo elas a única verdadeira realidade. As religiões actuais não perfilham deste ponto de vista absurdo. Para elas há o material e o imaterial, mundo e Deus, carne e alma. A religiosidade antecedeu a especulação filosófica. Proveio da perplexidade perante fenómenos naturais extraordinários, como a chuva, o trovão, a
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vida e a morte, e da necessidade de uma «tranquilizante» explicação. Só uma força sobrenatural poderia empurrar o mar para cima e para baixo, desencadear a tempestade ou acordar o vulcão adormecido. O idealismo que nasceu da religiosidade iria depois ser o suporte teórico da religiosidade. E estas concepções dualistas enraizaram-se de tal modo na mente humana, e foi tal a repressão sobre quem a elas se opôs ao longo da História, que só tardiamente se deu a viragem qualitativa no modo de pensar e de entender a natureza. Os consideráveis avanços em todos os campos do saber, em meados do século XIX – nas ciências físicas, naturais e humanas –, e o desenvolvimento da filosofia clássica, em particular com Hegel (1770-1831), conduziram necessariamente a este segundo salto na história do pensamento humano. Lembremos que o primeiro salto se ficou a dever às ideias revolucionárias atribuídas a Jesus. Pois foi outro judeu, Karl Marx (1818-1883), quem teve o mérito de assimilar tudo o que de melhor fora produzido pelo pensamento humano até à sua época, e ter elaborado uma concepção coerente do mundo: natureza, sociedade e pensamento, liberta dos mitos ancestrais e capaz de dar respostas bem mais satisfatórias a todos os problemas da filosofia clássica. Tendo como parte integrante uma metodologia, o materialismo dialéctico, a Humanidade ficou dotada de uma ferramenta racional que lhe permite abordar e interpretar todo o tipo de fenómenos de uma maneira nova. Lembremos apenas os aspectos fundamentais do materialismo dialéctico. Filia-se no campo materialista, concebendo apenas uma essência do ser, e que este é independente do nosso pensamento. Por outro lado, reconhece à mente humana a capacidade de conhecer a realidade através do desenvolvimento das ciências. E, até aqui, nada de especial, muitos materialistas defenderam os mesmos pontos de vista. O que há de facto de inovador é a concepção de que a matéria contém em si mesma movimento, transformando-se continuamente, sendo os fenómenos a expressão visível dessa transformação. Por outro lado, os fenómenos estão em interconexão com outros fenómenos, interagindo entre si. E este contínuo desenvolvimento inerente à matéria processa-se de acordo com leis gerais, que tanto se aplicam ao estudo do universo como ao das sociedades humanas ou ao de uma simples bactéria. Desenvolvida, aprofundada, divulgada e aplicada na prática por contemporâneos de Marx, como Engels (1820-1895), e por outros de gerações posteriores, como Lenine (1870-1924), Ho Chi Minh (1890-1969) e Mao Tsé-tung (1893-1976), para citar apenas os mais conhecidos, esta nova concepção teve rápida difusão por todo o planeta, criando adeptos nos quatro continentes, quer nos meios científicos, quer nos meios sociais e políticos. Pouco a pouco foi-se tornando a maneira de pensar do homem comum actual, quando despido de preconceitos.
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E não deixa de ser curioso que, mesmo os mais acérrimos contraditores do materialismo dialéctico, aqueles que ainda estão ligados a mitos religiosos ou os que teimam em afirmar que o marxismo já morreu, abordam e interpretam os fenómenos reais, talvez sem darem por isso, não longe da metodologia mental da nova maneira de pensar. Verifiquemos alguns exemplos na área da medicina. É presentemente aceite por todos a interconexão e a interacção entre os diversos componentes do sistema que é o corpo humano. Quando um órgão adoece, todo o organismo se ressente. Se a doença está no fígado, há também perda da força muscular, retenção de água, emagrecimento, etc. Nenhum médico hoje aborda o ser humano, saudável ou doente, como um conjunto de órgãos desligados, ou que a doença seja devida a caprichos de entes do mundo transcendente. Um medicamento vai actuar sobre o organismo, mas o organismo vai também actuar sobre o medicamento, acabando por eliminá-lo. Quando um organismo é infectado, trava-se uma luta em que cada parte vai usar as armas que possuiu, e quando termina o combate, ambas estão diferentes do início. O organismo infectado pode ter criado imunidade, e o infectante pode ter-se adaptado e manter-se no organismo sem lhe causar danos, como acontece com o vírus da varicela. Na administração contínua de um medicamento, se a velocidade da sua absorção é superior à capacidade de eliminação, ele vai-se acumulando indelevelmente no organismo sem provocar qualquer sintomatologia. Em dado momento, porém, acabam por surgir efeitos tóxicos. Pequenos aumentos quantitativos acabam por gerar alterações qualitativas. O paciente já não está como estava. É um exemplo simples da lei da transformação da quantidade em qualidade. Estes exemplos mostram como é hoje concebida a realidade e como a abordar. Mas nem sempre foi assim. No tempo em que as revistas científicas ridicularizavam Darwin, os mais eminentes mestres da medicina, do alto das suas cátedras, ensinavam a teoria dos quatro humores. Era facto consumado que o corpo humano estava embebido em quatro enigmáticos humores, cujo equilíbrio representava a saúde, mas que a predominância de uns sobre os outros era a causa da doença. As sangrias, por exemplo, serviam para libertar o corpo do excesso do humor sanguíneo. Ensinava-se que a vida de animais e plantas era determinada por um fluido intangível, o elã vital; e a morte, pelo esgotamento do tal elã. Os humanos nada tinham a ver com os animais, pois possuíam um elã especial, a alma, que se desprendia do cadáver para a segunda vida, a eterna. Claro que uma teoria que concebe o mundo e o seu desenvolvimento não em consequência de causas que lhe são exteriores, mas sim em virtude das suas próprias leis, as leis do movimento inerente à matéria, dispensa
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uma entidade criadora e motriz fora da natureza. Tal concepção não podia deixar de suscitar fortes reacções dos que estavam sinceramente convictos de que o imaterial determinava o movimento do material. Mas muito para lá das polémicas no plano filosófico a análise histórica, social e económica de Karl Marx, ao colocar a classe operária como a principal força transformadora da sociedade, deu ao movimento operário a ferramenta teórica e prática de que necessitava para um mais eficaz combate ao capitalismo. O século XX foi atravessado pela confrontação entre as duas concepções filosóficas e políticas. E as religiões de todo o mundo, ao oporem-se ao marxismo ateu, depararam com um aliado inesperado, os seus arqui-inimigos num passado recente, os liberais, democratas e republicanos, os detentores do grande capital, que não tem pátria e muito menos religião. Os acontecimentos do Afeganistão são um exemplo eloquente desta aliança. Os grandes defensores dos direitos humanos e do mundo livre aliaram-se aos fundamentalistas islâmicos para derrubar um regime progressista e laico. Depois, o feitiço virou-se contra o feiticeiro, mas isso é outra história. A dependência religiosa continua a dominar a maior parte da Humanidade, a que não será estranha a actual santa aliança, pois o condicionamento do irracional durante a infância pode desvanecer-se ao longo da vida, mas nem em todos se apaga, e a vida humana dura décadas. Nunca as transformações abruptas de sociedades humanas foram acompanhadas pela equivalente transformação das mentalidades das grandes massas. Por onde andam o homem racional da Revolução Francesa ou o homem novo da Revolução Soviética? No século XX foi encarniçado o combate entre o racional e o irracional em todos os domínios do pensamento e, na passagem para o século XXI, parece que o irracional vai levando a melhor. Julgamos ser oportuna a transcrição de um extracto da importante comunicação proferida pelo professor José Ramalho Croca, quando lhe foi atribuído o «Prémio 2008» pela Fundação Internacional Racionalista em 10 de Abril: «Presentemente, estamos a assistir a uma crescente difusão do irracionalismo, do obscurantismo, quer por parte dos media, quer por outros processos mais ou menos claros, cujo fim consiste sobretudo em levar as pessoas a evitar pensarem de modo coerente e por elas próprias, para que possam, em última análise, ser vilmente exploradas, sendo isto por vezes feito da maneira mais descarada. Por estas razões, o combate pela Razão e pela Verdade assume, nos dias de hoje, uma importância tal que não pode ser relegado para um simples papel passivo e secundário. Cada um, dentro da sua esfera de acção, tem a obrigação e o dever de assumir a sua tarefa. No domínio científico, no capítulo da física, o advento do século XX trouxe consigo, contra tudo o que seria de esperar, os elementos que con-
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duziram a uma extensão, e a uma espécie de fundamentação, do pensamento mágico, do irracional, dos segredos ocultos, revelados a raros eleitos, das atitudes dogmáticas, apanágio dos sistemas monolíticos.» Mas será que o pensamento antigo pode cantar vitória? O progresso da Humanidade é feito de avanços e recuos. E as novas gerações, muito mais libertas dos condicionamentos mentais na infância, dispõem agora de ferramentas racionais e de liberdade de pensamento como jamais a Humanidade desfrutou. Somos nós agora quem diz que há que dar tempo ao tempo. Por outro lado, vai-se tomando consciência de que o próprio futuro da Humanidade depende mais do que nunca da vitória definitiva da razão sobre os mitos. Lutar pela razão é hoje um imperativo de todos nós, pois é também a sobrevivência da nossa espécie que está em jogo. Há que ter esperança. Na Europa, que nos últimos séculos foi a vanguarda do progresso da Humanidade, no que toca à religiosidade, os números falam por si: só 20 por cento dos Europeus afirmam que Deus tem um papel importante nas suas vidas, quando nos EUA esta percentagem é de 60 por cento; em França, na Alemanha e nos países nórdicos, 53 por cento afirmam-se não religiosos; no Reino Unido, só 44 por cento acreditam em Deus e só 15 por cento destes, frequentam a igreja semanalmente; na Itália, Espanha e Irlanda, este número é inferior a 20 por cento. E terminamos todas estas reflexões com um soneto de Camões, de uma profundidade inexcedível, soneto que sintetiza quase tudo o que três séculos depois viria a ser o fundamental do materialismo dialéctico. Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, Muda-se o ser, muda-se a confiança, Todo o mundo é composto de mudança, Tomando sempre novas qualidades. Continuamente vemos novidades, Diferentes em tudo da esperança, Do mal ficam as mágoas na lembrança, E do bem, se algum houve, as saudades. O tempo cobre o chão de verde manto, Que já coberto foi de neve fria, E em mim converte em choro o doce canto. E, afora este mudar-se cada dia, Outra mudança faz de mor espanto: Que não se muda já como soía.
