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Prefácio _ por Ruy Filho

ste não é um material qualquer. As reflexões sobre 28

Eespetáculos selecionados a partir da curadoria realizada para o festival FarOFFa no Sofá - sendo este já o segundo movimento, ao iniciado em março de 2020 por Gabi Gonçalves e Pedro de Freitas, quando propuseram em São Paulo uma mostra paralela de criações cênicas para apresentá-los a programadores internacionais -, reúne, sem se querer definitivo, um amplo panorama da produção brasileira em teatro e dança das últimas décadas. Ao serem reapresentados ao público pelos meios digitais, imposição dada pelas salas fechadas, isolamento social e uma pandemia que não cessa, as obras readquirem outras complexidades e possibilidades de entendimento. O especial Críticas no Sofá: por Elas realizado pela plataforma Antro Positivo serve ao público para norteá-lo às escolhas dos artistas por meio de parâmetros críticos sobre como observá-las ao tempo, construções dos discursos e usos das linguagens, e também aos próprios artistas, na medida em que lhes oferece novos diálogos pela reflexão escrita, agora, diferentemente, por quem muitas vezes não pode assistir os espetáculos quando realizados. Esse ‘não ao vivo’ permeia diversas discussões nos textos a seguir, dando ao encontro pretendido outra ordem de realidade e percepção. Isso, por si só, já seria suficiente para nos estimular à criação desse material.

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Ao propor novamente olhar aos espetáculos, optamos por fortalecer algo mais atual de nosso momento his-

tórico. Se outrora a perspectiva feminina fora limitada a existir como complemento ao amplo universo reflexivo masculino dos espaços oferecidos pelos veículos tradicionais, hoje ela é determinante ao desvelamento das próprias armadilhas que aprisionaram as reflexões e estéticas. O coletivo aqui apresentado inexiste formalmente; todavia é real no querer reunir vozes interessadas em constituir outras qualidades observacionais e propriedades de falas. Anna Magalhães, Ave Terrena, Maria Teresa Cruz, Ramila Souza são a face brasileira desse feminine contemporâneo, cuja generosidade em emprestar seus pensamentos e palavras estabeleceram ricos, singulares e necessários paradigmas ao como revisitarmos os espetáculos escolhidos. Digo brasileira, pois nos pareceu - à Pat Cividanes e a mim, editores do especial - fundamental aproximar quem pudesse acessar, ao menos alguns trabalhos, tangenciando nossa cultura. Encontramos na revista argentina Farsa Mag a melhor das companhias, e dela se juntaram à criação dessa cartografia crítica Florencia D’Antonio, Guada Gold, Julieta Zeta, Laura Petracca e Victoria Casaurang nas análises e Ariane Cuminale na tradução do espanhol ao português. Por esse outro ângulo - distante não apenas do acontecimento real, também dos vocabulários quais estamos acostumados ao lidar com nossos artistas -, os espetáculos foram desdobrados a novas qualidades e significados.

A aparente facilidade de pessoalizar as resenhas atribuindo-lhes valores prévios a partir de quem lhe produz, tornou-se uma questão relevante. Por que sistematizar o feminino em uma voz uníssona, retirando de sua manifestação a amplitude de sua eloquência quando múltipla? Isso nos levou a escolheremos não dar antecipadamente ao leitor sugestões interpretativas sobre os materiais. Algo inevitável, quando se limita ao equívoco de antepor gênero, raça e nacionalidade como justificativa ou o que for. Preferimos ir mais adentro, a fim de possibilitar ao feminine reunido manifestar-se dinamicamente. Sendo assim, as resenhas não estão assinadas por alguém, e sim pela totalidade das participantes. Caberá a cada um, cada leitora interessada investigar e encontrar o que individualiza as resenhistas a partir de visão de mundo empreendida e, portanto, de escrita. Tratou-se de estabelecer nesse exercício de busca uma maior aproximação à humanidade daquela que escreve.

Dessa maneira, a simplificação de ser esta mais uma publicação com críticas pode ser abandonada desde o início. Em cada página, o leitor é convidado ao diálogo com ume resenhista mais definida a partir do desvelamento de como esta se porta ao mundo. Algo impossível de acontecer de outra maneira, senão pela profunda exposição de seu próprio contexto sociocultural. E é pelos modos com os quais acessam, abordam, dialogam, confrontam

e amplificam os espetáculos e artistas que as realidades vividas na esfera particular serve ao redimensionamento de tudo aquilo que precisa ser percebido por comum. Encontrá-les e reconhecê-les é como abraçar suas urgências e, por elas, se libertar das classificações. As resenhas merecem mais: em cada espetáculo resenhado coexiste um feminine em seu estado mais íntimo de exposição. E isso pode ser um estímulo revolucionário, se assim nos permitirmos descobri-lo.