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«Muda-se o ser» e «Todo o mundo é composto de mudança». Que outra coisa pode isto significar senão a concepção de que a mudança é inerente ao ser, ao real? e que: «Tomando sempre novas qualidades», as alterações qualitativas são resultante inevitável («sempre») do ser em mudança, em movimento. «Continuamente vemos novidades, diferentes em tudo da esperança». As coisas acontecem independentemente do que poderíamos esperar ou desejar. «As novidades», os fenómenos naturais, são independentes da consciência humana. E qual é o substrato da mudança? «O tempo cobre o chão de verde manto» É o chão, o terreno, o material. Camões fala-nos daquilo que os psicólogos classificariam de vida volitiva (vontade), de vida cognitiva – a razão e a memória (confiança, esperança, a percepção das novidades, lembrança) – e de vida afectiva (saudade, choro e doce canto). Mas todos estes atributos da psique humana decorrem da realidade física, o «tempo», o «ser», o «chão», o «verde manto» que dá lugar à «neve fria». Como é notável estarem simultaneamente num só verso categorias de natureza física e de natureza psíquica: «Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades», «Muda-se o ser, muda-se a confiança». Será que o poeta já concebia a fruição mental como um produto da matéria? Nos últimos três versos, o poeta mostra a sua perplexidade ao reconhecer que também muda a própria mudança. E o que mais impressiona é que este soneto, escrito num período de tão fanática religiosidade, exprime uma concepção do mundo e da natureza humana sem uma única alusão nem a divindades nem a vidas no Além.
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ÍNDICE
PREFÁCIO, 5 NOTA DO AUTOR, 7 INTRODUÇÃO, 9 CAPÍTULO I - EVOLUÇÃO E INVOLUÇÃO DAS RELIGIÕES, 13 O IDEALISMO E AS RELIGIÕES, 13hO PRIMADO DO IMATERIAL, 14hA DEIFICAÇÃO, 14hO PERENE OU ETERNO, 14hO SOBRENATURAL , 14hO MILAGRE, 15hA REVELAÇÃO, 15hA RITUALIZAÇÃO, 15hA SACRALIZAÇÃO, 15hANIMISMO, 16hPOLITEÍSMO, 18hMONOTEÍSMO, 21
CAPÍTULO II – O CHOQUE DAS RELIGIÕES, 29 CAPÍTULO III – O CRISTIANISMO PRIMITIVO, 33 CAPÍTULO IV – AS PRIMEIRAS INTERPRETAÇÕES DO LEGADO DE JESUS, 41 O SINCRETISMO GNÓSTICO, 43 CAPÍTULO V – AS PRIMEIRAS HERESIAS E CISMAS, 47 MARCIÃO, 48hTACIANO, 49hTEÓDOTO, 49hMONTANO, 50hPRÁXEAS, 50hTERTULIANO, 51hHIPÓLITO, 51hSABÉLIO, 52hÁRIO, 52hDONATO, 56
CAPÍTULO VI – A CRISTANDADE NO TEMPO DE CONSTANTINO, 55 CONSTANTINO, O GRANDE, 56
CAPÍTULO VII – O CRISTIANISMO BIZANTINO, 61 ST.º AGOSTINHO, 67
CAPÍTULO VIII – NOVAS HERESIAS, 69 JOVINIANO, 69hPRISCILIANO, 69hPELÁGIO, 71hNESTÓRIO, 72hEUTIQUIANO, 74hO MONOTELISMO, 75hHIPÁCIA, 75
CAPÍTULO IX – OS BÁRBAROS E A CRISTANDADE, 77 GREGÓRIO I, O MAGNO, 79
CAPÍTULO X – O ISLAMISMO , 83 CAPÍTULO XI – A CRISTANDADE NA ALTA IDADE MÉDIA, 91 OS CAROLÍNGIOS, 92hO «SAECULUM OBSCURUM», 95hO SACRO IMPÉRIO ROMANO-GERMÂNICO, 99
CAPÍTULO XII – OS CISMAS DO ORIENTE, 103 CAPÍTULO XIII – A QUESTÃO DAS INVESTIDURAS, 107 GREGÓRIO VII, 107hPASCOAL II, 110hALEXANDRE III, 111hINOCÊNCIO III, 112
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CAPÍTULO XIV AS CRUZADAS E AS POSSESSÕES LATINAS NO ORIENTE, 115 1ª CRUZADA (1096-1099), 118 | 2ª CRUZADA (1147-1149), 119 | 3ª CRUZADA (1189-1192), 119 | 4ª CRUZADA (1202-1204), 120 | A CRUZADA INFANTIL (1212), 121 | 5ª CRUZADA (1217-1221), 122 | 6ª CRUZADA, 122 | 7ª E 8ª CRUZADAS (1248-1254 E 1270), 122
CAPÍTULO XV – OS MONGES GUERREIROS, 125 A ORDEM DE S. JOÃO OU DE MALTA, 125 | A ORDEM MILITAR DO TEMPLO, 127 | A ORDEM TEUTÓNICA, 129
CAPÍTULO XVI – O APOGEU DE ROMA, 131 CAPÍTULO XVII – A ALTA ESCOLÁSTICA, 137 O REALISMO, 140 | O NOMINALISMO, 140 | JOAQUIM DE FLORA E O JOAQUIMISMO, 141 | TOMÁS DE AQUINO E O TOMISMO, 143
CAPÍTULO XVIII – AS HERESIAS DOS SÉCULOS XII E XIII, 145 TANQUELMO, 146 | ARNALDO, 146 | VALDO, 147 | O CATARISMO, 148 | FREDERICO II, 150 | ROGÉRIO BACON, 153
CAPÍTULO XIX – O DECLÍNIO DO PODERIO PAPAL, 155 OS PAPAS DE AVINHÃO E O CONCILIARISMO, 157 | O GRANDE CISMA DO OCIDENTE, 159 | O CONCÍLIO DE CONSTANÇA, 162
CAPÍTULO XX – MAIS HERESIAS, 165 GULHERME DE OCCAM, 165 | JOÃO WYCLIF E O MOVIMENTO LOLLARD, 167 | JOÃO HUSS E A GUERRA DOS HUSSITAS DA BOÉMIA, 168 | JERÓNIMO DE PRAGA, 170
CAPÍTULO XXI – A QUEDA DE CONSTANTINOPLA, 171 CAPÍTULO XXII – O NEPOTISMO PAPAL, 175 CAPÍTULO XXIII – O CONTURBADO SÉCULO XVI, 181 OS BIBLICISTAS, 182 | A BÍBLIA, 183 | O APOCALIPSE DE S. JOÃO, 186 | OS HUMANISTAS, 189 | ERASMO DE ROTERDÃO, 190 | O ESFORÇADO CARLOS V, 192
CAPÍTULO XXIV – A REFORMA, 197 OS PRESSUPOSTOS DA REFORMA, 199 | LUTERO, 200 | CALVINO, 207 | ZWINGLI E OS ANABAPTISTAS, 210 | O ANGLICANISMO, 213 | A ARMADA INVENCÍVEL, 217
CAPÍTULO XXV – PURITANOS E HUGUENOTES, 221 OS PURITANOS, 221 | OS HUGUENOTES, 224
CAPÍTULO XXVI – A CONTRA-REFORMA, 233 O CONCÍLIO DE TRENTO, 233 | PIO V, 236
CAPÍTULO XXVII – O RECUO DO ISLÃO A ORIENTE, 241 A BATALHA DE LEPANTO, 241 | O CERCO DE VIENA, 244
CAPÍTULO XXVIII – A INQUISIÇÃO, 247
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ÍNDICE
CAPÍTULO XXIX – A COMPANHIA DE JESUS, 255 A ACOMODAÇÃO, 262
CAPÍTULO XXX – A GUERRA DOS TRINTA ANOS, 267 CAPÍTULO XXXI – A FRANÇA E AS DORES DE CABEÇA DA SANTA SÉ, 271 O JANSENISMO, 272hO GALICANISMO, 273hO EPISCOPALISMO, 274hO ILUMINISMO, 275hPRECURSORES DAS LUZES, 277hVOLTAIRE, 278hJEAN-JACQUES ROUSSEAU, 278hDENIS DIDEROT, 279
CAPÍTULO XXXII – A REVOLUÇÃO FRANCESA E A IGREJA, 281 CAPÍTULO XXXIII – NAPOLEÃO E OS PAPAS, 289 CAPÍTULO XXXIV – MIL CAMINHOS PARA DEUS, 293 O CONGREGACIONISMO, 295hO PRESBITERANISMO, 295hO EPISCOPALISMO, 296hIGREJA EPISCOPAL, 296hIGREJAS EVANGÉLICAS, 296hQUAKERS (QUACRES), 297hEXÉRCITO DE SALVAÇÃO, 297hIGREJA METODISTA, 298hIGREJAS ANABAPTISTA E BAPTISTA, 298hIGREJAS ADVENTISTAS, 299hMORMONISMO, 299hTESTEMUNHAS DE JEOVÁ, 300hIGREJAS PENTECOSTAIS, 300hCIENTICISMO, 302
CAPÍTULO XXXV – OS CONFLITOS RELIGIOSOS NO NOSSO TEMPO, 305 CAPÍTULO XXXVI – O PRINCÍPIO DO FIM DOS MITOS, 311 O CRIACIONISMO, 311hDARWIN E O EVOLUCIONISMO, 313hMARX E O MATERIALISMO DIALÉCTICO, 316
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ÍNDICE REMISSIVO
A
Aachen, 85, ou Aix-La-Chapelle, 169 Abel, filho de Adão, 34 ablução, lavagem do corpo, 74 Abraão, patriarca bíbl., 22, 77 Abu-Bekr, compan, de Maomé, 75 Acácio, anti-papa, Cisma de, 89, 90 Academia de Alexandria, 68 Academia de Ciências do Vaticano, 268 acomodação, 227/8/9 Ácon ou Akko, ant. Acre, cidade israelita, 101 Acordo isabelino, 188, 193 Acto de Supremacia, 187/8 Actos dos apóstolos, 161/3, 257 adopcionismo, 43 Adriano IV, papa, 128 Adriano V, papa, 121 Adriano VI, papa, 155 Adventista, igreja, 256 Adventista da Promessa, igreja, 258 Adventista do sétimo dia, igreja, 252 Aeteni Patris, encíclica papal, 125 Afonso I, rei de Portugal, 97 Afonso II, rei de Portugal, 114 Afonso III, rei de Portugal, 114 Afrodite, deusa grega do amor, 20 Agânia, cidade italiana, 135 Agapito II, papa, 85/6 Agar, mãe de Ismael, 77 Agostinho, converteu reis ingleses, 44, 60 Agostinho, S., de Hipona, 65, 71, 134, 144, 214, 236 agostinianos, 175, 236/7/8 Alais, Paz de, 201 Alarico, chefe vândalo, 70 Alberto, anti-papa, 96, 111 Alberto Magno da Baviera, 121/4 Albi, cidade fancesa, 131 albigenses, 131, 196 Álbion, GB, falésias brancas, 103 Albrecht, arcebispo, 177 Alcorão, 23, 74/5/6/7, 259 Alexandre, de Constantinopla, 45, 56 Alexandre II, papa, 88, 100 Alexandre III, papa, 96/7, 129 Alexandre IV, papa, 123
Alexandre V, papa, 140 Alexandre VI, papa, 153/4/5/6 Alexandria, concílio, 45 Alexandria, sínodo, 45 Ali, genro de Maomé, 75/6 Ali Paxá, na batalha de Lepanto, 210 Allan Kardec,o livro dos espíritos, 259 Alta Escolástica, 119, 120/1/2, 144 Amaterasu, deus japonês, 17 Ambrósio, S., bispo, 60/3/4/5 Amon, deus egípsio, 20 Anabaptista e batista, igrejas, 255 Ana Bolena, mãe de Isabel I, 187 Anacleto, anti-papa, 117 Ana da Áustria, rainha de Fr., 201 Anastácio III, papa, 85 Anastácio, patriarca de Alexandria, 52 Anatólia, antiga Turquia, 32/3, 42/4, 58, 99, 102 Anchieta, José, jesuíta, 224 André II, rei da Hungria, 105 Anglicana, igreja, 188, 193/4, 253 anglo-saxões, 70/1 animismo, 15, 16, 17, 20 Anna Goldin, bruxa queimada, 216 Antióquia, ant. c. turca, 33, 35 António José da Silva, inquisição, 218 António, rei de Portugal, 108 António, S., 24 António Vieira, padre, 123, 218 Apocalipse, 123, 161/2/3//4/5, 185 Apolo, deus grego da música, 33 apologeta, 35 Apolónio, S., 33 apostasia, apóstata, 56, 127 Apóstolos, concílio dos, 33 Aquaviva, Geral Comp. de Jesus, 226 Aquino, S. Tomás, 60, 115, 121/2/4/5, 144, 214 Ardabau, antiga cidade turca, 43 Arimã, o deus mau religião persa, 19, 21 Ário, arianismo, 45, 51/2 Aristóteles, aristotélico, 39, 119, 120/2/4, 133, 166 Arles, cidade ao sul de França, concílio, 50 Armada Invencível, 189, 190/1, 200/9 Arnaldo, arnaldismo, 128 Artur, rei da Inglaterra, 186/7 ascetas, ascetismo, 9, 43,63/4,134
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Assíria, igreja, 259 Atena, deusa grega da saber, 18, 20 Átila, chefe dos hunos, 70 atomistas, 166 Augsburgo, c., acordo, 178, 205, 231/4 Augustinus, obra de C. Jansen, 236 Aúra-Masda, o deus bom dos persas, 19, 21 Autun, bispo, 244 ávaros, povo bárbaro oriental, 81, 149 Avelar Brotero, 219 Averróis, fil., muç. de Córdova, 120, 133 Avesta, escritos de Zaratustra, 21 Avicena, filósofo persa, 120/2/4 Avignon, cid. ao sul de Fr., 109/10, 135/7/8/9, 141 Azrait, nome de anjo maometano, 74 Azusa, Rua, 257
B