Os 28 espetáculos iniciam em 1993 e chegam a 2019. O recorte não fora casual. Dentre a centena de obras que integraram o festival FarOFFa no Sofá, escolheu-se artistas nacionalmente consagrados e outros ainda a serem descobertos com mais amplitude, e com algo em comum: a qualidade e relevância de suas criações no contexto brasileiro, e, em alguns momentos, não apenas dentre nós. São diretoras/es, dramaturgues, coreográficas/os, dançarines, performers, coletivas, grupos, companhias. Os formatos diversos revelam pela variedade o quão a cena brasileira não se restringiu a uma ou duas possibilidades de se fazer e como as respostas estipularam o surgimento de linguagens híbridas capazes de articular referências e originalidade sem impedimento criativo. Companhias e artistas já afirmados em suas trajetórias, como Oficina, Vertigem, Lia Rodrigues, Marcelo Evelin, Chris Jatahy, Galpão, Cena 11 e Cia. dos Atores,

ecoam na maneira como muitos dos mais recentes estruturaram e realizam seus trabalhos. Também por isso são fundamentais participarem deste especial. Mas é mesmo a partir de 2015 que os espetáculos escolhidos passaram a abordar outras perspectivas sobre quem os cria. Surgem importantes mobilizações de coletivos negros, de criadores trans e artistas articulados com ambientes periféricos em suas mais diferentes condições. Por outro lado, a presença de outros centros, que não do eixo sul-sudeste, surge aqui com maior intensidade somente a partir de 2017.

Não se trata de algo circunstancial. A dificuldade dos grupos e artistas das demais regiões do país em articular aproximações mais efetivas com os principais centros teatrais ainda é enorme. Enquanto confrontam os dilemas do domínio econômico e midiático do eixo sul-sudeste, sobretudo São Paulo/Rio, pouco sobra ao investimento do registro adequado das próprias pesquisas. E se ninguém imaginaria qualquer utilidade imediata aos registros, agora se revelaram única possibilidade de nos aproximarmos dos espetáculos. É preciso, então, compreender a importância da qualidade técnica diante o recorte realizado: maior investimento não significa somente uma espécie de oportunidade, oferece um meio expositivo mais efetivo diante uma realidade transformada por outra perspectiva ao como acessarmos o teatro, a performance e a dança.

Ao reunir os espetáculos que tiveram a sorte ou empreendedorismo de registrarem de forma eficiente alguma ou algumas apresentações, construindo nesses acervos a possibilidade de agora os assistirmos, uma informação surge imensa: nas últimas décadas, dentre muito do que se destacou interessar aos artistas, fossem consagrados ou iniciantes, diz respeito aos incômodos decorrentes de uma sociedade não agregadora e profundamente violenta. Quase não há possibilidades de termos pelo poético a busca por outra perspectiva ao humano. Significa, então, a transferência sistêmica do sujeito criador, naquilo que se compreende por individualidade ao mundo, ao sujeito manifesto a partir de seu desdobramento social. Aqui cabem dois diagnósticos: o primeiro diz respeito a um instante passado, em que, por maior possibilidade de se realizar como arte, esta pode, enfim, olhar ao lado para estabelecer diálogos mais profundos e consequentes com a realidade de qual era parte; o segundo, diferentemente, aponta ao isolamento do artista, cada vez mais conduzido a uma interpretação de si mesmo, naquilo que lhe é destituído ou negado pela sociedade ao ser julgado, antes mesmo de existir artista, por preconceitos e classificações deformativas.

Esse eu transferido daquele que se é àquele que julgam ser organiza outras lógicas aos espetáculos e performances; nelas o corpo reassume protagonismo de embate

simbólico aos sistemas normativos escondidos pelas narrativas. Dessa maneira os coletivos passaram a acontecer por interesses específicos anteriores, aos quais confirmam e realizam suas recusas e ideologias pela manifestação na arte, e não mais como reuniões entre interessados em fazer arte, pela qual ideologias surgiriam ao convívio e tempo. Se isso, como poderá ser percebido pelas resenhas, expõe maior urgência ao evidente retrocesso nas liberdades conquistadas dos corpos dissidentes e minorias e ao esfacelamento do processo democrático brasileiro, por outro traduz o interesse na articulação argumentativa dos artistas junto a públicos específicos muitas vezes não integrados aos discursos estéticos. Um contraponto difícil de ser decifrado, já que perdas e ganhos se confundem nas próprias estratégias em iguais métricas. O que nos faz perguntar se, de fato, dado o momento histórico e político em que chegamos, se ainda essa é uma reflexão necessária ou substancial. Por existir um espetáculo como Domínio Público, reunindo nele quatro artistas perseguidos e ameaçados pela sociedade e poder formal, parece que sim: há uma urgência crescente de olharmos o quanto tudo isso tem interferido na ambiência criativa brasileira. Por isso muitas das resenhas aproximarão o leitor do presente, mesmo quando os espetáculos foram realizados mais distantes, no interesse de, a partir deles, amplificar a percepção sobre quais os riscos se colocam já tão perto de serem efetivados ao futuro da arte e cultura brasileiras.