Babe, babismo, 259 Babilónia, antiga cidade no Eufrates, 22, 161/5 Baco, deus romano do vinho, 20 Bacon, Rogério, 120/7, 133/4/6 Bahaullah, discípulo de Babe, 259 Baker, Mary Eddy, 258 Balduíno, rei da Flandres, 104 Ball, Jhon, 145, 186 Baltazar Cossa, 140, 146 Bárbara, Stª, 24 Barba Roxa – ver Frederico I do SIRG, 96 Bardesanes de Alexandria, 40 Bari, arcebispo de, 139 Bartolomeu, S., Evangelho de, 162, 198/9, 201 Basileia, concílio de, 147, 150 Basílides de Alexandria, 40 Basílio da Gama, 237 Bassville, Hugo de, 246 Beneditinos, Ordem dos, 157 Bento IV, papa, 84/5 Bento V, papa, 87 Bento VI, papa, 87 Bento IX, papa, 87/8 Bento X, papa, 88 Bento XIII, papa, 142 Bento XIV, papa, 228 Bernardo, S., 102 biblicismo, biblicistas, 121, 160/5 Biblioteca de Alexandria, 28, 68 Biblioteca de Córdova, 28, 75 Biblioteca do Vaticano, 154 bicefalismo, 139/40 Big Bang, 268 Bispo Universal, 72 Bizâncio, bizantino, 52/7, 69, 72, 90, 113/14
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Boaventura, 121 Boccaccio, 133 Bockelson, anabaptista, 185 Bodin, João, religião natural, 239/40 Bogomil, sacerdote cátaro, 130 Bonifácio VII, papa, 87 Bonifácio VIII, papa, 109, 135 Borgia, César, 155 Borgia, Rodrigo, 154/5 Borromeu, Carlos, Arcebispo, 206/7 Bossuet, galicanista, 237 Braga, concílio de, 64 Bragadino, Marco, 210 brâmanes, 18, 227/8 Brandeburgo, Alberto de, 111, 180, 252 Brígida, princesa da Suécia, 138 Buda, budismo, 27, 39, 49, 228 Buffon, Georges, iluminista, 242 bugres, povo que foi para a Bulgária, 130
C
Caaba, a pedra negra de Meca, 75 Cadéssia, batalha de, 76 cadomblé, 15 Calcedónia, concílio ecum. (451) de, 58, 67 Cali, deusa hinduísta, 19 califa, 73/5/6/7 Calígula imperador romano, 165 Calisto I, S., anti-papa, 44 Calisto II, papa, 96 Calisto III, papa, 96, 154 Calvino, calvinismo, 60, 128, 165,236 Cam, filho de Noé, 22 cânone, 42/3, 58, 193 canonizados, 74 Canossa, castelo de, 95 Cantuária, arcebispo de, 145, 187 Carlos I rei de Inglaterra, 194/5 Carlos II rei de Inglaterra, 195 Carlos III rei de Espanha, 225 Carlos V imperador do SICR, 81, 155/6, 168 Carlos IX rei de França, 196/7/8/9 Carlos Magno, 81/6, 100, 119 Carlos Martel, 80 Carolíngio, dinastia francesa, 82/3 Carpócrates de Alexandria, 40 Cartago, cartaginês, 23, 44/6, 57, 60 Cartago, sínodo de, 65 Casa de Áustria, 212, 232/3 Catarina de Aragão, 186/8 Catarina de Médicis, raínha fr., 196/7 Catarina de Siena, 138 cátaro, catarismo, 129/30/1
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ÍNDICE REMISSIVO
Catesby, Roberto, 189 cavaleiros do Apocalipse, 164 Caxemira, 28, 262 Cecília, Stª, 24 Cerdon da Síria, 40 Cervantes, Miguel, 211 César Augusto, Imp., 86 Cherbury, 240 Chlumski, João, 147 Cíbele, deusa da Anatólia, 43 Cícero, 166 cienticismo, 258 Cirilo, patriarca de Alexandria, 66, 68 cisma, cismático, 41/5/9, 84, 127 cisma anglicano, 156 Cisma do Ocidente, Grande, 135, 157 Cisma do Oriente, Grande, 89, 90/6 Cister, Ordem de, cisterciense, 122, 236 Clemente II, papa, 88 Clemente III, papa, 95, 103, 122 Clemente IV, papa, 116 Clemente V, papa, 109, 137/8 Clemente VI, papa, 137 Clemente VII, papa, 139, 169, 181/7 Clemente XI, papa, 229, 239 Clemente XIV, papa, 225, 238, 245 Clermont, concílio de, 99 Clóvis, rei dos francos, 46, 70, 80, 235 Cluny, mosteiro de, 93/4 Código do Direito Canónico, 127 Colégio Cardinalício, 153/4 Colégio de Harvard, 194 Coligny, Gaspar de, 198/9 Compostela, catedral de, 64 conciliaristas, 138, 140/1/2, 150/4, 170/3, 237 Concílio, 18, 33, 45, 51/2/3/7/8, 64/5 Condé, Luis de, 197 confederalistas, 182/3, 195 Confissão dos 39 artigos, 188, 193 Confúcio, 27, 228 Congregação do Santo Ofício, 206, 219 Congregação para a Doutrina da Fé, 219 congregacionismo, 253 Conrado, 95 Conrado III, 102 Conselho Presbiteriano, 253 Constança, concílio ecum., 140/1/5/6/7 Constança, mãe de Frederico II, 132 Constâncio, Imperador romano, 46, 50/5/6 Constâncio, Imperador romano, 56 Constante, Imperador romano, 56 Constantino I, Imp. rom., 55 Constantino II Imperador romano, 55 Constantino XI imperador bizantino, 151
Constantino, cisma, 89, 90 Constantinopla, 28, 35, 46, 51 Constantinopla, concílio ecum. (381), 56 Constantinopla, concílio ecum. (563), 58, 66 Constantinopla, concílio ecum. (681), 58, 68 Constantinopla, concílio ecum. (869), 58, 90 Convenção Baptista Nacional, 258 Convenção Geral da igreja Episcopal, 253 Copta, Igreja, 67, 259 Cossovo, batalha de, 101 Cotrone, batalha de, 87 Coutras, batalha de, 200 Cranmer, Tomás, 187/8 Crépy, paz de, 170 Crescêncio, 87 criacionismo, 242, 268 Crisna, deusa do amor hinduísta, 19 Cristadelfos, igreja, 259 Cristo, Ordem de, 110 cristologia, 41 Cristóvão, anti-papa, 84/5 Cristóvão S., 24 criticismo, 144, 240 Croca, José Ramalho, 274 Cromwell, Oliver, 194/5 Crono, deus grego pai de Zeus, 17 Cruzadas, 99, 100, 101/4/5 Cúria romana, 116
D
Dalai Lama, 264/5 D’Alembert, João, 242 Dalmácia, 46, 104, 160 Damasco, cidade, califado de, 75/6, 102 Dâmaso de Roma, 56 Dâmaso, papa, 88 Damião de Góis, 168, 217 D’Anjou, duque, 197 Dante, 80, 133 Danton, Jorge, 245 Darwin, Charles, Darwinismo, 267/9, 270/1/3 David, 161 David Korach, 165 Descartes, cartesianismo, 144, 240 Decameron, 133 Declaração do Clero Galicano, 237 Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, 244 De Clementia, 181 Defensio Ecclesiae Romanae, 81 Defensor da fé, 186 Defesa dos sete sacramentos, 186/8 Deificação, 14, 17
285
RELIGIÃO, PORQUÊ?