A organização de um festival como FarOFFa no Sofá potencializa a todos ampliar a percepção dessas transformações narrativas, estéticas e pessoais, e isso é especial. Por olhar ao teatro, dança e performance a partir dos interesses individuais de tantos criadores, descobrindo as aproximações de suas singularidades nas entrelinhas dos espetáculos, chegar-se-á ao entendimento de uma narrativa que não é exclusivamente artística. Por mapear uma geração relativamente próxima, as obras superam suas especificidades para sustentar a observação transversal do instante qual se fizeram, abrindo o campo de percepção sobre elas para além das próprias manifestações. Portanto são igualmente acontecimentos descritivos dos últimos anos, pelos quais poderemos invadir as questões de maneira mais efetiva.

Por aqui, obviamente, o leitor não chegará aos espetáculos na qualidade máxima possível apenas quando assistidos. Todavia, ao serem comentados pelas resenhistas convidadas, oferece-se a oportunidade de costurar um ou mais fios de entendimento sobre a casualidade daquilo que as escolhas de cada obra aproximam umas às outras. É como estar diante um documentário em que as fotografias não se dão pela imagem e sim pela imaginação de cada leitor. Tal processo de descoberta individual daquilo que possam vir a ser os espetáculos traduz o leitor ao material e não o contrário. Ou seja, os intuídos por

cada um, os fios encontrados, são seus próprios silêncios e expectativas. É quando a experiência cênica, de alguma maneira, ainda pode acontecer, mesmo que, e preferencialmente, por palavras apresentadas por terceiros: a elaboração da ideia contextualizada no sujeito, e não somente pela obra, ao performatizar pelo imaginativo o material qual decifra.

É preciso dar a esse livro-documento-diálogo-imaginação a contextualização necessária de ser uma experiência digital de linguagens afirmativas fundadas na presença e no encontro. Assistir aos espetáculos dessa maneira implica em três intromissões transformadoras: a mediação imperativa trazida pelas escolhas dos artistas no jogo de câmeras, edições e, em alguns casos, tratamentos de imagens e sons; a interface tecnológica enquanto interferência da própria experienciação, muitas vezes limitadas por capacidades distintas de acesso e equipamento; e, ainda, a ambiência onde se acomoda durante o assistir, ora caótico pela rotina alheia aos interesses daquele que olha à tela, ora controlado e organizado para melhor fruição, distante, por conseguinte, do caótico ou descontrole quando em uma sala de espetáculo.

Diversas resenhas apresentam as circunstâncias do próprio processo de assistir aos espetáculos e escrever sobre isso exatamente por perceberem nelas uma experi-

ência singular. Contudo, há também as que reconhecem ganhos impossíveis diante o presencial, a partir das aproximações e ampliações do como acessar a uma performance ou acontecimento cênico. Significa, então, não ser possível simplificar a transmissão digital de um espetáculo como algo menor ou maior, se real, verdadeiro ou não, mesmo quando assistidos no tempo de suas transmissões ou posteriormente. O fato é que, para além da subjetividade de como agregam ou perdem contextos e sentidos, a organização de um festival de tal natureza oferece ao público a qualidade rara de construir um imenso arcabouço de manifestações diversas, pelo qual aumenta consideravelmente seu vocabulário simbólico sobre como ler o mundo e o humano.

Já aos críticos e resenhistas, a situação não se limita ao aumento do vocabulário, e sim, como também pode perceber pelas escritas sua capacidade em desafiar os próprios sentidos ao entendimento daquilo que poderia vir a ser se presencialmente vivenciado. É esse exercício maior sobre sua capacidade imaginativa de identificar o que não está na tela e as condições que fazem da escrita algo entre a reflexão e o devaneio que a liberdade se realiza enquanto condição de ser sobretudo desejo ao outro. Um querer estar próximo ao outro, de existir ali, de olhar aos olhos, de sentir os corpos, de ser igualmente presença. O reconhecer a outra, o outro, a outre como dispositivo de

acesso ao mundo. Se agora mediado e interferido, ainda assim, o outro permanece como qualificação ao mundo. Não mais como antes, isso é certo. Agora é o real quem o ressignifica durante sua manifestação. Então o outro é a soma daquilo desconhecido no agora e daquele qual nos percebemos na encruzilhada qual o presente se afirma. Não há saída. É preciso olhar ao futuro, querer nos artistas e criações, mesmo quando erguidas no passado, o amanhã. Ter no outro o amanhã, seja como for. É preciso encontrar outra potência de voz a fim de modificar nossas percepções. Por isso, para além de tanto, não há melhor acerto ao Críticas no Sofá do que ter sido escrito por elas.

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