Delfos, santuário grego, 19 Demiurgo, 39 Descartes, René, cartesianismo, 240 despotismo iluminado, 224 dia de S. Bartolomeu, massacre, 198/9 diácono, 34 Diderot, Denis, 242 diocese, 60, 254 Diocleciano, Imperador Romano, 46 Dioniso, deus grego do vinho, 20 Dióspolis, sínodo de, 65 Divina Comédia, 80 Djin, génios, 74 Doação Constantina, 80 Doctor Angelicus, 125 dogma, 60, 115, 124 Domingos de Gusmão, S., 215 dominicanos, 124, 131/4, 156, 206, 217, 227 Donato, donatismo, 46/7, 50, 60, 83 Drake, Francisco, 190 Drusos, 77, 259 Dualismo, 19, 24, 43, 63, 130, 240, 267 Dumiate, cidade egípcia, 105 Duns Escoto, 121/2 Duphot, general, 247
E
Ebionita, 38 Eckard, João, 121 Edelberto, rei britânico, 71 Éden, 74 Edessa, antiga cidade na Anatólia, 102 Édito de Amboise, 197 Édito de Fontainebleau, 201 Édito de Milão, 50 Édito de Nantes, 200/1, 224 Édito da Restituição, 233 Édito da Tolerância, 228 Édito de Worms, 179, 180, 252 Eduardo I, rei de Inglaterra, 195 Eduardo III, rei de Inglaterra, 145 Eduardo IV, rei de Inglaterra, 187/8 Éfeso, antiga cidade na Anatólia, 61/6, 163 Éfeso, concílio ecum. (431), 65 Elcesai, elcesaísmo, 38 Elogio da Loucura, 168 empirico, empirismo, 124, 144 encratitas, 43 Endovélico, deus hispânico, 19, 214 Engels, Frederico, 272 Engrácia, Stª., 24 Éones, 39 episcopalismo, Episcopal, igreja, 238, 253
Manuel Souto Teixeira
Epístolas, 43, 161/3 Erasmo, 167/8, 180/2/4/7 Escolástica, 119, 120/1, 136 Escoto, Eriugena, 122 Escoto, Miguel, 133 Erfurt, cidade alemã, 175 Escrituras, 39, 119, 124, 144, 162/6, 175, 182/4/5, 204/5, 255 Espártaco, 32 Espinosa, Baruch, 240, 268 espiritismo, 259 Espírito Santo, 24, 34, 38, 42, 110, 115/6, 123, 130, 138, 141, 152, 161, 215, 256/7/8 Esquilache, 225 Estado Pontifício, 81, 137, 153/4/5/6/7, 169, 174, 204 Estêvão II, papa, 80 Estêvão IV, papa, 84 Estêvão VIII, papa, 85 Estêvão IX, papa, 85 Estêvão X, papa, 88 Estêvão, pastor, 104 Estêvão, Stº., 37 Evangélicas, igrejas, 254 Evangélica Revivalista, igreja, 254 Eucaristia, 91, 129, 176, 188 Eugénia, Imperatriz romana, 56 Eugénio III, Papa, 102 Eugénio IV, papa, 150/1/4 Eugénio VII, papa, 154 Eugénio, Imperador Romano, 57 Eunuco, 75 Eusébio (historiador), 36 Eusébio de Nicomédia, 45/6, 52 Eutiquiano, 58, 67 Evangelho, 31, 37, 123, 161/2/3, 227, 257 evangelismo, (ver pentecostalismo), 160 evolucionismo, 7, 269 exarcado, 81 excomunhão, 18, 66, 88, 91/4/6, 114/7, 123, 136, 178, 183/7, 240 Exército de Salvação, 254 expiação, 34
F
fanatismo, 9, 28, 75, 167, 184, 237 Fátima, filha de Maomé, 25, 75 Félix V, papa, 150/1, 182 Fenícia, na costa do Líbano, 23 Fernando I, Imperador do SIGR, 156 Fernando II, Imperador do SIRG, 232 Filinto, Elísio, 219 filioque, 91
286
ÍNDICE REMISSIVO
Filipe II, rei de Espanha, 156/7, 188, 190/9, 209/10, 216 Filipe I, rei de França, 188/9 Filipe II, rei de França, 103 Filipe IV, o Belo, Rei de França, 109, 135/7 Filipe, S., Evangelho de, 163 fixismo, 269 Fleming, bispo, 145 Flora (Fiore), abadia, 117, 122/3 Flora, Joaquim de, 122, 160 Fócio, cisma de, 58, 89, 90 Fondi, cid. a sul de Roma, conclave de, 139 Formoso, Papa, 84/5 Francisco de Assis, S., franciscanos, 123, 133/4, 143, 227/8 Francisco I, Rei de França, 168/9, 170, 181, 196 Francisco II, Rei da França, 196 Francisco I, Imp., do SIRG, 250 Francisco Xavier, S-, 223 Francónia, região do sul da Al., duque, 86 francos, 70, 83 Frederico I, Barba Roxa, Imp. do SIRG, 96, 132 Frederico II, o Grande, rei da Prússia, 239 Frederico II, Imp. do SIRG, 117, 123/7, 132/3/6, 165/6 Frederico III, Imp. do SIRG, 154 Frederico V do Platinado, 232 Frigg, deus nórdico, 17 Frígia, região a oeste da atual Turquia, 43/4 Fundação Internacional Racionalista, 274
G
Gabriel, arcanjo, 23, 74 Galata, cidade na atual Roménia, 104 Galério, Imp. romano, 50 Gália, atual França, 18, 21, 46, 56, 80 Galicanismo, 237/8 Galileu Galilei, 7, 216 Garcia de Orta, 218 Geia, deusa grega, 17 Gelásio, papa, 96 Genesis, 268 Gengiscão, chefe mongol, 149 George Fox, fundador dos quacres, 254 Gerhard Groote, biblicista holandês, 160 Giordano Bruno, 216 girondinos, 246 gnósticos, gnosticismo, 39, 40, 41, 130 gnosiologia, 125, 271 Godofredo de Bulhões, 102 Gomorra, antiga cidade na Palestina, 22 Graça, estado de graça, 24, 32, 57, 60/5, 74, 114, 145, 176, 185, 204, 236
Graciano, Imperador romano, 56, 64 Grande concílio cátaro, 131 Gray, joana, 188 Gregório I, o magno, papa, 71, 72 Gregório V, papa, 87 Gregório VI, papa, 87 Gregório VII, papa, 88, 93/4, 135/9 Gregório VIII, papa, 96, 246 Gregório IX, papa, 105, 132, 214 Gregório X, papa, 116, 121/5 Gregório XI, papa, 138 Gregório XII, papa, 142 Gregório XIII, papa, 199 Guerico, chefe vândalo, 70 Guilhereme, o Conquistador, 100 Guise, duque, 197/9, 200 Gutenberg, 35, 159 Guy Fawkes, 189, 215
H
Habsburgo, dinastia austr. de 1278 a 1918, 211, 231/2/3 Hagiógrafos, 161 harém, 75 Hassan, hassidismo, filho de Ali, 75 Hegel, Frederico, 65, 272 Helenismo, 120 Henrique d’Albano, 131 Henrique II, Rei de França, 169, 171, 196, 204 Henrique III, Rei de França, 197/8/9, 200 Henrique IV, Rei de França, e de Navarra, 197, 200 Henrique I, Rei de Inglaterra, 96 Henrique VIII, Rei de Ingraterra, 156, 169, 186/7 Henrique, D., Rei de Portugal, 6, 154, 217 Henrique I, o Passarinheiro, Imperador do SIRG, 85 Henrique III, Imperador do SIRG, 88 Henrique IV, Imperador do SIRG, 94/5/6, 114, 135 Henrique V, Imperador do SIRG, 96 Henrique VI, o cruel, Imperador do SIRG, 97 Hera, deusa grega, 17 Heresia, herege, herético, heresiarca, 36, 41/5, 64/8, 89, 110, 127/8/9, 130/1, 140, 144/6, 156 Hermano, 95 Herodes, o Grande, 23, 37, 59, 61 heterodoxo, 91 Hideyoshi, 228 hinduísmo, hindu, hinduísta, 17/8/9, 20, 21, 27/8, 227, 262/5 Hipácia, 68
287
RELIGIÃO, PORQUÊ?
Manuel Souto Teixeira
Hipólito, anti-papa, cisma, 44/5, 89 Hipona, antiga cidade argelina, 60/1, 120 Ho Chi Minh, 272 Hoffman, Meichior, 185 Honório II, papa, 88 Honório III, papa, 132 Horácio, 166 Hórus, 17, 34 hospitalários, 108 huguenotes, 157, 193/5/7/8/9, 200/1, 233/7 humanistas, 65, 155, 165/6/7/8, 182, 218 Hume, David, 242 Hunos, 73, 74, 161 Huris, 78 Huss, João, hussitas, 105, 141/6/7, 150/7, 160, 174/8, 216
I
Ismael, ismaelitas, filho de Abraão, 77, 259 Ismael, Xá, 76 Ivã, o Terrível, czar da Rússia, 162 Izanagi, esposa de Izanami, deusa japonesa, 17 Izanami, deus japonês, 17 Izrafil, anjo, 74
J
Icónio, batalha, 103 Iconoclastas, 58, 198 Idealismo, 13, 272 Idolatria, idólatras, 21, 33, 55/8/7, 71/9, 174, 183 Iluminismo, 238 Imola, principado italiano, 154 Império do Divino Espírito Santo, 123 Império Latino de Constantinopla, 97, 104 Império Sassânida, 22 Inácio, patriarca bizantino, 58,90 Incardinados, 116 Index, 156 Indulgências, 144, 167, 174/6/7/8, 205, 223 infalibilidade, 89, 144, 178, 223, 237 Inocêncio II, papa, 117 Inocêncio III, papa, 96/7/8, 109, 113, 123/9, 131/2, 214 Inocêncio IV, papa, 117, 131 Inocêncio VIII, papa, 154/5/6 Inocêncio IX, papa, 212 Inocêrmcio X, papa, 236 inquisição, 7, 28, 60, 117, 130/1, 156/9, 168, 206, 213/4/5/6/7/8/9, 221, 237 Institutio Religionis Chistianae, 182 interdição, 94, 114, 224 investidura, 93/4/6 Irving, Eduardo, Irvinguista, igreja, 259 Isaac, 77 Isabel I de Espanha , Raínha Católica, 186, 217 Isabel I de Inglaterra, 157, 207 Isabel de Portugal mulher de Carlos V, 188 Isabelino, acordo, 188, 193 Ísis, 17, 34 Islamismo, islamitas, islâmicos, islão, 19, 23/7/8, 49, 73/4/6/7, 213, 254, 265
Jacob de Edessa, jacobitas, 67 Jacobinos, 246 Jafa, cidade palestiniana, 103 Jafeth, filho de Noé, 22 Jaime I, rei de Inglaterra, 189, 194 Jamarat, ponte de, 24 Jansen, Cornelius, jansenismo, 236/7/8 Jarnac, batalha de, 198 Jean-Jacques Rousseau, 241 Jeová, 22, 39, 42 Jerónimo, S., 35, 64, 120, 160 Jerónimo de Praga, 147 Jerusalém, 23, 33, 51/59, 64/5, 76, 97/9, 100/2/3/4/7/8, 132, 165, 185 Jesidas, adoradores do demónio, 259 Jesuítas, 222/3/4/5/6/7/8/9, 231/2/6/7, 245 Jesus, 21/3, 31/2/3/4/7/8, 40/1/2/3/5/9, 51/8 Jihad, 75 Joana D’Arc, 216 Joana, papisa, 84 Joana I, raínha da Sicília, 137 Joana Seymour, raínha de Inglaterra, 187 João de Aix, D., bispo, 139 João da Áustria, 210/1 João Batista, S., 43, 107/8 João de Brienne, 105 João Evangelista, S., 161/163 João III, rei de Portugal, 217/8 João V, rei de Portugal, 175 João VIII, Imperador bizantino, 150 João VIII, papa, 83 João IX, papa, 84 João X, papa, 85 João XI, papa, 85 João XII, papa, 86 João XIII, papa, 87 João XIV, papa, 87 João XVI, papa, 87 João XX, papa, 87 João XXI, papa, 121 João XXII, 138, 144 João XXIII (ver Baltazar Cossa), 121, 140/1/2/6 João Paulo I, papa, 113 João Paulo II, papa, 25 João, S., Evangelho de, 110, 130, 163, 256
288
ÍNDICE REMISSIVO
João, S., Ordem de, 111 Job, 161 John Ball, 145 John Thomas, 259 José II da Áustria, 238, 248 José, D., Inquisidor-geral, 175 Josefina, 250 Josué, 161 Joviano, Imperador Romano, 56 Joviniano, Imperador Romano, 63 Judeus, judaísmo, 21/2/3/8, 32/3/4/5/7, 42/6, 68, 75, 100, 117,120, 133, 157, 161, 195 Judas, S., Evangelho, 161 Juízo final, 9, 21/3, 33, 43, 73/4, 115, 123/4, 165 Juliano, O Apóstata, Imperador romano, 56 Júlio II, papa, 154/5, 187 Júlio III, papa 156, 171, 204/5 Júpiter, 17, 20 Justificação, 75, 176, 204/5 Justiniano, Imperador romano, 70/2 jutos, 71/2
K
Kang Hsi da China, 228 Kant, Immanuel, 65, 144, 238 Kappel, batalha de, 185 Kara Mustafá, 211 Khayyam, 77 Khoja, 77 Knox, João, 193
L
Lamarck, João Baptista, 219, 269 Lando, papa, 85 Langue d’oc, 131 Lao Tsé, 27,228 Latrão, basílica de, 50 Latrão, concílio ecuménico, (1123), 117 Latrão, concílio ecuménico, (1139), 117 Latrão, concílio ecum., (1179), 116/7, 129 Latrão, concílio ecum., (1215), 18, 117, 123, 131 Latrão, palácio de, 50, 86 Leão IV, papa, 83 Leão V, papa, 84/5 Leão VI, papa, 85, 90 Leão VII, papa, 85 Leão VIII, papa, 86/7/9, 91 Leão IX, papa, 88 Leão X, papa, 155, 169, 177, 186 Leão XIII, papa, 125 Leão, o Grande, bipo de Roma, 70 Lefèvre, Jaques, 196 Leopoldo II, rei da Áustria, 245
Lepanto, Batalha de, 108, 157, 189, 191, 207/9, 210, 211 Lion, concílio ecum. de, (1245), 117, 121/5, 133 Lion, concílio ecum. de, (1274), 116/7, 121/5 liberais, liberalismo, 219, 226/7, 274 Liberdades da igreja Galicana, As, 237 Licínio, Imperador romano, 50/1 Liga Católica, 199, 232 Liga do Direito cívico, 185 Liga Lombarda, 96 Livre-arbítrio, 15, 60, 74, 157, 176, 236 Livro Comum de Orações, 188 Livro do Cordeiro, 165 Livro do Mórmon, 256 Locke, 240 Lollard, Movimento, 144/5, 186 lombardos, 70/2, 80/1, 104 Lorenzo Valla, 81 Lorraine, cardial, 200 Lotário, rei da Lorena, 83 Loyola, Stº. Inácio de, 215, 221/3 Lucas, S., Evangelho, 31/8, 45, 161/2 Lúcifer, 22 Lúcio III, papa, 129, 131 Luís da Baviera, Imperador do SIRG, 138, 144 Luís VII, rei de França, 102, 130/1 Luís IX, o Santo, rei de França, 105 Luís XIII, rei de França, 201 Luís XIV, rei de França, 201, 224, 237 Luís XV, rei de França, 225 Luís XVI, rei de França, 243/5 Luís, o Bonacheirão, 81 Lunéville, Tratado de, 248 Lutero, Martinho, luteranismo, 60, 128, 155, 165/7/8/9, 175/6/7/8/9, 180/1/2/3/4, 193/6/7, 257
M
Macedo, Edir, 258 Maçães, 226 Maimónides, o judeu de Córdova, 120 Makários, arcebispo, 263 Malaquias, 161 Melécio, cisma de, 49 Malgrafe, 95 Malta, Ordem de, 107/8, 249 Manes, manicaísmo, 22, 33, 49 Mansurá, Batalha de, 105 Manuscritos do mar Morto, 10, 31 Manz, Felix, 185 Mao Tsé-tung, 272 Maomé, 21/3, 45, 73/4/5 Maomé II, sultão turco, 149 Marcelo II, papa, 156, 171, 205
289
RELIGIÃO, PORQUÊ?
Marcião, marcionismo, 42 Marco Polo, 136 Marcos, o egípcio, 63 Marcos, S., Evangelho, 31, 38, 161/2 Margarida de Valois, 198 Maria, mãe de jesus, 23/4, 31/4/8, 63/5/6, 115, 161/2/3, 176 Maria Antonieta, raínha de França, 245 Maria Luísa, arquiduquesa da Áustria, 250 Maria Madalena, Stª., 33 Maria Madalena, Stª., Evangelho, 162/3 Maria Stuart, rainha da Escócia, 188/9 Maria Tudor, A Sanguinária, 187/9, 193, 215 Marianismo, 25 Marienburg, cidade belga, 111 Marino, papa, 85 maronitas, 68 Marózia Tusculani, 85/6 Marquês de Pombal, 223/5, 239 marranos, 217/8 Martinho V, papa, 142/5/7 Martinho, D., bispo, 139 Marx, Carlos, marxismo, 10, 240, 267, 272/3/4 Mary Baker Eddy, 258 materialismo, 177, 242 materialismo dialético, 271/2/3/5 Mateus, S., Evangelho, 31/8, 161/2 Matilde, condessa, 95 Maxêncio, Imperador romano, 46, 50 Maximila, 43 Mazarino, cardeal, 116, 201, 237 Meca, cidade na Arábia, 19, 24/8, 73/4/5 Medas, 21 Medicis, família, 154/5 Medina, cidade na Arábia, 74/5 Médium, 14, 259 Melanchton, Filipe, 180 Melécio, cisma de, 49 Mem Bugalho, 159 Mênfis, antiga cidade no Egito, 63 Menno Simons, 189 Mercati, monsemhor, 84 Mesa Valdense, 129 Mesopotâmia, 32 Messias, 32/5/7/8, 42, 115, 161 Metropolitano, 83, 116, 165 Micael, anjo, 74 Miguel Cerulário, 91 Miguel IV, de Niceia, 104 Mílvio, Ponte, 50 Minerva, deusa romana da sabedoria, 20 miraculosidade, 14, 16 misticismo, 9 mitologia, 9, 10, 17, 24, 34/6/8, 45/9, 56, 166
Manuel Souto Teixeira
Mitra, 21 moakibat, anjos, 74 moçárabes, 28 modalismo, 45 Mogúncia, 84 Moisés, moisaísmo, 38, 161 mongóis, 27/8, 67, 76, 101, 149 Mónica Stª., 60 monismo, 240 monofisismo, 67, 90 monoteísmo, 5, 15, 20/1, 73, 80, 173, 213 monotelismo, 67/8 Montanha Branca, batalha da, 232 montanheses, 246 Montano, montanismo, 43/4 Monte Cassino, mosteiro, 124 Montebello, marquês, 156 Montesquieu, Carlos, 242 Montmorency, duque, 198 More, Tomás, 167/8, 187 muçulmano, mourisco, muslim, 28, 73/4/5/6/7, 80, 98/9, 100/3/9, 117, 132/3, 168, 182, 212, 262/3/4/5 Mühlberg, Batalha de, 171 Münster, cidade alemã, 185 Münster, acordos de, 233 Münzer, Tomás, 179, 180/5
N
Najaf, Cidade santa xiita no Iraque, 76 Narses, general bizantino, 70 Natale, Solis, 59 Natividade, Igreja da, 51 Nazaré, nazareno, nasareu, 38, 161 neocriacionismo,268 neotomismo, neo-escolástica tomista, 125, 136 nepotismo, nepote, 153/4/5/6/7, 167, 175, 205/6 Nero, Imperador romano, 33, 165 Nestório, nestorianismo, 58, 65/6/7 Newton, Isaac, 165, 271 Nice, tratado de, 170 Niceia, antiga cidade na Turquia, 58, 91, 183 Niceia, concílio ecum. (325), 45, 52/8, 91, 183 Nicodemo, Evangelho de, 162 Nicolau I, papa, 83/4, 90 Nicolau II, papa, 88 Nicolau IV, papa, 134 Nicolau V, papa, 151/4 Nicolau da cruzada infantil, 104 Nicópolis, Batalha de, 150 Nobili, Roberto, 227 Nóbrega, Manuel da, jesuíta, 224
290
ÍNDICE REMISSIVO
Noé, 22 nominalismo, 121/2, 143 normandos, 82/3, 101 Nova Roma, 91 Novaciano, cisma, 89 Novo Rei de Israel, 185 Novo Testamento, 6, 31, 161/7, 257 Noyon, 181 Numídia, 61
O
Occam, Guilherme, 122, 143/4, 160/7, 178 Octaviano, Papa, 86 Odin, 17 Ogdaicão, chefe mongol, 149 Omar, 76 omíada, dinastia, 75 omnipotente, 14/5, 20/4, 268 omnipresente, 14 omnisciente, 14/5, 20/2 Opus Dei, 224 Organum, 119, 120 Origem das Espécies, A, 270/1 Ortodoxo, igreja, ortodoxia, ortodoxismo, 28, 58, 69, 75, 151, 211, 225, 235, 263 Osiris, 17/9, 34 Osnabrück, cidade alemão junto da Holanda, acordo, 233 Osseano, osseanismo, 38 ostrogodos, 46,70/2 Otão I, Imperador do SIRG, 85/6/7 Otão II, Imperador do SIRG, 87 Otão III, Imperador do SIRG, 80/7 Otman ou Outomão, otomanos, 75/6
P
Pagão, paganismo, 17/9, 20/1, 56/7, 70 Palestina, 22/3, 32/8, 65, 99, 101/2/3/5 Paliano, ducado, 156 pálio, 98, 137 panteísmo, 17, 63 Paraíso, 21/2/4, 32/4, 74, 268 Parma e Piacenza, ducado, 156 Pároco, paróquia, 35/6, 139, 156, 182, 205 Parses, 21 Parvati, deusa hinduísta, 17/9 Páscoa, 33, 257 Pascoal II, papa, 96, 108 Pascoal III, papa, 97 Passau, tratado de, 171, 180 Pasteur, Luis, 144 patarinos, 131 Patmos, ilha de, 163
Patripassianos, patripassionismo, 44 Paula, madre, 175 Paulo II, papa, 25, 154 Paulo III, papa, 156, 168, 170, 204, 215/6 Paulo IV, papa, 156, 171, 215 Paulo VI, papa, 159, 219 Paulo, S., 33/5/8, 52, 61, 161 Pavia, batalha de, 169 pecado original, 22, 34, 65, 115, 204, 236 Pedro Hispano ou Julião, papa, 121 Pedro II, rei de Aragão, 130 Pedro, O Eremita, 101 Pedro II, papa, 129 Pedro, S., 24 33, 42/3, 52/7/8, 81/3, 91, 161, 215 Pedro, Evangelho de, 162 Pedro, igreja, 50, 81 Pelágio, pelagianismo, 58, 64/5 Penitência, 115, 128/9, 176 Pentecostes, pentecostal, 257 Pepino, O Breve, 80/1 Pera, antiga cidade na Anatólia, 104 Perenidade, 14, 16, 121 Perpuza, antiga cidade na Frígia, 43 Petrarca, 133 Pfeiffer, Henrique, 179 Pierluigi Farnese, 156 Pilatos, Póncio, 37, 214 Pio II, papa, 154 Pio III, papa, 154/5 Pio IV, papa, 156, 205/6 Pio V, papa, 125, 157, 188, 198, 205/6/7, 210, 215/7, 222/3 Pio VI, papa, 245/9 Pio VII, 225, 249, 250 Pio X, papa, 219 Pio XII, papa, 153 Pisa, concílio de, 140 Pitágoras, pitagóricos, 166 Pithon, 237 Platão, platonismo, 19, 39, 120/1, 166 Pobres de Lion, 128 Poitiers, batalha de, 76, 80 Poliandria, 75 Politeísmo, 5, 15/7/8/9, 20, 21/1/4/7, 39, 79 Ponthion, aliança de, 80 Pontifex Maximus, 51, 113 Pole, Reginald, cardeal, 188 Pornocracia, 86 Port-Royal, mosteiro, 236 Predestinação, 74, 181 Presbitério, presbiterianismo, 253 Primum movens, 9 Priscila, 43 Prisciliano, priscilianismo, 43, 57, 63/4, 213
291
RELIGIÃO, PORQUÊ?
Manuel Souto Teixeira
Profetas, 161 Protector de Inglaterra, 195 protestantismo, 111, 157, 188, 198, 205/6/7, 210, 215/7, 222/3 Províncias Unidas, 198, 233 Ptolemais, antiga cidade, mais tarde São João de Acre, hoje Akko em Israel, 45 Purgatório, 67, 74, 115, 129, 205, 242 Puritanos, puritanismo, 193/4/5
Q
Quinto Império, 123 Quakers, 254 Quarenta e Dois Artigos de Fé, Os, 188 Quatro Cavaleiros do Apocalipse, 164 Querbala, cid. santa xiita no Iraque, 76 quinto veda, 227
R
Ramadão, 74 Ratio studiorum, 226 Ratzinger, papa Bento XVI, 219 realismo, 121/2 Recaredo, rei visigodo, 46, 79 redenção, 33/4/8, 40/2, 52, 65, 115, 240/1 reencarnação, 16, 19 Reforma, 77, 83, 135, 145, 151, 165/7/8 Reia, deusa grega, 17 Reis Católicos, 81, 186 Rei do reino cristão de Jerusalém, 102 Renovação Carismática Católica, 258 ressuscitação, 34 revelação, 9, 14/5, 21/5, 40/3, 65, 123/4, 143, 161/6, 176, 240/2, 259 Rex et Sacerdos, 81 Ricardo, Coração de Leão, 103 Ricci, Mateus, 228 Richelieu, cardeal, 116, 201, 233/4/7 Ricimer, 70 Ritos malabares, 228 Ritualização, 15/6 Robespierre, Maximiliano, 245/6 Roccasecca, castelo de, 124 Rodolfo da Suábia, 95 Rogério I, rei da Sicília, 132 Roma Cátara, 131 Rómulo, Imperador romano, 70 Rothmann, 185 Rousseau, Jean Jaques, 241
S
Sabélio, sabelismo, 44/5 Sabóia, duque de 150, 182, 200 Sacco di Roma, 170, 204 Sacralização, 15, 16 Sacramentos, 47, 58, 65, 74, 114/5, 128/9, 144/5, 160/8, 171/6/8, 204 Sacro Colégio, 116/7, 136 Sacro Império Romano-Germânico (SIRG), 85/6, 93, 132, 157, 168 Saeculum obscurum, 82/3 Sagrada Congregação do Santo Ofício, 219 Sagradas Escrituras, 122/4, 144, 160, 162/5/6/7, 174/6, 184, 196, 205 Saladino, 102/3/8 Salomão, 161 Salomão, templo de, 108 Sânscrito, 227 Santa Aliança, 157, 274 Santa Liga, 210 Santa Liga Católica, 162 Santa Maria da Vitória, galera, 211 Santa Sofia, 91 Santíssima Trindade, 41/2/5, 66/7, 90/123 Santo sepulcro, basílica, 50, 99, 107 Santuário, 19, 25 São João de Acre (ver Ptolemais), 101/3 Sara, 77 Saragoça, concílio de, 64 Sarracenos, 81/3/6/7/, 100/2 Sassânida, Império, 22, 80 Saturnino de Alexandria, 49 Saturnino de Antióquia, 40 Savona, cidade italiana a oeste de Génova, 250 Saxões, 71 Sedento de Sangue, 155 Sedia gestatoria, 113 Segismundo, Imperador do SIRG, 141/2/6 Seis Artigos de Fé, 187 seldjuquidas, 99, 150 Selêucia, concílio, 66 Selim II, sultão turco, 162 Sella stercoraria, 84 Sem, filho de Noé, 22 semita, 23 Séneca, 166, 181 Sérgio II, papa, 83 Sérgio III, papa, 84/5 Servet, Miguel, 183/4 Seth, o deus mau da antiga religião egípcia, 19 Seymour, Joana, 187 Shaftesbury, 240 Shrewsbury, 269
292
ÍNDICE REMISSIVO
Silvestre I, papa, 80 Silvestre III, anti-papa, 87, 96 Simonia, 87, 94, 117, 155, 175, 206 Sinédrio, 214 Sínodo presbiteriano, 253 Sinope, cidade na Anatólia, 42 Sionista, movimento, 264 Sírico, bispo, 63 Sisto IV, papa, 154/5 Smalkalde, liga de, 170 Smith, Joseph, 251/6 Sobieski, João, rei da Polónia, 212 Sobrenaturalidade, 14, 16 Sociedade Religiosa dos Amigos, 254 Societas iesu, 221 Sócrates, socráticos, 166 Sodoma, cidade de, 22 Sola Christus, 252 Sola Gratia et Fide, 252 Solo Sriptura, 252 Solene Liga e Aliança, 194 Solimão, O Magnífico, sultão turco, 101, 169, 170 Somerset, duque de, 188 Speyer, dieta de, 180, 252 Stedinger, chacina dos, 106 Stuart, Maria, 189 Stupor Mundi, (ver Frederico II), 133 Suábia, duque, 86 Subordinacionismo, 42 suevos, 64, 70, 79 Sulavesi, (antiga ilha das Celebes), 265 Summa Contra Gentilis, 124 Summa Theologica, 124 Summulae Logicales, 121 Sumo Pontífice, 113 Sunas, 75 sunitas, 73/5/6/7, 259 superstição, 9, 183, 262 Supremo Concílio presbiteriano, 253 Suras, 74/6 Susanoo, deus xintoísta, 17
T
Taciano, 43 Tacwin, génios femininos, 74 Tagaste, antiga cidade na Numídia, 60 Talleyrand, Carlos Maurício, (ver Bispo de Autum), 244/7 Tamerlão, cã, 67 Tanquelmo, 128 Tarso, antiga cidade na Anatólia, 102 Taxa Camarae, 177 Taza Russel, Carlos, 256
Te Deum, 199, 244 Templo, Ordem do, templários, 100, 103/7/8/9/, 110/7, 137, 173, 199, 235 Teodomiro, rei suevo, 79 Teodora, imperatriz bizantina, 130 Teodora, raínha lombarda, 72 Teodora a moça, 86 Teodora Tusulani, 85 Teodorico, anti-papa, 96 Teodorico, rei ostrogodo, 46 Teodósio II, Imperador bizantino, 66 Teodósio, imperador romano, 35, 56/7, 63/9 Teódoto, 43 teologia, 119, 136, 143, 167, 176 teologia dogmática, 60 teologia da graça, 177 teologia da meditação, 168 Terra Santa, 97/9, 100/4/5/7/8, 122, 221/2 Tertuliano, 44 Testemunhas de Jeová, 165, 252/6 Teutónica, Ordem, Estado, 107, 111, 180 Thesaurus Pauperum, 121 Thomas, John, 259 Tiago, S. Evangelho de, 161/2 Tiago de Moley, 109 Tiberíade, batalha de, 102/8 Tindal, 240 Toledo, concílio de, 57/9, 64, 91 Tolentino, tratado de, 247/9 Tomás de Kempis, 160 Tomé, S. Evangelho de, 174 Tora, 161 Tordesilhas, tratado de, 155 Torquemada, Tomás de, 217 Totila, rei ostrogodo, 70 Toulouse, concílio de, 131 Transcendente, transcendental, 39, 40/2, 124 transmutação, 270 transubstanciação, 180 Trento, concílio ecum. de, 157, 170/6, 201/3/5, 223 Tréveros, cidade alemã, 53, 64, 238 Tribunal do Santo Ofício, 207, 216/7 Tribúria, cidade alemã, 95 Trindade, 25, 41/2/4/5/6, 51/8, 64/7/9, 90, 110/15/17, 123, 183, 256/8 Trinitários, tritaísmo, 42 Trinta Anos, guerra dos, 201, 231/5 Tsuquiomi, deus do xintoísmo, 17 Tu Es Petrus, 136 Tusculani, família romana, 85/6
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RELIGIÃO, PORQUÊ?
Manuel Souto Teixeira
U
William Booth, 254 William Miller, 256 William Seymour, 257 Worms, cidade alemã, acordo de, 94/6, 175, 180 Worms, édito de, 179, 180, 252 Wyclif, João, 144/5/6/7, 186
União dos protestantes do meio-dia, 198 União Evangélica, 232 Universidade de Teologia, Gênebra, 184 Urano, deus grego, 17 Urbano II, papa, 95/9, 102 Urbano III, papa, 123, 133 Urbano VI, papa, 139 Urbano VIII, papa, 236 Ursácio, cisma de, 89
V
X
vaabitas, 77 Valdo, Pedro, valdenses, valdismo, 105, 128/9, 130, 143, 217 Valentim, 40 Vasco da Gama, 28 Vaticano, 25, 83/4 Vaticano, biblioteca do, 156, 217 Vaticano I, concílio ecum. (1870), 236 Vausselle, paz de, 171 Vedismo, 27 Vénus, deusa romana, 20 Verona, concílio, 129 Vervins, tratado de, 200 Vesta, deusa romana, 18 vestais, 18 Vestefália, tratado, 233 Vicente, S., 24 Viena, congresso de, 250 Viena, 170, 209 Vienne, concílio ecum. de (1311), 109 Vili, deus nórtico, 17 Virgílio, 166 visigodos, 46, 64, 70/2/9 Vitemberga, castelo de, 179 Vítor I, papa, 43 Vítor II, papa, 88 Vítor III, papa, 95 Vítor IV, papa, 97 Vixnu, deus hinduísta, 19 voabitas, 259 vudu, 15 Voltaire, Francois Marie, 29, 240 Vúlfilas, bispo, 46 Vulgata, 160
xamanismo, 17 xária, 265 xiitas, 75/6, 259 Xinjiang, 287 xintoísmo, 17 Xiva, deusa hinduísta, 17/19
Y
Yamuk, batalha de, 76 Yang, 20 Yin, 20 Yuste, mosteiro de, 184
Z
Zacarias, 23 Zacuto Lusitano, 218 Zara, antiga cidade na Croácia, 104 Zaratustra, ver Zoroastro, 21, 49 Zeferino, 44 Zeus, deus grego, 17, 20 Zoroastro, zoroastrismo, 21, 39 Zózimo, 65 Zwickau, Ulrique, 185
W
Wallace, Alfredo, 270/1 Walter Tyler, 145 Wandsworth, igreja de, 194 Westminster, abadia de, 194/5, 271 Whitefield, Jorge, 255
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RELIGIÃO, PORQUÊ?
Manuel Souto Teixeira
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